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Esta coleção tem como objectivo proporcionar textos que sejam

acessíveis e de indiscutível seriedade e rigor, que retratem


episódios e momentos marcantes da História, seus protagonistas, a
construção das nações e as suas dinâmicas.
Título original:
Les Croisades vues par les Arabes
© Éditions Jean-Claude Lattés, 1983
Tradução: Geminiano Cascais Franco
Revisão: Marcelino Amara
Capa: FBA
Na capa: Imagem de um vitral sírio que retrata um cavaleiro árabe
© Corbis/VMI

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação


MAALOUF, Amin, 1949
As cruzadas vistas pelos árabes. – (História narrativa ; 38)
ISBN 978-972-44-1797-4
CDU 821.133.1(569.3)-31”19/20”

EDIÇÕES 70
Janeiro de 2020
1.ª edição: Junho de 2013

Direitos reservados para todos os países de Língua Portuguesa à exceção do


Brasil por Edições 70

EDIÇÕES 70, uma chancela de Edições Almedina, S.A


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Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível
de procedimento judicial.
À Andrée
Preâmbulo

Este livro parte de uma ideia simples: contar a história das


cruzadas tal como elas foram vistas, vividas e relatadas no «outro
campo», ou seja, do lado árabe. O seu conteúdo baseia-se, mais ou
menos exclusivamente, nos testemunhos dos historiadores e
cronistas árabes da época.
Estes, aliás, não falam de cruzadas, mas de guerras ou de
invasões francas. A palavra que designa os Francos é transcrita de
modo diferente consoante as regiões, os autores e os períodos:
Faranj, Faranjat, Ifranj, Ifranjat… Para unificar, escolhemos a forma
mais concisa, além de ser a que ainda hoje serve no falar popular
para denominar os ocidentais, e mais particularmente os Franceses:
Franj.
No intuito de não sobrecarregar a narrativa com as muitas notas
que se impõem – bibliográficas, históricas ou outras –, preferimos
guardá-las para o fim, onde estão agrupadas por capítulo. Quem
desejar saber um pouco mais tirará proveito da sua leitura, mas elas
não são de modo algum indispensáveis à compreensão da
narrativa, a qual procurámos tornar acessível a todos. De facto,
mais do que um novo livro de história, quisemos escrever, a partir de
um ponto de vista até aqui descurado, «o romance verdadeiro» das
cruzadas, desses dois séculos movimentados que moldaram o
Ocidente e o mundo árabe, e que ainda hoje determinam as
relações entre ambos.
Prólogo

Bagdad, Agosto de 1099

Sem turbante, cabeça rapada em sinal de luto, o venerável cádi


Abu-Saad al-Harawi entra aos gritos no vasto divã do califa al-
Mustazhir-billah. Na sua esteira, uma multidão de companheiros,
jovens e velhos. Estes aprovam ruidosamente cada uma das suas
palavras e oferecem, como ele, o espectáculo provocante de uma
barba abundante sob um crânio nu. Alguns dignitários da corte
tentam acalmá-lo, mas, afastando-os de um gesto desdenhoso, ele
avança resolutamente para o meio da sala, depois, com a
eloquência veemente de um pregador do alto do púlpito, admoesta
todos os presentes, sem atender à sua categoria:
– Ousais dormitar à sombra de uma venturosa segurança, numa
vida frívola como a flor do jardim, quando os vossos irmãos da Síria
já não têm outra morada senão as selas dos camelos ou as
entranhas dos abutres? Quanto sangue derramado! Quantas belas
donzelas tiveram, por vergonha, de esconder o seu doce rosto nas
suas mãos! Então os valorosos Árabes sujeitam-se à ofensa e os
bravos Persas aceitam a desonra?
«Era um discurso de fazer chorar os olhos e comover os
corações», dirão os cronistas árabes. Toda a assistência é sacudida
pelos gemidos e lamentações. Mas al-Harawi não quer os seus
soluços.
A pior arma do homem, lança ele, é derramar lágrimas quando as
espadas ateiam o fogo da guerra.
Se fez a viagem de Damasco a Bagdad, três longas semanas de
Verão debaixo do sol imparável do deserto sírio, não foi para
mendigar a piedade, mas para avisar as mais altas autoridades do
Islão da calamidade que acaba de se abater sobre os crentes e para
lhes pedir que intervenham sem demora a fim de suster a
carnificina. «Nunca os muçulmanos foram assim humilhados»,
repete al-Harawi, «nunca antes as suas plagas foram tão
selvaticamente devastadas.» Os homens que o acompanham
fugiram todos das cidades saqueadas pelo invasor; alguns deles
contam-se entre os raros sobreviventes de Jerusalém. Trouxe-os
consigo para eles poderem descrever, de viva voz, o drama que
amargaram um mês antes.
Foi de facto na sexta-feira 22 de Chaaban do ano 492 da Hégira,
o dia 15 de Julho de 1099, que os Franj se apoderaram da cidade
santa após um cerco de quarenta dias. Os exilados ainda tremem
sempre que falam disto, e o seu olhar imobiliza-se, como se ainda
vissem à sua frente esses guerreiros louros cobertos de armaduras
que se espalham pelas ruas, de sabre em riste, degolando homens,
mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as mesquitas.
Quando a matança parou, dois dias mais tarde, já não havia um
só muçulmano dentro dos muros. Alguns aproveitaram a confusão
para se esgueirar dali, através das portas que os atacantes tinham
arrombado. Os outros jaziam aos milhares em poças de sangue à
entrada das suas moradas ou nas imediações das mesquitas. Entre
eles um grande número de imãs, de ulemás e de ascetas sufis que
haviam deixado os seus países para viverem em piedoso retiro
nesses lugares santos. Os últimos sobreviventes foram obrigados a
efectuar a pior das tarefas: transportar às costas os cadáveres dos
seus, amontoá-los sem sepultura em terrenos baldios, depois
queimá-los, antes de serem, por seu turno, massacrados ou
vendidos como escravos.
A sorte dos judeus de Jerusalém não foi menos atroz. Nas
primeiras horas da batalha, vários deles participaram na defesa do
seu bairro, a Judiaria, situado no norte da cidade. Mas quando o
lanço de muralha que sobranceava as suas casas se desmoronou e
os cavaleiros louros começaram a invadir as ruas, os judeus
desorientaram-se. A comunidade inteira, reproduzindo um gesto
ancestral, reuniu-se na sinagoga principal para orar. Os Franj
bloquearam então todas as saídas, depois, empilhando molhos de
lenha a toda a volta, deitaram-lhes fogo. Os que tentavam escapar
eram abatidos nas ruelas contíguas. Os outros eram queimados
vivos.
Alguns dias após o drama, os primeiros refugiados da Palestina
chegaram a Damasco, trazendo com infinitas precauções o Alcorão
de Otomão, um dos mais velhos exemplares do livro sagrado. Em
seguida, os que se tinham salvo de Jerusalém aproximaram-se por
sua vez da metrópole síria. Ao avistar de longe a silhueta dos três
minaretes da mesquita omíada que se destacam acima do recinto
quadrado, estenderam os seus tapetes de oração e prosternaram-se
para agradecer ao Todo-Poderoso por lhes ter prolongado as suas
vidas que julgavam chegadas ao fim. Na qualidade de grão-cádi de
Damasco, Abu-Saad al-Harawi acolhera os refugiados com
benevolência. Este magistrado de origem afegã é a personalidade
mais respeitada da cidade; aos Palestinianos, prodigou conselhos e
reconforto. Segundo ele, um muçulmano não deve corar por ter de
fugir de sua casa. O primeiro refugiado do Islão não foi porventura o
próprio profeta Maomé, que teve de deixar a sua cidade natal,
Meca, cuja população lhe era hostil, a fim de buscar refúgio em
Medina, onde a nova religião era mais bem acolhida? E não foi a
partir do seu lugar de exílio que ele lançou a guerra santa, a jihad,
para libertar a sua pátria da idolatria? Por isso, os refugiados devem
saber que são os combatentes da guerra santa, os mujahidines por
excelência, tão honrados no Islão quanto a emigração do Profeta, a
Hégira, foi escolhida como ponto de partida da era muçulmana.
Para muitos crentes, o exílio é inclusivamente um dever
imperativo em caso de ocupação. O grande viajante Ibn Jobair, um
árabe de Espanha que visitará a Palestina cerca de um século após
o começo da invasão franca, ficará escandalizado ao ver que alguns
muçulmanos, «subjugados pelo amor à terra natal», aceitam viver
em território ocupado. Dirá ele: «Não há para um muçulmano
qualquer desculpa à face de Deus se permanecer numa cidade de
indevoção, a não ser que esteja simplesmente de passagem. Em
terra de Islão, ele acha-se ao abrigo das penas e dos males aos
quais se está submetido nos países dos cristãos; como por exemplo
ouvir palavras repulsivas a respeito do Profeta, especialmente na
boca dos mais ignaros, estar impossibilitado de se purificar e viver
no meio dos porcos e de tantas coisas ilícitas. Livrai-nos, livrai-nos
de penetrar nos seus domínios! Convém pedir perdão e misericórdia
a Deus por semelhante falta! Um dos horrores que saltam aos olhos
de quem quer que habite no país dos cristãos é o espectáculo dos
prisioneiros muçulmanos que tropeçam nos grilhões, que são
empregues em duros trabalhos e tratados como escravos, e
também a visão das cativas muçulmanas que trazem nos pés anéis
de ferro. Os corações despedaçam-se ao vê-los, mas a piedade de
nada lhes serve.»
Excessivas do ponto de vista da doutrina, as afirmações de Ibn
Jobair reflectem bem, no entanto, a atitude destes milhares de
refugiados da Palestina e do Norte da Síria reunidos em Damasco
nesse mês de Julho de 1099. Em verdade, embora tenha sido
evidentemente com imensa mágoa que eles abandonaram as suas
moradas, o certo é que estão determinados a jamais voltar a suas
casas antes da partida definitiva do ocupante e resolvidos a
despertar a consciência dos seus irmãos em todas as regiões do
Islão.
De outro modo, porque teriam vindo a Bagdad sob a chefia de al-
Harawi? Pois não é para o califa, o sucessor do Profeta, que devem
voltar-se os muçulmanos nas horas difíceis? Não é na direcção do
Príncipe dos Crentes que devem elevar-se as suas queixas e os
seus lamentos?
Em Bagdad, a decepção dos refugiados será proporcional às
suas esperanças. O califa al-Mustazhir-billah começa por exprimir-
lhes a sua profunda simpatia e extrema compaixão, antes de
encarregar seis altos dignitários da corte de efectuar um inquérito
acerca de tão deploráveis acontecimentos. Será necessário
acrescentar que nunca mais se ouvirá falar desta comissão de
sages?
O saque de Jerusalém, ponto de partida de uma hostilidade
milenar entre o Islão e o Ocidente, não irá provocar, de momento,
qualquer arrebate. Ter-se-á de esperar perto de meio século até o
Oriente árabe se mobilizar frente ao invasor, e o apelo à jihad
lançado pelo cádi de Damasco no divã do califa ser celebrado como
o primeiro acto solene de resistência.
No início da invasão, poucos árabes avaliam desde logo, à
semelhança de al-Harawi, a amplidão da ameaça vinda do Oeste.
Alguns adaptam-se mesmo demasiado depressa à nova situação. A
maioria só procura sobreviver, amargos mas resignados. Há-os que
se erigem em observadores mais ou menos lúcidos, tentando
compreender estes acontecimentos tão imprevistos como novos. O
mais interessante de todos é o cronista de Damasco, Ibn al-
Qalanissi, um jovem letrado oriundo de uma família de notáveis.
Espectador da primeira hora, em 1096, quando os Franj chegam ao
Oriente, ele tem vinte e três anos e empenha-se em anotar
regularmente por escrito os acontecimentos de que tem
conhecimento. A sua crónica conta fielmente, sem excessiva paixão,
a marcha dos invasores, tal como ela é encarada na sua cidade.
Para ele, tudo principiou nesses dias de angústia em que
chegam a Damasco os primeiros rumores…
PRIMEIRA PARTE

A Invasão (1096-1100)

Atentai nos Franj! Vede com que afinco eles se batem


pela sua religião, ao passo que nós, os muçulmanos,
não demonstramos o mínimo ardor em travar a guerra
santa.

SALADINO
CAPÍTULO I

Chegam os Franj

Nesse ano, começaram a suceder-se as informações sobre o


aparecimento de tropas de Franj vindas do mar de Mármara em
inumerável turba. As pessoas atemorizaram-se. Estas notícias
foram confirmadas pelo rei Kilij Arslan, cujo território era o mais
próximo de tais Franj.

«O rei Kilij Arslan» de que nos fala aqui Ibn al-Qalanissi ainda
não fez dezassete anos à chegada dos invasores. Primeiro dirigente
muçulmano a ser informado da sua aproximação, este jovem sultão
turco de olhos ligeiramente amendoados será simultaneamente o
primeiro a infligir-lhes uma derrota e o primeiro a sofrer um desaire
perante os seus temíveis cavaleiros.
É em Julho de 1096 que Kilij Arslan toma conhecimento de que
uma imensa multidão de Franj está a caminho de Constantinopla.
Ele receia desde logo o pior. É claro que não faz a mínima ideia dos
verdadeiros objectivos procurados por esta gente, mas a sua vinda
ao Oriente não lhe pressagia nada de bom.
O sultanato que ele governa estende-se por uma grande parte da
Ásia Menor, um território que os Turcos acabam justamente de
arrancar aos Gregos. Com efeito, o pai de Kilij Arslan, Solimão, foi o
primeiro turco a apoderar-se dessa terra que se iria chamar, muitos
séculos mais tarde, Turquia. Em Niceia, capital deste jovem Estado
muçulmano, as igrejas bizantinas mantêm-se mais numerosas que
as mesquitas. Se a guarnição da urbe é formada por cavaleiros
turcos, já a maioria da população é grega, e Kilij Arslan não acalenta
ilusões sobre os reais sentimentos dos seus súbditos: para estes,
ele será sempre um chefe de bando bárbaro. O único soberano que
reconheceu, aquele cujo nome ressurge, em voz baixa, em todas as
preces, é o basileus Aleixo Comneno, imperador dos Romanos. No
fundo, Aleixo é acima de tudo imperador dos Gregos, os quais se
proclamam herdeiros do Império Romano. Aliás, tal qualidade é-lhes
reconhecida pelos Árabes, que – tanto no século XI como no século
XX – designam os Gregos pelo termo Rum, «Romanos». O domínio
conquistado pelo pai de Kilij Arslan à custa do Império Grego é
mesmo denominado sultanato dos Rum.
Na época, Aleixo é uma das figuras mais prestigiosas do Oriente.
Este quinquagenário de baixa estatura, olhos faiscantes de malícia,
barba cuidada, maneiras elegantes, sempre adornado de ouro e de
ricas vestes azuis, exerce um autêntico fascínio sobre Kilij Arslan. É
ele que reina em Constantinopla, a fabulosa Bizâncio, situada a
menos de três dias de marcha de Niceia. Uma proximidade que
provoca no jovem sultão sentimentos contraditórios. Como todos os
guerreiros nómadas, ele aspira à conquista e à pilhagem. Sentir as
lendárias riquezas de Bizâncio ao alcance da sua mão é algo que
não lhe desagrada. Mas, ao mesmo tempo, sente-se ameaçado:
sabe que Aleixo nunca desesperou de retomar Niceia, não só
porque a cidade sempre foi grega, mas sobretudo porque a
presença de guerreiros turcos a tão curta distância de
Constantinopla constitui um perigo permanente para a segurança do
Império.
Ainda que o exército bizantino, dilacerado desde há anos por
crises internas, fosse incapaz de se lançar sozinho numa guerra de
reconquista, ninguém ignora que Aleixo dispõe sempre da
possibilidade de recorrer a auxiliares estrangeiros. Os Bizantinos
nunca hesitaram em apelar para os serviços de cavaleiros vindos do
Ocidente. Mercenários de pesadas armaduras ou peregrinos a
caminho da Palestina, muitíssimos são os Franj que visitam o
Oriente. E, em 1096, não se trata de modo nenhum de
desconhecidos para os muçulmanos. Uns vinte anos antes – Kilij
Arslan ainda não nascera, mas os velhos emires do seu exército
contaram-lho –, um destes aventureiros de cabelo louro, um tal
Roussel de Bailleul, que lograra estabelecer um Estado autónomo
na Ásia Menor, chegou a marchar sobre Constantinopla.
Assustados, os Bizantinos não tiveram outro remédio senão apelar
para o pai de Kilij Arslan, que não acreditara no que ouvia quando
um enviado especial do basileus lhe suplicara que voasse em seu
socorro. Os cavaleiros turcos tinham-se então dirigido efectivamente
para Constantinopla e conseguiram vencer Roussel. O que valeu a
Solimão uma generosa recompensa em ouro, cavalos e terras.
Desde então, os Bizantinos desconfiam dos Franj, mas os
exércitos imperiais, debatendo-se com uma falta constante de
soldados experimentados, são obrigados a recrutar mercenários.
Não apenas Franj, aliás: são muitos os guerreiros turcos nas fileiras
do império cristão. É precisamente graças a irmãos de raça
alistados no exército bizantino que Kilij Arslan toma conhecimento,
em Julho de 1096, de que milhares de Franj se aproximam de
Constantinopla. O quadro que lhe traçam os seus informadores
deixa-o perplexo. Estes ocidentais assemelham-se muito pouco aos
mercenários que é costume ver. Há de facto entre eles umas
centenas de cavaleiros e um número importante de infantes
armados, mas também milhares de mulheres, de crianças, de
velhos andrajosos: dir-se-ia uma tribo expulsa das suas terras por
um invasor. Também se conta que todos trazem, cosidas nas
costas, tiras de tecido em forma de cruz.
O jovem sultão, que tem dificuldade em avaliar o perigo, pede
aos seus agentes que redobrem a vigilância e o mantenham
permanentemente a par dos feitos e gestos destes novos invasores.
Por descargo de consciência, manda verificar as fortificações da sua
capital. As muralhas de Niceia, que têm mais de um farsakh (seis
mil metros) de comprimento, são sobrepujadas por duzentas e
quarenta torres. A sudoeste da cidade, as águas calmas do lago
Ascânio constituem uma excelente protecção natural.
Porém, nos primeiros dias de Agosto, a ameaça concretiza-se.
Os Franj atravessam o Bósforo, transportados por navios bizantinos,
e a despeito de um sol abrasador avançam ao longo da costa. Por
toda a parte, e não obstante terem sido vistos a pilhar à sua
passagem mais de uma igreja grega, ouvem-se os seus brados de
que vêm exterminar os muçulmanos. Diz-se que o chefe deles é um
eremita chamado Pedro. Os informadores calculam o seu número
numas tantas dezenas de milhares, mas ninguém sabe explicar
aonde os levam os seus passos. Parece que o imperador Aleixo
decidiu instalá-los em Civitot, um acampamento que ele mandou
arranjar anteriormente para outros mercenários, a menos de um dia
de marcha de Niceia.
O palácio do sultão regista uma efervescência louca. Enquanto
os cavaleiros turcos se mantêm prontos, a todo o momento, a saltar
para os seus corcéis, assiste-se a um contínuo vaivém de espiões e
de batedores que relatam os mais pequenos movimentos dos Franj.
Conta-se que, todas as manhãs, estes últimos deixam o seu
acampamento em hordas de vários milhares de indivíduos para irem
assolar as imediações, que pilham algumas herdades e incendeiam
outras, antes de regressar a Civitot, onde os seus clãs disputam
entre si os frutos da razia. Nada há nisto que possa realmente
chocar os soldados do sultão. Nada tão-pouco que possa inquietar o
seu amo. Durante um mês, prossegue a mesma rotina.
Mas eis que um dia, por volta de meados de Setembro, os Franj
modificam bruscamente os seus hábitos. Não tendo sem dúvida
mais nada para depredar nas redondezas, tomaram, diz-se, a
direcção de Niceia, atravessaram algumas aldeias, todas cristãs, e
deitaram a mão às colheitas que acabavam de ser enceleiradas
neste período de ceifa, massacrando sem piedade os camponeses
que tentavam resistir-lhes. Teriam inclusive sido queimadas vivas
crianças de tenra idade.
Kilij Arslan sente-se apanhado desprevenido. Na altura em que
lhe chegam as primeiras notícias, já os assaltantes estão junto às
muralhas da capital, e ainda o sol não atingiu o horizonte quando os
citadinos vêem elevar-se o fumo dos incêndios. O sultão envia
imediatamente uma patrulha de cavaleiros que se opõem aos Franj.
Esmagados pelo número, os turcos são desbaratados. Só alguns
raros sobreviventes voltam ensanguentados para Niceia.
Considerando o seu prestígio ameaçado, Kilij Arslan gostaria de
travar batalha sem demora, mas os emires do seu exército
dissuadem-no disso. Não tarda que anoiteça, e já os Franj refluem à
pressa para o seu acampamento. A vingança terá de esperar.
Não muito tempo. Afoitados, ao que parece, pelo seu êxito, os
ocidentais reincidem duas semanas mais tarde. Desta vez, o filho de
Solimão, avisado a tempo, segue passo a passo a sua progressão.
Uma tropa franca, englobando alguns cavaleiros mas sobretudo
milhares de pilhantes em farrapos, envereda pela estrada de Niceia,
depois, contornando a aglomeração, dirige-se para leste e apodera-
se de surpresa da fortaleza de Xerigórdon.
O jovem sultão decide-se. À cabeça dos seus homens, ele
cavalga a toda a brida para a pequena praça-forte onde, a fim de
celebrarem a sua vitória, os Franj se embriagam, incapazes de
imaginar que o seu destino já está traçado. Na verdade, Xerigórdon
constitui uma armadilha que os soldados de Kilij Arslan conhecem
perfeitamente, mas que estes estrangeiros sem experiência não
souberam descortinar: o seu aprovisionamento em água é no
exterior, muito longe das muralhas, e os turcos em breve vedam o
respectivo acesso. Basta-lhes tomar posição em torno da fortaleza,
e de lá não arredarem. A sede combate em seu lugar.
Para os sitiados começa um suplício atroz: chegam a beber o
sangue das suas montadas e a sua própria urina. Há quem os
enxergue, nestes primeiros dias de Outubro, olhando
desesperadamente o céu, na expectativa de algumas gotas de
chuva. Em vão. Ao cabo de uma semana, o cabecilha da expedição,
um cavaleiro chamado Reinaldo, aceita capitular se lhe pouparem a
vida. Kilij Arslan, que exigiu que os Franj renunciem publicamente à
sua religião, não fica pouco surpreendido quando Reinaldo se diz
pronto não só a converter-se ao islamismo, mas também a batalhar
ao lado dos turcos contra os seus próprios companheiros. Vários
dos seus amigos, que se prestaram às mesmas exigências, são
enviados para o cativeiro nas cidades da Síria ou na Ásia Central.
Os outros são passados a fio de espada.
O jovem sultão está orgulhoso da sua façanha, mas mantém a
cabeça fria. Depois de ter concedido aos seus homens uma folga
para a tradicional partilha do despojo, chama-os à ordem logo no dia
seguinte. Decerto que os Franj perderam cerca de seis mil homens,
mas os que restam são seis vezes mais numerosos, e é esta a
última ocasião de ficar livre deles. Para o conseguir, opta pela
manha: enviar dois espiões, gregos, ao acampamento de Civitot,
para anunciar que os homens de Reinaldo estão em excelente
situação, que eles lograram apoderar-se da própria Niceia, cujas
riquezas nem por sombras estão dispostos a consentir que os seus
correligionários lhas venham disputar. Entretanto, o exército turco
preparará uma gigantesca emboscada.
De facto, os rumores, cuidadosamente propagados, suscitam a
efervescência prevista no acampamento de Civitot. Há amotinações,
injuria-se Reinaldo e os seus homens, já se toma a decisão de partir
sem tardança para participar na pilhagem de Niceia. Mas eis que de
súbito, não se sabe muito bem como, um sobrevivente da expedição
de Xerigórdon se aproxima, desvendando a verdade sobre a sorte
dos seus companheiros. Os espiões de Kilij Arslan pensam ter
falhado na sua missão, visto que os mais sábios entre os Franj
aconselham calma. Porém, passado o primeiro momento de
consternação, reaparece a excitação. A turba agita-se e berra: ela
quer pôr-se imediatamente a caminho, já não para participar na
pilhagem, mas para «vingar os mártires». Os que hesitam são
apodados de cobardes. Finalmente, os mais enfurecidos impõem a
sua opinião e a partida é fixada para o dia seguinte. Os espiões do
sultão, cuja manha foi descoberta mas o objectivo atingido, exultam.
Eles mandam dizer ao seu senhor que se prepare para o combate.
Em 21 de Outubro de 1096, ao alvorecer, os ocidentais
abandonam portanto o seu acampamento. Kilij Arslan não está
longe. Passou a noite nas colinas próximas de Civitot. Os seus
homens estão a postos, bem dissimulados. Ele próprio, donde se
encontra, pode avistar ao longe a coluna dos Franj que levanta uma
nuvem de poeira. Algumas centenas de cavaleiros, a maioria sem
armadura, avançam à cabeça, seguidos de uma multidão de
infantes em desordem. Caminham desde há menos de uma hora
quando o sultão ouve o seu clamor a aproximar-se. O sol que se
ergue por detrás dele bate-lhes em cheio no rosto. Retendo a
respiração, faz sinal aos seus emires para que se mantenham
prontos. Sobrevem o instante fatídico. Um gesto quase
imperceptível, algumas ordens ciciadas aqui e ali, e eis que os
archeiros retesam lentamente os seus arcos. Repentinamente, mil
flechas irrompem num único e longo silvo. A maioria dos cavaleiros
tomba logo nos primeiros minutos. Depois, os infantes são por seu
turno dizimados.
Quando se inicia o corpo a corpo, já os Franj estão destroçados.
Os que iam na retaguarda regressaram numa correria ao
acampamento, onde os não combatentes ainda mal acordavam. Um
velho padre celebra uma missa matinal, algumas mulheres
preparam a comida. A chegada dos fugitivos com os turcos no seu
encalço lança o pavor. Os Franj fogem em todas as direcções.
Alguns, que tentaram alcançar os bosques circunvizinhos, não
tardam a ser capturados. Outros, mais ponderados, entrincheiram-
se numa fortaleza abandonada que apresenta a vantagem de ser
adjacente ao mar. Não querendo correr riscos inúteis, o sultão
renuncia a cercá-los. A frota bizantina, rapidamente prevenida, virá
recolhê-los. Dois a três mil homens escapulir-se-ão assim. Pedro, o
Eremita, que se encontra desde há alguns dias em Constantinopla,
salvou igualmente a vida por tal motivo. Mas os seus partidários têm
menos sorte. As mulheres mais jovens foram raptadas pelos
cavaleiros do sultão, a fim de serem distribuídas pelos emires ou
vendidas nos mercados de escravos. Alguns rapazes sofrem a
mesma sorte. Os outros Franj, certamente uns vinte mil, são
exterminados.
Kilij Arslan rejubila. Ele acaba de aniquilar esse exército franco
que toda a gente dizia tão temível, e as perdas das suas próprias
tropas são insignificantes. Contemplando o imenso despojo
amontoado a seus pés, ele julga estar a viver o seu mais belo
triunfo.

E, contudo, raramente na história uma vitória terá custado tão


caro aos que a alcançaram.

Inebriado pelo êxito, Kilij Arslan prefere ignorar as informações


que se sucedem no Inverno seguinte acerca da chegada de novos
grupos de Franj a Constantinopla. Para ele, e até mesmo para os
mais sábios dos seus emires, já não há nisto nada de inquietante.
Se outros mercenários de Aleixo tornassem a ousar transpor o
Bósforo, seriam desbaratados como os que os precederam. No
espírito do sultão, é tempo de voltar às principais preocupações da
hora, por outras palavras, à luta sem quartel que ele trava desde
sempre contra os príncipes turcos, seus vizinhos. É aí, e em
nenhum outro lado, que se decidirá a sua sorte e a do seu domínio.
Os confrontos com os Rum ou os seus estranhos auxiliares Franj
nunca passarão de um entreacto.

O jovem sultão está em boa posição para o saber. Pois não foi
num desses intermináveis combates de chefes que seu pai Solimão
perdeu a vida em 1086? Kilij Arslan tinha então uns escassos sete
anos, e devia ter assumido a sucessão sob a regência de alguns
emires fiéis, mas fora afastado do poder e conduzido à Pérsia, a
pretexto de que a sua vida estava em perigo. Adulado, envolvido em
deferências, servido por uma profusão de escravos atenciosos, mas
estreitamente vigiado, com a proibição formal de visitar o seu reino.
Os seus anfitriões, isto é, os seus carcereiros, não eram outros
senão os membros do seu próprio clã: os Seljúcidas.
Se há, no século XI, um nome que ninguém ignora, das cercanias
da China ao longínquo país dos Franj, é sem dúvida este. Vindos da
Ásia Central com milhares de cavaleiros nómadas de compridos
cabelos entrançados, os Turcos Seljúcidas assenhorearam-se em
poucos anos de toda a região que se espraia do Afeganistão ao
Mediterrâneo. Desde 1055 que o califa de Bagdad, sucessor do
Profeta e herdeiro do prestigioso império abássida, não passa de
uma dócil marioneta nas suas mãos. De Isfaão a Damasco, de
Niceia a Jerusalém, os emires deles ditam a lei. Pela primeira vez
nos últimos três séculos, todo o Oriente muçulmano está reunido
sob a autoridade de uma dinastia única que proclama a sua vontade
de restituir ao Islão a sua glória pretérita. Os Rum, esmagados pelos
Seljúcidas em 1071, nunca mais se recompuseram. A Ásia Menor, a
mais vasta das suas províncias, foi invadida; a sua própria capital já
não está em segurança; os seus seguidores, incluindo Aleixo, não
cessam de enviar delegações ao papa de Roma, chefe supremo do
Ocidente, suplicando-lhe que exorte à guerra santa contra esta
ressurgência do Islão.
Kilij Arslan não se orgulha pouco da sua pertença a tão
prestigiosa família, mas também não se ilude com a aparente
unidade do Império Turco. Entre primos seljúcidas não se cultiva a
mínima solidariedade: é preciso matar para sobreviver. O seu pai
conquistou a Ásia Menor, a ampla Anatólia, sem a ajuda dos irmãos,
e foi por ter querido estender-se a sul, na direcção da Síria, que um
dos primos o matou. E enquanto Kilij Arslan era retido à força em
Ispaão, o domínio paterno desmembrava-se. Quando, em fins de
1092, o adolescente foi liberto na sequência de uma querela entre
os seus carcereiros, a sua autoridade não se exercia muito além das
muralhas de Niceia. Só tinha treze anos.
Em seguida, foi graças aos conselhos dos emires do exército que
pôde, pela guerra, pelo assassínio ou pela manha, recuperar parte
da herança paterna. Hoje, pode gabar-se de ter passado mais
tempo na sela do seu cavalo do que no seu palácio. Todavia, ao
chegarem os Franj, nada está ainda decidido. Na Ásia Menor, os
seus rivais continuam a ser poderosos, se bem que, muito
afortunadamente para ele, os seus primos seljúcidas da Síria e da
Pérsia estejam absorvidos pelas suas próprias querelas.
A leste, designadamente nas alturas desoladas do planalto
anatólio, reina nestes tempos de incerteza uma estranha
personagem a quem se chama Danishmend, o Sábio, um
aventureiro de origem obscura que, ao contrário dos outros emires
turcos, na sua maioria analfabetos, é instruído nas mais diversas
ciências. Ele irá tornar-se em breve no herói de uma célebre
epopeia intitulada justamente A Gesta do Rei Danishmend, que
descreve a conquista de Malatya, uma cidade arménia situada a
sudeste de Ancara, e cuja queda é considerada pelos autores da
narrativa como a viragem determinante na islamização da futura
Turquia. Nos primeiros meses de 1097, quando a chegada a
Constantinopla de uma nova expedição franca é assinalada a Kilij
Arslan, já a batalha de Malatya se iniciou. Danishmend cerca a
cidade, e o jovem sultão recusa-se a admitir que este rival, que se
aproveitou da morte de seu pai para ocupar todo o Nordeste da
Anatólia, possa alcançar uma tão prestigiosa vitória. Resolvido a
disso o impedir, ele dirige-se, à cabeça dos seus cavaleiros, para as
imediações de Malatya e instala o seu acampamento nas
proximidades do de Danishmend, para o intimidar. A tensão cresce,
as escaramuças multiplicam-se, cada vez mais mortíferas.
Em Abril de 1097, o embate parece inevitável. Kilij Arslan
prepara-se para ele. O essencial do seu exército está reunido sob
os muros de Malatya quando chega diante da sua tenda um
cavaleiro extenuado. Este despeja a sua mensagem ofegando: os
Franj vêm aí; uma vez mais, transpuseram o Bósforo, em maior
número do que no ano anterior. Kilij Arslan permanece calmo. Nada
justifica semelhante inquietude. Já teve contactos com os Franj,
sabe o que tem pela frente. Enfim, é apenas para sossegar os
habitantes de Niceia, e em especial a sua esposa, a jovem sultana,
que deve dar à luz dentro em pouco, que ele pede a alguns
destacamentos de cavalaria que vão reforçar a guarnição da capital.
Ele próprio estará de volta assim que acabar com Danishmend.

Kilij Arslan acha-se de novo envolvido, de corpo e alma, na


batalha de Malatya, quando, nos primeiros dias de Maio, chega um
novo mensageiro, trémulo de fadiga e de medo. As suas palavras
enchem de pavor o acampamento do sultão. Os Franj estão às
portas de Niceia, que começam a assediar. Já não se trata, como no
Verão, de bandos de pilhantes andrajosos, mas de autênticos
exércitos de milhares de cavaleiros pesadamente equipados. E,
desta feita, os soldados do basileus acompanham-nos. Kilij Arslan
tenta acalmar os seus homens, mas ele próprio é atormentado pela
angústia. Deve abandonar Malatya ao seu rival a fim de regressar a
Niceia? Acaso tem a certeza de ainda poder salvar a sua capital?
Não irá perder nas duas frentes? Após ter consultado longamente
os seus mais fiéis emires, delineia-se uma solução, uma forma de
compromisso: ir falar com Danishmend, que é homem de honra, pô-
lo ao corrente da tentativa de conquista empreendida pelos Rum e
seus mercenários, bem como da ameaça que pesa sobre todos os
muçulmanos da Ásia Menor, e propor-lhe que cessem as
hostilidades. Antes mesmo de Danishmend dar a resposta, o sultão
despachou uma parte do seu exército para a capital.
De facto, conclui-se uma trégua ao cabo de alguns dias, e Kilij
Arslan toma sem delonga o caminho do oeste. Porém, no momento
em que atinge as alturas próximas de Niceia, o espectáculo que se
depara a seus olhos gela-lhe o sangue nas veias. A soberba urbe
que seu pai lhe legou está cercada por todos os lados; ali se vêem
incontáveis soldados, atarefados a instalar torres móveis, catapultas
e manganelas que devem servir para o ataque final. Os emires são
categóricos: nada mais há a fazer. Convém recuar para o interior do
país antes que seja demasiado tarde. No entanto, o jovem sultão
não consegue resignar-se a deixar assim a sua capital. Insiste em
tentar uma derradeira penetração a sul, onde os sitiantes parecem
menos solidamente barricados. A batalha inicia-se a 21 de Maio ao
amanhecer. Kilij Arslan lança-se com furor na peleja, e o combate
encarniça-se até ao cair da tarde. As perdas são igualmente
pesadas dos dois lados, mas cada qual conservou as suas
posições. O sultão não ateima. Compreendeu que já nada lhe
permitirá romper o bloqueio. Porfiar em lançar todas as suas forças
numa batalha tão mal encetada poderia prolongar o cerco por
algumas semanas, ou até meses, mas arriscar-se-ia a pôr em jogo a
própria existência do sultanato. Descendente de um povo
essencialmente nómada, Kilij Arslan sabe que a fonte do seu poder
reside nos poucos milhares de guerreiros que lhe obedecem, e não
na posse de uma cidade, por mais apego que se lhe tenha. Aliás,
ele irá em breve escolher como nova capital a cidade de Cónia,
nitidamente mais a leste, que os seus vindouros hão-de conservar
até ao dealbar do século XIV. Nunca mais tornará a ver Niceia…
Antes de se afastar, envia uma mensagem de adeus aos
defensores da cidade para lhes comunicar a sua dolorosa decisão e
recomendar que actuem «em conformidade com os seus
interesses». O significado destas palavras é claro, tanto para a
guarnição turca quanto para a população grega: importa entregar a
cidade a Aleixo Comneno e não aos seus auxiliares francos.
Entabulam-se por conseguinte negociações com o basileus que, à
frente das suas tropas, tomou posição a oeste de Niceia. Os
homens do sultão tentam ganhar tempo, esperando sem dúvida que
o seu senhor possa voltar com reforços. Mas Aleixo tem pressa: os
ocidentais, ameaça ele, aprestam-se a dar o assalto final, e a partir
daí já não responderá por nada. Recordando-se do procedimento
dos Franj no ano anterior nas imediações de Niceia, os
negociadores sentem-se aterrorizados. Eles já vêem a sua cidade
pilhada, os homens massacrados, as mulheres violadas. Sem mais
hesitações, aceitam confiar a sua sorte nas mãos do basileus, que
estipula em pessoa os termos da rendição.
Na noite de 18 para 19 de Junho, soldados do exército bizantino,
na sua maioria turcos, são introduzidos na urbe por meio de barcas
que atravessam em silêncio o lago Ascânio: a guarnição capitula
sem combate. Aos primeiros alvores do dia, os estandartes azul e
ouro do imperador já ondulam sobre as muralhas. Os Franj
renunciam a dar assalto. No seu infortúnio, Kilij Arslan receberá
ainda assim uma consolação: os dignitários do sultanato ficarão a
salvo e a jovem sultana, acompanhada pelo seu recém-nascido,
será mesmo acolhida em Constantinopla com honras reais, para
grande escândalo dos Franj.
A jovem esposa de Kilij Arslan é filha de Tchaka, um aventureiro
de génio, um emir turco bastante célebre nas vésperas da invasão
franca. Aprisionado pelos Rum quando efectuava uma razia na Ásia
Menor, ele impressionara os seus carcereiros pela sua facilidade em
aprender o grego, que ao cabo de alguns meses falava na
perfeição. Brilhante, hábil, bem-falante, tornara-se uma visita regular
do palácio imperial, que até o agraciara com um título de nobreza.
Mas esta espantosa promoção não lhe bastava. Ele visava mais
alto, muito mais alto: queria vir a ser imperador de Bizâncio!
Para tal, o emir Tchaka tinha um plano coerente. Assim, fora
instalar-se no porto de Esmirna, à beira do mar Egeu, onde, com a
ajuda de um armador grego, constituíra uma autêntica frota de
guerra composta por bergantins ligeiros, naus a remos, dromundas,
birremes ou trirremes, ao todo perto de uma centena de
embarcações. Numa primeira etapa, ele ocupara várias ilhas,
nomeadamente Rodes, Quios e Samos, e estendera a sua
autoridade ao conjunto da costa egeia. Uma vez assim forjado um
império marítimo, proclamara-se basileus, organizando o seu
palácio de Esmirna segundo o modelo da corte imperial, e lançara a
sua frota ao assalto de Constantinopla. Aleixo tivera de envidar
enormes esforços para lograr repelir o ataque e destruir uma parte
dos navios turcos.

De modo nenhum desalentado, o pai da futura sultana


recomeçara com determinação a construção dos seus barcos de
guerra. Foi por volta do final do ano de 1092, no momento em que
Kilij Arslan regressava do exílio, e Tchaka pensara para consigo que
o jovem filho de Solimão seria um excelente aliado contra os Rum.
Oferecera-lhe a mão da filha. Mas os desígnios do jovem sultão
eram muito diferentes dos do sogro. A conquista de Constantinopla
afigurava-se-lhe um projecto absurdo; em contrapartida, ninguém
ignorava na sua roda que ele procurava a eliminação dos emires
turcos que tentavam obter um feudo na Ásia Menor, ou seja, em
primeiro lugar, Danishmend e o demasiado ambicioso Tchaka. Logo,
o sultão não hesitara: alguns meses antes da chegada dos Franj,
ele convidara o sogro para um banquete e, depois de o embriagar,
apunhalara-o, ao que parece pelas suas próprias mãos. Tchaka
tinha um filho que assumira então a sucessão, mas não possuía a
inteligência nem a ambição de seu pai. O irmão da sultana
contentara-se em gerir o seu emirado marítimo até esse dia do
Verão de 1097 em que a esquadra dos Rum chegara
inopinadamente ao largo de Esmirna, trazendo a bordo um
inesperado mensageiro: a própria irmã.
Esta tardou a compreender as razões da solicitude do imperador
a seu respeito, mas enquanto a transportam na direcção de
Esmirna, a cidade onde passou a sua infância, tudo se lhe
apresenta claramente. Ela está encarregada de explicar ao irmão
que Aleixo tomou Niceia, que Kilij Arslan foi vencido e que um
poderoso exército de Rum e de Franj irá em breve atacar Esmirna
com a ajuda de uma imensa frota.
Para salvar a vida, o filho de Tchaka é convidado a conduzir a
irmã ao esposo, algures na Anatólia.
Não tendo a proposta sido recusada, o emirado de Esmirna deixa
de existir. A seguir à queda de Niceia, toda a costa do mar Egeu,
todas as ilhas, toda a parte ocidental da Ásia Menor escapam assim
doravante ao senhorio turco. E os Rum, ajudados pelos seus
auxiliares francos, parecem decididos a ir mais longe.
Porém, no seu refúgio montanhoso, Kilij Arslan não desarma.
Passada a surpresa dos primeiros dias, o sultão prepara
activamente a sua resposta. Ele pôs-se a recrutar tropas, a alistar
voluntários e a prolongar a «jihad», nota Ibn al-Qalanissi. O cronista
de Damasco acrescenta que Kilij Arslan pediu a todos os turcos que
viessem em seu socorro, e eles responderam em grande número ao
apelo.
No fundo, o primeiro objectivo do sultão é concluir uma aliança
com Danishmend. Já não basta uma simples trégua; é agora
imperioso que as forças turcas da Ásia Menor estejam unidas, como
se de um só exército se tratasse. Kilij Arslan não duvida da resposta
do seu rival. Muçulmano fervoroso e estratego realista, Danishmend
considera-se ameaçado pela progressão dos Rum e dos seus
aliados francos. Ele prefere defrontá-los nas terras do seu vizinho
em lugar de o fazer nas suas, e, sem mais demora, chega com
milhares de cavaleiros ao acampamento do sultão. Confraterniza-se,
trocam-se impressões, elaboram-se planos. A visão desta turba de
guerreiros e de cavalos cobrindo as colinas devolve a confiança aos
chefes. Eles investirão contra o inimigo assim que o ensejo se lhes
deparar.
Kilij Arslan espreita a sua presa. Os seus informadores infiltrados
entre os Rum fizeram-lhe chegar elementos preciosos. Os Franj
clamam alto e bom som que estão determinados a prosseguir o seu
caminho para além de Niceia e querem chegar à Palestina.
Conhece-se inclusivamente o seu itinerário: descer para sudeste,
em direcção a Cónia, a única cidade importante que ainda está nas
mãos do sultão. Ao longo de toda esta zona montanhosa que
deverão atravessar, os ocidentais darão portanto o flanco aos
ataques. O essencial é escolher o sítio da emboscada. Os emires
que conhecem bem a região não hesitam. Há, perto da cidade de
Dorileu, a quatro dias de marcha de Niceia, um local onde a estrada
se embrenha num vale pouco profundo. Se os guerreiros turcos se
congregarem atrás das colinas, bastar-lhes-á aguardar.
Nos últimos dias de Junho de 1097, quando Kilij Arslan toma
conhecimento de que os ocidentais, acompanhados por uma
pequena tropa de Rum, saíram de Niceia, o dispositivo da
emboscada já está instalado. No dia 1 de Julho, ao alvorecer, os
Franj surgem no horizonte. Cavaleiros e infantes avançam
tranquilamente, não parecendo de modo algum suspeitar do que os
espera. O sultão receara que o seu estratagema fosse descoberto
pelos batedores inimigos. Aparentemente, tal não acontece. Outro
motivo de satisfação para o monarca seljúcida: os Franj parecem
menos numerosos do que fora anunciado. Teria parte deles ficado
em Niceia? Ele ignora-o. Em todo o caso, à primeira vista, dispõe de
superioridade numérica. Se acrescentarmos a isto a vantagem da
surpresa, o dia deverá ser-lhe favorável. Kilij Arslan está nervoso,
mas confiante. O sábio Danishmend, que tem mais vinte anos de
experiência que ele, também está.
O sol acaba precisamente de aparecer por detrás das colinas
quando é dada a ordem de atacar. A táctica dos guerreiros turcos
está bem treinada. É a que lhes assegurou, no último meio século, a
supremacia militar no Oriente. O seu exército é constituído quase
totalmente por cavaleiros ligeiros que manejam admiravelmente o
arco. Eles aproximam-se, fazem cair sobre o inimigo uma chuva de
frechas mortíferas, depois afastam-se a toda a velocidade, para
ceder o lugar a uma nova fileira de assaltantes. Geralmente,
algumas vagas sucessivas fazem passar a sua presa por um transe
difícil. É então que eles travam o corpo a corpo final.
Contudo, no dia desta batalha de Dorileu, o sultão, postado com
o seu estado-maior num promontório, verifica com inquietude que os
velhos métodos turcos já não mostram a eficácia habitual. É
verdade que os Franj não têm a mínima agilidade nem parecem
apressados em ripostar aos repetidos ataques. Mas eles dominam
perfeitamente a arte da defesa. A força principal do seu exército
reside nessas espessas armaduras com que os cavaleiros cobrem
todo o seu corpo, e até por vezes o da sua montada. Se o seu
avanço é lento, pesado, o certo é que os homens estão
magnificamente protegidos contra as frechas. Após várias horas de
combates, neste dia, não há dúvida de que os archeiros turcos
fizeram numerosas vítimas, sobretudo entre os infantes, mas o
grosso do exército franco permanece intacto. Convirá iniciar o corpo
a corpo? Isto afigura-se arriscado: no decurso das muitas
escaramuças que se produziram em torno do campo de batalha, os
ginetes das estepes não se aguentaram de maneira alguma frente a
essas autênticas fortalezas humanas. Convirá prolongar
indefinidamente a fase de flagelação? Agora que o efeito da
surpresa se dissipou, a iniciativa poderá muito bem vir do campo
adverso.
Alguns emires já aconselham um recuo quando surge ao longe
uma nuvem de poeira. Ê um novo exército franco que se abeira, tão
numeroso como o primeiro. Aqueles contra quem se peleja desde a
manhã não são mais do que a vanguarda. Não resta outra escolha
ao sultão: tem de ordenar a retirada. Ainda antes de o poder fazer,
anunciam-lhe que um terceiro exército franco assoma por detrás das
linhas turcas, sobre uma colina que domina a tenda do estado-
maior.
Desta vez, Kilij Arslan cede ao medo. Ele salta para o seu corcel
e galopa na direcção das montanhas, abandonando mesmo esse
famoso tesouro que traz sempre consigo para pagar às suas tropas.
Danishmend segue-o de perto, bem como a maioria dos emires.
Tirando partido do único trunfo de que ainda dispõem, a rapidez,
numerosos cavaleiros conseguem afastar-se por seu turno sem que
os vencedores possam persegui-los. Mas a maior parte dos
soldados fica ali, cercados por todos os lados. Conforme escreverá
Ibn al-Qalanissi: Os Franj desbarataram o exército turco. Eles
mataram, pilharam e fizeram muitos prisioneiros que venderam
como escravos.
Na sua fuga, Kilij Arslan encontra um grupo de cavaleiros que
chegam da Síria para lutar a seu lado. É demasiado tarde, confessa-
lhes ele, estes Franj são demasiado numerosos e demasiado fortes
e não há nada a fazer para os travar. Juntando o gesto à palavra, e
decidido a deixar passar a tormenta, o sultão vencido some-se na
imensidade do planalto anatólio. Esperará quatro anos para se
vingar.
Só a Natureza parece ainda resistir ao invasor. A aridez dos
solos, a exiguidade das veredas de montanha e o calor do Estio nas
estradas sem sombra retardam um tanto a progressão dos Franj.
Precisarão, a seguir a Dorileu, de cem dias para atravessar a
Anatólia, quando afinal devia ter bastado um mês. Entretanto, as
notícias da debandada turca espalharam-se por todo o Oriente.
Logo que se tornou conhecido este episódio vergonhoso para o
Islão, houve um verdadeiro pânico, nota o cronista de Damasco. O
pavor e a ansiedade atingiram enormes proporções.
Circulam incessantemente rumores sobre a chegada iminente
dos temíveis cavaleiros. Em fins de Julho corre o boato de que eles
se acercam da aldeia de Al-Balana, no extremo norte da Síria.
Concentram-se milhares de ginetes para lhes fazer frente. Falso
alarme: os Franj não surgem no horizonte. Os mais optimistas
perguntam a si mesmos se os invasores não terão arrepiado
caminho. Ibn al-Qalanissi faz-se eco de tal sentimento através de
uma dessas parábolas astrológicas que os seus contemporâneos
apreciam: Nesse Verão, um cometa apareceu da banda do oeste, a
sua ascensão durou vinte dias, depois desapareceu sem mais se
mostrar. Mas as ilusões em breve se desvanecem. As informações
são cada vez mais precisas. A partir de meados de Setembro, pode-
se seguir a progressão dos Franj de aldeia em aldeia.
Em 21 de Outubro de 1097, ressoam gritos no alto da cidadela
de Antioquia, a maior urbe da Síria. «Eles vêm lá!» Alguns
basbaques correm para as muralhas, mas só enxergam uma vaga
nuvem de poeira, muito ao longe, no fim da planície, perto do lago
de Antioquia. Os Franj ainda estão a um dia de marcha, talvez mais,
e tudo leva a crer que desejarão deter-se para descansar um pouco
depois da sua longa travessia. A prudência exige no entanto que se
fechem desde já as cinco pesadas portas da urbe.
Nos suks, o clamor da manhã extinguiu-se, mercadores e
clientes imobilizaram-se. Há mulheres que murmuram preces. O
medo apossou-se da cidade.
CAPÍTULO II

Um Maldito Fabricante de Couraças

Quando o informaram da aproximação dos Franj, o senhor de


Antioquia, Yaghi Siyan, receou um movimento de sedição por
parte dos cristãos. Decidiu então expulsá-los.

É o historiador árabe Ibn al-Athir que contará o acontecimento,


mais de um século após o início da invasão franca, fazendo fé em
testemunhos deixados pelos coevos:

No primeiro dia, Yaghi Siyan ordenou aos muçulmanos que


saíssem para limpar os fossos que rodeiam a urbe. No dia
seguinte, para a mesma corveia, só enviou cristãos. Fê-los
trabalhar até ao entardecer e quando eles quiseram entrar de
novo, impediu-os disso, dizendo: «Antioquia é vossa, mas deveis
deixá-la até eu resolver o nosso problema com os Franj.» Eles
perguntaram-lhe: «Quem protegerá os nossos filhos e as nossas
mulheres?» O emir respondeu: «Ocupar-me-ei deles em vosso
lugar.» Protegeu efectivamente as famílias dos expulsos e não
permitiu que tocassem num só cabelo das suas cabeças.

Neste mês de Outubro de 1097, o velho Yaghi Siyan, servidor


desde há quarenta anos dos sultões seljúcidas, vive obcecado pela
ideia de uma traição. Está convencido de que os exércitos francos
que se reuniram diante de Antioquia nunca lá poderão penetrar, a
menos que hajam garantido cumplicidades no interior dos muros.
Realmente, a sua cidade não pode ser tomada de assalto, e ainda
menos reduzida à fome por um bloqueio. Os soldados de que
dispõe este emir turco de barba branquejante não são, verdade se
diga, mais de seis ou sete mil, ao passo que os Franj alinham cerca
de trinta mil combatentes. Mas Antioquia é uma praça-forte
praticamente inexpugnável. O seu recinto tem dois farsakh (doze mil
metros) de comprimento e não conta menos de trezentas e sessenta
torres construídas sobre três níveis diferentes. A muralha,
solidamente edificada em pedra de cantaria e em tijolo sobre um
alicerce de alvenaria, trepa a leste pelo monte Habib-an-Najjar
acima e coroa a sua crista com uma cidadela inconquistável. A
oeste, há o Orontes, a que os Sírios chamam al-Assi, «o rio
rebelde», porque ele dá por vezes a impressão de correr em sentido
contrário, do Mediterrâneo para o interior do país. O seu leito ladeia
os muros de Antioquia, constituindo um obstáculo natural pouco
cómodo de transpor. A sul, as fortificações sobrepujam um vale cujo
declive é tão íngreme que parece um prolongamento da muralha.
Deste modo, é impossível aos sitiantes cercar totalmente a cidade e
os defensores não têm qualquer dificuldade em comunicar com o
exterior e em abastecer-se.
As reservas alimentares da urbe são tanto mais abundantes
quanto o recinto engloba, além dos edifícios e dos jardins, vastos
terrenos cultivados. Antes do «Fath», a conquista muçulmana,
Antioquia era uma metrópole romana de duzentos mil habitantes;
em 1097, ela já só conta quarenta mil, e vários bairros, outrora
povoados, foram convertidos em agros e em pomares. Se bem que
tenha perdido o seu esplendor pretérito, continua a ser uma cidade
que impressiona. Todos os viajantes – venham eles inclusive de
Bagdad ou de Constantinopla – ficam deslumbrados desde o
primeiro olhar ante o espectáculo desta urbe que se estende a
perder de vista, com os seus minaretes, as suas igrejas, os seus
suks em arcadas, as suas luxuosas vivendas incrustadas nas
vertentes arborizadas que sobem em direcção à cidadela.
Yaghi Siyan não sente a mínima inquietude quanto à solidez das
suas fortificações ou à segurança do seu aprovisionamento. Mas
todos os seus meios de defesa se arriscam a tornar-se inúteis se,
num ponto qualquer da interminável muralha, os sitiantes lograrem
encontrar um cúmplice para lhes abrir uma porta ou lhes facilitar o
acesso a uma torre, como já aconteceu no passado. Daí a sua
decisão de expulsar a maioria dos seus administrados cristãos. Em
Antioquia, como noutros lugares, os cristãos do Oriente – gregos,
arménios, maronitas, jacobitas – estão submetidos, desde a
chegada dos Franj, a uma dupla opressão: a dos seus
correligionários ocidentais que os suspeitam de nutrir simpatia pelos
Sarracenos e os tratam como súbditos de categoria inferior, e a dos
seus compatriotas muçulmanos que neles vêem amiúde os aliados
naturais dos invasores. A fronteira entre as filiações religiosas e
nacionais é, de facto, praticamente inexistente. O mesmo vocábulo,
Rum, designa Bizantinos e Sírios de rito grego, que aliás continuam
a dizer-se súbditos do basileus; a palavra «arménio» refere-se
simultaneamente a uma igreja e a um povo, e quando um
muçulmano fala da «nação», al-umma, é à comunidade dos crentes
que alude. No espírito de Yaghi Siyan, a expulsão dos cristãos é
menos um acto de discriminação religiosa do que uma medida
dirigida, em tempo de guerra, contra os vassalos de uma potência
inimiga, Constantinopla, à qual Antioquia pertenceu durante muito
tempo e que nunca renunciou a retomá-la.
De todas as grandes cidades da Ásia árabe, Antioquia foi a
última a cair sob a dominação dos turcos Seljúcidas; em 1084, ainda
dependia de Constantinopla. E na altura em que os cavaleiros
francos vêm cercá-la, treze anos mais tarde, Yaghi Siyan está
naturalmente convencido de que se trata de uma tentativa de
restaurar a autoridade dos Rum com a cumplicidade da população
local, na sua maioria cristã. Perante tal perigo, o emir não deixa que
os escrúpulos o tolham. Expulsa, por conseguinte, os nassara, os
adeptos do Nazareno – é assim que se denominam os cristãos –,
depois encarrega-se do racionamento do trigo, do azeite e do mel e
inspeciona quotidianamente as fortificações, castigando
severamente qualquer descuido. Será isto suficiente? Nada é
menos certo. Mas as medidas tomadas deverão permitir aguentar
enquanto se espera a chegada de reforços. Quando virão estes?
Quem vive em Antioquia faz a si mesmo tal pergunta com
insistência, e Yaghi Siyan não está em melhores condições para
responder do que o homem da rua. Logo no Verão, quando os Franj
ainda estavam longe, ele enviou o seu filho junto dos dirigentes
muçulmanos da Síria para os prevenir do perigo que pairava sobre a
sua urbe. Em Damasco, informa-nos Ibn al-Qalanissi, o filho de
Yaghi Siyan falou de guerra santa. Mas na Síria do século XI, a jihad
não passa de um estribilho brandido pelos príncipes em apuros.
Para um emir aceitar socorrer outro é necessário que aí veja algum
interesse pessoal. Só então ele se lembra de invocar por seu turno
os grandes princípios.
Ora, neste Outono de 1097, nenhum dirigente, à excepção do
próprio Yaghi Siyan, se sente directamente ameaçado pela invasão
franca. Se os mercenários do imperador querem recuperar
Antioquia, não há nisto nada de anormal, pois tal cidade sempre foi
bizantina. De qualquer modo, pensa toda a gente, os Rum não irão
mais longe. E o facto de Yaghi Siyan estar em dificuldade não é
forçosamente um mal para os seus vizinhos. Nos últimos dez anos,
ele ludibriou-os, semeando a discórdia, atiçando as invejas,
invertendo as alianças. Agora que lhes pede que esqueçam as suas
querelas para virem socorrê-lo, acaso deve admirar-se de os não
ver acudir?
Como homem realista que é, Yaghi Siyan sabe que o levarão a
consumir-se, que o obrigarão a mendigar os auxílios, que o farão
pagar caro as suas habilidades, as suas manigâncias, as suas
traições. Imagina no entanto que não irão ao ponto de o entregar de
pés e mãos atadas aos mercenários do basileus. Ao fim e ao cabo,
ele só procurou sobreviver num vespeiro impiedoso. No mundo em
que se move, o dos príncipes seljúcidas, as lutas sangrentas nunca
param, e o senhor de Antioquia, como todos os outros emires da
região, é forçado a tomar posição. Se ele se acha do lado do
perdedor, é a morte que o espera, ou pelo menos a prisão e o
desvalimento. Se tem a sorte de escolher o campo do triunfador,
saboreia durante algum tempo a sua vitória, recebe como prémio
belas cativas, antes de se ver novamente envolvido num conflito
onde arrisca a vida. Para durar, tem de se apostar no melhor partido
e não se obstinar em ficar-lhe definitivamente ligado. Todo o erro é
fatal, e raros são os emires que morrem no leito.
Na Síria, à chegada dos Franj a vida política está de facto
inquinada pela «guerra dos dois irmãos», duas estranhas
personagens que parecem saídas direitinhas da imaginação de um
contador popular: Redwan, rei de Alepo, e o seu irmão mais novo
Dukak, rei de Damasco, que votam um ao outro um ódio tenaz que
nada, nem sequer uma ameaça comum, pode levá-los a pensar em
reconciliarem-se. Em 1097, Redwan tem pouco mais de vinte anos,
mas já está rodeado de uma auréola de mistério, e circulam a seu
respeito as lendas mais terrificantes. Baixo, magro, de olhar severo
e por vezes temeroso, ele teria caído, diz-nos Ibn al-Qalanissi, sob o
ascendente de um «médico-astrólogo» pertencente à Ordem dos
Assassinos, uma seita que acaba de se criar e que irá desempenhar
um papel de vulto ao longo de toda a ocupação franca. Acusam o rei
de Alepo, não sem razão, de utilizar estes fanáticos para eliminar os
seus adversários. Assassínios, impiedade, bruxaria, Redwan
provoca a desconfiança de todos, mas é no seio da sua própria
família que ele suscita o ódio mais forte. Por ocasião da sua subida
ao trono, em 1095, mandou estrangular dois dos seus irmãos mais
novos, receando que eles viessem um dia a disputar-lhe o poder;
um terceiro apenas se salvou escapando-se da cidadela de Alepo
na própria noite em que as poderosas mãos dos escravos de
Redwan deviam cerrar-se sobre a sua garganta. Este sobrevivente
era Dukak, que vota ao seu primogénito um ódio cego. Depois de
fugir, asilou-se em Damasco, cuja guarnição o proclamou rei. É um
jovem veleidoso, influenciável, colérico, de saúde frágil, e vive
obcecado pela ideia de que o irmão quer assassiná-lo. Apanhado
entre estes dois príncipes meio loucos, Yaghi Siyan não tem tarefa
fácil. O seu vizinho imediato é Redwan, cuja capital, Alepo, uma das
mais velhas urbes do mundo, se situa a menos de três dias de
Antioquia. Dois anos antes da chegada dos Franj, Yaghi Siyan deu-
lhe a filha em casamento. Mas depressa compreendeu que este
genro cobiçava o seu domínio e, por seu turno, começou a temer
pela sua vida. Tal como a Dukak, a seita dos Assassinos obceca-o.
Na medida em que o perigo comum aproximou naturalmente os dois
homens, é antes de mais para o rei de Damasco que Yaghi Siyan se
volta quando os Franj avançam rumo a Antioquia.
Mas Dukak hesita. Não que os Franj lhe metam medo, garante
ele, mas não deseja conduzir o seu exército até às vizinhanças de
Alepo, dando assim ao irmão o ensejo de o atacar pela retaguarda.
Yaghi Siyan, que sabe quanto lhe custa arrancar uma decisão ao
seu aliado, achou por bem enviar-lhe seu filho, Chams ad-Dawla –
«o Sol do Estado» –, um moço brilhante, fogoso, apaixonado, que
nunca desiste. Sem descanso, Chams frequenta o palácio real,
instando Dukak e os seus conselheiros, fazendo-se sucessivamente
lisonjeador ou ameaçador. Todavia, só em Dezembro de 1097, dois
meses após o início da batalha de Antioquia, é que o senhor de
Damasco aceita, de má vontade, tomar com o seu exército a
direcção do norte. Chams acompanha-o. Ele sabe que numa
semana de viagem Dukak tem tempo de sobejo para mudar de
opinião. Com efeito, à medida que avança o jovem rei vai-se
tornando nervoso. Em 31 de Dezembro, quando o exército de
Damasco já cobriu dois terços do trajecto, depara-se-lhe uma tropa
franca vinda forragear no sector. A despeito da sua nítida vantagem
numérica e da relativa facilidade com que logrou cercar o inimigo,
Dukak renuncia a dar a ordem de ataque. Deixa assim aos Franj,
por momentos desnorteados, o tempo de recobrarem o sangue-frio
e de se desenlearem. Quando o dia chega ao fim, não há vencedor
nem vencido, mas os Damasquinos perderam mais homens do que
os seus adversários: não é preciso mais para desencorajar Dukak,
que, a despeito das súplicas desesperadas de Chams, ordena
imediatamente aos seus que arrepiem caminho.
Em Antioquia, a defecção de Dukak provoca a maior amargura,
mas os defensores não renunciam. Nestes primeiros dias de 1098,
curiosamente, é no acampamento dos sitiantes que grassa a aflição.
Muitos espiões de Yaghi Siyan conseguiram infiltrar-se no seio do
inimigo. Alguns destes informadores agem por ódio aos Rum, mas a
maioria são cristãos da cidade que esperam assim granjear os
favores do emir. Eles deixaram as famílias em Antioquia e querem
garantir a sua segurança. Os elementos que fornecem são
reconfortantes para a população: ao passo que as provisões dos
sitiados permanecem abundantes, os Franj estão a braços com a
fome. Já se contam entre eles centenas de mortos e a maioria das
montadas foi abatida. A expedição que esbarrou com o exército de
Damasco tinha precisamente por objectivo encontrar alguns
carneiros, algumas cabras, e pilhar as granjas. À fome acrescentam-
se outras calamidades que todos os dias minam um pouco mais o
moral dos invasores. A chuva cai sem parança, justificando o epíteto
trivial de «mijona» que os Sírios dão a Antioquia. O acampamento
dos sitiantes atasca-se na lama. E ainda por cima há este solo que
não cessa de tremer. As pessoas da região já estão habituadas,
mas os Franj assustam-se; ouve-se subir até à cidade o grande
rumor das suas preces, sempre que eles se reúnem para invocar o
céu julgando ser vítimas de uma punição divina. Diz-se que, para
acalmar a ira do Altíssimo, resolveram enxotar as prostitutas do seu
acampamento, fechar as tabernas e proibir os jogos de dados. As
deserções são muitas, até mesmo entre os chefes.
Tais notícias intensificam, já se vê, a combatividade dos
defensores, que multiplicam as surtidas audaciosas. Conforme dirá
Ibn al-Athir, Yaghi Siyan manifestou uma coragem, uma sabedoria e
uma firmeza admiráveis. E o historiador árabe acrescenta, levado
pelo entusiasmo: A maioria dos Franj pereceu. Se houvessem
permanecido tão numerosos como à chegada, teriam ocupado todos
os países do Islão! Exagero grotesco, mas que presta merecida
homenagem ao heroísmo da guarnição de Antioquia, que irá
suportar sozinha, durante longos meses, o peso da invasão.
Na verdade, os auxílios continuam a demorar. Em Janeiro de
1098, agastado com a indolência de Dukak, Yaghi Siyan é
constrangido a voltar-se para Redwan. Uma vez mais, é Chams ad-
Dawgla que recebe a missão penosa de apresentar as suas mais
humildes desculpas ao rei de Alepo, de escutar sem reagir todos os
seus sarcasmos e de lhe implorar em nome do Islão e dos seus
laços de parentesco que se digne enviar as suas tropas para salvar
Antioquia. Chams sabe muito bem que o seu régio cunhado é
totalmente insensível a este género de argumentos e que preferiria
cortar a própria mão a estendê-la a Yaghi Siyan. Mas os
acontecimentos são muito prementes. Os Franj, cuja situação
alimentar é cada vez mais crítica, acabam de efectuar uma razia nas
terras do rei seljúcida, pilhando e saqueando as próprias cercanias
de Alepo, e Redwan, pela primeira vez, sente a ameaça que pesa
sobre o seu domínio pessoal. Mais para se defender do que para
ajudar Antioquia, decide então enviar o seu exército contra os Franj.
Chams regozija-se. Faz chegar ao pai uma mensagem indicando-
lhe a data da ofensiva alepina e pedindo-lhe que leve a cabo uma
surtida em massa a fim de apanhar os sitiantes numa tenaz.
Em Antioquia, a intervenção de Redwan é tão inesperada que
aparece como uma dádiva do céu. Será a viragem decisiva desta
batalha que dura desde há mais de cem dias?
Em 9 de Fevereiro de 1098, ao começo da tarde, os vigias
postados na cidadela assinalam a aproximação do exército de
Alepo. Este conta alguns milhares de cavaleiros, ao passo que os
Franj só podem alinhar umas sete ou oito centenas, tão grandes
foram os estragos que a fome causou entre as suas montadas. Os
sitiados, que estão de prevenção desde há vários dias, gostariam
que o combate se travasse imediatamente. Mas, tendo as tropas de
Redwan estacado e principiado a armar as suas tendas, a ordem de
batalha é adiada para o dia seguinte. Os preparativos prosseguem
ao longo da noite. Cada soldado sabe agora com exactidão onde e
quando deve agir. Yaghi Siyan tem confiança nos seus homens,
que, ele não duvida, executarão a sua parte do contrato.
O que toda a gente ignora é que a batalha está perdida ainda
antes de se iniciar. Apavorado pelo que contam acerca das
qualidades guerreiras dos Franj, Redwan já não ousa aproveitar-se
da sua superioridade numérica. Em vez de desdobrar as suas
tropas, tenta apenas protegê-las. E, para evitar qualquer risco de
cerco, acantona-as toda a noite numa estreita faixa de terra inserida
entre o Orontes e o lago de Antioquia. Quando os Franj atacam ao
amanhecer, os Alepinos quedam-se como que paralisados. Em
virtude da exiguidade do terreno, estão impossibilitados do mínimo
movimento. As montadas empinam-se, e os que caem são
espezinhados pelos seus irmãos antes de poderem levantar-se. É
claro que já ninguém pensa em aplicar as tácticas tradicionais e em
lançar contra o inimigo vagas sucessivas de ginetes-archeiros. Os
homens de Redwan são coagidos a um corpo a corpo em que os
cavaleiros revestidos de armadura adquirem sem custo uma
vantagem esmagadora. É uma autêntica carnificina. O rei e o seu
exército, perseguidos pelos Franj, já só pensam em fugir numa
desordem indescritível.
Ante os muros de Antioquia, a batalha desenrola-se
diferentemente. Logo aos primeiros alvores do dia, os defensores
fizeram uma surtida em massa que obrigou os sitiantes a recuar. Os
combates mostram-se encarniçados, e os soldados de Yaghi Siyan
estão em excelente posição. Um pouco antes do meio-dia,
começaram a acometer o acampamento dos Franj, na altura em que
chegam as notícias do desbaratamento dos alepinos. Mortificado, o
emir ordena então aos seus homens que retornem à urbe. Ainda
mal se concluiu a retirada e já os cavaleiros que destroçaram
Redwan regressam, carregados de troféus macabros. Os habitantes
de Antioquia não tardam a ouvir estrondosas gargalhadas, alguns
silvos surdos, antes de verem aterrar, projectadas pelas catapultas,
as cabeças horrendamente mutiladas dos alepinos. Um silêncio de
morte abateu-se sobre a cidade.
Por mais que Yaghi Siyan distribua ao seu redor algumas frases
de encorajamento, ele sente pela primeira vez que um anel de ferro
se fecha em torno da cidade. Após a debandada dos dois irmãos
inimigos, já nada pode esperar dos príncipes da Síria. Resta-lhe um
único recurso: o governador de Mossul, o poderoso emir Karbuka,
que tem o inconveniente de estar a mais de duas semanas de
marcha de Antioquia.
Mossul, pátria do historiador Ibn al-Athir, é a capital da «Jézira»,
a Mesopotâmia, essa planície fértil banhada pelos dois grandes rios
que são o Tigre e o Eufrates. É um centro político, cultural e
económico de primeira importância. Os Árabes gabam os seus
frutos suculentos, as suas maçãs, as suas peras, as suas uvas e as
suas romãs. O mundo inteiro associa o nome de Mossul ao fino
tecido que ela exporta, a «musselina». À chegada dos Franj, já se
explora nas terras do emir Karbuka uma outra riqueza que o viajante
Ibn Jobair descreverá com maravilhamento algumas dezenas de
anos mais tarde: as fontes de nafta. O precioso líquido escuro que
fará um dia a fortuna desta parte do mundo já se oferece aos olhos
dos caminhantes:

Atravessamos uma localidade denominada Al-Qayyara «a


Betuminosa», próximo do Tigre. À direita da estrada que leva a
Mossul, há uma depressão de terra, negra como se estivesse
sob uma nuvem. Deus faz aí jorrar fontes, grandes e pequenas,
que dão betume. Por vezes uma delas projecta-o em pedaços,
como que em ebulição. Constroem-se bacias nas quais ele é
recolhido. Em volta destas fontes, há um charco negro à
superfície do qual nada uma leve espuma negra que é atirada
para as bordas e que aí se coagula em betume. Este produto
tem a aparência de uma lama muito viscosa, lisa, brilhante, que
liberta um cheiro activo. Pudemos assim observar com os
nossos próprios olhos uma maravilha de que ouvíramos falar e
cuja descrição nos parecera bastante extraordinária. Não longe
dali, nas margens do Tigre, há uma outra grande fonte cujo fumo
avistamos ao longe. Dizem-nos que se lhe deita fogo quando se
quer tirar de lá o betume. A chama consome os seus elementos
líquidos. O betume é então cortado em pedaços e transportado.
Conhecem-no em todos estes países até à Síria, a Acre e a
todas as regiões costeiras. Alá cria tudo o que quer. Louvado
seja Ele!

Os habitantes de Mossul atribuem ao líquido escuro virtudes


curativas e vão lá mergulhar-se quando estão doentes. O betume
produzido a partir do petróleo é utilizado igualmente na construção,
para «cimentar» os tijolos. Graças à sua impermeabilidade, serve
para rebocar as paredes dos hammams (*), onde toma o aspecto de
um mármore negro polido. Porém, como se verá, é no domínio
militar que o petróleo é mais correntemente empregue.
Independentemente destes recursos prometedores, Mossul
desempenha no início da invasão franca um papel estratégico
essencial, e tendo os seus governadores adquirido o direito de
fiscalizar os assuntos da Síria, o ambicioso Karbuka tenciona
exercê-lo. Para ele, este pedido de auxílio de Yaghi Siyan é o
almejado ensejo de estender a sua influência. Sem hesitar, promete
recrutar um grande exército. Doravante, Antioquia já só vive na
esperança de ver chegar Karbuka.
Este homem providencial é um antigo escravo, o que, para os
emires turcos, nada tem de degradante. Com efeito, os príncipes
seljúcidas acostumaram-se a nomear os seus escravos mais fiéis e
mais dotados para cargos de responsabilidade. Os chefes do
exército, os governadores das cidades, são frequentemente
escravos, «mamelucos», e a sua autoridade é de tal ordem que nem
sequer precisam de ser oficialmente libertos. Antes de se finalizar a
ocupação franca, todo o Oriente muçulmano será dirigido por
sultões mamelucos. Já em 1098 os homens mais influentes de
Damasco, do Cairo e de várias outras metrópoles são escravos ou
filhos de escravos.
Karbuka é um dos mais poderosos. Este oficial autoritário de
barba grisalha usa o título turco de atabaque, literalmente «pai do
príncipe». No império seljúcida, os membros da família reinante
acusam uma mortalidade abundante – combates, homicídios,
execuções – e deixam muitas vezes herdeiros menores. A fim de
preservar os interesses destes últimos, designa-se-lhes um tutor
que, para cumprir o seu papel de pai adoptivo, desposa geralmente
a mãe do seu pupilo. Estes atabaques tornam-se, logicamente, os
verdadeiros detentores do poder, o qual transmitem amiúde aos
próprios filhos. O príncipe legítimo não passa então de uma
marioneta nas suas mãos, por vezes mesmo de um refém. Mas
respeitam-se escrupulosamente as aparências. Assim, os exércitos
são «comandados» oficialmente por crianças de três ou quatro anos
que «delegaram» o poder no seu atabaque.
É justamente a este insólito espectáculo que se assiste nos
derradeiros dias de Abril de 1098, quando perto de trinta mil homens
se reúnem à saída de Mossul. O firmão oficial anuncia aí que os
valentes combatentes vão realizar a jihad contra os infiéis sob as
ordens de um obscuro rebento seljúcida que, lá no fundo dos seus
cueiros, confiou o comando do exército ao atabaque Karbuka.
Segundo o historiador Ibn al-Athir, que passará a vida ao serviço
dos atabaques de Mossul, os Franj ficaram apavorados ao ouvir que
o exército de Karbuka se dirigia para Antioquia, pois estavam muito
enfraquecidos e as suas provisões eram escassas. Os defensores,
em compensação, recobram esperança. Uma vez mais, eles
aprestam-se a fazer uma surtida logo que as tropas muçulmanas se
aproximarem. Com a mesma tenacidade, Yaghi Siyan, eficazmente
secundado pelo seu filho Chams ad-Dawla, verifica as reservas de
trigo, inspecciona as fortificações e anima as suas tropas
prometendo-lhes o já não distante fim do cerco «com a permissão
de Deus».
Mas a segurança que ele ostenta em público não é mais do que
fachada. Nas últimas semanas, a situação deteriorou-se
sensivelmente. O bloqueio da cidade tornou-se muito mais rigoroso,
o abastecimento mais difícil e, circunstância ainda mais
preocupante, as informações sobre o acampamento inimigo vão
sendo raras. Os Franj, que aparentemente se aperceberam de que
tudo o que diziam ou faziam era relatado a Yaghi Siyan, resolveram
fazer sangue. Os agentes do emir viram-nos matar um homem,
assá-lo num espeto e comer a sua carne gritando muito alto que
todo o espião que fosse apanhado sofreria a mesma sorte.
Aterrados, os informadores fugiram e Yaghi Siyan já não sabe
grande coisa acerca dos sitiantes. Como militar reflectido, considera
a situação extremamente inquietante.
O que o tranquiliza é saber que Karbuka vem a caminho. Por
volta de meados de Maio, ele deverá aparecer com as suas
dezenas de milhares de combatentes. Em Antioquia, toda a gente
anseia por esse instante. Todos os dias circulam rumores,
propagados por citadinos que tomam os seus desejos pela
realidade. Cochicha-se, corre-se para as muralhas, as mulheres
idosas interrogam maternalmente alguns soldados imberbes. A
resposta é sempre a mesma: não, as tropas de auxílio não estão à
vista, mas não devem tardar.

Ao sair de Mossul, o grande exército muçulmano oferece um


espectáculo deslumbrante com as inúmeras cintilações das suas
lanças ao sol e os seus pendões negros, emblema dos Abássidas e
dos Seljúcidas, que ondulam no meio de um mar de cavaleiros
trajados de branco. O passo não abranda, apesar do calor. A este
ritmo, ele estará em Antioquia em menos de duas semanas. Mas
Karbuka vai pensativo. Pouco antes da partida, recebeu notícias
alarmantes. Soldados dos Franj conseguiram apoderar-se de
Edessa, a ar-Ruha dos Árabes, uma grande cidade arménia situada
a norte da estrada que vai de Mossul a Antioquia. E o atabaque não
pode coibir-se de antever que, na altura em que se abeirar da urbe
cercada, os Franj de Edessa estarão atrás de si. Não se arriscará
porventura a ser apanhado entre os dois braços de uma tenaz? Nos
primeiros dias de Maio, ele convoca os principais emires para lhes
anunciar que decidiu modificar a sua rota. Encaminhar-se-á primeiro
para o Norte, resolverá em poucos dias o problema de Edessa, após
o que poderá enfrentar sem risco os sitiantes de Antioquia. Alguns
protestam, lembrando-lhe a angustiada mensagem de Yaghi Siyan.
Mas Karbuka manda-os calar. Uma vez tomada a sua decisão, ele é
teimoso como um bode. Enquanto os emires obedecem
praguejando, o exército envereda pelas sendas montanhosas que
levam a Edessa.
De facto, a situação da cidade arménia é grave. Os raros
muçulmanos que conseguiram abandoná-la transmitiram as
notícias. Um chefe franco chamado Balduíno chegou em Fevereiro à
cabeça de várias centenas de cavaleiros e de mais de dois mil
infantes. Foi para ele que o senhor da urbe, Thoros, um velho
príncipe arménio, apelou a fim de reforçar a guarnição da sua
cidade frente aos repetidos ataques dos guerreiros turcos. Mas
Balduíno recusou ser um simples mercenário, exigindo que o
designassem legítimo herdeiro de Thoros. E este, já velho e sem
filhos, aceitou. Efectuou-se então uma cerimónia oficial de adopção
segundo o costume arménio. Estando Thoros revestido de uma
túnica branca muito larga, Balduíno, nu até à cintura, veio enfiar-se
sob a veste de seu «pai» para colar o seu corpo ao dele. Em
seguida foi a vez da «mãe», ou seja, a mulher de Thoros, contra a
qual, entre a túnica e a carne nua, Balduíno veio de novo enfiar-se,
sob o olhar divertido da assistência que ciciava que este rito,
concebido para a adopção das crianças, parecia um tanto descabido
quando o «filho» era um avantajado cavaleiro peludo!
Ao imaginarem a cena que acabam de lhes descrever, os
soldados do exército muçulmano riem a bandeiras despregadas.
Mas a continuação do relato fê-los estremecer: alguns dias após a
cerimónia, «pai» e «mãe» foram linchados pela turba por instigação
do «filho» que assistiu, impassível, à sua matança, antes de se
proclamar «conde» de Edessa e de confiar aos seus companheiros
francos todos os cargos importantes do exército e da administração.
Vendo confirmadas as suas apreensões, Karbuka organiza o
cerco da cidade. Mas os seus emires tentam novamente dissuadi-lo
disso. Os três mil soldados francos de Edessa jamais ousarão
atacar o exército muçulmano, que engloba dezenas de milhares de
homens; em contrapartida, eles são amplamente suficientes para
defender a própria cidade e o cerco corre o risco de se prolongar
meses a fio. Entretanto, Yaghi Siyan, entregue à sua sorte, poderá
ceder à pressão dos invasores. O atabaque não lhes dá ouvidos. E
só depois de ter perdido três semanas ante os muros de Edessa é
que ele reconhece o seu erro e retoma, em marcha forçada, o
caminho de Antioquia.
Na cidade cercada, a esperança dos primeiros dias de Maio deu
lugar à mais total aflição. No palácio como na rua, não se
compreende por que motivo as tropas de Mossul tardam tanto.
Yaghi Siyan está desesperado.
A tensão atingira o paroxismo quando no dia 2 de Junho, pouco
antes do pôr do Sol, as sentinelas assinalam que os Franj reuniram
todas as suas forças e se dirigem para nordeste. Emires e soldados
só acham uma explicação: Karbuka anda nas vizinhanças e os
sitiantes vão ao seu encontro. Em escassos minutos, a novidade
passa de boca em boca pelas casas e muralhas. A urbe respira de
novo. Amanhã já o atabaque terá libertado a cidade. Amanhã já o
pesadelo terá terminado. O anoitecer é fresco e húmido. Gastam-se
longas horas a discutir na soleira das casas, com todas as luzes
apagadas. Enfim, Antioquia adormece, esgotada mas confiante.
Quatro horas da madrugada: a sul da cidade, o ruído surdo de
uma corda que roça contra a pedra. Um homem debruça-se do alto
de uma enorme torre pentagonal e faz sinais com a mão. Não
pregou olho toda a noite e a sua barba está desgrenhada. Chama-
se Firuz, um fabricante de couraças encarregado da defesa das
torres, dirá Ibn al-Athir. Muçulmano de origem arménia, Firuz
pertenceu durante muito tempo ao séquito de Yaghi Siyan, mas este
acusou-o recentemente de se dedicar ao mercado negro, infligindo-
lhe uma pesada multa. Procurando vingar-se, Firuz entrou em
contacto com os sitiantes. Disse-lhes que controla o acesso a uma
janela que dá para o vale, a sul da cidade, e mostra-se pronto a
fazê-los entrar. Mais: a fim de lhes provar que não se trata de uma
armadilha, enviou-lhes o próprio filho como refém. Por sua banda,
os sitiantes prometeram-lhe ouro e terras. O plano ficou traçado:
agir-se-á no alvorecer de 3 de Junho. Na véspera, para enganar a
vigilância da guarnição, os sitiantes fingirão que se afastam.
Quando se consumou o acordo entre os Franj e este maldito
fabricante de couraças, contará Ibn al-Athir, eles treparam para a
tal pequena janela, abriram-na e ajudaram a subir muitos
homens servindo-se de cordas. Quando já eram mais de
quinhentos, começaram a tocar a alvorada, ao passo que os
defensores ainda estavam extenuados pela sua longa vigília.
Yaghi Siyan levantou-se e perguntou o que se passava.
Responderam-lhe que o som das trombetas vinha da cidadela
que decerto fora tomada.

Os ruídos vêm da torre das Duas Irmãs. Mas Yaghi Siyan não se
dá ao trabalho de verificar. Ele julga que está tudo perdido. Cedendo
ao pavor, ordena que se abra uma das portas da cidade e,
acompanhado por alguns guardas, põe-se em fuga. Esgazeado, irá
cavalgar assim durante horas seguidas, incapaz de recuperar a
calma. Ao cabo de duzentos dias de resistência, o senhor de
Antioquia soçobrou. Sem deixar de lhe censurar a sua fraqueza, Ibn
al-Athir evocará o seu fim com emoção.

Desatou a chorar por ter abandonado a sua família, os seus


filhos e os muçulmanos, e, de dor, caiu do cavalo sem sentidos.
Os seus companheiros tentaram repô-lo na sela, mas ele já não
se aguentava de pé. Estava moribundo. Largaram-no então ali e
afastaram-se. Um lenhador arménio que ia a passar reconheceu-
o. Cortou-lhe a cabeça e levou-a aos Franj em Antioquia.

A própria cidade está a ferro e fogo. Homens, mulheres e


crianças procuram fugir através das ruelas lamacentas, mas os
cavaleiros alcançam-nos sem custo e degolam-nos ali mesmo. A
pouco e pouco, os gritos de horror dos últimos sobreviventes
afrouxam, em breve substituídos pelas vozes desafinadas de alguns
pilhadores francos já embriagados. O fumo eleva-se das numerosas
casas incendiadas. Ao meio-dia, um véu de luto envolve a cidade.
No meio desta loucura sanguinária de 3 de Junho de 1098, só
um homem soube manter a cabeça fria. É o infatigável Chams ad-
Dawla. Logo após a invasão da urbe, o filho de Yaghi Siyan
barricou-se com um grupo de combatentes na cidadela. Os Franj
tentam repetidas vezes desalojá-los de lá, mas são invariavelmente
rechaçados, não sem terem sofrido pesadas baixas. O maior dos
chefes francos, Boemundo, um gigante de cabelos louros
compridos, é ele próprio ferido no decurso de uma destas
investidas. Tirando a lição do seu infortúnio, envia uma mensagem a
Chams para lhe propor que deixe a cidadela em troca de um salvo-
conduto. Mas o jovem emir recusa com altivez. Antioquia é o feudo
que ele sempre pensou herdar um dia: bater-se-á até ao derradeiro
suspiro. Não lhe faltam provisões nem frechas aceradas. Erguendo-
se majestosamente no topo do monte Habib-an-Najjar, a cidadela
pode desafiar os Franj durante meses. Estes perderiam milhares de
homens se se obstinassem a escalar as muralhas.
A determinação dos últimos resistentes revela-se compensadora.
Os cavaleiros renunciam a atacar a cidadela, contentando-se em
rodeá-la de um cordão de segurança. E é pelos brados de júbilo de
Chams e dos seus companheiros que eles são inteirados, três dias
após a queda de Antioquia, de que o exército de Karbuka surge no
horizonte. Para Chams e o seu punhado de irredutíveis, o
aparecimento dos ginetes do Islão tem algo de irreal. Eles esfregam
os olhos, choram, rezam, abraçam-se. Os gritos de Allahu akbar!
(«Deus é grande!») chegam à cidadela em ininterrupto ribombo. Os
Franj alapam-se por detrás dos muros de Antioquia. De sitiantes,
passaram a sitiados.
Chams sente-se feliz, mas lá no fundo tem uma ponta de
amargura. Assim que os primeiros emires da expedição de socorro
se lhe juntam no seu reduto, ele aperta-os com milhentas perguntas.
Porque vieram tão tarde? Porque deixaram tempo aos Franj de
ocupar Antioquia e de massacrar os seus habitantes? Para grande
espanto dele, todos os interlocutores, longe de justificarem a atitude
do seu exército, acusam Karbuka de todos os males; Karbuka o
arrogante, o pretensioso, o incapaz, o poltrão.
Não se trata apenas de antipatias pessoais, mas de uma
autêntica conspiração cujo instigador não é outro senão o rei Dukak,
de Damasco, que se incorporou nas tropas de Mossul assim que
elas entraram na Síria. O exército muçulmano não é nem por
sombras uma força homogénea, mas uma coligação de príncipes
com interesses amiúde contraditórios. As ambições territoriais do
atabaque não constituem segredo para ninguém, e Dukak não teve
a mínima dificuldade em convencer os seus pares de que o
verdadeiro inimigo deles é Karbuka em pessoa. Se este sair
vitorioso da batalha contra os infiéis, erigir-se-á em salvador e
nenhuma cidade da Síria poderá então escapar à sua autoridade.
Se, ao invés, Karbuka for derrotado, o perigo que paira sobre as
cidades sírias será esconjurado. Perante tal ameaça, o risco franco
é um mal menor. O facto de os Rum quererem, com a ajuda dos
seus mercenários, retomar a sua cidade de Antioquia, nada tem de
dramático, pois é impensável que os Franj criem os seus próprios
Estados na Síria. Conforme dirá Ibn al-Athir, «o atabaque indispôs
de tal modo os muçulmanos com a sua pretensão que eles
resolveram traí-lo no lance mais decisivo da batalha».
Este soberbo exército não é portanto mais do que um colosso
com pés de barro, podendo desmoronar-se ao primeiro piparote!
Pronto a esquecer que se decidiu o abandono de Antioquia, Chams
tenta ainda triunfar de todas estas mesquinhices. Afigura-se-lhe que
não é a altura mais indicada para os ajustes de contas. As suas
esperanças serão de curta duração. Logo no dia seguinte à sua
chegada, Karbuka convoca-o para o notificar de que lhe foi retirado
o comando da cidadela. Chams indigna-se. Pois não é verdade que
lutou como um valente? Não fez frente a todos os cavaleiros
francos? Não é porventura o herdeiro do senhor de Antioquia? O
atabaque recusa-se a qualquer discussão. É ele o chefe, e exige
que lhe obedeçam.
O filho de Yaghi Siyan está agora convencido de que o exército
muçulmano, apesar da sua imponente envergadura, é incapaz de
vencer. A sua única consolação é saber que a situação no campo
inimigo não é nada melhor. Segundo Ibn al-Athir, «depois de terem
conquistado Antioquia, os Franj ficaram doze dias sem comer coisa
de jeito. Os nobres alimentavam-se das suas montadas e os pobres
de cadáveres de animais e de folhas». Os Franj suportaram outras
fomes nesses últimos meses, mas sabiam-se então livres de ir
raziar nas cercanias para trazer algumas provisões. A sua nova
condição de cercados impede-os de continuarem a fazê-lo. E as
reservas de Yaghi Siyan, com as quais contavam, estão
praticamente esgotadas. As deserções prosseguem em maior
escala.
Entre estes dois exércitos extenuados, desmoralizados, que se
defrontam no mês de Junho de 1098 em torno de Antioquia, o céu
não parecia saber para qual deles penderia, quando um
acontecimento extraordinário veio forçar a decisão. Os ocidentais
falarão em milagre, mas a narrativa de Ibn al-Athir não deixa
qualquer lugar ao maravilhoso.

Entre os Franj havia Boemundo, o chefe de todos eles, mas


havia também um monge extremamente astuto que lhes garantiu
que uma lança do Messias, a paz seja com Ele, estava enterrada
no Kussyan, um grande edifício de Antioquia. Disse-lhes assim:
«Se a encontrardes, vencereis; de outro modo, é morte certa.»
Anteriormente, ele enterrara uma lança no solo do Kussyan e
apagara todos os indícios. Ordenou-lhes que jejuassem e
fizessem penitência durante três dias; no quarto, mandou-os
entrar no edifício com os seus lacaios e os seus obreiros, que
escavaram por toda a parte e encontraram a lança. Então o
monge exclamou: «Alegrai-vos, pois a vitória é certa!» No quinto
dia, saíram pela porta da cidade em pequenos grupos de cinco
ou seis. Os muçulmanos disseram a Karbuka: «Devíamos
colocar-nos junto à porta e abater todos os que saem. É fácil,
pois eles estão dispersos!» Mas este respondeu: «Não! Aguardai
que estejam todos cá fora e matá-los-emos até ao último!»

O cálculo do atabaque é menos absurdo do que em princípio


aparenta. Com tropas tão indisciplinadas, com emires que só
esperam o primeiro ensejo para desertar, ele não pode prolongar o
cerco. Se os Franj querem travar batalha, não convém assustá-los
com um ataque demasiado maciço, com risco de os ver regressar à
urbe. O que Karbuka não previu é que a sua decisão de
contemporizar vai ser imediatamente explorada pelos que visam a
sua perda. Enquanto os Franj prosseguem as suas evoluções,
começam as deserções no campo muçulmano. Há recriminações
mútuas de cobardia e de traição. Sentindo que o controlo das suas
tropas lhe escapa e que subestimou sem dúvida os efectivos dos
sitiados, Karbuka solicita a estes últimos uma trégua. Acaba assim
de se desconsiderar aos olhos dos seus, além de contribuir para
reforçar a afoiteza dos inimigos: os Franj arremetem sem sequer
responder à sua oferta, obrigando-o por seu turno a largar contra
eles uma vaga de cavaleiros-archeiros. Mas já Dukak e a maioria
dos emires se afastam tranquilamente com as suas tropas. Vendo-
se cada vez mais isolado, o atabaque ordena uma retirada geral que
degenera sem demora em debandada.
O poderoso exército muçulmano desintegrou-se assim «sem ter
desferido um golpe de espada ou de lança, nem disparado uma
frecha». O historiador de Mossul quase não exagera. «Os próprios
Franj temiam um ardil, pois ainda não houvera combate que
justificasse semelhante fuga. Por isso preferiram renunciar a
perseguir os muçulmanos!» Karbuka pode então voltar a Mossul são
e salvo com os frangalhos das suas tropas. Todas as suas ambições
se dissiparam para sempre diante de Antioquia; a cidade que ele
julgara libertar é agora solidamente mantida pelos Franj. E por muito
tempo.
Mas o mais grave após este dia de vergonha é que já não existe
na Síria nenhuma força capaz de suster o avanço dos invasores.
-
(*) Estabelecimentos de banhos no Oriente. (N. T.)
CAPÍTULO III

Os Canibais de Maara

Não sei se é um pasto de animais selvagens ou a minha


casa, a minha morada natal!

Este grito de aflição de um poeta anónimo de Maara não é uma


simples figura de estilo. Somos infelizmente forçados a tomar as
suas palavras à letra e a interrogar-nos com ele: o que se passou
afinal de tão monstruoso na cidade síria de Maara nesse final de
ano de 1098?
Até à chegada dos Franj, os habitantes viviam sossegadamente
ao abrigo da sua muralha circular. Os seus vinhedos, tal como os
seus campos de oliveiras e de figueiras, proporcionavam-lhes uma
modesta prosperidade. Quanto aos negócios da urbe, eram geridos
por probas individualidades locais sem grande ambição, sob a
suserania nominal de Redwan de Alepo. O orgulho de Maara
consistia em ser a pátria de um dos maiores vultos da literatura
árabe, Abul-Ala al-Maari, falecido em 1057. Este poeta cego, livre-
pensador, ousara increpar os costumes da sua época, sem cuidar
dos interditos. Era preciso audácia para escrever:

Os habitantes da Terra dividem-se ao meio,


Os que têm um cérebro, mas nenhuma religião,
E os que têm uma religião, mas nenhum cérebro.

Quarenta anos após a sua morte, um fanatismo vindo de longe


iria dar aparentemente razão ao filho de Maara, tanto pela sua
irreligião quanto pelo seu lendário pessimismo:

O destino espedaça-nos como se fôssemos de vidro,


E os nossos cacos nunca mais se ressoldam.

Em verdade, a sua cidade será reduzida a um montão de ruínas,


e esta desconfiança que o poeta tantas vezes exprimira a respeito
dos seus semelhantes encontrará aí a mais cruel ilustração.
Nos primeiros meses de 1098, os habitantes de Maara seguiram
com inquietação a batalha de Antioquia que se desenrolava a três
dias de marcha a noroeste deles. Em seguida, após a vitória, os
Franj vieram saquear algumas aldeias vizinhas e Maara foi
poupada, mas várias das suas famílias preferiram trocá-la por sítios
mais seguros, Alepo, Homs ou Hama. Os seus receios mostram-se
fundados quando, cerca de fins de Novembro, milhares de
guerreiros francos vêm cercar a cidade. Embora alguns citadinos
ainda logrem fugir, a maioria é apanhada na ratoeira. Maara não
possui exército, mas uma simples milícia urbana à qual aderem
rapidamente centenas de mancebos sem experiência militar.
Durante duas semanas, resistem corajosamente aos temíveis
cavaleiros, indo mesmo ao ponto de deitar sobre os sitiantes, do alto
da fortaleza, colmeias cheias de abelhas.

Ao vê-los tão tenazes, contará Ibn al-Athir, os Franj


construíram uma torre de madeira que chegava à altura das
muralhas. Alguns muçulmanos, transidos de medo e
desmoralizados, disseram consigo que poderiam defender-se
melhor fortificando-se nos edifícios mais altos da cidade.
Deixaram então os muros, desguarnecendo assim os postos que
ocupavam. Outros seguiram o seu exemplo e um outro sector do
recinto foi abandonado. Em breve toda a muralha ficou sem
defensores. Os Franj treparam com escadas de mão, e quando
os muçulmanos os viram no cimo da fortaleza perderam a
coragem.

Sobrevem a noite de 11 de Dezembro. Está muito escuro e os


Franj ainda não se atrevem a penetrar na urbe. Os notáveis de
Maara entram em contacto com Boemundo, o novo senhor de
Antioquia, que se encontra à cabeça dos sitiantes. O chefe franco
promete salvar a vida dos habitantes se eles cessarem o combate e
se retirarem de determinados edifícios. Aferrando-se
desesperadamente à sua palavra, as famílias agrupam-se nas
casas e nas caves da cidade, e aguardam tremebundas o resto da
noite.
Ao amanhecer chegam os Franj: dá-se uma carnificina. Durante
três dias, eles passaram as pessoas a fio de espada, matando mais
de cem mil criaturas e fazendo muitos prisioneiros. Os números de
Ibn al-Athir são obviamente fantasistas, pois a população da urbe
nas vésperas da sua queda era provavelmente inferior a dez mil
habitantes. Mas o horror, aqui, reside menos no número das vítimas
do que na sorte dificilmente imaginável que lhes foi reservada.
Em Maara, os nossos coziam pagãos adultos nos caldeiros,
enfiavam as crianças em espetos e devoravam-nas assadas. Esta
confissão do cronista franco Raul de Caen não a lerão os habitantes
das localidades próximas de Maara, mas até ao fim das suas vidas
hão-de lembrar-se do que viram e ouviram. Em realidade, a
recordação de tais atrocidades, difundida pelos poetas locais e pela
tradição oral, gravará nos espíritos uma imagem dos Franj que custa
a apagar. O cronista Ussama Ibn Munqidh, nascido três anos antes
destes eventos na vizinha cidade de Chayzar, escreverá um dia:

Todos os que se informaram acerca dos Franj viram neles


animais que têm a superioridade da coragem e do ardor no
combate, mas nenhuma outra, do mesmo modo que os animais
têm a superioridade da força e da agressão.

Um juízo sem complacência que resume bem a impressão


causada pelos Franj à sua chegada à Síria: uma mistura de temor e
de desprezo, bem compreensível por parte de uma nação árabe
muito superior pela cultura, mas que perdeu toda a combatividade.
Jamais os Turcos olvidarão o canibalismo dos ocidentais. Através de
toda a sua literatura épica, os Franj serão sistematicamente
descritos como antropófagos.
Esta visão dos Franj é porventura injusta? Os invasores
ocidentais devoraram os habitantes da cidade mártir no simples
intuito de sobreviver? Os seus chefes afirmá-lo-ão no ano seguinte
numa carta oficial ao papa: Uma terrível fome atormentou o exército
em Maara e pô-lo na cruel necessidade de se alimentar dos
cadáveres dos sarracenos. Mas isto parece esconder a verdade. De
facto, durante esse sinistro Inverno, os habitantes da região de
Maara assistem a comportamentos que a fome não basta para
explicar. Pois o certo é que vêem bandos de Franj fanatizados, os
Tafures, que se espalham pelos campos clamando em alta gritaria
que pretendem trincar a carne dos sarracenos, e que se reúnem ao
anoitecer em volta do lume para devorar as suas presas. Canibais
por necessidade? Canibais por fanatismo? Tudo isto parece irreal, e
no entanto os testemunhos são confrangedores, tanto pelas
ocorrências que descrevem quanto pela mórbida atmosfera que aí
se adivinha. A tal propósito, uma frase do cronista franco Alberto de
Aix, que participou pessoalmente na batalha de Maara, atinge o
cúmulo do horror: Não repugnava aos nossos comer não somente
os turcos e os sarracenos mortos, mas também os cães!
O suplício da cidade de Abul-Ala só terminará a 13 de Janeiro de
1099, quando centenas de Franj armados de archotes percorrem as
ruelas, lançando fogo a cada casa. Já a cintura da muralha fora
demolida pedra a pedra.
O episódio de Maara vai concorrer para cavar entre os Árabes e
os Franj um fosso que vários séculos não bastarão para anular. No
imediato, porém, as populações, paralisadas pelo terror, já não
resistem, a menos que a tal sejam impelidas. E quando os
invasores, deixando atrás de si apenas ruínas fumegantes, retomam
a sua marcha na direcção do sul, os emires sírios apressam-se a
enviar-lhes emissários carregados de presentes para lhes
garantirem a sua boa vontade e lhes proporem toda a ajuda de que
necessitem.
O primeiro é Sultan Ibn Munqidh, tio do cronista Ussama, que
reina sobre o pequeno emirado de Chayzar. Os Franj alcançam o
seu território logo no dia a seguir à partida de Maara. Quem os
encabeça é Saint-Gilles, um dos seus chefes mais frequentemente
citados pelas crónicas árabes; tendo-lhe o emir mandado uma
embaixada, conclui-se rapidamente um acordo: Sultan não apenas
se compromete a abastecer os Franj, como ainda os autoriza a vir
comprar cavalos no mercado de Chayzar e lhes fornecerá guias
para lhes permitir atravessar sem estorvo o resto da Síria.
A região já nada ignora da progressão dos Franj, conhece-se
doravante o seu itinerário. Acaso não clamam eles em voz alta que
o seu objectivo último é Jerusalém, onde querem tomar posse do
túmulo de Jesus? Todos os que se acham na rota da cidade santa
tentam premunir-se contra o flagelo que eles representam. Os mais
pobres escondem-se nos bosques adjacentes, não obstante aí
abundarem as feras, leões, lobos, ursos e hienas. Os que têm meios
para o fazer emigram a caminho do interior do país. Outros
refugiam-se na fortaleza mais próxima. Foi esta solução que
escolheram os camponeses da rica planície da Bukaya quando,
durante a última semana de Janeiro de 1099, lhes é assinalada nas
proximidades a presença de tropas francas. Reunindo o seu gado e
as suas reservas de azeite e de trigo, eles sobem até Hosn-el-
Àkrad, «a cidadela dos Curdos», que, do alto de um pico de difícil
acesso, domina toda a planície até ao Mediterrâneo. Se bem que a
fortaleza esteja desde há muito desocupada, as suas muralhas são
sólidas, e os camponeses esperam ficar aí protegidos. Mas os Franj,
sempre carecidos de provisões, vêm cercá-los. No dia 28 de
Janeiro, os seus guerreiros começam a escalar os muros de Hosn-
el-Akrad. Sentindo-se perdidos, os camponeses imaginam um
estratagema. Abrem subitamente as portas da cidadela e deixam
escapar uma parte dos seus rebanhos. Esquecendo o combate,
todos os Franj correm atrás dos animais para os apanhar. Tão
grande é a barafunda nas suas fileiras que os defensores,
alentados, operam uma surtida e atingem a tenda de Saint-Gilles,
onde o chefe franco, abandonado pelos guardas que aspiram
igualmente ao seu quinhão de gado, escapa por um triz à captura.
Os nossos camponeses estão bastante satisfeitos com a sua
proeza. Mas sabem que os sitiantes voltarão para se vingar. No dia
seguinte, quando Saint-Gilles lança os seus homens ao assalto das
muralhas, eles não se mostram. Os atacantes perguntam a si
mesmos que nova artimanha terão inventado os camponeses. Foi
efectivamente a mais sábia de todas: aproveitaram a noite para sair
sem ruído e desaparecer ao longe. É no local de Hosn-el-Akrad que,
quarenta anos mais tarde, os Franj construirão uma das suas mais
temíveis fortalezas. O nome mudará um pouco: «Akrad» será
deformado em «Krat» e depois em «Krac». O «Krac dos
cavaleiros», com a sua imponente silhueta, ainda domina, no século
XX, a planície da Bukaya.
Em Fevereiro de 1099, a cidadela torna-se por alguns dias no
quartel-general dos Franj. Assiste-se aí a um espectáculo
desconcertante. De todas as cidades vizinhas, e inclusive de
algumas aldeias, chegam delegações, arrastando atrás de si mulas
ajoujadas de ouro, de tapeçarias, de provisões. A fragmentação
política da Síria é de tal ordem que o mais pequeno burgo se
comporta como um emirado independente. Cada qual sabe que só
pode contar com as suas próprias forças para se defender e lidar
com os invasores. Nenhum príncipe, nenhum cádi, nenhum notável
pode esboçar o mínimo gesto de resistência sem fazer perigar o
conjunto da sua comunidade. Deixam-se portanto os sentimentos
patrióticos de lado para vir, com um sorriso forçado, apresentar
prendas e homenagens. O braço que não puderes partir, abraça-o e
ora a Deus para que Ele o parta, diz um provérbio local.
É esta sabedoria da resignação que irá ditar a conduta do emir
Janah ad-Dawla, senhor da cidade de Homs. Este guerreiro
reputado pela sua bravura era, há escassos sete meses, o mais fiel
aliado do atabaque Karbuka. Ibn al-Athir esclarece que Janah ad-
Dawla foi o último a fugir diante de Antioquia. Mas a hora já não é
de zelo guerreiro ou religioso, e o emir mostra-se particularmente
atencioso para com Saint-Gilles, oferecendo-lhe, além dos
presentes habituais, um grande número de cavalos, pois, explicam
os embaixadores de Homs num tom melífluo, Janah ad-Dawla
soube que os cavaleiros tinham falta deles.
De todas as delegações que desfilam nos imensos
compartimentos sem móveis de Hosn-el-Akrad, a mais generosa é a
de Trípolis. Ao sacarem uma a uma as esplêndidas jóias fabricadas
pelos artífices judeus da urbe, os seus embaixadores desejam as
boas-vindas aos Franj em nome do príncipe mais respeitado da
costa síria, o cádi Jalal el-Mulk. Este pertence à família dos Banu
Ammar, que fez de Trípolis a pérola do Oriente árabe. Não se trata
de maneira alguma de um desses inúmeros clãs militares que
arranjaram feudos pela simples força das armas, mas de uma
dinastia de letrados, tendo por fundador um magistrado, um cádi,
título que os soberanos da urbe conservam.
Na altura em que os Franj se aproximam, Trípolis e a sua região
vivem, mercê da sabedoria dos cádis, um período de paz e de
prosperidade que os seus vizinhos lhe invejam. O orgulho dos
citadinos é a sua imensa «casa da cultura», Dar-el-Ilm, que encerra
uma biblioteca de cem mil volumes, uma das mais importantes da
época. A cidade está rodeada de campos de oliveiras, de
alfarrobeiras, de cana-de-açúcar, de frutos de todas as espécies
propiciadores de abundantes colheitas. O seu porto regista um
tráfico animado.
É precisamente esta opulência que vai valer à urbe os seus
primeiros atritos com os invasores. Na mensagem que faz chegar a
Hosn-el-Akrad, Jalal el-Mulk convida Saint-Gilles a enviar uma
delegação a Trípolis para negociar uma aliança. Erro crasso. Os
emissários francos sentem-se de facto tão maravilhados com os
jardins, os palácios, o porto e o suk dos ourives que já não ouvem
as propostas do cádi. Pensam desde logo em tudo o que poderiam
pilhar se se apoderassem da cidade. E parece realmente que ao
voltar para junto do seu chefe tudo fizeram para atiçar a cobiça dele.
Jalal el-Mulk, que aguarda ingenuamente a resposta de Saint-Gilles
à sua oferta de aliança, não deixa de ficar surpreendido ao ter
conhecimento de que os Franj, no dia 14 de Fevereiro, puseram
cerco a Arqa, segunda cidade do principado de Trípolis. É grande a
sua decepção, mas sobretudo o seu terror, persuadido como está de
que a operação empreendida pelos invasores não é mais do que um
primeiro passo para a conquista da sua capital. Quem poderia então
coibir-se de pensar na sorte de Antioquia? Jalal el-Mulk já se vê no
lugar do desditoso Yaghi Siyan, cavalgando vergonhosamente para
a morte ou o olvido. Em Trípolis, acumulam-se reservas na previsão
de um longo cerco. Os habitantes interrogam-se com angústia
quanto tempo serão os invasores retidos diante de Arqa. Cada dia
que passa é uma inesperada moratória.
Decorre o mês de Fevereiro, depois Março e Abril. Tal como
todos os anos, a fragrância dos pomares floridos envolve Trípolis. O
tempo está tanto melhor quanto as notícias são reconfortantes: os
Franj ainda não conseguiram tomar Arqa, cujos defensores não se
acham menos espantados que os sitiantes. É verdade que as
muralhas são sólidas, mas não mais do que as de outras cidades,
mais importantes, de que os Franj puderam apoderar-se. O que faz
a força de Arqa é que os seus habitantes se convenceram, desde o
primeiro instante da batalha, de que, se uma simples brecha se
abrisse, eles seriam todos degolados como o haviam sido os seus
irmãos de Maara ou de Antioquia. Vigiam dia e noite, rechaçando
todos os ataques, impedindo a mais pequena infiltração. Os
invasores acabam por se cansar. O alarido das suas disputas chega
à cidade cercada. Em 13 de Maio de 1099, levantam finalmente o
seu acampamento e afastam-se cabisbaixos. Após três meses de
luta extenuante, a tenacidade dos resistentes foi recompensada.
Arqa rejubila.
Os Franj retomam a sua marcha para sul. Passam em frente de
Trípolis com inquietante lentidão. Jalal el-Mulk, que os sabe
irritados, apressa-se a transmitir-lhes os seus melhores votos para a
continuação da viagem. Ele tem o cuidado de remeter igualmente
víveres, ouro, alguns cavalos, bem como guias, que os ajudarão a
atravessar a estreita rota costeira que conduz a Beirute. Aos
batedores tripolitanos em breve se juntam cristãos maronitas da
montanha libanesa que, à semelhança dos emires muçulmanos,
vêm propor o seu concurso aos guerreiros ocidentais. Sem tornarem
a acometer as possessões dos Banu Ammar, tais como Jbeil, a
antiga Biblos, os invasores atingem Nahr-el-Kalb, o «Rio do Cão».

Ao transpô-lo, entram em estado de guerra com o califado


fatímida do Egipto.

O homem forte do Cairo, o poderoso e corpulento vizir al-Afdal


Chahinchah, não escondera a sua satisfação quando os emissários
de Aleixo Comneno tinham vindo anunciar-lhe, em Abril de 1097, a
chegada em massa dos cavaleiros francos a Constantinopla e o
início da sua ofensiva na Ásia Menor. Al-Afdal, o Melhor, um antigo
escravo de trinta e cinco anos, que detém sob o seu governo
absoluto uma nação egípcia de sete milhões de habitantes,
transmitira ao imperador os seus votos de boa sorte e pedira para
ser informado, na qualidade de amigo, dos progressos da
expedição.

Há quem diga que, quando os senhores do Egipto viram a


expansão do Império Seljúcida, eles se encheram de medo e
pediram aos Franj que marchassem contra a Síria e
estabelecessem um tampão entre eles e os muçulmanos. Só
Deus conhece a verdade.

Esta singular explicação emitida por Ibn al-Athir acerca da origem


da invasão franca é elucidativa sobre a divisão que reina no seio do
mundo islâmico entre sunitas, que se reclamam do califado
abássida de Bagdad, e os xiitas, que se reconhecem no califado
fatímida do Cairo. O cisma, que data do século VII e de um conflito
no interior da família do Profeta, jamais deixou de provocar lutas
encarniçadas entre os muçulmanos. Até mesmo para os homens de
Estado como Saladino, a luta contra os xiitas parecerá pelo menos
tão importante quanto a guerra contra os Franj. Os «heréticos» são
regularmente acusados de todos os males de que sofre o Islão, e
não admira que a própria invasão franca seja atribuída aos seus
manejos. Dito isto, se o apelo dos Fatímidas aos Franj é puramente
imaginário, já o júbilo do Cairo à chegada dos guerreiros ocidentais
é bem real.
Após a queda de Niceia, o vizir al-Afdal felicitou calorosamente o
basileus, e três meses antes de os invasores se assenhorearem de
Antioquia uma delegação egípcia carregada de prendas visitou o
acampamento dos Franj para lhes desejar uma rápida vitória e lhes
propor uma aliança. Militar de origem arménia, o senhor do Cairo
não nutre qualquer simpatia pelos Turcos, nisto os seus sentimentos
pessoais coincidem com os interesses do Egipto. Desde meados do
século, os progressos dos Seljúcidas cercearam o território do
califado fatímida ao mesmo tempo que o do Império Bizantino.
Enquanto os Rum viam Antioquia e a Ásia Menor escapar ao seu
mando, os Egípcios perdiam Damasco e Jerusalém, que lhes tinham
pertencido durante um século. Entre o Cairo e Constantinopla,
assim como entre al-Afdal e Aleixo, estabeleceu-se uma sólida
amizade. Há consultas regulares, trocam-se informações, elaboram-
se projectos comuns. Pouco antes da chegada dos Franj, os dois
homens verificaram com satisfação que o Império Seljúcida estava
minado por querelas internas. Tanto na Ásia Menor como na Síria,
instalaram-se numerosos pequenos Estados rivais. Terá soado a
hora da desforra contra os Turcos? Não é acaso o momento de
tanto os Egípcios como os Rum recuperarem as suas possessões
perdidas? Al-Afdal sonha com uma operação concertada das duas
potências aliadas, e quando toma conhecimento de que o basileus
recebeu dos países dos Franj um grande reforço de tropas sente a
desforra ao seu alcance.
A delegação que ele enviou aos sitiantes de Antioquia não falara
de tratado de não agressão. Para o vizir, isto estava implícito. O que
ele propunha aos Franj era uma partilha formal: para eles o Norte da
Síria, para si o Sul da Síria, ou seja, a Palestina, Damasco e as
cidades da costa até Beirute. Tomava a peito apresentar a sua
oferta o mais cedo possível, numa altura em que os Franj ainda não
tinham a certeza de conquistar Antioquia. A sua convicção era a de
que estes se despachariam a aceitar.
Curiosamente, a resposta deles fora evasiva. Pediam
explicações, precisões, designadamente acerca da sorte futura de
Jerusalém. Mostravam-se amistosos, é bem verdade, para com os
diplomatas egípcios, indo mesmo ao ponto de os brindar com o
espectáculo das cabeças cortadas de trezentos turcos mortos perto
de Antioquia. Mas recusavam-se a firmar qualquer acordo. Al-Afdal
não compreende. A sua proposta não era porventura realista, e até
mesmo generosa? Os Rum e os seus auxiliares francos faziam
seriamente tenção de se apoderar de Jerusalém conforme os
enviados dele haviam julgado? Ter-lhe-ia Aleixo mentido?
O homem forte do Cairo ainda hesitava sobre a política a seguir,
quando em Junho de 1098 lhe chega a notícia da queda de
Antioquia, seguida, a menos de três semanas de intervalo, do
anúncio da humilhante derrota de Karbuka. O vizir está então
resolvido a agir imediatamente para se antecipar aos adversários e
aliados. Em Julho, relata Ibn al-Qalanissi, soube-se que o
generalíssimo, emir dos exércitos, al-Afdal, saíra do Egipto à cabeça
de um numeroso exército e pusera cerco a Jerusalém, onde se
encontravam os emires Sokman e Ilghazi, filhos de Ortok. Ele
atacou a cidade e colocou manganelas em bateria. Os dois irmãos
turcos que chefiavam Jerusalém acabavam justamente de chegar
do Norte, onde tinham participado na fatídica expedição de Karbuka.
Ao cabo de quarenta dias de cerco, a cidade capitulara. Al-Afdal
tratou generosamente os dois emires e pô-los em liberdade, a eles e
à sua comitiva.
Durante vários meses, os acontecimentos pareceram dar razão
ao senhor do Cairo. Tudo se passava realmente como se os Franj,
postos perante o facto consumado, houvessem renunciado a ir mais
longe.
Os poetas da corte fatímida já não encontravam palavras
suficientemente elogiosas para celebrar a façanha do homem de
Estado que arrancara a Palestina aos «heréticos» sunitas. Porém,
quando em Janeiro de 1099 os Franj retomam resolutamente a sua
marcha na direcção do Sul, al-Afdal inquieta-se.
Ele manda um dos seus homens de confiança a Constantinopla
para consultar Aleixo, que lhe faz então, numa célebre carta, a mais
perturbante confissão que é possível imaginar: o basileus já não
exerce o mínimo controlo sobre os Franj. Por mais incrível que tal
possa parecer, esta gente actua por sua própria conta, procura
instaurar os seus próprios Estados, recusando restituir Antioquia ao
Império, ao contrário do que tinha jurado fazer, e dá a impressão de
estar decidida a tomar Jerusalém por todos os meios. O papa
incitou-os à guerra santa para se apossarem do túmulo de Cristo, e
nada poderá desviá-los do seu objectivo. Aleixo acrescenta que,
pela sua parte, desaprova a acção deles e se atém estritamente à
sua aliança com o Cairo.
Apesar deste último esclarecimento, al-Afdal tem a sensação de
estar preso numa engrenagem mortal. Sendo ele mesmo de origem
cristã, não lhe custa nada compreender que os Franj, movidos por
uma fé ardente e ingénua, estejam determinados a ir até ao fim da
sua peregrinação armada. Arrepende-se agora de se ter lançado na
sua aventura palestiniana. Não teria sido preferível deixar os Franj e
os Turcos digladiarem-se por Jerusalém em vez de se atravessar
ele próprio, gratuitamente, no caminho desses cavaleiros tão
corajosos como fanáticos?
Sabendo que necessita de vários meses para recrutar um
exército capaz de enfrentar os Franj, ele escreve a Aleixo,
exortando-o a fazer tudo o que estiver na sua mão para abrandar a
marcha dos invasores. Com efeito, o basileus envia-lhe, em Abril de
1099, durante o cerco de Arqa, uma mensagem a pedir-lhe que
retarde a sua partida para a Palestina, pois, argumenta ele, irá em
breve chegar em pessoa para se lhes juntar. Por seu lado, o senhor
do Cairo endereça aos Franj novas propostas de acordo. Além da
partilha da Síria, ele aclara a sua política relativamente à cidade
santa: uma liberdade de culto rigorosamente respeitada e a
possibilidade de os peregrinos lá irem sempre que o desejarem,
com a condição, já se vê, de se dirigirem em pequenos grupos e
sem armas. A resposta dos Franj é contundente: «Iremos a
Jerusalém todos juntos, em ordem de combate, de lanças em riste!»
É uma declaração de guerra. Em 19 de Maio de 1099, aliando o
gesto à palavra, os invasores transpõem sem hesitar Nahr-el-Kalb, o
limite setentrional do domínio fatímida.

Mas o «Rio do Cão» é uma fronteira fictícia, porquanto al-Afdal


se limitou a reforçar a guarnição de Jerusalém, abandonando à sua
sorte as possessões egípcias do litoral. Deste modo, todas as
cidades costeiras, excepto uma, se apressam a pactuar com o
invasor.
A primeira é Beirute, a quatro horas de marcha de Nahr-el-Kalb.
Os seus habitantes mandam uma delegação ao encontro dos
cavaleiros, prometendo fornecer-lhes ouro, provisões e guias, desde
que poupem as colheitas da planície circundante. Os Beirutinos
acrescentam que estão prontos a reconhecer a autoridade dos Franj
se estes lograrem conquistar Jerusalém. Saida, a antiga Sídon,
reage diferentemente. A sua guarnição efectua várias surtidas
audaciosas contra os invasores, que se vingam devastando os seus
pomares e pilhando as aldeias vizinhas. Será o único caso de
resistência. Os portos de Tiro e de Acre, conquanto fáceis de
defender, seguem o exemplo de Beirute. Na Palestina, a maior parte
das cidades e das aldeias são evacuadas pelos seus habitantes
ainda antes da chegada dos Franj. Estes não deparam com
verdadeira oposição em momento algum e logo na manhã de 7 de
Junho de 1099 os habitantes de Jerusalém vêem-nos surgir ao
longe, acolá, sobre a colina, perto da mesquita do profeta Samuel.
Quase se ouve o seu clamor. Ao fim da tarde já eles acampam ante
os muros da urbe.
O general Iftikhar ad-Dawla, «Orgulho do Estado», comandante
da guarnição egípcia, observa-os com serenidade do alto da torre
de David. Desde há meses que ele tomou todas as disposições
necessárias para suportar um cerco demorado. Reparou um lanço
de muralha danificada no decurso do assalto de al-Afdal contra os
Turcos, no Verão passado. Juntou enormes provisões para evitar
qualquer risco de penúria, enquanto não chega o vizir que prometeu
vir antes do fim de Julho para livrar a cidade. Para maior prudência,
seguiu o exemplo de Yaghi Siyan e expulsou os habitantes cristãos
susceptíveis de colaborar com os seus correligionários francos. Nos
últimos dias, mandou inclusivamente envenenar as fontes e os
poços das redondezas para impedir o inimigo de os utilizar. À
torreira de Junho, nesta paisagem montanhosa, árida, semeada
aqui e além de algumas oliveiras, a vida dos sitiantes não será fácil.
Para Iftikhar, o combate parece por conseguinte iniciar-se em
boas condições. Com os seus ginetes árabes e os seus archeiros
sudaneses, solidamente entrincheirados nessas fortificações
espessas que trepam pelas colinas e se entranham nas ravinas, ele
sente-se capaz de aguentar. É verdade que os cavaleiros do
Ocidente são reputados pela sua bravura, mas o seu
comportamento sob os muros de Jerusalém é algo desconcertante
aos olhos de um militar experimentado. Iftikhar esperava vê-los
construir, mal chegassem, torres móveis e diversos instrumentos de
cerco, cavar trincheiras para se resguardarem contra as surtidas da
guarnição. Ora, em vez de se entregarem a estes arranjos, eles
começaram por organizar uma procissão à roda dos muros,
conduzida por sacerdotes que rezam e cantam muito alto, antes de
se lançarem cheios de fúria ao assalto das muralhas sem dispor da
mais pequena escada de mão. Por muito que al-Afdal lhe tenha
explicado que estes Franj queriam assenhorear-se da cidade por
razões religiosas, um tão cego fanatismo não deixa de o
surpreender. Ele próprio é um muçulmano crente, mas se peleja na
Palestina é para defender os interesses do Egipto, e depois, não
vale a pena negá-lo, para promover a sua própria carreira militar.
Ele não ignora que esta urbe não é como as outras. Iftikhar
sempre a designou pelo seu nome corrente, Iliya, mas os ulemás, os
doutores da lei, apelidam-na de al-Quds, Beit-el-Maqdess ou al-
Muqaddas, «o lugar da santidade». Dizem eles que é a terceira
cidade santa do Islão a seguir a Meca e a Medina, pois foi a ela que
Deus conduziu o Profeta, no decurso de uma noite miraculosa, para
o levar a encontrar Moisés e Jesus, filho de Maria. Desde então, al-
Quds é, para todos os muçulmanos, o símbolo da continuidade da
mensagem divina. Muitos devotos vêm recolher-se na mesquita al-
Aqsa, sob a imensa cúpula cintilante que domina majestosamente
as casas quadradas da cidade.
Ainda que o céu esteja aqui presente a cada canto de rua, Iftikhar
tem, quanto a si, os pés bem assentes na terra. As técnicas
militares, considera ele, são as mesmas, seja qual for a cidade.
Estas procissões cantantes dos Franj enervam-no, mas não o
inquietam. Só ao cabo da segunda semana de cerco é que ele
começa a sentir nascer a inquietude, quando o inimigo se entrega
com ardor à construção de duas enormes torres de madeira. No
início de Julho, elas já estão de pé, prontas a transportar centenas
de combatentes até ao topo das muralhas. As suas silhuetas
elevam-se ameaçadoras no meio do campo adverso.
As instruções de Iftikhar são rigorosas: se um dos engenhos fizer
o mínimo movimento na direcção dos muros, deve fustigá-lo com
uma chuva de frechas. Se em seguida a torre conseguir aproximar-
se, deve utilizar o fogo-grego, uma mistura de petróleo e de enxofre
que se despeja em cântaros e se lança, ateado, contra os
atacantes. Ao derramar-se, o líquido provoca incêndios difíceis de
extinguir. Esta temível arma irá permitir aos soldados de Iftikhar
repelir vários ataques sucessivos ao longo da segunda semana de
Julho, se bem que, para se premunirem das chamas, os sitiantes
hajam atapeado as torres móveis de peles de animais recentemente
esfolados e embebidas em vinagre. Entretanto, circulam rumores
anunciando a chegada iminente de al-Afdal. Os sitiantes, que
receiam ser apanhados entre dois fogos, redobram os esforços.
Das duas torres móveis construídas pelos Franj, contará Ibn
al-Athir, uma estava do lado de Sião, a sul, e a outra a norte. Os
muçulmanos conseguiram fazer arder a primeira, matando todos
os que estavam lá dentro. Mas ainda mal tinham acabado de a
destruir e já um mensageiro chegava em busca de socorro, pois
a cidade fora invadida da outra banda. De facto, ela havia sido
tomada pelo norte, numa sexta-feira de manhã, sete dias antes
do fim de Chaaban de 492.

Nesta terrível jornada de Julho de 1099, Iftikhar está barricado na


torre de David, uma cidadela octogonal cujos alicerces foram
soldados a chumbo e que constitui o ponto forte do recinto. Ele pode
resistir aí mais alguns dias, mas sabe que a batalha está perdida. O
bairro judeu foi invadido, as ruas acham-se juncadas de cadáveres,
e já se luta nas imediações da grande mesquita. Em breve ele e os
seus homens ficarão cercados por todos os lados. No entanto,
continua a bater-se. Que outra coisa poderia fazer? À tarde, os
combates cessaram praticamente no centro da urbe. O estandarte
branco dos Fatímidas já não flutua sobre a torre de David.
Subitamente, os assaltos dos Franj cessam e um mensageiro
aproxima-se. Ele vem da parte de Saint-Gilles propor ao general
egípcio e aos seus homens a possibilidade de abalarem sãos e
salvos se aceitarem entregar-lhe a torre. Iftikhar hesita. Já mais de
uma vez os Franj faltaram aos seus compromissos e nada garante
que Saint-Gilles esteja decidido a agir de outra maneira.
Descrevem-no, porém, como um sexagenário de cabelo branco que
toda a gente saúda respeitosamente, o que leva a acreditar no seu
sentido da palavra dada. Em todo o caso, sabe-se que ele precisa
de negociar com a guarnição, pois a sua torre de madeira foi
destruída e todos os seus assaltos acabaram por ser repelidos. De
facto, ele está plantado diante dos muros desde manhã, ao passo
que os seus irmãos, os outros chefes francos, já andam a pilhar a
cidade e a disputar as casas entre si. Pesando os prós e os contras,
Iftikhar declara-se finalmente pronto a capitular contanto que Saint-
Gilles prometa, sob palavra de honra, caucionar a sua segurança e
a de todos os seus homens.

Os Franj cumpriram a promessa e deixaram-nos partir de noite a


caminho do porto de Áscalon, onde eles se estabeleceram, anotará
conscienciosamente Ibn al-Athir. Antes de acrescentar: A população
da cidade santa foi passada a fio de espada, e os Franj
massacraram os muçulmanos durante uma semana. Na mesquita
al-Aqsa, mataram mais de setenta mil pessoas. E Ibn al-Qalanissi,
que evita manipular números inverificáveis, precisa: Morreu muita
gente. Os judeus foram reunidos na sua sinagoga e os Franj
queimaram-nos aí vivos. Eles também destruíram os monumentos
dos santos e o túmulo de Abraão – a paz seja com Ele!
Entre os monumentos saqueados pelos invasores conta-se a
mesquita de Omar, erigida à memória do segundo sucessor do
Profeta, o califa Omar Ibn al-Khattab, que tomara Jerusalém aos
Rum em Fevereiro de 638. Posteriormente, os Árabes não se
esquecerão de evocar amiúde este evento no intuito de fazer
ressaltar a diferença entre o seu comportamento e o dos Franj.
Nesse dia, Omar fizera a sua entrada montado no seu célebre
camelo branco, enquanto o patriarca grego da cidade santa
avançava ao seu encontro. O califa começara por lhe afiançar que a
vida e os bens de todos os habitantes seriam respeitados, antes de
lhe pedir que o levasse a visitar os lugares sagrados do cristianismo.
Na altura em que estavam na igreja da Qyama, o Santo Sepulcro, e
tendo chegado a hora da oração, Omar perguntara ao seu anfitrião
onde poderia estender o seu tapete para se prosternar. O patriarca
convidara-o a ficar ali mesmo, mas o califa respondera: «Se o fizer,
os muçulmanos quererão amanhã apropriar-se deste local dizendo:
Omar orou aqui.» E, levando o tapete, foi ajoelhar-se lá fora. Vira
acertadamente a questão, pois seria nesse mesmo sítio que se iria
construir a mesquita que tem o seu nome. Infelizmente, os chefes
francos não mostram igual magnanimidade. Eles festejam o seu
triunfo com uma matança indescritível, depois saqueiam
selvaticamente a cidade que alegam venerar.
Nem sequer os seus correligionários são poupados: uma das
primeiras medidas tomadas pelos Franj é a de expulsar da igreja do
Santo Sepulcro todos os sacerdotes dos ritos orientais – gregos,
georgianos, arménios, coptas e sírios – que aí oficiam juntos em
virtude de uma antiga tradição que todos os conquistadores haviam
respeitado até então. Atordoados por tanto fanatismo, os dignitários
das comunidades cristãs orientais decidem resistir. Recusam revelar
ao ocupante o lugar onde esconderam a verdadeira cruz na qual
Cristo morreu. Para estes homens, a devoção religiosa no que toca
à relíquia combina-se com a altivez patriótica. Não são eles, ao fim e
ao cabo, os concidadãos do Nazareno? Mas os invasores não se
deixam de modo algum impressionar. Prendendo os sacerdotes
incumbidos da guarda da cruz e submetendo-os à tortura para lhes
arrancar o seu segredo, conseguem arrebatar à força aos cristãos
da cidade santa a mais preciosa das suas relíquias.
Enquanto os ocidentais acabam de massacrar alguns
sobreviventes emboscados e se apropriam de todas as riquezas de
Jerusalém, o exército reunido por al-Afdal avança lentamente
através do Sinai. Só atinge a Palestina vinte dias após o drama. O
vizir, que o capitaneou em pessoa, hesita em marchar directamente
sobre a cidade santa. Embora disponha de cerca de trinta mil
homens, não se julga em posição de força, pois carece de material
de cerco, e a determinação dos cavaleiros francos assusta-o.
Resolve então instalar-se com as suas tropas nas cercanias de
Áscalon e enviar uma embaixada a Jerusalém para sondar as
intenções do inimigo. Na cidade ocupada, os emissários egípcios
são conduzidos junto de um grande cavaleiro de cabelo comprido e
barba loura que lhes é apresentado como Godofredo de Bulhão,
novo senhor de Jerusalém. É a ele que transmitem a mensagem do
vizir acusando os Franj de terem abusado da sua boa fé e
propondo-lhes um ajuste se prometerem sair da Palestina. À laia de
resposta, os ocidentais reúnem as suas forças e lançam-se sem
delonga a caminho de Àscalon.
A sua avançada é tão rápida que chegam às proximidades do
acampamento muçulmano sem que as atalaias os tenham sequer
assinalado. E, logo ao primeiro embate, o exército egípcio cedeu e
refluiu para o porto de Áscalon, relata Ibn al-Qalanissi. Al-Afdal
também se retirou nessa direcção. Os sabres dos Franj triunfaram
dos muçulmanos. O morticínio não poupou os infantes, nem os
voluntários, nem as pessoas da cidade. Pereceram
aproximadamente dez mil almas e o acampamento foi pilhado.

É sem dúvida alguns dias após a derrocada dos Egípcios que


chega a Bagdad o grupo de refugiados encabeçado por Abu-Saad
al-Harawi. O cádi de Damasco ainda ignora que os Franj acabam de
alcançar uma nova vitória, mas já sabe que os invasores se
assenhorearam de Jerusalém, de Antioquia e de Edessa, que
venceram Kilij Arslan e Danishmend, que atravessaram toda a Síria
de norte a sul, massacrando e pilhando a seu bel-prazer sem serem
inquietados. Sente que o seu povo e a sua fé são achincalhados,
humilhados, e apetece-lhe gritá-lo bem alto para que os
muçulmanos despertem finalmente. Quer sacudir os seus irmãos,
provocá-los, escandalizá-los.
Na sexta-feira 19 de Agosto de 1099, ele levou os seus
companheiros à grande mesquita de Bagdad e, ao meio-dia, quando
os crentes afluem de todos os lados para a oração, põe-se a comer
ostensivamente, apesar de se estar no Ramadão, o mês do jejum
obrigatório. Em poucos instantes, uma multidão irada aperta-se à
sua volta e abeiram-se soldados para o prender. Mas Abu-Saad
levanta-se e pergunta calmamente aos que o rodeiam como podem
mostrar-se tão transtornados com uma ruptura de jejum quando
afinal o massacre de milhares de muçulmanos e a destruição dos
lugares santos do Islão os deixam numa completa indiferença.
Tendo assim imposto silêncio à multidão, ele descreve então em
pormenor as desgraças que afligem a Síria, «Bilad-ech-Cham», e
sobretudo as que acabam de fustigar Jerusalém. Os refugiados
choraram, e fizeram chorar, dirá Ibn al-Athir.

Afastando-se da rua, é no palácio que al-Harawi vai agora fazer


escândalo. «Vejo como são fracos os sustentáculos da fé!»,
exclama ele no divã do Príncipe dos Crentes, al-Mustazhir-billah, um
jovem califa de vinte e dois anos. De tez clara, barba curta, rosto
arredondado, é um soberano jovial e bonacheirão, cujos acessos de
cólera são breves e as ameaças raramente seguidas de execução.
Numa época em que a crueldade parece ser o primeiro atributo dos
dirigentes, este jovem califa árabe gaba-se de nunca ter prejudicado
ninguém. Sentia uma verdadeira alegria quando lhe diziam que o
povo era feliz, anotará candidamente Ibn al-Athir. Sensível, refinado,
de trato agradável, al-Mustazhir tem gosto pelas artes. Apreciador
de arquitectura, ele próprio superintendeu a construção de uma
cintura fortificada a toda a roda do seu bairro residencial, o Harém,
situado no leste de Bagdad. E, nas suas horas vagas, que são
muitas, compõe poemas de amor: Quando estendi a mão para dizer
adeus à minha bem-amada, o ardor da minha chama fez derreter o
gelo.
Para mal dos seus súbditos, este homem de bem, incapaz de
qualquer gesto de tirania, como o define Ibn al-Qalanissi, não dispõe
do mínimo poder, se bem que esteja rodeado, a todo o momento, de
um cerimonial complicado de veneração e que os cronistas
evoquem o seu nome com deferência. Os refugiados de Jerusalém,
que nele depositaram todas as esperanças, parecem esquecer que
a sua autoridade não se exerce para lá das paredes do seu palácio,
e que, ainda por cima, a política o enfada.
Ele tem no entanto atrás de si uma história gloriosa. Os califas,
seus antecessores, foram durante os dois séculos que se seguiram
à morte do Profeta (632-833) os chefes espirituais e temporais de
um imenso império que, no apogeu, se espraiava do Indo aos
Pirenéus, e que até efectuou uma investida na direcção dos vales
do Ródano e do Loire. E a dinastia abássida, à qual pertence al-
Mustazhir, fez de Bagdad a cidade fabulosa das Mil e Uma Noites.
No dealbar do século IX, no tempo em que reinava o seu
antepassado Hárune Arraxide, o califado era o Estado mais rico e
poderoso da Terra, e a sua capital o centro da mais avançada
civilização. Ela tinha mil médicos diplomados, um grande hospital
gratuito, um serviço postal regular, vários bancos, alguns dos quais
dispunham de sucursais na China, uma excelente canalização de
água, sistemas de autoclismo, bem como uma fábrica de papel – os
ocidentais, que ainda só utilizavam o pergaminho ao chegarem ao
Oriente, aprenderão na Síria a arte de elaborar papel a partir da
palha de trigo.
Mas neste sangrento Verão de 1099 em que al-Harawi veio
anunciar no divã de al-Mustazhir a queda de Jerusalém, essa idade
de ouro já findara há muito. Hárune morreu em 809. Um quarto de
século mais tarde, os seus sucessores perderam todo o poder
efectivo, Bagdad está meio destruída e o império desintegrou-se. Já
só resta esse mito de uma era de unidade, de grandeza e de
prosperidade que povoará para todo o sempre os sonhos dos
Árabes. Os Abássidas ainda reinarão, é bem certo, ao longo de
quatro séculos. Mas já não governarão. Eles não serão mais do que
reféns nas mãos dos seus soldados turcos ou persas, aptos a
entronizar e destronar os soberanos a seu talante, recorrendo as
mais das vezes ao assassínio. E é para escapar a semelhante sorte
que a maioria dos califas renunciará a toda a actividade política.
Enclaustrados nos seus haréns, eles dedicar-se-ão doravante
exclusivamente aos prazeres da existência, fazendo-se poetas ou
músicos, coleccionando belas escravas perfumadas.
O Príncipe dos Crentes, que foi durante muito tempo a
encarnação da glória dos Árabes, tornou-se no símbolo vivo da sua
decadência. E al-Mustazhir, de quem os refugiados de Jerusalém
esperam um milagre, é o lídimo representante desta raça de califas
ociosos. Mesmo que o quisesse, seria perfeitamente incapaz de
voar em socorro da cidade santa, pois o seu exército reduz-se a
uma guarda pessoal de algumas centenas de eunucos negros e
brancos.
Todavia, não são os soldados que faltam em Bagdad. Há
milhares deles, não raro embriagados, que deambulam pelas ruas.
Para se protegerem das suas exacções, os citadinos acostumaram-
se a bloquear todas as noites o acesso a cada um dos bairros por
meio de pesadas barreiras de madeira ou de ferro.
É claro que estes flagelos de uniforme, que condenaram os suks
à ruína devido à sua pilhagem sistemática, não obedecem às ordens
de al-Mustazhir. O seu chefe praticamente não fala árabe. Com
efeito, tal como todas as cidades da Ásia muçulmana, Bagdad caiu
há mais de quarenta anos sob a dependência dos Turcos
Seljúcidas. O homem forte da capital abássida, o jovem sultão
Barkyaruq, um primo de Kilij Arslan, é teoricamente o suserano de
todos os príncipes da região. Porém, na realidade, cada província
do império seljúcida é mais ou menos autónoma, e os membros da
família reinante estão totalmente absorvidos pelas suas querelas
dinásticas.
E quando, em Setembro de 1099, al-Harawi deixa a capital
abássida, ele não conseguiu encontrar-se com Barkyaruq, pois o
sultão anda em campanha, no Norte da Pérsia, contra o seu próprio
irmão Moamed, uma luta em que, aliás, este último levará a melhor,
visto ser Moamed quem, logo em Outubro, se apodera da própria
Bagdad. Contudo, nem mesmo assim termina tão absurdo conflito.
Ele irá inclusivamente tomar, sob o olhar assombrado dos Árabes,
que já nem tentam compreender, uma feição deveras burlesca.
Repare-se: em Janeiro de 1100, Moamed sai de Bagdad à pressa e
Barkyaruq entra na cidade como triunfador. Não por muito tempo,
pois na Primavera ele perde-a de novo, para ali voltar em força em
Abril de 1101, após um ano de ausência, e aniquilar o seu irmão;
nas mesquitas da capital abássida, recomeça-se a proferir o seu
nome no serão das sextas-feiras, mas em Setembro a situação
inverte-se uma vez mais. Derrotado por uma coligação de dois dos
seus irmãos, Barkyaruq parece definitivamente fora de combate. Só
assim pensa quem não o conhece bem: apesar do seu revés, ele
regressa inopinadamente a Bagdad e domina-a por alguns dias,
antes de ser novamente escorraçado em Outubro. Mas ainda desta
feita a sua ausência é breve, pois logo em Dezembro sobrevem um
acordo que lhe restitui a cidade. Esta terá assim mudado oito vezes
de mãos em trinta meses: conheceu um novo senhor a cada cem
dias! Isto enquanto os invasores ocidentais consolidam a sua
presença nos territórios conquistados.
Os sultões não se entendiam, dirá Ibn al-Athir numa bela litotes,
e foi por isso que os Franj puderam apoderar-se do país.
SEGUNDA PARTE

A ocupação (1100-1128)

Todas as vezes que os Franj se apoderam de uma


fortaleza, eles acometem uma outra. O seu poderio irá
continuar a aumentar até ocuparem a Síria inteira e
exilarem os muçulmanos deste país.

FAKHR-EL-MULK IBN AMMAR


Senhor de Trípolis
CAPÍTULO IV

Os Dois Mil Dias de Trípolis

Após tantas derrotas sucessivas, tantas decepções, tantas


humilhações, as três inesperadas notícias que chegam a Damasco
nesse Verão de 1100 suscitam muitas esperanças. Não só entre os
militantes religiosos que rodeiam o cádi al-Harawi, mas também nos
suks, sob as arcadas da rua Direita, onde os mercadores de seda
crua, de brocados dourados, de roupa adamascada ou de móveis
damasquinados, sentados à sombra de videiras de latada, se
interpelam de uma locanda para outra por cima da cabeça dos
passantes, com a voz dos dias fastos.
No início de Julho, um primeiro rumor, em breve confirmado: o
velho Saint-Gilles, que nunca escondeu os seus desígnios a
respeito de Trípolis, de Homs e do conjunto da Síria Central,
embarcou repentinamente para Constantinopla em resultado de um
conflito com os outros chefes francos. Murmura-se que já não
voltará.
Em fins de Julho, advém uma segunda notícia, ainda mais
extraordinária, que se propaga em poucos minutos de mesquita em
mesquita, de ruela em ruela. Na altura em que assediava a cidade
de Acre, Godofredo, senhor de Jerusalém, foi atingido por uma
frecha que o matou, relata Ibn al-Qalanissi. Fala-se igualmente de
frutos envenenados que uma individualidade palestiniana teria
oferecido ao chefe franco. Há quem admita uma morte natural,
causada por uma epidemia. Mas é a versão narrada pelo cronista de
Damasco que tem o favor do público: Godofredo teria caído sob os
golpes dos defensores de Acre. Vinda um ano após a queda de
Jerusalém, não indicará uma tal vitória que os ventos começam a
mudar?
Esta impressão parece comprovada alguns dias mais tarde
quando se sabe que Boemundo, o mais temível dos Franj, acaba de
ser capturado. Foi Danishmend, o Sábio, quem o venceu pelas
armas. Conforme já fizera três anos antes, aquando da batalha de
Niceia, o chefe turco veio cercar a cidade arménia de Malatya. Ao
ouvir tal notícia, diz Ibn al-Qalanissi, Boemundo, rei dos Franj e
senhor de Antioquia, reuniu os seus homens e marchou contra o
exército muçulmano. Empresa temerária, visto que para alcançar a
urbe cercada o chefe franco deve cavalgar durante uma semana
através de um território montanhoso solidamente detido pelos
Turcos. Informado da sua aproximação, Danishmend arma-lhe uma
emboscada. Boemundo e os quinhentos cavaleiros que o
acompanham são acolhidos por uma barragem de frechas que se
abatem sobre eles numa passagem estreita onde não conseguem
espalhar-se. Deus concedeu a vitória aos muçulmanos que mataram
um grande número de Franj. Boemundo e alguns dos seus
companheiros foram capturados. Conduziram-nos, acorrentados,
para Niksar, no Norte da Anatólia.
A eliminação sucessiva de Saint-Gilles, Godofredo e Boemundo,
os três principais obreiros da invasão franca, surge a toda a gente
como um sinal do Céu. Os que estavam descoroçoados pela
aparente invencibilidade dos ocidentais recobram ânimo. Não é
porventura a ocasião ideal para lhes desferir um golpe decisivo? Há
pelo menos um homem que o deseja vivamente. É Dukak.
Ninguém se iluda, pois o jovem rei de Damasco nada tem de um
zeloso defensor do Islão. Acaso não provou amplamente aquando
da batalha de Antioquia que estava pronto a trair os seus para servir
as suas ambições locais? Aliás, só na Primavera de 1100 é que o
seljúcida descobriu subitamente a necessidade de uma guerra santa
contra os infiéis. Um dos seus vassalos, um chefe beduíno do
planalto dos Golan, queixou-se das repetidas incursões dos Franj de
Jerusalém que lhe pilhavam as colheitas e roubavam os rebanhos,
de modo que Dukak resolveu intimidá-los. Num dia de Maio, quando
Godofredo e o seu braço direito Tancredo, um sobrinho de
Boemundo, regressavam com as suas tropas de uma razia
particularmente frutuosa, o exército de Damasco atacou-os.
Ajoujados com os despojos, os Franj foram incapazes de travar
combate. Preferiram fugir, deixando atrás de si vários mortos. O
próprio Tancredo escapou por uma unha negra.
Para se vingar, organizou uma surtida de represália nas próprias
imediações da metrópole síria. Os pomares foram devastados, as
aldeias pilhadas e incendiadas. Apanhado de surpresa pela
envergadura e a rapidez da resposta, Dukak não ousou intervir.
Com a sua habitual versatilidade, já arrependido da sua operação
nos Golan, ele chegou ao ponto de propor a Tancredo pagar-lhe
uma avultada quantia se consentisse em afastar-se. Naturalmente,
tal oferta não fez mais do que reforçar a determinação do príncipe
franco. Considerando, com toda a lógica, que o rei está numa
situação aflitiva, enviou-lhe uma delegação de seis pessoas para o
intimar a converter-se ao cristianismo ou a entregar-lhe Damasco.
Nada mais nada menos! Indignado com tanta arrogância, o seljúcida
ordenou que prendessem os emissários e, gaguejando de cólera,
impôs-lhes, por seu turno, que abraçassem o islamismo. Um deles
aceitou. Aos outros cinco cortou-lhes ali mesmo a cabeça.
Assim que a notícia se propalou, Godofredo veio juntar-se a
Tancredo e, com todos os homens de que dispunham,
empenharam-se ambos, durante dez dias, numa empresa de
destruição sistemática dos arredores da metrópole síria. A rica
planície de Ghuta, que rodeia Damasco como o halo rodeia a Lua,
segundo a expressão de Ibn Jobair, oferecia um espectáculo
desolador. Dukak não bulia. Fechado no seu palácio de Damasco,
aguardava que o furacão passasse. Tanto mais que o seu vassalo
dos Golan rejeitava a sua suserania e doravante era aos senhores
de Jerusalém que pagaria o tributo anual. Mais grave ainda, a
população da metrópole síria começava a queixar-se da
incapacidade dos seus dirigentes para a proteger. Ela amaldiçoava
todos esses soldados turcos que se emproavam como pavões nos
suks, mas desapareciam debaixo de terra assim que o inimigo
surgia às portas da cidade. Dukak já só tinha uma obsessão: vingar-
se, e o mais cedo possível, ao menos para se reabilitar aos olhos
dos seus próprios súbditos.
Não custa imaginar que, nestas condições, a morte de Godofredo
haja causado uma imensa alegria ao seljúcida, que três meses
antes teria ficado quase indiferente à ocorrência. Sobrevinda alguns
dias mais tarde, a captura de Boemundo encoraja-o a empreender
uma acção retumbante.
O ensejo depara-se-lhe em Outubro. Quando Godofredo foi
morto, conta Ibn al-Qalanissi, o seu irmão, o conde Balduíno, senhor
de Edessa, pôs-se a caminho de Jerusalém com quinhentos
cavaleiros e infantes. Ao ser informado da sua passagem, Dukak
reuniu as tropas e marchou contra ele. Encontrou-o perto da praça
costeira de Beirute. Balduíno procura visivelmente assumir a
sucessão de Godofredo. Trata-se de um cavaleiro reputado pela sua
brutalidade e ausência de escrúpulos, como o assassínio dos seus
«pais adoptivos» em Edessa bem demonstrou, mas é também um
guerreiro corajoso e ardiloso cuja presença em Jerusalém
constituiria uma permanente ameaça para Damasco e toda a Síria
muçulmana. Matá-lo ou capturá-lo neste momento crítico é decapitar
de facto o exército invasor e pôr em causa a presença dos Franj no
Oriente. E se a data é bem escolhida, o local do ataque não o é
menos.
Chegando do Norte, ao longo da costa mediterrânica, Balduíno
deve atingir Beirute cerca de 24 de Outubro. Antes disso, tem de
atravessar Nahr-el-Kalb, a antiga fronteira fatímida. Perto da
embocadura do «rio do Cão», a estrada estreita-se, ladeada por
falésias e montes abruptos. O sítio é perfeito para uma emboscada.
Foi justamente aí que Dukak decidiu esperar pelos Franj,
dissimulando os seus homens nas grutas ou sobre os declives
arborizados. Regularmente, os seus batedores inteiram-no da
progressão do inimigo.
Desde a mais remota antiguidade que Nahr-el-Kalb é a ideia fixa
dos conquistadores. Sempre que um deles logra forçar a passagem,
sente-se tão orgulhoso que grava na falésia a narrativa da sua
façanha. Na época de Dukak, já se podem admirar vários destes
vestígios, dos hieróglifos do faraó Ramsés II e dos cuneiformes do
babilónio Nabucodonosor aos louvores latinos que o imperador
romano de origem síria, Septímio Severo, endereçara aos seus
valorosos legionários gauleses. Porém, em face deste punhado de
vencedores, quantos guerreiros viram os seus sonhos desfeitos
contra tais rochedos sem deixar rastro! Para o rei de Damasco, não
há a mais pequena dúvida de que o «maldito Balduíno» irá em
breve juntar-se a esta coorte de vencidos. Dukak tem todas as
razões para estar optimista. As suas tropas são seis ou sete vezes
mais numerosas do que as do chefe franco e, sobretudo, beneficia
do efeito de surpresa. Não vai apenas reparar a afronta que lhe foi
infligida: vai recuperar o seu lugar preponderante entre os príncipes
da Síria e exercer de novo uma autoridade que a irrupção dos Franj
minou.
Se há homem a quem o que se joga na batalha não passou
despercebido, é o novo senhor de Trípolis, o cádi Fakhr el-Mulk, que
sucedeu um ano antes ao seu irmão Jalal el-Mulk. Tendo a sua
cidade sido cobiçada pelo senhor de Damasco antes da chegada
dos ocidentais, não lhe faltam razões para temer a derrota de
Balduíno, pois Dukak quererá então erigir-se em paladino do Islão e
em libertador da terra síria, a quem se terá de reconhecer a
suserania, além de lhe aturar os caprichos.
Para o evitar, Fakhr el-Mulk não se prende com qualquer espécie
de escrúpulos. Ao saber que Balduíno se acerca de Trípolis a
caminho de Beirute e depois de Jerusalém, manda enviar-lhe vinho,
mel, pão, carne, bem como ricas prendas em ouro e prata, e até
mesmo um mensageiro que insiste em falar com ele em privado e
pô-lo ao corrente da emboscada armada por Dukak, fornecendo-lhe
inúmeros pormenores sobre a disposição das tropas de Damasco,
prodigando-lhe conselhos sobre as melhores tácticas a utilizar. O
chefe franco, depois de agradecer ao cádi a sua colaboração tão
preciosa quanto inesperada, retoma o caminho na direcção de Nahr-
el-Kalb.
Não suspeitando de nada, Dukak apresta-se a arremeter contra
os Franj logo que estes se embrenhem na estreita faixa costeira
para onde os seus archeiros fazem pontaria. Realmente, os Franj
aparecem da banda da localidade de Junieh e avançam dando
mostras de uma total despreocupação. Mais alguns passos e serão
apanhados na armadilha. Mas de súbito, ei-los que se imobilizam, e
depois, lentamente, começam a recuar. Nada está ainda dirimido,
mas vendo que o inimigo não caiu na sua ratoeira, Dukak perde as
estribeiras. Instado pelos seus emires, ele acaba por ordenar aos
archeiros que larguem algumas saraivadas de frechas, sem ousar
não obstante lançar os seus ginetes contra os Franj. Ao anoitecer, o
moral das tropas muçulmanas está muito em baixo. Árabes e Turcos
acusam-se mutuamente de cobardia. Rebentam algumas rixas. No
dia seguinte de manhã, após uma breve escaramuça, as tropas de
Damasco refluem para a montanha libanesa, enquanto os Franj
continuam tranquilamente a percorrer a rota da Palestina.
Deliberadamente, o cádi de Trípolis optou por salvar Balduíno,
julgando que a principal ameaça contra a sua cidade vem de Dukak,
o qual agira tal e qual assim para com Karbuka dois anos antes.
Tanto a um como a outro, a presença franca afigurou-se, no
momento decisivo, um mal menor. Mas o mal não tardará a alastrar.
Três semanas após a emboscada falhada de Nahr-el-Kalb, Balduíno
proclama-se rei de Jerusalém e lança-se numa dupla empresa de
organização e de conquista a fim de consolidar os frutos da invasão.
Ao tentar, perto de um século depois, entender o que impeliu os
Franj a vir ao Oriente, Ibn al-Athir atribuirá a iniciativa do movimento
ao rei Balduíno, «al-Bardawil», que ele considerava de algum modo
o chefe do Ocidente. Não laborava em erro, pois se este cavaleiro
não passou de um dos muitos responsáveis da invasão, o
historiador de Mossul tem razão ao apontá-lo como o principal fautor
da ocupação. Frente à irremediável fragmentação do mundo árabe,
os Estados francos vão aparecer desde logo, pela sua
determinação, pelas suas qualidades guerreiras e relativa
solidariedade, como uma autêntica potência regional.
Os muçulmanos dispõem no entanto de um trunfo de monta: a
extrema inferioridade numérica dos seus inimigos. A seguir à queda
de Jerusalém, a maioria dos Franj regressou aos seus países.
Balduíno só pode contar, na altura em que sobe ao trono, com
algumas centenas de cavaleiros. Mas esta aparente fraqueza
desvanece-se a partir do instante em que se sabe, na Primavera de
1101, que novos exércitos francos, muito mais numerosos do que os
que até então surgiram, se concentraram em Constantinopla.
Os primeiros a alarmar-se são obviamente Kilij Arslan e
Danishmend, que ainda se recordam da última passagem dos Franj
pela Ásia Menor. Sem hesitar, decidem unificar as suas forças para
diligenciar barrar o caminho à nova invasão. Os Turcos já não
ousam aventurar-se para os lados de Niceia ou de Dorileu,
doravante ferreamente ocupadas pelos Rum. Preferem tentar uma
nova emboscada muito mais longe, no Sudeste da Anatólia. Kilij
Arslan, que ganhou em idade e em experiência, manda envenenar
todos os cursos de água ao longo da rota seguida pela precedente
expedição.
Em Maio de 1101, o sultão é informado de que cerca de cem mil
homens transpuseram o Bósforo, comandados por Saint-Gilles, que
permanecia desde há um ano em Bizâncio. Ele procura acompanhar
os seus movimentos passo a passo para saber em que momento
deve surpreendê-los. A sua primeira etapa seria, em princípio,
Niceia. Mas, curiosamente, os batedores postados junto da antiga
capital do sultão não os vêem aparecer. Das bandas do mar de
Mármara, e até mesmo em Constantinopla, não há notícias suas.
Kilij Arslan só encontra o seu rastro em fins de Junho, quando eles
irrompem de súbito sob os muros de uma cidade que lhe pertence,
Ancara, situada no centro da Anatólia, em pleno território turco e
cujo ataque ele não previra em momento algum. Ainda antes de ter
tempo de chegar, já os Franj a conquistaram. Kilij Arslan tem a
impressão de voltar quatro anos atrás, à época da queda de Niceia.
Mas não é o momento azado para as lamentações, pois os
ocidentais ameaçam agora o próprio coração do seu domínio.
Decide armar-lhes uma emboscada assim que saírem de Ancara
para prosseguir na rota do sul. Porém, uma vez mais, não é a
atitude certa: os invasores, virando as costas à Síria, marcham
resolutamente para nordeste, na direcção de Niksar, a poderosa
cidadela onde Danishmend retém Boemundo. É então isso! Os Franj
pretendem libertar o senhor de Antioquia!
O sultão e o seu aliado só agora começam a compreender, ainda
mal acreditando, o curioso itinerário dos invasores. De certo modo,
sentem-se tranquilizados, pois podem a partir daqui escolher o local
da emboscada. Será a aldeia de Merzifun, que os ocidentais
alcançarão nos primeiros dias de Agosto, entontecidos por um sol
de chumbo. O exército deles não é nada impressionante. Algumas
centenas de cavaleiros que avançam pesadamente, vergados por
armaduras abrasadoras, e, mais atrás, uma multidão variegada que
inclui mais mulheres e crianças do que autênticos combatentes.
Assim que é lançada a primeira vaga de ginetes turcos, os Franj
retrocedem. Não é uma batalha, mas uma chacina, que continua
durante todo o dia. Ao anoitecer, Saint-Gilles foge com os seus
acompanhantes sem sequer avisar o grosso do exército. No dia
seguinte, os últimos sobreviventes são suprimidos. Capturam-se
milhares de mulheres novas que irão abastecer os haréns da Ásia.
Mal terminou o massacre de Merzifun quando alguns
mensageiros vêm alertar Kilij Arslan: uma nova expedição franca já
avança através da Ásia Menor. Desta vez, o itinerário não encerra a
mínima surpresa. Os guerreiros da cruz enveredaram no sentido do
sul, e é ao cabo de vários dias de marcha que eles se apercebem
de que a água à beira do caminho está inquinada. Em fins de
Agosto, no momento em que o sultão chega do nordeste com os
seus ginetes, já os Franj agonizam torturados pela sede. São
dizimados sem opor qualquer resistência.
Mas ainda não acabou. Uma terceira expedição franca segue-se
à segunda, pela mesma estrada, com uma semana de intervalo.
Cavaleiros, infantes, mulheres e crianças chegam completamente
desidratados junto da cidade de Heracleia. Já avistam a cintilação
de um ribeiro, para o qual se precipitam todos, em tropel. Mas é
precisamente na margem deste curso de água que Kilij Arslan os
espera…
Nunca os Franj se recomporão deste triplo massacre. Com a
vontade de expansão que os anima nesses anos decisivos, o
contributo de um tão grande número de recém-chegados,
combatentes ou não, ter-lhes-ia permitido sem dúvida colonizar o
conjunto do Oriente árabe antes de este dispor de tempo para
recuperar. E, no entanto, é afinal esta penúria de homens que dará
origem à mais duradoura e espectacular obra dos Franj em terra
árabe: a construção dos castelos fortificados. De facto, é para
atenuar a fraqueza dos seus efectivos que eles deverão construir
fortalezas, tão bem protegidas que um punhado de defensores
poderá pôr em xeque uma turba de assediantes. Mas, para superar
a desvantagem do número, os Franj vão tirar partido, durante longos
anos, de uma arma ainda mais temível que as suas fortalezas: o
torpor do mundo árabe. Nada ilustra melhor tal estado de coisas do
que a descrição que Ibn al-Athir fará da formidável batalha que se
desenrola diante de Trípolis no início de Abril de 1102.

Saint-Gilles, que Deus o amaldiçoe, voltou à Síria depois de


ter sido esmagado por Kilij Arslan. Já não dispunha senão de
trezentos homens. Então, Fakhr el-Mulk, senhor de Trípolis,
mandou dizer ao rei Dukak e ao governador de Homs: «É agora
ou nunca a altura de acabar com Saint-Gilles, visto ele ter tão
poucas tropas!» Dukak enviou dois mil homens, e o governador
de Homs veio em pessoa. As tropas de Trípolis juntaram-se-lhe à
frente das portas da cidade e todos eles se uniram para dar
batalha a Saint-Gilles. Este lançou cem dos seus soldados
contra a gente de Trípolis, cem contra a de Damasco, cinquenta
contra a de Homs e conservou cinquenta consigo. Só de verem o
inimigo, os homens de Homs desataram a fugir, em breve
seguidos pelos Damasquinos. Só os Tripolitanos fizeram frente,
mas, vendo isto, Saint-Gilles atacou-os com os seus outros
duzentos soldados, venceu-os e matou sete mil deles.

Trezentos Franj que triunfam de vários milhares de muçulmanos?


Tudo leva a crer que a narrativa do historiador árabe está conforme
com a realidade. A explicação mais provável é que Dukak quis fazer
pagar ao cádi de Trípolis o comportamento que ele tivera no
momento da emboscada de Nahr-el-Kalb. A traição de Fakhr el-Mulk
impedira a eliminação do fundador do reino de Jerusalém; a
desforra do rei de Damasco vai permitir a criação de um quarto
Estado franco: o condado de Trípolis.
Seis semanas após esta derrota humilhante, assiste-se a uma
nova demonstração da incúria dos dirigentes da região que, a
despeito da superioridade do número, se revelam incapazes de
explorar a vitória quando estão a vencer.
A cena passa-se em Maio de 1102. Um exército egípcio de perto
de vinte mil homens, comandado por Charaf, filho do vizir al-Afdal,
chegou à Palestina e logrou surpreender as tropas de Balduíno em
Ramleh, próximo do porto de Jafa. O próprio rei só escapou à
captura escondendo-se de bruços no meio dos juncos. A maioria
dos seus cavaleiros foi morta ou aprisionada. Nesse dia, o exército
do Cairo está perfeitamente em condições de se apoderar de
Jerusalém, pois, como dirá Ibn al-Athir, a urbe acha-se sem
defensores e o rei franco anda fugido.

Alguns dos homens de Charaf disseram-lhe: «Vamos tomar a


cidade santa!» Outros disseram-lhe: «Tomemos antes Jafa!»
Charaf não conseguiu decidir-se. Enquanto ia assim hesitando,
os Franj receberam reforços por mar, e Charaf teve de voltar
para junto do seu pai no Egipto.

Vendo que só por pouco não alcançara a vitória, o senhor do


Cairo resolve lançar uma nova ofensiva no ano seguinte, e depois
no outro. Porém, a cada tentativa, um acontecimento imprevisto vem
interpor-se entre ele e a vitória. Uma vez é a esquadra egípcia que
alterca com o exército de terra. Outra vez é o comandante da
expedição que se mata acidentalmente, semeando o seu finamento
a confusão no seio das suas tropas. Era um general corajoso, mas,
diz-nos Ibn al-Athir, extremamente supersticioso. Tinham-lhe predito
que iria morrer de uma queda de cavalo, e, quando fora nomeado
governador de Beirute, ordenara que arrancassem todo o lajedo das
ruas por recear que a sua montada escorregasse. Mas a prudência
não o premuniu contra o destino. Durante a batalha, o seu cavalo
empina-se sem ter sido atacado, e o general cai morto no meio das
suas tropas. Por falta de sorte, por falta de imaginação ou por falta
de coragem, as sucessivas expedições de al-Afdal terminam todas
lamentavelmente.
Entretanto, os Franj prosseguem sossegadamente a conquista
da Palestina.
Depois de terem tomado Haija e Jafa, atacam, em Maio de 1104,
o porto de Acre, que, em virtude do seu ancoradouro natural, é o
único sítio onde os barcos podem acostar tanto de Verão como de
Inverno. Já sem esperança de receber auxílio, o governador egípcio
mandou pedir que poupassem a sua vida e a dos habitantes da
urbe, diz Ibn al-Qalanissi. Balduíno promete-lhes que não serão
inquietados. Mas assim que os muçulmanos saem da cidade
trazendo os seus bens, os Franj atiram-se a eles, despojam-nos e
matam-nos em grande número. Al-Afdal jura vingar-se desta nova
humilhação.
Ele enviará todos os anos um poderoso exército ao assalto dos
Franj, mas isto redundará todas as vezes num novo desastre. O
ensejo perdido em Ramleb no mês de Maio de 1102 não tornará a
apresentar-se.

Também no Norte, é a incúria dos emires muçulmanos que salva


os Franj do aniquilamento. Após a captura de Boemundo em Agosto
de 1100, o principado que ele fundou em Antioquia fica sete meses
sem chefe, praticamente sem exército, mas nenhum dos monarcas
vizinhos, nem Redwan, nem Kilij Arslan, nem Danishmend, pensa
em aproveitar-se disto. Eles dão tempo aos Franj de escolher um
regente para Antioquia, na ocorrência Tancredo, o sobrinho de
Boemundo, que toma posse do seu feudo em Março de 1102 e que,
para afirmar bem a sua presença, vai assolar os arredores de Alepo,
tal como um ano antes os de Damasco. Redwan reage ainda mais
pusilanimemente do que seu irmão Dukak. Ele faz saber a Tancredo
que está disposto a satisfazer todos os seus caprichos se consentir
em afastar-se. Mais arrogante que nunca, o franj exige Alepo.
Redwan aquiesce. Uma humilhação que, conforme veremos, terá
consequências!
Na Primavera de 1103, Danishmend, que nada ignora das
ambições de Boemundo, decide no entanto soltá-lo sem qualquer
contrapartida política. «Ele exigiu-lhe cem mil dinares de resgate e a
libertação da filha de Yaghi Syian, o antigo senhor de Antioquia, que
estava cativa.» Ibn al-Athir sente-se escandalizado.

Saído da prisão, Boemundo regressa a Antioquia, restituindo


assim a coragem ao seu povo, e não tarda a fazer pagar o preço
do seu resgate aos habitantes das cidades vizinhas. Os
muçulmanos sofreram deste modo um prejuízo que os levou a
esquecer os benefícios da captura de Boemundo!

Depois de se ter assim feito «reembolsar» à custa da população


local, o príncipe franco planeia alargar o seu senhorio. Na Primavera
de 1104, é empreendida uma operação comum dos Franj de
Antioquia e de Edessa contra a praça-forte de Harran, a qual
domina a vasta planície que se estende à beira do Eufrates e
controla de facto as comunicações entre o Iraque e o Norte da Síria.
A cidade em si não tem grande interesse. Ibn Jobair, que a
visitará alguns anos mais tarde, descrevê-la-á em termos
particularmente desanimadores.

Em Harran, a água não sabe o que é a frescura, e o intenso


calor da sua fornalha queima sem descanso o seu território. Não
se encontra aí uma simples nesga de sombra para fazer a sesta;
tão-somente se respira um bafo sufocante. Harran dá a
impressão de ter sido abandonada na planície nua. Não tem o
brilho de uma urbe e nenhuns ornamentos elegantes enfeitam as
suas imediações.

Mas o seu valor estratégico é apreciável. Depois de conquistada


Harran, os Franj poderiam avançar futuramente na direcção de
Mossul e da própria Bagdad. No imediato, a sua queda condenaria o
reino de Alepo ao cerco. Objectivos ambiciosos, é bem verdade,
mas os invasores não carecem de audácia. Tanto mais que as
divisões do mundo árabe encorajam as suas empresas. A luta
sangrenta entre os irmãos inimigos Barkyaruq e Moamed reatou-se
com mais intensidade, de modo que Bagdad passa novamente de
um sultão seljúcida para o outro. Em Mossul, o atabaque Karbuka
acaba de morrer e o seu sucessor, o emir turco Jekermich, não
consegue impor-se.
Na própria Harran, a situação é caótica. O governador foi
assassinado por um dos seus oficiais no decurso de um beberete, e
a cidade está a ferro e fogo. Foi neste momento que os Franj
marcharam sobre Harran, explicará Ibn al-Athir. Quando Jekermich,
o novo senhor de Mossul, e o seu vizinho Sokman, antigo
governador de Jerusalém, tomam conhecimento de tal facto, estão
em guerra um contra o outro.

Sokman queria vingar um dos seus sobrinhos, morto por


Jekermich, e ambos se preparavam para se defrontar. Mas
perante este novo dado, propuseram-se unir as suas forças para
salvar a situação em Harran, dizendo-se os dois prontos a
oferecer a sua vida a Deus e a não buscar senão a glória do
Altíssimo. Reuniram-se, selaram a sua aliança e puseram-se em
marcha contra os Franj. Sokman com sete mil ginetes
turcomanos e Jekermich com três mil.
É nas margens do rio Balikh, um afluente do Eufrates, que os
dois aliados encontram o inimigo em Maio de 1104. Os muçulmanos
fingem fugir, deixando os Franj persegui-los durante mais de uma
hora. Depois, a um sinal dos seus emires, dão meia volta, cercam
os perseguidores e desbaratam-nos.

Boemundo e Tancredo tinham-se separado do grosso das


tropas e escondido atrás de uma colina para apanhar os
muçulmanos pela retaguarda. Mas, quando viram que os seus
estavam vencidos, decidiram já não se mexer dali. Esperaram
então pela noite e escapuliram-se, perseguidos pelos
muçulmanos, que mataram um bom número dos seus
companheiros. Só se salvaram eles próprios e mais seis
cavaleiros.

Entre os chefes francos que participam na batalha de Harran,


conta-se Balduíno II, um primo do rei de Jerusalém que lhe sucedeu
na chefia do condado de Edessa. Também ele tentou fugir, mas, ao
atravessar o Balikh a vau, o seu cavalo atolou-se na lama. Os
soldados de Sokman fazem-no prisioneiro e conduzem-no à tenda
do seu senhor, o que suscita, segundo o relato de Ibn al-Athir, a
inveja dos aliados dele.

Os homens de Jekermich disseram-lhe: «Que figura faremos


se os outros ficarem com os despojos todos e nós de mãos a
abanar?» E persuadiram-no a ir buscar o conde à tenda de
Sokman. Quando este voltou, foi grande a sua contrariedade. Já
os seus companheiros tinham subido para as selas, prontos a
combater, mas ele reteve-os, dizendo: «Não convém que a
alegria que a nossa vitória suscitará entre os muçulmanos seja
estragada pela nossa disputa. Não quero satisfazer a minha
cólera enchendo o inimigo de regozijo em detrimento dos
muçulmanos.» Reuniu então todas as armas e os estandartes
arrebatados aos Franj, vestiu os seus homens com as vestes
deles, fê-los montar os cavalos deles, em seguida dirigiu-se para
as fortalezas ocupadas pelos Franj. Estes julgavam sempre ver
regressar os seus companheiros vitoriosos e saíam ao seu
encontro. Sokman massacrava-os e tomava a fortaleza. Repetiu
o mesmo estratagema em vários sítios.

A repercussão da vitória de Harran será enorme, conforme nos


dá testemunho o tom inabitualmente entusiasta de Ibn al-Qalanissi:

Foi para os muçulmanos um triunfo sem igual. O moral dos


Franj ficou muito abalado, o seu número diminuiu, a sua
capacidade ofensiva enfraqueceu, bem como o seu armamento.
O moral dos muçulmanos foi robustecido, o seu ardor na defesa
da religião reforçou-se. As pessoas congratularam-se com esta
vitória e adquiriram a certeza de que a sorte abandonara os
Franj.

Um franj, e não dos menos importantes, ficará efectivamente


desmoralizado com a sua derrota: é Boemundo. Alguns meses mais
tarde, embarca num navio. Nunca mais ninguém o verá em terra
árabe.
A batalha de Harran afastou assim do palco, desta feita a valer, o
principal artífice da invasão. Sobretudo, e é o que mais interessa,
ela atalhou para sempre a arremetida dos Franj na direcção do
leste. Porém, tal como os Egípcios em 1102, os vencedores
revelam-se incapazes de colher os frutos do seu êxito. Em lugar de
se encaminharem juntos para Edessa, a dois dias de marcha do
campo de batalha, eles separam-se a seguir à sua disputa. E se a
manha de Sokman lhe permite apossar-se de algumas fortalezas
sem grande relevância, Jekermich, esse, em breve se deixa
surpreender por Tancredo, que consegue capturar várias pessoas
da sua comitiva, entre as quais uma jovem princesa de rara beleza
por quem o senhor de Mossul tem tanta afeição que manda dizer a
Boemundo e Tancredo que está pronto a trocá-la por Balduíno II de
Edessa ou a resgatá-la pelo preço de quinze mil dinares em ouro.
Tio e sobrinho consultam-se, depois informam Jekermich que,
pensando bem, preferem receber o dinheiro e deixar o seu
companheiro no cativeiro – o qual durará mais de três anos. Ignora-
se o sentimento do emir após esta resposta pouco cavalheiresca
dos chefes francos. Quanto a ele, pagar-lhes-á a soma combinada,
recuperará a sua princesa, e conservará Balduíno consigo.
Mas o caso não fica por aqui. Ele irá dar lugar a um dos
episódios mais curiosos das guerras francas.
A cena desenrola-se quatro anos mais tarde, no início do mês de
Outubro de 1108, num campo de ameixoeiras, onde os últimos
frutos negros acabam de amadurecer. A toda a volta, colinas pouco
arborizadas que se sobrepõem até ao infinito. Numa delas elevam-
se, majestosas, as muralhas de Tell Bacher, perto das quais os dois
exércitos que estão frente a frente oferecem um espectáculo pouco
vulgar.
De um lado, Tancredo de Antioquia, rodeado de mil e quinhentos
cavaleiros e infantes francos, ostentando elmos que lhes cobrem a
cabeça e o nariz e empunhando firmemente espadas, clavas ou
machados aguçados. Ao pé deles, aprumam-se seiscentos ginetes
turcos de compridas tranças, enviados por Redwan de Alepo.
Do outro lado, o emir de Mossul, Jawali, com a cota de malha
coberta por uma comprida túnica de mangas bordadas, cujo exército
engloba dois mil homens repartidos por três batalhões: à esquerda,
árabes, à direita, turcos, e, no centro, cavaleiros francos, entre os
quais Balduíno, de Edessa, e o seu primo Jocelin, senhor de Tell
Bacher.
Os que haviam participado na gigantesca batalha de Antioquia
podiam acaso imaginar que, dez anos mais tarde, um governador de
Mossul, sucessor do atabaque Karbuka, firmaria uma aliança com
um conde franco de Edessa e que ambos lutariam lado a lado
contra uma coligação formada por um príncipe franco de Antioquia e
o rei seljúcida de Alepo? Decididamente, não fora preciso esperar
muito tempo para ver os Franj tornarem-se parceiros incondicionais
do jogo de pimpampum dos reizetes muçulmanos! Os cronistas não
parecem de modo algum escandalizados. Poder-se-ia, quando
muito, descortinar em Ibn al-Athir um pequeno sorriso divertido, mas
ele evocará as querelas dos Franj e as suas alianças sem mudar de
tom, exactamente como fala ao longo da sua História Perfeita dos
inúmeros conflitos entre os príncipes muçulmanos. Enquanto
Balduíno estava prisioneiro em Mossul, explica o historiador árabe,
Tancredo deitara a mão a Edessa, o que deixa entender que ele não
tinha a mínima pressa de ver o seu companheiro recobrar a
liberdade. Chegara mesmo a intrigar para que Jekermich o
conservasse junto de si o mais tempo possível.
Todavia, em 1107, tendo este emir sido derrubado, o conde caiu
nas mãos do novo senhor de Mossul, Jawali, um aventureiro turco
de notável inteligência, que compreendeu sem demora o partido que
poderia tirar da disputa dos dois chefes francos. Libertou então
Balduíno, ofereceu-lhe vestes de honra e concluiu uma aliança com
ele. «O vosso feudo de Edessa está ameaçado», disse-lhe em
substância, «e a minha posição em Mossul não é muito segura.
Ajudemo-nos mutuamente.»

Logo que o libertaram, contará Ibn al-Athir, o conde Balduíno,


«al-Comes Bardawil», foi falar com «Tancry» em Antioquia e
pediu-lhe que lhe devolvesse Edessa. Tancredo ofereceu-lhe
trinta mil dinares, cavalos, armas, roupas e muitas outras coisas,
mas recusou entregar-lhe a cidade. E quando Balduíno, furioso,
deixou Antioquia, Tancredo tentou segui-lo para o impedir de se
juntar ao seu aliado Jawali. Houve alguns recontros entre eles,
mas, após cada combate, reuniam-se para comer juntos e
conversar!

São loucos, estes Franj, parece dizer o historiador de Mossul. E


continua:

Como não conseguiam resolver esse problema, tentou-se


uma mediação através do patriarca, que é para eles uma
espécie de imã. Este nomeou uma comissão de bispos e de
padres que atestaram que Boemundo, tio de Tancredo, antes de
regressar ao seu país, lhe recomendara que restituísse Edessa a
Balduíno se ele voltasse do cativeiro. O senhor de Antioquia
aceitou a arbitragem e o conde retomou posse do seu domínio.

Considerando que a sua vitória se devia menos à boa vontade de


Tancredo do que ao medo que este tinha de uma intervenção de
Jawali, Balduíno libertou sem tardança todos os prisioneiros
muçulmanos do seu território, indo mesmo ao ponto de executar um
dos seus funcionários cristãos que injuriara publicamente o
islamismo.
Tancredo não era o único dirigente a exasperar-se com a
esquisita aliança entre o conde e o emir. O rei Redwan escreveu ao
senhor de Antioquia a fim de o pôr de sobreaviso contra as
ambições e a perfídia de Jawali. Disse-lhe que este emir queria
apoderar-se de Alepo e que, se fosse bem sucedido, os Franj já não
poderiam manter-se na Síria. O apego do rei seljúcida à segurança
dos Franj é bastante cómico, mas os príncipes compreendem-se
uns aos outros por meias palavras, para além das barreiras
religiosas ou culturais. Formara-se por conseguinte uma nova
coligação islamo-franca para fazer face à primeira. Daí o facto de
estes dois exércitos estarem frente a frente junto às muralhas de Tell
Bacher no mês de Outubro de 1108.
Os homens de Antioquia e de Alepo levam rapidamente a melhor.
Jawali fugiu, e muitos muçulmanos procuraram refúgio em Tell
Bacher, onde Balduíno e o seu primo Jocelin os trataram com
benevolência; cuidaram dos feridos, deram-lhes roupas e
reconduziram-nos a suas casas. A homenagem prestada pelo
historiador árabe ao espírito cavalheiresco de Balduíno contrasta
com a opinião que os habitantes cristãos de Edessa têm do conde.
Ao saberem que este fora vencido, e julgando-o sem dúvida morto,
os arménios da cidade pensam ter chegado realmente o momento
de se libertarem da dominação franca. De tal modo que, ao
regressar, Balduíno encontra a sua capital administrada por uma
espécie de comuna. Inquieto com as veleidades de independência
dos seus súbditos, manda prender as principais individualidades,
entre as quais vários sacerdotes, e ordena que lhes vazem os olhos.
O seu aliado Jawali bem gostaria de agir da mesma maneira com
os notáveis de Mossul, que também se aproveitaram da ausência
dele para se revoltar. Deve no entanto renunciar a isso, pois a
derrota acabou de o desacreditar. A sua sorte é doravante pouco
invejável: perdeu o seu feudo, o seu exército, o seu tesouro, e o
sultão Moamed pôs a sua cabeça a prémio. Mas Jawali não se
declara vencido. Disfarça-se de mercador, chega ao palácio de
Ispaão e vai de súbito curvar-se humildemente diante do trono do
sultão levando a sua mortalha na mão. Comovido, Moamed
consente em perdoar-lhe. Algum tempo depois, nomeia-o
governador de uma província na Pérsia.
Quanto a Tancredo, a vitória de 1108 levou-o ao apogeu da sua
glória. O principado de Antioquia tornou-se numa potência regional
que todos os seus vizinhos temem, sejam eles turcos, árabes,
arménios ou francos. O rei Redwan já não é mais do que um
vassalo aterrorizado. O sobrinho de Boemundo faz-se intitular «o
grande emir»!
Escassas semanas após a batalha de Tell Bacher, que consagra
a presença dos Franj no Norte da Síria, é a vez de o reino de
Damasco assinar um armistício com Jerusalém: os rendimentos dos
terrenos agrícolas situados entre as duas capitais serão divididos
em três partes, um terço para os Turcos, um terço para os Franj, um
terço para os camponeses, anota Ibn al-Qalanissi. Foi redigido um
protocolo nesta base. Alguns meses mais tarde, a metrópole síria
reconhece, mediante um novo tratado, a perda de uma zona ainda
mais importante: a rica planície de Bekaa, localizada a leste do
monte Líbano, é por seu turno partilhada com o reino de Jerusalém.
No fundo, os Damasquinos são pura e simplesmente reduzidos à
impotência. As suas colheitas estão à mercê dos Franj, e o seu
comércio transita pelo porto de Acre, onde os mercadores
genoveses impõem doravante a lei. No Sul da Síria, tal como no
Norte, a ocupação franca é uma realidade quotidiana.
Mas os Franj não se contentam com isto. Em 1108, estão em
vésperas do mais vasto movimento de expansão territorial que
empreenderam desde a queda de Jerusalém. Todas as grandes
cidades da costa se sentem ameaçadas, e os potentados locais já
não têm força nem vontade para se defender.

A primeira presa visada é Trípolis. Saint-Gilles instalou-se desde


1103 nas imediações da cidade e mandou edificar uma fortaleza à
qual os citadinos deram logo o seu nome. Bem conservada, «Qalaat
Saint-Gilles» ainda é visível no século XX, ao centro da cidade
moderna de Trípolis. À chegada dos Franj, contudo, a urbe limita-se
ao bairro do porto, al-Mina, na ponta de uma península cujo acesso
é controlado por essa famosa fortaleza. Nenhuma caravana pode
alcançar Trípolis ou de lá sair sem ser interceptada pelos homens de
Saint-Gilles.
O cádi Fakhr el-Mulk quer a todo o transe destruir a cidadela que
ameaça asfixiar a sua capital. Todas as noites, os seus soldados
tentam golpes de mão audaciosos para apunhalar um guarda ou
danificar um muro em construção, mas é em Setembro de 1104 que
ocorre a operação mais espectacular. Toda a guarnição de Trípolis,
sob a chefia do cádi, efectua uma surtida em massa na sequência
da qual vários guerreiros francos são massacrados e uma ala da
fortaleza é incendiada. O próprio Saint-Gilles é surpreendido em
cima de um dos telhados em chamas. Gravemente queimado, morre
cinco meses mais tarde, no meio de atrozes sofrimentos. Durante a
sua agonia, pede para falar com emissários de Fakhr el-Mulk e
propõe-lhes um ajuste: os Tripolitanos cessariam de atacar a
cidadela, e, em paga, o chefe franco comprometer-se-ia a nunca
mais estorvar o tráfego dos viandantes e das mercadorias. O cádi
aceita.
Estranho acordo! Pois não é a verdadeira finalidade de um cerco
precisamente impedir a circulação de homens e víveres? E, no
entanto, tem-se a impressão de que se estabeleceram relações
quase normais entre sitiantes e sitiados. De repente, o porto de
Trípolis regista um acréscimo de actividade, as caravanas vão e
vêm depois de terem pago uma taxa aos Franj, e os notáveis
tripolitanos atravessam as linhas inimigas munidos de um salvo-
conduto! Na realidade, os dois beligerantes aguardam. Os Franj
esperam a vinda de uma frota cristã, de Génova ou de
Constantinopla, que lhes permita dar assalto à cidade cercada. Os
Tripolitanos, que estão longe de o ignorar, esperam igualmente que
um exército muçulmano venha em seu auxílio. O apoio mais eficaz
deveria vir do Egipto. O califado fatímida é uma grande potência
marítima, cuja intervenção bastaria para desencorajar os Franj. Mas,
uma vez mais, entre o senhor de Trípolis e o do Cairo as relações
são deploráveis. O pai de al-Afdal foi escravo na família do cádi e
parece que manteve uma convivência muito má com os seus amos.
O vizir nunca escondeu o seu rancor nem o seu desejo de humilhar
Fakhr, que, por seu lado, preferiria abandonar a sua cidade em vez
de entregar a sua sorte nas mãos de al-Afdal. Tão-pouco na Síria o
cádi pode contar com qualquer aliado. Assim, precisa de procurar
socorro noutro sítio.
Quando lhe chegam as notícias da vitória de Harran, em Junho
de 1104, ele envia então uma mensagem urgente ao emir Sokman
para lhe permitir que remate o seu triunfo afastando os Franj de
Trípolis. Em abono do seu pedido, oferece-lhe uma grande
quantidade de ouro e compromete-se a cobrir todas as despesas da
expedição. O vencedor de Harran sente-se tentado. Reunindo um
poderoso exército, dirige-se para a Síria. Porém, chegado a menos
de quatro dias de marcha de Trípolis, um ataque de angina de peito
fulmina-o. As suas tropas dispersam-se. O moral do cádi e dos seus
súbditos vai abaixo.
Em 1105, no entanto, surge um vislumbre de esperança. O sultão
Barkyaruq acaba de morrer de tuberculose, o que põe cobro à
interminável guerra fratricida que paralisa o Império Seljúcida desde
o início da invasão franca. Doravante, o Iraque, a Síria e a Pérsia
Ocidental já não deverão ter senão um único senhor, «o sultão
salvador do mundo e da religião, Moamed Ibn Malikshah». O título
usado por este monarca seljúcida de vinte e quatro anos é tomado à
letra pelos Tripolitanos. Fakhr el-Mulk envia ao sultão mensagem
atrás de mensagem, recebendo promessa atrás de promessa. Mas
nenhum exército de auxílio dá sinal de vida.
Entretanto, o bloqueio da cidade intensifica-se. Saint-Gilles foi
substituído por um dos seus primos, «al-Cerdani», o conde da
Cerdanha, que acentua a sua pressão sobre os sitiados. Os víveres
chegam cada vez mais dificilmente por via terrestre. Os preços dos
géneros alimentícios sobem a um ritmo vertiginoso: uma libra de
tâmaras é vendida a um dinar de ouro, uma moeda que assegura
habitualmente a subsistência de uma família inteira durante várias
semanas. Muitos citadinos procuram emigrar para Tiro, Homs ou
Damasco. A penúria provoca traições. Alguns notáveis tripolitanos
vão certo dia falar com al-Cerdani e, para obterem os seus favores,
indicam-lhe os meios pelos quais a cidade ainda logra arranjar
determinadas provisões. Fakhr el-Mulk oferece então ao seu
adversário uma soma fabulosa para ele lhe entregar os traidores.
Mas o conde recusa. E, no dia seguinte de manhã, os notáveis
aparecem degolados no próprio acampamento inimigo.

Apesar desta façanha, a situação de Trípolis continua a


deteriorar-se. Os socorros nunca mais chegam, e circulam rumores
persistentes sobre a aproximação de uma esquadra franca. Em
desespero de causa, Fakhr el-Mulk decide ir em pessoa advogar a
sua causa a Bagdad junto do sultão Moamed e do califa al-
Mustazhir-billah. Na sua ausência, um dos seus sobrinhos é
encarregado de assegurar a interinidade do governo, e as suas
tropas recebem seis meses de soldo adiantado. Ele aprontou uma
importante escolta de quinhentos cavaleiros e infantes, com
numerosos servidores que transportam prendas de todas as
espécies: espadas cinzeladas, puros-sangues, trajes de honra
bordados, bem como objectos de ourivesaria, a especialidade de
Trípolis. É portanto por volta de finais de Março de 1108 que ele
deixa a cidade com o seu longo cortejo. Saiu de Trípolis por via
terrestre, esclarece sem ambiguidade Ibn al-Qalanissi, o único
cronista que viveu estes acontecimentos, levando a supor que o
cádi teria obtido dos Franj autorização para passar através das suas
linhas a fim de ir pregar a guerra santa contra eles! Dadas as
curiosas relações existentes entre sitiantes e sitiados, não o
podemos excluir. Mas afigura-se mais plausível que o cádi tenha
atingido Beirute de barco, só depois enveredando pela estrada.
Seja como for, Fakhr el-Mulk detém-se primeiro em Damasco. O
senhor de Trípolis tinha uma acentuada aversão a Dukak, mas o
inepto rei seljúcida morreu, sem dúvida envenenado, algum tempo
antes, e a urbe está doravante nas mãos do seu tutor, o atabaque
Toghtekin, um antigo escravo coxo cujas relações ambíguas com os
Franj irão dominar a cena política síria durante mais de vinte anos.
Ambicioso, astuto, sem escrúpulos, este militar turco é, tal como o
próprio Fakhr el-Mulk, um homem maduro e realista. Rompendo
com as atitudes vingativas de Dukak, ele acolhe calorosamente o
senhor de Trípolis, organiza um grande banquete em sua honra e
convida-o mesmo para o seu hammam particular. O cádi aprecia
estas atenções, mas prefere alojar-se fora de muros – a confiança
tem limites!

Em Bagdad, a recepção é ainda mais sumptuosa. O cádi é


tratado como um poderoso monarca, de tal modo é grande o
prestígio de Trípolis no mundo muçulmano. É a sua própria barca
que o sultão lhe envia para o fazer atravessar o Tigre. Os
responsáveis pelo protocolo conduzem o senhor de Trípolis até um
salão flutuante na extremidade do qual foi colocado um grande
coxim bordado onde se senta habitualmente o sultão. Fakhr el-Mulk
instalou-se ao lado, no lugar dos visitantes, mas os dignitários
precipitam-se e agarram-no pelos dois braços: o monarca insistiu
pessoalmente para o que o seu hóspede ocupe o seu próprio coxim.
Recebido de palácio em palácio, o cádi é interrogado pelo sultão,
pelo califa e respectivos colaboradores sobre o cerco da cidade,
enquanto Bagdad em peso enaltece a sua bravura na jihad contra
os Franj.
Porém, quando se chega aos assuntos políticos e Fakhr el-Mulk
pede a Moamed que mande um exército para libertar Trípolis, o
sultão, relata maliciosamente Ibn al-Qalanissi, ordenou a alguns dos
principais emires que partissem com Fakhr el-Mulk para o ajudar a
repelir os que cercam a sua cidade; ele incumbiu o corpo
expedicionário da missão de parar temporariamente em Mossul a
fim de a arrancar às mãos de Jawali e, logo que isto estivesse feito,
de se dirigir a Trípolis.
Fakhr el-Mulk fica aterrado. A situação em Mossul está tão
enredada que seriam necessários anos para a solucionar. Mas, pior
ainda, a cidade está situada a norte de Bagdad, ao passo que
Trípolis se localiza no extremo oeste. Se o exército fizer semelhante
desvio, jamais chegará a tempo de salvar a sua capital. Esta pode
cair de um dia para o outro, insistiu ele. Mas o sultão não atende a
nada. Os interesses do Império Seljúcida exigem que se dê a
prioridade ao problema de Mossul. Por mais esforços que o cádi
envide, como comprar a peso de ouro alguns conselheiros do
monarca, tudo é em vão: o exército irá primeiro a Mossul. Quando,
ao cabo de quatro meses, Fakhr el-Mulk toma o caminho do
regresso, não tem direito a qualquer cerimonial. Ele está doravante
convencido de que já não poderá conservar a sua cidade. O que
ainda não sabe é que já a perdeu.
Assim que chega à vista de Damasco, em Agosto de 1108,
anunciam-lhe a triste notícia. Desmoralizados pela sua demasiada
longa ausência, os notáveis de Trípolis decidiram confiar a cidade
ao senhor do Egipto, que prometeu defendê-la dos Franj. Al-Afdal
enviou navios cheios de víveres, bem como um governador que
chamou a si os negócios da urbe, sendo a sua primeira missão a de
se apoderar da família de Fakhr el-Mulk, dos seus partidários, do
seu tesouro, dos seus móveis e dos seus pertences pessoais, e
despachar tudo por barco para o Egipto!
Enquanto o vizir se encarniça assim contra o infortunado cádi, os
Franj preparam o assalto final a Trípolis. Os seus chefes chegaram
uns atrás dos outros diante dos muros da cidade cercada. Lá está o
rei Balduíno de Jerusalém, o senhor de todos eles. Lá está Balduíno
de Edessa, e Tancredo de Antioquia, que se reconciliaram para este
lance. Lá estão também dois membros da família de Saint-Gilles, al-
Cerdani e o próprio filho do defunto conde, aquele a quem os
cronistas chamam Ibn Saint-Gilles, e que acaba de chegar do seu
país com dezenas de naus genovesas. Ambos cobiçam Trípolis,
mas o rei de Jerusalém obrigá-los-á a calar as suas querelas. E Ibn
Saint-Gilles esperará pelo fim da batalha para mandar assassinar o
seu rival.
Em Março de 1109, tudo parece a postos para um ataque
concertado por terra e por mar. Os Tripolitanos observam estes
preparativos com pavor, mas não perdem a esperança. Pois não é
verdade que al-Afdal prometeu enviar-lhes uma esquadra mais
poderosa do que todas as que já viram até hoje, com víveres,
combatentes e material de guerra suficientes para resistir um ano?
Os Tripolitanos não duvidam de que os navios genoveses fugirão
assim que a esquadra fatímida estiver à vista. Mas para tal é
necessário que ela chegue a tempo!
No início do Verão, diz Ibn al-Qalanissi, os Franj puseram-se a
atacar Trípolis com todas as suas forças, empurrando as suas torres
móveis na direcção das muralhas. Quando a gente da cidade viu
que violentos assaltos teria de arrostar, faleceu-lhe a coragem, pois
compreendeu que a sua perda era inevitável. Os géneros
alimentícios estavam exauridos, e a esquadra egípcia tardava a
chegar. Os ventos continuavam contrários, segundo a vontade de
Deus que determina a consumação das coisas. Os Franj
redobraram de esforços e conquistaram a cidade após rija luta, no
dia 12 de Julho de 1109. Ao cabo de dois mil dias de resistência, a
urbe da ourivesaria e das bibliotecas, dos marinheiros intrépidos e
dos cádis letrados, é saqueada pelos guerreiros do Ocidente. Os
cem mil volumes de Dar-em-Ilm são pilhados e em seguida
incendiados a fim de que os livros «ímpios» sejam destruídos. No
dizer do cronista de Damasco, os Franj decidiram que um terço da
cidade caberia aos Genoveses, os dois outros terços ao filho de
Saint-Gilles. Pôs-se de parte para o rei Balduíno tudo o que lhe
aprouve. Por fim, a maioria dos habitantes é vendida como
escravos, os outros espoliados dos seus bens e expulsos. Muitos
irão até ao porto de Tiro. Fakhr el-Mulk terminará a sua vida nas
cercanias de Damasco.
E a frota egípcia? Ela chegou a Tiro oito dias após a queda de
Trípolis, relata Ibn al-Qalanissi, quando já tudo estava acabado, em
virtude da sanção divina que fustigara os seus habitantes.
Os Franj escolheram como segunda presa Beirute. Arrimada à
montanha libanesa, a urbe está rodeada de pinhais,
designadamente nos arrabaldes de Mazraat-al-Arab e Ras-el-
Nabeh, onde os invasores vão encontrar a madeira indispensável
para a construção das suas máquinas de cerco. Beirute não se
equipara em nada ao esplendor de Trípolis, e as suas modestas
vivendas dificilmente ombreiam com os palácios romanos cujos
vestígios de mármore ainda se disseminam então pelo solo da
antiga Berito. Mas é apesar de tudo uma cidade relativamente
próspera graças ao seu porto, situado no derribadouro onde,
segundo a lenda, São Jorge venceu o dragão. Cobiçada pelos
Damasquinos, desleixadamente detida pelos Egípcios, é finalmente
com os seus próprios meios que ela defronta os Franj a partir de
Fevereiro de 1110. Os seus cinco mil habitantes irão bater-se com a
energia do desespero, destruindo uma após outra as torres de
madeira dos sitiantes. Nem antes nem depois os Franj viram uma
batalha mais brutal que esta!, exclama Ibn al-Qalanissi. Os
invasores não o perdoarão. Quando a cidade é tomada, a 13 de
Maio, entregam-se a um massacre indiscriminado. Para servir de
exemplo.
A lição não é esquecida. No Verão seguinte, um certo rei franco
(poder-se-á censurar o cronista de Damasco por não ter
reconhecido Sigurdo, soberano da longínqua Noruega?) chegou por
mar com mais de sessenta navios carregados de combatentes para
realizar a sua peregrinação e guerrear em território islâmico. Como
ele se dirigisse para Jerusalém, veio ao seu encontro Balduíno, e
ambos puseram cerco, por terra e por mar, ao porto de Saida, a
antiga Sídon dos Fenícios. A sua muralha, mais de uma vez
destruída e reconstruída através da História, ainda hoje se mantém
impressionante com os seus enormes blocos de pedra
constantemente fustigados pelo Mediterrâneo. Mas os seus
habitantes, que haviam dado provas de grande coragem no início da
invasão franca, já não têm ânimo para combater visto que, segundo
Ibn al-Qalanissi, receavam a sorte de Beirute. Enviaram portanto
aos Franj o seu cádi com uma delegação de notáveis para pedir a
Balduíno que lhes salvasse a vida. Ele acedeu a tal pedido. A urbe
capitulou no dia 4 de Dezembro de 1110. Desta vez não haverá
massacre, mas um êxodo maciço para Tiro e Damasco, que já
pululam de refugiados.
No espaço de dezassete meses, Trípolis, Beirute e Saida, três
das cidades mais afamadas do mundo árabe, foram tomadas e
saqueadas, os seus habitantes massacrados ou deportados, os
seus emires, os seus cádis, os seus homens de leis mortos ou
coagidos ao exílio, as suas mesquitas profanadas. Que força pode
ainda impedir os Franj de atingir em breve Tiro, Alepo, Damasco,
Cairo, Mossul ou – porque não? – Bagdad? Ainda haverá vontade
de resistir? Entre os dirigentes muçulmanos, decerto que não. Mas
no seio da população das cidades mais ameaçadas, a guerra santa
travada sem tréguas no decurso dos últimos treze anos pelos
peregrinos-combatentes do Ocidente começa a produzir o seu
efeito: a jihad, que já não passava há muito de um chavão destinado
a ornar os discursos oficiais, torna a aparecer. Ela é de novo
pregada por alguns grupos de refugiados, alguns poetas, alguns
homens de religião.
É precisamente um deles, Abdu-Fadl Ibn al-Khachab, um cádi de
Alepo de pequena estatura e verbo inspirado, que, pela sua
tenacidade e força de carácter, se decide a despertar o gigante
adormecido em que se transformou o mundo árabe. O seu primeiro
acto popular é o de repetir, com doze anos de intervalo, o escândalo
que al-Harawi outrora provocara nas ruas de Bagdad. Desta feita,
sobrevirá uma autêntica amotinação.
CAPÍTULO V

Um Resistente de Turbante

Na sexta-feira 17 de Fevereiro de 1111, o cádi Ibn al-Khachab


irrompe na mesquita do sultão, em Bagdad, na companhia de um
importante grupo de alepinos, entre os quais um xerife haxemita,
descendente do Profeta, ascetas sufis, imãs, mercadores.

Eles forçaram o pregador a descer do púlpito, o qual


quebraram, diz Ibn al-Qalanissi, e puseram-se a gritar, a
lastimar-se das desgraças que o Islão padecia por mor dos Franj
que matavam os homens e sujeitavam as mulheres e as
crianças. Como impedissem os crentes de orar, os responsáveis
presentes fizeram-lhes, em nome do sultão, promessas para os
apaziguar; enviar-se-iam exércitos a fim de defender o Islão dos
Franj e de todos os infiéis.

Mas este palavreado não bastou para acalmar os revoltados. Na


sexta-feira seguinte, recomeçam a sua manifestação, desta vez na
mesquita do califa. Quando os guardas tentam barrar-lhes o
caminho, eles derrubam-nos brutalmente, despedaçam o púlpito de
madeira, ornado de arabescos e de versículos alcorânicos, e
proferem insultos contra o Príncipe dos Crentes em pessoa. Bagdad
vive na maior confusão.
Na mesma altura, relata o cronista de Damasco num tom
falsamente ingénuo, a princesa, irmã do sultão Moamed e
esposa do califa, chegava a Bagdad, vinda do Ispaão com um
magnífico séquito: pedras preciosas, vestes sumptuosas, arreios
e animais de tiro de todas as espécies, servidores, escravos de
ambos os sexos, aias, e tantas coisas que desafiavam a
estimativa e a enumeração. A sua chegada coincidiu com as
cenas acima descritas. A alegria e a segurança deste regresso
principesco foram assim perturbadas. O califa al-Mustazhir-billah
ficou bastante descontente. Quis perseguir os autores do
incidente para lhes infligir uma severa punição. Mas o sultão
impediu-o de o fazer, desculpou a acção dessas pessoas e
ordenou aos emires e aos chefes militares que voltassem às
suas províncias a fim de aprontar a «jihad» contra os infiéis,
inimigos de Deus.

Se o bondoso al-Mustazhir foi assim acometido de cólera, tal não


se deveu apenas ao dissabor causado à sua jovem esposa, mas
também a esse terrível estribilho entoado em alta grita nas ruas da
sua capital: «O rei dos Rum é mais muçulmano do que o Príncipe
dos Crentes!» De facto, ele sabe que não se trata de uma acusação
gratuita, mas os manifestantes, encabeçados por al-Khachab,
aludiram através destas declarações à mensagem recebida algumas
semanas antes pelo divã do califa. Ela vinha do imperador Aleixo
Comneno e pedia insistentemente aos muçulmanos que se unissem
aos Rum para lutar contra os Franj e expulsá-los dos nossos países.

Paradoxalmente, se o poderoso senhor de Constantinopla e o


pequeno cádi de Alepo efectuam de comum acordo as suas
diligências em Bagdad é porque se sentem humilhados pelo mesmo
Tancredo. Com efeito, o «grande emir» franco mandou embora com
insolência uns embaixadores bizantinos que tinham vindo recordar-
lhe o juramento feito pelos cavaleiros do Ocidente de devolverem
Antioquia ao basileus e que, treze anos após a queda da cidade, a
promessa ainda não fora cumprida. Quanto aos Alepinos, Tancredo
impôs-lhe ultimamente um tratado deveras desonroso: deverão
pagar-lhe um tributo anual de vinte mil dinares, entregar-lhe duas
importantes fortalezas na vizinhança imediata da sua cidade e
oferecer-lhe, em sinal de fidelidade, os seus dez mais belos cavalos.
Tão timorato como de costume, o rei Redwan não ousou recusar.
Mas desde que os termos do tratado são do conhecimento geral, a
sua capital está em efervescência.
Nas horas críticas da sua história, os Alepinos têm desde sempre
o hábito de se juntar em pequenos grupos para discutir com
animação os perigos que espreitam. Os notáveis reúnem-se
frequentemente na grande mesquita, sentados de pernas cruzadas
nos tapetes vermelhos, ou no pátio, à sombra do minarete que
domina as casas cor de ocre da cidade. Os comerciantes
encontram-se durante o dia ao longo da antiga avenida de colunatas
construída pelos Romanos e que atravessa Alepo de oeste para
leste, da porta de Antioquia ao bairro interdito da Cidadela onde
reside o tenebroso Redwan. Esta artéria central está desde há muito
fechada à circulação das carroças e dos cortejos. A calçada foi
invadida por centenas de quitandas onde se amontoam tecidos,
âmbar ou bagatelas, tâmaras, pistachos ou condimentos. Para
abrigar os transeuntes do sol e da chuva, a avenida e as ruelas
contíguas estão inteiramente cobertas por um tecto de madeira que
se eleva, nos cruzamentos, em altas cúpulas de estuque. À esquina
das alamedas, em particular as que conduzem aos suks dos
fabricantes de esteiras, dos ferreiros e dos mercadores de lenha, os
Alepinos cavaqueiam diante das muitas baiucas que, no meio de um
persistente cheiro a azeite a ferver, a carne assada e a especiarias,
propõem refeições a preços módicos: almôndegas de carneiro,
coscorões, lentilhas. As famílias modestas compram comida
confeccionada no suk; só os ricos têm posses para cozinhar em
casa. Não longe das baiucas ouve-se o tinido característico dos
vendedores de charab, essas bebidas frescas de frutos
concentrados que os Franj copiarão dos Árabes na forma líquida,
«xarope», ou gelada, «sorvete».
À tarde, as pessoas de todas as condições encontram-se nos
hammans, lugares de convivência privilegiados onde se procede à
purificação antes da oração do sol-poente. Depois, ao anoitecer, os
citadinos ausentam-se do centro de Alepo para se recolherem aos
bairros, a coberto dos soldados ébrios. Também aí circulam as
notícias e os rumores, pela boca das mulheres e dos homens, e as
ideias vão-se definindo. A cólera, o entusiasmo ou o desalento
sacodem quotidianamente esta colmeia que zumbe assim há mais
de três milénios.
Ibn al-Khachab é o homem mais escutado dos bairros de Alepo.
Oriundo de uma família de ricos negociantes de madeira, ele
desempenha um papel primordial na administração da urbe.
Enquanto cádi xiita, goza de uma grande autoridade religiosa e
moral e assume o encargo de resolver os litígios sobre as pessoas e
os bens da sua comunidade, a mais importante de Alepo. Além
disso, é rais, por outras palavras, chefe da cidade, o que o torna
simultaneamente preboste dos mercadores, representante dos
interesses da população junto do rei e comandante da milícia
urbana.
Mas a actividade de Ibn al-Khachab ultrapassa o âmbito, já
bastante lato, das suas funções oficiais. Rodeado de uma
«clientela» numerosa, ele anima, desde a chegada dos Franj, uma
corrente de opinião patriótica e pietista que reclama uma atitude
mais firme em face dos invasores. Não receia dizer ao rei Redwan o
que pensa da sua política conciliadora, ou mesmo servil. Quando
Tancredo impôs ao monarca seljúcida que pregasse uma cruz no
minarete da grande mesquita, o cádi organizou um motim e
conseguiu que o crucifixo fosse transferido para a catedral de Santa
Helena. Desde então, Redwan evita entrar em conflito com o
irascível cádi. Entrincheirado na Cidadela entre o seu harém, a sua
guarda, a sua mesquita, a sua fonte de água e o seu hipódromo
verde, o rei turco prefere não ferir as susceptibilidades dos seus
súbditos. Contanto que a sua própria autoridade não seja posta em
causa, ele tolera a opinião pública.
Porém, no ano de 1111, Ibn al-Khachab apresentou-se na
Cidadela para exprimir uma vez mais a Redwan o extremo
descontentamento dos citadinos. Os crentes, explica-lhe ele, estão
escandalizados por ter de pagar um tributo aos infiéis instalados em
terra do Islão, e os mercadores vêem o seu comércio periclitar
desde que o insuportável príncipe de Antioquia controla todas as
estradas que levam de Alepo ao Mediterrâneo e espolia as
caravanas. Na medida em que a cidade já não pode defender-se
pelos seus próprios meios, o cádi propõe que uma delegação
agrupando notáveis xiitas e sunitas, comerciantes e homens de
religião vá a Bagdad pedir auxílio ao sultão Moamed. Redwan não
tem a mínima vontade de envolver o seu primo seljúcida nos
assuntos do reino. Apesar de tudo, prefere arranjar-se com
Tancredo. Mas, dada a inutilidade das missões enviadas à capital
abássida, ele não pensa incorrer em qualquer risco ao aceder à
solicitação dos seus súbditos.
A verdade é que se engana. De facto, contra toda a expectativa,
as manifestações de Fevereiro de 1111 em Bagdad produzem o
efeito procurado por Ibn al-Khachab. O sultão, que acaba de ser
informado da queda de Saida e do tratado imposto aos Alepinos,
começa a preocupar-se com as ambições dos Franj. Anuindo às
súplicas de Ibn al-Khachab, ordena ao novo governador de Mossul,
o emir Mawdud, que marche sem demora à cabeça de um poderoso
exército e socorra Alepo. Quando, no regresso, Ibn al-Khachab
informa Redwan do êxito da sua missão, o rei, ao mesmo tempo que
no seu íntimo faz votos para que assim não seja, finge regozijar-se,
indo inclusive ao ponto de transmitir ao primo a sua pressa de
participar na jihad ao lado dele. Contudo, no momento em que lhe
anunciam, em Julho, que as tropas do sultão se aproximam
realmente da cidade, já não esconde a sua apoquentação.
Mandando barricar todas as portas, detém Ibn al-Khachab e os seus
principais partidários e encarcera-os na prisão da Cidadela. Os
soldados turcos são encarregados de patrulhar dia e noite os bairros
da cidade para impedirem todo o contacto entre a população e o
«inimigo». A sequência dos acontecimentos vai justificar em parte a
sua reviravolta. Privadas do abastecimento que o rei deveria
facultar-lhes, as tropas do sultão vingam-se pilhando selvaticamente
os arredores de Alepo. Depois, em resultado de dissensões entre
Mawdud e os outros emires, o exército desintegra-se sem que se
trave qualquer combate.
Mawdud volta à Síria dois anos mais tarde, incumbido pelo sultão
de congregar todos os príncipes muçulmanos, à excepção de
Redwan, contra os Franj. Estando-lhe Alepo interdita, é muito
naturalmente nessa outra grande cidade que é Damasco que ele
instala o seu quartel-general, a fim de preparar uma ofensiva de
envergadura contra o reino de Jerusalém. O seu anfitrião, o
atabaque Toghtekin, aparenta estar desvanecido com a honra que o
delegado do sultão lhe dá, mas sente-se tão aterrorizado como
ficara Redwan. Ele teme que Mawdud tente apoderar-se da sua
capital; qualquer gesto do emir é interpretado como uma ameaça
para o futuro.
Em 2 de Outubro de 1113, diz-nos o cronista de Damasco, o emir
Mawdud deixa o seu acampamento, situado junto à Porta de Ferro,
uma das oito entradas da cidade, para se dirigir como todos os dias
à mesquita omíada em companhia do atabaque coxo.

Depois de a oração terminar e de Mawdud fazer algumas


devoções suplementares, foram-se os dois embora, seguindo
Toghtekin à frente em sinal de respeito pelo emir. Iam rodeados
de soldados, de guardas e de milicianos munidos de toda a
espécie de armas; os sabres afilados, as espadas pontiagudas,
as cimitarras e os punhais desembainhados davam a impressão
de um denso matagal. A toda a volta deles, a multidão apinhava-
se para admirar o seu aparato e a sua magnificência. Quando
alcançaram o pátio da mesquita, um homem saiu da multidão e
acercou-se do emir Mawdud como se fosse rogar a Deus em seu
favor a pedir-lhe esmola. De repente, deitou a mão ao cinto do
seu manto e apunhalou-o duas vezes acima do umbigo. O
atabaque Toghtekin deu alguns passos atrás e os seus
companheiros rodearam-no. Quanto a Mawdud, muito senhor de
si, caminhou até à porta norte da mesquita e depois tombou.
Mandaram vir um cirurgião, que conseguiu coser uma parte dos
ferimentos, mas o emir morreu ao fim de algumas horas. Deus
tenha misericórdia dele!

Quem matou o governador de Mossul em vésperas da sua


ofensiva contra os Franj? Toghtekin apressou-se a acusar Redwan e
os seus amigos da seita dos Assassinos. Mas para a maioria dos
coevos, só o senhor de Damasco pôde armar o braço do matador.
Segundo Ibn al-Athir, o rei Balduíno, chocado com este
homicídio, teria enviado a Toghtekin uma mensagem de particular
desprezo: Uma nação que mata o seu chefe na casa do seu Deus
merece ser aniquilada! Quanto ao sultão Moamed, a cólera fá-lo dar
brados ao saber da morte do seu lugar-tenente. Considerando-se
pessoalmente insultado por tal malvadez, decide meter
definitivamente na ordem todos os dirigentes sírios, tanto os de
Alepo como os de Damasco, recruta um exército de várias dezenas
de milhares de soldados, comandado pelos melhores oficiais do clã
seljúcida, e ordena secamente a todos os príncipes muçulmanos
que venham juntar-se-lhe para cumprirem o sagrado dever da jihad
contra os Franj.
Quando a poderosa expedição do sultão chega à Síria Central na
Primavera de 1115, espera-a uma surpresa de monta. Balduíno de
Jerusalém e Toghtekin de Damasco aparecem juntos, rodeados
pelas suas tropas, bem como as de Antioquia, Alepo e Trípolis. Os
príncipes da Síria, não só os muçulmanos como os francos,
sentindo-se igualmente ameaçados pelo sultão, decidiram coligar-se
e o exército seljúcida deverá retirar-se vergonhosamente ao cabo de
alguns meses. Moamed jura então nunca mais se envolver no
problema franco. Manterá a sua palavra.
Enquanto os príncipes muçulmanos dão provas da sua total
irresponsabilidade, duas cidades árabes irão demonstrar, com
poucos meses de intervalo, que ainda é possível resistir à ocupação
estrangeira.
Após a rendição de Saida em Dezembro de 1110, os Franj
assenhoreiam-se de todo o litoral, o sahel, do Sinai ao «país do filho
do Arménio», a norte de Antioquia. Com excepção, porém, de dois
enclaves costeiros: Áscalon e Tiro. Encorajado pelas suas
sucessivas vitórias, Balduíno propõe-se então jugulá-los sem
demora. A região de Áscalon é reputada pelo cultivo das suas
cebolas arroxeadas, ditas ascalonitas, uma palavra que os Franj
deformaram em échalote, chalota. Mas a sua importância é
sobretudo militar, pois ela constitui o ponto de reunião das tropas
egípcias sempre que estas planeiam uma expedição contra o reino
de Jerusalém.
Logo em 1111, Balduíno vem desfilar com o seu exército ante os
muros da cidade. O governador fatímida de Áscalon, Chams al-
Khilafa, «Sol do Califado», mais propenso ao comércio do que à
guerra, constata Ibn al-Qalanissi, fica imediatamente assustado com
a demonstração de força dos ocidentais. Sem esboçar um gesto de
resistência, aceita pagar-lhes um tributo de sete mil dinares. A
população palestiniana da cidade, que se sente humilhada por esta
inesperada capitulação, envia emissários ao Cairo a pedir a
destituição do governador. Ao saber disto, e receando que o vizir al-
Afdal queira castigá-lo pela sua cobardia, Chams al-Khilafa tenta
evitá-lo expulsando os funcionários egípcios e pondo-se de todo em
todo sob protecção dos Franj. Balduíno manda-lhe trezentos
homens, que tomam posse da cidadela de Áscalon.
Escandalizados, os habitantes não desanimam. Efectuam-se
reuniões secretas nas mesquitas; elaboram-se planos, até ao dia de
Julho de 1111 em que, saindo Chams al-Khilafa a cavalo da sua
residência, um grupo de conjurados o assaltam e crivam de
punhaladas. É o sinal da revolta. Citadinos armados, aos quais se
juntaram soldados berberes da guarda do governador, lançam-se ao
assalto da cidadela. Os guerreiros francos são acossados nas torres
e ao longo das muralhas. Nenhum dos trezentos homens de
Balduíno logrará salvar-se. A cidade continuará a escapar à
dominação dos Franj durante mais de quarenta anos.
A fim de vingar a humilhação que os resistentes de Áscalon
acabam de lhe infligir, Balduíno vira-se contra Tiro, a antiga urbe
fenícia donde partira, para difundir o alfabeto através do
Mediterrâneo, o príncipe Cadmo, o próprio irmão da Europa que iria
dar o seu nome ao continente dos Franj. A imponente muralha de
Tiro ainda recorda a sua história gloriosa. A cidade está rodeada de
mar por três lados e só uma estreita estrada alcantilada construída
por Alexandre Magno a liga a terra firme. Tida na conta de
inexpugnável, ela abriga em 1111 um grande número de refugiados
dos territórios recentemente ocupados.
O seu papel na defesa será crucial, conforme relata Ibn al-
Qalanissi, cuja narrativa visivelmente se fundamenta em elementos
colhidos em primeira mão.

Os Franj tinham erguido uma torre móvel à qual haviam fixado


um aríete de tremenda eficácia. As muralhas abanaram, uma
parte das pedras voou em estilhas e os sitiados viram-se à beira
do desastre. Foi então que um marinheiro originário de Trípolis,
que tinha conhecimentos de metalurgia e experiência das coisas
da guerra, deliberou fabricar fateixas de ferro destinadas a
prenderem-se no aríete pela cabeça e pelos lados, mediante
cordas que os defensores seguravam. Estes puxavam tão
vigorosamente que a torre de madeira se desequilibrava. Por
mais de uma vez, os Franj tiveram de quebrar o seu próprio
aríete para evitar que a torre desabasse.

Renovando as suas tentativas, os assaltantes conseguem


empurrar a sua torre móvel para as proximidades da muralha e das
fortificações, as quais recomeçam a martelar com um novo aríete de
sessenta côvados de comprimento, cuja cabeça é constituída por
uma peça de ferro fundido pesando mais de vinte libras. Mas o
marinheiro tripolitano não desarma.

Servindo-se de algumas traves habilmente instaladas,


prossegue o cronista de Damasco, ele fez subir postes cheios de
porcarias e de imundícies que se despejaram sobre os Franj.
Sufocados pelos cheiros que se espalhavam à sua volta, estes já
não conseguiam manobrar o seu aríete. O marinheiro pegou
então em cestos de uvas e em alcofas que encheu de azeite, de
betume, de resina e de casca de canas, Depois de lhes ter
pegado fogo, atirou-os para cima da torre franca. Deflagrou um
incêndio no topo desta e, como os Franj se afadigavam a apagá-
lo com vinagre e água, o tripolitano apressou-se a lançar outros
cestos cheios de azeite a ferver para avivar as chamas. O fogo
abrasou todo o alto da torre, alastrou a pouco e pouco a todos os
andares, propagando-se à madeira do engenho.

Incapazes de debelar o incêndio, os assaltantes acabam por


evacuar a torre e por fugir. O que os defensores aproveitam para
fazer uma surtida e apoderar-se de uma grande quantidade de
armas abandonadas.

Vendo isto, conclui triunfalmente Ibn al-Qalanissi, os Franj


perderam a coragem e bateram em retirada depois de terem
deitado fogo aos abarracamentos que haviam edificado no seu
acampamento.

Estamos no dia 10 de Abril de 1112. Ao cabo de cento e trinta e


três dias de cerco, a população de Tiro acaba de infligir aos Franj
uma estrondosa derrota.
Após os motins de Bagdad, a insurreição de Áscalon e a
resistência de Tiro, começa a soprar um vento de revolta. Há um
crescente número de árabes que se unem no mesmo ódio aos
invasores e à maioria dos dirigentes muçulmanos, acusados de
incúria, quando não de traição. Em Alepo, sobretudo, esta atitude
ultrapassa rapidamente o simples movimento de indignação. Sob a
chefia do cádi Ibn al-Khachab, os citadinos resolvem assumir o seu
próprio destino. Escolherão eles mesmos os seus dirigentes e
impor-lhes-ão a política a seguir.
É bem certo que haverá muitos reveses, muitas decepções. A
expansão dos Franj não terminou, e a sua arrogância não conhece
limites. Mas doravante ir-se-á assistir ao lento nascimento, a partir
das ruas de Alepo, de uma vaga de fundo que submergirá
gradualmente o Oriente árabe e levará um dia ao poder homens
justos, corajosos, devotados, capazes de reconquistar o território
perdido.

Antes de chegar a este ponto, Alepo vai atravessar o período


mais errático da sua longa história. Em fins de Novembro de 1113,
Ibn al-Khachab é informado de que Redwan está gravemente
doente no seu palácio da cidadela, reúne os seus amigos e pede-
lhes que se mantenham prontos a intervir. Em 10 de Dezembro, o
rei morre. Assim que a notícia é conhecida, grupos de milicianos
armados espalham-se pelos bairros da cidade, ocupam os principais
edifícios e prendem numerosos partidários de Redwan,
nomeadamente adeptos da seita dos Assassinos, logo ali justiçados
por entendimento com o inimigo franco.
O fito do cádi não é apossar-se pessoalmente do poder, mas
impressionar o novo rei, Alp Arslan, filho de Redwan, para ele
adoptar uma política diferente da de seu pai. Nos primeiros dias,
este rapaz de dezasseis anos, tão gago que o alcunhavam o Mudo,
parece aprovar o militantismo de Ibn al-Khachab. Manda aprisionar
todos os colaboradores de Redwan e cortar-lhes acto contínuo a
cabeça, com não dissimulada alegria. O cádi inquieta-se,
recomendando ao jovem monarca que não mergulhe a cidade num
banho de sangue, mas que puna simplesmente os traidores a título
de exemplo. Alp Arslan não lhe dá ouvidos. Executa dois dos seus
próprios irmãos, vários militares, alguns servidores e, em geral,
todos aqueles cuja cara não lhe agrada. Pouco a pouco, os
citadinos descobrem a horrível verdade: o rei é louco! A melhor
fonte de que dispomos para compreender este período é a crónica
de um escritor-diplomata alepino, Kamaleddin, redigida um século
após tais acontecimentos a partir de testemunhos que os coetâneos
haviam deixado.
Certo dia, Alp Arslan reuniu um determinado número de
emires e de notáveis e fê-los visitar uma espécie de subterrâneo
escavado na cidadela. Quando estavam lá dentro, perguntou-
lhes ele:
– O que diriam se eu vos mandasse cortar o pescoço a todos,
aqui mesmo?
– Somos escravos submetidos às ordens de vossa
majestade, responderam os desventurados, fingindo tomar a
ameaça por uma boa pilhéria.
E foi aliás deste modo que escaparam à morte.

Não tarda que o isolamento do jovem demente seja uma


realidade. Só um homem ousa ainda abeirar-se dele, o seu eunuco
Lulu, «Pérolas». Mas também este começa a temer pela vida. Em
Setembro de 1114, aproveita-se do sono do seu amo para o matar e
instala no trono outro filho de Redwan, com seis anos de idade.
Alepo afunda-se cada dia um pouco mais na anarquia. Ao passo
que na Cidadela grupos desgarrados de escravos e de soldados se
digladiam, os citadinos em armas patrulham as ruas da urbe para se
protegerem dos pilhantes. Neste primeiro tempo, os Franj de
Antioquia não buscam tirar partido do caos que paralisa Alepo.
Tancredo morreu um ano antes de Redwan, e o seu sucessor, Sire
Rogério, a quem Kamaleddin na sua crónica chama Sirjal, não sente
ainda suficiente segurança para se envolver numa acção de grande
envergadura. Mas esta trégua é de curta duração. Já em 1116, ao
garantir o controlo de todas as estradas conducentes a Alepo,
Rogério de Antioquia ocupa uma após outra as principais fortalezas
que rodeiam a cidade e, por falta de resistência, chega mesmo a
cobrar uma taxa a cada peregrino que se dirige a Meca.
Em Abril de 1117, o eunuco Lulu é assassinado. Segundo
Kamaleddin, os soldados da sua escolta tinham urdido um conluio
contra ele. Numa altura em que caminhava a nascente da cidade,
eles retesaram subitamente os seus arcos gritando: «Uma lebre!
Uma lebre!», para o levar a acreditar que pretendiam caçar este
animal. Na realidade, foi o próprio Lulu que crivaram de frechas.
Após a sua morte, o poder passa para um novo escravo que,
incapaz de se impor, pede a Rogério que venha ajudá-lo. O caos
torna-se então indescritível. Enquanto os Franj se preparam para
cercar a cidade, os militares continuam a bater-se pelo domínio da
Cidadela. Assim, Ibn al-Khachab decide agir sem tardança. Reúne
os principais notáveis da urbe e submete-lhes um projecto que irá
revelar-se prenhe de consequências. Na sua qualidade de cidade
fronteiriça, Alepo, explica-lhes ele, deve ser a guarda avançada da
jihad contra os Franj e, deste modo, deve oferecer o seu governo a
um emir poderoso, talvez ao próprio sultão, de maneira a nunca
mais se deixar governar por um reizete local que ponha os seus
interesses locais acima dos do Islão. A proposta do cádi é aprovada,
não sem reticências, pois os Alepinos são ciosos do seu
particularismo. Passam-se então em revista os principais candidatos
possíveis. O sultão? Já não quer ouvir falar da Síria. Toghetkin? É o
único príncipe sírio que tem algum gabarito, mas os Alepinos jamais
aceitariam um damasquino. Nisto, Ibn al-Khachab avança o nome
do emir turco Ilghazi, governador de Mardin, na Mesopotâmia. A sua
conduta nem sempre foi exemplar. Ele apoiou, dois anos antes, a
aliança islamo-franca contra o sultão e é conhecido pela sua
bebedice. Quando bebia vinho, diz-nos Ibn al-Qalanissi, Ilghazi
ficava em estado de idiotismo durante vários dias, sem sequer
recobrar a lucidez para dar uma ordem ou uma directiva. Mas seria
necessário procurar durante muito tempo para encontrar um militar
abstémio. E de resto, sustenta Ibn al-Khachab, Ilghazi é um
combatente corajoso, a sua família governou por longo tempo
Jerusalém e o seu irmão Sokman alcançou a vitória de Harran
contra os Franj. Depois de uma maioria ter aderido finalmente a esta
tese, Ilghazi é convidado a vir, e é o próprio cádi que lhe abre as
portas de Alepo no decurso do Verão de 1118. O primeiro acto do
emir é casar com a filha do rei Redwan, gesto que simboliza a união
entre a urbe e o seu novo senhor e afirma simultaneamente a
legitimidade deste último. Ilghazi toca à chamada as suas tropas.
Vinte anos após o início da invasão franca, a capital do Norte da
Síria tem, pela primeira vez, um chefe desejoso de lutar. O resultado
é fulminante. No sábado 28 de Junho de 1119, o exército do senhor
de Alepo defronta o de Antioquia na planície de Sarmada, a meio
caminho entre as duas cidades. O khamsin, um vento seco e
quente, carregado de areia, sopra contra os olhos dos combatentes.
Kamaleddin descrever-nos-á a cena:

Ilghazi obrigou os seus emires a jurar que combateriam


valentemente, que aguentariam, não recuariam e dariam a sua
vida pela jihad. Em seguida os muçulmanos espalharam-se em
pequenos grupos e vieram postar-se, o resto da noite, ao lado
das tropas de Sire Rogério. Bruscamente, ao amanhecer, os
Franj viram aproximar-se os estandartes dos muçulmanos que
os rodeavam por todas as bandas. O cádi Ibn al-Khachab
avançou, montado na sua égua e de lança em punho, incitando
os nossos à batalha. Ao vê-lo, um dos soldados exclamou num
tom desdenhoso: «Afinal viemos do nosso país para ir atrás de
um turbante?» Mas o cádi caminhou na direcção das tropas,
percorreu as suas fileiras e dirigiu-lhes, para estimular a sua
energia e inflamar o moral, uma arenga tão eloquente que os
homens choraram de emoção e o admiraram grandemente.
Depois arremeteu-se de todos os lados ao mesmo tempo. As
frechas voavam qual nuvem de gafanhotos.

O exército de Antioquia é dizimado. O próprio Sire Rogério é


encontrado estendido no meio dos cadáveres, com a cabeça
fendida à altura do nariz.

O mensageiro da vitória chegou a Alepo no momento em que


os muçulmanos, todos em fila, terminavam a oração do meio-dia
na grande mesquita. Ouviu-se então um grande clamor vindo do
oeste, mas nenhum combatente entrou na cidade antes da
oração da tarde.
Dias a fio, Alepo celebra a sua vitória. Canta-se, bebe-se,
degolam-se carneiros, toda a gente se atropela para contemplar os
estandartes cruzados, os elmos e as cotas de malha trazidos pelos
soldados, ou para ver decapitar um prisioneiro pobre – os ricos eram
trocados por um resgate. Ouve-se declamar nas praças públicas
poemas improvisados em glória de Ilghazi: A seguir a Deus, é em ti
que confiamos! Os Alepinos viveram os últimos anos no terror de
Boemundo, de Tancredo, depois de Rogério de Antioquia, muitos
acabaram por esperar, como uma fatalidade, o dia em que, à
semelhança dos seus irmãos de Trípolis, seriam forçados a escolher
entre a morte e o exílio. Com a vitória de Sarmada, eis que se
sentem renascer para a vida. Em todo o mundo árabe, a façanha de
Ilghazi suscita o entusiasmo. Nunca tamanho triunfo fora concedido
ao Islão nos anos passados, rejubila Ibn al-Qalanissi.
Estas afirmações exageradas denunciam a extrema
desmoralização que reinava em vésperas da vitória de Ilghazi. A
arrogância dos Franj atingiu efectivamente os limites do absurdo: no
início de Março de 1118, o rei Balduíno, com exactamente duzentos
e dezasseis cavaleiros e quatrocentos infantes, tentou invadir… o
Egipto! À frente das suas magras tropas, atravessou o Sinai, ocupou
sem resistência a cidade de Farama, chegando até às margens do
Nilo, onde toma banho, precisará, trocista, Ibn al-Athir. Teria ido
ainda mais longe se não houvesse subitamente adoecido.
Repatriado o mais depressa possível para a Palestina, morreu no
caminho, em el-Arich, no Nordeste do Sinai. Apesar do falecimento
de Balduíno, al-Afdal nunca mais se recomporá desta nova
humilhação. Perdendo rapidamente o controlo da situação, será
assassinado três anos mais tarde numa rua do Cairo. Quanto ao rei
dos Franj, será substituído pelo seu primo, Balduíno II, de Edessa.
Vinda pouco depois desta espectacular incursão através do Sinai,
a vitória de Sarmada surge como uma desforra e, para alguns
optimistas, como o início da reconquista. Espera-se ver Ilghazi
marchar sem demora sobre Antioquia, que já não tem príncipe nem
exército. Aliás, os Franj preparam-se para suportar um cerco. A sua
primeira decisão é desarmar os cristãos sírios, arménios e gregos
residentes na cidade e proibir-lhes que saiam de suas casas, pois
temem vê-los aliarem-se aos Alepinos. São de facto muito vivas as
tensões entre os ocidentais e os seus correligionários orientais, que
os acusam de desprezar os ritos deles e confiná-los a empregos
subalternos na sua própria urbe. Mas as precauções dos Franj
revelam-se inúteis. Ilghazi não pensa de modo algum explorar o seu
triunfo. Espojado, bêbado como um cacho, ele já não deixa a antiga
residência de Redwan, onde não pára de festejar a sua vitória. À
força de ingurgitar licores fermentados, em breve é acometido por
um violento ataque de febre. Só se curará vinte dias depois, mesmo
a tempo de saber que o exército de Jerusalém, comandado pelo
novo rei Balduíno II, acaba de chegar a Antioquia.
Minado pelo álcool, Ilghazi finar-se-á três anos mais tarde sem ter
sabido tirar proveito da sua vantagem. Os Alepinos ficar-lhe-ão
reconhecidos, pois afastou o perigo franco da sua cidade, mas nem
por sombras o desaparecimento dele os afligirá, pois já os seus
olhares se volvem para o sucessor, um homem excepcional cujo
nome anda em todas as bocas: Balak. Trata-se do próprio sobrinho
de Ilghazi, mas é uma pessoa de uma têmpera completamente
diferente. Em poucos meses, irá tornar-se no herói adorado do
mundo árabe, cujas proezas serão celebradas nas mesquitas e nas
praças públicas.
Em Setembro de 1122, Balak consegue, mercê de um fulgurante
golpe de mão, apoderar-se de Jocelin, que substituiu Balduíno II
como conde de Edessa. Segundo Ibn al-Athir, ele envolveu-o numa
pele de camelo, a qual mandou coser, após o que, enjeitando todas
as ofertas de resgate, o fechou numa fortaleza. Depois da morte de
Rogério de Antioquia, eis portanto um segundo Estado franco
privado do seu chefe. O rei de Jerusalém, inquieto, decide ir em
pessoa ao Norte. Cavaleiros de Edessa levam-no a visitar o sítio
onde Jocelin foi capturado, uma zona pantanosa à beira do
Eufrates. Balduíno II dá um pequeno giro de reconhecimento, depois
ordena que se ergam as tendas para a noite. No dia seguinte,
levanta-se de manhã cedo para se entregar ao seu desporto
favorito, aprendido com os príncipes orientais, a falcoaria, quando,
repentinamente, Balak e os seus homens, que se tinham
aproximado sem ruído, cercam o acampamento. O rei de Jerusalém
depõe as armas, sendo por seu turno levado para o cativeiro.
Aureolado com o prestígio destas façanhas, Balak faz em Junho
de 1123 uma entrada triunfal em Alepo. Repetindo o gesto de
Ilghazi, começa por desposar a filha de Redwan, em seguida
empreende, sem perder um só momento e sem sofrer um único
revés, a reconquista sistemática das possessões francas em torno
da cidade. A perícia militar deste emir turco de quarenta anos, o seu
espírito de decisão, a sua recusa de qualquer compromisso com os
Franj, a sua sobriedade, bem como o seu rol de sucessivas vitórias,
contrastam com a desconcertante mediocridade dos outros
príncipes muçulmanos.
Uma cidade, em especial, vê nele o seu salvador providencial:
Tiro, que os Franj cercam de novo apesar da captura do seu rei. A
situação dos defensores mostra-se muito mais delicada do que o
era aquando da sua resistência vitoriosa doze anos antes, pois os
ocidentais asseguram desta feita o controlo do mar. De facto, uma
imponente esquadra veneziana, dispondo de mais de cento e vinte
navios, surgiu na Primavera de 1123 ao largo das costas palestinas.
Mal chegou, conseguiu surpreender a frota egípcia que fundeava
diante de Áscalon e destruí-la. Em Fevereiro de 1124, depois de
terem assinado um acordo com Jerusalém sobre a partilha dos
despojos, os Venezianos iniciaram o bloqueio do porto de Tiro
enquanto o exército franco instalava o seu acampamento a leste da
cidade. As perspectivas não são por conseguinte boas para os
sitiados. É verdade que os Tírios se batem com denodo. Uma noite,
por exemplo, um grupo de excelentes nadadores desliza até um
navio veneziano que está de guarda à entrada do porto e logra
puxá-lo para a cidade, onde é desarmado e destruído. Mas, a
despeito de tão brilhantes acções, as hipóteses de êxito são
escassas. A derrocada da marinha fatímida torna inviável qualquer
auxílio através do mar. Por outro lado, o abastecimento de água
potável revela-se difícil. Tiro – é a sua principal fraqueza – não tem
fonte no interior dos seus muros. Em tempo de paz, a água doce
chega de fora por uma canalização. Em caso de guerra, a urbe
conta com as suas cisternas e com um intenso aprovisionamento
por pequenos barcos. O rigor do bloqueio veneziano impossibilita
este recurso. Se o espartilho não vier a afrouxar, a capitulação será
inevitável ao cabo de poucos meses.
Já nada esperando dos Egípcios, seus habituais protectores, os
defensores voltam-se para o herói do momento, Balak. O emir cerca
por essa altura uma fortaleza da região de Alepo, Manbij, onde um
dos seus vassalos entrou em rebelião. Quando lhe chega o apelo
dos Tírios, ele resolve imediatamente, diz-nos Kamaleddin, confiar a
um dos seus lugar-tenentes a continuação do cerco e correr
pessoalmente em socorro de Tiro. No dia 6 de Maio de 1124, antes
de se pôr a caminho, efectua uma última ronda de inspecção.

De capacete na cabeça e escudo no braço, prossegue o


cronista de Alepo, Balak acercou-se da fortaleza de Manbij para
escolher o local onde se assestariam as manganelas. Enquanto
dava as suas ordens, uma frecha disparada das muralhas
atingiu-o sob a clavícula esquerda. Ele próprio arrancou a haste
e, cuspindo-lhe em cima cheio de desprezo, murmurou: «Este
golpe será mortal para todos os muçulmanos!» Em seguida
expirou.

Não se enganava. Assim que a notícia da sua morte chega a


Tiro, os habitantes perdem a coragem e já só pensam em negociar
as condições da sua rendição. Em 7 de Julho de 1124, conta Ibn al-
Qalanissi, eles saíram por entre duas filas de soldados, sem serem
molestados pelos Franj. Todos os militares e civis deixaram a
cidade, onde só permaneceram os inválidos. Alguns exilados foram
para Damasco, os outros dispersaram-se pelo país.
Se o banho de sangue foi evitado, não é menos verdade que a
admirável resistência dos Tírios acabou no meio da humilhação.
Eles não serão os únicos a sofrer as consequências do
desaparecimento de Balak. Em Alepo, o poder cabe por herança a
Timurtach, filho de Ilghazi, um moço de dezanove anos, unicamente
interessado, segundo Ibn al-Athir, em divertir-se, e que se apressou
a sair de Alepo para ir fixar-se na sua cidade natal, Mardin, por
achar que havia na Síria demasiadas guerras com os Franj. Não
contente em abandonar a sua capital, o inepto Timurtach despacha-
se a soltar o rei de Jerusalém em troca de vinte mil dinares.
Oferece-lhe trajes de honra, um gorro de ouro e botins ornados e
até lhe restitui o cavalo que Balak lhe arrebatara no dia da sua
captura. Comportamento principesco, sem dúvida, mas totalmente
irresponsável, pois algumas semanas após a sua libertação
Balduíno II apresenta-se diante de Alepo com a firme intenção de a
tomar.
A defesa da urbe compete inteiramente a Ibn al-Khachab, que só
conta com umas poucas centenas de homens armados. O cádi, que
vê milhares de combatentes em redor da cidade, envia um
mensageiro ao filho de Ilghazi. Arriscando a vida, o emissário
atravessa de noite as linhas inimigas. Ao chegar a Mardin,
comparece no divã do emir e suplica-lhe com insistência que não se
esqueça de Alepo. Mas Timurtach, tão desaforado como poltrão,
ordena que metam na prisão o mensageiro, cujas queixas o irritam.
Ibn al-Khachab vira-se então para outro salvador, al-Borsoki, um
velho militar turco que acaba de ser nomeado governador de
Mossul. Conhecido pela sua rectidão e zelo religioso, mas também
pela sua habilidade política e ambição, al-Borsoki aceita com
solicitude o convite que o cádi lhe endereça e põe-se imediatamente
a caminho. A sua chegada em Janeiro de 1125 diante da cidade
cercada surpreende os Franj, que fogem, abandonando as suas
tendas. Ibn al-Khachab apressa-se a sair ao encontro de al-Borsoki
para o instigar a persegui-los, mas o emir está cansado por causa
da sua longa cavalgada e sobretudo cheio de curiosidade de visitar
a sua nova possessão. Tal como Ilghazi cinco anos antes, ele não
ousará explorar a sua momentânea vantagem e dará tempo ao
inimigo para se recompor. Mas a sua intervenção reveste-se de
apreciável importância, pois a união efectuada em 1125 entre Alepo
e Mossul irá ser o núcleo de um poderoso Estado que, em breve,
poderá ripostar com êxito à arrogância dos Franj.
Graças à sua tenacidade e à sua espantosa perspicácia, sabe-se
que Ibn al-Khachab não apenas salvou a sua cidade da ocupação
como ainda contribuiu, mais do que qualquer outro, para preparar o
terreno aos grandes dirigentes da jihad contra os invasores.
Todavia, o cádi não verá o advento deles. Num dia do Verão de
1125, ao sair da grande mesquita de Alepo após a oração do meio-
dia, um homem disfarçado de asceta salta-lhe em cima e crava-lhe
um punhal no peito. É a vingança dos Assassinos. Ibn al-Khachab
fora o mais encarniçado adversário da seita, derramara a jorros o
sangue dos seus adeptos e nunca de tal se arrependera. Não podia
por conseguinte ignorar que mais cedo ou mais tarde o pagaria com
a própria vida. Há já um terço de século que nenhum inimigo dos
Assassinos consegue escapar-lhes.

Foi um homem de vasta cultura, sensível à poesia, espírito


curioso a par dos últimos progressos das ciências, quem criou em
1090 esta seita, a mais temível de todos os tempos. Hassan as-Sab-
bah nascera por volta de 1048 na cidade de Rayy, muito perto do
sítio onde será fundado, bastantes anos mais tarde, o burgo de
Teerão. Terá ele sido, conforme garante a lenda, um inseparável
companheiro de juventude do poeta Omar al-Khayyam, igualmente
apaixonado por matemática e astronomia? Não sabemos ao certo.
Conhecemos, em contrapartida, com bastante precisão as
circunstâncias que levaram este homem brilhante a consagrar a sua
vida à organização da seita.
Quando Hassan nasceu, a doutrina xiita, à qual adere, era
dominante na Ásia muçulmana. A Síria pertencia aos Fatímidas do
Egipto, e uma outra dinastia xiita, a dos Buídas, controlava a Pérsia
e ditava a sua lei ao califa abássida em pleno coração de Bagdad.
Mas, durante a juventude de Hassan, a situação inverteu-se
completamente. Os Seljúcidas, defensores da ortodoxia sunita,
apoderaram-se de toda a região. O xiismo, ainda não há muito
triunfante, não passa então de uma doutrina tão-somente tolerada, e
amiúde perseguida.
Hassan, que evolui num meio de religiosos persas, insurge-se
contra esta situação. Cerca de 1071, decide ir instalar-se no Egipto,
derradeiro bastião do xiismo. Mas o que descobre no país do Nilo
não é nada atraente. O velho califa fatímida al-Mustansir é ainda
mais fantoche do que o seu rival abássida. Ele já não ousa sair do
palácio sem autorização do seu vizir arménio Badr el-Jamali, pai e
predecessor de al-Afdal. Hassan encontra no Cairo muitos
fundamentalistas religiosos que comungam das suas apreensões e
desejam, tal como ele, reformar o califado xiita e vingar-se dos
Seljúcidas.
A breve trecho, vai tomando forma um autêntico movimento que
tem como chefe Nizar, o filho mais velho do califa. Tão piedoso
como valente, o herdeiro fatímida não sente a mínima vontade de se
entregar aos prazeres da corte nem de desempenhar o papel de
uma marioneta nas mãos de um vizir. Por ocasião da morte do seu
velho pai, a qual não deve tardar, caber-lhe-á assumir a sucessão e,
com o concurso de Hassan e dos seus amigos, assegurar aos xiitas
uma nova idade de ouro. Neste sentido, elabora-se um plano
minucioso cujo principal obreiro é Hassan. O militante persa irá
instalar-se no coração do Império Seljúcida a fim de preparar o
terreno à reconquista que Nizar não deixará de empreender quando
subir ao trono.
O êxito de Hassan supera todas as esperanças que se poderiam
acalentar, mas à custa de métodos muito diferentes dos imaginados
pelo virtuoso Nizar. Em 1090, ele apodera-se, de surpresa, da
fortaleza de Alamut, esse «ninho de águia» situado na cordilheira de
Elburz, perto do mar Cáspio, numa zona praticamente inacessível.
Dispondo assim de um santuário inviolável, Hassan começa a erigir
uma organização político-religiosa cuja eficácia e espírito de
disciplina jamais serão igualados na História.
Os adeptos são classificados segundo o seu nível de instrução,
de fiabilidade e de coragem, desde os noviços até ao grão-mestre.
Seguem cursos intensivos de doutrinação, bem como um treino
físico. A arma preferida de Hassan para aterrorizar os seus inimigos
é o assassínio. Os membros são enviados individualmente ou, mais
raramente, em pequenas equipas de dois ou três, com a missão de
matar uma personalidade escolhida. Disfarçam-se geralmente de
mercadores ou de ascetas, circulam na cidade onde deve ser
perpetrado o crime, familiarizam-se com os locais e os hábitos da
sua vítima, em seguida atacam depois de terem delineado o seu
plano até ao mais pequeno pormenor. Porém, se os preparativos se
desenrolam no maior segredo, já a execução deve necessariamente
ser em público, diante da multidão mais numerosa possível. Eis
porque o local é a mesquita, e o dia preferido a sexta-feira,
geralmente ao meio-dia. Para Hassan, o assassínio não é um
simples meio de se desembaraçar de um adversário, é antes de
tudo uma dupla lição dada em público: a do castigo da pessoa morta
e a do sacrifício heróico do adepto executor, chamado fedai, ou seja,
«comando suicida», porque é quase sempre abatido ali mesmo.
A maneira serena como os membros da seita consentiam em
deixar-se massacrar levou os coevos a acreditar que eles estavam
drogados com haxixe, o que deu origem à alcunha de haschischiyun
ou haschaschin, uma palavra que será deformada em «assassino»,
e que não tardará a tornar-se, em muitas línguas, um nome comum.
A hipótese é plausível, mas, como em tudo o referente à seita, é
difícil distinguir realidade e lenda. Hassan impeliria os adeptos a
drogar-se a fim de lhes dar a sensação de se acharem por
momentos no paraíso e de os encorajar assim ao massacre?
Tentaria ele, mais prosaicamente, acostumá-los a algum narcótico
para os manter constantemente à sua mercê? Fornecer-lhes-ia
simplesmente um euforizante para não fraquejarem na altura do
assassínio? Contaria, pelo contrário, com a sua fé cega? Seja qual
for a resposta, o mero facto de se aventarem tais hipóteses é uma
homenagem prestada ao excepcional organizador que era Hassan.
Aliás, os resultados são fulgurantes. O primeiro homicídio,
executado em 1092, dois anos após a fundação da seita, é por si só
uma epopeia. Os Seljúcidas estão então no apogeu do seu poderio.
Ora, o pilar do seu império, o homem que organizou, durante trinta
anos, num verdadeiro Estado o domínio conquistado pelos
guerreiros turcos, o artífice do renascimento do poder sunita e da
luta contra o xiismo, é um velho vizir cujo simples nome é evocador
da obra: Nizam el-Mulk, a «Ordem do Reino». No dia 14 de Outubro
de 1092, um adepto de Hassan trespassa-o com uma punhalada.
Quando Nizam el-Mulk foi assassinado, dirá Ibn al-Athir, o Estado
desintegrou-se. De facto, o Império Seljúcida nunca mais recuperará
a sua unidade. A sua história já não será pautada por conquistas,
mas por intermináveis guerras de sucessão. Missão cumprida,
poderia ter dito Hassan aos seus camaradas do Egipto. Doravante,
está aberto o caminho a uma reconquista fatímida. É a vez de Nizar
entrar em jogo. Mas, no Cairo, a insurreição é sol de pouca dura. Al-
Afdal, que herda o vizirato de seu pai, em 1094, esmaga
implacavelmente os amigos de Nizar, ele próprio emparedado vivo.
Hassan vê-se deste modo perante uma situação imprevista. Não
renunciou ao advento da restauração do califado xiita, mas sabe
que precisará de tempo. Em consequência, modifica a sua
estratégia: ao mesmo passo que prossegue o seu trabalho de sapa
contra o Islão oficial e os seus representantes religiosos e políticos,
esforça-se por encontrar doravante um lugar de implantação para
constituir um feudo autónomo. Ora, que zona poderia oferecer
melhores perspectivas do que a Síria, fragmentada numa profusão
de Estados minúsculos e rivais? Bastaria a seita aí se insinuar,
lançar umas cidades contra as outras, um emir contra o seu irmão,
para poder sobreviver até ao dia em que o califado fatímida saísse
do seu torpor.
Hassan manda para a Síria um pregador persa, «médico-
astrólogo» enigmático, que se estabelece em Alepo e consegue
ganhar a confiança de Redwan. Os adeptos começam a afluir à
cidade, a pregar a sua doutrina, a constituir células. Para conservar
a amizade do rei seljúcida, não lhes repugna prestarem-lhe
pequenos serviços, nomeadamente assassinar alguns dos seus
adversários políticos. Após a morte do «médico-astrólogo», em
1103, a seita delega imediatamente junto de Redwan um novo
conselheiro persa, Abu-Taher, o ourives. Em breve a sua influência
se torna ainda mais preponderante do que a do seu antecessor.
Redwan vive inteiramente sob o seu ascendente, e segundo
Kamaleddin nenhum alepino consegue a partir daí obter o mais
pequeno favor do monarca ou solucionar um problema de
administração sem passar por um dos inumeráveis sequazes
infiltrados no séquito do rei.
Mas, em virtude do seu próprio poder, os Assassinos são
detestados. Ibn al-Khachab, em particular, reclama incessantemente
que se ponha cobro às suas actividades. Censura-lhes não só o seu
tráfico de influências, mas também e sobretudo a simpatia que
manifestam para com os invasores ocidentais. Por muito paradoxal
que seja, esta acusação nem por isso é menos justificada. À
chegada dos Franj, os Assassinos, que ainda mal começam a
implantar-se na Síria, são denominados batinis, «os que aderem a
uma crença diferente da que professam em público». Uma
designação que deixa entender que os adeptos só na aparência são
muçulmanos. Os sunitas, como Ibn al-Khachab, não têm a mínima
simpatia pelos discípulos de Hassan, devido ao rompimento com o
califado fatímida que permanece, mau grado um certo
enfraquecimento, o protector encartado dos xiitas do mundo árabe.
Abominados e perseguidos por todos os muçulmanos, não
desagrada por conseguinte aos Assassinos ver chegar um exército
cristão que inflige derrota após derrota não só aos Seljúcidas como
a al-Afdal, matador de Nizar. Não há dúvida alguma de que a atitude
exageradamente conciliadora de Redwan no que toca aos
ocidentais se devia, em larga medida, aos conselhos dos batinis.
Aos olhos de Ibn al-Khachab, a convivência entre os Assassinos
e os Franj equivale a uma traição. Ele age movido por tal
sentimento. Por ocasião dos massacres que se seguem à morte de
Redwan, em fins de 1113, os batinis são acossados de rua em rua,
de casa em casa. Alguns são linchados pela multidão, outros
atirados do alto das muralhas. Perecem assim uns duzentos
membros da seita, entre os quais Abu-Taher, o ourives. No entanto,
indica Ibn al-Qalanissi, vários deles lograram fugir e refugiaram-se
junto dos Franj ou dispersaram-se pelo país.
Apesar de Ibn al-Khachab arrancar aos Assassinos o seu
principal bastião na Síria, a sua espantosa carreira ainda agora está
no início. Tirando ilações do seu falhanço, a seita muda de táctica.
O novo enviado de Hassan à Síria, um propagandista persa
chamado Bahram, decide suspender provisoriamente qualquer
acção espectacular e voltar a um trabalho minucioso e discreto de
organização e de infiltração.

Bahram, conta o cronista de Damasco, vivia no maior segredo


e no maior retiro, mudava de aspecto e de indumentária, de tal
modo que circulava nas cidades e nas praças-fortes sem que
ninguém suspeitasse da sua identidade.

Ao cabo de alguns anos, dispõe de uma rede sobejamente


poderosa para se atrever a sair da clandestinidade. Bastante a
propósito, encontra um excelente protector em substituição de
Redwan.

Um dia, diz Ibn al-Qalanissi, Bahram chegou a Damasco,


onde o atabaque Toghtekin o recebeu muito bem, por precaução
contra a sua maleficência e a do seu bando. Deram-lhe provas
de deferência e garantiram-lhe uma vigilante protecção. A
segunda personagem da metrópole síria, o vizir Tahir al-
Mazdaghani, entendeu-se com Bahram, embora não
pertencesse à sua seita, e ajudou-o a armar por todos os lados
os laços da sua maleficência.

Com efeito, não obstante a morte de Hassan as-Sabbah no seu


antro de Alamut em 1124, a actividade dos Assassinos regista um
forte recrudescimento. O homicídio de al-Khachab não é um acto
isolado. Um ano antes, um outro «resistente de turbante» da
primeira hora caía sob os seus golpes. Todos os cronistas relatam o
seu assassínio com solenidade, pois o homem que chefiara em
Agosto de 1099 a primeira manifestação de cólera contra a invasão
franca tornara-se desde então uma das mais altas autoridades
religiosas do mundo muçulmano. Do Iraque veio a notícia de que o
cádi dos cádis de Bagdad, esplendor do Islão, Abu-Saad al-Harawi,
fora atacado por batinis na grande mesquita de Hamadã. Mataram-
no à punhalada, depois fugiram num ápice, sem deixar indícios ou
rastro, e sem que ninguém os perseguisse, tão grande era o medo
que deles se tinha. O crime provocou uma viva indignação em
Bagdad, onde al-Harawi residiu longos anos. Nos meios religiosos,
principalmente, a actividade dos Assassinos suscitou uma crescente
hostilidade. Os melhores dentre os crentes sentiam-se pesarosos,
mas abstinham-se de falar, pois os batinis haviam começado a
matar os que lhes resistiam e a apoiar os que os aprovavam nos
seus desvarios. Já ninguém ousava criticá-los em público, ainda que
fosse emir, vizir ou sultão!
Este terror é justificado. Em 26 de Novembro de 1126, al-Borsoki,
o poderoso senhor de Alepo e de Mossul, sofre por seu turno a
terrível vingança dos Assassinos.

E no entanto, espanta-se Ibn al-Qalanissi, o emir estava de


sobreaviso. Ele usava uma cota de malha onde não podia
penetrar a ponta de um sabre nem a lâmina de um punhal e
rodeava-se de soldados armados até aos dentes. Mas não se
pode evitar a mão do destino. Al-Borsoki dirigira-se como de
costume à grande mesquita de Mossul para cumprir a sua
obrigação das sextas-feiras. Os celerados estavam lá, vestidos à
maneira dos sufis, a rezar a um canto sem levantar suspeitas.
De repente, saltaram sobre ele e desferiram-lhe vários golpes
sem conseguir furar a sua cota de malha. Quando os batinis
viram que os punhais não atingiam o emir, um deles gritou:
«Agridam em cima, na cabeça!» Com os seus golpes,
acertaram-lhe na garganta e encheram-no de feridas. Al-Borsoki
morreu como mártir e os seus homicidas foram justiçados.

Nunca a ameaça dos Assassinos foi tão séria. Já não se trata de


uma simples acção de flagelação, mas de uma verdadeira lepra que
corrói o mundo árabe num momento em que ele necessita de toda a
sua energia para fazer face à ocupação franca. De resto, a série
negra continua. Alguns meses após o desaparecimento de al-
Borsoki, o filho dele, que acaba de lhe suceder, é por sua vez
assassinado. Em Alepo, quatro emires rivais disputam então entre si
o poder, e Ibn al-Khachab já não está presente para manter um
mínimo de coesão. No Outono de 1127, enquanto a cidade soçobra
na anarquia, os Franj reaparecem sob os seus muros. Antioquia tem
um novo príncipe, o jovem filho do grande Boemundo, um gigante
louro de dezoito anos que acaba de chegar do seu país para tomar
posse da herança familiar. Tem o nome de baptismo do pai, e
sobretudo o seu carácter impetuoso. Os Alepinos apressam-se a
pagar-lhe tributo, e os mais derrotistas já vêem nele o futuro
conquistador da sua urbe.
Em Damasco, a situação não é menos dramática. O atabaque
Toghtekin, envelhecido e doente, já não exerce nenhum controlo
sobre os Assassinos. Eles têm a sua própria milícia armada, a
administração está nas suas mãos e o vizir al-Mazdaghani, que lhes
é devotado de corpo e alma, mantém estreitos contactos com
Jerusalém. Por sua banda, Balduíno II já não esconde a intenção de
coroar a sua carreira com a tomada da metrópole síria. Parece que
só a existência do velho Toghtekin ainda impede os Assassinos de
entregar a cidade aos Franj. Mas não demorará muito. No início de
1128, o atabaque emagrece a olhos vistos e já não consegue
levantar-se. À sua cabeceira, sucedem-se as intrigas. Depois de ter
designado seu filho Buri como sucessor, ele apaga-se a 12 de
Fevereiro. Os Damasquinos estão doravante persuadidos de que a
queda da sua cidade já não é mais que uma questão de tempo.
Ao evocar, um século mais tarde, este período crítico da História
árabe, Ibn al-Athir escreverá com justa razão:

Ao morrer Toghtekin, desaparece o último homem capaz de


fazer frente aos Franj. Estes pareciam então à altura de ocupar
toda a Síria. Mas Deus, na sua infinita bondade, condoeu-se dos
muçulmanos.
TERCEIRA PARTE

A resposta (1128-1146)

Ia eu começar a oração, quando um franco correu para


mim, me agarrou e me virou o rosto para o oriente
dizendo-me: «É assim que se reza!»

USSAMA IBN MUNQIDH, cronista (1095-1188)


CAPÍTULO VI

As Conjuras de Damasco

O vizir al-Mazdaghani apresentou-se como todos os dias no


pavilhão das Rosas, no palácio da Cidadela, em Damasco.
Estavam presentes, conta Ibn al-Qalanissi, todos os emires e
chefes militares. A assembleia ocupou-se de vários assuntos. O
senhor da cidade, Buri, filho de Toghtekin, teve uma troca de
pontos de vista com os circunstantes, depois cada qual se
ergueu para voltar à sua morada. Segundo o costume, o vizir
devia partir no fim de todos. Quando ele se pôs de pé, Buri fez
sinal a um dos seus validos e este atingiu al-Mazdaghani com
vários golpes de sabre na cabeça. Depois decapitaram-no e
levaram o seu corpo em dois pedaços para a Porta de Ferro, a
fim de toda a gente poder ver o que Deus faz aos que usam de
perfídia.

Em poucos minutos, a morte do protector dos Assassinos é


conhecida nos suks de Damasco, e logo se segue uma caça ao
homem. Uma turba imensa espalha-se pelas ruas, brandindo sabres
e punhais. Todos os batinis, os seus parentes, amigos, bem como
todos aqueles que se suspeita de simpatia a seu respeito são
acossados através da cidade, perseguidos em suas casas e
impiedosamente degolados. Os seus chefes serão crucificados nas
ameias das muralhas. Vários membros da família de Ibn al-Qalanissi
tomam activamente parte no massacre. Podemos admitir que o
cronista, por seu lado, que neste mês de Setembro de 1129 é um
alto funcionário de cinquenta e sete anos, não se misturou com a
populaça. Mas o seu tom é elucidativo do seu estado de espírito em
tão sangrentas horas: De manhã, as praças estavam
desembaraçadas dos batinis e os cães uivantes disputavam entre si
os seus cadáveres.
Os Damasquinos estavam visivelmente fartos da prepotência dos
Assassinos na sua urbe, e o filho de Toghtekin mais do que
ninguém, pois recusava-se ao papel de fantoche nas mãos da seita
e do vizir al-Mazdaghani. Para Ibn al-Athir, não se trata no entanto
de uma simples luta pelo poder, mas de salvar a metrópole síria de
um desastre iminente: Al-Mazdaghani escrevera aos Franj a propor
entregar-lhes Damasco se eles aceitassem ceder-lhe em troca a
urbe de Tiro. O acordo estava concluído. Tinham inclusive
combinado o dia, uma sexta-feira. As tropas de Balduíno II deviam
de facto chegar inesperadamente diante dos muros da cidade, cujas
portas lhes deveriam ser abertas por grupos de Assassinos
armados, estando outros comandos encarregados de guardar as
saídas da grande mesquita para impedir dignitários e militares de lá
se escapulirem até os Franj terem ocupado a urbe. Alguns dias
antes da execução deste plano, Buri, que dele tinha conhecimento,
apressara-se a eliminar o seu vizir, dando assim o sinal à população
para ela se desenfrear contra os Assassinos.
Teria este conluio existido realmente? Somos tentados a duvidar
quando sabemos que o próprio Ibn al-Qalanissi, apesar da sua
sanha verbal contra os batinis, não os acusa em momento algum de
haverem pretendido entregar as cidades aos Franj. Dito isto, a
narrativa de Ibn al-Athir não é inverosímil. Os Assassinos e o seu
aliado al-Mazdaghani sentiam-se ameaçados em Damasco, tanto
por uma crescente hostilidade popular quanto pelas intrigas de Buri
e do seu séquito. Além disso, sabiam que os Franj estavam
decididos a apoderar-se da cidade a todo o custo. Em vez de lutar
contra demasiados inimigos ao mesmo tempo, a seita pode muito
bem ter decidido arranjar um santuário como Tiro, a partir do qual
poderia enviar os seus pregadores e matadores para o Egipto
fatímida, objectivo principal dos discípulos de Hassan as-Sabbah.
A sequência dos acontecimentos parece dar crédito à tese da
conjura. Os raros batinis que sobrevivem ao massacre vão instalar-
se na Palestina, sob a protecção de Balduíno II, a quem entregam
Banias, uma sólida fortaleza situada no sopé do monte Hérmon e
que controla a estrada de Jerusalém para Damasco. De resto,
algumas semanas mais tarde, um poderoso exército franco surge
nas redondezas da metrópole síria. Ele agrupa perto de dez mil
cavaleiros e infantes vindos não só da Palestina mas também de
Antioquia, de Edessa e de Trípolis, bem como várias centenas de
guerreiros, recentemente chegados do país dos Franj, que
proclamam bem alto a sua intenção de se assenhorearem de
Damasco. Os mais fanáticos dentre deles pertencem à Ordem dos
Templários, uma ordem religiosa e militar fundada dez anos antes
na Palestina.
Não dispondo de tropas suficientes para enfrentar os invasores,
Buri chama à pressa alguns bandos de nómadas turcos e algumas
tribos árabes da região, prometendo-lhes uma boa retribuição se o
ajudarem a repelir o ataque. O filho de Toghtekin sabe que não
poderá contar por muito tempo com estes mercenários, os quais não
tardarão a desertar para se dedicarem à pilhagem. O seu primeiro
cuidado é, por isso, o de travar combate o mais cedo possível. Um
dia, em Novembro, os seus batedores informam-no de que vários
milhares de Franj foram forragear a rica planície de Ghuta. Sem
hesitar, ele manda a totalidade do seu exército persegui-los.
Apanhados completamente desprevenidos, os ocidentais são
rapidamente cercados. Alguns dos seus cavaleiros nem sequer
terão tempo de recuperar as suas montadas.

Os Turcos e os Árabes regressaram a Damasco ao fim da


tarde, triunfantes, alegres e carregados de despojos, relata Ibn
al-Qalanissi. A população regozijou-se, de coração reconfortado,
e o exército decidiu ir atacar os Franj no seu acampamento. No
dia seguinte, ao alvorecer, numerosos ginetes partiram a toda a
brida. Vendo muito fumo que se elevava, eles pensaram que os
Franj estavam lá, mas, ao aproximarem-se, descobriram que os
inimigos tinham decampado depois de deitar fogo ao seu
equipamento, pois já não possuíam animais de carga para o
transportar.

A despeito de tal desaire, Balduíno II reúne as suas tropas para


um novo ataque contra Damasco, quando, repentinamente, no início
de Setembro, uma chuva diluviana se abate sobre a região. O
terreno onde os Franj acampam transforma-se num imenso charco
de lama no qual homens e cavalos se atolam irremediavelmente.
Desolado, o rei de Jerusalém ordena a retirada.
Buri, a quem todos consideravam, quando subiu ao trono, um
emir frívolo e timorato, conseguira salvar Damasco dos dois
principais perigos que a ameaçavam, os Franj e os Assassinos.
Tirando a lição da sua derrota, Balduíno II renuncia definitivamente
a qualquer nova empresa contra a cobiçada urbe.

Mas Buri não reduziu ao silêncio todos os seus inimigos. Chegam


um dia a Damasco dois indivíduos vestidos à turca, com gabões e
barretes pontiagudos. Procuram, dizem eles, um trabalho a salário
fixo, e o filho de Toghtekin contrata-os para a sua guarda pessoal.
Numa manhã de Maio de 1131, quando o emir volta do seu
hammam ao palácio, os dois homens saltam-lhe em cima e ferem-
no na barriga. Antes de serem supliciados, confessam que o chefe
dos Assassinos os enviou da fortaleza de Alamut para vingarem os
seus irmãos, exterminados pelo filho de Toghtekin.
Chamam-se à cabeceira da vítima vários médicos e, em
particular, esclarece Ibn al-Qalanissi, cirurgiões especializados no
tratamento das feridas. Os cuidados médicos proporcionados por
essa altura em Damasco contam-se entre os melhores do Mundo.
Dukak fundou aí um hospital, um maristan; será construído outro em
1154. O viajante Ibn Jobair, que os visitará alguns anos mais tarde,
descreverá o seu funcionamento:
Cada hospital tem administradores que são responsáveis por
registos onde se inscrevem os nomes dos doentes, as despesas
feitas com o seu tratamento e a sua comida e diversos outros
elementos. Os médicos vão lá todas as manhãs, examinam os
doentes e mandam preparar remédios e alimentos susceptíveis
de os curar, consoante o que convém a cada indivíduo.

Após a visita destes cirurgiões, Buri, que já se sente melhor,


insiste em montar de novo a cavalo, e, como dantes fazia todos os
dias, em receber os seus amigos para tagarelar e beber. Mas estes
excessos serão fatais ao doente, o seu ferimento não cicatriza. A
morte sobrevem em Junho de 1132, após treze meses de
sofrimentos atrozes. Os Assassinos vingaram-se uma vez mais.
Buri terá sido o primeiro artífice da resposta vitoriosa do mundo
árabe à ocupação franca, se bem que o seu reinado demasiado
breve não haja podido deixar uma recordação duradoura. Também é
verdade que ele coincidia com a ascensão de uma personalidade de
envergadura assaz diferente: o atabaque Imadeddin Zinki, novo
senhor de Alepo e de Mossul, um homem que Ibn al-Athir não
hesitará em considerar a dádiva da Providência divina aos
muçulmanos.
À primeira vista, este oficial muito moreno, de barba
emaranhada, em nada se distingue dos muitos chefes militares
turcos que o precederam nesta interminável guerra contra os Franj.
Não raro a cair de bêbado, pronto, como eles, a recorrer a todas as
crueldades e a todas as perfídias para alcançar os seus fins, Zinki
também muitas vezes combate com mais encarniçamento os
muçulmanos do que os Franj. Quando, em 18 de Junho de 1128,
entra solenemente em Alepo, o que dele se sabe não é nada
animador. O seu principal título de glória adquiriu-o ele ao reprimir
no ano anterior uma revolta do califa de Bagdad contra os seus
protectores seljúcidas. O bonacheirão al-Mustazhir falecera em
1118, deixando o trono ao seu filho al-Mustarchid-billah, um moço de
vinte e cinco anos, de olhos azuis, cabelo ruivo, rosto salpicado de
sardas, que ambicionava reatar com a gloriosa tradição dos seus
primeiros antepassados abássidas. O momento parecia propício,
pois o sultão Moamed acabava de se finar e, segundo o costume,
iniciava-se uma guerra de sucessão. O jovem califa aproveitara
então para chamar de novo a si o controlo directo das suas tropas, o
que já não se via há oito séculos. Orador de talento, al-Mustarchid
congregara atrás de si a população da sua capital.
Paradoxalmente, na ocasião em que o Príncipe dos Crentes
rompe com uma longa tradição de indolência, o sultanato vai calhar
a um rapaz de catorze anos unicamente interessado em caçadas e
prazeres de harém. Mamude, filho de Moamed, é tratado com
condescendência por al-Mustarchid, que o aconselha
frequentemente a regressar à Pérsia. Trata-se ao fim e ao cabo de
uma revolta dos Árabes contra os Turcos, esses militares
estrangeiros que há tanto tempo os subjugam. Incapaz de enfrentar
esta sedição, o sultão apela para Zinki, então governador do rico
porto de Bassorá, ao fundo do golfo. A sua intervenção é decisiva:
batidas próximo de Bagdad, as tropas do califa entregam as suas
armas e o Príncipe dos Crentes fecha-se no palácio à espera de
melhores dias. Para recompensar Zinki pela sua preciosa ajuda, o
sultão confia-lhe, alguns meses mais tarde, o governo de Mossul e
de Alepo.
Poder-se-ia certamente imaginar feitos bélicos mais gloriosos
para este futuro herói do Islão. Mas não é sem razão que Zinki será
um dia celebrado como o primeiro grande combatente da jihad
contra os Franj. Antes dele, os generais turcos chegavam à Síria
acompanhados de soldados impacientes por pilhar e abalar com
soldo e despojos. E o efeito das suas vitórias achava-se
rapidamente anulado pela derrota seguinte. Desmobilizavam-se as
tropas para as tornar a mobilizar no ano seguinte. Com Zinki, os
usos alteram-se. Durante dezoito anos, este guerreiro infatigável irá
percorrer a Síria e o Iraque, dormindo na palha para se proteger da
lama, combatendo uns, pactuando com outros, intrigando contra
todos. Jamais lhe ocorre morar sossegadamente num dos muitos
palácios do seu vasto feudo.
A sua comitiva compõe-se, não de cortesãos e de aduladores,
mas de conselheiros políticos experimentados que ele sabe escutar.
Dispõe de uma rede de informações que o mantém constantemente
ao corrente do que se trama em Bagdad, Ispaão, Damasco,
Antioquia, Jerusalém, mas outrossim nos seus domínios, em Alepo
e Mossul. Ao contrário dos outros exércitos que tiveram de combater
os Franj, o dele não é comandado por uma chusma de emires
autónomos, sempre prontos a trair ou a brigar entre si. A disciplina é
aí rigorosa, e ao mais pequeno despropósito o castigo é impiedoso.
Segundo Kamaleddin, os soldados davam a impressão de marchar
entre duas cordas para não porem o pé num campo cultivado. Uma
vez, contará por seu lado Ibn al-Athir, um dos emires de Zinki, tendo
recebido como feudo uma pequena cidade, instalara-se na morada
de um rico comerciante judeu. Este pediu para falar com o atabaque
e expôs-lhe o seu caso. Zinki lançou um simples olhar ao emir que
evacuou imediatamente a casa. O senhor de Alepo não é aliás
menos exigente consigo do que com os outros. Ao chegar a uma
cidade, dorme fora dos muros, na sua tenda, desprezando todos os
palácios postos à sua disposição.

Além disso, segundo o historiador de Mossul, Zinki


preocupava-se muito com a honra das mulheres, sobretudo das
esposas dos soldados. Dizia que se elas não estivessem bem
guardadas, depressa se corromperiam em virtude das longas
ausências dos seus maridos durante as campanhas.

Rigor, perseverança, sentido do Estado, outras tantas qualidades


de que Zinki era provido e que faltavam dramaticamente aos
dirigentes do mundo árabe. Mais importante ainda no que toca ao
futuro: Zinki dava grande importância à legitimidade. Assim que
chega a Alepo, toma três iniciativas, três gestos simbólicos. O
primeiro é doravante clássico: desposar a filha do rei Redwan, já
viúva de Ilghazi e de Balak; o segundo: transferir os restos de seu
pai para a cidade, a fim de dar testemunho do enraizamento da sua
família neste feudo; o terceiro: obter do sultão Mamude um
documento oficial conferindo ao atabaque uma autoridade
indiscutível sobre o conjunto da Síria e o Norte do Iraque. Deste
modo, Zinki indica claramente que não é um simples aventureiro de
passagem, antes o fundador de um Estado destinado a durar para
além da sua morte. Um tal elemento de coesão, que ele introduz no
mundo árabe, só produzirá no entanto efeito ao cabo de vários
anos. As querelas intestinas ainda paralisarão por muito tempo os
príncipes muçulmanos, e até o próprio atabaque.
Contudo, o momento parece propício ao empreendimento de
uma vasta contra-ofensiva, pois a bela solidariedade que fazia até
aqui a força dos ocidentais parece seriamente posta em causa.
Dizem que a discórdia brotou entre os Franj, coisa inabitual da sua
parte. Ibn al-Qalanissi tem dificuldade em acreditar. Afirmam
inclusivamente que eles lutaram uns contra os outros e que houve
vários mortos. Mas o espanto do cronista nada é em comparação
com o de Zinki no dia em que recebe uma mensagem de Alix, filha
de Balduíno II, rei de Jerusalém, propondo-lhe uma aliança contra
seu próprio pai!
Este estranho caso começa em Fevereiro de 1130 quando o
príncipe Boemundo II de Anquioquia, que fora guerrear no Norte, cai
numa emboscada armada por Ghazi, filho do emir Danishmend que
capturara Boemundo I trinta anos antes. Menos afortunado que o
pai, Boemundo II é morto no combate, e a sua loura cabeça,
cuidadosamente embalsamada e metida numa caixa de prata, é
enviada como prenda ao califa. Quando a notícia da sua morte
chega a Antioquia, a sua viúva Alix organiza um autêntico golpe de
Estado. Com o apoio, ao que parece, da população arménia, grega
e síria de Antioquia, ela assume o controlo da cidade e entra em
contacto com Zinki. Curiosa atitude que anuncia o nascimento de
uma nova geração de Franj, a segunda, que já pouco tem em
comum com os pioneiros da invasão. De mãe arménia, nunca tendo
posto os pés na Europa, a jovem princesa sente-se oriental e age
como tal.
Informado da rebelião de sua filha, o rei de Jerusalém marcha
imediatamente para o Norte à frente do seu exército. Pouco antes
de alcançar Antioquia, ele encontra por acaso um cavaleiro de
aspecto deslumbrante, cujo corcel, de um branco imaculado, vem
ferrado de prata e abroquelado, da crina até ao peito, de uma
soberba armadura cinzelada. É uma prenda de Alix a Zinki,
acompanhada de uma carta em que a princesa pede ao atabaque
que acorra em auxílio dela e lhe promete reconhecer a sua
suserania. Depois de ter mandado enforcar o mensageiro, Balduíno
prossegue o seu caminho até Antioquia, a qual retoma rapidamente.
Alix capitula, após uma resistência simbólica na Cidadela. O pai
desterra-a para o porto de Lattaquié.
Porém, pouco depois, em Agosto de 1131, o rei de Jerusalém
morre. Sinal dos tempos é o facto de ele ter direito a um elogio
fúnebre a preceito por banda do cronista de Damasco. Os Franj já
não são, como nos primeiros tempos da invasão, uma massa
informe na qual mal se distinguem alguns chefes. A crónica de Ibn
al-Qalanissi interessa-se doravante pelos pormenores e esboça
mesmo uma análise.

Balduíno, escreve ele, era um ancião que o tempo e as


desgraças haviam polido. Caiu por várias vezes nas mãos dos
muçulmanos e escapou-lhes graças a astúcias famosas. Com o
seu desaparecimento, os Franj perderam o seu político mais
ponderado e o seu administrador mais competente. O poder
régio coube depois ao conde de Anjou, recentemente chegado
do seu país por via marítima. Mas este não era seguro no seu
juízo nem eficaz na sua administração, de tal modo que a perda
de Balduíno mergulhou os Franj na perturbação e na desordem.

O terceiro rei de Jerusalém, Foulque de Anjou, um


quinquagenário ruivo e atarracado que desposou Mélisande, a irmã
mais velha de Alix, é efectivamente um recém-chegado. Na
verdade, Balduíno, tal como a grande maioria dos príncipes francos,
não teve herdeiro varão. Em virtude da sua higiene mais do que
primitiva, e da sua falta de adaptação às condições de vida do
Oriente, os ocidentais acusam uma taxa extremamente elevada de
mortalidade infantil que afecta em primeiro lugar, e segundo uma
bem conhecida lei natural, os rapazes. Só com o tempo é que eles
aprenderão a melhorar a sua situação utilizando regularmente o
hammam e recorrendo mais aos serviços dos médicos árabes.
Ibn al-Qalanissi não erra ao desdenhar as capacidades políticas
do herdeiro vivo do Ocidente, pois é sob o reinado deste Foulque
que a «discórdia entre os Franj» irá ser mais intensa. Logo que sobe
ao trono, tem de enfrentar uma nova insurreição chefiada por Alix,
que só a custo será reprimida. Depois é na própria Palestina que a
revolta grassa. Um rumor persistente acoima a sua mulher, a rainha
Mélisande, de manter uma ligação amorosa com um jovem
cavaleiro, Hugo do Puiset. Este diferendo entre os partidários do
marido e os do amante opera uma autêntica divisão da nobreza
franca que já só vive de altercações, duelos, rumores de assassínio.
Sentindo-se ameaçado, Hugo vai procurar refúgio em Áscalon, junto
dos Egípcios, que aliás o acolhem calorosamente. Confiam-lhe
mesmo tropas fatímidas com a ajuda das quais ele se apodera do
porto de Jafa. Será aqui expulso algumas semanas mais tarde.
Em Dezembro de 1132, enquanto Foulque reúne as suas forças
para reocupar Jafa, o novo senhor de Damasco, o jovem atabaque
Ismael, filho de Buri, vem apossar-se de surpresa da fortaleza de
Banias, que os Assassinos tinham entregado aos Franj três anos
antes. Mas esta reconquista não passa de um acto isolado. De
facto, os príncipes muçulmanos, absorvidos pelas suas próprias
querelas, são incapazes de aproveitar as dissensões que agitam os
ocidentais. Até mesmo Zinki pouco se mostra na Síria. Deixando o
governo de Alepo a um dos seus lugar-tenentes, ele teve de se
envolver de novo numa luta implacável contra o califa. Mas, desta
feita, é al-Mustarchid que parece levar a melhor.
O sultão Mamude, aliado de Zinki, acaba de morrer aos vinte e
seis anos de idade, e uma vez mais rebenta uma guerra de
sucessão no meio do clã seljúcida. O Príncipe dos Crentes tira
partido disto para levantar a cabeça. Prometendo a cada
pretendente rezar a oração nas mesquitas em seu nome, ele torna-
se o verdadeiro árbitro da situação. Zinki alarma-se. Reunindo as
suas tropas, marcha sobre Bagdad no intuito de infligir a al-
Mustarchid uma derrota tão retumbante como a que assinalou o seu
primeiro confronto cinco anos antes. Mas o califa vem tolher-lhe o
passo, à cabeça de vários milhares de homens, perto da cidade de
Tikrit, à beira do Tigre, a norte da capital abássida. As tropas de
Zinki são desbaratadas e o próprio atabaque está quase a cair nas
mãos dos seus inimigos quando um homem intervém no momento
crítico para lhe salvar a vida. É o governador de Tikrit, um jovem
oficial curdo de nome então obscuro, Ayyub. Em vez de ganhar os
favores do califa entregando-lhe o seu adversário, este militar ajuda
o atabaque a atravessar o rio para escapar aos perseguidores e
regressar a Mossul a toda a pressa. Zinki jamais se esquecerá deste
gesto cavalheiresco. Devotar-lhe-á, bem como à sua família, uma
amizade indefectível, que irá determinar, muitos anos depois, a
carreira do filho de Ayyub, mais conhecido pelo cognome de
Salaheddin, ou Saladino.
Após a sua vitória sobre Zinki, al-Mustarchid está no auge da sua
glória. Sentindo-se ameaçados, os Turcos firmam a sua unidade em
torno de um único pretendente seljúcida, Massud, irmão de
Mamude. Em Janeiro de 1133, o novo sultão apresenta-se em
Bagdad para receber a sua coroa das mãos do Príncipe dos
Crentes. É, em geral, uma mera formalidade, mas al-Mustarchid
transforma a cerimónia à sua maneira. Ibn al-Qalanissi, nosso
«jornalista» da época, conta a cena.

O imã, Príncipe dos Crentes, estava sentado. Levou-se à sua


presença o sultão Massud, que lhe prestou as homenagens
devidas à sua categoria. O califa ofereceu-lhe sucessivamente
sete vestes de aparato, a última das quais era preta, uma coroa
incrustada de pedrarias, pulseiras e um colar de ouro, dizendo-
lhe: «Aceita este favor com gratidão e teme a Deus em público e
em privado.» O sultão beijou o chão e sentou-se no escabelo
previsto para ele. O Príncipe dos Crentes disse-lhe então:
«Quem não tem um bom comportamento pessoal não está apto
a dirigir os outros.» O vizir, que se achava presente, repetiu
estas palavras em persa e renovou votos e louvores. Em
seguida, o califa mandou trazer dois sabres e entregou-os
solenemente ao sultão, bem como dois pendões que atou por
suas próprias mãos. No final da entrevista, o imã al-Mustarchid
rematou com estas palavras: «Vai, leva o que eu te dei e junta-te
ao número das pessoas reconhecidas.»

O soberano abássida evidenciou uma notável segurança, ainda


que nos caiba, já se vê, tomar em linha de conta as aparências. Ele
sermoneou o turco com desenvoltura, imbuído da certeza de que a
recobrada unidade dos Seljúcidas só pode, a prazo, ameaçar o seu
poderio nascente, mas nem por isso deixou de o reconhecer como
legítimo detentor do sultanato. Em 1133, porém, continua a planear
conquistas. Em Junho, parte à frente das suas tropas na direcção de
Mossul, absolutamente decidido a apoderar-se dela e a acabar ao
mesmo tempo com Zinki. O sultão Massud não tenta dissuadi-lo
disto. Sugere-lhe mesmo que reúna a Síria e o Iraque num único
Estado sob a sua autoridade, uma ideia que será amiúde retomada
no futuro. Mas, ao mesmo passo que faz tais propostas, o seljúcida
ajuda Zinki a resistir aos assaltos do califa que durante três meses,
e em vão, assedia Mossul.
Este desaire marcará uma viragem fatal na sorte de al-
Mustarchid. Abandonado pela maioria dos seus emires, será
vencido e capturado em Junho de 1135 por Massud, que o mandará
assassinar selvaticamente dois meses depois. O Príncipe dos
Crentes será encontrado nu debaixo da sua tenda, com as orelhas e
o nariz cortados, o corpo traspassado por umas vinte punhaladas.
Completamente absorvido por este conflito, está claro que Zinki é
incapaz de se ocupar directamente dos assuntos sírios. Teria
mesmo ficado no Iraque até ao definitivo esmagamento da tentativa
de restauração abássida se não houvesse recebido, em Janeiro de
1135, um desesperado apelo de Ismael, filho de Buri e senhor de
Damasco, pedindo-lhe que viesse tomar posse da sua cidade o
mais rapidamente possível. «Se porventura se desse algum atraso,
eu seria forçado a chamar os Franj e a entregar-lhes Damasco com
tudo o que ela contém, e a responsabilidade do sangue dos seus
habitantes recairia sobre Imadeddin Zinki.»
Ismael, que teme pela sua vida e julga ver em cada recanto do
seu palácio um homicida à espreita, está resolvido a deixar a sua
capital e a ir refugiar-se, sob a protecção de Zinki, na fortaleza de
Sarkhad, a sul da cidade, para onde já mandou transportar as suas
riquezas e o seu vestuário.
Todavia, o reinado do filho de Buri tivera um começo auspicioso.
Chegado ao poder aos dezanove anos, ele deu provas de um
admirável dinamismo, do qual a melhor ilustração foi a retomada de
Banias. É bem verdade que é arrogante e não quer escutar os
conselheiros do pai nem do avô Toghtekin. Mas toda a gente
concorda em atribuir esta atitude à sua juventude. Em contrapartida,
o que os Damasquinos suportam mal é a crescente avidez do seu
senhor, que cobra regularmente novos impostos.
No entanto, só em 1134 é que a situação começou a adquirir uma
feição trágica, quando um velho escravo, chamado Ailba, outrora ao
serviço de Toghtekin, tentou assassinar o seu amo. Ismael, que
escapou à morte por um triz, insistiu em recolher ele próprio as
confissões do seu agressor. «Se agi assim», respondeu o escravo,
«foi para obter o favor de Deus, desembaraçando as pessoas da tua
existência malfazeja. Oprimiste os pobres e os desprotegidos, os
artesãos, a arraia-miúda e os camponeses. Trataste sem respeito os
civis e os militares.» E Ailba desata a citar os nomes de todos os
que, afirma ele, desejam igualmente a morte de Ismael.
Transtornado até à loucura, o filho de Buri põe-se a prender todas
as pessoas nomeadas e a dar-lhes morte sem qualquer simulacro
de processo. Estas execuções injustas não lhe bastaram, conta o
cronista de Damasco. Nutrindo suspeitas relativamente ao seu
próprio irmão, Sawinj, infligiu-lhe o pior dos suplícios fazendo-o
perecer de inanição numa cela. A sua maleficência e a sua
iniquidade nunca mais conheceram limites.
Ismael engolfa-se então num ciclo infernal. Cada execução faz
aumentar nele o medo de uma nova vingança e, na mira de se
premunir, ordena novos supliciamentos. Cônscio de não poder
prolongar tal situação, resolve entregar a sua cidade a Zinki e
retirar-se para a fortaleza de Sarkhad. Ora, o senhor de Alepo é,
desde há anos, unanimemente detestado pelos Damasquinos,
datando este sentimento de fins de 1129 quando ele escreveu a Buri
convidando-o a participar a seu lado numa expedição contra os
Franj. O que de resto o senhor de Damasco aceitara com prontidão,
enviando-lhe quinhentos cavaleiros comandados pelos seus
melhores oficiais e acompanhados pelo seu próprio filho, o
desditoso Sawinj. Depois de os ter acolhido com todas as atenções,
Zinki desarmara-os a todos e encarcerara-os, mandando dizer a
Buri que se alguma vez ousasse fazer-lhe frente os reféns ficariam
em perigo de morte. Sawinj só fora solto dois anos depois.
Em 1135, a lembrança desta traição ainda está viva na memória
dos Damasquinos e quando os dignatários da urbe se inteiram dos
projectos de Ismael decidem opor-se-lhe por todos os meios.
Efectuam-se reuniões entre os emires, os notáveis e os principais
escravos, querendo todos eles salvar a sua vida e a sua cidade. Um
grupo de conjurados decide expor a situação à mãe de Ismael, a
princesa Zomorrod, «Esmeralda».

Ela ficou horrorizada, narra o cronista de Damasco. Mandou


chamar o filho e repreendeu-o asperamente. Em seguida foi
movida, pelo seu desejo de fazer o bem, pelos seus profundos
sentimentos religiosos e pela sua inteligência, a ponderar a
maneira como o mal poderia ser extirpado pela raiz e a situação
restabelecida para Damasco e seus habitantes. Debruçou-se
sobre este caso como faria um homem de bom senso e de
experiência que examina as coisas com lucidez. Não encontrou
outro remédio para a maleficência de seu filho senão o de se
desembaraçar dele e de pôr assim cobro à crescente desordem
cuja responsabilidade lhe cabia.

A execução não se fará esperar.


A partir daí, a princesa só viveu para este projecto. Aproveitou
um momento em que o filho estava sozinho, sem escravos nem
escudeiros, e ordenou aos seus servidores que o matassem sem
piedade. Não manifestou ela própria compaixão nem pesar.
Mandou levar o cadáver para um sítio do palácio onde pudessem
descobri-lo. Toda a gente se regozijou com a queda de Ismael.
Agradeceu-se a Deus e endereçaram-se louvores e preces em
favor da princesa.

Terá Zomorrod morto o seu próprio filho para o impedir de


entregar Damasco a Zinki? É lícito pô-lo em dúvida quando se sabe
que a princesa desposará, três anos mais tarde, este mesmo Zinki,
e lhe suplicará que ocupe a sua cidade. Tão-pouco agiu para vingar
Sawinj, que era filho de uma outra mulher de Buri. Sendo assim, é
certamente preferível fiarmo-nos na explicação que nos dá Ibn al-
Athir: Zomorrod era amante do principal conselheiro de Ismael, e ao
saber que o filho tencionava matá-lo, e porventura castigá-la
também a ela, terá resolvido passar à acção.
Quaisquer que sejam as suas verdadeiras motivações, a
princesa privou assim o seu futuro marido de uma conquista fácil.
Com efeito, em 30 de Janeiro de 1135, dia do assassínio de Ismael,
Zinki vem a caminho de Damasco. Quando o seu exército atravessa
o Eufrates, uma semana depois, Zomorrod já instalou no trono outro
filho, Mamude, e a população prepara-se activamente para a
resistência. Ignorando a morte de Ismael, o atabaque envia
representantes a Damasco para estudar com este último os termos
da capitulação. É claro que os recebem cortesmente, mas sem os
pôr ao corrente do modo como a situação evoluíra recentemente.
Furioso, Zinki recusa-se a arrepiar caminho. Assenta arraial a
nordeste da cidade e incumbe os seus batedores de ver onde e
como poderá atacar. Mas depressa compreende que os defensores
estão decididos a lutar até ao fim. Têm a chefiá-los um velho
companheiro de Toghtekin, Moinuddin Unar, um militar turco
manhoso e obstinado que Zinki irá encontrar mais de uma vez no
seu caminho. Após algumas escaramuças, o atabaque resolve-se a
procurar um compromisso. A fim de lhe pouparem um vexame, os
dirigentes da cidade cercada prestam-lhe homenagens e
reconhecem, de um modo puramente nominal, a sua suserania.
Em meados de Março, o atabaque afasta-se portanto de
Damasco. Para levantar o moral das suas tropas, afectadas por esta
inútil campanha, ele condu-las imediatamente na direcção do norte
e apodera-se a uma assombrosa velocidade de quatro praças-fortes
francas, entre as quais a tristemente célebre Maara. Apesar destas
proezas, o seu prestígio ficou lesado. Só dois anos mais tarde é que
ele conseguirá, graças a uma acção retumbante, fazer esquecer o
seu revés diante de Damasco. Paradoxalmente, será então
Moinuddin Unar que lhe fornecerá, sem querer, o ensejo de se
reabilitar.
CAPÍTULO VII

Um Emir entre os Bárbaros

Em Junho de 1137, Zinki chegou, com um impressionante


material de cerco, e instalou o seu acampamento nos vinhedos que
rodeiam Homs, principal cidade da Síria Central, que é
tradicionalmente disputada por Alepinos e Damasquinos. Por ora,
estes últimos controlam-na, e o governador da urbe não é outro
senão o velho Unar. Ao ver as catapultas e as manganelas
alinhadas pelo seu adversário, Moinuddin Unar compreende que
não poderá resistir muito tempo. Ele arranja maneira de dar a saber
aos Franj que tenciona capitular. Os cavaleiros de Trípolis, que não
têm a mínima vontade de ver Zinki estabelecer-se a dois dias de
marcha da sua cidade, põem-se a caminho. O estratagema de Unar
deu óptimo resultado: temendo ser apanhado entre dois fogos, o
atabaque conclui à pressa uma trégua com o seu velho inimigo e
vira-se contra os Franj, decidido a ir cercar a mais poderosa
fortaleza deles na região, Baarin. Inquietos, os cavaleiros de Trípolis
pedem auxílio ao rei Foulque, que acorre com o seu exército. E é
ante as muralhas de Baarin, num vale cultivado em socalcos, que
ocorre por conseguinte a primeira batalha importante entre Zinki e
os Franj, o que pode espantar quando se sabe que o atabaque já é
senhor de Alepo há mais de nove anos!
O combate será curto mas decisivo. Em poucas horas, os
ocidentais, extenuados por uma longa marcha forçada, são
esmagados pela superioridade numérica do adversário e
desbaratados. Só o rei e alguns homens da sua comitiva logram
refugiar-se na fortaleza. Foulque apenas tem tempo de enviar um
mensageiro a Jerusalém para virem libertá-lo, pois logo a seguir,
contará Ibn al-Athir, Zinki cortou todas as comunicações, não
deixando passar nenhuma notícia, de tal modo que os sitiados já
não sabiam o que estava a suceder no seu país devido ao
rigorosíssimo controlo das estradas.
Um tal bloqueio não teria surtido efeito sobre os Árabes. Estes
utilizavam desde há séculos a técnica dos pombos-correio para
comunicar entre cidades. Cada exército em campanha levava
consigo pombos pertencentes a várias cidades e praças-fortes
muçulmanas. Tinham-nos amestrado de maneira a regressarem
sempre ao seu ninho de origem. Bastava, pois, enrolar uma
mensagem à volta de uma das suas patas e largá-los para eles
irem, mais depressa do que o mais rápido dos corcéis, anunciar a
vitória, a derrota ou a morte de um príncipe, pedir ajuda ou encorajar
à resistência uma guarnição cercada. À medida que a mobilização
árabe contra os Franj se organiza, começam a funcionar serviços
regulares de pombos-correios entre Damasco, Cairo, Alepo e outras
cidades, indo o Estado ao ponto de outorgar salários às pessoas
encarregadas de criar e adestrar estas aves.
É aliás no decurso da sua presença no Oriente que os Franj se
iniciarão na columbofilia, que mais tarde conhecerá uma grande
voga nos seus países. Porém, na altura do cerco de Baarin, eles
ainda desconhecem tudo acerca deste método de comunicação, o
que permite a Zinki aproveitar-se de tal facto. O atabaque, que
principia por acentuar a sua pressão sobre os sitiados, oferece-lhes
efectivamente, após uma dura negociação, vantajosos termos de
rendição: entrega da fortaleza e pagamento de cinquenta mil
dinares. Em troca disto, aceitará deixá-los abalar em paz. Foulque e
os seus homens capitulam, depois fogem à rédea solta, contentes
por se terem livrado de apuros a tão baixo preço. Pouco após
saírem de Baarin, encontraram os grandes reforços que vinham em
seu socorro e arrependeram-se, mas demasiado tarde, de se terem
rendido. Isto só fora possível, segundo Ibn al-Athir, porque os Franj
haviam ficado totalmente isolados do mundo exterior.
Zinki está tanto mais satisfeito por ter resolvido a seu favor o
caso de Baarin quanto acaba de receber notícias particularmente
alarmantes: o imperador bizantino João Comneno, que sucedeu em
1118 a seu pai Aleixo, vai a caminho do Norte da Síria com dezenas
de milhares de homens. Assim que Foulque se afasta, o atabaque
salta para o seu cavalo e galopa na direcção de Alepo. Alvo
privilegiado dos Rum no passado, a cidade está em efervescência.
Na previsão de um ataque, começaram-se a esvaziar, a toda a volta
das muralhas, os fossos onde a população, em tempo de paz, tem o
péssimo hábito de deitar o lixo. Mas não tarda que emissários do
basileus venham tranquilizar Zinki: o seu objectivo não é de forma
alguma Alepo, mas Antioquia, a urbe franca que os Rum nunca
deixaram de reivindicar. De facto, o atabaque em breve é informado,
não sem satisfação, de que ela já se acha cercada e debaixo do
bombardeamento das catapultas. Deixando os cristãos contender
entre si, Zinki vai de novo cercar Homs, onde Unar continua a fazer-
lhe frente.
Entretanto, os Rum e os Franj reconciliam-se mais depressa do
que o previsto. Para acalmar o basileus, os ocidentais prometem
devolver-lhe Antioquia, obrigando-se João Comneno a entregar-
lhes, em paga, várias cidades muçulmanas da Síria. Donde resulta,
em Março de 1138, uma nova guerra de conquista. O imperador tem
como lugar-tenentes dois chefes francos, o novo conde de Edessa,
Jocelin II, e um cavaleiro chamado Raimundo, que acaba de tomar
posse do principado de Antioquia ao desposar Constança, uma
menina de oito anos, filha de Boemundo II e de Alix.
Em Abril, os aliados deliberam cercar Chayzar, pondo em
posição dezoito catapultas e manganelas. O velho emir Sultan Ibn
Munqidh, já governador da urbe antes do início da invasão franca,
não parece de modo nenhum à altura de enfrentar as forças unidas
dos Rum e dos Franj. Segundo Ibn al-Athir, os aliados teriam
escolhido como alvo Chayzar porque esperavam que Zinki não se
preocuparia em defender com ardor uma cidade que não lhe
pertencia. Era conhecê-lo mal. O turco organiza e dirige ele próprio
a resistência. A batalha de Chayzar será para ele o ensejo de
manifestar, mais do que nunca, as suas admiráveis qualidades de
homem de Estado.
Em poucas semanas revoluciona todo o Oriente. Depois de ter
enviado mensageiros à Anatólia, os quais conseguem persuadir os
sucessores de Danishmend a atacar o território bizantino, manda
para Bagdad agitadores, que aí organizam um motim semelhante ao
que Ibn al-Khachab provocara em 1111, forçando assim o sultão
Massud a expedir tropas na direcção de Chayzar. Ele escreve a
todos os emires da Síria e da Jézira, exortando-os, sem esquecer as
ameaças, a empenhar todas as suas forças no rechaço da nova
invasão. O próprio exército do atabaque, bem menos numeroso do
que o do adversário, renunciando a um ataque de frente,
empreende uma táctica de flagelação, ao mesmo tempo que Zinki
mantém uma intensa correspondência com o basileus e os chefes
francos. Ele «informa» o imperador – o que aliás é exacto – de que
os seus aliados o temem e esperam com impaciência a sua abalada
da Síria. Aos Franj, endereça mensagens, nomeadamente a Jocelin
de Edessa e a Raimundo de Antioquia: Não compreendeis que, diz-
lhe ele, se os Rum ocupassem uma só praça-forte da Síria em breve
se apoderariam de todas as vossas cidades? Junto dos simples
combatentes bizantinos e francos, ele coloca numerosos agentes,
na sua maioria cristãos sírios, incumbidos da tarefa de propagar
rumores desmoralizantes quanto à aproximação de gigantescos
exércitos de socorro vindos da Pérsia, do Iraque e da Anatólia.
Esta propaganda dá frutos, sobretudo entre os Franj. Enquanto o
basileus, envergando o seu capacete de ouro, dirige pessoalmente
o tiro das catapultas, os senhores de Edessa e de Antioquia,
sentados numa tenda, entregam-se a infindáveis partidas de dados.
Este jogo, já conhecido no Egipto faraónico, está tão espalhado no
Oriente como no Ocidente em pleno século XII. Os Árabes
designam-no por az-zahr, uma palavra que os Franj adoptarão para
nomear não o próprio jogo, mas a sorte, o azar ou acaso.
Estas partidas de dados dos príncipes francos exasperam o
basileus João Comneno que, desalentado pela má vontade dos
seus aliados e alarmado por esses persistentes rumores sobre a
chegada de um poderoso exército de socorro muçulmano – na
realidade, este nunca saiu de Bagdad –, levanta o cerco a Chayzar
e parte a 21 de Maio de 1138 para Antioquia, onde faz a sua entrada
a cavalo, sendo seguido a pé por Raimundo e Jocelin, a quem trata
como seus escudeiros.
Para Zinki, é uma enorme vitória. No mundo árabe, onde a
aliança dos Rum e dos Franj causara tremendo pavor, o atabaque
surge doravante como um salvador. Já se vê que ele está decidido a
utilizar o seu prestígio para solucionar sem demora alguns
problemas que toma a peito, e antes de mais o de Homs. Em fins de
Maio, quando a batalha de Chayzar ainda mal terminou, Zinki firma
um curioso acordo com Damasco: casar-se-á com a princesa
Zomorrod e obterá Homs a título de dote. A mãe homicida do seu
próprio filho chega em cortejo, três meses mais tarde, diante dos
muros de Homs, para se unir solenemente ao seu novo marido.
Assistem à cerimónia representantes do sultão, dos califas de
Bagdad e do Cairo, e até mesmo embaixadores do imperador dos
Rum que, tirando a lição dos seus dissabores, decidiu manter
doravante as mais amistosas relações com Zinki.
Senhor de Mossul, de Alepo e do conjunto da Síria Central, o
atabaque erige em objectivo assenhorear-se de Damasco com a
ajuda da sua nova mulher. Ele espera que esta consiga convencer o
seu filho, Mamude, a entregar-lhe a capital sem combate. A princesa
hesita, tergiversa. Não podendo contar com ela, Zinki acaba por
desprezá-la. Porém, em Julho de 1139, numa altura em que se
encontra em Harran, ele recebe uma mensagem urgente de
Zomorrod: anuncia-lhe que Mamude acaba de ser assassinado,
apunhalado no seu leito por três dos seus escravos. A princesa roga
ao marido que marche sem delonga sobre Damasco para se
apoderar da cidade e punir os assassinos do seu filho. O atabaque
põe-se imediatamente a caminho. As lágrimas da esposa deixam-no
totalmente indiferente, mas ele considera que o desaparecimento de
Mamude pode ser aproveitado para realizar finalmente, sob a sua
égide, a unidade da Síria.
Equivalia isto a não contar com o eterno Unar, regressado a
Damasco após a cessão de Homs, e que, a seguir à morte de
Mamude, assumiu directamente o governo da urbe. Na expectativa
de uma ofensiva de Zinki, Moinuddin elaborou sem tardar um plano
secreto para lhe fazer face, se bem que, de momento, evite pô-lo
em prática e trate de organizar a defesa.
Aliás, Zinki não marcha direito à cidade cobiçada, começa por
atacar a antiga urbe romana de Baalbek, a única aglomeração de
certa importância ainda na posse dos Damasquinos. O seu intuito
consiste simultaneamente em cercar a metrópole síria e em
desmoralizar os seus defensores. No mês de Agosto, instala catorze
manganelas em torno de Baalbek, a qual flagela sem descanso na
esperança de a conquistar em poucos dias a fim de encetar o cerco
de Damasco antes do final do Verão. Baalbek capitula sem custo,
mas a sua cidadela, construída com as pedras de um antigo templo
do deus fenício Baal, resiste dois longos meses. Zinki está tão
irritado que, na altura em que a guarnição acaba por se render, em
fins de Outubro, depois de ter obtido a garantia de ser poupada, ele
ordena que se crucifiquem trinta e sete combatentes e se esfole vivo
o comandante da praça. Este acto de selvajaria, destinado a
convencer os Damasquinos de que toda a resistência se confundiria
com um autêntico suicídio, produz o efeito contrário. Solidamente
unida em volta de Unar, a população da metrópole síria está mais do
que nunca apostada em bater-se até ao fim. De qualquer maneira, o
Inverno aproxima-se e Zinki não pode pensar no assalto antes da
Primavera. Unar utilizará estes poucos meses de trégua para
aperfeiçoar o seu plano secreto.
Em Abril de 1140, quando o atabaque acentua a sua pressão e
se apresta para um ataque geral, é justamente o momento em que
Unar opta por aplicar o seu plano: pedir ao exército dos Franj,
comandado pelo rei Foulque, que venha em força socorrer
Damasco. Não se trata de uma simples operação esporádica, mas
de concretização de um tratado de aliança formal que irá prolongar-
se para além da morte de Zinki.
De facto, já em 1138 Unar enviara a Jerusalém um seu amigo, o
cronista Ussama Ibn Munqidh, para estudar a possibilidade de uma
colaboração franco-damasquina contra o senhor de Alepo. Ussama,
que fora bem recebido, obtivera um acordo de princípio. Depois de
múltiplas trocas de embaixadas, o cronista tornara a partir para a
cidade santa no início de 1140 com propostas precisas: o exército
franco forçaria Zinki a afastar-se de Damasco; as tropas dos dois
Estados unir-se-iam em caso de novo perigo; Moinuddin pagaria
vinte mil dinares para cobrir as despesas das operações militares;
por fim, seria levada a cabo uma expedição comum, sob a
responsabilidade de Unar, para ocupar a fortaleza de Banias,
governada desde há pouco por um vassalo de Zinki, e restituí-la ao
rei de Jerusalém. Para provar a sua boa fé, os Damasquinos
confiariam aos Franj alguns reféns escolhidos nas famílias dos
principais dignitários da cidade.
Tratava-se praticamente de viver sob um protectorado franco,
mas a população da metrópole síria resigna-se a isto. Apavorada
com os métodos brutais do atabaque, ela aprova unanimemente o
tratado negociado por Unar, cuja política se revela, em todo o caso,
inegavelmente eficaz. Receando ser apanhado entre os braços de
uma tenaz, Zinki retira-se para Baalbek, a qual dá como feudo a um
homem seguro, Ayyub, antes de se afastar ele próprio, com o seu
exército, na direcção do norte, prometendo ao pai de Saladino voltar
em breve para se vingar do seu desaire. Após a partida do
atabaque, Unar ocupa Banias e entrega-a aos Franj, em
conformidade com o tratado de aliança. Em seguida, vai visitar
oficialmente o reino de Jerusalém.
Acompanha-o Ussama, o qual se transformou, por assim dizer,
no grande especialista em questões francas de Damasco.
Felizmente para nós, o emir cronista não se limita às negociações
diplomáticas. Ele é, antes de tudo, um espírito curioso e um
observador perspicaz que nos deixará um testemunho inolvidável
sobre os costumes e a vida quotidiana no tempo dos Franj.
Quando eu visitava Jerusalém, tinha o hábito de me dirigir à
mesquita al-Aqsa, local de residência dos meus amigos
templários. Havia num dos lados um pequeno oratório onde os
Franj tinham instalado uma igreja. Os Templários punham este
lugar à minha disposição para eu aí fazer as minhas orações.
Certo dia, entrei, disse «Allahu Akbar!» e ia começar a oração
quando um homem, um Franj, correu para mim, me agarrou e
me virou o rosto para o oriente, dizendo-me: «É assim que se
reza!» Logo a seguir, alguns Templários acudiram e arredaram-
no de mim. Voltei portanto à minha oração, mas o tal homem,
aproveitando um momento de desatenção, atirou-se de novo a
mim, virou-me o rosto para o oriente, repetindo: «É assim que se
reza!» Também desta vez os Templários intervieram, afastaram-
no e pediram-me desculpa, dizendo: «É um estrangeiro. Acaba
de chegar do país dos Franj e nunca viu ninguém rezar sem se
virar para o oriente.» Respondi que já rezara o suficiente e saí,
estupefacto com o comportamento daquele demónio que se
agastara tanto ao ver-me rezar na direcção de Meca.

Se o emir Ussama não hesita em chamar aos Templários «meus


amigos», é porque considera que os seus costumes bárbaros se
poliram em contacto com o Oriente. Entre os Franj, explica ele,
vemos alguns que vieram fixar-se no meio de nós e cultivaram a
sociedade dos muçulmanos. Eles são bastante superiores aos que
se lhes juntaram recentemente nos territórios que ocupam. A seus
olhos, o incidente da mesquita al-Aqsa é «um exemplo da grosseria
dos Franj». Cita outros, recolhidos no decurso das suas frequentes
visitas ao reino de Jerusalém.

Encontrava-me em Tiberíade num dia em que os Franj


celebravam uma das suas festas. Os cavaleiros tinham saído da
cidade para se dedicarem a um jogo de lanças. Haviam levado
consigo duas velhas decrépitas que foram colocadas numa
extremidade do hipódromo, enquanto na outra estava um porco,
suspenso de um rochedo. Os cavaleiros tinham então
organizado uma corrida a pé entre as duas velhas. Cada uma
delas avançava escoltada por um grupo de cavaleiros que lhe
obstruíam o caminho. A cada passo que davam, elas caíam e
depois levantavam-se de novo, no meio de grandes gargalhadas
dos espectadores. No fim, uma das velhas, chegada em primeiro
lugar, agarrou no porco como prémio da sua vitória.

Um emir tão letrado e requintado como Ussama não pode


apreciar estas truanices. Mas o seu ar condescendente converte-se
num esgar de repulsa quando observa qual é a justiça dos Franj.

Em Naplusa, conta ele, tive ensejo de assistir a um curioso


espectáculo. Dois homens deviam defrontar-se em combate
singular. O motivo era o seguinte: uns bandidos muçulmanos
tinham invadido uma aldeia vizinha, e suspeitava-se que um
certo cultivador lhes servira de guia. Ele fugira, mas em breve
tivera de voltar, pois o rei Foulque mandara prender os seus
filhos. «Trata-me com equidade», pedira-lhe o cultivador, «e
permite que eu me meça com quem me acusou.» O rei dissera
então ao senhor que recebera a aldeia como feudo: «Manda vir o
adversário.» O senhor escolhera um ferreiro que trabalhava na
aldeia, dizendo-lhe: «És tu que irás bater-te em duelo.» Acima de
tudo, o detentor do feudo não queria que um dos seus
camponeses perdesse a vida, receando que as suas culturas
sofressem com isso. Vi por conseguinte o tal ferreiro. Era um
moço forte, mas que, a andar ou sentado, tinha sempre vontade
de pedir qualquer coisa para beber. Quanto ao acusado, era um
velhote corajoso que dava estalidos com os dedos em sinal de
desafio. O visconde, governador de Naplusa, aproximou-se, deu
a cada um dos dois uma lança e um escudo e mandou dispor os
espectadores em círculo a toda a volta.
Começou a luta, continua Ussama. O velho impelia o ferreiro
para trás, atirava-o contra a multidão, depois regressava ao meio
da arena. Houve uma troca de golpes tão violenta que os rivais
pareciam já só formar uma única coluna de sangue. O combate
prolongou-se, apesar dos incitamentos do visconde que
pretendia apressar o desfecho. «Mais depressa!», gritava-lhes
ele. Por fim, o ancião ficou esfalfado e o ferreiro, tirando partido
da sua experiência no manejo do martelo, desferiu-lhe um golpe
que o derrubou e o fez largar a lança. Depois agachou-se por
cima dele a fim de lhe meter os dedos nos olhos, mas sem o
lograr por causa dos jorros de sangue que escorriam. Então o
ferreiro ergueu-se e liquidou o seu adversário com uma lançada.
Ataram logo ao pescoço do cadáver uma corda com a qual o
arrastaram até à forca, onde o penduraram. Vede, por
semelhante exemplo, como é a justiça dos Franj!

Nada de mais natural que esta indignação do emir, visto que para
os Árabes do século XII a justiça é uma coisa séria. Os juízes, os
cádis, são personagens altamente respeitadas que, antes de emitir
a sentença, têm a obrigação de seguir um procedimento bem
definido, estipulado pelo Alcorão: requisitório, defesa, testemunhos.
O «juízo de Deus», a que os ocidentais recorrem frequentemente,
afigura-se-lhes uma farsa macabra. O duelo descrito pelo cronista
não é mais que uma das formas do ordálio. A prova do fogo é outra.
E existe igualmente o suplício da água, que Ussama descobre com
horror:

Tinham instalado uma grande barrica cheia de água. O jovem


que era objecto de suspeita foi amarrado, suspenso de uma
corda pelas omoplatas e deixado cair na barrica. Se estivesse
inocente, diziam eles, mergulharia na água, e puxá-lo-iam por
meio da mesma corda. Se fosse culpado, ser-lhe-ia impossível
afundar-se na água. O infeliz, quando o lançaram na barrica, fez
esforços para ir até ao fundo, mas não o conseguiu e teve de
submeter-se aos rigores da lei deles, que Deus os amaldiçoe!
Enfiaram-lhe então nos olhos um punção de prata em brasa e
cegaram-no.
A opinião do emir sírio acerca dos «bárbaros» não se modifica
nada quando fala do saber deles. No século XII, os Franj estão muito
atrasados em relação aos Árabes em todos os domínios científicos
e técnicos. Mas é no da medicina que é o maior fosso entre o
Oriente desenvolvido e o Ocidente primitivo. Ussama observa a
diferença:

Um dia, o governador franco de Muneitra, no monte Líbano,


escreveu ao meu tio Sultan, emir de Chayzar, rogando-lhe que
enviasse um médico para tratar alguns casos urgentes. O meu
tio escolheu um médico cristão da nossa terra chamado Thabet.
Este apenas se ausentou alguns dias, voltando depois para junto
de nós. Estávamos todos muito curiosos de saber como pudera
ele obter tão depressa a cura dos doentes, e instámo-lo com
perguntas. Thabet respondeu: «Trouxeram à minha presença um
cavaleiro que tinha um abcesso na perna e uma mulher que
sofria de consumpção. Pus um emplastro ao cavaleiro; o tumor
abriu e melhorou. À mulher, receitei uma dieta para lhe baixar a
temperatura.» Mas chegou então um médico franco e disse:
«Este homem não sabe tratar deles!» E, dirigindo-se ao
cavaleiro, perguntou-lhe: «O que preferes, viver com uma só
perna ou morrer com as duas?» Tendo o paciente respondido
que antes queria viver com uma só perna, o médico ordenou:
«Tragam-me um cavaleiro robusto com um machado bem
afiado.» Vi chegar logo o cavaleiro e o machado. O médico
franco assentou a perna sobre um cepo de madeira, dizendo ao
recém-chegado: «Dá uma boa machadada para a cortar de lado
a lado!» Sob o meu olhar, o homem desferiu na perna um
primeiro golpe, depois, como ela ainda estava presa, bateu-lhe
uma segunda vez. A medula da perna esguichou e o ferido
morreu no mesmo instante. Quanto à mulher, o médico franco
examinou-a e disse: «Tem em cima da cabeça um demónio que
se apaixonou por ela. Cortem-lhe o cabelo!» Cortaram-lho. A
mulher recomeçou então a comer os seus alimentos com alho e
mostarda, o que agravou a consumpção. «Nesse caso, é porque
o diabo entrou na cabeça», afirmou o médico deles. E, pegando
numa navalha, fez-lhe uma incisão em forma de cruz, deixou à
mostra o osso da cabeça e esfregou-o com sal. A mulher morreu
ali mesmo. Perguntei então: «Já não precisam de mim?»
Disseram-me que não, e vim-me embora depois de ter aprendido
acerca da medicina dos Franj muitas coisas que ignorava.

Escandalizado com a ignorância dos ocidentais, o certo é que


Ussama ainda o fica mais com os seus costumes: «Os Franj»,
exclama ele, «não têm o sentido da honra! Se um deles sai à rua
com a esposa e encontra outro homem, este toma a mão da mulher,
puxa-a para o lado a fim de lhe falar, enquanto o marido se afasta
aguardando que ela acabe a conversa. Se a coisa dura demasiado
tempo, deixa-a com o seu interlocutor e vai-se embora!» E o emir
sente-se perturbado: «Reparai nesta contradição. Tal gente não tem
ciúmes nem sentido de honra, quando afinal tem tanta coragem! A
coragem não provém no entanto senão do sentido da honra e do
desprezo pelo que está mal!»
Quanto mais aprende a seu respeito, mais Ussama faz uma triste
ideia dos ocidentais. Só admira neles as qualidades guerreiras.
Compreendemos assim que no dia em que um dos «amigos» que
arranjou entre eles, um cavaleiro do exército do rei Foulque, lhe
propõe levar o seu filho ainda novinho para a Europa a fim de o
iniciar nas regras da cavalaria, o emir decline educadamente o
convite, dizendo com os seus botões que antes queria ver o seu
filho «na prisão do que no país dos Franj». A confraternização com
estes estrangeiros tem limites. Aliás, essa famosa colaboração entre
Damasco e Jerusalém, que forneceu a Ussama o inesperado ensejo
de conhecer melhor os ocidentais, depressa aparecerá como um
curto entreacto. Um acontecimento espectacular irá em breve reatar
a guerra a todo o transe contra o ocupante: no sábado 23 de
Dezembro de 1144, a cidade de Edessa, capital do mais antigo dos
quatro Estados francos do Oriente, caiu nas mãos do atabaque
Imadeddin Zinki.
Se a queda de Jerusalém em Julho de 1099 assinalou o triunfo
da invasão franca, e a de Tiro em Julho de 1124 o fim da fase de
ocupação, a reconquista de Edessa ficará na História como a
coroação da riposta árabe aos invasores e o início da longa marcha
para a vitória.
Ninguém previa que a ocupação iria ser posta em causa de uma
maneira tão estrondosa. É verdade que Edessa não passava de um
posto avançado da presença franca, mas os seus condes haviam
logrado integrar-se plenamente no jogo político local, sendo o último
senhor ocidental desta urbe de maioria arménia Jocelin II, um
baixote barbudo de nariz proeminente, olhos exorbitados, corpo
desproporcionado, que nunca brilhara pela coragem nem pela
sabedoria. Mas os seus súbditos não o detestavam, sobretudo
porque ele era de mãe arménia, e a situação do seu domínio não
parecia de modo nenhum crítica. Trocava com os seus vizinhos
umas razias de rotina que se concluíam habitualmente por tréguas.
Mas, bruscamente, nesse Outono de 1144, a situação muda.
Mercê de uma hábil manobra militar, Zinki põe termo a meio século
de dominação franca nesta parte do Oriente, alcançando uma vitória
que vai agitar os poderosos e os humildes, desde a Pérsia ao
longínquo país dos «Alman», e servir de prelúdio a uma nova
invasão chefiada pelos maiores reis dos Franj.
A narrativa mais emocionante da conquista de Edessa é a que
nos deixou uma testemunha ocular, o bispo sírio Abul-Faraj Basílio,
que se viu directamente envolvido nos acontecimentos. A sua
atitude durante a batalha ilustra bem o drama das comunidades
cristãs orientais a que ele pertence. Tendo a sua cidade sido
atacada, Abul-Faraj participa activamente na defesa dela, mas ao
mesmo tempo as suas simpatias vão mais para o exército
muçulmano do que para os seus «protectores» ocidentais, que ele
não tem em muito alta estima.

O conde Jocelin, conta ele, fora rapinar nas margens do


Eufrates. Zinki soube disso. Em 30 de Novembro, já estava às
portas das muralhas de Edessa. As suas tropas eram tão
numerosas como as estrelas do céu. Todas as terras que
rodeiam a cidade ficaram cheias delas. Ergueram-se tendas por
toda a parte, e o atabaque colocou a sua a norte da urbe, frente
à Porta das Horas, no alto de uma colina que dominava a igreja
dos Confessores.

Se bem que situada num vale, Edessa era difícil de tomar, pois o
seu poderoso recinto triangular achava-se solidamente imbricado
nas colinas circundantes. Mas, explica Abul-Faraj, Jocelin não
deixara nenhuma tropa. Só havia sapateiros, tecelões, mercadores
de sedas, alfaiates, sacerdotes. A defesa será portanto assegurada
pelo bispo franco da cidade, assistido por um prelado arménio e
pelo próprio cronista, não obstante favorável a um acordo com o
atabaque.

Zinki, conta ele, dirigia constantemente propostas de paz aos


sitiados, dizendo-lhes: «Ó infelizes! Bem vedes que toda a
esperança está perdida. O que pretendeis? O que esperais?
Apiedai-vos de vós próprios, dos vossos filhos, das vossas
mulheres, das vossas casas! Fazei que a vossa urbe não seja
devastada e privada de habitantes!» Mas não havia na cidade
nenhum chefe capaz de impor a sua vontade. Respondia-se
tolamente a Zinki por meio de bravatas e de injúrias.

Vendo que os sapadores começam a escavar minas sob as


muralhas, Abul-Faraj sugere que se escreva uma carta a Zinki
propondo-lhe uma trégua, ao que o bispo franco dá o seu
consentimento. «Escrevemos a carta e lemo-la ao povo, mas um
homem insensato, um mercador de seda, estendeu a mão, arrancou
a carta e rasgou-a.» Contudo, Zinki não cessava de repetir: «Se
desejais uma trégua de alguns dias, concedê-la-emos para ver se
obtereis ajuda. Caso contrário, rendei-vos e vivei!»
Mas não chega qualquer socorro. Embora avisado bastante cedo
da ofensiva contra a sua capital, Jocelin não ousa medir-se com as
forças do atabaque. Prefere instalar-se em Tell Bacher aguardando
que as tropas de Antioquia ou de Jerusalém venham em seu auxílio.

Os Turcos tinham agora arrancado os alicerces do muro


setentrional e, em seu lugar, posto madeira, traves, troncos em
quantidade. Eles tinham enchido os interstícios de nafta, de sebo
e de enxofre para o braseiro se inflamar mais facilmente e o
muro desabar. Então, a uma ordem de Zinki, deitaram fogo. Os
arautos do seu acampamento gritaram para que todos se
aprestassem ao combate, chamando os soldados a introduzirem-
se pela brecha logo que o muro caísse, prometendo abandonar-
lhes a cidade ao saque durante três dias. O fogo pegou à nafta e
ao enxofre e inflamou a madeira e o sebo derretido. O vento
soprava de norte e empurrava o fumo para os defensores.
Apesar da sua solidez, o muro abanou e em seguida aluiu.
Depois de terem perdido muitos dos seus junto à brecha, os
Turcos penetraram na cidade e desataram a massacrar
indistintamente as pessoas. Nesse dia pereceram cerca de seis
mil habitantes. As mulheres, as crianças e os rapazes
precipitaram-se em direcção da cidadela alta para escapar ao
massacre. Encontraram a porta fechada por culpa do bispo dos
Franj, que dissera aos guardas: «Não abrais a porta se não
virdes o meu rosto!» Assim, os grupos subiam uns atrás dos
outros e espezinhavam-se. Espectáculo lastimoso e horrendo:
atropelados, asfixiados, volvidos como que numa só massa
compacta, cerca de cinco mil pessoas, ou talvez mais,
pereceram atrozmente.

É no entanto Zinki que vai intervir pessoalmente para deter a


matança, antes de enviar o seu principal lugar-tenente ao encontro
de Abul-Faraj. «Venerável, desejamos que nos jures, sobre a Cruz e
o Evangelho, que tu e a tua comunidade nos permanecereis fiéis.
Sabes muito bem que esta cidade, durante os duzentos anos em
que os Árabes a governaram, foi florescente como uma metrópole.
Agora, há cinquenta anos que os Franj a ocupam, e já bastou para a
arruinarem. O nosso senhor Imadeddin Zinki está disposto a tratar-
vos bem. Vivei em paz, ficai em segurança sob a sua autoridade e
orai pela sua vida.»

De facto, prossegue Abul-Faraj, fizemos sair da cidadela os


sírios e os arménios, e todos eles regressaram a suas casas
sem ser inquietados. Aos Franj, em contrapartida, arrebatou-se
tudo o que tinham consigo, o ouro, a prata, os vasos sagrados,
os cálices, as patenas, as cruzes ornamentadas e uma
quantidade de jóias. Puseram de lado os padres, os nobres e os
notáveis; despojaram-nos das suas roupas antes de os
mandarem, acorrentados, para Alepo. Dos restantes, tiraram os
artesãos, que Zinki guardou junto a si como prisioneiros para os
fazer trabalhar cada qual no seu ofício. Todos os outros Franj,
aproximadamente cem homens, foram executados.

Assim que é conhecida a notícia da reconquista de Edessa, o


mundo árabe dá largas ao seu entusiasmo. Atribuem-se a Zinki os
mais ambiciosos projectos. Os refugiados da Palestina e das
cidades costeiras, abundantes no séquito do atabaque, já começam
a falar de reconquistar Jerusalém, um objectivo que em breve se
tornará no símbolo da resistência aos Franj.
O califa tem pressa de conferir ao herói do dia alguns títulos
prestigiosos: al-malek al-mansur, «o rei vitorioso», zain-el-islam,
«ornamento do Islão», nassir amir al-muminin, «sustentáculo do
príncipe dos crentes». À semelhança de todos os dirigentes da
época, Zinki alinha orgulhosamente os seus cognomes, símbolos do
seu poderio. Numa nota finamente satírica, Ibn al-Qalanissi pede
desculpa aos seus leitores por ter escrito na sua crónica «o sultão
fulano», «o emir» ou o «atabaque», sem lhes acrescentar os seus
títulos completos. Com efeito, explica ele, há desde o século X uma
tal inflação de cognomes honoríficos que o seu texto se tornaria
ilegível se ele quisesse citá-los todos. Exprimindo uma discreta
nostalgia da época dos primeiros califas, que se contentavam com o
título, soberbo na sua simplicidade, de «príncipe dos crentes», o
cronista de Damasco cita vários exemplos para ilustrar as suas
palavras, entre os quais precisamente o de Zinki. Todas as vezes
que menciona o atabaque, Ibn al-Qalanissi recorda que deveria
escrever, textualmente:

O emir, o general, o grande, o justo, o ajudante de Deus, o


triunfador, o único, o pilar da religião, a pedra angular do Islão, o
ornamento do Islão, o protector das criaturas, o associado da
dinastia, o auxiliar da doutrina, a grandeza da nação, a honra
dos reis, o apoio dos sultões, o vencedor dos infiéis, dos
rebeldes e dos ateus, o chefe dos exércitos muçulmanos, o rei
vitorioso, o rei dos príncipes, o sol dos méritos, o emir dos dois
Iraques e da Síria, o conquistador do Irão, Bahlawan Jihan Alp
Inassaj Kotlogh Toghrulbeg atabaque Abu-Said Zinki Ibn Aq
Sonqor, sustentáculo do príncipe dos crentes.

Para além do seu cunho pomposo, do qual o cronista de


Damasco se sorri irreverenciosamente, no entanto estes títulos
reflectem bem o lugar preponderante que Zinki ocupa doravante no
mundo árabe. Os Franj tremem só de ouvir pronunciar o seu nome.
A sua aflição é tanto maior quanto o rei Foulque morreu pouco antes
da queda de Edessa, deixando dois filhos menores. A mulher dele,
que assegura a regência, despachou-se a enviar emissários ao país
dos Franj levando a notícia do desastre que o seu povo acaba de
sofrer. Fizeram-se então apelos em todos os seus territórios, diz Ibn
al-Qalanissi, para que as pessoas acorressem ao assalto da terra do
Islão.
Como para confirmar os receios dos ocidentais, Zinki volta à Síria
após a sua vitória, mandando clamar que prepara uma ofensiva de
grande envergadura contra as principais cidades detidas pelos
Franj. A princípio, estes projectos são acolhidos com entusiasmo
pelas cidades sírias. Mas a pouco e pouco os Damasquinos
interrogam-se sobre as verdadeiras intenções do atabaque, que se
instalou em Baalbek, tal como o fizera em 1139, para aí construir
numerosíssimas máquinas de cerco. Não seria porventura os
próprios Damasquinos que ele contaria atacar a coberto da jihad?
Jamais o saberemos, pois em Janeiro de 1146, numa altura em
que os seus preparativos para a campanha da Primavera pareceram
terminados, Zinki vê-se constrangido a partir de novo na direcção do
norte: os seus espiões informaram-no de que está a ser urdido um
conluio por Jocelin, de Edessa, juntamente com alguns dos seus
amigos arménios que ficaram na urbe, para massacrar a guarnição
turca. Logo que regressa à cidade conquistada, o atabaque torna a
controlar a situação, executa todos os partidários do antigo conde e,
com vista a reforçar o partido antifranco no seio da população,
instala em Edessa trezentas famílias judias cujo apoio indefectível
lhe está garantido.
Este alerta convence Zinki de que mais vale, pelo menos
provisoriamente, renunciar a alargar o seu domínio e dedicar-se a
consolidá-lo. Há, em especial, na estrada real que liga Alepo a
Mossul, um emir árabe que governa a poderosa fortaleza de Jaabar,
situada à beira do Eufrates, e se recusa a reconhecer a autoridade
do atabaque. Na medida em que a sua insubmissão pode ameaçar
impunemente as comunicações entre as duas capitais, Zinki, em
Junho de 1146, vem pôr cerco a Jaabar. Espera tomá-la em poucos
dias, mas a empresa mostra-se mais difícil do que supunha.
Decorrem três longos messes sem que a resistência dos assediados
enfraqueça.
Uma noite de Setembro, o atabaque adormece depois de ter
ingurgitado uma grande quantidade de álcool. De súbito, é
despertado por um ruído na sua tenda. Abrindo os olhos, lobriga um
dos seus eunucos, um tal Yarankach, de origem franca, que bebe
vinho na sua própria taça, o que desencadeia o furor do atabaque
que jura castigá-lo severamente no dia seguinte. Receando a ira do
seu amo, Yarankach aguarda que ele readormeça, criva-o de
punhaladas e foge para Jaabar, onde o cobrem de prendas.
Zinki não morre logo. Enquanto jaz semi-inconsciente, um dos
seus validos entra na tenda. Ibn al-Athir referirá o seu testemunho:
Ao ver-me, o atabaque pensou que eu vinha liquidá-lo e, com
um gesto de dedo, pediu-me misericórdia. Eu, emocionado, caí
de joelhos e disse-lhe: Senhor, quem te fez isto? Mas ele não
pôde responder-me e exalou o último suspiro. Deus o tenha em
descanso!

A trágica morte de Zinki, sobrevinda pouco depois do seu triunfo,


impressionará os contemporâneos. Ibn al-Qalanissi comenta o
acontecimento em verso:

A manhã mostrou-o estendido no leito, onde o seu eunuco o


degolara,
E no entanto ele dormia no meio de um exército altaneiro,
rodeado dos seus bravos e de sabres,
Pereceu sem que lhe servissem riquezas ou poderio,
Os seus tesouros volveram-se presa dos outros, sendo
espedaçados por seus filhos e adversários,
Após a sua morte, ergueram-se os seus inimigos,
empunhando a espada que não ousavam brandir em vida dele.

De facto, depois do desaparecimento de Zinki, impera a


ganância. Os seus soldados, ainda há pouco disciplinados,
transformam-se numa horda de pilhantes desencabrestados. O seu
tesouro, as suas armas e até mesmo os seus pertences pessoais
somem-se num abrir e fechar de olhos. Em seguida, o exército
começa a dispersar-se. Um após outro, os emires reúnem os seus
próprios homens e apressam-se a ir ocupar alguma fortaleza ou a
aguardar, em segurança, a sequência dos acontecimentos.
Ao tomar conhecimento da morte do seu adversário, Moinuddin
Unar deixa imediatamente Damasco à cabeça das suas tropas e
apodera-se de Baalbek, restabelecendo em poucas semanas a sua
suserania sobre o conjunto da Síria Central. Raimundo de Antioquia,
reatando uma tradição esquecida, lança uma incursão até aos
muros de Alepo. Jocelin intriga cada vez mais para se reapoderar de
Edessa.
A epopeia do poderoso Estado fundado por Zinki parece
acabada. Na realidade, ela só agora começa.
QUARTA PARTE

A vitória (1146-1187)

Meu deus, dá a vitória ao Islão e não a Mamude.


Quem é o cão Mamude para merecer a vitória?

NUREDDIN MAMUDE,
unificador do Oriente árabe (1117-1174)
CAPÍTULO VIII

O Santo Rei Nuredinn

Na altura em que reina a confusão no acampamento de Zinki, só


um homem permanece imperturbável. Tem vinte e nove anos, é
bastante alto, de tez escura, rosto barbeado excepto no queixo,
fronte larga, olhar doce e sereno. Abeira-se do corpo ainda morno
do atabaque, pega-lhe na mão a tremer, retira-lhe o anel, símbolo do
poder, e enfia-o no seu próprio dedo. Chama-se Nureddin. É o
segundo filho de Zinki.
Li as vidas dos soberanos dos tempos idos, e não encontrei entre
eles nenhum homem, excepto os primeiros califas, que fosse tão
virtuoso e tão justo como Nureddin. Ibn al-Athir votará com razão um
autêntico culto a este príncipe. Se o filho de Zinki herdou as
qualidades do pai – austeridade, coragem, sentido do Estado –,
também é verdade que não conservou nenhum desses defeitos que
tornaram o atabaque tão odioso a certos dos seus contemporâneos.
Ao passo que Zinki assustava pela sua truculência e total ausência
de escrúpulos, Nureddin consegue, mal entra em cena, dar de si a
imagem de um homem piedoso, reservado, justo, respeitador da
palavra dada e inteiramente dedicado à jihad contra os inimigos do
Islão.
Mais importante ainda, pois reside aqui o seu génio, vai erigir as
suas virtudes em temível arma política. Compreendendo, neste
meado do século XII, o insubstituível papel que a mobilização
psicológica pode desempenhar, ele instaura um verdadeiro aparelho
de propaganda. Várias centenas de letrados, homens de religião na
sua maior parte, vão ser incumbidos da missão de lhe granjear a
simpatia do povo e de forçar assim os dirigentes do mundo árabe a
enfileirar sob a sua bandeira. Ibn al-Athir narrará as queixas de um
emir da Jézira que foi certo dia «convidado» pelo filho de Zinki a
participar numa campanha contra os Franj.

Se eu não correr em socorro de Nureddin, diz o emir, ele


arrebatar-me-á o meu domínio, pois já escreveu aos devotos e
aos ascetas para lhes pedir a ajuda das suas preces e encorajá-
los a incitar os muçulmanos à jihad. Presentemente, cada um
destes homens está sentado com seus discípulos e
companheiros a ler as cartas de Nureddin, a chorar e a
amaldiçoar-me. Se eu quiser evitar o anátema, devo anuir ao seu
pedido.

De resto, o próprio Nureddin superintende o seu aparelho de


propaganda. Encomenda poemas, cartas, livros e vela pela sua
difusão no momento escolhido para surtir o efeito desejado. Os
princípios que apregoa são simples: uma só religião, o islamismo
sunita, o que implica uma luta encarniçada contra todas as
«heresias»; um só Estado, para cercar os Franj por todos os lados;
um só objectivo, a jihad, para reconquistar os territórios ocupados e
sobretudo libertar Jerusalém. Ao longo dos seus vinte e oito anos de
reinado, Nureddin incitará vários ulemás a escrever tratados
enaltecendo os méritos da cidade santa, al-Quds, e organizar-se-ão
sessões públicas de leitura nas mesquitas e nas escolas.
Nestas ocasiões, ninguém se esquece de fazer o elogio do
mujahid supremo, do muçulmano irrepreensível que é Nureddin.
Mas um tal culto da personalidade é tanto mais hábil e eficaz quanto
se baseia, paradoxalmente, na humildade e na austeridade do filho
de Zinki.
Segundo Ibn al-Athir:
A mulher de Nureddin queixou-se uma vez de não ter
suficiente dinheiro para prover às suas necessidades. Ele
destinou-lhe três lojas que possuía a título pessoal em Homs e
que rendiam uns vinte dinares por ano. Como ela achasse que
não era bastante, retorquiu-lhe ele: «Nada mais tenho. De todo o
dinheiro que disponho, não sou mais que o tesoureiro dos
muçulmanos, e não tenciono traí-los nem lançar-me no fogo do
Inferno por tua causa.»

Largamente difundidas, tais afirmações revelam-se


particularmente embaraçosas para os príncipes da região que vivem
no luxo e espremem os seus súbditos a fim de lhes arrancar as mais
pequenas poupanças. Realmente, a propaganda de Nureddin põe
constantemente a tónica nas supressões de impostos que ele
pratica de maneira geral nos países sujeitos à sua autoridade.
Embaraçoso para os seus adversários, o filho de Zinki também o
é frequentemente para os seus próprios emires. Com o tempo,
tornar-se-á cada vez mais rigoroso no que toca aos preceitos
religiosos. Não contente com proibir o álcool a si mesmo, proibi-lo-á
completamente ao seu exército, «bem como o tamborim, a flauta e
outros objectos que desagradam a Deus», esclarece Kamaleddin, o
cronista de Alepo, que acrescenta: «Nureddin abdicou de todas as
vestes luxuosas para se cobrir de panos rugosos.» Naturalmente, os
oficiais turcos, habituados à bebida e aos trajes sumptuosos, nem
sempre se sentirão muito à vontade com este senhor que raramente
sorri e prefere a companhia dos ulemás de turbante a qualquer
outra.
Ainda menos reconfortante para os emires é a tendência que o
filho de Zinki mostra para renunciar ao seu título de Nureddin «luz
da religião» em troca do seu nome pessoal, Mamude. «Meu Deus»,
rogava ele antes das batalhas, «dá a vitória ao Islão e não a
Mamude. Quem é o cão Mamude para merecer a vitória?» Tais
demonstrações de humildade valer-lhe-ão a simpatia dos francos e
das gentes piedosas, mas os poderosos não hesitarão em tachá-las
de hipocrisia. Todavia, parece que as suas convicções eram de facto
sinceras, ainda que a sua imagem exterior fosse em parte calculada.
Em todo o caso, o resultado é indubitável: é Nureddin que fará do
mundo árabe uma força capaz de esmagar os Franj, e é o seu lugar-
tenente Saladino quem colherá os frutos da vitória.

Após a morte de seu pai, Nureddin consegue impor-se em Alepo,


o que não é muito, comparado com o enorme domínio conquistado
pelo atabaque, mas a própria modéstia deste domínio inicial vai
assegurar a glória do seu reinado. Zinki passara o essencial da sua
vida a lutar contra os califas, os sultões e os diversos emirados do
Iraque e da Jézira. Uma tarefa esgotante e ingrata que não calhará
ao seu filho. Deixando Mossul e a respectiva região ao irmão mais
velho, Saifeddin, com quem manterá boas relações, e portanto certo
de poder contar com uma potência amiga na sua fronteira oriental,
Nureddin consagra-se inteiramente aos assuntos sírios.
No entanto, a sua posição não é fácil ao chegar a Alepo, em
Setembro de 1146, acompanhado do seu homem de confiança, o
emir curdo Chirkuh, tio de Saladino. Não somente se vive de novo aí
no receio dos cavaleiros de Antioquia, como ainda Nureddin não
teve tempo de estabelecer a sua autoridade para lá dos muros da
sua capital e já lhe vêm anunciar, em fins de Outubro, que Jocelin
logrou retomar Edessa com a ajuda de uma parte da população
arménia. Não se trata de uma cidade qualquer, igual a todas as que
se perderam desde a morte de Zinki: Edessa era o próprio símbolo
da glória do atabaque, a sua queda põe em causa o futuro da
dinastia. Nureddin reage depressa. Cavalgando dia e noite,
abandonando à beira das estradas as montadas esfalfadas, ele
chega diante de Edessa antes de Jocelin ter tido tempo de organizar
a defesa. O conde, a quem as provações passadas não tornaram
mais corajoso, decide fugir assim que anoitece. Os seus partidários,
ao tentarem segui-lo, são apanhados e massacrados pelos
cavaleiros de Alepo.
A rapidez com que a insurreição foi esmagada confere ao filho de
Zinki um prestígio de que o seu poder nascente muito necessitava.
Compreendendo a lição, Raimundo de Antioquia torna-se menos
empreendedor. Quanto a Unar, apressa-se a propor ao senhor de
Alepo a mão de sua filha.

O contrato de casamento foi redigido em Damasco, informa


Ibn al-Qalanissi, na presença dos enviados de Nureddin.
Começou-se logo a confeccionar o enxoval, e assim que este
ficou pronto os enviados puseram-se a caminho para regressar a
Alepo.

A situação de Nureddin na Síria está doravante bem consolidada.


Mas comparada com o perigo que se perfila no horizonte, os
conluios de Jocelin, as razias de Raimundo e as intrigas da velha
raposa damasquina, irá em breve parecer irrisória.

Chegaram sucessivas notícias de Constantinopla, do território


dos Franj e também das zonas circunvizinhas segundo as quais
os reis dos Franj vinham dos seus países para atacar a terra de
Islão. Tinham deixado as suas províncias vazias, privadas de
defensores, e haviam trazido consigo riquezas, tesouros e um
material incomensurável. O seu número, dizia-se, atingia um
milhão de infantes e de cavaleiros, ou mesmo mais.

Quando escreve estas linhas, Ibn al-Qalanissi tem setenta e


cinco anos e recorda-se sem dúvida de que, meio século antes, já
lhe coubera relatar em termos pouco diferentes um acontecimento
do mesmo género.
Com efeito, a segunda invasão franca, provocada pela queda de
Edessa, surge nos seus primórdios como uma reedição da primeira.
No Outono de 1147, inúmeros combatentes irromperam pela Ásia
Menor, ostentando uma vez mais, cosidas nas costas, tiras de tecido
em forma de cruz. Na travessia de Dorileu, onde ocorrera a derrota
histórica de Kilij Arslan, espera-os o filho deste, Massud, para se
vingar com cinquenta anos de atraso. Arma-lhes uma série de
emboscadas, desferindo-lhes golpes particularmente mortíferos.
Não se cessava de anunciar que os seus efectivos diminuíam, de
sorte que os espíritos recobraram alguma tranquilidade. Ibn al-
Qalanissi acrescenta não obstante que após todas as perdas
sofridas, os Franj eram, diz-se, em número de aproximadamente
cem mil. É óbvio que também desta feita não devemos aceitar como
coisa certa o número indicado. Como todos os seus coevos, o
cronista de Damasco não tem o culto da exactidão e, de qualquer
modo, não dispõe de nenhum meio de verificar as suas estimativas.
Importa, no entanto, saudar de passagem as precauções verbais de
Ibn al-Qalanissi, que acrescenta um «diz-se» sempre que um
número lhe parece suspeito. Embora Ibn al-Athir não mostre tais
escrúpulos, sempre que apresenta a sua interpretação pessoal de
um evento tem o cuidado de concluir com Allahu adiam, «só Deus
sabe».
Seja qual for o número exacto dos novos invasores francos, o
certo é que as suas forças, juntas às de Jerusalém, de Antioquia e
de Trípolis, chegam e sobejam para inquietar o mundo árabe, que
observa os seus movimentos com pavor. Há uma pergunta que se
faz incansavelmente: que cidade é que irão atacar primeiro? Pela
lógica, deveriam começar por Edessa. Acaso não foi para vingar a
sua queda que vieram? Mas podiam igualmente apoderar-se de
Alepo, atingindo assim na cabeça a ascendente autoridade de
Nureddin, de maneira a Edessa cair em seguida por si mesma.
Afinal, nenhuma das hipóteses se confirmará. Após demoradas
disputas entre os seus reis, diz Ibn al-Qalanissi, eles acabaram por
convir em atacar Damasco, e estão tão certos de a tomar que logo
estipulam a partilha das suas dependências.
Atacar Damasco? Atacar a cidade de Moinuddin Unar, o único
dirigente muçulmano que tem um tratado de aliança com
Jerusalém? Os Franj não podiam prestar melhor serviço à
resistência árabe! Em retrospectiva, porém, parece que os
poderosos reis que comandavam estes exércitos de Franj julgaram
que só a conquista de uma cidade prestigiosa como Damasco
justificava a sua deslocação ao Oriente. Os cronistas árabes falam
essencialmente de Conrado, rei dos Alemães, nunca fazendo a
mínima menção à presença do rei de França, Luís VII, uma
personagem, verdade se diga, sem grande envergadura.

Assim que soube dos desígnios dos Franj, conta Ibn al-
Qalanissi, o emir Moinuddin iniciou os preparativos para fazer
malograr a sua malfeitoria. Fortificou todos os sítios onde era de
recear um ataque, dispôs soldados nas entradas, entulhou os
poços e destruiu os pontos de água nas cercanias da urbe.

No dia 24 de Julho de 1148, as tropas dos Franj chegam diante


de Damasco, seguidas por autênticas colunas de camelos
carregados com bagagens. Os Damasquinos saem da sua cidade
às centenas para enfrentar os invasores. Entre eles encontra-se um
provecto teólogo de origem magrebina, al-Findalawi.

Ao vê-lo avançar a pé, Moinuddin aproximou-se dele, contará


Ibn al-Athir, saudou-o e disse-lhe: «Ó venerável ancião, a tua
avançada idade dispensa-te de combater. É a nós que compete
defender os muçulmanos.» Pediu-lhe que voltasse para trás,
mas al-Findalawi recusou, dizendo: «Vendi-me e Deus comprou-
me.» Referia-se assim às palavras do Altíssimo: «Deus comprou
aos crentes as suas pessoas e os seus bens para lhes dar em
troca o Paraíso.» Al-Findalawi marchou em frente e combateu os
Franj até ao momento em que caiu sob os seus golpes.

Este martírio não tarda a ser seguido pelo de um outro asceta,


um refugiado palestiniano chamado al-Halhuli. Mas a despeito de
tão heróicos actos, a progressão dos Franj não pode ser atalhada.
Eles espalharam-se pela planície de Ghuta e ergueram aí as suas
tendas, acercando-se mesmo em vários pontos das muralhas. No
entardecer deste primeiro dia de luta, os Damasquinos, temendo o
pior, começam a levantar barricadas nas ruas.
O dia seguinte, 25 de Julho, era um domingo, relata Ibn al-
Qalanissi, e os habitantes efectuaram surtidas assim que alvoreceu.
O combate só cessou à tardinha, quando toda a gente ficou
extenuada. Cada qual voltou para as suas posições. O exército de
Damasco passou a noite em face dos Franj, e os citadinos
permaneceram nos muros a montar guarda e a vigiar, pois viam o
inimigo muito pero deles.
Na segunda-feira de manhã, os Damasquinos recobram
esperança, pois vêem surgir do norte vagas sucessivas de ginetes
turcos, curdos e árabes. Tendo Unar escrito a todos os príncipes da
região a pedir-lhes reforços, estes começam a chegar à cidade
cercada. Anuncia-se para o dia seguinte a vinda de Nureddin à
cabeça do exército de Alepo, bem como de seu irmão Saifeddin com
o de Mossul. Paralelamente à aproximação deles, Moinuddin envia,
no dizer de Ibn al-Athir, uma mensagem aos Franj estrangeiros e
uma outra aos Franj da Síria. Com os primeiros, utiliza uma
linguagem simplista: O rei do Oriente não tarda; se não partirdes,
entrego-lhe a cidade, e arrepender-vos-eis. Com os outros, os
«colonos», utiliza uma linguagem diferente: Será que
enlouquecestes, para ajudar essa gente contra nós? Não
compreendestes que, se eles triunfarem em Damasco, procurarão
arrancar-vos as vossas próprias urbes? Quanto a mim, se não
conseguir defender a cidade, entregá-la-ei a Saifeddin, e sabeis
muito bem que, se ele conquistar Damasco, já não podereis manter-
vos na Síria.
O êxito da manobra de Unar é imediato. Chegado a um acordo
secreto com os Franj locais que tentam convencer o rei dos
Alemães a afastar-se de Damasco antes de os exércitos de reforço
aparecerem, ele distribui, para que sejam bem sucedidas as suas
intrigas diplomáticas, avultadas gratificações, ao mesmo tempo que
dissemina pelos pomares que rodeiam a sua capital centenas de
franco-atiradores que se emboscam e flagelam os Franj. Logo na
segunda-feira à noite, as dissensões suscitadas pelo velho turco
principiam a surtir efeito. Os sitiantes, que, bruscamente
desmoralizados, decidiram operar um recuo táctico para reagrupar
as suas forças, dão consigo, fustigados pelos Damasquinos, numa
planície aberta por todos os lados sem o mínimo ponto de água à
sua disposição. Ao cabo de algumas horas, a sua situação torna-se
tão insustentável que os seus reis já não pensam em tomar a
metrópole síria mas, isso sim, em salvar as suas tropas e as suas
pessoas do aniquilamento. Na terça-feira de manhã, os exércitos
francos refluem para Jerusalém, perseguidos pelos homens de
Moinuddin.
Decididamente, os Franj já não são o que eram. A incúria dos
dirigentes e a desunião dos chefes militares já não são, ao que
parece, um triste privilégio dos Árabes. Os Damasquinos sentem-se
assombrados: será possível que a poderosa expedição franca que
fez tremer o Oriente nos últimos meses esteja em plena
decomposição, ao fim de menos de quatro dias de combate?
Pensou-se que eles preparavam um ardil, diz Ibn al-Qalanissi. Nada
disso. A nova invasão franca terminou deveras. Os Franj alemães,
dirá Ibn al-Athir, regressaram ao seu país situado lá longe, por
detrás de Constantinopla, e Deus livrou os crentes desta
calamidade.
A surpreendente vitória de Unar vai aumentar o seu prestígio e
fazer esquecer os seus compromissos passados com os invasores.
Mas Moinuddin vive os derradeiros dias da sua carreira. Morre um
ano após a batalha. Num dia em que comera copiosamente, como
era seu hábito, foi acometido de uma indisposição. Soube-se que
padecia de disenteria. É, precisa Ibn al-Qalanissi, uma temível
doença de que raramente se escapa. E após a sua morte o poder
calha por herança ao soberano nominal da urbe, Abaq, descendente
de Toghtekin, um mancebo de dezasseis anos, sem grande
inteligência, que nunca logrará voar por suas próprias asas.
O verdadeiro vencedor da batalha de Damasco é
incontestavelmente Nureddin. Em Junho de 1149, consegue
esmagar o exército do príncipe de Antioquia, Raimundo, que
Chirkuh, o tio de Saladino, mata por suas próprias mãos. Corta-lhe a
cabeça e leva-a ao seu senhor que, segundo o uso, a envia ao califa
de Bagdad num estojo de prata. Tendo assim esconjurado toda a
ameaça franca no Norte da Síria, o filho de Zinki tem as mãos livres
para consagrar doravante todos os seus esforços à realização do
velho sonho paterno: a conquista de Damasco. Em 1140, a urbe
preferira aliar-se aos Franj em vez de se submeter ao jugo brutal de
Zinki. Mas as coisas mudaram. Moinuddin já não pertence ao
número dos vivos, o comportamento dos ocidentais abalou os seus
mais calorosos partidários e, sobretudo, a reputação de Nureddin
não se assemelha em nada à do pai. Ele não quer violar a altiva
urbe dos Omíadas, mas seduzi-la.
Ao atingir, à frente das suas tropas, os vergéis que rodeiam a
cidade, preocupa-se mais em granjear a simpatia da população do
que em preparar um assalto. Nureddin, conta Ibn al-Qalanissi,
mostrou-se benevolente para com os camponeses e não lhes tornou
pesada a sua presença; por toda a parte se fizeram preces a Deus
em seu favor, tanto em Damasco como nas redondezas. Quando
pouco depois da sua chegada chuvas abundantes vêm pôr cobro a
um longo período de seca, as pessoas atribuem-lhe o mérito disto.
«É graças a ele», disseram elas, «à sua justiça e à sua conduta
exemplar.»
Embora a natureza das suas ambições seja evidente, o senhor
de Alepo recusa aparecer como um conquistador.

Não vim acampar neste lugar com intenção de vos mover a


guerra ou de vos cercar, escreve ele numa carta aos dirigentes
de Damasco. Só as muitas queixas dos muçulmanos me
incitaram a agir assim, pois os camponeses são espoliados de
todos os seus bens e separados dos seus filhos pelos Franj, e
não têm ninguém que os defenda. Dado o poderio que Deus me
confiou para socorrer os muçulmanos e guerrear os infiéis, dada
a quantidade de riquezas e de homens de que disponho, não me
é permitido descurar os muçulmanos e não tomar a sua defesa.
Sobretudo por conhecer a vossa incapacidade para proteger as
vossas províncias e o vosso decaimento que vos levou a pedir
auxílio aos Franj e a entregar-lhes os bens dos vossos súbditos
mais pobres, que lesais criminosamente. São coisas que não
agradam a Deus nem a nenhum muçulmano!

Esta carta revela toda a subtileza da estratégia do novo senhor


dê Alepo que se erige em defensor dos Damasquinos, em especial
dos mais deserdados dentre eles, e tenta visivelmente sublevá-los
contra os seus amos. A resposta destes últimos, de tão desabrida,
não faz mais do que aproximar os citadinos do filho de Zinki: «Entre
tu e nós, já não há doravante senão o sabre. Os Franj vão chegar
para nos ajudarem a defendermo-nos.»
Apesar das simpatias que colheu junto da população, Nureddin,
preferindo não defrontar as forças reunidas de Jerusalém e de
Damasco, aceita retirar-se para o Norte; não sem ter conseguido
que, nas mesquitas, o seu nome seja citado em sermões logo a
seguir aos do califa e do sultão, e que seja cunhada moeda em seu
nome, uma manifestação de fidelidade frequentemente utilizada
pelas cidades muçulmanas a fim de apaziguar os conquistadores.
Este meio sucesso é julgado animador por Nureddin. Um ano
mais tarde, volta com as suas tropas às paragens de Damasco,
endereçando uma nova carta a Abaq e aos outros dirigentes da
urbe: Só quero o bem-estar dos muçulmanos, a jihad contra os
infiéis e a libertação dos prisioneiros que eles detêm. Se vos
puserdes a meu lado com o exército de Damasco, se nos ajudarmos
mutuamente para levar a cabo a jihad, os meus desejos ficarão
satisfeitos. Como única resposta, Abaq apela de novo para os Franj,
que se apresentam chefiados pelo seu jovem rei Balduíno III, filho
de Foulque, e se instalam às portas de Damasco durante algumas
semanas. Os cavaleiros são inclusive autorizados a circular nos
suks, o que não deixa de criar uma certa tensão com a população
da cidade que ainda não esqueceu os seus filhos caídos três anos
antes.
Nureddin, prudentemente, continua a evitar todo o confronto com
os coligados. Afasta as suas tropas de Damasco, aguardando que
os Franj retornem a Jerusalém. No seu entender, a batalha é acima
de tudo política. Explorando o melhor possível o azedume dos
citadinos, faz chegar uma quantidade de mensagens aos notáveis
damasquinos e aos homens de religião para denunciar a traição de
Abaq. Entra mesmo em contacto com vários militares, a quem
exaspera a colaboração aberta com os Franj. Para o filho de Zinki,
já não se trata apenas de suscitar protestos que incomodarão Abaq,
mas de organizar no interior da cidade cobiçada uma rede de
cumplicidades susceptíveis de levar Damasco a capitular. É o pai de
Saladino que ele encarrega desta delicada missão. Em 1153, após
um hábil trabalho de organização, Ayyub consegue efectivamente
garantir a neutralidade favorável da milícia urbana, cujo comandante
é um irmão mais novo de Ibn al-Qalanissi. Várias personagens do
exército adoptam a mesma atitude, o que aumenta dia a dia o
isolamento de Abaq. Só lhe resta um pequeno número de emires
que o encorajam a aguentar. Decidido a desembaraçar-se destes
últimos irredutíveis, Nureddin faz chegar ao senhor de Damasco
falsas informações alusivas a uma conspiração que estaria a ser
urdida pela sua comitiva. Sem se preocupar muito em verificar o seu
fundamento, Abaq apressa-se a executar ou a aprisionar vários dos
seus colaboradores. O seu isolamento é doravante total.
Última operação: Nureddin intercepta subitamente todos os
comboios de víveres que se dirigem para Damasco. O preço de um
saco de trigo subiu em dois dias de meio dinar para vinte e cinco
dinares, e a população começa a recear a fome. Só falta aos
agentes do senhor de Alepo convencer a opinião pública de que não
haveria qualquer penúria se Abaq não tivesse escolhido aliar-se aos
Franj contra os seus correligionários de Alepo.
Em 18 de Abril de 1154, Neruddin volta a assediar Damasco com
as suas tropas. Abaq envia uma mensagem urgente a Balduíno.
Mas o rei de Jerusalém não terá tempo de chegar.
No domingo 25 de Abril, dá-se o assalto final a leste da cidade.

Não havia ninguém nas muralhas, conta o cronista de


Damasco, nem soldados nem citadinos, à excepção de um
punhado de turcos encarregados da guarda de uma torre. Um
dos soldados de Nureddin correu para uma muralha no topo da
qual estava uma mulher judia que lhe lançou uma corda. Ele
utilizou-a para trepar, alcançou o alto da muralha sem que
ninguém reparasse e foi seguido por alguns dos seus camaradas
que içaram uma bandeira, a plantaram no muro e se puseram a
gritar: «Ya mansur!» Ó vitorioso! As tropas de Damasco e a
população renunciaram a toda a resistência devido à simpatia
que sentiam por Nureddin, pela sua justiça e pela sua boa
reputação. Um sapador precipitou-se na direcção da Porta do
Leste, bab-Charki, com a sua picareta, e quebrou o fecho. Os
soldados penetraram por aí e espalharam-se pelas principais
artérias sem encontrar oposição. A Porta de Tomás, bab-Tuma,
foi igualmente aberta às tropas. Por fim, o rei Nureddin fez a sua
entrada, acompanhado do seu séquito, no meio do júbilo dos
habitantes e dos soldados, que estavam todos obcecados pelo
medo da fome, bem como pelo receio de serem cercados pelos
Franj infiéis.

Generoso na vitória, Nureddin oferece a Abaq e aos seus


favoritos feudos na região de Homs e deixa-os abalar com todos os
bens pessoais.
Sem combate, sem derramamento de sangue, Nureddin
conquistou Damasco pela persuasão, mais do que pelas armas. A
urbe que no último quarto de século resistira obstinadamente a
todos os que tentavam subjugá-la, quer se tratasse dos Assassinos,
dos Franj ou de Zinki, deixara-se seduzir pela firmeza suave de um
príncipe que prometia simultaneamente assegurar a sua segurança
e respeitar a sua independência. Ela não se arrependerá e viverá,
graças a ele e aos que lhe sucederem, um dos períodos mais
gloriosos da sua história.
No dia a seguir à vitória, Nureddin, reunindo ulemás, cádis e
comerciantes, dirige-lhes palavras tranquilizadoras, não sem levar
consigo importantes carregamentos de víveres e suprimir certas
taxas que recaíam sobre o mercado dos frutos, o suk dos legumes e
a distribuição de água. Um decreto redigido neste sentido é lido na
sexta-feira seguinte, do alto do púlpito, após a oração. Aos oitenta e
um anos, Ibn al-Qalanissi ainda está presente para se associar à
alegria dos seus concidadãos. A população aplaudiu, relata ele. Os
citadinos, os camponeses, as mulheres, a arraia-miúda, toda a
gente endereçou publicamente preces a Deus para se prolongarem
os dias de Nureddin e os seus estandartes saírem sempre
vitoriosos.
Pela primeira vez desde o início das guerras francas, as duas
grandes metrópoles sírias, Alepo e Damasco, estão reunidas no
seio de um mesmo Estado, sob a autoridade de um príncipe de
trinta e sete anos, firmemente apostado em consagrar-se à luta
contra o ocupante. De facto, é toda a Síria muçulmana que se acha
doravante unificada, à excepção do pequeno emirado de Chayzar,
onde a dinastia dos Munquiditas ainda logra preservar a sua
autonomia. Mas não por muito tempo, pois a história deste pequeno
senhorio está destinada a interromper-se da maneira mais brusca e
imprevista que se pode imaginar.
Em Agosto de 1157, numa altura em que circulam em Damasco
rumores que deixam pressagiar uma próxima campanha de
Nureddin contra Jerusalém, um tremor de terra de rara violência
devasta a Síria de lés-a-lés, semeando a morte quer entre os
Árabes quer entre os Franj. Em Alepo, desabam várias torres da
muralha, e a população, aterrorizada, dispersa-se pelos campos
circunvizinhos. Em Harran, a terra fende-se e, através da imensa
brecha assim aberta, reaparecem à superfície os vestígios de uma
antiga urbe. Em Trípolis, em Beirute, em Tiro, em Homs, em Maara,
já não têm conta os mortos e os edifícios destruídos.
Mas duas cidades são mais atingidas do que as outras pelo
cataclismo: Hama e Chayzar. Diz-se que um mestre-escola de
Hama, saído da sua aula para ir satisfazer uma necessidade
urgente num terreno baldio, encontrou ao regressar o seu colégio
destruído e os seus alunos mortos. Apavorado, sentara-se sobre os
escombros, perguntando a si mesmo como havia de anunciar a
notícia aos pais, mas nenhum deles sobrevivera para vir reclamar o
filho.
Em Chayzar, neste mesmo dia, o soberano da urbe, o emir
Moamed Ibn Sultan, primo de Ussama, organiza uma recepção na
Cidadela para festejar a circuncisão do filho. Todos os dignitários da
cidade se encontram aí reunidos, bem como os membros da família
reinante, quando de repente a terra começa a tremer e os muros se
desmoronam, dizimando toda a assistência. O emirado dos
Munquiditas deixou pura e simplesmente de existir. Ussama, que
estava então em Damasco, é um dos raros membros da sua família
a sobreviver.
Ele escreverá, sob o efeito da emoção: A morte não avançou
passo a passo para matar as pessoas da minha raça, para as
aniquilar duas a duas ou cada uma separadamente. Morreram todas
num abrir e fechar de olhos, e os seus palácios converteram-se nos
seus túmulos. Antes de acrescentar, desencantado: Os tremores de
terra não assolaram este país de indiferentes senão para os
arrancar ao seu torpor.
Em verdade, o drama dos Munquiditas inspirará aos coetâneos
muitas reflexões sobre a futilidade das coisas humanas, mas o
cataclismo representará para alguns, mais prosaicamente, o ensejo
de conquistar ou de pilhar sem custo esta cidade desolada ou
aquela fortaleza de muros aluídos. Chayzar, em particular, é
imediatamente atacada tanto pelos Assassinos quanto pelos Franj,
antes de ser tomada pelo exército de Alepo.
Em Outubro de 1157, quando anda de cidade em cidade para
fiscalizar a reparação das muralhas, Nureddin adoece. O médico
damasquino Ibn al-Waqqar, que o acompanha em todas as suas
deslocações, mostra-se pessimista. Durante um ano e meio, o
príncipe mantém-se entre a vida e a morte, o que os Franj irão
aproveitar para ocupar algumas fortalezas e raziar os arredores de
Damasco. Mas Nureddin tira partido deste período de inacção para
meditar no seu destino. Conseguiu, ao longo da primeira parte do
seu reinado, reunir a Síria muçulmana sob sua égide e pôr cobro às
lutas intestinas que a enfraqueciam. Doravante, terá de empreender
a jihad para reconquistar as grandes cidades ocupadas pelos Franj.
Alguns dos seus íntimos, nomeadamente os Alepinos, sugerem-lhe
que comece por Antioquia, mas, para grande surpresa deles,
Nureddin opõe-se-lhes. Esta cidade, explica ele, pertence
historicamente aos Rum. Qualquer tentativa de a tomar incitaria o
império a vir ocupar-se directamente das questões sírias, o que
obrigaria os exércitos muçulmanos a lutar em duas frentes. Não,
insiste ele, não se deve provocar os Rum, mas diligenciar e de
preferência recuperar uma importante urbe da costa, ou mesmo, se
Deus o permitir, Jerusalém.
Infelizmente para Nureddin, os acontecimentos vão muito em
breve justificar os seus receios. Em 1159, quando ainda mal começa
a restabelecer-se, informam-no de que um poderoso exército
bizantino, comandado pelo imperador Manuel, filho e sucessor de
João Comneno, se reuniu no Norte da Síria. Nureddin apressa-se a
enviar embaixadores ao encontro do imperador para lhe desejar
cortesmente as boas-vindas. Ao recebê-los, o basileus, homem
majestoso, sábio, amante da medicina, proclama a sua intenção de
manter com o senhor deles as relações mais amistosas possíveis.
Se veio à Síria, afiança, é unicamente para infligir uma lição aos
senhores de Antioquia. Lembremos que já o pai de Manuel viera
vinte e dois anos antes, arguindo as mesmas razões, o que o não
impedira de se aliar aos ocidentais contra os muçulmanos. E, no
entanto, os emissários de Nureddin não põem em dúvida a palavra
do basileus. Eles sabem a raiva que os Rum sentem todas as vezes
que é mencionado o nome de Reinaldo de Châtillon, esse cavaleiro
que, desde 1153, preside aos destinos do principado de Antioquia,
um homem brutal, arrogante, cínico e desdenhoso, que simbolizará
um dia para os Árabes toda a maleficência dos Franj e que Saladino
jurará matar por suas próprias mãos!
O príncipe Reinaldo, o «brins Arnat» (*) dos cronistas, chegou ao
Oriente em 1147 com a mentalidade já anacrónica dos primeiros
invasores: sedento de ouro, de sangue e de conquista. Pouco após
a morte de Raimundo de Antioquia, ele logrou seduzir a sua viúva e
depois desposá-la, erigindo-se assim em senhor da cidade. Não
tardou que as suas exacções o tornassem odioso, não só aos seus
vizinhos alepinos, mas também aos Rum e aos seus próprios
súbditos. Em 1156, a pretexto da recusa de Manuel em pagar-lhe
uma soma prometida, decidiu vingar-se lançando uma investida
punitiva contra a ilha bizantina de Chipre e pediu ao patriarca de
Antioquia que financie a expedição. Como o prelado se mostrasse
recalcitrante, Reinaldo meteu-o na prisão, em seguida torturou-o,
depois de lhe ter besuntado os ferimentos com mel, acorrentou-o e
expô-lo ao sol um dia inteiro, deixando milhares de insectos
assanharem-se contra o seu corpo.
É claro que o patriarca acabou por abrir os seus cofres e o
príncipe, depois de reunir uma flotilha, desembarcou nas costas da
ilha mediterrânica, esmagando sem dificuldade a pequena
guarnição bizantina e largando os seus homens na ilha. Chipre
jamais se recomporá do que lhe sucedeu nesta Primavera de 1156.
De norte a sul, todos os campos cultivados foram sistematicamente
devastados, todos os rebanhos massacrados, os palácios, as igrejas
e os conventos sofreram pilhagem, ao passo que tudo o que não
podia ser levado era demolido no próprio local ou incendiado. As
mulheres foram violadas, os velhos e as crianças chacinados, os
homens ricos aprisionados como reféns, e os pobres decapitados.
Antes de partir carregado de despojos, Reinaldo ainda ordenou que
se juntassem todos os sacerdotes e monges gregos, aos quais
mandou cortar o nariz antes de os enviar, mutilados, a
Constantinopla.
Manuel tem de responder. Porém, enquanto herdeiro dos
imperadores romanos, não pode fazê-lo através de um vulgar golpe
de mão. O que ele procura é restabelecer o seu prestígio
humilhando publicamente o cavaleiro-bandido de Antioquia.
Reinaldo, que não ignora ser inútil toda a resistência, resolve pedir
desculpa assim que lhe comunicam estar o exército imperial a
caminho da Síria. Tão dotado para o servilismo quanto para a
arrogância, apresenta-se no acampamento de Manuel descalço,
vestido como um mendigo, e lança-se de bruços diante do trono
imperial.
Os embaixadores de Nureddin estão presentes para assistir à
cena. Eles vêem o «brins Arnat» estendido no pó aos pés do
basileus que, sem dar mostras de o notar, prossegue calmamente a
sua conversa com os convidados, esperando vários minutos antes
de se dignar deitar uma olhadela ao seu adversário, indicando-lhe
de um gesto condescendente que se levante.
Reinaldo obterá perdão, e poderá assim conservar o seu
principado, mas o seu prestígio no Norte da Síria ficará para sempre
maculado. Aliás, logo no ano seguinte, é capturado pelos soldados
de Alepo no decurso de uma operação de pilhagem que efectuava a
norte da cidade, o que lhe acarretará dezasseis anos de cativeiro
antes de reaparecer na ribalta, onde o destino o designa para
desempenhar o mais execrável dos papéis.
Quanto a Manuel, a sua autoridade, a seguir a esta expedição,
não cessa de se reforçar. Ele consegue impor a sua suserania tanto
ao principado franco de Antioquia quanto aos Estados turcos da
Ásia Menor, restituindo assim ao império um lugar determinante no
concerto dos assuntos sírios. E este ressurgimento do poderio
militar bizantino, o último da História, altera, no imediato, os dados
do conflito que opõe os Árabes aos Franj. A permanente ameaça
que os Rum constituem nas suas fronteiras impede Nureddin de se
lançar no vasto empreendimento de reconquista que ele almejava.
Como, ao mesmo tempo, o poderio do filho de Zinki interdita aos
Franj qualquer veleidade de expansão, a situação na Síria está de
certo modo bloqueada.
Todavia, como se as energias contidas dos Árabes e dos Franj
procurassem libertar-se de uma só vez, eis que o peso da guerra vai
deslocar-se para um novo teatro de operações: o Egipto.
-
(*) Epíteto derivado de brin, que em francês antigo significa «força»,
«orgulho» (N. T.)
CAPÍTULO IX

A Corrida para o Nilo

«O meu tio Chirkuh voltou-se para mim e disse: ‘Yussef, arruma


as tuas coisas, vamos partir.’ Ao receber esta ordem, senti-me
atingido no coração como por uma punhalada, e respondi: ‘Meu
Deus, ainda que me dêem todo o reino do Egipto, não irei!’»

O homem que fala assim não é outro senão Saladino a contar os


balbucios pelo menos tímidos da aventura que dele fará um dos
soberanos mais prestigiosos da História. Com a admirável
sinceridade que caracteriza todas as suas afirmações, Yussef
abstém-se de todo em todo de se arrogar o mérito da epopeia
egípcia. «Acabei por acompanhar o meu tio», acrescenta. «Ele
conquistou o Egipto, depois morreu. Deus pôs-me então nas mãos
um poder que eu estava longe de esperar.» Realmente, se Saladino
não tarda a emergir como grande beneficiário da expedição egípcia,
o certo é que ele não desempenhará aí o papel principal. Nureddin
tão-pouco, aliás, ainda que o país do Nilo seja conquistado em seu
nome.
Esta campanha, que dura de 1163 a 1169, terá como
protagonistas três personagens espantosas: um vizir egípcio,
Chawer, cujas intrigas demoníacas porão a região a ferro e fogo, um
rei franco, Amaury, tão obcecado pela ideia de conquistar o Egipto
que invadirá este país cinco vezes em seis anos, e um general
curdo, Chirkuh, o Leão, que se imporá como um dos génios militares
do seu tempo.
Ao assenhorear-se do poder no Cairo em Dezembro de 1162,
Chawer guinda-se a uma dignidade e a um cargo que proporcionam
honras e riquezas, mas não ignora o reverso da medalha: dos
quinze dirigentes que o precederam na chefia do Egipto, só um
escapou vivo. Todos os outros foram, consoante os casos,
enforcados, decapitados, apunhalados, crucificados, envenenados
ou linchados pela multidão; um foi morto pelo seu filho adoptivo,
outro pelo próprio pai. Tudo isto para dizer que não se deve procurar
neste emir trigueiro, de têmporas grisalhas, o vislumbre de um
qualquer escrúpulo. Logo que subiu ao poder, apressou-se a
massacrar o seu antecessor e toda a respectiva família, a apropriar-
se do seu ouro, das suas jóias e dos seus palácios.
A roda da fortuna não pára contudo de girar: ao fim de menos de
nove meses de governo, o novo vizir é ele próprio derrubado por um
dos seus lugar-tenentes, um tal Dirgham. Prevenido a tempo,
Chawer consegue sair do Egipto são e salvo e refugiar-se na Síria,
onde procura obter o apoio de Nureddin para recuperar o poder. Se
bem que o seu visitante seja inteligente e bem-falante, o filho de
Zinki não lhe presta a princípio muita atenção. Mas em breve os
acontecimentos o obrigam a mudar de atitude.
De facto, parece que em Jerusalém se observam de perto as
conturbações de que é palco o Cairo. Desde Fevereiro de 1162, os
Franj têm um novo rei de indomável ambição: «Morri», Amaury,
segundo filho de Foulque. Visivelmente influenciado pela
propaganda de Nureddin, este monarca de vinte e seis anos tenta
dar de si mesmo a imagem de um homem sóbrio, piedoso, propenso
a leituras religiosas e preocupado com a justiça. Mas a semelhança
é apenas aparente. O rei franco tem mais audácia que sabedoria e,
a despeito da sua grande estatura e basta cabeleira, carece
singularmente de majestade. De ombros anormalmente estreitos,
amiúde acometido de acessos de riso tão demorados e ruidosos
que a sua comitiva fica embaraçada, aflige-o além disso uma
gaguez que não facilita o contacto com os outros. Só a ideia fixa que
o anima – a conquista do Egipto – e a sua incansável demanda dão
a Morri uma inegável envergadura.
É bem verdade que a coisa parece tentadora. Desde que em
1153 os cavaleiros ocidentais se apoderaram de Áscalon, derradeiro
bastião fatímida na Palestina, está-lhes aberto o caminho do país do
Nilo. Os sucessivos vizires, demasiado atarefados a pelejar contra
os seus rivais, acostumaram-se aliás, a partir de 1160, a pagar um
tributo anual aos Franj para eles se eximirem de intervir nos seus
assuntos. A seguir à queda de Chawer, Amaury aproveitou-se da
confusão que reina no país do Nilo para o invadir, alegando o
simples pretexto de a soma combinada, sessenta mil dinares, não
ter sido paga a tempo. Atravessando o Sinai ao longo da costa
mediterrânica, foi pôr cerco à cidade de Bilbeis, situada junto a um
braço do rio que acabaria por secar no decurso dos séculos
posteriores. Os defensores da urbe sentem-se simultaneamente
estupefactos e divertidos ao verem os Franj instalar as máquinas de
cerco em roda dos seus muros, pois está-se em Setembro, e o rio
começa a encher. Basta por conseguinte às autoridades mandar
romper alguns diques para os guerreiros do Ocidente se verem a
pouco e pouco cercados de água: só têm tempo de fugir e de
regressar à Palestina. A sua primeira invasão não foi longe, mas
teve o mérito de revelar a Alepo e a Damasco as intenções de
Amaury.
Nureddin hesita. Se por um lado não tem a mínima vontade de se
deixar arrastar para o terreno escorregadio das intrigas cairotas, e
isto tanto mais quanto, na sua qualidade de sunita fervoroso, sente
uma desconfiança não dissimulada relativamente a tudo o que
concerne ao califado xiita dos Fatímidas, por outro também não lhe
interessa que o Egipto caia, com as suas riquezas, sob a alçada dos
Franj, que se tornariam então a maior potência do Oriente. Ora,
dada a anarquia que aí grassa, o Cairo não resistirá muito tempo
ante a determinação de Amaury. Como é obvio, Chawer compraz-se
em gabar ao seu anfitrião as vantagens de uma expedição ao país
do Nilo. Para o engodar, promete, se o ajudarem a reassumir o
poder, pagar todas as despesas da expedição, reconhecer a
suserania do senhor de Alepo e de Damasco, e enviar-lhe todos os
anos um terço das receitas do Estado. Mas, sobretudo, Nureddin
deve tomar em conta a opinião do seu homem de confiança, o já
referido Chirkuh, totalmente cativado pela ideia de uma intervenção
armada. Manifesta mesmo um tal entusiasmo por este projecto que
o filho de Zinki o autoriza a organizar um corpo expedicionário.
Dificilmente se poderiam imaginar duas personagens ao mesmo
passo tão estreitamente unidas e tão diferentes como o são
Nureddin e Chirkuh. Enquanto o filho de Zinki se tornou, com a
idade, cada vez mais majestoso, digno, sóbrio e reservado, o tio de
Saladino é um oficial de pequena estatura, obeso, zarolho, de rosto
constantemente congestionado pela bebida e pelos excessos
alimentares. Quando se enfurece, berra como um desalmado, e
acontece-lhe perder completamente a cabeça, indo ao ponto de
matar o seu adversário. Mas o seu mau feitio não desagrada a
todos. Os seus soldados adoram este homem que vive
permanentemente no meio deles, partilha da sua sopa e dos seus
gracejos. Nos muitos combates em que tomou parte na Síria,
Chirkuh mostrou-se um condutor de homens dotado de uma imensa
coragem física; a campanha do Egipto irá revelar as suas notáveis
aptidões de estratego. De facto, a empresa será de uma ponta à
outra um autêntico prodígio. Para os Franj, é mais ou menos fácil
alcançar o país do Nilo. Apenas se lhes depara um obstáculo no
caminho: a extensão semidesértica do Sinai. Porém, transportando
no dorso de camelos algumas centenas de odres cheios de água, os
cavaleiros chegam em três dias às portas de Bilbeis. Para Chirkuh,
as coisas não são tão simples. Se quiser ir da Síria ao Egipto, terá
de atravessar a Palestina e de se expor aos ataques dos Franj.
A partida do corpo expedicionário sírio para o Cairo, em Abril de
1164, implica portanto uma verdadeira encenação. Ao mesmo
tempo que Nureddin opera uma diversão para atrair Amaury e os
seus cavaleiros ao Norte da Palestina, Chirkuh, acompanhado de
Chawer e de cerca de dois mil ginetes, dirige-se para leste, segue o
curso do Jordão pela margem oriental, através da futura Jordânia, e
depois, a sul do mar Morto, vira para oeste, transpõe o rio e cavalga
a toda a velocidade na direcção do Sinai. Aqui, prossegue o seu
caminho, afastando-se da estrada costeira para evitar ser
descoberto. No dia 24 de Abril, apodera-se de Bilbeis, porta oriental
do Egipto, e a 1 de Maio acampa sob as muralhas do Cairo.
Apanhado desprevenido, o vizir Dirgham não tem tempo de
organizar a resistência. Abandonado por todos, é morto ao tentar
fugir e o seu corpo é atirado aos cães das ruas. Chawer é
oficialmente reinvestido no seu cargo pelo califa fatímida al-Adid, um
adolescente de treze anos.
A campanha relâmpago de Chirkuh representa um modelo de
eficácia militar. O tio de Saladino orgulha-se de ter conquistado o
Egipto em tão escasso tempo, praticamente sem perdas, e de ter
assim suplantado Morri. Mas, logo que recupera o poder, Chawer
opera uma espantosa reviravolta. Esquecendo as promessas feitas
a Nureddin, ele intima Chirkuh a abandonar o Egipto o mais
depressa possível. Aturdido com tanta ingratidão e louco de cólera,
o tio de Saladino comunica ao antigo aliado a sua decisão de ficar
aconteça o que acontecer.
Vendo-o tão resoluto, Chawer, que não tem verdadeira confiança
no seu próprio exército, envia uma embaixada a Jerusalém pedindo
a ajuda de Amaury contra o corpo expedicionário sírio. O rei franco
não se faz rogado. Ele que buscava um pretexto para intervir no
Egipto, que melhor ensejo se lhe podia apresentar do que um apelo
de ajuda vindo do senhor do Cairo em pessoa? Em Julho de 1164, o
exército franco embrenha-se logo no Sinai pela segunda vez. Acto
contínuo, Chirkuh decide deixar os arredores do Cairo, onde
acampava desde Maio, para vir entrincheirar-se em Bilbeis. Aqui,
semana após semana, rechaça os ataques dos seus inimigos, mas
a sua situação parece desesperada. Muito distante das suas bases,
cercado pelos Franj e pelo novo aliado deles, Chawer, o general
curdo não pode esperar resistir muito tempo.

Quando Nureddin viu o modo como a situação evoluía em


Bilbeis, contará Ibn al-Athir alguns anos mais tarde, decidiu
lançar uma grande ofensiva contra os Franj, a fim de os obrigar a
sair do Egipto. Ele escreveu a todos os emires muçulmanos a
pedir-lhes que participassem na jihad e foi atacar a poderosa
fortaleza de Harim, perto de Antioquia. Todos os Franj que
tinham ficado na Síria se congregaram para lhe fazer frente –
entre eles o príncipe Boemundo, senhor de Antioquia, e o conde
de Trípolis. Durante a batalha, os Franj foram esmagados.
Sofreram dez mil mortos e todos os seus chefes, incluindo o
príncipe e o conde, foram capturados.

Mal alcança a vitória, Nureddin manda que lhe tragam


estandartes cruzados, bem como as loiras cabeleiras de alguns franj
exterminados em combate. Depois, metendo tudo num saco, confia-
o a um dos seus homens mais assisados, dizendo-lhe: «Vais
imediatamente a Bilbeis, arranjas maneira de lá entrar e entregas
estes troféus a Chirkuh, anunciando-lhe que Deus nos concedeu a
vitória. Ele expô-los-á nas muralhas e o espectáculo semeará o
pavor entre os infiéis.»
Com efeito, as notícias da vitória de Harim alteram os dados da
batalha do Egipto. Elas fortalecem o moral dos assediados e acima
de tudo aconselham os Franj a voltar à Palestina. A captura do
jovem Boemundo III, sucessor de Reinaldo na chefia do principado
de Antioquia, encarregado por Amaury de se ocupar na sua
ausência dos assuntos do reino de Jerusalém, bem como o
massacre dos homens dele, obrigam o rei a procurar um
compromisso com Chirkuh. Após alguns contactos, os dois homens
acordam em sair do Egipto ao mesmo tempo. Em fins de Outubro de
1164, Morri regressa à Palestina ladeando a costa, enquanto o
general curdo atinge Damasco em menos de duas semanas,
seguindo o itinerário que escolhera à ida.
Chirkuh não está descontente por ter podido sair de Bilbeis
indemne e de cabeça levantada, mas o grande vencedor destes seis
meses de campanha é incontestavelmente Chawer. Ele utilizou
Chirkuh para voltar ao poder, depois serviu-se de Amaury para
neutralizar o general curdo. Por fim abalaram os dois, deixando-lhe
o inteiro domínio do Egipto. Durante mais de dois anos, dedicar-se-á
a consolidar o seu poder.
Porém, a inquietude a respeito da sequência dos acontecimentos
não o larga, pois ele sabe que Chirkuh não poderá perdoar-lhe a
sua traição. De resto, chegam-lhe regularmente informações da
Síria segundo os quais o general curdo insistira com Nureddin para
empreender uma nova campanha do Egipto. Mas o filho de Zinki
está reticente. A conjuntura não lhe desagrada. O importante é
manter os Franj longe do Nilo. Simplesmente, como sempre, não é
fácil sair de uma engrenagem: receando uma nova expedição
fulminante de Chirkuh, Chawer toma as suas precauções,
concluindo um tratado de assistência mútua com Amaury. O que
leva Nureddin a autorizar o seu lugar-tenente a mobilizar uma nova
força de intervenção, no caso de os Franj se ingerirem no Egipto.
Chirkuh escolhe para a sua expedição os melhores elementos do
exército, entre os quais o seu sobrinho Yussef. É agora a vez de o
vizir se assustar com tais preparativos, instando junto de Amaury
para lhe enviar tropas. De sorte que nos primeiros dias de 1167
recomeça a corrida para o Nilo. O rei franco e o general curdo
chegam quase ao mesmo tempo ao país cobiçado, cada qual pelo
seu caminho habitual.
Chawer e os Franj reuniram as suas forças coligadas diante do
Cairo para aí aguardar Chirkuh. Mas este prefere fixar ele próprio as
formas do recontro. Continuando a sua longa marcha iniciada em
Alepo, contorna a capital egípcia pelo sul, leva as suas tropas a
atravessar o Nilo em pequenas barcas, depois sobe, sem sequer ter
parado, em direcção a norte. Chawer e Amaury, que esperavam um
aparecimento vindo do leste, vêem-no surgir do lado oposto. Pior
ainda, ele instalou-se a oeste do Cairo, perto das pirâmides de Gizé,
separado dos seus inimigos pelo formidável obstáculo natural que o
rio constitui. Deste campo solidamente entrincheirado, envia uma
mensagem ao vizir: O inimigo franco está ao nosso alcance,
escreve-lhe ele, cortado das suas bases. Unamos as nossas forças
e exterminemo-lo. A ocasião é favorável, ela talvez nunca mais se
apresente. Mas Chawer não se contenta em recusar, mandando
executar o mensageiro e levando a carta de Chirkuh a Amaury para
lhe provar a sua lealdade.
Apesar deste gesto, os Franj continuam a desconfiar do seu
aliado, que, bem o sabem, assim que já não precisar deles os trairá.
Julgam ter chegado a altura de aproveitar a proximidade
ameaçadora de Chirkuh para instaurar a sua autoridade no Egipto:
Amaury exige que se conclua uma aliança oficial entre o Cairo e
Jerusalém, selada pelo próprio califa fatímida.
Dois cavaleiros que conhecem a língua árabe – não era raro
entre os Franj do Oriente – dirigem-se assim à residência do jovem
al-Adid. Chawer, que toma visivelmente a peito impressioná-los,
condu-los até um soberbo palácio ricamente ornado que eles
atravessam em bom andamento, rodeados por uma chusma de
guardas armados. Depois o cortejo transpõe uma interminável álea
abobadada, impermeável à luz do dia, antes de ir dar à soleira de
uma imensa porta cinzelada que comunica com um vestíbulo,
depois com uma nova porta. Após terem percorrido numerosas
salas ornamentadas, Chawer e os seus convidados desembocam
num pátio pavimentado a mármore e circundado por colunatas
douradas, no centro do qual uma fonte ostenta os seus tubos de
ouro e de prata, enquanto a toda a volta voam aves coloridas vindas
de todos os recantos de África. É neste sítio que os guardas que os
acompanham os confiam aos eunucos que vivem na familiaridade
do califa. Uma vez mais, é necessário atravessar uma sucessão de
salões, em seguida um jardim cheio de feras domesticadas, leões,
ursos, panteras, antes de alcançar finalmente o palácio de al-Adid.
Mal acabam de ser introduzidos num vasto compartimento, cuja
parede do fundo é feita de uma tapeçaria de seda esmaltada de
ouro, de rubis e de esmeraldas, e já Chawer se prosterna três vezes
e depõe a espada no chão. Só então a tapeçaria se ergue e o califa
aparece, de corpo envolto em vestes de seda e face velada.
Abeirando-se e sentando-se aos pés dele, o vizir expõe o projecto
de aliança com os Franj. Depois de o ter escutado calmamente, al-
Adid, cuja idade não ultrapassa então os dezasseis anos, presta
homenagem à política de Chawer. Este já se apresta a levantar-se
quando os dois Franj pedem ao Príncipe dos Crentes que lhes jure
permanecer fiel à aliança. É patente que uma tal exigência suscita o
escândalo entre os dignitários que rodeiam al-Adid. O próprio califa
parece melindrado e o vizir apressa-se a intervir. O acordo com
Jerusalém, explica ele ao seu soberano, é um caso de vida ou de
morte para o Egipto. Insta-o a não ver no pedido formulado pelos
Franj uma manifestação de desrespeito, mas tão-só a marca da sua
ignorância dos costumes orientais.
Sorrindo a contragosto, al-Adid estende a sua mão enluvada em
seda e jura respeitar a aliança. Mas um dos emissários francos
detém-no: «Um juramento», diz ele, «deve ser prestado de mão
nua, a luva poderia ser sinal de uma traição vindoura.» A exigência
causa de novo escândalo. Os dignitários ciciam entre si que o califa
foi insultado, fala-se de castigar os insolentes. Contudo, após outra
intervenção de Chawer, o califa, sem perder a sua calma, tira a luva,
estende a mão nua e repete palavra por palavra o juramento que os
representantes de Morri lhe ditam.
Assim que chega ao fim esta singular entrevista, Egípcios e
Franj, coligados, elaboram um plano para atravessar o Nilo e
dizimar o exército de Chirkuh, que se dirige agora na direcção do
sul. Um destacamento inimigo, comandado por Amaury, lança-se no
seu encalço. O tio de Saladino quer dar a impressão de estar muito
aflito. Sabendo que a sua principal desvantagem é a falta de ligação
com as suas bases, ele procura colocar os seus perseguidores na
mesma situação. Ao perfazer mais de uma semana de marcha
desde o Cairo, ordena às suas tropas que parem e anuncia-lhes,
numa arenga inflamada, que chegou o dia da vitória.
De facto, o embate dá-se a 18 de Março de 1167, próximo da
localidade de Al-Babein, na margem ocidental do Nilo. Os dois
exércitos, esgotados pela sua interminável carreira, atiram-se um ao
outro cheios de vontade de acabar de uma vez para sempre com o
conflito que os opõe. Chirkuh confiou a Saladino o comando do
centro, recomendando-lhe que recue assim que o inimigo carregar.
Realmente, Amaury e os seus cavaleiros arremetem para ele de
estandartes desfraldados e, quando Saladino finge fugir, lançam-se
em sua perseguição sem se aperceberem de que as alas direita e
esquerda do exército sírio já lhes cortam qualquer possibilidade de
retirada. As perdas dos cavaleiros francos são severas, mas Amaury
consegue escapar. Ele regressa ao Cairo, onde ficou o grosso das
suas tropas, firmemente decidido a vingar-se sem demora. Com a
colaboração de Chawer, já se apresta, à cabeça de uma poderosa
expedição, a voltar ao Alto Egipto, quando lhe chega uma notícia
quase incrível: Chirkuh apoderou-se de Alexandria, a maior cidade
do Egipto, situada no extremo setentrional do país, na costa
mediterrânica!
Em verdade, a seguir à sua vitória de Al-Babein, o imprevisível
general curdo, sem esperar um só dia e antes de os seus inimigos
terem tempo de se recompor, atravessou, a uma velocidade
vertiginosa, todo o território egípcio, de sul a norte, e fez uma
entrada triunfal em Alexandria. A população do grande porto
mediterrânico, hostil à aliança com os Franj, acolheu os Sírios como
libertadores.
Chawer e Amaury, coagidos a seguir o ritmo infernal que Chirkuh
impõe a esta guerra, vão cercar Alexandria. Na urbe, os víveres são
tão pouco abundantes que ao cabo de um mês a população,
ameaçada de fome, começa a lamentar ter aberto as suas portas ao
corpo expedicionário sírio. A situação parece mesmo desesperada
no dia em que uma frota franca vem fundear ao largo do porto.
Todavia, Chirkuh não se confessa batido. Ele confia o comando da
praça a Saladino e depois, reunindo umas centenas dos seus
melhores cavaleiros, efectua com eles uma audaciosa surtida
nocturna. À rédea solta, atravessa as linhas inimigas, em seguida
cavalga, noite e dia… até ao Alto Egipto.
Em Alexandria, o bloqueio torna-se cada vez mais rigoroso. À
fome em breve se acrescentam as epidemias, bem como um
bombardeamento quotidiano por catapultas. A responsabilidade é
pesada para um moço de vinte e nove anos como Saladino. Mas a
diversão operada pelo seu tio vai dar frutos. Chirkuh não ignora que
Morri está impaciente por acabar com esta campanha e voltar ao
seu reino constantemente fustigado por Nureddin. Ao abrir uma
nova frente no sul, em vez de se deixar encurralar em Alexandria, o
general curdo ameaça prolongar indefinidamente a contenda. No
Alto Egipto, ele organiza inclusive uma autêntica sublevação contra
Chawer, levando numerosos camponeses em armas a juntarem-se
a si. Quando as suas tropas já são suficientemente importantes,
aproxima-se do Cairo e envia a Amaury uma mensagem habilmente
redigida. Andamos os dois a perder o nosso tempo aqui, manda ele
dizer-lhe em substância. Se o rei quiser atentar calmamente nas
coisas, perceberá claramente que, depois de me escorraçar deste
país, não terá feito mais do que servir os interesses de Chawer.
Amaury fica convencido. Não tarda a chegar-se a um acordo: é
levantado o cerco a Alexandria, e Saladino abandona a cidade
saudado por uma guarda de honra. Em Agosto de 1167, os dois
exércitos tornam a partir, como três anos antes, para os seus
respectivos países. Nureddin, satisfeito por recuperar o escol do seu
exército, jura a si mesmo não mais se deixar arrastar para estas
estéreis aventuras egípcias.
E no entanto, logo no ano seguinte, como uma espécie de
fatalidade, a corrida para o Nilo vai recomeçar. Ao sair do Cairo,
Amaury julgara conveniente deixar lá um destacamento de
cavaleiros encarregados de velar pela boa aplicação do tratado de
aliança. Uma das suas missões consistia designadamente em
controlar as portas da urbe e proteger os funcionários francos
incumbidos de colectar o tributo anual de cem mil dinares que
Chawer prometera pagar ao reino de Jerusalém. Um imposto tão
pesado, a par com da presença continuada desta força estrangeira,
só podia provocar o ressentimento dos citadinos.
Assim, a pouco e pouco a opinião pública mobilizou-se contra os
ocupantes. Murmura-se, até mesmo no séquito do califa, que uma
aliança com Nureddin seria um mal menor. Começam a circular
mensagens, sem o conhecimento de Chawer, entre o Cairo e Alepo.
O filho de Zinki, com pouca pressa em intervir, contenta-se em
observar as reacções do rei de Jerusalém.
Não podendo ignorar este rápido surto de hostilidade, os
cavaleiros e os funcionários francos instalados na capital egípcia
enchem-se de medo. Eles enviam mensagens a Amaury para vir em
seu socorro. O monarca, inicialmente, hesita. A prudência
aconselha-o a retirar a sua guarnição do Cairo e a contentar-se com
a vizinhança de um Egipto neutral e inofensivo. Mas o seu
temperamento inclina-o para a fuga em frente. Encorajado pela
recente chegada ao Oriente de um grande número de cavaleiros
ocidentais impacientes por «dar caça aos Sarracenos», ele decide-
se em Outubro de 1168, pela quarta vez, a lançar o seu exército ao
assalto do Egipto.
Esta nova campanha principia com uma matança tão medonha
como gratuita. Com efeito, os ocidentais apoderam-se da cidade de
Bilbeis onde, sem qualquer razão, massacram os habitantes,
homens, mulheres e crianças, tanto os muçulmanos quanto os
cristãos de rito copta. Conforme dirá muito justamente Ibn al-Athir,
se os Franj se houvessem portado melhor em Bilbeis, poderiam ter
tomado o Cairo com a maior das facilidades, pois os notáveis da
cidade estavam prontos a entregá-la. Mas ao verem os massacres
perpetrados em Bilbeis, as pessoas decidiram resistir até ao fim. De
facto, ao ver surgir os invasores, Chawer ordena que se deite fogo à
cidade velha do Cairo. Vinte mil cântaros de nafta são despejados
sobre as locandas, as casas, os palácios e as mesquitas. Os
habitantes são evacuados para a cidade nova, fundada pelos
Fatímidas no século X e que agrupa essencialmente os palácios, as
administrações, as casernas e a universidade religiosa, de Al-Azhar.
As chamas lavram durante cinquenta e quatro dias.
Entretanto, o vizir tentou manter contactos com Amaury para o
persuadir a renunciar à sua louca empresa. Espera consegui-lo sem
uma nova intervenção de Chirkuh. Mas o seu partido enfraquece no
Cairo. Al-Adid, em especial, toma a iniciativa de enviar uma carta a
Nureddin pedindo-lhe que venha em socorro do Egipto. Para
comover o filho de Zinki, o soberano fatímida juntou à sua missiva
madeixas de cabelos: São, explica-lhe ele, os cabelos das minhas
mulheres. Elas suplicam-te que ocorras a subtraí-las aos ultrajes
dos Franj.
A reacção de Nureddin a esta mensagem angustiosa chegou ao
nosso conhecimento graças a um testemunho particularmente
precioso, que não é outro senão o de Saladino, citado por Ibn al-
Athir:

Quanto os apelos de al-Adid se fizeram ouvir, Nureddin


convocou-me e informou-me do que se passava. Em seguida,
disse-me: «Vai ter com o teu tio Chirkuh a Homs e roga-lhe que
venha cá o mais depressa possível, pois este caso não admite a
mínima demora.» Saí de Alepo e, a uma milha de distância da
urbe, encontrei o meu tio que vinha precisamente por causa
deste assunto. Nureddin ordenou-lhe que se aprestasse a partir
para o Egipto.

O general curdo pede então ao sobrinho que o acompanhe, mas


Saladino recusa-se.

Respondi que nem por sombras esquecera os sofrimentos


amargados em Alexandria. O meu tio disse então a Nureddin: «É
indispensável que Yussef venha comigo!» E Nureddin repetiu
assim as suas ordens. Por mais que lhe fizesse notar a minha
mortificação, ele mandou que me entregassem dinheiro e eu tive
de partir como um homem que é condenado à morte.

Desta vez, não haverá embate entre Chirkuh e Amaury.


Impressionado com a determinação dos Cairotas, prontos a destruir
a sua cidade de preferência a renderem-se-lhe, e receando ser
apanhado por trás pelo exército da Síria, o rei franco volta à
Palestina a 2 de Janeiro de 1169. Seis dias mais tarde, o general
curdo chega ao Cairo para aí ser acolhido como um salvador, tanto
pela população quanto pelos dignitários fatímidas. O próprio Chawer
parece alegrar-se com isso. Mas ninguém se ilude. Embora tenha
lutado contra os Franj no decurso das últimas semanas,
consideram-no amigo daqueles e terá de o pagar. Logo a 18 de
Janeiro, é atraído a uma emboscada, sequestrado numa tenda,
depois morto pelas próprias mãos de Saladino com autorização
escrita do califa. Nesse mesmo dia, Chirkuh substitui-o no vizirato.
Quando, vestido de seda bordada, ele se dirige à residência do seu
antecessor para aí se instalar, não encontra sequer um coxim para
se sentar. Tudo foi pilhado após o anúncio da morte de Chawer.
O general curdo precisou de três campanhas para se tornar no
verdadeiro senhor do Egipto. A sua felicidade não dura muito: a 23
de Março, dois meses depois do triunfo, e na sequência de um
repasto demasiado copioso, ele é vítima de uma indisposição, de
uma atroz sensação de asfixia. Morre alguns instantes mais tarde. É
o fim de uma epopeia, mas o início de uma outra, cuja repercussão
será infinitamente maior.

Por ocasião da morte de Chirkuh, contará Ibn al-Athir, os


conselheiros do califa al-Adid sugeriram-lhe que escolhesse
Yussef como novo vizir porque ele era o mais jovem e parecia o
mais inexperiente e o mais fraco dos emires do exército.

Efectivamente, Saladino é convocado para o palácio do


soberano, onde recebe o título de al-malik an-nasser, «o rei
vitorioso», bem como os adornos distintivos dos vizires: um turbante
branco bordado a ouro, um traje com uma túnica forrada de tecido
escarlate, uma espada incrustada de pedrarias, uma égua alazã
com uma sela e uma rédea enfeitadas de ouro cinzelado e de
pérolas, e muitos outros objectos preciosos. Ao sair do palácio,
dirige-se em grande cortejo para a residência viziral.
Em poucas semanas, Yussef logra impor-se. Elimina os
funcionários fatímidas cujo lealdade lhe parece duvidosa, substitui-
os pelos seus favoritos, esmaga severamente uma revolta no seio
das tropas egípcias, rechaça, por fim, em Outubro de 1169, uma
lastimosa invasão franca, chefiada por Amaury, que chega ao Egipto
pela quinta e última vez, na esperança de se apoderar do porto de
Damieta, no delta do Nilo. Manuel Comneno, inquieto por ver um
lugar-tenente de Nureddin à cabeça do Estado fatímida, concedeu
aos Franj o apoio da esquadra bizantina. Mas em vão. Os Rum não
têm provisões suficientes, e os seus aliados recusam fornecer-lhas.
Ao cabo de algumas semanas, Saladino pode encetar conversações
com eles e persuadi-los sem custo a pôr cobro a uma empresa
muito mal conduzida.
Não houve portanto necessidade de esperar pelo final de 1169
para ver Yussef erigir-se em senhor incontestado do Egipto. Em
Jerusalém, Morri promete a si mesmo aliar-se ao sobrinho de
Chirkuh contra o principal inimigo dos Franj, Nureddin. Se o
optimismo do rei pode afigurar-se excessivo, o certo é que não
carece de fundamento. A breve trecho, de facto, Saladino começa a
tomar alguma distância relativamente ao seu senhor. É claro que ele
garante continuamente a sua fidelidade e a sua submissão, mas a
autoridade efectiva sobre o Egipto não pode exercer-se a partir de
Damasco ou de Alepo.
As relações entre os dois homens vão acabar por adquirir uma
real intensidade dramática. Apesar da solidez do seu poder no
Cairo, ao fim e ao cabo Yussef jamais ousará afrontar directamente
o seu aliado. E quando o filho de Zinki o convidar a dialogar, ele
esquivar-se-á sempre, não por medo de cair numa armadilha, mas
por recear fraquejar pessoalmente ao ficar na presença do seu
senhor.
A primeira crise grave estala durante o Verão de 1171, quando
Nureddin exige ao jovem vizir que abula o califado fatímida.
Enquanto muçulmano sunita, o senhor da Síria não pode consentir
que a autoridade espiritual de uma dinastia «herética» continue a
exercer-se numa terra que dele depende. Envia por conseguinte
várias mensagens a tal propósito a Saladino, mas este mostra-se
reticente, temendo ferir os sentimentos da população, em boa parte
xiita, e afastar de si os dignitários fatímidas. Por outro lado, ele não
ignora que é do califa al-Adid que lhe vem a sua autoridade legítima
enquanto vizir, e ao destroná-lo receia perder o que garante
oficialmente o seu poder no Egipto, voltando nesse caso a ser um
simples representante de Nureddin. Aliás, ele vê na insistência do
filho de Zinki muito mais uma tentativa de sujeição política do que
um acto de zelo religioso. No mês de Agosto, as exigências do
senhor da Síria no que toca à abolição do califado xiita tornaram-se
numa ordem cominatória.
Entre a espada e a parede, Saladino começa a tomar
disposições para fazer face às reacções hostis da população e vai
ao ponto de preparar uma proclamação pública anunciando o
destronamento do califa. Contudo, ainda hesita em difundi-la. Al-
Adid, apesar de só ter vinte anos, está muito gravemente doente, e
Saladino, que contraiu amizade com ele, não se afaz à ideia de trair
a sua confiança. Subitamente, na sexta-feira 10 de Setembro de
1171, um habitante de Mossul, de visita ao Cairo, entra numa
mesquita e, subindo ao púlpito antes do pregador, reza a oração em
nome do califa abássida. Curiosamente, ninguém reage, nem na
própria altura nem nos dias seguintes. Será um agente enviado por
Nureddin para embaraçar Saladino? É possível. Mas, em todo o
caso, depois de tal incidente, o vizir, sejam quais forem os seus
escrúpulos, já não pode adiar a sua decisão. Logo na sexta-feira
seguinte, é dada ordem para nunca mais se mencionarem os
Fatímidas nas orações. Al-Adid está então no seu leito de morte,
semi-inconsciente, e Yussef proíbe toda a gente de lhe anunciar a
notícia. «Se acaso se restabelecer», diz-lhes, «terá tempo de sobra
para a conhecer. De outro modo, deixai-o morrer sem tormentos.»
De facto, al-Adid expirará pouco tempo depois, sem ter sabido do
triste fim da sua dinastia.
A queda do califado xiita, após dois séculos de um reinado por
vezes glorioso, irá, como era de esperar, afectar imediatamente a
seita dos Assassinos que, tal como no tempo de Hassan as-Sabbah,
ainda aguardava que os Fatímidas saíssem da sua letargia para
inaugurar uma nova idade de ouro do xiismo. Vendo que este sonho
se desvanecia para todo o sempre, os seus adeptos ficam tão
desnorteados que o seu chefe na Síria, Rachideddin Sinan, «o velho
da montanha», envia uma mensagem a Amaury para lhe anunciar
que está pronto, com todos os seus partidários, a converter-se ao
cristianismo. Os Assassinos possuem à época várias fortalezas e
aldeias na Síria Central, onde levam uma vida relativamente
sossegada. Há já vários anos que parecem ter renunciado às
operações espectaculares. Rachideddin, naturalmente, ainda dispõe
de equipas de assassinos perfeitamente treinados, bem como de
pregadores devotados, mas muitos adeptos da seita transformaram-
se em camponeses honrados, não raro coagidos a pagar um tributo
regular à Ordem dos Templários.
Ao prometer converte-se, o «velho» espera, entre outras coisas,
isentar os seus fiéis do tributo, que só os não cristãos são obrigados
a pagar. Os Templários, que não descuidam os seus interesses
financeiros, seguem com inquietação estes contactos entre Amaury
e os Assassinos. Mal o acordo está iminente, decidem fazê-lo gorar.
Certo dia de 1173, quando uns enviados de Rachideddin voltam de
uma audiência com o rei, os Templários armam-lhes uma
emboscada e massacram-nos. Nunca mais se tornará a falar da
conversão dos Assassinos.
Independentemente deste episódio, a abolição do califado
fatímida tem uma consequência tão importante quanto imprevista:
dar a Saladino uma dimensão política que ele não tinha até então.
Nureddin, evidentemente, não esperava semelhante resultado. O
desaparecimento do califa, em vez de reduzir Yussef à categoria de
um simples representante do senhor da Síria, faz dele o soberano
efectivo do Egipto e o guardião legítimo dos fabulosos tesouros
acumulados pela dinastia destituída. Desde logo, as relações entre
os dois homens não cessarão de se envenenar.
A seguir a estes acontecimentos, numa altura em que Saladino
dirige, a leste de Jerusalém, uma audaciosa expedição contra a
fortaleza franca de Chawbak, a guarnição parece prestes a capitular
quando Saladino é informado de que Nureddin vem juntar-se-lhe à
cabeça das suas tropas a fim de participar nas operações. Sem
esperar um só instante, Yussef ordena aos seus homens que
levantem o acampamento e regressem em marcha forçada ao
Cairo. Numa carta ao filho de Zinki, ele alega que teriam rebentado
tumultos no Egipto, constrangendo-o a tão precipitada partida.
Mas Nureddin não se deixa ludibriar. Acusando Saladino de
felonia e de traição, jura ir em pessoa ao país do Nilo para chamar
de novo a si o controlo da situação. Inquieto, o jovem vizir reúne os
seus mais íntimos colaboradores, entre os quais o seu próprio pai,
Ayyub, e consulta-os sobre a atitude a adoptar no caso de Nureddin
pôr em prática a sua ameaça. No momento em que alguns emires
se declaram prontos a pegar em armas contra o filho de Zinki, e o
próprio Saladino parece partilhar da sua opinião, Ayyub intervém, a
tremer de cólera. Interpelando Yussef como se este não passasse
de um fedelho, afirma: «Sou teu pai e se há aqui alguém que te ama
e deseja o teu bem, só posso ser eu. Não obstante, fica a saber que
se Nureddin vier, nada poderá impedir-me de me prosternar e de
beijar o chão a seus pés. Se ele me ordenar que te corte a cabeça
com o meu sabre, fá-lo-ei. Pois esta terra é dele. Vais escrever-lhe
isto: Soube que pretendias trazer uma expedição até ao Egipto, mas
não necessitas de o fazer; este país é teu, e basta-te enviar um
corcel ou um camelo para eu ir ao teu encontro como um homem
humilde e submisso.»
À saída desta reunião, Ayyub admoesta novamente o seu filho
em privado: «Por Deus, se Nureddin tentasse tirar-te uma polegada
do teu território, bater-me-ia contra ele até à morte. Mas porque te
mostras tão abertamente ambicioso? O tempo joga a teu favor,
deixa a Providência fazer as coisas!» Convencido, Yussef envia à
Síria a mensagem proposta pelo pai e Nureddin, tranquilizado,
renuncia no último momento à sua expedição punitiva. Porém,
instruído por este alerta, Saladino manda um dos seus irmãos,
Turanshah, ao Iémen com a missão de conquistar essa terra
montanhosa do Sudoeste da Arábia a fim de aí arranjar um lugar de
refúgio para a família de Ayyub no caso de o filho de Zinki se
lembrar outra vez de assumir a governação do Egipto. O Iémen será
efectivamente ocupado sem grande custo… «em nome do rei
Nureddin».
Em Julho de 1173, menos de dois anos após a audiência falhada
de Chawbak, sobrevém um incidente análogo. Tendo Saladino ido
guerrear a leste do Jordão, Nureddin reúne as suas tropas e vai ao
encontro dele. Mas, uma vez mais, aterrado com a ideia de se ver
perante o seu senhor, o vizir apressa-se a tomar o caminho do
Egipto afirmando que o pai está moribundo. Realmente, Ayyub
acaba de entrar em coma na sequência de uma queda de cavalo.
Mas Nureddin não se contenta de modo nenhum com esta nova
desculpa. E quando Ayyub morre em Agosto, ele imbui-se da
certeza de que já não existe no Cairo um único homem no qual
possa confiar plenamente. Considera então chegada a altura de ir
encarregar-se pessoalmente dos assuntos egípcios.
Nureddin iniciou os preparativos para invadir o Egipto e arrancá-
lo a Salaheddin Yussef, pois verificara que este evitava lutar contra
os Franj por receio de se reunir com ele. O nosso cronista Ibn al-
Athir, que tem catorze anos aquando destes acontecimentos, toma
nitidamente posição a favor do filho de Zinki. Yussef preferiria ter os
Franj nas suas fronteiras em vez de ser vizinho directo de Nureddin.
Este escreveu portanto a Mossul e alhures pedindo que lhe
enviassem tropas. Mas, no momento em que se aprestava a
marchar com os seus soldados para o Egipto, Deus decretou-lhe a
ordem que não se discute. De facto, o senhor da Síria acaba de
adoecer gravemente, acometido, ao que parece, de uma fortíssima
angina. Os seus médicos prescrevem-lhe uma sangria, mas o
doente recusa: «Não se sangra um homem de sessenta anos», diz
ele. Experimentam-se outros tratamentos, mas nada resulta. Em 15
de Maio de 1174, é anunciada em Damasco a morte de Nureddin
Mamude, o rei santo, o mujahid que unificou a Síria muçulmana e
permitiu que o mundo árabe se preparasse para o combate decisivo
contra o ocupante. Em todas as mesquitas, as pessoas reuniram-se
ao entardecer para recitar alguns versículos do Alcorão em sua
memória. A despeito do seu conflito, nos últimos anos, com
Saladino, este irá aparecendo gradualmente muito mais como seu
continuador do que como rival.
No imediato, porém, é o rancor que impera entre os familiares e
os colaboradores do finado, os quais temem ver Yussef aproveitar-
se da confusão geral para atacar a Síria. Eis porque, na mira de
ganhar tempo, se evita comunicar a notícia ao Cairo. Mas Saladino,
que tem amigos em toda a parte, envia a Damasco, através de
pombo-correio, uma mensagem subtilmente redigida: Chegou-nos
uma notícia do inimigo maldito a respeito do senhor Nureddin. Se,
Deus o não queira, a coisa se revelar exacta, importa acima de tudo
evitar que a divisão se instale nos corações e que o desvario se
aposse dos espíritos, pois só o inimigo ganharia com isso.
A despeito de tão conciliadoras palavras, a hostilidade suscitada
pela ascensão de Saladino será feroz.
CAPÍTULO X

As Lágrimas de Saladino

Vais demasiado longe, Yussef, estás a passar das marcas.


Não és mais do que um servidor de Nureddin e queres agora
ficar com o poder só para ti? O melhor é não teres ilusões,
pois nós que te tirámos do nada saberemos mandar-te para
lá outra vez!

Alguns anos mais tarde, este aviso enviado a Saladino pelos


dignitários de Alepo parecerá absurdo. Mas em 1174, quando o
senhor do Cairo começa a emergir como a principal figura do
Oriente árabe, os seus méritos ainda não são evidentes para todos.
No círculo de Nureddin, tanto em vida deste como a seguir à sua
morte, já nem sequer se pronuncia o nome de Yussef. Para o
designar, empregam-se as palavras «arrivista», «ingrato»,
«aleivoso» ou, as mais das vezes, «insolente».
Insolente foi coisa que Saladino geralmente se coibiu de ser; mas
insolente é sem dúvida alguma a sua sorte. E é isto, afinal, que irrita
os seus adversários. De facto, este oficial curdo de trinta e seis anos
nunca se mostrou um homem ambicioso, e os que observaram os
seus começos sabem que ele se contentaria facilmente em ser
apenas um emir no meio de tantos outros se a sorte o não houvesse
projectado para a ribalta contra a sua própria vontade.
Foi a contragosto que ele partiu para o Egipto, onde o seu papel
na conquista é mínimo; e não obstante, graças precisamente ao seu
apagamento, guindou-se ao topo do poder. Não ousara proclamar a
destituição dos Fatímidas, mas quando foi forçado a tomar uma
decisão neste sentido, achou-se herdeiro da mais rica das dinastias
muçulmanas. E quando Nureddin resolveu pô-lo no seu lugar,
Yussef nem sequer necessitou de resistir: o seu senhor expirou
subitamente, deixando como único sucessor um adolescente de
onze anos, as-Saleh.
Menos de dois meses mais tarde, a 11 de Julho de 1174, Amaury
morre por seu turno, vítima de uma disenteria, na altura em que
preparava uma nova invasão do Egipto com o apoio de uma
poderosa frota siciliana. Ele lega o reino de Jerusalém a seu filho
Balduíno IV, um rapaz de treze anos atormentado pela mais terrível
das maldições: a lepra. Já só resta em todo o Oriente um monarca
que pode obstar à ascensão irresistível de Saladino: é Manuel, o
imperador dos Rum, que sonha efectivamente tornar-se um dia
suserano da Síria e quer invadir o Egipto em colaboração com os
Franj. Mas justamente, como para completar a série, o poderoso
exército bizantino, que paralisara Nureddin durante cerca de quinze
anos, irá ser aniquilado em Setembro de 1176 por Kilij Arslan II, neto
do primeiro, na batalha de Miriocéfalon. Manuel extinguir-se-á pouco
tempo depois, condenando o império cristão do Oriente a soçobrar
na anarquia.
Poder-se-á censurar os panegiristas de Saladino por terem visto
nesta sucessão de acontecimentos imprevistos a mão da
Providência? O próprio Yussef nunca buscou arrogar-se o mérito da
sua fortuna. Ele teve sempre o cuidado de agradecer, depois de
Deus, «ao meu tio Chirkuh», e «ao meu senhor Nureddin». É bem
verdade que a grandeza de Saladino também reside na sua
modéstia.

Um dia em que Saladino estava fatigado e procurava


descansar, um dos seus mamelucos veio junto dele e
apresentou-lhe um papel para assinar. «Estou exausto», disse o
sultão, «volta daqui a uma hora!» Mas o homem insistiu, colando
quase a folha ao rosto de Salaheddin e dizendo-lhe: «O amo
deve assinar!» O sultão respondeu: «Mas não tenho nenhum
tinteiro à mão!» Estava sentado à entrada da sua tenda, e o
mameluco reparou que havia lá dentro um tinteiro. «Está ali o
tinteiro, ao fundo da tenda», retorquiu ele, o que equivalia a uma
ordem a Salaheddin para ir ele próprio buscar o tinteiro, nada
mais nada menos. O sultão virou-se, viu o tinteiro e disse: «Por
Deus, é verdade!» Esticou-se então para trás, apoiou-se no
braço esquerdo e pegou no tinteiro com a mão direita. Depois
assinou o papel.

Este incidente, relatado por Bahaeddin, secretário particular e


biógrafo de Saladino, ilustra com toda a clareza o que o diferenciava
dos monarcas da sua época ou mesmo de todas as épocas: saber
ser humilde com os humildes, apesar de se ter tornado no mais
poderoso entre os poderosos. É sabido que os seus cronistas
evocam a sua coragem, a sua justiça e o seu zelo pela jihad, mas,
através das narrativas deles, transparece incessantemente uma
imagem mais comovente, mais humana.

Um dia, conta Bahaeddin, quando estávamos em plena


campanha contra os Franj, Salaheddin chamou os seus íntimos
para junto de si. Empunhava uma carta que acabava de ler, e, ao
pretender falar, rompeu em soluços. Vendo-o em semelhante
estado, não pudemos impedir-nos de chorar igualmente, apesar
de ignorarmos do que se tratava. Ele disse enfim, com a voz
embargada pelas lágrimas: «Takieddin, o meu sobrinho,
morreu!» E recomeçou a debulhar-se em lágrimas, e nós
também. Recobrei a serenidade e disse-lhe: «Não esqueçamos
a campanha em que estamos envolvidos e peçamos perdão a
Deus por termos cedido ao nosso pranto.» Salaheddin aprovou-
me. «Sim», disse ele, «que Deus me perdoe! Que Deus me
perdoe!» Repetiu isto várias vezes, depois acrescentou: «Que
ninguém saiba o que sucedeu!» Em seguida, mandou trazer
água de rosas para lavar os olhos.

As lágrimas de Saladino não correm apenas por ocasião da


morte dos seus familiares.

Uma vez, recorda-se Bahaeddin, quando eu cavalgava ao


lado do sultão frente aos Franj, um batedor do exército veio até
nós trazendo uma mulher que soluçava e batia com a mão no
peito. «Ela saiu do meio dos Franj», explicou-nos o batedor,
«para falar com o amo, e nós acompanhámo-la.» Salaheddin
pediu ao intérprete que a interrogasse. Ela disse: «Uns ladrões
muçulmanos entraram ontem na minha tenda e roubaram a
minha filhinha. Passei toda a noite a chorar, e então os nossos
chefes disseram-me: O rei dos muçulmanos é misericordioso,
nós deixar-te-emos ir ter com ele e poderás pedir-lhe a tua filha.
Portanto vim, e deposito todas as minhas esperanças em ti.»
Salaheddin ficou comovido e com os olhos rasos de água.
Enviou alguém ao mercado de escravos em busca da menina, e
menos de uma hora depois chegou um cavaleiro com a criança
escarrachada nos seus ombros. Mal a viu, a mãe atirou-se ao
chão, encheu o rosto de areia, e todos os presentes choraram de
emoção. Ela olhou para o céu e desatou a dizer coisas
incompreensíveis. Restituíram-lhe então a filha e reconduziram-
na ao acampamento dos Franj.

Os que conheceram Saladino atardam-se pouco na sua


descrição física – baixo, franzino, barba curta e regular. Preferem
falar do seu rosto, desse rosto pensativo e algo melancólico, que se
iluminava subitamente de um sorriso reconfortante, pondo o
interlocutor à vontade. Era sempre afável com os seus visitantes,
insistindo em convidá-los a comer, cumulando-os de honras, ainda
que fossem infiéis, e satisfazendo todos os seus pedidos. Não podia
admitir que alguém viesse vê-lo e partisse decepcionado, e havia
quem não hesitasse em aproveitar-se disto. Um dia, no decurso de
uma trégua com os Franj, o brins, senhor de Antioquia, apresentou-
se inesperadamente diante da tenda de Salaheddin e pediu-lhe que
devolvesse uma região que o sultão tomara quatro anos antes. Ele
deu-lha!

Como se verifica, a generosidade de Saladino tocou por vezes as


raias da inconsciência.

Os seus tesoureiros, revela Bahaeddin, guardavam sempre


às escondidas uma certa soma de dinheiro para obviar a
qualquer imprevisto, pois sabiam muito bem que se o amo
tivesse conhecimento de tal reserva a gastaria imediatamente. A
despeito desta precaução, quando o sultão morreu só havia no
tesouro do Estado um lingote de ouro de Tiro e quarenta e sete
diréns de prata.

Sempre que alguns dos seus colaboradores lhe critica a sua


prodigalidade, Saladino responde-lhes com um sorriso desenvolto:
«Há pessoas para quem o dinheiro não tem mais importância que a
areia.» De facto, ele sente um sincero desprezo pela riqueza e pelo
luxo, e quando os fabulosos palácios dos califas fatímidas caem na
sua posse, instala aí os seus emires, preferindo, no que lhe toca,
permanecer na residência, mais modesta, reservada aos vizires.
Este é apenas um dos muitos traços que permitem comparar a
imagem de Saladino com a de Nureddin. Aliás, os seus adversários
não verão nele senão um pálido imitador do seu senhor. No fundo,
ele sabe mostrar-se nos seus contactos com os outros, mormente
com os seus soldados, muito mais caloroso do que o seu
antecessor. E se observa à letra os preceitos da religião, o certo é
que não tem essa faceta ligeiramente beata que caracterizava
determinados comportamentos do filho de Zinki. Poder-se-ia dizer
que Saladino é, em geral, tão exigente consigo como Nureddin, mas
que o é menos com os outros, e no entanto revelar-se-á ainda mais
impiedoso do que o seu antecessor no que toca aos que insultam o
islamismo, quer se trate dos «heréticos» ou de alguns Franj.
Para além destas diferenças de personalidade, Saladino
mantém-se fortemente influenciado, sobretudo nos seus começos,
pela impressionante envergadura de Nureddin, de quem procura
mostrar-se digno sucessor, perseguindo sem descanso os mesmos
objectivos que ele: unificar o mundo árabe, mobilizar os
muçulmanos, tanto moralmente, mercê de um poderoso aparelho de
propaganda, quanto militarmente, com vista à reconquista das terras
ocupadas e principalmente de Jerusalém.
Já no Verão de 1174, quando os emires reunidos em Damasco
em torno do jovem as-Saleh discutem a melhor maneira de fazer
frente a Saladino, encarando mesmo a hipótese de se aliarem aos
Franj, o senhor do Cairo lhes endereça uma carta de autêntico
desafio, na qual, ocultando soberanamente o seu conflito com
Nureddin, se apresenta sem hesitar como o continuador da obra do
seu suserano e o fiel guardião da sua herança.

Se o nosso saudoso rei, escreve ele, descortinasse entre vós


um homem tão digno de confiança como eu, acaso não lhe teria
atribuído o Egipto, que era a mais importante das suas
províncias? Podeis estar certos de que se Nureddin não
morresse tão cedo, seria a mim que teria encarregado de educar
o seu filho e de velar por ele. Ora, vejo que vos comportais como
se fôsseis os únicos a servir o meu senhor e o seu filho, e que
tentais excluir-me. Mas eu irei aí em breve. Hei-de realizar, para
honrar a memória do meu senhor, actos que deixarão marca, e
todos vós sereis castigados pelo vosso mau procedimento.

Dificilmente se reconhece aqui o homem circunspecto dos anos


anteriores, como se o desaparecimento do amo houvesse libertado
nele uma agressividade durante muito tempo contida. É verdade
que as circunstâncias são excepcionais, pois esta mensagem tem
uma função precisa: é a declaração de guerra pela qual Saladino
enceta a conquista da Síria muçulmana. Quando envia a sua
mensagem, em Outubro de 1174, o senhor do Cairo já vai a
caminho de Damasco, à frente de setecentos cavaleiros. É pouco
para assediar a metrópole síria, mas Yussef fez bem os seus
cálculos. Assustados pelo tom inusitadamente violento da missiva,
as-Saleh e os seus colaboradores preferiram recuar para Alepo.
Atravessando sem estorvo o território dos Franj, enveredando por
aquilo a que se pode chamar a «pista de Chirkuh», Saladino surge
em fins de Outubro diante de Damasco, onde homens ligados à sua
família se apressam a abrir as portas para o acolher.
Encorajado por esta vitória alcançada sem um golpe de sabre,
ele não suspende o seu ímpeto. Deixando a guarnição de Damasco
às ordens de um dos seus irmãos, dirige-se para a Síria Central,
onde se apodera de Homs e Hama. No decurso desta campanha
relâmpago, diz-nos Ibn al-Athir, Salaheddin apregoava agir em nome
do rei as-Saleh, filho de Nureddin. Ele dizia que o seu fito era
defender o país dos Franj. Fiel à dinastia de Zinki, o historiador de
Mossul evidencia, no mínimo, desconfiança relativamente a
Saladino, a quem acusa de duplicidade. Assiste-lhe alguma razão.
Yussef, que não quer armar-se em usurpador, apresenta-se de facto
como o protector de as-Saleh. «Seja como for», diz ele, «este
adolescente não pode governar sozinho. Precisa de um tutor, de um
regente, e ninguém está em melhor posição do que eu para exercer
tal função.» De resto, ele envia sucessivas cartas a as-Saleh para
lhe afirmar a sua fidelidade, manda rezar em seu favor nas
mesquitas do Cairo e de Damasco, cunha moeda em seu nome.
O jovem monarca é totalmente insensível a estes gestos.
Quando Saladino vem cercar a própria Alepo em Dezembro de
1174, «para proteger o rei as-Saleh da nefasta influência dos seus
conselheiros», o filho de Nureddin reúne as pessoas da urbe e faz-
lhe um discurso comovente: «Vede este homem injusto e ingrato
que pretende arrebatar-me o meu país sem respeito por Deus nem
pelos homens! Sou órfão e conto convosco para me defenderdes
em memória de meu pai que tanto vos amou.» Profundamente
sensibilizados, os Alepinos decidem resistir até ao fim ao
«aleivoso». Yussef, que procura evitar um conflito directo com as-
Saleh, levanta o cerco. Em contrapartida, resolve proclamar-se «rei
do Egipto e da Síria» para já não depender de qualquer suserano.
Os cronistas conferir-lhe-ão, além disso, o título de sultão, mas ele
nunca o usará. Saladino apresentar-se-á mais algumas vezes diante
dos muros de Alepo, mas sem jamais se decidir a terçar lanças com
o filho de Nureddin.
Na mira de esconjurar esta ameaça permanente, os conselheiros
de as-Saleh deliberam recorrer aos serviços dos Assassinos,
entrando em contacto com Rachideddin Sinan, que promete
desembaraçá-los de Yussef. O «velho da montanha» fica radiante
por poder ajustar contas com o coveiro da dinastia fatímida. Ocorre
um primeiro atentado no início de 1175: alguns Assassinos
penetram no acampamento de Saladino, alcançam a sua tenda,
onde um emir os reconhece e lhes barra o caminho. Ele é
gravemente ferido, mas dá o alerta. Os guardas acodem e, após um
combate encarniçado, os batinis são massacrados. Porém, o caso
não fica por aqui. Em 22 de Maio de 1176, numa altura em que
Saladino está de novo em campanha na região de Alepo, um
Assassino irrompe na sua tenda e desfere-lhe uma punhalada na
cabeça. Felizmente, o sultão, que está de sobreaviso desde o último
atentado, tomou a precaução de pôr uma coifa de malha por baixo
do fez. O matador agride então o pescoço da sua vítima. Mas
também aqui a lâmina é sustida. Com efeito, Saladino enverga uma
comprida túnica de tecido espesso cuja alta gola é reforçada por
malha. Surge então um dos emires do exército que agarra no punhal
com uma mão e fere o batini com a outra, abatendo-o. Saladino nem
sequer teve tempo de se erguer e já um segundo matador se lança
sobre ele, depois um terceiro. Mas os guardas acorreram e os
assaltantes são massacrados. Yussef sai da tenda esgazeado,
cambaleante, pasmado de ainda estar indemne.
Assim que recobra a calma, decide ir atacar os Assassinos no
seu antro, na Síria Central, onde Sinan controla uma dezena de
fortalezas. É a mais temível de todas elas, Massiaf, empoleirada no
alto de um monte escarpado, que Saladino vem cercar. Mas o que
se passa neste mês de Agosto de 1176 na terra dos Assassinos
quedar-se-á sem dúvida para todo o sempre um mistério. Uma
primeira versão, a de Ibn al-Athir, diz que Sinan teria enviado uma
carta ao tio materno de Saladino, jurando mandar matar todos os
membros da família reinante. Vinda da parte da seita, sobretudo
após as duas tentativas de assassínio dirigidas contra o sultão, esta
ameaça não podia ser encarada de ânimo leve. O cerco de Massiaf
teria sido então levantado.
Mas uma segunda versão dos acontecimentos vem-nos dos
próprios Assassinos. Ela está registada num dos raros escritos que
sobreviveram à seita, uma narrativa assinada por um dos seus
adeptos, um tal Abu-Firas. Segundo ele, Sinan, que estava ausente
de Massiaf quando a fortaleza foi cercada, teria vindo postar-se com
dois companheiros numa colina das proximidades para observar o
desenrolar das operações, ordenando então Saladino aos seus
homens que fossem capturá-lo. Uma tropa importante teria cercado
Sinan, mas quando os soldados tentaram acercar-se dele, uma
força misteriosa ter-lhes-ia paralisado os membros. Diz-se que o
«velho da montanha» os mandou seguidamente avisar o sultão de
que desejava falar-lhe pessoalmente e em privado, que,
aterrorizados, eles foram numa corrida contar ao seu senhor o que
acabava de suceder, e que Saladino, não augurando nada de bom,
deu ordem para espalhar cal e cinzas em torno da sua tenda a fim
de detectar qualquer marca de passos, além de, ao entardecer,
instalar guardas munidos de tochas com o encargo de o
protegerem. De súbito, já noite velha, ele acordou em sobressalto,
avistando por instantes uma figura desconhecida que se esgueirava
para fora da sua tenda e na qual julgou reconhecer Sinan em
pessoa. O misterioso visitante deixara em cima da cama uma
bolacha envenenada juntamente com um papel onde Saladino pôde
ler: Estás em nosso poder. Saladino teria então soltado um grito, ao
que os seus guardas acorreram jurando que nada haviam visto.
Logo no dia seguinte, Saladino apressava-se a levantar o cerco e a
regressar rapidamente a Damasco.
Esta narrativa é sem dúvida bastante romanceada, mas o certo é
que Saladino decidiu muito repentinamente alterar de cabo a raso a
política respeitante aos Assassinos. Apesar da sua aversão aos
heréticos de toda a espécie, ele nunca mais tentará ameaçar o
território dos batinis. Muito pelo contrário, procurará doravante
congraçar-se com eles, privando assim os seus inimigos, tanto
muçulmanos como Franj, de um precioso auxiliar. Realmente, na
batalha pelo controlo da Síria, o sultão está resolvido a não
renunciar a nenhum trunfo. É verdade que ele é o virtual vencedor
desde que se apoderou de Damasco, mas o conflito eterniza-se.
Estas campanhas que lhe cabe mover contra os Estados francos,
contra Alepo, contra Mossul, também ela dirigida por um
descendente de Zinki, e contra diversos outros príncipes da Jézira e
da Ásia Menor são esgotantes. Tanto mais que ele deve ir
regularmente ao Cairo para desencorajar intriguistas e
conspiradores.
A situação só começa a decantar-se no final do ano de 1181,
quando as-Saleh morre subitamente, talvez envenenado, aos
dezoito anos de idade. Ibn al-Athir conta os seus últimos momentos
com emoção:

Tendo o seu estado piorado, os médicos aconselharam-lhe


que bebesse um pouco de vinho. Ele disse-lhes: «Não o farei
antes de ouvir a opinião de um doutor da lei.» Um dos principais
ulemás veio à sua cabeceira e explicou-lhe que a religião
autorizava o emprego do vinho como medicamento. As-Saleh
perguntou: «E pensais deveras que, se Deus decidiu pôr termo à
minha vida, a sua deliberação mudará se me vir tomar vinho?» O
homem de religião foi obrigado a dizer que não. «Nesse caso»,
concluiu o moribundo, «não quero encontrar-me com o meu
criador levando no estômago um alimento interdito.»

Um ano e meio mais tarde, a 18 de Junho de 1183, Saladino faz


a sua entrada solene em Alepo. Doravante, a Síria e o Egipto
passam a constituir uma unidade, não nominalmente, como no
tempo de Nureddin, mas efectivamente sob a autoridade
incontestada do soberano aiúbida. Curiosamente, a emergência
deste poderoso Estado árabe que os envolve todos os dias um
pouco mais não leva os Franj a dar provas de maior solidariedade.
Bem pelo contrário. Enquanto o rei de Jerusalém, tremendamente
mutilado pela lepra, soçobra na sua impotência, dois clãs rivais
disputam o poder. O primeiro, favorável a um arranjo com Saladino,
é dirigido por Raimundo, conde de Trípolis. O segundo, extremista,
tem como porta-voz Reinaldo de Châtillon, o antigo príncipe de
Antioquia.
Muito moreno, de nariz adunco, falando fluentemente árabe,
leitor atento dos textos islâmicos, Raimundo teria passado por um
emir sírio como tantos outros se a sua alta estatura não traísse as
suas origens ocidentais.

Não havia, diz-nos Ibn al-Athir, entre os Franj dessa época


nenhum homem mais corajoso nem mais sábio do que o senhor
de Trípolis, Raimundo Ibn Raimaundo as-Sanjili, descendente de
Saint-Gilles. Mas ele era muito ambicioso e desejava
ardentemente tornar-se rei. Durante algum tempo, assegurou a
regência, mas em breve foi dela arredado. Encheu-se de tanto
rancor que escreveu a Salaheddin, se pôs a seu lado e lhe pediu
que o ajudasse a tornar-se rei dos Franj. Salaheddin regozijou-se
com isto e apressou-se a libertar um certo número de cavaleiros
de Trípolis que estavam prisioneiros dos muçulmanos.

Saladino está atento a tais discórdias. Quando a corrente


«oriental» dirigida por Raimundo parece triunfar em Jerusalém, ele
mostra-se conciliador. Em 1184, Balduíno IV entrou na fase terminal
da lepra. Os seus pés e as pernas estão flácidos e os seus olhos
apagados. Mas não carece de coragem nem de bom senso e confia
no conde de Trípolis, que se esforça por entabular relações de boa
vizinhança com Saladino. O viajante andaluz Ibn Jobair, que visita
Damasco nesse ano, manifesta a sua surpresa ao ver que a
despeito da guerra as caravanas vão e vêm facilmente do Cairo a
Damasco através do território dos Franj. «Os cristãos», constata ele,
«cobram aos muçulmanos uma taxa que é aplicada sem abuso. Os
comerciantes cristãos, por seu turno, pagam direitos sobre as suas
mercadorias quando atravessam o território dos muçulmanos. O
entendimento entre eles é perfeito e a equidade respeitada. A gente
de guerra ocupa-se da sua guerra, mas o povo permanece em paz.»

Saladino, sem a mínima pressa de pôr cobro a tal experiência,


mostra-se mesmo disposto a ir mais longe no caminho da paz. De
facto, em Março de 1185 o rei leproso morre aos vinte e quatro
anos, deixando o trono ao seu sobrinho, Balduíno V, uma criança de
seis anos, e a regência ao conde de Trípolis, que, ciente de precisar
de tempo para consolidar o seu poder, se despacha a enviar
emissários a Damasco pedindo uma trégua. Saladino, que se sabe
absolutamente em condições de travar um combate decisivo contra
os ocidentais, prova, ao aceitar concluir uma trégua de quatro anos,
que não procura o confronto a todo o transe.
Mas quando o menino-rei morre um ano mais tarde, em Agosto
de 1186, o papel de regente é posto em causa. A mãe do pequeno
monarca, explica Ibn al-Athir, enamora-se de um franj recentemente
chegado do Ocidente, um tal Guido. Ela desposara-o e, após a
morte do filho, pôs a coroa na cabeça do marido, mandou vir o
patriarca, os padres, os monges, os Hospitalários, os Templários, os
barões, anunciou-lhes que transmitira o poder a Guido e fê-los jurar
que lhe obedeceriam. Raimundo recusou e preferiu entender-se
com Salaheddin. Este Guido é o rei Guido de Lusignan, um belo
homem completamente vazio, desprovido de competência política
ou militar, sempre pronto a aderir à opinião do seu último
interlocutor. No fundo, não passa de uma marioneta nas mãos dos
«falcões», cujo chefe de fila é o «brins Arnat» Reinaldo de Châtillon.
Após a sua aventura cipriota e as suas exacções no Norte da
Síria, este ficara quinze anos nas prisões de Alepo antes de ser
solto em 1175 pelo filho de Nureddin. O seu cativeiro não fez senão
agravar os seus defeitos. Mais fanático, mais ávido, mais
sanguinário que nunca, Arnat suscitará só por si mais ódio entre os
Árabes e os Franj do que decénios de guerras e de massacres.
Depois da sua libertação, não conseguiu recuperar Antioquia, onde
reina o seu genro Boemundo III. Instalou-se por conseguinte no
reino de Jerusalém, onde se apressou a desposar uma jovem viúva
que lhe trouxe como dote os territórios situados a leste do Jordão,
designadamente as poderosas fortalezas de Kerak e de Chawbak.
Aliado aos Templários e a muitos cavaleiros recém-chegados, ele
exerce uma influência crescente na corte de Jerusalém que só
Raimundo logra contrabalançar por algum tempo. A política que
procura impor é a da primeira invasão franca: lutar sem descanso
contra os Árabes, pilhar e massacrar sem dó nem piedade,
conquistar novos territórios. Para ele, toda a conciliação, todo o
compromisso é uma traição. Não se sente vinculado por nenhuma
trégua, por nenhuma palavra. Aliás, o que vale um juramento feito a
infiéis? – alega ele cinicamente.
Em 1180, firmara-se um acordo entre Damasco e Jerusalém
garantindo a livre circulação dos bens e homens na região. Alguns
meses mais tarde, uma caravana de ricos comerciantes árabes que
atravessava o deserto da Síria na direcção de Meca era atacada por
Reinaldo, que se apropriava da mercadoria. Saladino queixou-se a
Balduíno IV, mas este não ousou zurzir o seu vassalo. No Outono
de 1182, foi mais grave: Arnat decidira ir raziar a própria Meca.
Depois de embarcar em Eilat, então um pequeno porto de pesca
árabe situado no golfo de Acaba, e de se ter feito guiar por alguns
piratas do mar Vermelho, a expedição, descendo ao longo da costa,
atacara Yenbo, porto de Medina, depois Rabigh, não longe de Meca.
No caminho, os homens de Reinaldo afundaram um barco de
peregrinos muçulmanos que rumava para Jeddah. Toda a gente era
apanhada de surpresa, explica Ibn al-Athir, pois as gentes daquelas
regiões nunca tinham visto um único franj, nem comerciante nem
guerreiro. Inebriados pelo êxito, os assaltantes tinham-se demorado,
enchendo os seus barcos de despojos. E enquanto o próprio
Reinaldo retornava às suas terras, os seus homens passaram
longos meses a sulcar o mar Vermelho. O irmão de Saladino, al-
Adel, que governava o Egipto na sua ausência, armou uma frota e
lançou-a em perseguição dos pilhantes, os quais foram esmagados.
Alguns deles viram-se conduzidos a Meca a fim de serem
decapitados em público, castigo exemplar, conclui o historiador de
Mossul, para os que procuraram violar os lugares santos. As
notícias desta louca empresa tinham naturalmente dado a volta ao
mundo muçulmano, onde Arnat simbolizará daí em diante o que há
de mais abominável no inimigo franco.
Saladino respondera lançando várias incursões contra o território
de Reinaldo. Mas, apesar do seu furor, o sultão sabia mostrar-se
magnânimo. Em Novembro de 1183, por exemplo, depois de ter
instalado catapultas em torno da cidadela de Kerak e começado a
bombardear com pedaços de rochedo, os defensores mandaram
dizer-lhe que nesse instante decorriam bodas principescas lá dentro.
Embora a noiva fosse nora de Reinaldo, Saladino pedira aos
sitiados que lhe indicassem o pavilhão onde os recém-casados iriam
residir, e ordenou aos seus homens que poupassem tal sector.
Semelhantes gestos, infelizmente, de nada servem a Arnat.
Momentaneamente neutralizado pelo sábio Raimundo, ele pode,
após a subida ao trono do rei Guido, em Setembro de 1186, ditar de
novo a sua lei. Algumas semanas mais tarde, ignorando a trégua
que devia prolongar-se por mais dois anos e meio, o príncipe, qual
ave de rapina, cai sobre uma importante caravana de peregrinos e
de mercadores árabes que avançava tranquilamente pela estrada
de Meca. Massacra os homens armados, levando o resto do rancho
para o cativeiro em Kerak. Quando alguns deles ousam lembrar a
trégua a Reinaldo, este lança-lhes num tom de desafio: «Então o
vosso Mafoma que vos venha libertar!» Ao tomar conhecimento
destas palavras, algumas semanas mais tarde, Saladino jurará
matar Arnat por suas próprias mãos.
Porém, de momento, o sultão esforça-se por contemporizar. Ele
envia emissários a Reinaldo para pedir, em conformidade com os
acordos, a libertação dos cativos e a restituição dos respectivos
bens. Recusando-se o príncipe a recebê-los, eles dirigem-se a
Jerusalém, onde os recebe o rei Guido, que se diz indignado com os
manejos do seu vassalo, mas não ousa entrar em conflito com ele.
Os embaixadores insistem: os reféns do príncipe Arnat continuarão
então a apodrecer nas masmorras de Kerak a despeito dos acordos
e de todos os juramentos? O inepto Guido lava daí as suas mãos.
A trégua está rompida. Saladino, que a teria respeitado até ao
fim, não se inquieta de modo nenhum com o retorno das
hostilidades. Enviando mensageiros aos emires do Egipto, da Síria,
da Jézira e de outros sítios, para lhes anunciar que os Franj
desacataram perfidamente os seus compromissos, ele apela a
aliados e vassalos a unirem-se com todas as forças de que dispõem
para tomar parte na jihad contra o ocupante. De todas as regiões do
Islão afluem a Damasco milhares de cavaleiros e de infantes. A
cidade já não é mais do que um navio encalhado num mar de telas
ondulantes, pequenas tendas de pêlo de camelo, onde os soldados
se abrigam do sol e da chuva, ou vastos pavilhões principescos em
tecidos ricamente coloridos, ornados de versículos alcorânicos ou
de poemas caligrafados.
Enquanto a mobilização prossegue, os Franj engolfam-se nas
suas querelas internas. Na medida em que o rei Guido julga
chegado o momento propício para se desembaraçar do seu rival
Raimundo, a quem acusa de complacência em relação aos
muçulmanos, o exército de Jerusalém apresta-se a atacar Tiberíade,
uma pequena cidade da Galileia que pertence à mulher do conde de
Trípolis. Alertado, este vai falar com Saladino para lhe propor uma
aliança, imediatamente aceite pelo sultão, que envia um
destacamento das suas tropas a fim de reforçar a guarnição de
Tiberíade. O exército de Jerusalém recua.
No dia 30 de Abril de 1187, enquanto os combatentes árabes,
turcos e curdos continuam a afluir a Damasco em vagas sucessivas,
Saladino envia a Tiberíade um mensageiro para pedir a Raimundo,
de acordo com a aliança entre os dois, que deixe os seus batedores
darem uma volta de reconhecimento junto ao lago de Galileia. O
conde fica embaraçado, mas não pode recusar. Impõe como única
exigência que os soldados muçulmanos abandonem o seu território
antes do anoitecer e prometam não atacar nem as pessoas nem os
bens dos seus súbditos. Para evitar qualquer incidente, previne
todas as localidades das redondezas da passagem das tropas
muçulmanas e pede aos habitantes que não saiam de suas casas.
No dia seguinte, sexta-feira 1 de Maio, ao alvorecer, sete mil
ginetes comandados por um lugar-tenente de Saladino passam sob
os muros de Tiberíade. Nessa mesma tarde, ao refazerem o mesmo
caminho em sentido inverso, eles respeitaram à letra as exigências
do conde, não hostilizaram as aldeias nem os castelos, não
arrebanharam ouro nem gado, e no entanto não puderam evitar o
incidente. Com efeito, os grão-mestres dos Templários e dos
Hospitalários achavam-se ambos, por acaso, numa fortaleza das
cercanias, quando na véspera um mensageiro de Raimundo viera
anunciar a vinda do destacamento muçulmano. O sangue dos
monges-soldados ferveu. Para eles, não há pacto com os
Sarracenos! Reunindo à pressa algumas centenas de cavaleiros e
de infantes, decidiram correr ao assalto dos ginetes muçulmanos,
perto da aldeia de Saffuriya, a norte de Nazaré. Em poucos minutos,
os Franj foram dizimados. Só o grão-mestre dos Templários
conseguiu escapar.

Amedrontados por esta derrota, relata Ibn al-Athir, os Franj


enviaram a Raimundo o seu patriarca, os seus padres e os seus
monges, bem como muitos cavaleiros, e censuraram-lhe
amargamente a aliança que fizera com Saladino. Disseram-lhe:
«Decerto que te converteste ao Islão, de outro modo não
poderias ter suportado o que acaba de acontecer. Não admitirias
que os muçulmanos passassem através do teu território,
massacrassem os Templários e os Hospitalários e se retirassem
levando prisioneiros sem que tentasses opor-te a isto.» Os
próprios soldados do conde, os de Trípolis e de Tiberíade,
fizeram-lhe as mesmas censuras, e o patriarca ameaçou
excomungá-lo e anular o seu casamento. Submetido a tais
pressões, Raimundo arreceou-se. Pediu desculpa e arrependeu-
se. Eles perdoaram-lhe, reconciliaram-se com ele e pediram-lhe
que pusesse as suas tropas à disposição do rei e participasse no
combate contra os muçulmanos. O conde partiu portanto com
eles. Os Franj reuniram então as suas tropas, cavaleiros e
infantes, perto de Acre, depois marcharam todos, arrastando o
passo, na direcção da aldeia de Saffuriya.

No acampamento muçulmano, a derrota dessas ordens religiosas


militares, unanimemente temidas e detestadas, dá um antegosto de
vitória. Doravante, emires e soldados têm pressa de terçar lanças
com os Franj. Em Junho, Saladino reúne por conseguinte todas as
suas tropas a meio caminho entre Damasco e Tiberíade: doze mil
cavaleiros que desfilam diante dele, sem contar os infantes e
voluntários. Do alto do seu corcel, o sultão bradou a ordem do dia,
em breve repetida como um eco por milhares de vozes inflamadas:
«Vitória sobre o inimigo de Deus!»
Na presença do seu estado-maior, Saladino analisou calmamente
a situação: «O ensejo que se nos oferece nunca mais voltará sem
dúvida a aparecer. No meu entender, o exército muçulmano deve
enfrentar todos os infiéis numa batalha campal. Temos de nos lançar
resolutamente na jihad antes de as nossas tropas se dispersarem».
O que o sultão quer evitar é que, no Outono, ao findar a temporada
dos combates, os seus vassalos e aliados voltem para casa com as
respectivas tropas antes de ele poder alcançar a vitória decisiva.
Mas os Franj são guerreiros de uma extrema prudência. Ao verem
as forças muçulmanas assim agrupadas, não irão porventura furtar-
se ao combate?
Saladino resolve armar-lhes uma ratoeira, rogando a Deus que
eles se deixem apanhar. Dirige-se para Tiberíade, ocupa a cidade
num só dia, ordena que ateiem aí numerosos incêndios e ponham
cerco à cidadela, onde se encontram a condessa, esposa de
Raimundo, e um punhado de defensores. O exército muçulmano é
perfeitamente capaz de esmagar toda a resistência, mas o sultão
retém os seus homens. Convém acentuar lentamente a pressão,
fingir estar a preparar o assalto final, e aguardar as reacções.

Quando os Franj souberam que Salaheddin ocupara e


incendiara Tiberíade, conta Ibn al-Athir, logo se reuniram em
conselho. Alguns propuseram marchar contra os muçulmanos a
fim de os combater e de os impedir de se apoderarem da
Cidadela. Mas Raimundo interveio: «Tiberíade pertence-me»,
disse-lhes ele, «e é a minha própria mulher que está cercada.
Mas estou pronto a aceitar que a Cidadela seja tomada e a
minha mulher capturada se a ofensiva de Saladino se detiver aí.
Pois, valha-nos Deus, vi muitos exércitos muçulmanos e nenhum
era tão numeroso nem tão forte como este de que hoje dispõe
Saladino. Evitemos assim medir-nos com ele. Nada nos proíbe
de retomar Tiberíade mais tarde e de pagar um resgate para
libertar os nossos.» Mas o príncipe Arnat, senhor de Kerak,
disse-lhe: «Buscas atemorizar-nos descrevendo o poderio dos
muçulmanos, porque gostas deles e preferes a sua amizade,
caso contrário não pronunciarias tais palavras. E se me dizes
que são numerosos, respondo-te: o fogo não se deixa
impressionar pela quantidade de lenha para queimar.» Disse
então o conde: «Sou um dos vossos, farei como quiserdes,
bater-me-ei a vosso lado, mas vereis o que irá acontecer.»

Uma vez mais, triunfara no seio dos ocidentais a razão do mais


extremista.
Doravante, está tudo pronto para a batalha. O exército de
Saladino desdobrou-se numa fértil planície, coberta de árvores de
fruto. Por detrás, estende-se a água doce do lago de Tiberíade,
atravessado pelo Jordão, ao passo que mais adiante, no sentido do
nordeste, se destaca a majestosa silhueta das alturas dos Golan.
Próximo do acampamento muçulmano, eleva-se uma colina
encimada por dois cumes que são chamados «cornos de Hittin», do
nome da aldeia que se acha no seu flanco.
No dia 3 de Julho, o exército franco, composto por cerca de doze
mil homens, põe-se em movimento. O caminho que deve percorrer
entre Saffuriya e Tiberíade não é longo, quando muito quatro horas
de marcha em tempo normal. No Verão, porém, este espaço da
terra palestina é completamente árido. Não há aí nascentes nem
poços, e os cursos de água estão secos. Mas ao saírem de
Saffuriya de manhã cedo, os Franj não duvidam de poder
dessedentar-se à beira do lago nessa mesma tarde. Saladino
preparou minuciosamente a sua armadilha. Os seus ginetes
flagelaram o inimigo durante o dia inteiro, atacando-o tanto pela
frente como pela retaguarda ou pelos lados, disparando
incessantemente contra ele nuvens de flechas. Eles infligem assim
aos ocidentais algumas perdas e, sobretudo, forçam-no a abrandar
o andamento.
Pouco antes da tardinha, os Franj atingiram um alto promontório
do cimo do qual podem dominar toda a paisagem. Mesmo a seus
pés, estende-se a pequena aldeia de Hittin, algumas casas cor de
terra, enquanto lá muito ao fundo do vale cintilam as águas do lago
Tiberíade. E mais perto, na planície verdejante que se espraia ao
longo da margem, o exército de Saladino. Para beber, é necessário
pedir autorização ao sultão!
Saladino sorri. Ele sabe que os Franj estão esgotados, mortos de
sede, que já não têm força nem tempo, antes de anoitecer, de abrir
uma passagem até ao lago, condenados a ficar até de manhã sem
uma gota de água. Poderão lutar em tais condições? Nessa noite,
Saladino repartirá o seu tempo entre a oração e as reuniões de
estado-maior. Ao mesmo passo que encarrega vários dos seus
emires de se colocarem na retaguarda do inimigo para lhe cortarem
qualquer possibilidade de retirada, assegura-se de que toda a gente
tomou a posição adequada e repete as suas directivas.
No dia seguinte, 4 de Julho 1187, logo aos primeiros alvores do
amanhecer, os Franj, totalmente cercados, atormentados pela sede,
tentam desesperadamente descer a colina e alcançar o lago. Os
seus infantes, mais afectados do que os cavaleiros pela marcha
extenuante da véspera, correm às cegas, empunhando os
machados e as clavas como um fardo, e vêm esmagar-se, vaga
após vaga, contra um sólido muro de sabres e lanças. Os
sobreviventes são rechaçados em desordem para a colina, onde se
misturam com os cavaleiros, doravante certos da derrota. Nenhuma
linha de defesa pode aguentar. E não obstante, continuam a lutar
com a coragem do desespero. Raimundo, à frente de um punhado
dos seus mais íntimos companheiros, tenta abrir passagem através
das linhas muçulmanas. Os lugar-tenentes de Saladino, que o
reconheceram, permitem-lhe escapulir-se. Ele continuará a sua
cavalgada até Trípolis.

Após a partida do conde, os Franj estiveram quase a


capitular, conta Ibn al-Athir. Os muçulmanos tinham deitado fogo
a erva seca, e o vento soprava o fumo para os olhos dos
cavaleiros. Acometidos pela sede, as chamas, o fumo, o calor do
estio e o ardor do combate, os Franj já não podiam mais. Mas
disseram para com eles que só podiam escapar à morte
enfrentando-a. Lançaram então ataques tão violentos que os
muçulmanos por pouco não cederam. No entanto, a cada
assalto, os Franj sofriam perdas e o seu número diminuía. Os
muçulmanos apoderaram-se da vera cruz. Foi, para os Franj, a
mais pesada das perdas, pois nela, afirmam eles, é que o
Messias, a paz seja com Ele, teria sido crucificado.

Segundo o islamismo, só aparentemente é que Cristo foi


crucificado, pois Deus amava demasiado o filho de Maria para
permitir que se infligisse tão odioso suplício.
Apesar desta perda, os últimos sobreviventes dos Franj, perto de
cento e cinquenta dos seus melhores cavaleiros, continuam a
combater valorosamente, entrincheirando-se num terreno elevado,
acima da aldeia de Hittin, para erguer as suas tendas e organizar a
resistência. Mas os muçulmanos assediam-nos por todos os lados e
só a tenda do rei permanece em pé. O seguimento é contado pelo
próprio filho de Saladino, al-Malik al-Afdal, que tem então dezassete
anos.

Eu estava, diz ele, ao lado do meu pai na batalha de Hittin, a


primeira a que assisti. Quando o rei dos Franj, lá de cima da
colina, lançou com a sua gente um brutal ataque, as nossas
tropas recuaram até ao sítio onde se encontrava o meu pai.
Olhei então para ele. Estava triste, crispado, e repuxava
nervosamente a barba. Avançou aos gritos: «Satanás não deve
ganhar!» Os muçulmanos partiram de novo ao assalto da colina.
Quando vi os Franj recuar sob a pressão das nossas tropas,
bradei de alegria: «Vencêmo-los!» Mas os Franj atacaram com
mais força, e os nossos vieram de novo parar junto de meu pai.
Ele tornou a impeli-los ao assalto, e eles obrigaram o inimigo a
retirar-se para a colina. Bradei outra vez: «Vencêmo-los!» Mas o
meu pai virou-se para mim e disse-me: «Cala-te! Só os teremos
aniquilado quando aquela tenda lá no alto cair!» Ainda antes de
terminar a sua frase, a tenda do rei desabou. O sultão apeou-se
então do cavalo, prosternou-se e agradeceu a Deus chorando de
júbilo.

É no meio de gritos de regozijo que Saladino volta a erguer-se,


sobe para a sua montada e se encaminha na direcção da sua tenda.
Trazem até ele os prisioneiros de escol, designadamente o rei Guido
e o príncipe Arnat. O escritor Imadeddin al-Asfahani, conselheiro do
sultão, assiste à cena.

Salaheddin, conta ele, convidou o rei a sentar-se ao pé de si,


e quando Arnat entrou por seu turno, instalou-o junto do seu rei e
lembrou-lhe as suas malfeitorias: «Quantas vezes juraste e
depois violaste os teus juramentos, quantas vezes assinastes
acordos que não respeitaste!» Arnat mandou responder pelo
intérprete: «Todos os reis se comportaram sempre assim. Foi o
que eu fiz.» Entretanto, Guido ofegava de sede, meneava a
cabeça como se estivesse bêbado, e o seu rosto traía um grande
pavor. Salaheddin dirigiu-lhe palavras tranquilizadoras e ordenou
que trouxessem água gelada para lhe oferecer. O rei bebeu, em
seguida estendeu o resto a Arnat, que se dessedentou por seu
turno. O sultão disse a Guido: «Não me pediste licença antes de
lhe dar de beber. Isso não me obriga portanto a conceder-lhe
perdão.»

De facto, segundo a tradição árabe, um prisioneiro a quem se


oferece bebida ou comida deve conservar a vida, um compromisso
que Saladino não poderia evidentemente assumir para com o
homem que ele jurara matar por suas próprias mãos. Imadeddin
prossegue:

Depois de ter proferido tais palavras, o sultão saiu, montou a


cavalo, depois afastou-se, deixando os seus cativos cheios de
terror. Superintendeu o regresso das tropas, em seguida voltou
para a sua tenda. Aqui, mandou buscar Arnat, avançou para ele
empunhando o seu sabre e feriu-o entre o pescoço e a omoplata.
Quando Arnat caiu por terra, cortaram-lhe a cabeça, depois
arrastaram o corpo pelos pés até junto do rei, o qual começou a
tremer. Vendo-o assim abalado, o sultão disse-lhe num tom
tranquilizador: «Este homem só foi morto em razão da sua
maleficência e da sua perfídia!»

Com efeito, o rei e a maioria dos prisioneiros serão poupados,


mas os Templários e os Hospitalários sofrerão a sorte de Reinaldo
de Châtillon.
Saladino não esperou pelo fim deste dia memorável para reunir
os seus principais emires e felicitá-los pela vitória que restabeleceu,
no seu dizer, a honra achincalhada durante demasiado tempo pelos
invasores. Agora, estima ele, os Franj já não têm exército, e convém
tirar sem demora partido disto para lhes reconquistar as terras que
injustamente ocuparam. Logo no dia seguinte, que é um domingo,
ele ataca portanto a cidadela de Tiberíade, onde a esposa de
Raimundo sabe que já de nada serve resistir. Ela rende-se a
Saladino que, claro está, deixa partir os defensores com todos os
seus bens sem os molestar.
Na terça-feira, o exército vitorioso marcha sobre o porto de Acre,
que capitula sem resistência. A urbe adquiriu, no decurso dos
últimos anos, uma considerável importância económica, pois é por
ela que passa todo comércio com o Ocidente. O sultão tenta induzir
os numerosos mercadores italianos a ficar, prometendo facultar-lhes
toda a protecção necessária. Mas eles preferem partir para o porto
vizinho de Tiro. Embora lamentando, ele não se lhes opõe. Autoriza-
os inclusive a transportar todas as suas riquezas e oferece-lhes uma
escolta para os proteger dos salteadores.
Julgando inútil deslocar-se ele próprio à cabeça de tão poderoso
exército, o sultão incumbe os seus emires de subjugar as diversas
praças-fortes da Palestina. Uns após outros, os estabelecimentos
francos da Galileia e da Samaria entregam-se em poucas horas ou
em poucos dias. É nomeadamente o caso de Napsula, de Haifa e de
Nazaré, cujos habitantes se dirigem todos para Tiro ou para
Jerusalém. A única contenda séria ocorre em Jafa, onde um exército
vindo do Egipto, sob o comando de al-Adel, irmão de Saladino,
depara com feroz resistência. Depois de conseguir debelá-la, al-
Adel reduz o conjunto da população à escravatura. Ibn al-Athir conta
que ele próprio comprou num mercado de Alepo uma jovem cativa
franca vinda de Jafa.

Ela tinha um filho de um ano. Certo dia, quando o


transportava nos seus braços, ele caiu e esfolou o rosto. Ela
desatou a soluçar. Eu procurei consolá-la dizendo-lhe que a
ferida não era grave e que não devia chorar assim por tão pouca
coisa. Ela respondeu-me: «Não é por isso que choro, mas por
causa da desgraça que se abateu sobre nós. Tinha seis irmãos
que pereceram todos; quanto ao meu marido e às minhas irmãs,
não sei o que foi feito deles.» De todos os Franj do litoral,
esclarece o historiador árabe, só a gente de Jafa sofreu
semelhante sorte.

De facto, em todos os outros lados a reconquista faz-se com


amenidade. Depois da sua curta estada em Acre, Saladino
encaminha-se para o Norte. Ele passa em frente de Tiro, mas,
decidindo não se atardar ante a sua poderosa muralha, enceta uma
marcha triunfal ao longo da costa. Em 29 de Julho, após setenta e
sete anos de ocupação, Saida capitula sem luta, seguida, a poucos
dias de intervalo, por Beirute e Jbail. As tropas muçulmanas estão
doravante muito perto do condado de Trípolis, mas Saladino, que
julga já nada ter a recear desta banda, volta para o Sul, até se deter
novamente diante de Tiro, perguntando a si mesmo se não faria
bem em cercá-la.

Após algumas hesitações, diz-nos Bahaeddin, o sultão


renunciou a isso. As suas tropas estavam dispersas um pouco
por toda a parte, os seus homens sentiam-se fatigados por tão
longa campanha, e Tiro achava-se demasiado bem defendida,
pois todos os Franj do litoral ali estavam agora congregados.
Preferiu por conseguinte atacar Áscalon, que era mais fácil de
tomar.

Há-de chegar o dia em que Saladino se arrependerá


amargamente de tal decisão. Mas, de momento, a marcha triunfal
continua. Em 4 de Setembro, Áscalon capitula, depois Gaza, que
pertencia aos Templários. Na mesma altura, Saladino envia alguns
emires do seu exército para a região de Jerusalém, onde eles se
apoderam de várias localidades, entre as quais Belém. Daqui em
diante, o sultão já só tem um desejo: coroar a sua campanha
vitoriosa, e a sua carreira, com a reconquista da cidade santa.
Poderá ele, à imitação do califa Omar, entrar neste lugar
venerado sem destruição nem derramamento de sangue? Envia
então uma mensagem aos habitantes de Jerusalém convidando-os
a iniciar conversações sobre o futuro da urbe. Uma delegação de
notáveis vem ao seu encontro em Áscalon. A proposta do vencedor
é razoável: entregam-lhe a cidade sem combate, os habitantes que
o desejarem poderão partir levando todos os seus bens, os lugares
de culto cristãos serão respeitados, e quem no futuro quiser vir em
peregrinação não será inquietado. Mas, para grande surpresa do
sultão, os Franj respondem com tanta arrogância como no tempo do
seu poderio. Entregar Jerusalém, a urbe onde Jesus foi morto? Nem
pensar nisso! A cidade é deles e hão-de defendê-la até ao fim.
Assim, jurando que não tomará Jerusalém senão pela espada,
Saladino ordena às suas tropas dispersas pelos quatro cantos da
Síria que se agrupem em volta da cidade santa. Todos os emires
acorrem. Que muçulmano não gostaria de poder dizer ao seu
criador no Dia do Juízo: combati por Jerusalém! Ou melhor ainda:
morri como mártir por Jerusalém! Saladino, a quem um astrólogo
predissera certo dia que perderia um olho se entrasse na cidade
santa, respondera: «Para me assenhorear dela, estou pronto a
perder os dois olhos!»
No interior da urbe cercada, a defesa é assegurada por Balian
d’Ibelin, senhor de Ramleh, um chefe que, segundo Ibn al-Athir,
tinha entre os Franj uma categoria mais ou menos igual à do rei.
Lograra sair de Hittin pouco antes da derrota dos seus, depois
refugiara-se em Tiro. Estando a sua mulher em Jerusalém, ele
pedira licença a Saladino, no Verão, para ir buscá-la, prometendo
não levar armas e só passar uma noite na cidade santa. Ao chegar
lá, porém, tinham-lhe suplicado que ficasse, pois mais ninguém
dispunha de autoridade suficiente para dirigir a resistência. Mas
Balian, que era homem de palavra e não podia aceitar defender
Jerusalém e o povo dela sem trair o seu acordo com o sultão,
consultara Saladino em pessoa para saber o que devia fazer, e o
sultão, magnânimo, desobrigara-o do seu compromisso. Se o dever
lhe impunha que permanecesse na cidade santa e pegasse em
armas, pois que o fizesse! E visto que Balian, demasiado atarefado
a organizar a defesa de Jerusalém, já não podia pôr a mulher a
salvo, o sultão proporcionara-lhe uma escolta para a conduzir a Tiro!
Saladino não recusava coisa alguma a um homem de palavra,
ainda que se tratasse do mais indomável dos seus inimigos. É
verdade que, neste caso específico, o risco é mínimo. Apesar da
sua bravura, Balian não pode inquietar seriamente o exército
muçulmano. Se as muralhas são sólidas e a população franca tem
profundo apego à sua capital, já por outro lado os efectivos dos
defensores se limitam a um punhado de cavaleiros e a umas
centenas de burgueses sem qualquer experiência militar. De resto,
os cristãos orientais, ortodoxos e jacobitas, que vivem em
Jerusalém, são favoráveis a Saladino, sobretudo o clero, que foi
constantemente rebaixado pelos prelados latinos; um dos principais
conselheiros do sultão é um sacerdote ortodoxo chamado Yussef
Batit. É ele quem se encarrega dos contactos com os Franj e
também com as comunidades cristãs orientais. Pouco antes do
início do cerco, o clero ortodoxo prometeu a Batit abrir as portas da
urbe se os ocidentais porfiarem tempo de mais.
Ao fim e ao cabo, a resistência dos Franj será corajosa mas
breve, e sem ilusões. O assédio a Jerusalém inicia-se em 20 de
Setembro. Seis dias depois, Saladino, que instalou o seu
acampamento no monte das Oliveiras, pede às suas tropas que
acentuem a pressão com vista ao assalto final. Em 29 de Setembro,
os sapadores conseguem abrir uma brecha a norte da fortificação,
muito perto do sítio pelo qual os ocidentais operaram a sua
infiltração em Julho de 1099. Vendo que já de nada serve continuar
o combate, Balian pede salvo-conduto e apresenta-se diante do
sultão.
Saladino mostra-se intratável. Pois não é verdade que propôs
aos habitantes, muito antes da batalha, as melhores condições de
capitulação? Agora já passou o tempo das negociações, portanto
jurou tomar a cidade pela espada como o haviam feito os Franj! A
única maneira de o desvincular do seu juramento é Jerusalém abrir-
lhe as portas e entregar-se totalmente a ele, sem condições.

Balian insiste em obter a promessa de que as vidas serão


poupadas, relata Ibn al-Athir, mas Salaheddin nada afiança. Ele
tenta sensibilizá-lo, mas em vão. Dirige-se-lhe então nestes
termos: «Ó sultão, fica a saber que há nesta cidade uma turba
de gente cuja quantidade só Deus conhece. Todos hesitam em
prosseguir o combate, pois esperam que lhes salvarás a vida,
como o fizeste a muitos outros, visto gostarem da vida e
abominarem a morte. Mas se virmos que a morte é inevitável,
então, por Deus, mataremos os nossos filhos e as nossas
mulheres, queimaremos tudo o que possuímos, não vos
deixaremos, à guisa de despojo, um só dinar, um só direm, um
só homem ou uma só mulher para submeterdes ao cativeiro. Em
seguida, destruiremos o Rochedo Sagrado, a mesquita al-Aqsa e
muitos outros lugares, mataremos os cinco mil prisioneiros
muçulmanos que temos, depois exterminaremos as montadas e
todos os animais. Por fim, sairemos e lutaremos contra vós como
se luta pela própria vida. Nenhum de nós morrerá sem ter morto
vários dos vossos.»

Sem se impressionar com as ameaças, Saladino é no entanto


abalado pelo fervor do seu interlocutor. Para não se mostrar
demasiado facilmente comovido, vira-se para os seus conselheiros
e pergunta-lhes se, na mira de evitar a destruição dos lugares
santos do islamismo, ele não poderá ser desligado do seu juramento
de tomar a cidade pela espada. A resposta deles é afirmativa, mas,
conhecendo a incorrigível generosidade do seu amo, instam-no a
obter dos Franj, antes de os deixar partir, uma compensação
financeira, pois a longa campanha em curso esvaziou
completamente os cofres do Estado. Os infiéis, explicam os
conselheiros, estão virtualmente prisioneiros. Para se livrar, cada
qual deverá pagar o seu resgate: dez dinares para os homens, cinco
para as mulheres e um para as crianças. Balian aceita o princípio,
mas intercede em favor dos pobres que não podem, diz ele, pagar
uma tal soma. Não se poderiam libertar sete mil deles por trinta mil
dinares? Uma vez mais, o pedido é aceite, não obstante o
agastamento dos tesoureiros. Satisfeito, Balian ordena aos seus
homens que deponham as armas.
E na sexta-feira 2 de Outubro de 1187, o 27 de Rajab do ano 583
da Hégira, o próprio dia em que os muçulmanos festejam a viagem
nocturna do Profeta a Jerusalém, Saladino faz a sua entrada solene
na cidade santa. Os seus emires e os seus soldados têm ordens
rigorosas: nenhum cristão, seja ele franco ou oriental, deve ser
inquietado. De facto, não haverá massacre nem pilhagem. Alguns
fanáticos reclamaram a destruição da igreja do Santo Sepulcro à
laia de represália contra as exacções cometidas pelos Franj, mas
Saladino balda-lhes os intentos. Muito pelo contrário, ele reforça a
guarda aos lugares do culto e anuncia que os próprios Franj
poderão vir em peregrinação sempre que o desejarem. Já se vê que
a cruz franca, instalada na cúpula do Rochedo, é retirada; e a
mesquita al-Aqsa, que fora transformada em igreja, volta a ser um
lugar de culto muçulmano, depois de as suas paredes terem sido
aspergidas de água de rosas.
Enquanto Saladino, rodeado de uma chusma de companheiros,
passa de um santuário para outro, chorando, rezando e
prosternando-se, a maioria dos Franj permaneceu na urbe. Os ricos
preocupam-se em vender as suas casas, os seus comércios ou os
seus móveis antes de se exilarem, sendo geralmente os
compradores cristãos ortodoxos ou jacobitas que ali continuarão a
morar. Outros bens serão vendidos mais tarde às famílias judias que
Saladino instalará na cidade santa.
Quanto a Balian, esforça-se por reunir o dinheiro necessário para
comprar a liberdade dos mais pobres. Em si mesmo, o resgate não
é muito avultado. O dos príncipes atinge habitualmente várias
dezenas de milhares de dinares, quando não cem mil ou até mais.
Mas, para os humildes, uma vintena de dinares por família
representa o rendimento de um ou dois anos. Diante das portas da
urbe juntaram-se milhares de desventurados para mendigar
algumas moedas. Al-Adel, que não é menos sensível que o seu
irmão, pede autorização a Saladino para libertar sem resgate mil
prisioneiros pobres. Ao saber disto, o patriarca franco pede mais
setecentos, e Balian quinhentos. São todos libertos. Depois, por sua
própria iniciativa, o sultão anuncia a possibilidade de partir sem
nada pagar para todas as pessoas idosas, bem como a libertação
dos pais de família aprisionados. Quanto às viúvas e aos órfãos
francos, ele não se contenta em isentá-los de todo o pagamento,
oferecendo-lhes ainda prendas antes de os deixar partir.
Os tesoureiros de Saladino estão desesperados. Já que se
libertam os menos endinheirados sem contrapartida, aumente-se
então o resgate dos ricos! A cólera destes abnegados servidores do
Estado atinge o auge quando o patriarca de Jerusalém sai da cidade
acompanhado de numerosas carroças repletas de ouro, de tapetes
e de toda a espécie dos mais preciosos bens. Imadeddin al-Asfahani
fica escandalizado, conforme ele próprio conta.
Eu disse ao sultão: «Este patriarca transporta riquezas que
não valem menos de duzentos mil dinares. Nós permitimos-lhes
que levassem os seus bens, mas não os tesouros das igrejas e
dos conventos. Não lhos devemos deixar!» Mas Salaheddin
respondeu: «Temos de aplicar à letra os acordos que assinámos,
assim ninguém poderá acusar os crentes de haverem traído os
tratados. Muito pelo contrário, os cristãos evocarão em toda a
parte os benefícios que lhes propiciámos.»

Realmente, o patriarca pagará dez dinares, como todos os


outros, e beneficiará mesmo de uma escolta para poder alcançar
Tiro sem ser molestado.
Se Saladino conquistou Jerusalém, não foi para amontoar ouro,
ainda menos para se vingar. Ele procurou acima de tudo, segundo
explica, cumprir o seu dever para com o seu Deus e a sua fé. A sua
vitória consistiu em ter libertado a cidade santa do jugo dos
invasores, e isto sem banho de sangue, sem destruição, sem ódio.
A sua felicidade é poder prostrar-se nos lugares onde, sem ele,
nenhum muçulmano poderia orar. Na sexta-feira 9 de Outubro, uma
semana após a vitória, é organizada uma cerimónia oficial na
mesquita al-Aqsa. Nesta memorável ocasião, numerosos homens
de religião disputaram entre si a honra de pronunciar o sermão. Por
fim, é o cádi de Damasco, Mohieddin Ibn al-Zaki, sucessor de Abu-
Saad al-Harawi, que o sultão designa para subir ao púlpito,
envergando uma preciosa túnica preta. A sua voz é clara e
poderosa, mas um ligeiro tremor denuncia a sua emoção: «Glória a
Deus que gratificou o Islão com tal vitória e trouxe de novo esta urbe
ao redil após um século de perdição! Honra a este exército que Ele
escolheu para concluir a reconquista! E salve a ti, Salaheddin
Yussef, filho de Ayyub, que restituíste a esta nação a sua dignidade
achincalhada!»
QUINTA PARTE

A moratória (1187-1244)

Quando o senhor do Egipto decidiu entregar


Jerusalém aos Franj, uma imensa tempestade de
indignação agitou todos os países de Islão.

SIBT IBN AL-JAWZI,


cronista árabe (1186-1256)
CAPÍTULO XI

O Encontro Impossível

Venerado como um herói a seguir à reconquista de Jerusalém,


Saladino nem por isso deixa de ser criticado. Amigavelmente pelos
seus íntimos, cada vez mais severamente pelos seus adversários.

Salaheddin, diz Ibn al-Athir, nunca mostrava a mínima firmeza


nas suas decisões. Quando cercava uma cidade e os defensores
resistiam durante algum tempo, cansava-se e levantava o cerco.
Ora, um monarca nunca deve agir assim, ainda que o destino o
favoreça. É amiúde preferível falhar permanecendo firme, a ser
bem-sucedido e desperdiçar em seguida os frutos do triunfo. Não
ilustra melhor esta verdade do que o comportamento de
Salaheddin em Tiro. Foi unicamente por sua culpa que os
muçulmanos sofreram um revés diante desta praça.

Se bem que não dê quaisquer provas de uma hostilidade


sistemática, o historiador de Mossul, fiel à dinastia de Zinki, sempre
se mostrou reservado com respeito a Saladino. Depois de Hittin,
depois de Jerusalém, Ibn al-Athir associa-se ao regozijo geral do
mundo árabe. O que o não impede de apontar, sem a mínima
complacência, os erros do herói. No caso de Tiro, as críticas
formuladas pelo historiador são absolutamente justificadas.
Sempre que se apoderava de uma cidade ou de uma
fortaleza franca, como Acre, Áscalon ou Jerusalém, Salaheddin
permitia que os cavaleiros e os soldados inimigos se exilassem
em Tiro, de sorte que esta urbe se tornara praticamente
inexpugnável. Os Franj do litoral enviaram mensagens aos que
estão além-mar, e estes prometeram vir em seu auxílio. Não será
legítimo dizer que foi Salaheddin em pessoa que de algum modo
organizou a defesa de Tiro contra o seu próprio exército?

Decerto que não se pode censurar ao sultão a magnanimidade


com que tratou os vencidos. A sua repugnância em derramar
sangue inutilmente, o cumprimento estrito dos seus compromissos,
a nobreza comovente de cada um dos seus gestos têm, aos olhos
da História, pelo menos tanto valor como as suas conquistas. É no
entanto incontestável que ele cometeu um grave erro político e
militar. Ao apoderar-se de Jerusalém, sabe que desafia o Ocidente,
e que este reagirá. Permitir, em tais circunstâncias, a dezenas de
militares dos Franj que se entrincheirem em Tiro, a mais poderosa
praça-forte do litoral, é oferecer uma testa-de-ponte ideal a uma
nova invasão. Sobretudo se nos lembrarmos que os cavaleiros
encontraram, na ausência do rei Guido, ainda cativo, um chefe
particularmente tenaz na pessoa daquele a quem os cronistas
árabes chamam «al-Markich», o marquês Conrado de Montferrat,
recentemente chegado do Ocidente.
Se bem que não esteja inconsciente do perigo, Saladino
subestima-o. Logo em Novembro de 1187, poucas semanas após a
conquista da cidade santa, ele inicia o cerco de Tiro. Mas fá-lo sem
grande determinação. A antiga urbe fenícia só pode ser tomada com
o concurso maciço da esquadra egípcia. Saladino sabe-o. Todavia,
apresenta-se diante das muralhas apoiado por uns escassos dez
navios, seis dos quais são rapidamente queimados pelos
defensores no decurso de um audacioso golpe de mão. Os outros
fogem na direcção de Beirute. Privado de marinha, o exército
muçulmano já só pode atacar Tiro através do estreito caminho
alcantilado que liga a urbe a terra firme. Nestas condições, o cerco
pode durar meses. Tanto mais que os Franj, eficazmente
mobilizados por al-Markich, parecem prontos a lutar até ao último
homem. Esgotados por esta interminável campanha, a maioria dos
emires aconselha Saladino a renunciar. Com ouro, o sultão poderia
ter convencido alguns deles a ficar a seu lado. Mas os soldados são
caros no Inverno, e os cofres do Estado estão vazios. Até ele se
sente cansado. Desmobiliza portanto metade das suas tropas e em
seguida, levantando o cerco, dirige-se para o Norte, onde muitas
cidades e fortalezas podem ser reconquistadas sem grande esforço.
Para o exército muçulmano, é de novo uma marcha triunfal:
Lattaquié, Tartuas, Baghras, Safed, Kawkab… a lista das conquistas
é longa. Seria mais simples enumerar o que resta aos Franj no
Oriente: Tiro, Trípolis, Antioquia e o seu porto, bem como três
fortalezas isoladas. Porém, no séquito de Saladino os mais
perspicazes não se iludem. De que serve acumular as conquistas se
nada garante que se poderá desencorajar qualquer nova invasão?
O sultão, esse, dá mostras de uma serenidade a toda a prova. «Se
vierem Franj de além-mar, sofrerão a mesma sorte que os daqui!»,
clama ele quando uma frota siciliana desponta diante de Lattaquié.
Em Julho de 1188, não hesita aliás em soltar Guido, não sem o ter
feito jurar solenemente nunca mais pegar em armas contra os
muçulmanos.
Este último penhor custar-lhe-á caro. Em Agosto de 1189, o rei
franj, renegando a sua palavra, vem cercar o porto de Acre. As
forças de que dispõe são modestas, mas doravante chegam naus
todos os dias, despejando no litoral vagas sucessivas de
combatentes ocidentais.

Após a queda de Jerusalém, conta Ibn al-Athir, os Franj


vestiram-se de preto, e abalaram pelo mar fora a fim de pedir
ajuda e socorro em todos os sítios, nomeadamente em Roma, a
Grande. Para instigar as pessoas à vingança, eles usavam um
desenho representando o Messias, a paz seja com Ele, todo
ensanguentado e um árabe que o moía de pancada. Diziam eles:
«Vede! Eis o Messias, e eis Maomé, profeta dos muçulmanos, a
bater-lhe até à morte!» Comovidos, os Franj reuniram-se,
incluindo as mulheres, e os que não podiam vir pagaram as
despesas dos que iam pelejar em seu lugar. Um dos prisioneiros
inimigos contou-me que era filho único e que a mãe vendera a
casa para lhe fornecer o equipamento. As motivações religiosas
e psicológicas dos Franj eram de tal ordem que estavam prontos
a superar todos os obstáculos para atingir aos seus fins.

Com efeito, desde os primeiros dias de Setembro, as tropas de


Guido recebem reforços atrás de reforços. Começa então a batalha
de Acre, uma das mais demoradas e mais duras de todas as
guerras francas. Acre está edificada sobre uma península em forma
de apêndice nasal: a sul, o porto; a oeste, o mar; a norte e a leste,
duas sólidas muralhas que formam um ângulo recto. A urbe está
duplamente cercada. Em torno do recinto, solidamente guardado
pela guarnição muçulmana, os Franj compõem um arco de círculo
cada vez mais espesso, mas têm de contar, nas suas costas, com o
exército de Saladino. Nos primeiros tempos, este tentou apanhar o
inimigo em tenaz, na esperança de o dizimar. Mas rapidamente se
apercebe de que o não estrangulará. Na realidade, se o exército
muçulmano alcança várias vitórias sucessivas, os Franj compensam
imediatamente as suas perdas. De Tiro ou de além-mar, cada dia
que nasce lhes traz o seu lote de combatentes.
Em Outubro de 1189, quando a batalha de Acre está no auge,
Saladino recebe uma mensagem de Alepo informando-o que o «rei
dos Alman», o imperador Frederico Barba Roxa, se aproxima de
Constantinopla, a caminho da Síria, com duzentos a duzentos e
sessenta mil homens. O sultão fica vivamente preocupado, diz-nos o
seu fiel Bahaeddin, que está então a seu lado. Dada a extrema
gravidade da situação, ele julgou indispensável chamar todos os
muçulmanos para a jihad e informar o califa do evoluir da situação.
Incumbiu-me portanto de ir falar com os senhores de Sinjar, da
Jézira, de Mossul, de Irbil, e de os incitar a virem eles próprios com
os seus soldados para participar na jihad. Eu devia dirigir-me em
seguida a Bagdad a fim de convidar o Príncipe dos Crentes a reagir.
O que eu fiz. Para tentar arrancar o califa à sua letargia, Saladino
elucida-o, numa carta, que o papa que reside em Roma ordenou
aos povos francos que marchassem sobre Jerusalém. Ao mesmo
tempo, Saladino envia mensagens aos dirigentes do Magreb e da
Espanha muçulmana concitando-os a prestar auxílio aos seus
irmãos como os Franj do Ocidente fizeram com os do Oriente. Em
todo o mundo árabe, o entusiasmo suscitado pela reconquista cede
lugar ao medo. Murmura-se que a vingança dos Franj será terrível,
que se assistirá a um novo banho de sangue, que a cidade santa irá
de novo perder-se, que a Síria e o Egipto irão ambos cair nas mãos
dos invasores. Mas, uma vez mais, o acaso, ou a Providência,
intervém em favor de Saladino.
Depois de ter atravessado triunfalmente a Ásia Menor, o
imperador alemão chega na Primavera de 1190 diante de Cónia, a
capital dos sucessores de Kilij Arslan, cujas portas força
rapidamente, antes de enviar emissários a Antioquia para anunciar a
sua vinda. Os arménios do Sul da Anatólia sentem-se alarmados. O
seu clero manda um mensageiro a Saladino para lhe suplicar que os
proteja desta nova invasão franca. Mas a intervenção do sultão não
será necessária. No dia 10 de Junho, com um tempo de canícula,
Frederico Barba Roxa banha-se num pequeno curso de água nas
faldas dos montes Tauro, quando, sem dúvida vitimado por uma
crise cardíaca, se afoga num sítio, indica Ibn al-Athir, onde a água
mal chega à anca. O seu exército dispersou-se, e Deus evitou assim
aos muçulmanos a maleficência dos Alemães, que são, dentre os
Franj, uma espécie particularmente numerosa e pertinaz.
O perigo alemão é por consequência miraculosamente
esconjurado, mas não sem ter paralisado Saladino durante vários
meses, impedindo-o de empreender a batalha decisiva contra os
sitiantes de Acre. Nesta fase, a situação em torno do porto palestino
está estacionária. Se o sultão recebeu suficientes reforços para
estar a coberto de um contra-ataque, também os Franj já não
podem ser desalojados. Pouco a pouco, estabelece-se um modus
vivendi. Entre duas escaramuças, cavaleiros e emires mimoseiam-
se mutuamente com banquetes e cavaqueiam placidamente uns
com os outros, chegando mesmo a entregar-se a jogos, conforme
relata Bahaeddin.

Um dia, os homens dos dois acampamentos, fartos de


combater, decidiram organizar um certame entre as crianças.
Dois rapazes saíram da cidade para se medirem com dois jovens
infiéis. No ardor da luta, um dos rapazes muçulmanos saltou
sobre o seu émulo, derrubou-o e filou-o pela garganta. Vendo
que ele se arriscava a matá-lo, alguns Franj aproximaram-se e
disseram-lhe: «Pára!, fizeste um prisioneiro a valer, e nós vamos
resgatar-to.» Ele pegou em dois dinares e largou-o.

Mau grado o ambiente de feira, a situação dos beligerantes não é


nada divertida. Os mortos e os feridos são muitos, as epidemias
grassam e, no Inverno, o abastecimento não é fácil. O que preocupa
Saladino é sobretudo a situação da guarnição de Acre. À medida
que os navios chegam do Ocidente, o bloqueio marítimo torna-se
cada vez mais apertado. Por duas vezes, uma frota egípcia,
englobando várias dezenas de embarcações, consegue abrir
caminho até ao porto, mas as perdas são pesadas e o sultão é em
breve obrigado a recorrer à manha para abastecer os sitiados. Em
Julho de 1190, manda armar em Beirute um enorme barco cheio de
trigo, queijo, cebolas e carneiros.

Um grupo de muçulmanos instalou-se a bordo do navio, conta


Bahaeddin. Vestiram-se como os Franj, raparam a barba,
penduraram cruzes no mastro e puseram porcos bem à vista na
coberta. Foram-se acercando da cidade, passando
tranquilamente no meio dos navios inimigos. Até que os
interceptaram, dizendo-lhes: «Bem vemos que vos dirigis a
Acre!» Fingindo-se espantados, os nossos perguntaram: «Então
não haveis conquistado a cidade?» Os Franj, que julgavam estar
deveras na presença de congéneres, responderam: «Não, ainda
não conquistámos. – Bem, disseram os nossos, nesse caso
vamos acostar junto ao acampamento, mas vem atrás de nós
outro barco. É melhor avisá-lo imediatamente, pois receamos
que rume para a urbe.» De facto, os beirutinos tinham muito
simplesmente reparado à vinda que um barco franco avançava
atrás deles. Os marinheiros inimigos navegaram logo para ele,
ao passo que os nossos soltavam todas as velas a caminho do
porto de Acre, onde os receberam com gritos de alegria, pois
reinava a penúria na cidade.

Semelhantes estratagemas não podem no entanto repetir-se


frequentemente. Se o exército de Saladino não conseguir aliviar o
garrote que a sufoca, Acre acabará por capitular. Ora, à medida que
os meses vão passando, as hipóteses de uma vitória muçulmana,
de um novo Hittin, afiguram-se cada vez mais débeis. Longe de se
exaurir, o fluxo de combatentes ocidentais continua a aumentar: em
Abril de 1191, é o rei de França, Filipe Augusto, que desembarca
com as suas tropas nas vizinhanças de Acre, seguido, no início de
Junho, por Ricardo Coração de Leão.

Este rei de Inglaterra, Malek al-Inkitar, diz-nos Bahaeddin, era


um homem corajoso, enérgico, arrojado no combate. Embora
inferior ao rei de França em categoria, era mais rico e mais
afamado como guerreiro. Na sua rota, parou em Chipre, da qual
se apoderou, e quando surgiu diante de Acre, acompanhado de
vinte e cinco galeras a abarrotar de homens e material de guerra,
os Franj soltaram brados de alegria, acendendo grandes
fogueiras para celebrar a sua vinda. Quanto aos muçulmanos,
este acontecimento encheu-lhe os corações de temor e de
apreensão.

Aos trinta e três anos, o gigante ruivo que detém a coroa de


Inglaterra é o protótipo do cavaleiro belicoso e frívolo, cuja nobreza
de ideais esconde mal a desconcertante brutalidade e a total
ausência de escrúpulos. Mas se nenhum ocidental é insensível ao
seu inegável carisma, Ricardo, esse, está fascinado por Saladino.
Assim que chega, procura encontrar-se com ele. Enviando um
mensageiro a al-Adel, pede-lhe que arranje uma entrevista com o
seu irmão. O sultão responde sem hesitar um só instante: «Os reis
apenas se reúnem após a conclusão de um acordo, pois não é
conveniente guerrearem-se depois de se terem conhecido e comido
juntos», mas autoriza o irmão a encontrar-se com Ricardo, desde
que ambos se façam rodear dos seus soldados. Deste modo, os
contactos prosseguem, mas sem grandes resultados. No fundo,
explica Bahaeddin, a intenção dos Franj, ao enviarem-nos
mensageiros, era sobretudo conhecer os nossos pontos fortes e as
nossas fraquezas. Nós próprios, ao recebê-los, tínhamos
exactamente o mesmo objectivo. Se Ricardo pretende sinceramente
conhecer o conquistador de Jerusalém, a verdade é que não veio
com certeza ao Oriente para negociar.
Enquanto se desenrolam estas permutas, o rei inglês prepara
activamente o assalto final contra Acre. Inteiramente cortada do
mundo, a cidade sofre as tribulações da fome. Só alguns nadadores
de escol ainda podem alcançá-la, arriscando a vida. Bahaeddin
relata a aventura de um destes comandos.

Trata-se, adianta ele, de um dos episódios mais curiosos e


mais exemplares desta longa batalha. Havia um nadador
muçulmano chamado Issa que tinha o hábito de mergulhar à
noite por debaixo dos navios inimigos e aparecer do outro lado,
onde os sitiados o esperavam. Ele transportava, geralmente
atados à cintura, dinheiro e mensagens destinadas à guarnição.
Uma noite em que mergulhara com três bolsas contendo mil
dinares e várias cartas, foi descoberto e morto. Não tardámos a
saber que sucedera uma desgraça, pois Issa informava-nos
regularmente da sua chegada largando um pombo da cidade na
nossa direcção. Nessa noite, não nos chegou nenhum sinal.
Alguns dias mais tarde, habitantes de Acre que estavam à beira
do mar viram um corpo dar à costa. Aproximando-se,
reconheceram Issa, o nadador, que ainda tinha à roda da cintura
o ouro e a cera com que as cartas iam seladas. Alguma vez se
viu um homem cumprir a sua missão mesmo após a morte tão
fielmente como se estivesse em vida?

O heroísmo de alguns combatentes árabes não basta. A situação


da guarnição de Acre torna-se crítica. No começo do Verão de 1191,
os apelos dos sitiados já não passam de gritos de desespero:
«Escasseiam-nos as forças e não temos outra escolha senão a
capitulação. Amanhã, se nada fizerdes por nós, pediremos que nos
poupem a vida e entregaremos a cidade.» Saladino cede à
depressão. Tendo perdido doravante todas as ilusões a respeito da
urbe cercada, fica lavado em lágrimas. Os seus íntimos receiam
pela sua saúde, e os médicos receitam-lhe poções para o acalmar.
Ele pede aos arautos que vão gritar por todo o acampamento que
irá ser lançado um ataque maciço para libertar Acre. Mas os seus
emires não o seguem. «De que serve», retorquem eles, «pôr todo o
exército muçulmano inutilmente em perigo?» Os Franj são agora tão
numerosos e acham-se tão solidamente entrincheirados que
qualquer ofensiva seria um autêntico suicídio.
No dia 11 de Julho de 1191, ao cabo de dois anos de cerco,
irrompem subitamente bandeiras cruzadas sobre as muralhas de
Acre.

Os Franj soltaram um imenso grito de alegria, ao passo que


no nosso acampamento o estupor se apossava de toda a gente.
Os soldados choravam e lamentavam-se. Quanto ao sultão,
parecia uma mãe que acabasse de perder o filho. Fui vê-lo
fazendo o possível por reconfortá-lo. Disse-lhe que devia a partir
daí pensar no futuro da cidade de Jerusalém e das cidades do
litoral, e preocupar-se coma sorte dos muçulmanos capturados
em Acre.

Vencendo o seu desgosto, Saladino manda um mensageiro a


Ricardo para discutir as condições de libertação de prisioneiros. Mas
o inglês tem pressa. Firmemente decidido a tirar partido do seu êxito
para lançar uma vasta ofensiva, não lhe sobra tempo para se ocupar
dos cativos, à semelhança do sultão quatro anos antes, quando as
cidades francas caíam nas suas mãos umas atrás das outras. A
única diferença é que, não querendo empachar-se com os
prisioneiros, Saladino os soltara. Ao passo que Ricardo, por seu
lado, prefere exterminá-los. Dois mil e setecentos soldados da
guarnição de Acre são reunidos diante dos muros da urbe, com
cerca de trezentas mulheres e crianças das suas famílias.
Amarrados por cordas a fim de apenas formarem uma simples
massa de carne, são deixados aos combatentes francos, que se
encarniçam contra eles com os seus sabres, as suas lanças e
inclusive pedras, até todos os gemidos se calarem.
Tendo assim resolvido este problema de maneira expeditiva,
Ricardo abandona Acre à cabeça das suas tropas. Encaminha-se
para o Sul, ao longo da costa, seguido de perto pela sua frota,
enquanto Saladino percorre um itinerário paralelo, no interior das
terras. Há numerosos recontros entre os dois exércitos, mas
nenhum é decisivo. O sultão sabe agora que não pode impedir os
invasores de reassumir o controlo do litoral palestino, e ainda menos
destruir o exército deles. A sua ambição restringe-se a contê-los, a
barrar-lhes, a todo o custo, o caminho de Jerusalém, cuja perda
seria terrível para o Islão. Ele sente estar a viver a hora mais
sombria da sua carreira. Profundamente afectado, esforça-se no
entanto por preservar o moral das suas tropas e dos seus mais
íntimos colaboradores. Na presença destes, reconhece ter sofrido
vários revezes, mas, segundo lhes explica, ele e o seu povo estão
ali para ficar, ao passo que os reis francos não fazem mais do que
participar numa expedição que mais cedo ou mais tarde chegará ao
fim.
Pois não é verdade que o rei de França deixou a Palestina em
Agosto, depois de haver passado cem dias no Oriente? E o de
Inglaterra acaso não repetiu tantas vezes que tinha pressa de voltar
ao seu reino longínquo?
Aliás, Ricardo multiplica as aberturas diplomáticas. Em Setembro
de 1191, quando os seus soldados acabam de obter alguns triunfos,
designadamente na planície costeira de Arsuf, a norte de Jafa, ele
insiste junto de al-Adel para se concluir um rápido acordo.

Os nossos e os vossos estão a morrer, diz-lhe ele numa


mensagem, o país enche-se de ruínas e a situação escapou-nos
completamente a todos. Não achais que já basta? No que nos
toca, só há três motivos de discórdia: Jerusalém, a vera cruz e o
território.
No que se refere a Jerusalém, é o nosso lugar de culto e
jamais aceitaremos renunciar a ele, ainda que devamos bater-
nos até à última gota de sangue. Quanto ao território, queremos
que nos devolvam o que fica a oeste do Jordão. A cruz, essa,
não representa para vós senão um pedaço de madeira, ao passo
que para nós o seu valor é inestimável. Que o sultão no-la dê, e
que se ponha cobro a esta luta extenuante.

Al-Adel informa imediatamente o irmão, o qual consulta os seus


principais conselheiros antes de ditar a sua resposta:

A cidade santa é tanto nossa quanto vossa; ela é mesmo


mais importante para nós, pois foi na sua direcção que o nosso
profeta realizou a sua miraculosa viagem nocturna, e é lá que a
nossa comunidade será reunida no dia do Juízo Final. Está
portanto posto de parte que a abandonemos. Jamais os
muçulmanos o admitiriam. No que respeita ao território, ele
sempre foi nosso, e a vossa ocupação é simplesmente
passageira. Pudestes instalar-vos nele em virtude da fraqueza
dos muçulmanos que então o povoavam, mas enquanto houver
guerra não vos permitiremos desfrutar das vossas possessões.
Quanto à cruz, ela representa um grande trunfo nas nossas
mãos, e só nos separaremos dela se obtivermos em
contrapartida uma concessão importante em favor do Islão.
A firmeza das duas mensagens não deve induzir em erro. Se
cada qual apresenta as suas exigências máximas, é óbvio que nem
por isso a via do compromisso fica fechada. De facto, três dias após
esta troca de missivas, Ricardo faz chegar ao irmão de Saladino
uma proposta assaz curiosa.

Al-Adel convocou-me, conta Bahaeddin, para me comunicar


os resultados dos seus últimos contactos. Segundo o acordo
conjecturado, al-Adel desposaria a irmã do rei de Inglaterra. Esta
era casada com o senhor da Sicília, que morrera. O inglês
trouxera por conseguinte a irmã consigo para o Oriente, e
propunha casá-la com al-Adel. O casal residiria em Jerusalém. O
rei daria as terras que controla, de Acre a Áscalon, à sua irmã,
que se tornaria rainha do litoral, do sahel. O sultão cederia as
suas possessões do litoral ao irmão, que se tornaria rei do sahel,
a cruz ser-lhes-ia confiada, e os prisioneiros dos dois campos
seriam libertados. Depois, estando a guerra concluída, o rei de
Inglaterra partiria para o seu país além-mar.

Al-Adel fica visivelmente seduzido. Ele recomenda a Bahaeddin


que faça tudo o que estiver ao seu alcance para convencer
Saladino. O cronista promete empenhar-se no caso.

Assim, apresentei-me perante o sultão e repeti-lhe o que


ouvira. Ele disse-me logo que não via qualquer inconveniente
nisso, mas que no seu entender o rei de Inglaterra é que nunca
aceitaria um tal ajuste e que devia tratar-se apenas de uma
brincadeira ou de um ardil. Pedi-lhe por três vezes que
confirmasse a sua aprovação, o que ele fez. Voltei então de novo
para junto de al-Adel a fim de lhe anunciar o acordo do sultão.
Ele apressou-se a enviar um mensageiro ao acampamento
inimigo para transmitir a sua resposta. Mas o maldito inglês
mandou dizer-lhe que a irmã tivera um terrível ataque de cólera
quando ele lhe fizera a proposta; ela jurara que nunca se daria a
um muçulmano!

Conforme Saladino adivinhara, Ricardo tentava usar a manha.


Esperava que o sultão fosse rejeitar o seu plano, o que muito
desagradaria a al-Adel. Ao aceitar, Saladino obrigava, pelo contrário,
o monarca franco a desvendar o seu jogo duplo. Na realidade, há já
vários meses que Ricardo diligenciava estabelecer relações
privilegiadas com al-Adel, intitulando-o «meu irmão», adulando a
sua ambição na busca de o utilizar contra Saladino. Era uma prática
em voga. Por seu lado, o sultão emprega métodos semelhantes. A
par das suas negociações com Ricardo, ele enceta conversações
com o senhor de Tiro, al-Markich Conrado, que mantém relações
extremamente tensas com o monarca inglês, suspeitando-o de
querer privá-lo das suas possessões. Chegará ao ponto de propor a
Saladino uma aliança contra os «Franj do mar». Sem tomar esta
oferta no sentido literal, o sultão utiliza-a para acentuar a pressão
diplomática sobre Ricardo, que fica tão exasperado com a política
do marquês que o mandará assassinar poucos meses mais tarde!
Tendo a sua manobra falhado, o rei de Inglaterra pede a al-Adel
que organize um encontro com Saladino. Mas a resposta deste é
igual à que dera alguns meses antes:

Os reis só se encontram após a conclusão de um acordo. De


qualquer maneira, acrescenta ele, não compreendo a tua língua
e tu ignoras a minha, e precisamos de um tradutor no qual
tenhamos ambos confiança. Que esse homem seja portanto um
mensageiro entre nós. Quando chegarmos a um entendimento,
reunir-nos-emos, e a amizade reinará entre nós.

As negociações vão arrastar-se por mais um ano. Entrincheirado


em Jerusalém, Saladino deixa passar o tempo. As suas propostas
de paz são simples: cada um conserva o que detém; que os Franj,
se o desejarem, venham sem armas efectuar a sua peregrinação à
cidade santa, mas esta permanecerá nas mãos dos muçulmanos.
Ricardo, que anseia por regressar ao seu país, tenta forçar a
decisão marchando por duas vezes na direcção de Jerusalém, sem
contudo a atacar. A fim de dar vazão ao seu excesso de energia, ele
dedica-se, meses a fio, à construção de uma formidável fortaleza
em Áscalon, da qual sonha fazer uma base de partida para uma
futura expedição ao Egipto. Mal a obra fica acabada, Saladino exige
que ela seja desmantelada, sem deixar pedra sobre pedra, antes da
conclusão da paz.
Em Agosto de 1192, Ricardo já não aguenta mais. Gravemente
doente, abandonado por muitos cavaleiros que o censuram por não
haver tomado Jerusalém, acusado do assassínio de Conrado,
instado pelos seus amigos a regressar sem demora a Inglaterra, já
não pode adiar a sua partida. Quase suplica a Saladino que não lhe
retire Áscalon. Mas a resposta é negativa. Envia então uma nova
mensagem, renovando o seu pedido e precisando que, se não for
assinada uma paz condigna dentro de seis dias, será obrigado a
passar o Inverno aqui. Este ultimato encapotado faz sorrir Saladino
que, convidando o mensageiro a sentar-se, se lhe dirige nos
seguintes termos: «Dirás ao rei que, no que concerne a Áscalon,
não cederei. Quanto ao seu projecto de passar o Inverno neste país,
penso que é inevitável, pois ele sabe que esta terra de que se
apoderou lhe será arrebatada assim que partir. É mesmo possível
que lha arrebatem sem que ele parta. Apetecer-lhe-á realmente
passar o Inverno aqui, a dois meses de distância da sua família e do
seu país, quando afinal está na flor da idade e pode gozar os
prazeres da vida? Pela minha parte, poderei passar aqui o Inverno,
depois o Verão, depois outro Inverno e outro Verão, pois estou no
meu país, no meio dos meus filhos e dos meus familiares, que estão
a meu cargo, e tenho um exército para o Verão e outro para o
Inverno. Sou um homem idoso, que já não liga aos prazeres da
existência. Vou ficar assim à espera, até que Deus dê a vitória a um
de nós.»
Aparentemente impressionado por tal linguagem, Ricardo faz
saber nos dias que se seguem que está pronto a renunciar a
Áscalon. E, no começo de Setembro de 1192, é assinada uma paz
por cinco anos. Os Franj conservam a zona costeira que vai de Tiro
a Jafa e reconhecem a autoridade de Saladino sobre o resto do
país, incluindo Jerusalém. Os guerreiros ocidentais, que receberam
salvos-condutos do sultão, precipitam-se na direcção da cidade
santa para orar sobre o túmulo de Cristo. Saladino acolhe
cortesmente os mais importantes deles, convidando-os mesmo a
partilhar das suas refeições e confirmando-lhes a sua firme vontade
de preservar a liberdade do culto. Mas Ricardo recusa-se a fazer a
viagem. Não quer entrar como convidado numa cidade onde jurara a
si mesmo entrar como conquistador. Um mês após a conclusão da
paz, deixa a terra do Oriente sem ter visto o Santo Sepulcro nem
Saladino.
O sultão acabou por sair vencedor deste penoso confronto com o
Ocidente. É bem certo que os Franj recuperaram o controlo de
algumas cidades, obtendo assim uma moratória de cerca de cem
anos. Mas nunca mais constituirão uma potência capaz de ditar a
sua lei ao mundo árabe. Já não controlarão verdadeiros Estados,
apenas povoados.
Mau grado este êxito, Saladino sente-se pesaroso e algo
diminuído. Parece uma sombra do carismático herói de Hittin. A sua
autoridade sobre os seus emires enfraqueceu, os seus detractores
são cada vez mais virulentos. Fisicamente, não passa lá muito bem.
A sua saúde, verdade se diga, nunca foi excelente, obrigando-o
desde há vários anos a consultar regularmente os médicos da corte,
tanto em Damasco como no Cairo. Na capital egípcia, em especial,
tomou ao seu serviço um prestigioso tabib judaico-árabe vindo de
Espanha, Mussa Ibn Maimnu, mais conhecido pelo nome de
Maimónides. Ainda por cima, durante os anos mais duros da luta
contra os Franj sofreu frequentes acessos de paludismo que o
obrigaram a ficar de cama dias seguidos. No entanto, em 1192, não
é a evolução de uma qualquer doença que inquieta os seus
médicos, mas uma debilidade geral, uma espécie de
envelhecimento prematuro que salta à vista de todos os que se
abeiram do sultão. Saladino ainda não passou dos cinquenta e cinco
anos, mas ele próprio tem consciência de haver atingido o termo da
sua existência.

Os últimos dias da sua vida passa-os Saladino tranquilamente na


sua cidade preferida, Damasco, no meio dos seus. Bahaeddin não
se separa dele um só instante, anotando afectuosamente cada um
dos seus gestos. Na quinta-feira 18 de Fevereiro de 1193, faz-lhe
companhia no jardim do seu palácio da cidadela.

O sultão sentara-se à sombra, rodeado dos mais jovens dos


seus filhos. Perguntou quem o aguardava no interior. «Uns
mensageiros francos», responderam-lhe, «bem como um grupo
de emires e de notáveis.» Mandou chamar os Franj. Quando
estes chegaram à sua presença, ele tinha ao colo um dos seus
meninos, o emir Abu-Bakr, por quem nutria muita afeição. Ao ver
o aspecto dos Franj, com os seus rostos glabros, o seu corte de
cabelo, as suas vestes curiosas, a criança encheu-se de medo e
desatou a chorar. O sultão pediu desculpa aos Franj e pôs termo
à conversa sem escutar o que eles pretendiam comunicar-lhe.
Depois disse-me: «Já comeste hoje alguma coisa?» Era a sua
maneira de convidar para a refeição. Acrescentou: «Tragam-nos
comida!» Serviram-nos arroz com leite coalhado e outros pratos
igualmente leves, e ele comeu. Isto sossegou-me, pois pensava
que perdera todo o apetite. Há algum tempo que se sentia
pesado e não podia levar nada à boca. Deslocava-se com muito
custo e pedia desculpa às pessoas.

Nessa quinta-feira, Saladino sente-se mesmo sobejamente em


forma para ir a cavalo acolher uma caravana de peregrinos
regressados de Meca. Mas, dois dias mais tarde, já não consegue
levantar-se. Caiu aos poucos num estado de letargia. Os seus
momentos de consciência tornam-se cada vez mais raros. Tendo-se
propagado na cidade a notícia da sua doença, os Damasquinos
receiam ver a urbe afundar-se em breve na anarquia.
Os tecidos foram retirados dos suks com medo da pilhagem.
E todas as noites, quando eu deixava a cabeceira do sultão para
voltar a casa, as pessoas ajuntavam-se no meu caminho
tentando adivinhar, pela minha expressão, se o inevitável já
sobreviera.

No dia 2 de Março, à noite, o quarto do doente é invadido pelas


mulheres do palácio, que já não são capazes de reter as lágrimas. O
estado de Saladino é tão crítico que o seu filho mais velho al-Afdal
pede a Bahaeddin, bem como a outro colaborador do sultão, o cádi
al-Fadil, que passem a noite na cidadela. «Seria imprudente»,
responde o cádi, «pois se as pessoas da cidade não nos vissem
sair, pensariam o pior, e poderia haver pilhagem.» Para velar o
doente, manda-se vir um xeque residente no interior da cidadela.

Este lia versículos do Alcorão, falava de Deus e do Além,


enquanto o sultão jazia sem consciência. Quando voltei no dia
seguinte de manhã, já ele morrera. Deus tenha a sua alma em
descanso! Contaram-me que na altura em que o xeque leu o
versículo dizendo: Não há outra divindade senão Deus, e é a Ele
que me entrego, o sultão sorriu, o seu rosto iluminou-se, depois
exalou o último suspiro.

Assim que é conhecida a notícia da sua morte, numerosos


damasquinos encaminham-se para a cidadela, mas os guardas
impedem-nos de lá entrar. Só os grandes emires e os principais
ulemás são autorizados a apresentar as suas condolências a al-
Afdal, filho primogénito do defunto sultão, sentado num dos salões
do palácio. Os poetas e os oradores são convidados a guardar
silêncio. Os filhos mais novos de Saladino saem para a rua e
misturam-se com a multidão em soluços.

Estas cenas insuportáveis, conta Bahaeddin, continuaram até


depois da oração do meio-dia. Cuidou-se em seguida de lavar o
corpo e de o revestir com a mortalha; todos os produtos
utilizados para tal efeito tiveram de ser emprestados, pois o
sultão nada possuía de seu. Embora convidado para a cerimónia
da lavagem, efectuada pelo teólogo al-Dawlahi, não me achei
com coragem para assistir a ela. Após a oração do meio-dia,
transportaram o corpo para o exterior num ataúde envolvido num
lençol Ao lobrigar o cortejo fúnebre, a turba começou a soltar
gritos de lamentação. Depois todos vieram rezar sobre os seus
restos mortais, grupo após grupo. Então, o sultão foi levado para
os jardins do palácio onde havia sido tratado durante a sua
doença, e em seguida sepulto no pavilhão ocidental. Enterraram-
no à hora da oração da tarde. Que Deus santifique a sua alma e
ilumine o seu túmulo.
CAPÍTULO XII

O Justo e o Perfeito

Como todos os grandes dirigentes muçulmanos da sua época,


Saladino tem como imediato sucessor a guerra civil. Ainda mal
desapareceu e já o império se desmembra. Um dos seus filhos toma
o Egipto, outro, Damasco, o terceiro, Alepo. Felizmente, a maioria
dos seus dezassete filhos varões, bem como a sua única filha, são
demasiado novos para se baterem, o que limita um tanto a
fragmentação. Mas o sultão também deixa dois irmãos e vários
sobrinhos que pretendem, todos eles, a sua parte da herança e, se
possível, o legado inteiro. Serão necessários perto de nove anos de
combates, de alianças, de traições e de assassínios para o Império
Aiúbida obedecer novamente a um único chefe: al-Abdel, o Justo, o
hábil negociador que por pouco não se tornou cunhado de Ricardo
Coração de Leão.
Saladino desconfiava um bocadinho do seu irmão mais novo,
demasiado bem-falante, demasiado intriguista, demasiado
ambicioso e exageradamente complacente para com os ocidentais.
Por isso lhe confiara um feudo sem grande importância: os castelos
conquistados a Reinaldo de Châtillon na margem oriental do Jordão.
A partir deste território árido e quase desabitado, considerava o
sultão, ele nunca poderia aspirar a dirigir o império. Era conhecê-lo
mal. Em Julho 1196, al-Adel arranca Damasco a al-Afdal. O filho de
Saladino, com vinte e seis anos de idade, mostrara-se totalmente
inapto para governar. Deixando o verdadeiro poder ao seu vizir
Diyaeddin Ibn al-Athir, irmão do historiador, ele entregava-se ao
álcool e aos prazeres do harém. O tio afasta-o no seguimento de
uma conjura e desterra-o para a vizinha fortaleza de Salkhad, onde
al-Afdal, consumido pelo remorso, promete abandonar a sua vida
dissoluta para se consagrar à oração e à meditação. Em Novembro
de 1198, outro filho de Saladino, al-Aziz, senhor do Egipto, morre ao
cair do cavalo no decurso de uma caçada ao lobo nas proximidades
das Pirâmides. Al-Afdal não resiste à tentação de sair do seu retiro
para assumir a sucessão, mas o tio não tem a mais pequena
dificuldade em arrebatar-lhe a sua nova possessão e reenviá-lo para
a vida de recluso. A partir de 1202, al-Abdel é, aos cinquenta e sete
anos, o senhor incontestado do Império Aiúbida.
Se não tem o carisma nem o génio do seu ilustre irmão, por outro
lado é melhor administrador. Sob a sua égide, o mundo árabe
conhece uma era de paz, de prosperidade e de tolerância.
Entendendo que a guerra santa já não tinha razão de ser após a
recuperação de Jerusalém e o enfraquecimento dos Franj, o novo
sultão adopta em relação a estes últimos uma política de
coexistência e de trocas comerciais; vai mesmo ao ponto de
estimular a instalação no Egipto de várias centenas de mercadores
italianos. Uma acalmia sem precedentes irá reinar na frente arábico-
franca durante vários anos.
Numa primeira fase, estando os Aiúbidas absorvidos pelas suas
querelas, os Franj procuraram repor um pouco de ordem no seu
território gravemente amputado. Antes de deixar o Oriente, Ricardo
confiou o reino de Jerusalém, cuja capital é doravante Acre, a um
dos seus sobrinhos, «al-cond-Herri», o conde Henrique de
Champanha. Quanto a Guido de Lusignan, desconsiderado após a
sua derrota em Hittin, é exilado com honrarias, tornando-se rei de
Chipre, onde a sua dinastia reinará durante quatro séculos. Para
compensar a fraqueza do seu Estado, Henrique de Champanha visa
concluir uma aliança com os Assassinos. Dirige-se em pessoa a
uma das suas fortalezas, al-Kahf, para se avistar com o grão-
mestre. Sinan, «o velho da montanha», morreu pouco tempo antes,
mas o seu sucessor exerce sobre a seita a mesma autoridade
absoluta. A fim de o provar ao seu visitante franco, ele ordena a dois
adeptos que se atirem do alto das muralhas, o que estes fazem sem
um instante de hesitação – o grão-mestre apresta-se mesmo a
prosseguir a matança, mas Henrique suplica-lhe que não vá mais
longe. Conclui-se um tratado de aliança. Para obsequiar o seu
convidado, os Assassinos perguntam-lhe se não quer encarregá-los
de um homicídio. Henrique agradece-lhes, prometendo recorrer aos
seus serviços se o ensejo surgir. Por ironia do destino, pouco depois
de ter assistido a esta cena, o sobrinho de Ricardo morre a 10 de
Setembro de 1197, ao cair acidentalmente de uma janela do seu
palácio de Acre.
Durante as semanas que se seguem ao seu desaparecimento
ocorrem os únicos confrontos sérios que assinalam este período. De
facto, alguns peregrinos alemães fanatizados apoderam-se de Saida
e de Beirute, antes de serem desbaratados na estrada de
Jerusalém, enquanto na mesma altura al-Adel recupera Jafa.
Porém, a 1 de Julho de 1198, é assinada uma nova trégua com a
duração de cinco anos e oito meses, trégua que o irmão de Saladino
aproveita para consolidar o seu poder. Como homem de Estado
ponderado, ele sabe a partir de agora que já não basta entender-se
com os Franj do litoral para evitar uma nova invasão, sendo antes
ao próprio Ocidente que convém dirigir-se. Não seria porventura
oportuno utilizar as suas boas relações com os mercadores italianos
para os persuadir a nunca mais despejar no Egipto e na Síria
caudais de guerreiros desenfreados?
Em 1202, ele recomenda ao seu filho al-Kamel, o Perfeito, vice-
rei do Egipto, que inicie conversações com a sereníssima república
de Veneza, principal potência marítima do Mediterrâneo. Na medida
em que os dois Estados falam a linguagem do pragmatismo e dos
interesses comerciais, conclui-se rapidamente um acordo. Al-Kamel
garante aos Venezianos o acesso aos portos do delta do Nilo, tais
como Alexandria e Damieta, e oferece-lhes toda a protecção e
assistência necessárias; em paga, a República dos doges assegura
não apoiar qualquer expedição ocidental contra o Egipto. Os
Italianos, que, em troca da promessa de uma choruda quantia,
acabam de assinar com um grupo de príncipes ocidentais um
acordo destinado justamente ao transporte de cerca de trinta e cinco
mil guerreiros francos para o Egipto, preferem manter secreto este
tratado. Negociadores hábeis, os Venezianos estão decididos a não
romper nenhum dos seus compromissos.
Quando chegam à urbe do Adriático, prontos para embarcar, os
cavaleiros são calorosamente acolhidos pelo doge Dandolo. Era,
diz-nos Ibn al-Athir, um homem muito velho e cego, o qual, sempre
que montava a cavalo, precisava de um escudeiro para guiar a sua
montada. A despeito da idade e da enfermidade, Dandolo anuncia a
sua intenção de participar pessoalmente na expedição sob o
estandarte da cruz. Contudo, antes da partida, exige aos cavaleiros
a soma combinada. E quando estes pedem que se defira o
pagamento, ele só aceita com a condição de a expedição começar
pela ocupação do porto de Zara [actual Zadar, na Croácia] que,
desde há alguns anos, compete com os Venezianos no Adriático.
Não é sem hesitações que os cavaleiros a tal se resignam, pois
Zara é uma cidade cristã pertencente ao rei da Hungria, fiel servidor
de Roma, mas não lhes resta outra escolha: o doge exige este
pequeno serviço ou o pagamento imediato da soma estipulada. Zara
é portanto atacada e pilhada em Novembro de 1202.
Mas os Venezianos visam mais alto. Tentam agora convencer os
chefes da expedição a fazer um desvio por Constantinopla, a fim de
instalar no trono imperial um jovem príncipe favorável aos
ocidentais. Se bem que o objectivo final do doge seja evidentemente
dar à sua república o controlo do Mediterrâneo, os argumentos que
ele adianta são hábeis. Utilizando a desconfiança dos cavaleiros
para com os «heréticos» gregos, acenando-lhes com os imensos
tesouros de Bizâncio, explicando aos seus chefes que o controlo da
urbe dos Rum lhes permitiria lançar ataques mais eficazes contra os
muçulmanos, ele logra impor a decisão.
Em Junho de 1203, a frota veneziana chega diante de
Constantinopla.
O rei dos Rum fugiu sem ter combatido, conta Ibn al-Athir, e
os Franj instalaram o seu jovem candidato no trono. Mas o poder
dele era apenas nominal, pois os Franj tomavam todas as
resoluções. Oneraram as pessoas com pesadíssimos tributos, e
quando o pagamento se revelou impossível tiraram todo o ouro e
as jóias, mesmo o que estava nas cruzes e nas imagens do
Messias, a paz seja com Ele! Então, os Rum revoltaram-se,
mataram o jovem monarca, e depois, expulsando os Franj da
urbe, barricaram as portas. Como as suas forças eram
reduzidas, enviaram um mensageiro a Solimão, filho de Kilij
Arslan, senhor de Cónia, a fim de que ele viesse em seu auxílio.
Mas não lhe foi possível.

Com efeito, os Rum não estavam em condições de se defender.


Não só o seu exército era formado em boa parte por mercenários
francos, como ainda muitos agentes venezianos agiam contra eles
no próprio interior dos seus muros. Em Abril de 1204, ao fim de uma
escassa semana de luta, a cidade era invadida e, durante três dias,
entregue à pilhagem e à carnificina. Ícones, estátuas, livros,
inúmeros objectos de arte, testemunhos das civilizações grega e
bizantina, foram roubados ou destruídos, e milhares de habitantes
degolados.

Todos os Rum foram mortos ou espoliados, relata o


historiador de Mossul. Alguns dos seus notáveis tentaram
refugiar-se na grande igreja a que dão o nome de Sofia,
perseguidos pelos Franj. Um grupo de padres e de monges
saíram então, empunhando cruzes e evangelhos, para implorar
aos atacantes que lhes poupassem a vida, mas os Franj não
ligaram importância alguma aos seus rogos. Massacraram-nos
todos e depois pilharam a igreja.

Conta-se igualmente que uma prostituta vinda com a expedição


franca se sentou no trono do patriarca entoando canções brejeiras,
enquanto soldados bêbados violavam as freiras gregas nos
mosteiros vizinhos. O saque de Constantinopla, um dos actos mais
degradantes da História, foi seguido, conforme disse Ibn al-Athir,
pela entronização de um imperador latino do Oriente, Balduíno de
Flandres, cuja autoridade, bem entendido, os Rum jamais
reconhecerão. Os sobreviventes da corte imperial irão instalar-se
em Niceia, que se tornará a capital provisória do Império Grego até
à reconquista de Bizâncio, cinquenta e sete anos mais tarde.
Longe de reforçar os estabelecimentos francos na Síria, o insano
cometimento de Constantinopla desfere-lhes um golpe severo. De
facto, para os muitos cavaleiros que vêm procurar fortuna no
Oriente, a terra grega oferece doravante melhores perspectivas. Há
aí feudos para tomar, riquezas para amontoar, ao passo que a
estreita franja costeira em torno de Acre, de Trípolis ou de Antioquia
não oferece qualquer atractivo aos aventureiros. No imediato, o
desvio da expedição priva os Franj da Síria dos reforços que lhes
teriam permitido tentar uma nova operação contra Jerusalém e
obriga-os a pedir em 1204 ao sultão a renovação da trégua. O que
al-Adel aceita por seis anos. Embora esteja doravante no apogeu do
seu poderio, o irmão de Saladino não tem a mínima intenção de se
lançar numa empresa de reconquista. A presença dos Franj no
litoral não o incomoda de modo algum.
Na sua maioria, os Franj da Síria gostariam que a paz se
prolongasse, mas além-mar, e nomeadamente em Roma, só se
pensa em reatar as hostilidades. Em 1210, o reino de Acre calha,
mercê de um casamento, a João de Brienne, um cavaleiro de
sessenta anos recentemente chegado do Ocidente. Conquanto se
haja resignado a renovar a trégua por cinco anos em Julho de 1212,
ele não cessa de enviar mensageiros ao papa para o instar a
acelerar os preparativos de uma poderosa expedição, de modo a
poder ser lançada uma ofensiva logo no Verão de 1217. Na
realidade, os primeiros navios de peregrinos armados atingem Acre
com algum atraso, no mês de Setembro. Seguir-se-lhes-ão em
breve centenas de outros. Em Abril de 1218, começa uma nova
invasão franca. O seu objectivo é o Egipto.
Al-Adel fica surpreendido, e sobretudo decepcionado, com esta
agressão. Pois não é verdade que fez tudo, desde que chegou ao
poder, e até mesmo antes, na época das negociações com Ricardo,
para pôr cobro ao estado de guerra? Acaso não suportou ao longo
de anos os sarcasmos dos homens de religião que o acusavam de
ter desamparado a causa da jihad por amizade pelos homens
loiros? Durante meses, este homem de setenta e três anos, doente,
recusa-se a dar crédito aos relatórios que lhe chegam. O facto de
um bando de alemães enraivecidos andarem a pilhar algumas
aldeias da Galileia é uma peripécia a que está habituado e não o
inquieta. Mas que ao fim de um quarto de século de paz o Ocidente
encete uma invasão maciça, é algo que parece impensável.
Todavia, as informações tornam-se cada vez mais precisas.
Dezenas de milhares de combatentes francos juntaram-se diante da
cidade de Damieta, que controla o acesso ao braço principal do Nilo.
De acordo com as instruções de seu pai, al-Kamel marcha ao
encontro deles à frente das suas tropas. Assustado com o número
dos antagonistas, evita defrontá-los. Prudentemente, instala o seu
acampamento a sul do porto, de maneira a apoiar a guarnição sem
se ver constrangido a travar batalha campal. A urbe é uma das mais
bem defendidas do Egipto. As suas muralhas estão rodeadas, a
leste e a sul, de uma estreita faixa de terra pantanosa, ao passo que
a norte e a oeste o Nilo assegura uma ligação permanente com o
interior do país. Logo, só pode ser eficazmente cercada se o inimigo
puder assegurar o controlo do rio. Para se premunir contra tal
perigo, a cidade dispõe de um engenhoso sistema que consiste
numa corrente de ferro muito grossa, fixada de um lado à
fortificação da urbe e do outro a uma cidadela construída num ilhéu
próximo da margem oposta, e que barra o acesso ao Nilo.
Verificando que nenhum barco pode passar se a corrente não for
desprendida, os Franj obstinam-se contra a cidadela. Três meses a
fio, todos os seus assaltos são rechaçados, até ao momento em que
lhes ocorre a ideia de arrimar dois grandes navios e aí erigir uma
espécie de torre flutuante que chegue à altura da cidadela. Tomam-
na de assalto a 25 de Agosto de 1218; a corrente é quebrada.
Quando um pombo-correio, alguns dias mais tarde, leva a notícia
desta derrota a Damasco, al-Adel sente-se profundamente abatido.
É claro que a queda da cidadela vai acarretar a de Damieta e que já
nenhum obstáculo poderá deter os invasores rumo ao Cairo.
Anuncia-se uma campanha demorada que ele não tem força nem
ânimo para empreender. Ao cabo de algumas horas, sucumbe a
uma crise cardíaca.
Para os muçulmanos, a verdadeira catástrofe não é a queda da
cidadela fluvial, mas, isso sim, a morte do velho sultão. No plano
militar, em boa verdade al-Kamel consegue conter o inimigo, infligir-
lhe pesadas baixas e impedi-lo de concluir o cerco de Damieta. Em
compensação, no plano político, inicia-se a inevitável luta pela
sucessão, a despeito dos esforços envidados pelo sultão para que
os seus filhos escapassem a essa fatalidade. Em vida, ele já
partilhara o seu domínio: o Egipto para al-Kamel, Damasco e
Jerusalém para al-Moazzam, a Jézira para al-Achraf e feudos
menos importantes para os mais jovens. Mas não se pode satisfazer
todas as ambições: ainda que uma relativa harmonia reine
efectivamente entre irmãos, alguns conflitos não podem ser
evitados. No Cairo, muitos emires aproveitam a ausência de al-
Kamel para tentar instalar um dos seus irmãos mais novos no trono.
O golpe de Estado está prestes a surtir efeito quando o senhor do
Egipto, que dele foi informado, esquecendo Damieta e os Franj,
levanta o acampamento e se dirige para a sua capital, a fim de aí
estabelecer a ordem e castigar os homens da conspiração. Os
invasores ocupam sem demora as posições que ele acaba de
abandonar. Damieta está desde logo cercada.
Conquanto tenha recebido o apoio de seu irmão al-Moazzam,
acorrido de Damasco com o seu próprio exército, al-Kamel já não
está em condições de salvar a urbe, e ainda menos de pôr fim à
invasão. Assim, as propostas de paz são particularmente
generosas. Depois de ter pedido a al-Moazzam que desmantele as
fortificações de Jerusalém, ele envia uma mensagem aos Franj
garantindo-lhes que está pronto a entregar-lhes a cidade santa se
eles aceitarem abandonar o Egipto. Porém, sentindo-se em posição
de força, os Franj recusam-se a negociar. Em Outubro de 1219, al-
Kamel explicita a sua oferta: entregaria, não só Jerusalém, mas toda
a Palestina a oeste do Jordão, acrescentando como prémio a Vera
Cruz. Desta feita, os invasores dão-se ao trabalho de estudar os
seus alvitres. João de Brienne emite uma opinião favorável, bem
como todos os Franj da Síria. Mas a decisão final pertence a um tal
Pelágio, um cardeal espanhol, partidário da guerra santa a todo o
transe, que o papa nomeou para a chefia da expedição. Nunca, diz
ele, aceitará negociar com os Sarracenos. E, para acentuar bem a
sua recusa, ordena que se empreenda sem delonga o assalto contra
Damieta. A guarnição, dizimada pelos combates, a fome e uma
epidemia recente, não opõe qualquer resistência.
Pelágio está agora resolvido a apoderar-se de todo o Egipto. Se
não marcha imediatamente sobre o Cairo, é porque lhe comunicam
a chegada iminente de Frederico de Hohenstaufen, rei da Alemanha
e da Sicília, o mais poderoso monarca do Ocidente, à frente de uma
importante expedição. Al-Kamel, a quem naturalmente chegaram
tais rumores, apronta-se para a guerra. Os seus mensageiros
percorrem a terra de Islão para chamar irmãos, primos e aliados em
socorro. Por outro lado, manda armar a oeste do delta, não longe de
Alexandria, uma esquadra que durante o Verão de 1220 surpreende
os navios dos ocidentais ao largo de Chipre, infligindo-lhes uma
derrota esmagadora. Ficando o inimigo assim privado do domínio
dos mares, al-Kamel apressa-se a renovar a sua oferta de paz,
adicionando-lhe a promessa de assinar uma trégua de trinta anos.
Em vão. Pelágio vê nesta generosidade a prova de que o senhor do
Cairo está em apuros. Então não se acaba de saber que Frederico II
foi sagrado imperador em Roma e jurou partir sem tardança para o
Egipto? Na Primavera de 1221, o mais tardar, ele deverá ali estar
com centenas de naus e dezenas de milhares de soldados.
Entretanto, o exército franco não deve fazer nem a guerra nem a
paz.
Frederico, afinal, só chegará oito anos depois! Pelágio aguarda
até ao início do Verão. Em Julho de 1221, o exército franco deixa
Damieta, enveredando resolutamente pela estrada do Cairo. Na
capital egípcia, os soldados de al-Kamel têm de utilizar a força para
impedir os habitantes de se porem em fuga. Mas o sultão mostra-se
confiante, pois dois dos seus irmãos vieram auxiliá-lo: al-Achraf,
que, com as suas tropas da Jézira, se lhe juntou para tentar impedir
os invasores de alcançar o Cairo, e al-Moazzam, que se dirige com
o seu exército sírio para o Norte, interpondo-se ousadamente entre
o inimigo e Damieta. Quanto ao próprio al-Kamel, observa de perto,
com mal contido júbilo, a enchente do Nilo. De facto, o nível da água
começa a elevar-se sem que os ocidentais se acautelem. Em
meados de Agosto, os terrenos tornaram-se tão lamacentos e
escorregadios que os cavaleiros são obrigados a parar e a retirar
todo o seu exército.
O movimento de retirada ainda mal acaba de se encetar quando
um grupo de soldados egípcios toma a iniciativa de demolir os
diques. Está-se a 26 de Agosto de 1221. Em poucas horas, e
enquanto as tropas muçulmanas lhe cortam as saídas, todo o
exército franco se acha atolado num mar de lama. Dois dias mais
tarde, Pelágio, desesperando de salvar o seu exército do
aniquilamento, envia um mensageiro a al-Kamel para solicitar a paz.
O soberano aiúbida dita as suas condições: os Franj deverão
evacuar Damieta e assinar uma trégua de oito anos; em troca, o
exército deles poderá fazer-se de novo ao mar sem ser inquietado.
Como é evidente, já não se fala em oferecer-lhes Jerusalém.
Ao celebrarem esta vitória tão completa quanto inesperada,
muitos árabes se interrogam se al-Kamel era realmente sincero ao
propor entregar a cidade santa aos Franj. Não se trataria de um ardil
destinado a ganhar tempo? Não tardarão a esclarecer este ponto.
Durante a penosa crise de Damieta, o senhor do Egipto cismou
frequentemente nesse famoso Frederico, al-enboror, cuja vinda os
Franj esperavam. Será ele deveras tão poderoso como dizem?
Estará realmente determinado a travar a guerra santa contra os
muçulmanos? Questionando os seus colaboradores, inteirando-se
junto de viajantes vindos da Sicília, essa ilha de que Frederico é rei,
al-Kamel vai de surpresa em surpresa. Ao saber em 1225 que o
imperador acaba de desposar Iolanda, filha de João de Brienne,
tornando-se assim rei de Jerusalém, ele decide enviar-lhe uma
embaixada presidida por um fino diplomata, o emir Fakhreddin Ibn
ach-Cheikh. Logo que chega a Palermo, este fica maravilhado: sim,
tudo o que se diz acerca de Frederico é exacto! Ele fala e escreve
perfeitamente o árabe, não esconde a sua admiração pela
civilização muçulmana, mostra-se desdenhoso a respeito do
Ocidente bárbaro e sobretudo do papa de Roma, a Grande. Os seus
mais próximos colaboradores são árabes, bem como os soldados da
sua guarda, que, às horas da oração, se prosternam virando o olhar
para Meca. Tendo passado toda a sua juventude na Sicília, por essa
altura foco privilegiado das ciências árabes, este espírito curioso
não sente grande coisa em comum com os Franj obtusos e
fanáticos. No seu reino, a voz do muezim ressoa sem entraves.
Fakhreddin em breve se torna amigo e confidente de Frederico.
Através dele, estreitam-se os laços entre o imperador germânico e o
sultão do Cairo. Os dois monarcas trocam cartas abordando a lógica
de Aristóteles, a imortalidade da alma, a génese do universo. Al-
Kamel, ao saber da paixão do seu correspondente pela observação
dos animais, oferece-lhe ursos, macacos, dromedários, bem como
um elefante, que o imperador confia aos responsáveis árabes pelo
seu jardim zoológico privado. O sultão alegra-se por encontrar no
Ocidente um dirigente esclarecido, capaz de compreender, como
ele, a inutilidade dessas intermináveis guerras religiosas. Assim, não
hesita em exprimir a Frederico o seu desejo de o ter de visita ao
Oriente numa próxima data, acrescentando que ficaria satisfeito se o
visse na posse de Jerusalém.
Compreenderemos melhor este acesso de generosidade se nos
lembrarmos de que no momento em que tal oferta é formulada, a
cidade santa já não pertence a al-Kamel, mas a seu irmão al-
Moazzam, com quem acaba de se zangar. No espírito de al-Kamel,
a ocupação da Palestina pelo seu aliado Frederico criaria um
Estado-tampão que o protegeria contra as empresas de al-
Moazzam. A mais longo prazo, o reino de Jerusalém, revigorado,
poderia entrepor-se eficazmente entre o Egipto e os povos
guerreiros da Ásia cuja ameaça se apresenta. Um muçulmano
fervoroso jamais encararia tão friamente abandonar a cidade santa,
mas al-Kamel é bastante diferente de seu tio Saladino. Para ele, a
questão de Jerusalém é antes de tudo política e militar; o aspecto
religioso só entra em linha de conta na medida em que influi na
opinião pública. Não se sentindo mais próximo do cristianismo do
que do Islão, Frederico tem um comportamento idêntico. Se deseja
tomar posse da cidade santa não é de modo nenhum para se
recolher junto ao túmulo de Cristo, mas porque um tal êxito
reforçaria a sua na luta contra o papa, que acaba de o excomungar
para o castigar por ter atrasado a sua expedição ao Oriente.
Quando, em Setembro de 1128, o imperador desembarca em
Acre, ele está convencido de que, com a ajuda de al-Kamel, irá
poder entrar triunfante em Jerusalém, impondo assim o silêncio aos
seus inimigos. No fundo, o senhor do Cairo acha-se tremendamente
embaraçado, pois determinados acontecimentos recentes alteraram
totalmente a conjuntura regional. Al-Moazzam morreu subitamente
em Novembro de 1127, deixando Damasco ao seu filho an-Nasser,
um moço sem experiência. Para al-Kamel, que pode doravante
pensar em apoderar-se ele próprio de Damasco e da Palestina, já
não se trata de estabelecer um Estado-tampão entre o Egipto e a
Síria. Significa isto que a chegada de Frederico, o qual lhe reclama
com a maior amizade Jerusalém e os seus arredores, não o encanta
nada. Como homem de palavra, não pode renegar as suas
promessas, mas tenta tergiversar, explicando ao imperador que a
situação mudou bruscamente.
Frederico, vindo com apenas três mil homens, considerava que a
tomada de Jerusalém não passaria de uma formalidade. É por isso
que não ousa lançar-se numa política de intimidação e procura
sensibilizar al-Kamel: Sou teu amigo, escreve-lhe ele. Fostes tu que
me incitaste a fazer esta viagem. Agora, o papa e todos os reis do
Ocidente estão ao corrente da minha missão. Se regressasse de
mãos vazias, perderia toda a consideração. Por favor, dá-me
Jerusalém para eu poder manter a cabeça levantada! Al-Kamel
comove-se, enviando então a Frederico o seu amigo Fakhreddin,
carregado de prendas, como uma resposta de duplo sentido.
Também eu, explica-lhe ele, devo ter em conta a opinião. Se te
entregasse Jerusalém, isso poderia ocasionar não só uma
condenação dos meus actos por parte do califa, mas ainda uma
insurreição religiosa susceptível de me arrebatar o trono. Tanto para
um como para o outro, urge, antes de mais, salvar a face. Frederico
chega a suplicar a Fakhreddin que lhe arranje uma saída honrosa. E
este lança-lhe, com prévio consentimento do sultão, uma bóia de
salvação. «O povo jamais aceitaria que entregássemos Jerusalém,
tão arduamente conquistada por Saladino, sem qualquer combate.
Em compensação, se o acordo sobre a cidade santa pudesse evitar
uma guerra sangrenta…» O imperador compreendeu. Ele sorri,
agradece o conselho ao seu amigo, depois ordena às suas magras
tropas que se aprestem para a peleja. Em fins de Novembro de
1128, enquanto marcha no meio de grande pompa em direcção ao
porto de Jafa, al-Kamel manda apregoar por todo o país que é
necessário estar pronto para uma longa e dura guerra contra o
poderoso soberano do Ocidente.
Algumas semanas mais tarde, sem que se trave o mínimo
combate, fica concluído o texto do acordo: Frederico obtém
Jerusalém, um corredor que a liga à costa, e ainda Belém, Nazaré,
as cercanias de Saida e a poderosa fortaleza de Tibnin, a leste de
Tiro. Os muçulmanos conservam, na cidade santa, uma presença no
sector do Haram ach-Charif, onde estão agrupados os seus
principais santuários. O tratado é assinado a 18 de Fevereiro de
1229 por Frederico e pelo embaixador Fakhreddin, em nome do
sultão. Um mês mais tarde, o imperador dirige-se a Jerusalém, cuja
população muçulmana foi evacuada por al-Kamel, à excepção de
alguns homens de religião incumbidos dos lugares de culto do Islão.
Ele é recebido pelo cádi de Naplusa, Chamseddin, que lhe dá as
chaves da urbe e lhe serve por assim dizer de guia. O próprio cádi
conta esta visita.

Quando o imperador, rei dos Franj, veio a Jerusalém, eu fiz-


lhe companhia conforme me pedira al-Kamel. Entrei com ele no
Haram ach-Charif, onde dei a volta às pequenas mesquitas. Em
seguida, encaminhámo-nos para a mesquita al-Aqsa, cuja
arquitectura admirou, bem como a Cúpula do Rochedo. Ficou
fascinado com a beleza do púlpito, trepando os seus degraus até
ao cimo. Quando desceu, pegou-me na mão e arrastou-me de
novo para al-Aqsa. Aqui, deparou-se-lhe um padre que, de
Evangelho em punho, queria entrar na mesquita. Furioso, o
imperador pôs-se a admoestá-lo. «O que é que te trouxe a este
lugar? Por Deus, se um de vós ousar de novo pôr aqui os pés
sem licença, vazar-lhe-ei os olhos!»
O padre afastou-se a tremer. Nessa noite, pedi ao muezim
que não chamasse à oração para não indispor o imperador. Mas
este, quando fui vê-lo no dia seguinte, interrogou-me: «Ó cádi,
por que motivo não chamaram os muezins à oração como de
costume?» Respondi: «Fui eu que os impedi de o fazer por
deferência para com a tua majestade.» – «Não devias ter agido
assim», disse o imperador, «pois se passei esta noite em
Jerusalém foi principalmente para ouvir o apelo do muezim à
noite.»

Por ocasião da sua visita à Cúpula do Rochedo, Frederico lê uma


inscrição dizendo: Salaheddin purificou esta cidade santa de
muchrikin. Este termo, que significa os «associacionistas» ou
mesmo os «politeístas», refere-se aos que associam outras
divindades ao culto do Deus único. Ele designa em especial, neste
contexto, os cristãos adeptos da Trindade. Fingindo ignorá-lo, o
imperador, com um sorriso divertido, pergunta aos seus
embaraçados anfitriões quem são afinal esses tais «muchrikin».
Alguns minutos mais tarde, vendo um gradeamento à entrada da
Cúpula, ele interroga-se sobre a sua utilidade. «É para impedir as
aves de entrar neste lugar», respondem-lhe. Perante os seus
interlocutores estupefactos, Frederico comenta a alusão que visa
obviamente os Franj: «E dizer que Deus permitiu aos porcos que lá
penetrassem!» O cronista de Damasco, Sibt Ibn al-Jawzi, que é, em
1229, um brilhante orador de quarenta e três anos, vê nestas
reflexões a prova de que Frederico não é cristão nem muçulmano,
mas muito certamente ateu. Ele acrescenta, fiando-se nos
testemunhos dos que foram admitidos na sua intimidade em
Jerusalém, que o imperador era de pêlo ruivo, calvo e míope; se
fosse escravo, não valeria duzentos diréns.
A hostilidade de Sibt para com o imperador reflecte o sentimento
da grande maioria dos Árabes. Noutras circunstâncias, ter-se-ia sem
dúvida apreciado a atitude amistosa do imperador relativamente ao
Islão e à sua civilização. Mas os termos do tratado assinado por al-
Kamel escandalizam a opinião pública. Assim que a notícia da
entrega da cidade santa aos Franj se propalou, diz o cronista, uma
autêntica tempestade agitou todos os países de Islão. Em virtude da
gravidade do acontecimento, organizaram-se manifestações
populares de luto. Em Bagdad, em Mossul, em Alepo, as pessoas
congregaram-se nas mesquitas para denunciar a traição de al-
Kamel. É no entanto em Damasco que a reacção é mais violenta. O
rei an-Nasser pediu-me para reunir o povo na grande mesquita de
Damasco, conta Sibt, para que eu falasse do que adviera em
Jerusalém. Eu não podia recusar, pois os meus deveres para com a
fé assim mo ditavam.
É na presença de uma turba furibunda que o cronista-pregador
sobe ao púlpito, com a cabeça cingida por um turbante de seda
preta: «A desastrosa notícia que recebemos destroçou-nos os
corações. Os nossos peregrinos já não poderão ir a Jerusalém, os
versículos do Alcorão já não serão recitados nas suas escolas.
Quão grande é hoje a vergonha dos dirigentes muçulmanos!» An-
Nasser assiste em pessoa à manifestação. Entre ele e o seu tio al-
Kamel é declarada a guerra aberta. Tanto mais que no momento em
que este entrega Jerusalém a Frederico o exército egípcio impõe um
severo bloqueio a Damasco. Para a população da metrópole síria,
solidamente unida em torno do seu jovem soberano, a luta contra a
traição do senhor do Cairo torna-se um tema de mobilização. A
eloquência de Sibt não bastará no entanto para salvar Damasco.
Dispondo de uma esmagadora superioridade numérica, al-Kamel sai
vencedor do confronto, obtendo a capitulação da cidade e
restabelecendo em seu proveito a unidade do Império Aiúbida.
Já em Junho de 1229, an-Nasser deverá abandonar a sua
capital. Amargo, mas nem por sombras desesperado, instala-se a
leste do Jordão, na fortaleza de Kerak, onde irá aparecer, durante os
anos de trégua, como o símbolo da firmeza perante o inimigo.
Muitos damasquinos permanecem apegados à sua pessoa, e
numerosos militantes religiosos, desiludidos pela política
exageradamente conciliadora dos outros aiúbidas, não perdem a
esperança graças a este jovem príncipe fogoso que insta os seus
pares a prosseguir a jihad contra os invasores. Quem senão eu,
escreve ele, envida todos os esforços para proteger o Islão? Quem
mais se bate em todas as circunstâncias em prol da causa de Deus?
Em Novembro de 1239, cem dias após expirar a trégua, an-Nasser
apodera-se de Jerusalém mediante uma investida fulminante. Dá-se
em todo o mundo árabe uma explosão de alegria. Os poetas
comparam o vencedor ao seu tio-avô Saladino e agradecem-lhe por
ter assim lavado a afronta causada pela traição de al-Kamel.
Os que fazem a sua apologia omitem não obstante que an-
Nasser se reconciliara com o senhor do Cairo pouco antes da morte
deste último em 1238, esperando certamente que ele lhe restituísse
assim o governo de Damasco. De igual modo, os poetas evitam
salientar que o príncipe aiúbida não procurou conservar Jerusalém
após a sua tomada; considerando a urbe indefensável, apressou-se
a destruir a torre de David, bem como outras fortificações
recentemente edificadas pelos Franj, antes de se retirar com as
suas tropas para Kerak. O fervor não exclui o realismo político ou
militar, eis o que se poderia dizer. O comportamento ulterior de tão
radical dirigente não deixa no entanto de intrigar. No decurso da
inevitável guerra de sucessão que se segue ao falecimento de al-
Kamel, an-Nasser não hesita em propor aos Franj uma aliança
contra os seus primos. A fim de engodar os ocidentais, ele
reconhece oficialmente em 1243 o direito destes sobre Jerusalém,
prestando-se mesmo a retirar os homens de religião muçulmana do
Haram ach-Charif. Al-Kamel nunca fora tão longe no
comprometimento!
SEXTA PARTE

A expulsão (1224-1291)

Atacados pelos Mongóis – os Tártaros – a leste e


pelos Franj a oeste, os muçulmanos nunca se viram
numa posição tão crítica. Só Deus pode ainda socorrê-
los.

IBN AL-ATHIR
CAPÍTULO XIII

O Castigo Mongol

Os acontecimentos que vos vou contar são tão horrendos que


durante anos evitei fazer-lhes alusão. Não é fácil anunciar que a
morte se abateu sobre o Islão e os muçulmanos. Ah! Preferia
que a minha mãe não me houvesse dado à luz, ou então ter
morrido sem ser testemunha de todas estas desgraças. Se
alguém vos disser um dia que a Terra nunca sofreu semelhante
calamidade desde que Deus criou Adão, não hesiteis em
acreditá-lo, pois tal é a estrita verdade. Entre os mais célebres
dramas da História citam-se geralmente o massacre dos filhos
de Israel por Nabucodonosor e a destruição de Jerusalém. Mas
isto nada é em comparação com o que acaba de suceder. Não,
até à consumação dos tempos, nunca mais se verá sem dúvida
uma catástrofe de tamanha amplidão.

Em toda a sua volumosa História Perfeita, Ibn al-Athir não adopta


em momento algum tom tão patético. A sua tristeza, o seu pavor e a
sua incredulidade explodem página após página, retardando, como
por superstição, o instante em que deve enfim ser pronunciado o
nome do flagelo: Gengiscão.
A ascensão do conquistador mongol começou pouco depois da
morte de Saladino, mas foi somente um quarto de século mais tarde
que os Árabes sentiram aproximar-se a ameaça. Gengiscão tratou
primeiro de congregar sob a sua autoridade as diversas tribos turcas
e mongóis da Ásia Central, antes de se lançar à conquista do
Mundo. Em três direcções: a leste, a Rússia e depois a Europa
Oriental foram devastadas; a oeste, onde o Império Chinês se viu
avassalado e depois anexado; a noroeste, onde a Pérsia foi
invadida. «É necessário arrasar todas as cidades», dizia Gengiscão,
«para que o mundo inteiro volte a ser uma imensa estepe onde
mães mongóis amamentarão filhos livres e felizes.» Na realidade,
urbes prestigiosas como Bucara, Samarcanda ou Herat serão
destruídas, e a população dizimada.
O primeiro surto mongol em terra de Islão coincidiu de facto com
a invasão franca no Egipto de 1218 e 1221. O mundo árabe tinha
então a impressão de ser apanhado entre dois fogos, o que explica
sem dúvida, em parte, a atitude conciliadora de al-Kamel a propósito
de Jerusalém. Mas Gengiscão renunciara a aventurar-se até ao
oeste da Pérsia. Com a sua morte, em 1227, aos sessenta e sete
anos de idade, a pressão dos cavaleiros das estepes sobre o mundo
árabe afrouxaria por alguns anos.
Na Síria, o flagelo manifesta-se a princípio de maneira indirecta.
Entre as muitas dinastias que os Mongóis esmagaram no seu
caminho conta-se a dos Turcos Corésmios que em anos anteriores,
e do Iraque até à Índia, haviam suplantado os Seljúcidas. O
desmantelamento deste império muçulmano, que vivera a sua hora
de glória, constrangeu os restos do seu exército a fugir para longe
dos terríveis vencedores, e é assim que mais de dez mil cavaleiros
corésmios chegam um belo dia à Síria, pilhando e extorquindo as
cidades, participando como mercenários nas lutas intestinas dos
Aiúbidas. Em Junho de 1244, estimando-se sobejamente fortes para
instaurar o seu próprio Estado, os Corésmios lançam-se ao assalto
de Damasco. Saqueiam as cidades vizinhas e assolam os vergéis
de Ghuta, mas, incapazes perante a resistência da cidade de
levarem a cabo um longo cerco, mudam de objectivo e dirigem-se
repentinamente para Jerusalém, a qual ocupam sem custo no dia 11
de Julho. Se a população franca é em grande parte poupada, a
urbe, essa, é pilhada e incendiada. No entanto, e para grande alívio
de todas as cidades da Síria, um novo ataque contra Damasco
redundará no seu aniquilamento alguns meses mais tarde por uma
coligação dos príncipes aiúbidas.
Desta vez, os cavaleiros francos já não retomarão Jerusalém.
Frederico, cuja habilidade diplomática permitiria aos ocidentais fazer
ondular a bandeira cruzada sobre os muros da urbe durante quinze
anos, desinteressa-se da sua sorte. Abdicando das suas ambições
orientais, prefere manter as mais amistosas relações com os
dirigentes do Cairo. Quando, em 1247, o rei de França, Luís IX,
planeia organizar uma expedição contra o Egipto, o imperador tenta
dissuadi-lo disso. Mais ainda, informa regularmente Ayyub, filho de
al-Kamel, dos preparativos da expedição francesa.
É em Setembro de 1248 que Luís chega ao Oriente, embora não
rume imediatamente para costas egípcias, pois considera que seria
demasiado arriscado iniciar uma campanha antes da Primavera.
Instala-se por conseguinte em Chipre, esforçando-se durante estes
meses de folga por realizar o sonho que obcecará os Franj até ao
final do século XIII e mesmo para além dele: concluir uma aliança
com os Mongóis para apanhar o mundo árabe entre as pinças de
uma tenaz. A partir daí circulam regularmente embaixadores entre
os invasores do leste e os do oeste. Em fins de 1248, Luís recebe
em Chipre uma delegação que o faz inclusive idealizar uma possível
conversão dos Mongóis ao cristianismo. Emocionado por tais
perspectivas, ele despacha-se a enviar em paga prendas preciosas
e piedosas. Mas os sucessores de Gengiscão não entendem o
sentido do seu gesto. Encarando o rei de França como um mero
vassalo, pedem-lhe que lhes dê todos os anos presentes de igual
valor. Este equívoco irá evitar ao mundo árabe, pelo menos de
momento, um ataque concertado dos seus dois inimigos.
É, portanto, sozinhos que os ocidentais se lançam ao assalto do
Egipto a 5 de Junho de 1249, não sem que os dois monarcas hajam
trocado, segundo as tradições da época, tonitruantes declarações
de guerra. Já te fiz chegar, escreve Luís, numerosos avisos a que
não ligaste. Doravante, a minha decisão está tomada: vou atacar o
teu território, e ainda que jurasses fidelidade à Cruz, eu não mudaria
de opinião. Os exércitos que me obedecem cobrem os montes e as
planícies, tão numerosos como os seixos da terra, e avançam para ti
com as espadas do destino. Em abono das suas ameaças, o rei de
França lembra ao seu inimigo alguns triunfos alcançados pelos
cristãos contra os muçulmanos de Espanha no ano anterior:
Enxotámos os vossos diante de nós como rebanhos de bovinos,
matámos os homens, enviuvámos as mulheres e capturámos as
raparigas e os rapazes. Isto não vos serve de lição? A resposta de
Ayyub é do mesmo teor: Insensato, esquecestes as terras que
ocupáveis e que nós conquistámos no passado, e até mesmo muito
recentemente? Esquecestes os danos que vos causámos?
Aparentemente ciente da sua inferioridade numérica, o sultão
encontra no Alcorão a citação que o tranquiliza: Quantas vezes uma
pequena tropa venceu uma outra, com permissão de Deus, pois
Deus está ao lado dos bravos! O que o encoraja a predizer a Luís: A
tua derrota é inelutável. Dentro de pouco tempo, lastimarás
amargamente a aventura em que te meteste.
Porém, logo no início da sua ofensiva, os Franj obtêm um êxito
decisivo. Damieta, que resistira valorosamente à última expedição
franca trinta anos antes, é desta vez abandonada sem combate. A
sua queda, que semeia a confusão no mundo árabe, revela
brutalmente o enfraquecimento extremo dos herdeiros do grande
Saladino. O sultão Ayyub, imobilizado pela tuberculose, inapto para
assumir o comando das suas tropas, prefere, em lugar de perder o
Egipto, reatar com a política de seu pai al-Kamel, propondo a Luís
trocar Damieta por Jerusalém. Mas o rei de França recusa-se a
negociar com um «infiel» vencido e moribundo. Ayyub resolve então
resistir e faz-se transportar de liteira até à cidade de Mansurá, «a
vitoriosa», construída por al-Kamel no próprio sítio onde fora
derrotada a anterior invasão franca. Infelizmente, a saúde do sultão
declina rapidamente. Abalado por ataques de tosse que parecem
nunca mais acabar, entra em coma, a 20 de Novembro, quando os
Franj, incentivados pela baixa do nível das águas do Nilo, saem de
Damieta a caminho de Mansurá. Três dias mais tarde, para grande
aflição do seu séquito, ele morre.
Como anunciar ao exército e ao povo que o sultão morreu, numa
altura em que o inimigo está às portas da cidade e o filho de Ayyub,
Turanshah, se encontra algures no Norte do Iraque, a várias
semanas do regresso? É então que intervém uma personagem
providencial: Chajarat-ad-dorr, «a árvore das jóias», uma escrava de
origem arménia, bela e arteira, que é desde há anos a esposa
preferida de Ayyub. Reunindo os familiares do sultão, ela ordena-
lhes que guardem silêncio até à chegada do herdeiro e pede mesmo
ao velho Fakhreddin, o amigo de Frederico, que escreva uma carta
em nome do sultão para chamar os muçulmanos para a jihad.
Segundo um dos colaboradores de Frakhreddin, o cronista sírio Ibn
Wassel, o rei de França teria sabido muito cedo da morte de Ayyub,
o que o encorajara a acentuar a sua pressão militar. Mas no
acampamento egípcio mantém-se segredo durante tempo suficiente
para evitar a desmoralização das tropas.
A batalha desenfreia-se em volta de Mansurá ao longo dos
meses de Inverno, porém, a 10 de Fevereiro de 1250, mercê de
uma traição, o exército franco penetra de surpresa no interior da
cidade. Ibn Wassel, que estava então no Cairo, conta:

O emir Fakhreddin estava no banho quando vieram anunciar-


lhe a notícia. Assarapantado, montou imediatamente a cavalo,
sem armadura, sem cota de malha, para ir ver o que se passava.
Foi atacado por um bando de inimigos que o mataram. O rei dos
Franj entrou na cidade, atingindo mesmo o palácio do sultão; os
seus soldados espalharam-se pelas ruas, enquanto os militares
muçulmanos e os habitantes procuravam a salvação numa fuga
desordenada. O Islão parecia ferido de morte, e os Franj iam
colher o fruto da vitória quando, nisto, chegaram os mamelucos
turcos. Como o inimigo se dispersara pelas ruas, estes
cavaleiros lançaram-se valentemente ao assalto. Por toda a
parte os Franj eram surpreendidos e massacrados a golpes de
espada ou de clava. Ao amanhecer, os pombos tinham levado ao
Cairo um mensagem a anunciar o ataque dos Franj sem nada
adiantar acerca do desfecho da batalha, razão pela qual
estávamos transidos de angústia. Toda a gente ficou triste nos
bairros da urbe até ao dia seguinte, quando novas mensagens
nos informaram da vitória dos leões turcos. Houve festa nas ruas
do Cairo.

Durante as semanas seguintes, o cronista vai observar, a partir


da capital egípcia, duas séries de eventos paralelos que irão mudar
o rosto do Oriente árabe: de um lado, a luta vitoriosa contra a última
grande invasão franca; do outro, uma revolução única na História,
porquanto irá levar ao poder, por cerca de três séculos, uma casta
de oficiais-escravos.
Após a sua derrota em Mansurá, o rei de França percebe que a
sua situação militar se torna insustentável. Incapaz de tomar a
cidade, fustigado de todas as bandas pelos Egípcios num terreno
lamacento, atravessado por inúmeros canais, Luís resolve pactuar.
No dealbar de Março, endereça a Turanshah, que acaba de chegar
ao Egipto, uma mensagem conciliadora na qual se diz pronto a
aceitar a proposta feita por Ayyub de devolver Damieta em troca de
Jerusalém. A resposta do novo sultão não se faz esperar: as ofertas
generosas formuladas por Ayyub deviam ter sido aceites no tempo
de Ayyub! Agora, é demasiado tarde. Com efeito, Luís pode esperar
quando muito salvar o seu exército e abandonar o Egipto incólume,
pois a pressão acentua-se ao seu redor. Em meados de Março,
várias dezenas de galeras egípcias conseguiram infligir uma severa
derrota à esquadra franca, destruindo ou capturando perto de uma
centena de embarcações de todas as dimensões e cortando aos
invasores todas as possibilidades de retirada para Damieta. No dia 7
de Abril, o exército invasor, que tenta forçar o bloqueio, é assaltado
pelos batalhões mamelucos, aos quais se juntaram milhares de
voluntários. Ao cabo de poucas horas, os Franj já não podem mais.
Para suster o massacre dos seus homens, o rei de França capitula e
pede que sejam poupadas as vidas. É conduzido, acorrentado, para
Mansurá, onde o aprisionam na casa de um funcionário aiúbida.
Curiosamente, esta estrondosa vitória do novo sultão aiúbida,
longe de reforçar o seu poder, vai acarretar a sua queda.
Realmente, um conflito opõe Turanshah aos principais oficiais
mamelucos do seu exército. Estes últimos, considerando, não sem
razão, que é a eles que o Egipto deve a sua salvação, exigem um
papel determinante na chefia do país, ao passo que o soberano
quer aproveitar o seu prestígio recentemente adquirido para instalar
os seus próprios homens nos cargos de responsabilidade. Três
semanas após a vitória sobre os Franj, um grupo destes
mamelucos, reunidos por iniciativa de um brilhante oficial turco de
quarenta anos, Baibars, o Besteiro, decide passar à acção. Em 1 de
Maio de 1250, no seguimento de um banquete organizado pelo
monarca, estala uma revolta. Turanshah, ferido no ombro por
Baibars, corre em direcção ao Nilo, na esperança de se escapulir
numa barca, quando os seus agressores o apanham. Suplica-lhes
que não lhe tirem a vida, prometendo sair do Egipto para sempre e
renunciar ao poder. Contudo, o último dos sultões aiúbidas é
eliminado sem compaixão. Um enviado do califa terá de intervir para
os mamelucos aceitarem dar sepultura ao seu antigo amo.
Apesar do sucesso do seu golpe de Estado, os oficiais-escravos
hesitam em apoderar-se directamente do trono. Os mais assisados
dentre eles empenham-se em encontrar um compromisso que
permita conferir ao seu poder nascente um simulacro de
legitimidade aiúbida. O sistema que elaboram fará escola na história
do mundo muçulmano, conforme põe em realce Ibn Wassel,
testemunha incrédula deste singular acontecimento.

Após o assassínio de Turanshah, conta ele, os emires e os


mamelucos reuniram-se ao pé do pavilhão do sultão e
deliberaram elevar ao poder Chajarat-ad-dorr, uma esposa do
sultão aiúbida, que se tornou rainha e sultana. Ela encarregou-se
dos assuntos do Estado, estabeleceu em seu nome um selo
régio com a fórmula «Um Khalil», a mãe de Khalil, um filho que
tivera, morto em tenra idade. Pronunciou-se o sermão das
sextas-feiras em todas as mesquitas em nome de Um Kahlil,
sultana do Cairo e de todo o Egipto. Tratou-se de um facto sem
precedentes na História do Islão.

Pouco após a sua entronização, Chajarat-ad-dorr desposa um


dos chefes mamelucos, Aibek, e confere-lhe o título de sultão.
A substituição dos Aiúbidas pelos Mamelucos marca um nítido
endurecimento da atitude do mundo muçulmano face aos invasores.
Os descendentes de Saladino haviam-se mostrado mais do que
conciliadores no que tocava aos Franj. Acima de tudo, o seu
debilitado poder já não estava à altura de arrostar os perigos que
ameaçavam o Islão tanto a leste como a oeste. A revolução
mameluca surgirá a breve trecho como uma empresa de
recuperação militar, política e religiosa.
O golpe de Estado no Cairo não muda em nada a sorte do rei de
França, a respeito do qual se celebrara no tempo de Turanshah um
acordo de princípio segundo o qual Luís deveria ser libertado em
troca da retirada de todas as tropas francas do território egípcio,
designadamente de Damieta, e do pagamento de um resgate de um
milhão de dinares. Alguns dias após a subida ao poder de Um
Khalil, o soberano francês é efectivamente solto. Não sem ter sido
increpado pelos negociadores egípcios: «Como é que um homem
de bom senso, sábio e inteligente como tu, pode embarcar assim
num navio para vir a uma região povoada de inúmeros
muçulmanos? Segundo a nossa lei, um homem que atravessa
desse modo o mar não pode testemunhar em justiça.» – «Então por
que não?», interroga o rei. – «Porque se estima que ele não está na
posse de todas as suas faculdades.»
O último soldado franco deixará o Egipto antes do fim do mês de
Maio.

Nunca mais os ocidentais tentarão invadir o país do Nilo. O


«perigo louro» será rapidamente eclipsado por essoutro, muito mais
assustador, que os descendentes de Gengiscão representam.
Desde a morte do grande conquistador, o seu império foi algo
enfraquecido pelos conflitos de sucessão, e o Oriente muçulmano
beneficiou de uma inesperada trégua. Já em 1251, porém, os
cavaleiros das estepes estão de novo unidos sob a autoridade de
três irmãos, netos de Gengiscão: Mongka, Kublai e Hulagu. O
primeiro é nomeado soberano incontestado do império, tendo por
capital Caracórum, na Mongólia; o segundo reina em Pequim; o
terceiro, instalado na Pérsia, tem a ambição de conquistar todo o
Oriente muçulmano, até às margens do Mediterrâneo, talvez até ao
Nilo. Hulagu é uma personagem complexa. Amante da filosofia e
das ciências, buscando o convívio dos homens de letras, ao longo
das suas campanhas transforma-se num monstro sanguinário,
sedento de sangue e de destruição. A sua atitude em matéria de
religião não é menos contraditória. Muito influenciado pelo
cristianismo – a sua mãe, a sua mulher preferida e vários dos seus
colaboradores pertencem à Igreja nestoriana –, nunca renunciou no
entanto ao xamanismo, religião tradicional do seu povo. Nos
territórios que governa, mormente a Pérsia, mostra-se geralmente
tolerante para com os muçulmanos, mas, arrebatado pela sua
vontade de aniquilar qualquer entidade política capaz de se lhe opor,
empreende contra as metrópoles mais prestigiosas do Islão uma
guerra de destruição total.

O seu primeiro alvo será Bagdad. Numa primeira fase, Hulagu


pede ao califa abássida al-Mutassim, trigésimo sétimo da sua
dinastia, que reconheça a suserania mongol tal como os seus
antecessores haviam aceitado no passado a dos Seljúcidas. O
Príncipe dos Crentes, demasiado confiante no seu prestígio, manda
dizer ao conquistador que todo o ataque contra a capital do califado
provocaria a mobilização do conjunto do mundo muçulmano, da
Índia ao Magrebe. De modo nenhum impressionado, o neto de
Gengiscão proclama a sua intenção de tomar a cidade pela força.
Acompanhado, ao que parece, de centenas de milhares de
cavaleiros, em finais de 1257 ele avança na direcção da capital
abássida, destruindo à sua passagem o santuário dos Assassinos
em Alamut, onde uma biblioteca de inestimável valor é depredada,
tornando para todo o sempre difícil qualquer conhecimento
aprofundado da doutrina e das actividades da seita. Tomando então
consciência da amplitude da ameaça, o califa decide negociar.
Propõe a Hulagu pronunciar o seu nome nas mesquitas de Bagdad
e outorgar-lhe o título de sultão. É demasiado tarde: o mongol optou
definitivamente pelos métodos violentos. Após algumas semanas de
resistência corajosa, o Príncipe dos Crentes é forçado a capitular.
No dia 10 de Fevereiro de 1258, vem pessoalmente ao
acampamento do vencedor e fá-lo prometer que poupará a vida a
todos os citadinos se estes aceitarem depor as armas. Em vão:
assim que ficam desarmados, os combatentes muçulmanos são
exterminados. Depois, a horda mongol espalha-se pela prestigiosa
urbe, demolindo os edifícios, incendiando os bairros, massacrando
sem piedade homens, mulheres e crianças, cerca de oitenta mil
pessoas no total. Só a comunidade cristã da cidade é salva graças à
intercessão da mulher do khan. O próprio Príncipe dos Crentes será
executado por asfixia poucos dias após a sua derrota. O trágico fim
do califado abássida mergulha o mundo muçulmano num estupor.
Já não se trata agora de um combate militar pelo controlo de uma
cidade ou de um país, mas de uma luta desesperada pela
sobrevivência do Islão.
Tanto mais que os Tártaros prosseguem a sua marcha triunfal em
direcção à Síria. Em Janeiro de 1260, o exército de Hulagu arremete
contra Alepo, rapidamente conquistada apesar de uma resistência
heróica. Tal como em Bagdad, abatem-se massacres e devastações
sobre esta antiga urbe, culpada de ter feito frente ao conquistador.
Algumas semanas mais tarde, os invasores estão às portas de
Damasco. Os reizetes aiúbidas que ainda governam as diversas
urbes sírias são naturalmente impotentes para atalhar a torrente.
Alguns deles decidem reconhecer a suserania do Grande Khan,
levando a sua inconsciência ao ponto de planearem aliar-se aos
invasores contra os mamelucos do Egipto, inimigos da sua dinastia.
No seio dos cristãos, orientais ou francos, as opiniões dividem-se.
Os Arménios, na pessoa do seu rei Hetum, põem-se ao lado dos
Mongóis, bem como o príncipe Boemundo de Antioquia, genro dele.
Em contrapartida, os Franj de Acre adoptam uma posição de
neutralidade algo favorável aos muçulmanos. Mas a impressão que
prevalece, quer no Oriente quer no Ocidente, é que a campanha
mongol é uma espécie de guerra santa travada contra o Islão, em
simetria com as expedições francas. Esta impressão é reforçada
pela circunstância de o principal lugar-tenente de Hulagu na Síria, o
general Kitbuka, ser um cristão nestoriano. Damasco é tomada em 1
de Março de 1260, e são três príncipes cristãos, Boemundo, Hetum
e Kitbuka, que ali penetram na qualidade de vencedores, para
grande escândalo dos Árabes.
Até onde irão os Tártaros? Até Meca, asseguram alguns, para
desferir o golpe de misericórdia na religião do Profeta. Até
Jerusalém, pelo menos, e dentro em breve. Toda a Síria está
convencida disto. A seguir à queda de Damasco, dois
destacamentos mongóis apressam-se a ocupar duas urbes
palestinas: Naplusa, no centro, e Gaza, no sudoeste. Situando-se
esta última cidade nos confins do Sinai, parece fatal, nessa trágica
Primavera de 1260, que o próprio Egipto não escape à devastação.
De resto, Hulagu não esperou pelo fim da sua campanha síria para
enviar um embaixador ao Cairo para pedir a submissão
incondicional do país do Nilo. O emissário foi recebido, escutado e
por fim decapitado. Os Mamelucos não são para brincadeiras. Os
seus métodos em nada se assemelham aos de Saladino. Os
sultões-escravos que governam no Cairo há dez anos reflectem o
endurecimento e a intransigência de um mundo árabe atacado por
todos os lados. Batem-se por todos os meios. Sem escrúpulos, sem
gestos magnânimos, sem compromissos. Mas com valentia e
eficácia.
De qualquer modo, é para eles que se voltam os olhares, pois
representam a derradeira esperança de suster a progressão do
invasor. No Cairo, o poder acha-se desde há meses nas mãos de
um militar de origem turca, Qutuz. Charajat-ad-dorr e o seu marido
Aibek, depois de terem governado juntos durante sete anos, haviam
acabado por se matar um ao outro. A tal propósito, circularam por
longo tempo numerosas versões. A que mereceu a preferência dos
contadores populares mistura evidentemente o amor e o ciúme com
as ambições políticas. A sultana está a dar banho ao esposo, como
costuma fazer, quando, aproveitando-se deste momento de
descontracção e intimidade, ela censura o sultão por ter erigido em
concubina uma linda escrava de catorze anos. «Então já não te
agrado?», pergunta ela para o enternecer. Mas Aibek responde
brutalmente: «É jovem, ao passo que tu já não o és.» Charajat-ad-
dorr estremece de raiva. Vela os olhos do esposo com sabão, dirige-
lhe palavras conciliadoras para dissipar a desconfiança, depois,
bruscamente, pegando num punhal, traspassa-lhe o flanco. Aibek
baqueia. A sultana fica uns instantes imóvel, como que paralisada.
Em seguida, encaminhando-se para a porta, chama algumas
escravas fiéis a fim de a desembaraçarem do corpo. Mas, para sua
desdita, um dos filhos de Aibek, com quinze anos de idade, que
reparou que a água do banho que escorre lá fora é vermelha, entra
de rompante no quarto, avista Charajat-ad-dorr de pé junto à porta,
seminua, empunhando ainda um punhal rubro de sangue. Já ela
foge através dos corredores do palácio, perseguida pelo enteado,
que alerta os guardas. No momento em que vão apanhá-la, a
sultana tropeça. A sua cabeça bate violentamente numa laje de
mármore. Quando chegam junto dela, já não respira.
Conquanto fortemente romanceada, esta versão apresenta um
real interesse histórico dado que, segundo tudo indica, reproduz o
que é efectivamente contado nas ruas do Cairo a seguir ao drama,
em Abril de 1257.
Seja como for, após o desaparecimento dos dois soberanos o
jovem filho de Aibek instala-se no trono. Não por muito tempo. À
medida que a ameaça mongol se avoluma, os chefes do exército
egípcio depreendem que um adolescente não pode assegurar a
responsabilidade do combate decisivo que se aproxima. Em
Dezembro de 1259, na altura em que as hordas de Hulagu
começam a progredir na Síria, um golpe de Estado leva ao poder
Qutuz, um homem maduro, enérgico, que perfilha desde logo a
linguagem da guerra santa e apela à mobilização geral contra o
invasor inimigo do Islão.
Com o recuo histórico, o novo golpe de Estado do Cairo surge
como um autêntico assomo patriótico. Não tarda que o país esteja
em pé de guerra. No mês de Julho de 1260, um poderoso exército
egípcio penetra na Palestina para defrontar o inimigo.
Qutuz não ignora que o exército mongol perdeu o essencial dos
seus efectivos desde que, na sequência da morte de Mongka, khan
supremo dos Mongóis, seu irmão Hulagu teve de abalar com o
grosso do exército para participar na inevitável luta de sucessão.
Após a tomada de Damasco, o neto de Gengiscão abandonou a
Síria, deixando neste país apenas alguns milhares de cavaleiros
comandados pelo seu lugar-tenente Kitbuka.
O sultão Qutuz sabe que é agora ou nunca o momento de
assestar um golpe no invasor. As tropas egípcias começam assim a
atacar a guarnição mongol de Gaza que, apanhada desprevenida,
mal resiste. Depois os Mamelucos avançam para Acre, não
ignorando que os Franj da Palestina se mostram mais reticentes que
os de Antioquia a respeito dos Mongóis. Se alguns dos seus barões
ainda se alegram com as derrotas do Islão, a verdade é que a
maioria está assustada com a brutalidade dos conquistadores
asiáticos. Por isso, quando Qutuz lhes propõe uma aliança, a sua
resposta não é negativa: embora não estejam prontos a participar
nos combates, não se opõem a deixar passar o exército egípcio nas
suas terras e a permitir-lhe que se abasteça. O sultão pode assim
avançar em direcção ao interior da Palestina, e mesmo a Damasco,
sem ter de proteger a retaguarda.
Kitbuka apresta-se a marchar ao seu encontro quando rebenta
uma insurreição popular em Damasco. Os muçulmanos da urbe,
fartos das exacções dos invasores e estimulados pela partida de
Hulagu, erguem barricadas nas ruas e deitam fogo a igrejas
poupadas pelos Mongóis. Serão necessários vários dias para
Kitbuka restaurar a ordem, o que permite a Qutuz consolidar as
suas posições na Galileia. É nas imediações da aldeia de Ain Jalut,
«a fonte de Golias», que os dois exércitos se defrontam a 3
Setembro de 1260. Qutuz teve tempo de esconder a maior parte dos
seus soldados, não deixando no campo de batalha senão uma
vanguarda comandada pelo mais brilhante dos seus oficiais,
Baibars. Kitbuka chega precipitadamente e, mal informado, cai na
ratoeira. Lança-se ao ataque com todas as suas tropas. Baibars
recua, mas, ao persegui-lo, o mongol vê-se de repente rodeado por
todos os lados de forças egípcias mais numerosas que as suas.
Em poucas horas, a cavalaria mongol é exterminada. O próprio
Kitbuka é capturado e imediatamente decapitado.
No dia 8 de Setembro, ao anoitecer, os cavaleiros mamelucos
entram como libertadores numa Damasco rejubilante.
CAPÍTULO XIV

Queira Deus que eles nunca mais aqui ponham os


pés!

Muito menos espectacular do que Hittin, outrossim menos


inventiva no plano militar, Ain Jalut aparece não obstante como uma
das batalhas mais decisivas da História. Ela vai de facto consentir
que os muçulmanos não só escapem ao aniquilamento, como ainda
reconquistem todas as terras que os Mongóis lhes haviam tomado.
Em breve os descendentes de Hulagu, instalados na Pérsia, se
converterão eles próprios ao Islão para cimentar a sua autoridade.
No imediato, o ímpeto mameluco vai conduzir a uma série de
ajustes de contas com todos os que apoiaram o invasor. O alerta
fora tremendo. Doravante, está fora de causa conceder uma dilação
ao inimigo, seja ele franj ou tártaro.
Depois de terem retomado Alepo no início de Outubro de 1260 e
repelido sem custo uma contra-ofensiva de Hulagu, os Mamelucos
projectam organizar incursões punitivas contra Boemundo de
Antioquia e Hetum da Arménia, principais aliados dos Mongóis.
Todavia, estala no seio do exército egípcio uma luta pelo poder.
Baibars gostaria de se estabelecer em Alepo como governador
semi-independente; Qutuz, que receia as ambições do seu lugar-
tenente, recusa. Ele não quer um poder concorrente na Síria. Para
sanar este conflito, o sultão reúne o seu exército e regressa ao
Egipto. Chegado a três dias de marcha do Cairo, concede aos seus
soldados uma dia de repouso, a 23 de Outubro, e resolve entregar-
se ele próprio ao seu desporto favorito, a caça à lebre, juntamente
com os principais chefes militares. Tem aliás o cuidado de se fazer
acompanhar por Baibars, com medo de que este se aproveite da
sua ausência para fomentar uma rebelião. O pequeno grupo afasta-
se do acampamento ao alvorecer. Ao cabo de duas horas, detém-se
para descansar um pouco. Um emir abeira-se de Qutuz e pega-lhe
na mão para a beijar. No mesmo instante, Baibars desembainha a
sua espada e crava-a nas costas do sultão, que cai por terra. Sem
perder um momento, os dois conjurados saltam para as suas
montadas e voltam ao acampamento a toda a brida. Apresentam-se
diante do emir Aqtai, um velho oficial unanimemente respeitado pelo
exército, e anunciam-lhe: «Matámos Qutuz.» Aqtai, que não parece
muito emocionado, inquire: «Qual de vós o matou por suas próprias
mãos?» Baibars não hesita: «Fui eu!» O velho mameluco aproxima-
se dele, convida-o a instalar-se na tenda do sultão e curva-se à sua
frente para lhe prestar homenagem. Em breve todo o exército
aclama o novo sultão.
Esta ingratidão para com o vencedor de Ain Jalut, menos de dois
meses após a sua brilhante façanha, não enobrece obviamente os
Mamelucos. Contudo, importa esclarecer, em abono dos oficiais-
escravos, que a maioria deles considerava desde há longos anos
Baibars como seu verdadeiro chefe. Não foi porventura ele que em
1250 ousou, antes de mais ninguém, ferir com a sua arma aiúbida
Turanshah, exprimindo assim a vontade dos Mamelucos de
assumirem eles próprios o poder? Acaso não desempenhou um
papel determinante na vitória contra os Mongóis? Tanto pela sua
perspicácia política quanto pela sua habilidade militar ou pela sua
extraordinária coragem física, ele impôs-se como o primeiro da sua
gente.
Nascido em 1223, o sultão mameluco iniciou a vida como
escravo na Síria. O seu primeiro amo, o emir aiúbida de Hama,
vendera-o por superstição, pois o seu olhar inquietava-o. O jovem
Baibars era de facto um gigante muito moreno, de voz rouca, olhos
azuis e claros, com uma grande mancha branca na vista direita. O
futuro sultão foi comprado por um oficial mameluco que o incorporou
na guarda de Ayyub onde, graças às suas qualidades pessoais, e
sobretudo à sua total ausência de escrúpulos, ele rapidamente abriu
caminho até ao topo da hierarquia.
Em finais de Outubro de 1260, Baibars entra como vencedor no
Cairo, onde a sua autoridade é reconhecida sem dificuldade. Nas
cidades sírias, em compensação, outros oficiais mamelucos tiram
partido da morte de Qutuz para proclamar a sua independência.
Mas, mediante uma campanha fulgurante, o sultão assenhoreia-se
de Damasco e de Alepo, reunificando sob sua autoridade o antigo
domínio aiúbida. Não tarda que este oficial sanguinário e inculto se
revele um grande homem de Estado, artífice de um autêntico
renascimento do mundo árabe. No seu reinado, o Egipto e, em
menor medida, a Síria vão tornar-se de novo centros de irradiação
cultural e artística. Baibars, que irá dedicar a sua vida a destruir
qualquer fortaleza franca capaz de lhe fazer frente, distingue-se por
outro lado como um grande edificador, embelezando o Cairo,
construindo em todo o seu domínio pontes e estradas. Vai também
reinstituir um serviço postal, por pombos ou por corcéis, ainda mais
eficaz do que os de Nureddin ou Saladino. O seu governo será
severo, por vezes brutal, mas esclarecido e de modo algum
arbitrário. Em relação aos Franj, adopta desde a sua subida ao
poder uma atitude firme, que visa reduzir a influência deles. Mas faz
a destrinça entre os de Acre, que apenas pretende enfraquecer, e os
de Antioquia, culpados de terem feito causa comum com os
invasores mongóis.
Em finais de 1261, ele pensa organizar uma expedição punitiva
contra as terras do príncipe Boemundo e do rei arménio Hetum. Mas
esbarra com os Tártaros. Se Hulagu já não está em condições de
invadir a Síria, o certo é que ainda dispõe na Pérsia de forças
suficientes para impedir o castigo dos seus aliados. Sabiamente,
Baibars decidiu aguardar melhor ocasião.
Ela depara-se-lhe em 1265, após a morte de Hulagu. Baibars
aproveita então as divisões que se manifestam entre os Mongóis
para invadir antes de mais nada a Galileia e subjugar várias praças-
fortes, com a cumplicidade de parte da população cristã local. Em
seguida, dirige-se bruscamente para o Norte, penetra no território de
Hetum, destrói uma a uma todas as cidades, e nomeadamente a
sua capital Sis, da qual mata uma grande parte da população e traz
mais de quarenta mil cativos. O reino arménio nunca mais se
recomporá. Na Primavera de 1286, Baibars torna a partir em
campanha. Começa por atacar as cercanias de Acre, apodera-se do
castelo de Belforte, depois, conduzindo o seu exército para o Norte,
apresenta-se a 1 de Maio ante as muralhas de Trípolis. Encontra aí
o senhor da urbe, que não é outro senão Boemundo, igualmente
príncipe de Antioquia. Este, que nada ignora do ressentimento do
sultão a seu respeito, prepara-se para um cerco demorado. Mas
Baibars tem outros planos. Alguns dias mais tarde, retoma o seu
caminho na direcção do norte para chegar diante de Antioquia a 14
de Maio. A maior das cidades francas, que resistira durante cento e
setenta anos a todos os soberanos muçulmanos, não aguentará
agora mais de quatro dias. Logo na tarde de 18 de Maio é aberta
uma brecha na muralha, não longe da cidadela; as tropas de
Baibars espalham-se pelas ruas. Esta conquista em nada se
assemelha às de Saladino. A população é inteiramente massacrada
ou sujeita à escravidão, a própria cidade é totalmente assolada. Da
prestigiosa metrópole só restará um lugarejo desolado, semeado de
ruínas, que o tempo sepultará sob a verdura.
Boemundo só toma conhecimento da queda da sua cidade por
uma carta memorável que Baibars lhe envia, aliás redigida pelo
cronista oficial do sultão, o egípcio Ibn Abd-el-Zaher:

Ao nobre e valoroso cavaleiro Boemundo, príncipe


transformado em simples conde graças à conquista de Antioquia.

O sarcasmo não fica por aqui:

Quando nos afastámos de ti em Trípolis, dirigimo-nos sem


delonga para Antioquia, onde chegámos ao primeiro dia do
venerado mês do Ramadão. No exacto momento da nossa
chegada, as tuas tropas saíram para nos dar combate, mas
foram vencidas, pois embora se prestassem mutuamente apoio,
faltava-lhes o apoio de Deus. Se visses os teus cavaleiros por
terra sob as patas dos cavalos, os teus palácios submetidos à
pilhagem, as tuas damas vendidas nos bairros da cidade e
compradas por apenas um dinar, tirado, ainda por cima, do teu
próprio dinheiro!

Após uma longa descrição, onde nenhum pormenor é poupado


ao destinatário da mensagem, o sultão conclui, abordando o
assunto principal:

Esta carta alegrar-te-á ao anunciar-te que Deus te fez o favor


de te conservar são e salvo e de prolongar a tua vida, porquanto
te não achavas em Antioquia. Em realidade, se lá te
encontrasses, estarias agora morto, ferido ou prisioneiro. Mas
talvez Deus só te poupasse para te submeteres e dares provas
de obediência.

Como homem sensato, e sobretudo impotente, Boemundo


responde propondo uma trégua. Baibars aceita-a. Ele sabe que o
conde, aterrorizado, já não constitui o menor perigo, à semelhança
de Hetum, cujo reino foi praticamente riscado do mapa. Quanto aos
Franj da Palestina, ficam igualmente muito contentes por obter uma
pausa. O sultão envia-lhes a Acre o seu cronista Ibn Abd-el-Zaher
para firmar o acordo.

O rei deles tergiversava para conseguir as melhores


condições, mas eu mostrei-me inflexível, em conformidade com
as directivas do sultão. Irritado, o rei dos Franj pediu ao
intérprete: «Diz-lhe que olhe para trás!» Virei-me e vi todo o
exército dos Franj em formação de combate. O intérprete
acrescentou: «O rei diz-te que não esqueças a existência desta
multidão de soldados.» Como eu não respondesse, o rei insistiu
junto do intérprete. Perguntei então: «Posso ter a garantia de
que não perco a vida se disser o que penso?» – «Sim.»
– «Pois bem, dizei ao rei que há menos soldados no seu
exército do que cativos francos nas prisões do Cairo!» O rei ia-
me estrangulando, depois deu por finda a conversa, mas
recebeu-nos passado pouco tempo para concluir a trégua.

Com efeito, os cavaleiros francos já não inquietarão Baibars.


Este sabe que a inevitável reacção à tomada de Antioquia não virá
deles, mas dos seus senhores, os reis do Ocidente.
O ano de 1268 ainda não acabou e já alguns rumores
persistentes anunciam o próximo regresso ao Oriente do rei de
França à cabeça de um poderoso exército. O sultão interroga
frequentemente mercadores ou viajantes. No Verão de 1270, chega
uma mensagem ao Cairo anunciando que Luís desembarcou com
seis mil homens na praia de Cartago, perto de Tunes. Sem hesitar,
Baibars reúne os principais emires mamelucos a fim de lhes
comunicar a sua intenção de partir, à cabeça de um poderoso
exército, para a longínqua província de África na mira de ajudar os
muçulmanos a rechaçar esta nova invasão franca. Porém, algumas
semanas mais tarde, eis que chega ao sultão uma nova mensagem,
assinada por al-Mustansir, emir de Tunes, informando que o rei de
França foi encontrado morto no seu acampamento e que o seu
exército abalou, não sem ter sido em grande parte dizimado pela
guerra ou a doença. Esconjurado este perigo, é tempo de Baibars
lançar uma nova ofensiva contra os Franj do Oriente. Em Março de
1271, ele apodera-se do temível «Hosn-el-Akrad», o Krak dos
cavaleiros, que nem mesmo Saladino jamais lograra subjugar.
Nos anos subsequentes, os Franj, e sobretudo os Mongóis,
chefiados por Abaga, filho e sucessor de Hulagu, organizarão várias
incursões na Síria; mas serão invariavelmente repelidos. E quando
Baibars morre envenenado, em Julho 1277, as possessões francas
do Oriente já só representam um rosário de urbes costeiras
rodeadas de todas as bandas pelo Império Mameluco. A sua
poderosa rede de fortalezas foi totalmente desmantelada. A
moratória de que desfrutaram no tempo dos Aiúbidas chegou
deveras ao fim; a sua expulsão é doravante inelutável.
No entanto, não há pressa. A trégua concedida por Baibars é
renovada em 1283 por Qalaun, o novo sultão mameluco. No que
toca aos Franj, este não dá quaisquer provas de hostilidade. Diz-se
pronto a garantir a sua presença e a sua segurança no Oriente
desde que eles renunciem, aquando de cada invasão, a servir de
auxiliares aos inimigos do Islão. O texto do tratado que ele propõe
ao reino de Acre constitui da parte deste administrador hábil e
esclarecido uma tentativa única de «regularização» da situação dos
Franj.

Se um rei franco partir do Ocidente, diz o texto, para vir atacar


as terras do sultão ou do seu filho, o regente do reino e os
grandes senhores de Acre serão obrigados a informar o sultão
da sua vinda dois meses antes da sua chegada. Se ele
desembarcar no Oriente depois de decorrerem estes dois
meses, o regente do reino e os grandes senhores de Acre serão
isentados de toda a responsabilidade em tal ocorrência.
Se vier um inimigo de entre os Mongóis, ou de alhures,
aquela das duas partes que primeiro disso tiver conhecimento
deverá avisar a outra. Se um tal inimigo – Deus queira que não!
– caminhar contra a Síria e as tropas do sultão se retirarem na
frente dele, os dirigentes de Acre terão o direito de entabular
conversações com esse inimigo no intuito de salvar os seus
súbditos e os seus territórios.

Assinada em Maio de 1283, por dez anos, dez meses, dez dias e
dez horas, a trégua cobre todos os países francos do litoral, ou seja,
a cidade de Acre, com os seus pomares, os seus terrenos, os seus
moinhos, as suas vinhas e as setenta e três aldeias que dela
dependem; a cidade de Haifa, as suas vinhas, os seus pomares e
as sete aldeias a ela ligadas… No que se refere a Saida, o castelo e
a cidade, as vinhas e o arrabalde são dos Franj, bem como as
quinze aldeias que a ela se ligam, com a planície circundante, os
seus ribeiros, os seus regatos, as suas fontes, os seus pomares, os
seus moinhos, os seus canais e os seus diques que são utilizados
desde há muito na irrigação das suas terras. Se a enumeração é
longa e minuciosa, é para evitar qualquer litígio. O conjunto do
território franco apresenta-se no entanto irrisório: uma faixa costeira,
estreita e esguia, que em nada se equipara à antiga e temível
potência regional constituída outrora pelos Franj. É bem verdade
que os sítios mencionados não traduzem o conjunto das
possessões francas. Tiro, que se separou do reino de Acre, conclui
um acordo à parte com Qalaun. Mais longe, a norte, cidades como
Trípolis e Lattaquié são excluídas da trégua.
É também o caso da fortaleza de Marqab, ocupada pela Ordem
dos Hospitalários, al-osbitar. Estes monges-cavaleiros tomaram o
partido dos Mongóis, indo mesmo ao ponto de combater a seu lado
aquando de uma nova tentativa de invasão em 1281. Assim, Qalaun
está resolvido a fazê-los pagar caro tal atitude. Na Primavera de
1285, diz-nos Ibn Abd-el-Zaher, o sultão preparou em Damasco
máquinas de cerco. Ele mandou vir do Egipto grandes quantidades
de flechas e armas de todas as espécies, que distribuiu pelos
emires. Mandou aprontar também engenhos de ferro e tubos lança-
chamas como os não há em nenhum outro lado senão nos
makhazen – armazéns – e dar-al-sinaa, o arsenal do sultão.
Alistaram-se igualmente peritos pirotécnicos e rodeou-se Marqab de
uma cintura de catapultas, das quais três de tipo «franco» e quatro
de tipo «diabo». No dia 25 de Maio, as alas da fortaleza acham-se
tão profundamente minadas que os defensores capitulam. Qalaun
autoriza-os a partir sãos e salvos para Trípolis, levando os seus
pertences.
Uma vez mais, os aliados dos Mongóis foram castigados sem
que estes pudessem intervir. Ainda que desejassem reagir, as cinco
semanas que o cerco durou ter-lhes-iam sido insuficientes para
organizar uma expedição a partir da Pérsia. Contudo, neste ano de
1285, os Tártaros estão mais determinados do que nunca a reatar a
sua ofensiva contra os muçulmanos. O seu novo chefe, o ilkkhan
Arghun, neto de Hulagu, tomou a seu cargo o sonho mais querido
dos seus antecessores: realizar uma aliança com os ocidentais para
apanhar o sultanato mameluco entre dois fogos. Estabelecem-se
então contactos muito regulares entre Tabriz e Roma para organizar
uma expedição comum, ou pelo menos concertada. Em 1289,
Qalaun pressente um perigo iminente, mas os seus agentes não
logram fornecer-lhe elementos precisos. Ele ignora, em especial,
que acaba de ser proposto por escrito ao papa e aos principais reis
do Ocidente um minucioso plano de campanha elaborado por
Arghun. Uma destas cartas, endereçadas ao soberano francês,
Filipe IV, o Belo, foi conservada. O chefe mongol sugere aí que se
inicie a invasão da Síria na primeira semana de Janeiro de 1291. Ele
prevê que Damasco cairá em meados de Fevereiro e que Jerusalém
será tomada pouco depois.
Sem verdadeiramente adivinhar o que se trama, Qalaun sente-se
cada vez mais inquieto. Ele receia que os invasores do leste ou do
oeste possam encontrar nas cidades francas da Síria uma testa-de-
ponte que facilite a sua penetração. Porém, se bem que esteja
doravante convicto de que a presença dos Franj constitui uma
ameaça permanente para a segurança do mundo muçulmano,
recusa-se a confundir a gente de Acre com a da metade setentrional
da Síria, que se mostrou abertamente favorável ao invasor mongol.
De qualquer modo, como homem de palavra, o sultão não pode
atacar Acre, protegida pelo tratado de paz durante mais cinco anos,
de modo que decide acometer Trípolis. É ante as muralhas da urbe,
conquistada cento e oitenta anos antes pelo filho de Saint-Gilles,
que o seu poderoso exército se reúne em Março de 1289.
Entre as dezenas de milhares de combatentes do exército
muçulmano conta-se Abul-Fida, um jovem emir de dezasseis anos.
Originário da dinastia aiúbida mas tornado vassalo dos Mamelucos,
ele reinará alguns anos mais tarde sobre a pequena urbe de Hama,
onde dedicará o essencial do seu tempo a ler e a escrever. A obra
deste historiador, que é também geógrafo e poeta, interessa-nos
sobretudo pela narrativa que faz dos últimos anos da presença
franca no Oriente. De facto, Abul-Fida, de olhar atento e espada em
punho, está presente em todos os campos de batalha.
A cidade de Trípolis, observa ele, está rodeada pelo mar e só
pode ser atacada por terra do lado leste, através de uma estreita
passagem. Depois de ter posto cerco, o sultão colocou diante
dela um grande número de catapultas de todas as dimensões, e
impôs-lhe um rigoroso bloqueio.

Após mais de um mês de combates, a 27 de Abril a cidade cai


nas mãos de Qalaun.

As tropas muçulmanas penetram nela à força, acrescenta


Abdul-Fida, que não procura de maneira nenhuma esconder a
verdade. A população refluiu para o porto. Aqui, alguns
escaparam-se em navios, mas a maioria dos homens foi
massacrada, as mulheres e as crianças capturadas, e os
muçulmanos acumularam um imenso despojo.

Quando os invasores acabaram de matar e de saquear, o sultão


deu ordem para se demolir e arrasar a cidade.

A pouca distância de Trípolis, havia, em pleno mar, um


pequeno ilhéu com uma igreja. Quando a urbe foi tomada,
muitos Franj refugiaram-se aí com as suas famílias. Mas as
tropas muçulmanas atiraram-se ao mar, atravessaram a nado até
esse ilhéu, massacraram todos os homens que ali se haviam
refugiado e trouxeram as mulheres e crianças como despojo.
Após a carnificina, dirigi-me eu próprio ao ilhéu numa barca, mas
não pude lá permanecer, tão forte era o fedor dos cadáveres.

O jovem aiúbida, imbuído da grandeza e da magnanimidade dos


seus antepassados, não consegue disfarçar o seu escândalo
perante estes massacres inúteis. Mas ele sabe que os tempos
mudaram.
Curiosamente, a expulsão dos Franj decorre numa atmosfera que
faz lembrar a que caracterizara a sua chegada, cerca de dois
séculos antes. Os massacres de Antioquia de 1286 parecem
reproduzir os de 1098, e o encarniçamento contra Trípolis será
apresentado pelos historiadores árabes dos séculos vindouros como
uma resposta tardia à destruição, em 1109, da urbe dos Banu
Ammar. No entanto, é por ocasião da batalha de Acre, a derradeira
grande batalha das guerras francas, que a desforra irá tornar-se
realmente no tema crucial da propaganda mameluca.
A seguir à sua vitória, Qalaun é instado pelos seus oficiais. É
agora claro, afirmam eles, que nenhuma cidade franca pode fazer
frente ao exército mameluco, que é indispensável atacar
imediatamente, sem esperar que o Ocidente, alarmado pela queda
de Trípolis, organize uma nova expedição à Síria. Não será melhor
acabar de uma vez para sempre com o que resta do reino franco?
Mas Qalaun recusa: assinou uma trégua e jamais trairá o seu
juramento. Não poderia ele então, insiste o seu séquito, pedir aos
doutores da lei que proclamem a nulidade do tratado com Acre, um
procedimento tão amiúde utilizado pelos Franj no passado? O sultão
não concorda. Ele lembra aos seus emires que jurou, no âmbito do
pacto assinado em 1283, não recorrer a consultas jurídicas para
romper a trégua. Não, reitera Qalaun, ele apoderar-se-á de todos os
territórios francos que o tratado não protege, mas nada mais. E
envia um embaixador a Acre para reafirmar ao último dos reis
francos, Henrique, «soberano de Chipre e de Jerusalém», que
respeitará os seus compromissos. Mais ainda, decide renovar essa
famosa trégua por outros dez anos a partir de Julho de 1289 e insta
os muçulmanos a tirar proveito de Acre para as suas trocas
comerciais com o Ocidente. Nos meses que se seguem, o porto
palestino regista efectivamente uma intensa actividade. Às
centenas, os mercadores damasquinos vêm instalar-se nas muitas
estalagens perto dos suks, realizando frutuosas transacções com os
comerciantes venezianos ou com os ricos Templários, erigidos nos
principais banqueiros da Síria. Por outro lado, milhares de
camponeses árabes, vindos em particular da Galileia, afluem à
metrópole franca para aí escoarem as suas colheitas. Esta
prosperidade beneficia todos os Estados da região, e mormente os
mamelucos. Estando as correntes de troca com o leste perturbadas
desde há muitos anos pela presença mongol, a ausência de lucro só
pode ser compensada por um desenvolvimento do comércio
mediterrânico.
Para os mais realistas dos dirigentes francos, o novo papel
reservado à sua capital, o de uma grande feitoria que faça a ligação
entre dois mundos, representa uma inesperada oportunidade de
sobrevivência numa região onde já não têm qualquer hipótese de
assumir uma posição hegemónica. Todavia, esta opinião não é
partilhada por todos. Há quem espere ainda suscitar no Ocidente
uma mobilização religiosa suficiente para organizar novas
expedições militares contra os muçulmanos. A seguir à queda de
Trípolis, o rei Henrique enviou mensageiros a Roma pedindo
reforços, de tal modo que em meados do Verão de 1290 uma
imponente esquadra chega ao porto de Acre, despejando milhares
de combatentes francos fanatizados na urbe. Os habitantes
observam com desconfiança estes ocidentais cambaleantes de
bebedice que têm ar de pilhantes e não obedecem a nenhum chefe.
Ao fim de escassas horas, começam os incidentes. Mercadores
damasquinos são assaltados nas ruas, espoliados e deixados
inanimados. As autoridades logram a grande custo restabelecer a
ordem, mas, por volta de finais de Agosto, a situação deteriora-se.
No seguimento de um banquete copiosamente regado, os recém-
vindos espalham-se pelas ruas. Qualquer pessoa que use barba é
acossada e depois degolada sem piedade. Muitos árabes,
mercadores ou camponeses pacíficos, tanto cristãos como
muçulmanos, perecem assim. Os outros fogem, indo contar o que
acaba de suceder.
Qalaun fica louco de raiva. Foi então para chegar a este ponto
que renovou a trégua com os Franj? Os seus emires instigam-no a
agir sem demora. Mas, como homem de Estado responsável, ele
não quer deixar-se arrebatar pela cólera. Manda a Acre uma
embaixada pedir explicações e exigir, principalmente, que os
assassinos lhe sejam entregues para serem castigados. Os Franj
discutem entre si. Uma minoria recomenda que se aceitem as
condições do sultão para evitar uma nova guerra. Os restantes
recusam, chegando a responder aos emissários de Qalaun que os
mercadores muçulmanos são os próprios responsáveis pela
matança, pois um deles teria procurado seduzir uma mulher franca.
Então, Qalaun já não hesita mais. Reúne os seus emires e
anuncia-lhes a sua decisão de pôr cobro, de uma vez para sempre,
a uma ocupação franca que durou demasiado tempo. Iniciam-se
logo os preparativos. Os vassalos são convocados, nos quatro
cantos do sultanato, para virem participar nesta última batalha da
guerra santa.
Antes de o exército sair do Cairo, Qalaun jura sobre o Alcorão
que não tornará a largar a sua arma até ao último franco ser
expulso. O juramento é tanto mais impressionante quanto o sultão é
agora um ancião debilitado. Embora não se conheça a sua idade
com exactidão, parece que ele tinha então ultrapassado em muito
os setenta anos. A 4 de Novembro de 1290, o grandioso exército
mameluco põe-se em marcha. Um dia depois, o sultão adoece.
Chama os emires à sua cabeceira, fá-los jurar obediência a seu filho
Khalil e pede a este que se empenhe, como ele, em levar a bom
termo a campanha contra os Franj. Qalaun morre ao cabo de menos
de uma semana, venerado pelos seus súbditos como um grande
soberano.
O desaparecimento do sultão só atrasará alguns meses a
derradeira ofensiva contra os Franj. Em Março de 1291, Khalil
retoma, à cabeça do seu exército, o caminho da Palestina. No início
de Maio juntam-se-lhe numerosos contingentes sírios na planície
que envolve Acre. Abul-Fida, então com dezoito anos de idade,
toma parte na batalha com seu pai; ele é mesmo investido de certa
responsabilidade, porquanto tem a seu cargo uma temível catapulta,
cognominada a Vitoriosa, a qual foi preciso transportar em peças
soltas desde Hosn-el-Akrad até às vizinhanças da urbe franca.
As carroças estavam tão pesadas que a deslocação nos
levou mais de um mês, quando afinal em tempo normal teriam
bastado oito dias. À chegada, os bois que puxavam as carroças
tinham quase todos morrido de esgotamento e de frio.
O combate travou-se sem delonga, prossegue o nosso
cronista. Nós, os homens de Hama, estávamos colocados como
habitualmente na extrema-direita do exército. Ficámos à beira do
mar, donde nos atacavam embarcações francas encimadas por
torrinhas cobertas de madeira e atapetadas de peles de búfalo,
das quais o inimigo disparava sobre nós com arcos e balestras.
Tínhamos, pois, de lutar em duas frentes, contra a gente de Acre
que estava diante de nós, e contra a sua frota. Sofrêramos
pesadas baixas quando um navio franco, equipado de uma
catapulta, começou a lançar pedaços de rochedo sobre as
nossas tendas. Porém, uma noite, ergueram-se ventos violentos.
O navio pôs-se a balouçar sobre as ondas, sacudido pelas
vagas, de tal modo que a catapulta se desfez em bocados. Outra
noite, um grupo de Franj efectuou uma surtida inesperada e
avançou até ao nosso acampamento; mas, na escuridão, alguns
deles tropeçaram nas cordas que retêm as tendas; um cavaleiro
caiu mesmo na fossa das latrinas e foi morto. As nossas tropas
recompuseram-se, atacaram os Franj por todos os lados,
obrigando-os a retirar para a cidade depois de haverem deixado
vários mortos no terreno. No dia seguinte de manhã, o meu
primo al-Malik al-Muzaffar, senhor de Hama, mandou prender as
cabeças dos Franj mortos ao pescoço dos cavalos que tínhamos
capturado e apresentou-as ao sultão.

É na sexta-feira 17 de Junho de 1291 que, dispondo de uma


esmagadora superioridade militar, o exército muçulmano penetra
enfim à viva força na urbe assediada. O rei Henrique e a maioria dos
notáveis embarcam à pressa para se refugiarem em Chipre. Os
outros Franj são todos aprisionados e mortos. A cidade é
inteiramente arrasada.
A cidade de Acre fora reconquistada, indica Abul-Fida, ao meio-
dia do décimo sétimo dia do segundo mês de Jumada do ano de
690. Ora, havia sido exactamente no mesmo dia, à mesma hora, no
ano de 587, que os Franj tinham tomado Acre a Salaheddin,
capturando e em seguida massacrando todos os muçulmanos que
lá se encontravam. Não há porventura aqui uma estranha
coincidência?

Segundo o calendário cristão, esta coincidência não é menos


curiosa, visto a vitória dos Franj em Acre ter ocorrido em 1191, cem
anos, quase no mesmo dia, antes da sua derrota final.

Após a conquista de Acre, continua Abul-Fida, Deus lançou o


pavor no coração dos Franj que ainda permaneciam no litoral
sírio. Eles evacuaram então precipitadamente Saida, Beirute,
Tiro e todas as outras cidades. O sultão teve assim o feliz
destino, que não fora o de nenhum outro, de conquistar sem
dificuldade todas as sete praças, as quais mandou logo
desmantelar.

De facto, na sequência do seu triunfo, Khalil decide destruir, ao


longo da costa, qualquer fortaleza que possa um dia servir aos Franj
se eles procurarem voltar de novo ao Oriente.

Mercê de tais conquistas, conclui Abul-Fida, todas as terras


do litoral retornaram integralmente à posse dos muçulmanos,
resultado inesperado! Assim, os Franj, que haviam estado
outrora à beira de conquistar Damasco, o Egipto e muitas outras
regiões, foram expulsos de toda a Síria e das zonas costeiras.
Queira Deus que eles nunca mais aqui ponham os pés!
Epílogo

Aparentemente, o mundo árabe acabava de alcançar uma


estrondosa vitória. Se o Ocidente procurava, por meio das suas
sucessivas invasões, conter o ímpeto do Islão, o resultado foi
absolutamente inverso. Não só os Estados francos do Oriente se
viam desenraizados após dois séculos de colonização, como ainda
os muçulmanos tinham recuperado tão bem que iam tornar a partir,
sob a bandeira dos Turcos Otomanos, à conquista da própria
Europa. Em 1453, Constantinopla caía nas suas mãos. Em 1529, os
seus cavaleiros acampavam ante as muralhas de Viena.
Era apenas, dizíamos nós, aparentemente. Na realidade, com o
recuo histórico, impõe-se uma ilação: na época das cruzadas, o
mundo árabe, da Espanha ao Iraque, é ainda, intelectual e
materialmente, o depositário da mais avançada civilização do
planeta. Depois, o centro do mundo desloca-se resolutamente para
o ocidente. Haverá aqui relação de causa-efeito? Poder-se-á ir ao
ponto de afirmar que as cruzadas deram o sinal de partida para o
surto da Europa Ocidental – que gradualmente iria dominar o Mundo
– e assinalaram o declínio da civilização árabe?
Embora não sendo falso, tal juízo deve ser matizado. Os Árabes
sofriam, desde antes das cruzadas, de algumas «enfermidades»
que a presença franca pôs em realce e talvez haja agravado, mas
que ela não criou fio a pavio.
O povo do Profeta perdera, já no século IX, o controlo do seu
destino. Os seus dirigentes eram praticamente todos estrangeiros.
Desta profusão de personagens que vimos desfilar no decurso de
dois séculos de ocupação franca, quais eram árabes? Os cronistas,
os cádis, alguns reizetes locais – Ibn Ammar, Ibn Muqidh – e os
impotentes califas. Mas os detentores reais do poder, e até mesmo
os principais heróis da luta contra os Franj – Zinki, Nureddin, Qutuz,
Baibars, Qalaun – eram turcos; al-Afdal, esse, era arménio; Chirkuh,
Saladino, al-Adel, al-Kamel eram curdos. Naturalmente, a maioria
destes homens de Estado estavam arabizados cultural e
afectivamente; mas não esqueçamos que em 1134 vimos o sultão
Massud discutir com o califa al-Mustarchid por intermédio de um
intérprete, porque o seljúcida, oitenta anos após a tomada de
Bagdad pelo seu clã, ainda não falava uma palavra de árabe. Mais
grave ainda: um número considerável de guerreiros das estepes,
sem qualquer laço com as civilizações árabe ou mediterrânica, vinha
regularmente integrar-se na casta militar dirigente. Dominados,
oprimidos, achincalhados, estrangeiros na sua própria terra, os
Árabes não podiam prosseguir o seu desabrochamento cultural
encetado no século VII. No momento da chegada dos Franj, eles já
estagnavam, contentando-se em viver do património passado. E se
ainda estavam nitidamente avançados em relação a estes novos
invasores na maior parte dos campos, a verdade é que a sua
decadência já se iniciara.
A segunda «enfermidade» dos Árabes, que está de algum modo
ligada à primeira, é a sua incapacidade para edificar instituições
instáveis. Os Franj, mal chegaram ao Oriente, conseguiram forjar
autênticos Estados. Em Jerusalém, a sucessão fazia-se geralmente
sem atritos; um conselho do reino exercia um controlo efectivo sobre
a política do monarca e o clero tinha um papel reconhecido no jogo
do poder. Nos Estados muçulmanos, nada disto existia. Toda a
monarquia estava ameaçada ao morrer o monarca, toda a
transmissão do poder provocava uma guerra civil. Dever-se-á
atribuir a inteira responsabilidade deste fenómeno às sucessivas
invasões, que punham constantemente em causa a própria
existência dos Estados? Dever-se-á incriminar as origens nómadas
dos povos que dominaram esta região, quer se trate dos Árabes em
pessoa, dos Turcos ou dos Mongóis? Não podemos, no âmbito
deste epílogo, aclarar semelhante questão. Contentemo-nos em
adiantar que ela ainda se põe, em termos pouco diferentes, no
mundo árabe do final do século XX.
A ausência de instituições estáveis e reconhecidas não podia
deixar de se reflectir nas liberdades. Entre os ocidentais, o poder
dos monarcas é regido, na época das cruzadas, por princípios que é
difícil transgredir. Ussama notou, aquando de uma visita ao reino de
Jerusalém, que «sempre que os cavaleiros emitem uma sentença,
ela não pode ser modificada nem anulada pelo rei». Ainda mais
significativo é este testemunho de Ibn Jobair nos últimos dias da sua
viagem ao Oriente:

Ao sair de Tibnin (perto de Tiro), atravessámos uma série


ininterrupta de herdades e de aldeias cujas terras eram
exploradas eficazmente. Os seus habitantes são todos
muçulmanos, mas vivem com bem-estar junto dos Franj – que
Deus nos preserve contra as tentações! As suas moradas
pertencem-lhes e todos os seus bens lhes são deixados. Todas
as regiões controladas pelos Franj na Síria estão submetidas a
este mesmo regime: os domínios fundiários, aldeias e herdades
ficaram nas mãos dos muçulmanos. Ora, a dúvida penetra no
coração de muitos de tais homens que comparam a sua sorte à
dos seus irmãos que vivem em território muçulmano. De facto,
estes últimos sofrem a injustiça dos seus correligionários, ao
passo que os Franj actuam com equidade.

Ibn Jobair tem razão em inquietar-se, pois acaba de descobrir,


nas estradas do actual Sul do Líbano, uma realidade prenhe de
consequências: ainda que a concepção da justiça entre os Franj
apresente determinados aspectos que poderíamos qualificar de
«bárbaros», conforme Ussama acentuou, a sua sociedade tem a
vantagem de «atribuir direitos». É bem verdade que a noção de
cidadão ainda não existe, mas os feudais, os cavaleiros, o clero, a
universidade, os burgueses e até mesmo os camponeses «infiéis»
possuem todos direitos bem estabelecidos. No Oriente árabe, o
processo dos tribunais é mais racional; porém, não há qualquer
limite ao poder arbitrário do príncipe. O desenvolvimento das urbes
mercantis, tal como a evolução das ideias, era assim forçosamente
retardado.
A reacção de Ibn Jobair merece mesmo uma análise mais atenta.
Embora tenha a honestidade de reconhecer qualidades ao «inimigo
maldito», ele perde-se em seguida em imprecações, estimando que
a equidade dos Franj e a sua boa administração constituem um
perigo mortal para os muçulmanos. Realmente, não se arriscarão
estes a virar as costas aos seus correligionários – e à sua religião –
se encontrarem o bem-estar na sociedade franca? Por muito
compreensível que seja, a atitude do viajante nem por isso é menos
sintomática de um mal de que sofrem os seus irmãos: ao longo das
cruzadas, os Árabes rejeitaram abrir-se às ideias vindas do
Ocidente. É este, provavelmente, o efeito mais desastroso das
agressões de que foram vítimas. Para o invasor, aprender a língua
do povo conquistado é uma habilidade; para este último, aprender a
língua do conquistador é um compromisso, ou mesmo uma traição.
De facto, houve muitos Franj que aprenderam árabe, ao passo que
os habitantes do país, à excepção de alguns cristãos, se quedaram
impermeáveis às línguas dos ocidentais.
Poderíamos multiplicar os exemplos, já que os Franj colheram os
ensinamentos dos Árabes em todos os campos, tanto na Síria como
em Espanha ou na Sicília. E o que eles aprenderam era
indispensável à sua ulterior expansão. A herança da civilização
grega só veio a ser transmitida à Europa Ocidental por intermédio
dos Árabes, tradutores e continuadores. Em medicina, em
astrologia, em química, em geografia, em matemática, em
arquitectura, os Franj beberam os seus conhecimentos nos livros
árabes que assimilaram, imitaram e depois superaram. Quantas
palavras nos dão ainda testemunho disso: zénite, nadir, azimute,
álgebra, algoritmo, ou mais simplesmente «algarismo». Tratando-se
da indústria, os Europeus retomaram, antes de os melhorar, os
processos utilizados pelos Árabes na fabricação do papel, no
trabalho do couro, no têxtil, na destilação do álcool e do açúcar –
mais duas palavras tiradas do árabe. Tão-pouco se deve esquecer
até que ponto a agricultura europeia se enriqueceu igualmente ao
contacto do Oriente: alperces, beringelas, chalotas, laranjas,
melancias… A lista das palavras «árabes» é interminável.
Enquanto para a Europa Ocidental a época das cruzadas era o
despontar de uma verdadeira revolução, simultaneamente
económica e cultural, no Oriente estas guerras santas iam
desembocar em longos séculos de decadência e de obscurantismo.
Assaltado por todos os lados, o mundo muçulmano ensimesma-se.
Ele volveu-se suspeitoso, defensivo, intolerante, estéril, outras
tantas atitudes que se agravam à medida que prossegue a evolução
planetária, relativamente à qual se sente marginalizado. O
progresso é doravante o outro. O modernismo é o outro. Dever-se-ia
afirmar a própria identidade cultural e religiosa repudiando este
modernismo que o Ocidente simbolizava? Dever-se-ia, pelo
contrário, enveredar resolutamente pela via da modernização
correndo o risco de perder a identidade? Nem o Irão, nem a Turquia,
nem o mundo árabe lograram resolver tal dilema; e é por isso que
hoje em dia se continua a assistir a uma alternância muitas vezes
brutal entre fases de ocidentalização forçada e fases de
fundamentalismo exagerado, fortemente xenófobo.
Simultaneamente fascinado e apavorado por esses Franj que ele
conheceu ainda bárbaros e venceu, mas que, desde então,
conseguiram dominar a Terra, o mundo árabe não pode resolver-se
a encarar as cruzadas como um simples episódio de um passado
enterrado. Ficamos muitas vezes surpreendidos ao descobrir até
que ponto a atitude dos Árabes, e dos muçulmanos em geral, com
respeito ao Ocidente continua ainda hoje influenciada por
acontecimentos que julgaríamos terem visto o seu termo há sete
séculos.
Ora, em vésperas do terceiro milénio, os responsáveis políticos e
religiosos do mundo árabe referem-se constantemente a Saladino, à
queda de Jerusalém e à sua retomada. Israel é assimilado, tanto na
acepção popular como em certos discursos oficiais, a um novo
Estado cruzado. Das três divisões do Exército de Libertação da
Palestina, uma ainda ostenta o nome de Hittin e outra o de Ain Jalut.
O presidente Nasser, no tempo da sua glória, era regularmente
comparado a Saladino que, tal como ele, reunira a Síria e o Egipto –
e até mesmo o Iémen! Quanto à expedição do canal de Suez em
1956, foi interpretada, a exemplo da de 1191, como uma cruzada
empreendida por Franceses e Ingleses.
É inegável que as semelhanças são perturbantes. Como não
pensar no presidente Sadat ao escutar Sibt Ibn al-Jawzi denunciar,
perante o povo de Damasco, a «traição» do senhor do Cairo, al-
Kamel, que ousou reconhecer a soberania do inimigo sobre a cidade
santa? Como distinguir o passado do presente quando se trata da
luta entre Damasco e Jerusalém pelo controlo dos montes Golan ou
do vale de Bekaa? Como não havemos de ficar pensativos ao ler as
reflexões de Ussama acerca da superioridade militar dos invasores?
Num mundo muçulmano perpetuamente agredido, é impossível
impedir a emergência de um sentimento de perseguição que
adquire, em certos fanáticos, a forma de uma perigosa obsessão:
acaso não vimos todos, a 13 de Maio de 1981, o turco Mehemet Ali
Agca disparar sobre o papa depois de ter explicado numa carta:
Decidi matar João Paulo II, comandante supremo dos cruzados.
Além deste acto individual, é óbvio que o Oriente árabe continua a
ver no Ocidente um inimigo natural. Contra este, qualquer acto
hostil, seja ele político, militar ou petrolífero, não é mais do que
legítima desforra. E não podemos duvidar que a fractura entre esses
dois mundos data das cruzadas, ainda hoje encaradas pelos Árabes
como uma violação.
Notas e Fontes

Em dois anos de pesquisas sobre as cruzadas, depara-se com


inúmeras obras e autores que, encontro breve ou convívio assíduo,
exercem cada qual uma influência sobre o trabalho que se faz.
Embora todos eles mereçam ser mencionados, a óptica deste livro
impõe uma selecção. Entendemos, de facto, que o leitor procura
aqui, não uma bibliografia exaustiva das cruzadas, mas referências
que permitam ir mais longe no conhecimento desta «outra visão».
Três tipos de obras figurarão nestas notas. Em primeiro lugar,
bem entendido, as dos historiadores e cronistas árabes que nos
deixaram um testemunho sobre as invasões francas. Delas
falaremos, capítulo após capítulo, à medida que os seus nomes
surgirem na nossa narrativa, dando as referências da obra original,
na qual nos baseámos geralmente. Citemos porém, já nesta
introdução, a excelente antologia de textos compilados pelo
orientalista Francesco Gabrieli, publicada em francês com o título:
Chroniques arabes des croisades, Sindbad, Paris, 1977.
Um segundo tipo de obras aborda a história medieval árabe e
muçulmana nas suas relações com o Ocidente. Citemos, em
particular:

E. Ashtor, A social and economic history of the near east in the


middle ages, Collins, Londres, 1976.
C. Cahen, Les Peuples musulmans dans L’histoire médiévale,
Institut Français de Damas, 1977.
M. Hodgson, The venture of islam, University of Chicago, 1974.
R. Palm, Les Etendards de Prophéte, J.-C. Latés, Paris, 1981.
J. J. Saunders, A history of medieval islam, RKP, Londres, 1965.
J. Sauvaget, Introduction à l’histoire de l’Orient musulman, Adrien-
Maisonneuve, Paris, 1961.
J. Schacht, The legacy of islam, Oxford university, 1974.
E. Sivan, L’Islam et la croisade, Adrien-Maisonneuve, Paris, 1968.
H. Montgomery Watt, L’Influence de l’Islam sur L’Europe médiéval,
Geuthner, Paris, 1974.

Um terceiro tipo de obras abrange as narrativas históricas,


globais ou parciais, das cruzadas. É claro que a sua consulta nos
era indispensável para agrupar os testemunhos árabes,
necessariamente fragmentários, numa narrativa contínua que
abarcasse os dois séculos de invasões francas. Evocá-las-emos
mais de uma vez nestas notas. Citemos desde já duas obras
clássicas: Histoire des croisades e do royaume franc de Jérusalem,
de René Grousset, em três volumes, Plon, Paris, 1934-1936; A
history of the crusades, de Stephen Runciman, igualmente em três
volumes, Cambridge University, 1951-1954.
Prólogo

Os historiadores árabes não concordam todos em atribuir a al-


Harawi o discurso que citamos. Segundo o cronista damasquino Sibt
Ibn al-Jawzi (ver capítulo XII), é de facto o cádi que teria proferido
tais palavras. O historiador Ibn al-Athir (ver capítulo II) declara que o
autor delas é o poeta al-Abiwardi, aparentemente inspirado pelas
lamentações de al-Harawi. Seja como for, não há qualquer dúvida
quanto ao fundo: as afirmações citadas correspondem realmente à
mensagem que a delegação chefiada pelo cádi quis transmitir à
corte do califa.
Partindo de Valença, na Espanha muçulmana, Ibn Jobair (1144-
1217) efectuou a sua viagem ao Oriente entre 1182 e 1185.
Registou as suas observações num livro disponível em francês
(Geuthner, Paris, 1953-1956). O texto original foi reeditado em árabe
(Sader, Beirute, 1980).
Nascido e falecido em Damasco, Ibn al-Qalanissi (1073-1160)
ocupou altas funções administrativas na sua cidade. Deixou uma
crónica intitulada Zayl tarikh Dimachq, cujo texto original só está
disponível numa edição de 1908. Uma edição francesa parcial, sob
o título Damasco de 1075 a 1154, foi publicada em 1952 pelo
Instituto Francês de Damasco e pelas Editions Adrien-Maisonneuve,
Paris.

Capítulo I
«Esse ano», na citação de Ibn al-Qalanissi, é o ano 490 da
Hégira. Todos os cronistas e historiadores árabes da época utilizam,
com pouca diferença, o mesmo método de exposição: enumeram,
não raro desordenadamente, os acontecimentos de cada ano, antes
de passar ao seguinte.
O termo Rum – singular, Rumi – é por vezes utilizado no século
XX em certas partes do mundo árabe para designar, não os Gregos,
mas os ocidentais em geral.
O emir – al-amir – é, originariamente, «o que assume um
comando». «Amir al-muminin» é o príncipe ou o comendador dos
crentes. Os emires do exército são por assim dizer os oficiais
superiores. «Amir al-juyuch» é o chefe supremo dos exércitos e
«amir al-bahr» é o comandante da frota, uma palavra adoptada
pelos ocidentais sob uma forma concisa: «almirante».
A origem dos Seljúcidas está envolta em mistério. O epónimo do
clã, Seljuk, tinha dois filhos chamados Mikael e Israel, o que deixa
supor que a dinastia que unificou o Oriente muçulmano era de
estirpe cristã ou judaica. Após a sua islamização, os Seljúcidas
mudaram alguns dos seus nomes. Em especial, «Israel» foi
turquicizado em «Arslan».
A Gesta do Rei Danishmend foi publicada em 1960, original e
tradução, pelo Instituto Francês de Arqueologia de Istambul.

Capítulo II

A principal obra de Ibn al-Athir (1160-1233), A História Perfeita


(Al-Kamelfit-Tarikh) só existe em francês em traduções
fragmentárias, nomeadamente no Recueil des historiens des
croisades, publicado em Paris, entre 1841 e 1906, pela Academia
das Inscrições e Belas-Letras. O texto árabe de Al-Kamelfit-Tarikh,
em 13 volumes, foi reeditado em 1979 (Sader, Beirute). São os
volumes X, XI e XII que evocam, entre muitas outras coisas, as
invasões francas.
Sobre a seita dos Assassinos, ver capítulo V. Referência da
citação de Ibn Jobair sobre o petróleo: Viagens, edição francesa,
pág. 268; edição árabe, pág. 209.
Para mais informações sobre Antioquia e a sua região, ler, de C.
Cahen, La Syrie du Nord à l’époque des croisades et la principauté
franque d’Antioche, Geuthner, Paris, 1940.

Capítulo III

As narrativas a respeito dos actos de canibalismo perpetrados


pelos exércitos francos em Maara no ano de 1098 são muitas – e
concordantes – nas crónicas francas da época. Até ao século XIX,
ainda as encontramos pormenorizadas nos historiadores europeus.
É, por exemplo, o caso de L’Histoire des croisades, de Michaud,
publicada em 1817-1822. Ver tomo I, págs. 357 e 577, e
Bibliographie des croisades, págs. 48, 76, 183 e 248. No século XX,
em contrapartida, estas narrativas – quiçá para não deslustrar a
missão civilizadora – são geralmente ocultadas. Grousset, nos três
volumes da sua Histoire, nem sequer lhes faz menção; Runciman
contenta-se com uma alusão: «a fome reinava…, o canibalismo
parecia a única solução» (op. cit., tomo I, pág. 261).
Sobre os Tafures, ver Prawer, Histoire do royaume franc de
Jérusalem, C.N.R.S., Paris, 1975 (tomo I, pág. 216).
Acerca de Ussama Ibn Munqidh, ver capítulo VII.
Sobre a origem do nome Krak dos cavaleiros, ver Paul
Deschamps, La Toponomastique en Terre Sainte au temps des
croisades, in «Recueil de travaux…» Geuthner, Paris, 1955.
Os Franj encontrarão a carta do basileus na tenda de al-Afdal
após a batalha de Áscalon, em Agosto de 1099.

Capítulo IV
Sobre o espantoso passado de Nahr-el-Kalb, ver P. Hitti, Tarikh
Loubnan, Assaqafa, Beirute, 1978.
Após o seu regresso à Europa, Boemundo tentará invadir o
Império Bizantino. Para repelir o ataque, Aleixo pedirá a Kilij Arslan
que lhe envie tropas. Vencido e capturado, Boemundo será forçado
a reconhecer por tratados os direitos dos Rum sobre Antioquia. Esta
humilhação obrigá-lo-á a nunca mais voltar ao Oriente.
Edessa inclui-se hoje na Turquia. O seu nome é Urfa.

Capítulo V

Sobre a batalha de Tiro e tudo o que concerne a esta cidade, ver


M. Chehab, Tyr à l’époque des croisades, Adrien-Maisonneuve,
Paris, 1975.
O alepino Kamaleddin Ibn al-Adim (1192-1262) só consagrou a
primeira parte da sua vida a escrever a história da sua cidade.
Assoberbado pela sua actividade política e diplomática e as suas
muitas viagens através da Síria, do Iraque e do Egipto, interromperá
a sua crónica em 1223. O texto original da sua História de Alepo foi
publicado pelo Instituto Francês de Damasco em 1968. Não existe,
até hoje, qualquer edição francesa.
O local onde se desenrola a batalha entre Ilghazi e o exército de
Antioquia é denominado diferentemente consoante as fontes:
Sarmada, Darb Sarmada, Tel Aqibrin… Os Franj apelidaram-no de
«Ager sanguinis», o campo do sangue.
Sobre os Assassinos, ler M. Hodgson, The order of Assassins,
Mouton, Haia, 1955.

Capítulo VI

O hospital fundado em Damasco em 1154 continuará a funcionar


até… 1899, data em que será transformado em escola.
O pai de Zinki, Aq Sonqor, fora governador de Alepo até 1094.
Acusado de traição por Tutuch, pai de Redwan, ele havia sido
decapitado. O jovem Zinki fora então recolhido por Karbuka de
Mossul, que o educara e o fizera participar em todas as suas
batalhas.
A princesa Zomorrod era filha do emir Jawali, o antigo
governador de Mossul.

Capítulo VII

Nascido em 1095, dois anos antes da chegada dos Franj à Síria,


falecido em 1188, um ano após a retomada de Jerusalém, o emir
Ussama Ibn Munqidh ocupa um lugar à parte entre as testemunhas
árabes das cruzadas. Escritor, diplomata, político, ele conheceu
pessoalmente Nureddin, Saladino, Moinuddin Unar, o rei Foulque e
muitos outros. Ambicioso, intriguista, conspirador, foi acusado de ter
mandado assassinar um califa fatímida e um vizir egípcio, de ter
querido derrubar seu tio Sultan e até mesmo o seu amigo
Moinuddin. No entanto, a imagem do fino letrado, do observador
perspicaz e cheio de humor é que prevaleceu. A principal obra de
Ussama, a sua autobiografia, foi publicada em Paris em 1893 por
iniciativa de H. Derenbourg. Uma nova versão francesa, anotada e
magnificamente ilustrada, foi editada em 1983 por André Miquel com
o título Des enseignements de la vie (Imprimerie Nationale, Paris).
Quanto ao relato da batalha de Edessa, ver J.-B. Chabot, Un
épisode de l’histoire des croisades, in «Mélanges»… Geuthner
Paris, 1924.

Capítulo VIII

Para mais informações sobre o filho de Zinki e a sua época, ver


N. Elisseeff, Nur-ad-Din, un grand prince musulman de Syrie au
temps des croisades, Institut Français de Damas, 1967. A diferença
de ortografia entre Nureddin e Nur-ad-Din leva-nos a esclarecer
aqui, se acaso é necessário, termos adoptado neste livro, destinado
a um público não forçosamente especializado, uma transição
académica do árabe.
A primeira fonte legal de rendimento para os príncipes – incluindo
Nureddin – era a sua parte do despojo arrebatado ao inimigo: ouro,
prata, cavalos, prisioneiros vendidos como escravos. O preço destes
diminuía sensivelmente quando eram demasiado numerosos,
sublinham os cronistas; chegava-se mesmo a trocar um homem por
um par de chinelos!
Ao longo das cruzadas, violentos tremores de terra irão devastar
a Síria. Se o de 1157 é o mais espectacular, o certo é que não
decorria um decénio sem um cataclismo de monta.

Capítulo IX

O braço oriental do Nilo, hoje seco, é chamado «braço


pelusíaco», pois atravessava a antiga urbe de Pelúsio. Desaguava
no mar próximo de Sabkhat al-Bardawi, a laguna de Balduíno.
A família de Ayyub fora obrigada a deixar Tikrit em 1138, pouco
após o nascimento de Saladino nesta cidade, pois Chirkuh tivera de
matar um homem para vingar, segundo alegava, a honra ultrajada
de uma mulher.
Originários do Norte de África, os Fatímidas governaram o Egipto
de 966 a 1171. Foram eles que fundaram o Cairo. Reclamavam-se
de Fátima, filha do Profeta e esposa de Ali, inspirador do xiismo.
Sobre as peripécias da espantosa batalha do Egipto, ler G.
Schlumberger, Campagnes du roi Amaury Ier de Jérusalem en
Egypte, Plon, Paris, 1906.

Capítulo X

A carta dos Alepinos, tal como a maioria das mensagens de


Saladino, encontra-se no Livro dos Dois Jardins, obra do cronista
damasquino Abu Chama (1203-1267). Esta obra contém uma
preciosa compilação de um grande número de documentos oficiais
que não existem em qualquer outro lado.
Bahaeddin Ibn Chaddad (1145-1234) entrou ao serviço de
Saladino pouco antes da batalha de Hittin. Ele foi, até à morte do
sultão, confidente e conselheiro. A sua biografia de Saladino
apareceu recentemente reeditada, original e tradução, em Beirute e
em Paris (Méditerranée, 1981).
Nas bodas de Kerak, as boas maneiras não foram unicamente
apanágio de Saladino. A mãe da noiva tomou a peito enviar ao
sitiante manjares cuidadosamente confeccionados, a fim de ele
poder participar igualmente nos festejos.
O testemunho do filho de Saladino sobre a batalha de Hittin foi
citado por Ibn al-Athir, vol. IX, ano 583 da Hégira.
Colaborador de Nureddin antes de entrar ao serviço de Saladino,
Imadeddin al-Asfahani (1125-1201) publicou várias obras de história
e de literatura, designadamente uma preciosa antologia poética. O
seu estilo extraordinariamente empolado reduziu de certo modo o
valor do seu testemunho acerca dos acontecimentos que viveu. A
sua narrativa da Conquista da Síria e da Palestina por Saladino foi
publicada pela Academia das Inscrições e Belas-Letras – Paris,
1972.

Capítulo XI

Segundo a fé muçulmana, Deus guiou certa noite o Profeta numa


viagem miraculosa de Meca à mesquita al-Aqsa, e depois até aos
céus. Deu-se aí um encontro com Jesus e Moisés, símbolo da
continuidade das «religiões do Livro».
Para os orientais, árabes, arménios ou gregos, a barba é um
sinal de virilidade. Os rostos glabros da maioria dos cavaleiros
francos divertiam, e por vezes escandalizavam.
Entre as muitas obras ocidentais consagradas a Saladino,
convém lembrar a de S. Lane-Pool, publicada em Londres em 1898
sob o título de Saladin and the fali of the kingdom of Jerusalem, a
qual caiu infelizmente no esquecimento nestes últimos anos. Foi
reeditada em Beirute (Khayafs, 1964).

Capítulo XII

Julga-se que al-Kamel recebeu em 1219 São Francisco de Assis,


vindo ao Oriente na tentativa vã de restabelecer a paz. Tê-lo-ia
escutado com simpatia e enchido de prendas antes de o mandar
reconduzir, com escolta, ao acampamento dos Franj. Tanto quanto
sabemos, nenhuma fonte árabe relata este acontecimento.
Orador e cronista damasquino, Sibt Ibn al-Jawzi (1186-1256)
publicou uma volumosa história universal intitulada Miraat az-zaman
(«O espelho do tempo»), da qual apenas se publicaram alguns
fragmentos.
Sobre a espantosa personagem que é o imperador, ler, de
Benoist-Meschin, Frédéric de Hohenstaufen ou le rêve excommunié,
Perrin, Paris, 1980.

Capítulo XIII

Para uma história dos Mongóis, ver R. Grousset, L’Empire des


steppes, Payot, Paris, 1939. A troca de cartas entre Luís IX e Ayyub
é referida pelo cronista egípcio al-Maqrizi (1364-1442).
Diplomata e homem de leis, Jamaleddin Ibn Wassel (1207-1298)
deixou uma crónica do período aiúbida e do início da era mameluca.
Segundo sabemos, a sua obra nunca foi editada, embora existam
citações e traduções fragmentárias em Michaud e Grabieli, op. cit.
Após a destruição de Alamut, a seita dos Assassinos perpetuou-
se sob uma forma o mais pacífica possível: os ismaelitas, adeptos
do Aga Khan, acerca do qual se esquece por vezes de dizer que é o
sucessor em linha directa de Hassan as-Sabbah.
A versão aqui apresentada da morte de Aibek e Chajarat-ad-dorr
é a de uma epopeia popular medieval, Sirat al-malek az-zaher
Baibars, As-sakafiya, Beirute.

Capítulo XIV

Secretário dos sultões Baibars e Qalaun, o cronista egípcio Ibn


Abd el-Zaher (1223-1293) teve a pouca sorte de ver a sua principal
obra, A Vida de Baibars, resumida por um sobrinho ignorante que só
nos legou um texto truncado e insípido. Os escassos fragmentos
que nos chegaram da obra original revelam um verdadeiro talento
de escritor e de historiador.
De todos os cronistas e historiadores árabes que citamos, Abul-
Fida (1273-1331) foi o único que governou um Estado: é certo que
este emirado de Hama era minúsculo, o que permitia ao emir
aiúbida dedicar o essencial do seu tempo às obras, entre as quais
Mukhtassar tarikh al-bachar «Resumo da História da Humanidade».
O seu texto, original e tradução, pode ser consultado no Recueil des
historiens des croisades, já citado.
Conquanto a dominação ocidental sobre Trípolis tenha chegado
ao fim em 1289, subsistiram até aos nossos dias numerosos nomes
de origem franca, tanto na cidade como nas regiões vizinhas: Anjul
(Anju), Dueihy (de Douai), Dekiz (de Guise), Dabliz (de Blise),
Chanbur (Chambord), Chanfur (Chamfort), Franjieh (Franca).
Antes de concluir esta rápida análise das fontes, citemos ainda:
Z. Oldenbourg, Les Croisades, Gallimard, Paris, 1965. Uma
narrativa de sensibilidade cristã oriental. R. Pernoud, Les Hommes
des croisades, Tallandier, Paris, 1977. J. Sauvaget, Historiens
Árabes, Adrien-Maisonneuve, Paris, 1946.
Cronologia

Antes da invasão

622: Emigração – Hégira – do profeta Maomé, de Meca para


Medina; início da era muçulmana.
638: O califa Omar toma Jerusalém. Séculos VII e VIII: os Árabes
constroem um imenso império, que se estende do Indo aos
Pirenéus.
809: Morte do califa Hárune Arraxide; império árabe no seu
apogeu. Século X: Embora a sua civilização continue
fluorescente, os Árabes entram em decadência política. Os seus
califas perderam o poder em proveito dos militares persas e
turcos.
1055: Os Turcos Seljúcidas assenhoreiam-se de Bagdad.
1071: Os Seljúcidas esmagam os Bizantinos em Malazgerd e
apoderam-se da Ásia Menor. Não tardam a controlar todo o
Oriente muçulmano, à excepção do Egipto.

A Invasão

1096: Kilij Arslan, sultão de Niceia, desbarata um exército de


invasão franco chefiado por Pedro, o Eremita.
1097: Primeira grande expedição franca. Niceia é tomada e Kilij
Arslan é vencido em Dorileu.
1098: Os Franj tomam Edessa e depois Antioquia, e triunfam de
um exército de socorro muçulmano comandado por Karbuka,
senhor de Mossul. Casos de canibalismo em Maara.
1099: Queda de Jerusalém, a que se seguem massacres e
pilhagens. Debandada de um exército de socorro egípcio. O cádi
de Damasco, al-Harawi, dirige-se a Bagdad à cabeça de uma
delegação de refugiados para denunciar a inacção dos chefes
muçulmanos perante a invasão.

A Ocupação

1100: Balduíno, conde de Edessa, escapa a uma emboscada


perto de Beirute e proclama-se rei de Jerusalém.
1104: Vitória muçulmana em Harran, que trava a progressão
franca para o leste.
1108: Curiosa batalha perto de Tel-Bacher: defrontam-se duas
coligações islamo-francas.
1109: Queda de Trípolis após dois mil dias de cerco.
1110: Queda de Beirute e de Saida.
1111: O cádi de Alepo, Ibn al-Khachad, organiza um motim
contra o califa em Bagdad para exigir uma intervenção contra a
ocupação franca.
1112: Resistência vitoriosa dos Tírios.
1115: Aliança dos príncipes muçulmanos e francos da Síria
contra um exército enviado pelo sultão.
1119: Ilghazi, senhor de Alepo, esmaga os Franj em Sarmanda.
1124: Os Franj apoderam-se de Tiro: ocupam doravante toda a
costa, à excepção de Áscalon.
1125: Ibn al-Khachab é morto pelos Assassinos.
A Resposta

1128: Malogro de uma arremetida dos Franj contra Damasco.


Zinki senhor de Alepo.
1135: Zinki tenta, sem êxito, apoderar-se de Damasco.
1137: Zinki captura Foulque, rei de Jerusalém, depois solta-o.
1138: Zinki inflige um desaire a uma coligação franco-bizantina;
batalha de Chayzar.
1140: Aliança de Damasco e de Jerusalém contra Zinki.
1144: Zinki apodera-se de Edessa, destruindo o primeiro dos
quatro Estados francos do Oriente.
1146: Assassínio de Zinki. Seu filho Nureddin substitui-o em
Alepo.

A Vitória

1148: Derrota diante de Damasco de uma nova expedição franca


chefiada pelo imperador da Alemanha, Conrado, e pelo rei de
França, Luís VII.
1154: Nureddin assume o controlo de Damasco, unificando a
Síria muçulmana sob a sua autoridade.
1163-1169: A luta pelo Egipto. Chirkuh, lugar-tenente de
Nureddin, acaba por levar a melhor. Proclamado vizir, ele morre
ao cabo de dois meses. Sucede-lhe o seu sobrinho Saladino.
1171: Saladino proclama a destituição do califado fatímida. Único
senhor do Egipto, ele entra em conflito com Nureddin.
1174: Morte de Nureddin. Saladino apodera-se de Damasco.
1183: Saladino apodera-se de Alepo. O Egipto e a Síria estão
doravante reunidos sob a sua égide.
1187: Ano da vitória. Saladino esmaga os exércitos francos em
Hittin, perto do lago de Tiberíade. Reconquista Jerusalém e a
maior parte dos territórios francos. Em breve os ocupantes só
conservam Tiro, Trípolis e Antioquia.

A Moratória

1190-1192: Revés de Saladino diante de Acre. A intervenção do


rei de Inglaterra, Ricardo Coração de Leão, permite aos Franj
retomar ao sultão várias cidades, mas não Jerusalém.
1193: Saladino morre em Damasco, aos cinquenta e cinco anos
de idade. Ao cabo de alguns anos de guerra civil, o seu império é
reunificado sob a autoridade de seu irmão al-Adel.
1204: Os Franj apoderam-se de Constantinopla. Saque da
cidade.
1218-1221: Invasão do Egipto pelos Franj. Estes conquistam
Damieta e dirigem-se para o Cairo, mas o sultão al-Kamel, filho
de al-Adel, acaba por rechaçá-los.
1229: Al-Kamel entrega Jerusalém ao imperador Frederico II de
Hohenstaufen, suscitando uma onda de indignação do mundo
árabe.

A Expulsão

1244: Os Franj perdem Jerusalém pela última vez.


1248-1250: Invasão do Egipto pelo rei de França, Luís IX, que é
vencido e capturado. Queda da dinastia aiúbida, substituída
pelos mamelucos.
1258: O chefe mongol Hulagu, neto de Gengiscão, saqueia
Bagdad, massacrando a população e matando o último califa
abássida.
1260: O exército mongol, que acaba de ocupar Alepo e depois
Damasco, é vencido na batalha de Ain Jalut, na Palestina.
Baibars na chefia do sultanato mameluco.
1268: Baibars apodera-se de Antioquia, que se aliara aos
Mongóis. Destruições e massacres.
1270: Luís IX morre perto de Tunes no decurso de uma invasão
falhada.
1289: O sultão mameluco Qalaun apodera-se de Trípolis. 1291:
O sultão Khalil, filho de Qalaun, toma Acre, pondo termo a dois
séculos de presença franca no Oriente.
Índice Onomástico

Abaga
Abaq
Abássidas
Abu-Bakr
Abu-Firas
Abul-Ala al-Maari
Abul-Faraj Basílio
Abul-Fidas
Abu-Saad al-Harawi (ver Al-Harawi) Abu-Taher
Agca, Mehemet Ali
Aibek
Ailba
Ain Jalut
Aiúbidas
Al-Achraf
Al-Adel
Al-Afdal Chahinchah
Al-Aziz
Al-Borsoki
Al-Dawlahi
Al-Fadil
Al-Findalawi
Al-Halhuli
Al-Harawi
Al-Kamel
Al-Malik al-Afdal (filho de Saladino)
Al-Malik al-Muzaffar
Al-Mazdaghani
Al- Moazzam
Al-Mustansir
Al-Mustarchid
Al-Mustazhir
Al-Mutassim
Al-Muzaffar (Al Malik)
Alberto de Aix
Aleixo Comneno
Alexandre Magno
Alix
Alp Arslan
Amaury
An-Nasser
Aqtai
Arghun (o ilkkhan)
Aristóteles
Arnat (ver Reinaldo de Châtillon)
As-Saleh (filho de Nureddin)
Ayyub (filho de Al-Kamel)
Ayyub (pai de Saladino)
Dandolo
Danishmend
Dirgham
Diyaeddin (ver Ibn al-Athir)
Dukak
Baal
Badr el-Jamali
Bahaeddin
Bahram
Baibars
Balak
Balduíno de Flandres
Balduíno I
Balduíno II
Balduíno III
Balduíno IV
Balduíno V
Balian d’Ibelin
Banias
Banu Ammar
Barkyaruk
Batit, Yussef
Boemundo I
Boemundo II
Boemundo III
Boemundo IV
Cerdanha (Conde de)
Chajarat-ad-Dorr
Chams ad-Dawla
Chams al-Khilafa
Chamseddin
Charaf
Chawer
Chirkuh
Conrado de Montferrat
Constança

Fakhreddin Ibn ach-Cheikh


Fakhr el-Mulk
Fatimidas
Filipe Augusto
Filipe IV
Firuz
Foulque de Anjou
Frederico Barba Roxa
Frederico de Hohenstaufen (Frederico II)

Gengiscão
Ghazi
Godofredo de Bulhão
Guido de Lusignan

Habib-an-Najjar
Hárune Arraxide
Hassan as-Sabbah
Henrique de Champanha
Henrique (rei franco)
Hetum
Hittin
Hugo do Puiset
Hulagu

Ibn Abd-el-Zaher
Ibn al-Athir
Ibn al-Athir (Diyaeddin)
Ibn al-Khachab
Ibn Al Qalanissi
Ibn al-Waqqar (médico)
Ibn Ammar
Ibn Jobair
Ibn Muqidh
Ibn Saint-Gilles (ver Saint-Gilles)
Ibn Wassel
Iftikhar ad-Dawla
Ilghazi
Imadeddin al-Asfahani
Iolanda de Brienne
Ismael

Jalal el-Mulk
Janah ad-Dawla
Jawali
Jekermich
João Comneno
João de Brienne
João Paulo II
Jobair (ver Ibn Jobair)
Jocelin I
Jocelin II

Kamaleddin
Karbuka
Khalil (filho de Chajarat-ad-dorr)
Khalil (filho de Qalaun)
Kilij Arslan
Kilij Arslan II
Kitbuka
Kublai

Luís VII
Luís IX
Lulu, 110

Mamude
Manbij
Manuel (filho de João Comneno)
Maomé
Massud (irmão de Mamude)
Massud (filho de Kilij Arslan)
Mawdud
Mélisande
Moamed Ibn Malikshah
Moamed Ibn Sultan
Mohieddin Ibn Al-Zaki
Moinuddin Unar (ver Unar)
Mongka Khan
Mongóis
Morri (ver Amaury)
Munquiditas
Mussa Ibn Maimnu (médico)

Nabucodonosor
Nassara (discípulos do Nazareno)
Nasser (presidente)
Nizam el-Mulk
Nizar
Nureddin (filho de Zinki)

Omar al-Khayyam
Omar Ibn al-Khattab
Ortok

Pedro, o Eremita
Pelágio

Qalaun
Qutuz

Rachideddin Sinan
Raimundo de Antioquia
Raimundo III de Trípolis (filho de Saint-Gilles)
Ramsés II
Raul de Caen
Redwan
Reinaldo de Châtillon
Ricardo Coração de Leão
Rogério de Antioquia
Roussel de Bailleul

Sigurdo
Sirjal (ver Rogério de Antioquia) Sokman
Solimão (pai de Kilij Arslan)
Solimão (filho de Kilij Arslan)
Sultan Ibn Munqidh
Sunitas

Tafures
Tahir al-Mazdaghani
Takieddin (sobrinho de Saladino)
Tancredo
Tártaros (ver Mongóis)
Tchaka
Thabet (médico)
Thoros
Timurtach
Toghtekin
Turanshah

Sadat (Presidente)
Saifeddin
Saint-Gilles
Saladino
Samuel (profeta)
São Jorge
Sawinj (filho de Buri)
Seljúcidas
Septímio Severo
Sibt Ibn Al-Jawzi

Um Khalil (ver Chajarat-ad-Dorr) Unar


Ussama Ibn Munqidh

Xiitas

Yaghi Siyan
Yarankach (eunuco de Zinki)
Yussef (ver Saladino)

Zinki
Zomorrod
Índice

PREÂMBULO

PRÓLOGO
Bagdad, Agosto de 1099

Primeira Parte – A INVASÃO (1096-1100)


Capítulo I – CHEGAM OS FRANJ
Capítulo II – UM MALDITO FABRICANTE DE COURAÇAS
Capítulo III – OS CANIBAIS DE MAARA

Segunda Parte – A OCUPAÇÃO (1100-1128)


Capítulo IV – OS DOIS MIL DIAS DE TRÍPOLIS
Capítulo V – UM RESISTENTE DE TURBANTE

Terceira Parte – A RESPOSTA (1128-1146)


Capítulo VI – AS CONJURAS DE DAMASCO
Capítulo VII – UM EMIR ENTRE OS BÁRBAROS

Quarta Parte – A VITÓRIA (1146-1187)


Capítulo VIII – O SANTO REI NUREDINN
Capítulo IX – A CORRIDA PARA O NILO
Capítulo X – AS LÁGRIMAS DE SALADINO
Quinta Parte – A MORATÓRIA (1187-1244)
Capítulo XI – O ENCONTRO IMPOSSÍVEL
Capítulo XII – O JUSTO E O PERFEITO

Sexta Parte – A EXPULSÃO (1224-1291)


Capítulo XIII – O CASTIGO MONGOL
Capítulo XIV – QUEIRA DEUS QUE ELES NUNCA MAIS AQUI
PONHAM OS PÉS!

EPÍLOGO

NOTAS E FONTES

PRÓLOGO

CRONOLOGIA

ÍNDICE ONOMÁSTICO

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