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Andrômeda

Posted originally on the Archive of Our Own at http://archiveofourown.org/works/40568667.

Rating: Explicit
Archive Warning: Graphic Depictions Of Violence, Major Character Death, No Archive
Warnings Apply, Rape/Non-Con
Category: M/M
Fandom: One Direction (Band)
Relationship: Harry Styles/Louis Tomlinson
Character: Louis Tomlinson, Harry Styles, Original Styles-Tomlinson Child(ren),
Liam Payne, Niall Horan, Zayn Malik, Gemma Styles, Anne Cox, Luke
Hemmings, Michael Clifford, Ashton Irwin, Mitch Rowland, Sarah Jones
(One Direction), Jay Tomlinson, Original Malik Child(ren)
Additional Tags: louis detetive, Momrry, drama policial, DarkRomance, Darkfic, Deathfic,
multiplaspersonalidades, TDI, harrytdi, canibal, Mutilação, Tortura,
Terror, terrorpsicológico, hbottom, Ltops, longfic, Gatilhos,
abusopsicologico, abusosexual, hazzmoranguete
Language: Português brasileiro
Stats: Published: 2022-07-25 Completed: 2022-07-27 Chapters: 31/31 Words:
190086

Andrômeda
by hazzmoranguete

Summary

Louis Tomlinson era um dos mais renomados detetives do FBI e tudo isso graças a sua
ficha impressionante de casos resolvidos, porém nos últimos dois anos o brilhante detetive
se via preso no mesmo caso: Um assassino em série que vinha propagando o terror na
cidade de Nova York e que para todos parecia inalcançável, mas não para Louis, que
pretendia capturá-lo nem que sua vida dependesse disso. Ele só não podia imaginar que o
monstro sanguinário que tanto caçava dividia sua cama e o chamava de querido.

© 23/09/2018 - 30/05/2021
prologue

2026, Sede do FBI, Washington;

Niall encarava a multidão a sua frente. Eles tem dificuldades para encontrar seus lugares, para
permanecer neles e principalmente manter as bocas fechadas.

Em poucos minutos, aquilo se tornou o caos. Não demoraria até que o diretor subisse até lá e desse
um basta ao projeto que mal se iniciou.

Com um suspiro cansado, o rapaz de cabelos castanhos e sotaque forte dá um passo a frente, os
polegares se enganchado nas laterais do cinto, onde o distintivo reluz na fivela em seu brilho
dourado com a camisa preta de manga curta agarrando-se aos músculos de seu corpo bem moldado,
ostentando as iniciais da maior força policial e investigativa de todo o mundo. Sob a luz rarefeita
do palco do auditório, com olhos espertos e ao mesmo tempo meigos e um sorriso deslumbrante
não parecia difícil aos futuros agentes enxergar o motivo de Horan estampar todos os cartazes e
anúncios do FBI.

Ele aparentava a excelência, a forma gloriosa de um policial. Bonito, imparcial, rígido e correto. O
tipo de cara que te salvaria de todos os perigos sem desmanchar o topete.

— Fiquem quietos ou irei mandar todos de volta para a academia e acreditem que meu relatório
não será nada favorável a vocês, companheiros. — Cortou o burburinho com sua voz alta e
carregada, os jovens rapazes e moças com ambições de crescer dentro da corporação arregalaram
os olhos, e partiram em busca de seus assentos, em silêncio e afoitos.

Ele esperou, pacientemente. Os saltos de seus coturnos bem lustrosos tilintavam contra o assoalho
de madeira conforme caminhava de forma calculada, examinando cada um.

Nunca era fácil motivar alguém nesta fase, muito menos quando ele próprio se sentia bastante
desmotivado.

Não era a mesma coisa sem ele aqui.

Há duas semanas, quando o capitão Bassett veio até ele com o pedido de que ministrasse uma
palestra motivacional aos novos recrutas sua primeira reação foi recusar, afinal, Niall estava há
mais tempo do que se lembrava na parte burocrática, seduzir os recrutas era função dos agentes.
Aqueles que viviam os perigos das ruas e as atrocidades mundanas, porém, ele não pôde recusar.

Quando chegou em casa passou horas e horas encarando o pé descascado da mesa, o sofá
remendado graças as garras afiadas de Penny e ouvindo a respiração suave, quase na mais completa
paz de Hailee no outro quarto. Niall empurrou a porta com cuidado e admirou a noiva dormindo
serena e profundamente, as cortinas afastadas permitiam que a luz lunar invadisse seu quarto e
caísse sobre seu corpo e ela era uma visão e tanto.

Casamento.

Filhos.

Felicidade.

Foi impressionante como essas três palavras ao passarem por sua mente automaticamente deram-
lhe o rumo para o que fazer. Não era exatamente correto ou aconselhável, mas ele se arriscou a ir
ao seu superior com essa proposta que depois de muito relutar acabou por aceitar.

Niall sabia que a melhor forma de chegar a esses garotos não era com filmes mostrando a
excelência do FBI, homens fortes pegando em armas ou mulheres rendendo bandidos e fazendo a
justiça acontecer. Não era nada disso, infelizmente nas outras salas era tudo o que eles viam. O FBI
era vendido como a mais absoluta perfeição, com seus agentes que estavam mais para máquinas de
combate resolvendo casos insolucionáveis e isso apenas enraizava uma ideia completamente
errada. Horan acreditava que as coisas eram assim e talvez acreditaria até hoje se não tivesse visto
o que viu, melhor, se não tivesse vivido tudo aquilo de perto.

Às vezes o lado feio das coisas precisa ser mostrado.

O silêncio entre os recrutas finalmente chegou.

— Obrigado pela cooperação. — Disse com um pequeno sorriso nos lábios — Antes de
começarmos gostaria de saber, alguém aqui sabe o que foi o caso Andrômeda?

Só de dizer tal nome sentia a nostalgia o abater.

Uma moça franzina, de cabelos curtos e vermelhos levantou a mão. Connie, se não estava
enganado.

— Foi um caso que mobilizou grande parte dos detetives de Nova York na época, devido ao
grande e constante número de assassinatos. Suspeitavam se tratar de uma seita ou bando, até vir a
confirmação de que se tratava de uma única pessoa, mas não se sabia se era homem ou mulher. A
androgenia do suspeito atrapalhou bastante nas investigações e o nome Andrômeda se deu pelo fato
do serial killer usar correntes para esganar as vítimas antes de estripa-las.

— Muito bem, Connie. Excelente resposta, todos estão cientes que saber o sexo do suspeito ajuda
bastante e nesse caso era uma verdadeira charada. Não tínhamos sexo, não tínhamos testemunhas,
sobreviventes e consequentemente suspeitos. O caso era insolucionável e deveria ter sido fechado.

— Mas não foi... — Uma voz tímida concluiu antes de Niall.

— Não. — Ele concordou, sinalizando para que seu assistente começasse a passar os slides, o
primeiro sendo a foto de uma menina de longos cabelos castanhos ondulados, rosto redondo, nariz
empinado e olhos azuis — Quem pode me dizer quem é está menina?

Chace levantou a mão.

— Evangeline Anne Tomlinson, ou apenas Eve como ficou popularmente conhecida após ter sido
covardemente morta em uma emboscada, aos oito anos de idade.

Os desinformados arregalaram os olhos e grunhiram em espanto. Eram tão inocentes, mal sabiam
eles que isso era uma das coisas mais comuns na rotina de um detetive.

O detetive Horan tornou a andar pelo palanque, sempre olhando com atenção cada rosto. Falando
com cada um, exatamente como ele fazia.

— A morte dessa criança é dada como um dos maiores agravantes para o deslanchar daquela
trágica história que todos nós conhecemos. — Suspirou — Os culpados pela morte de Eve nunca
foram encontrados, a investigação não andou por mais de três anos até por fim ser arquivada. Ela
era a filha mais velha do detetive Louis William Tomlinson, conhecem?

Assentiram prontamente.
— Então sabem que ele era uma lenda. O melhor daquela época e não ter uma conclusão era
inadmissível para um homem como ele, muitos dizem que o fato do caso de Evangeline ter sido
fechado o levou a perseguição doentia pela resolução do caso Andrômeda, o qual lhe havia sido
entregue quando não passavam de cinco homicídios. E todos sabem que por dois anos Louis não
conseguiu pegá-lo e aqueles cinco homicídios evoluíram para o número alarmante de setenta e
cinco assassinatos.

Um novo slide foi passado, desta vez uma foto de família. Dois homens e dois bebês, com traços
semelhantes aos dos adultos.

— Está é a família Tomlinson, todos devem ter conhecido bem antes de estarem aqui, creio eu, no
jornal, nas revistas, livros ou até nos filmes mais recentes. Os gêmeos de apenas dois anos, Spencer
e Blake ficaram no olho do furacão quando o caso deslanchou, eles perderam seu lar, perderam
seus pais. Louis perdeu o marido e Harry... bem, Harry perdeu absolutamente tudo. No final
daquele ano, a família Tomlinson estava extinta o que é trágico se comparado ao início do mesmo,
quando eles estavam passeando no parque, tomando sorvete e comemorando a chegada de um novo
bebê. — Niall faz uma pausa, esfregando a testa e sentindo o coração pesado. Ele volta a encarar a
platéia — Ser um policial não é uma decisão fácil, provavelmente estão aqui porque querem
desvendar os casos mais difíceis, capturar os bandidos perigosos, fazer deste um mundo sem
violência e se tornarem os grandes heróis do amanhã, mas não é por aí. Nós não somos super
heróis e não temos poder para limpar toda essa sujeira, ser detetive na maioria das vezes é um
inferno e talvez, bem de vez em quando, você consegue solucionar um crime e salvar alguém, mas
isso não é heroísmo, é o seu trabalho. Antes que vocês embarquem neste navio afundando quero
que se lembrem que acima de ser pai, mãe, amigo, amante ou o que for, nós somos policiais, e
nosso dever é e sempre será com a justiça. O distintivo precisa pesar mais do que nossos
sentimentos. Doa o que doer. Gwen, poderia nos falar um pouco mais sobre o detetive Tomlinson?

Gwen saltou de sua cadeira, com as cópias das fichas criminais abertas em sua mesa e olhando de
soslaio para as letras embaralhadas, limpou a garganta em uma tosse nervosa.

— O detetive Louis Tomlinson sempre teve muito destaque, primeiro em sua vida acadêmica e
depois ao ingressar na academia, seguindo os passos do seu pai, o capitão Mark Tomlinson. Ele
passou com todas as honrarias e foi convidado a se juntar ao FBI, atuando inicialmente no combate
ao tráfico e depois sendo promovido ao departamento de investigação, onde logo na primeira
semana desvendou quatro casos e foi tido como o melhor agente. Diziam que os sentidos mais
apurados, como a visão, olfato e audição era o que o levavam a agir quase como um cão de caça
atrás dos criminosos, mas após a morte da filha ele mudou... Drasticamente.

Niall balançou a cabeça, concordando com cada palavra sendo dita e novamente a imagem no slide
foi mudada, desta vez se tratando de uma transmissão ao vivo. Os recrutas se inclinaram para a
frente, afim de reconhecer o local.

— Este é o Sanatório W. Lincoln em Atlanta.

— É onde o... — O menino não conseguiu terminar, pois seu queixo caiu no instante em que as
paredes brancas e as janelas gradeadas foram cobertas pela figura de um homem se sentando a
mesa, diante da câmera. Grossas algemas envelopando seus pulsos com firmeza, o corpo magro
sendo coberto pelo uniforme do sanatório, cabelos desgrenhados e oleosos caindo sobre o rosto
fantasmagórico, com olhos fundos e diversos cortes profundos e tenebrosos poluindo a face.
Completamente desfigurado.

Ele soprou uma mecha longa que caíra em frente ao olho esquerdo, de um anil profundo, quase
negro, sem brilho, apenas escuridão.
Um maço de cigarros estava ao alcance de suas mãos e os espectadores não puderam deixar de
notar que ele tinha menos dedos e a lateral do seu pescoço estava em carne viva.

— Oh meu deus! — Alguém gemeu no meio da platéia.

Louis sorriu, dentes pequenos e afiados, como de um animal raivoso, umidecendo os lábios apenas
para exibir a língua bifurcada – a obra sendo mérito seu – antes de colocar o cigarro entre os lábios
e o acender.

— Eu já fui bem mais bonito do que isso... Mas coisas aconteceram e eu fiquei assim, tenham a
certeza de que o outro cara ficou bem pior. — Deu um longo trago, soprando a fumaça na lente da
câmera e erguendo os olhos, as manchas escuras abaixo deles ficando ainda mais evidentes.

Pareciam feitas de carvão.

— Senhor Tomlinson, obrigado por aceitar conversar conosco. — Niall se pronuncia, virando-se
para os recrutas — Como combinamos vocês podem fazer perguntas ao detetive, desde que seja de
forma organiza... — Antes que ele terminasse o borburinho já havia retornado com uma enxurrada
de:

"Você é louco, agora?"

"O que aconteceram com seus filhos?"

"Você suspeitava do Harry?"

"Eram cúmplices?"

— Eu disse de forma organizada! - Horan elevou a voz.

— Que bela turma temos aqui, Irlanda. — Louis cantarolou, apagando o cigarro no próprio pulso.
E foi como se uma nuvem negra tivesse repousado acima de sua cabeça, pois de um momento para
o outro ele parecia sombrio e maníaco, as bochechas rasgadas se comprimindo para dar espaço ao
sorriso largo e sinistro. Não havia dúvidas de que ele também era louco, a pergunta era como isso
se deu? — São muitas perguntas, todas muito boas e eu pretendo responder, no meu ritmo, é claro.
— Olhou para o grilhões no pulso, como se fosse um relógio — Mas terei de ser breve, preciso ir
buscar as crianças na crechê e o Harry no salão.

Não havia relógio.

Não havia Harry ou crianças.

E definitivamente não havia lugar para ir.

— Eu posso fazer uma pergunta? — Gwen se manifestou. Nervosa.

Niall assentiu e pediu que ela desse um passo a frente.

— Senhor Tomlinson, nós lemos muitas notícias e vimos reportagens, mas acredito que nenhuma
condiz com a verdade. Então, em nome de todos aqui, eu pergunto, como um agente especial, com
o seu talento e prestígio... Foi parar aí?

Um tremor, quase que imperceptível passou por seus olhos, nem o próprio Louis percebeu. Apenas
Niall.

— Não é difícil descobrir, a linha é tênue entre o perseguidor e o perseguido, assim como a
sanidade, da loucura. Eu fui um grande homem, o melhor que eu conheci. Fiz tudo certo, comprei
uma casa, um carro, tive filhos, um marido que eu amava mais do que tudo e era bom no que fazia.
Mas nem sempre isso é suficiente... Quando somos detetives estamos tão cansados de estar alerta o
tempo todo que quando chegamos em casa simplesmente baixamos a guarda, sem saber que a
nossa ruína, nosso maior inimigo está crescendo bem diante dos nossos olhos, que fazemos questão
de manter cegos. Eu pelo menos me mantive assim, por tempo demais.

— Como assim?

— Bom, eu posso contar a história para vocês. Estão interessados em ouvir?

Gwen comprimiu os lábios, olhando para os seus colegas, tão hesitantes quanto a própria.

— É uma história de terror?

Tomlinson foi deixando o sorriso morrer e ele conseguia ficar ainda mais bizarro sem ele,
aproximando o rosto da câmera e na tela imensa que tomava uma parede inteira do auditório o
rosto de Louis era como o de um demônio feroz que os media antes de executar. Seu rosto outrora
belo e toda a razão e lógica que permeavam suas ideias, tudo isso se foi e aquele remendo de gente,
causava apenas medo nos recrutas. Eles temiam ficar daquele jeito e temiam bem mais saber como
aquilo se deu.

O silêncio se perpetuou. Apenas as respirações entrecortadas e o som áspero das unhas de Louis
raspando as correntes, o rompendo ocasionalmente.

— Pior... É uma história de amor, do mais doentio e destrutivo dos sentimentos e da razão. —
Soprou com asco — É melhor que se sentem, isso pode demorar e se ficarem enjoados, é melhor
segurar, porque terão de me ouvir até o final.

E vendo as expressões espantadas e congeladas, o sorriso mórbido voltou a nascer em seus lábios
ressecados.

Ouvindo uma voz rouca sussurrando em seu ouvido:

— Vamos contar a eles, Lou.


│1 │andrômeda

2018, Manhattan, Nova York;

Meu corpo parecia estranhamente leve naquela morna manhã de quarta-feira. Depois da chuva
torrencial da noite anterior que me rendeu boas horas perdidas no trânsito e uma discussão longa
assim que cheguei em casa sem ter me dado ao trabalho de ligar avisando o motivo do meu atraso,
o tempo pareceu dar uma trégua e nos abençoar com um começo de dia agradável.

Era uma luz trêmula e com nuances de amarelo e laranja, a brisa lenta se esgueirava por entre as
frestas da janela movendo com leveza as persianas claras e deitando-se sobre as costas nuas e
expostas de Harry.

Meus dedos da mão direita, deslizavam em um carinho singelo pela pele alva e aveludada, sorrindo
a cada frágil estremecer de sua parte quando delineava as vértebras de sua coluna. O lençol cobria
apenas sua região lombar, já que sua perna fora descoberta quando enganchou uma delas em meus
quadris e me abraçou com fervor, o rosto se enterrara na curva do meu pescoço e os cabelos vez ou
outra me asfixiavam durante a noite, mas foi um alívio quando em meio a madrugada seu corpo
começou a perseguir o meu, embora tivéssemos ido dormir brigados.

Sua respiração ressonava baixinho contra a minha pele e eu apenas me permitia desfrutar daquele
momento delicado, em que o mundo estava em silêncio e parecia não haver ninguém mais nele,
além de nós dois.

Fechei meus olhos, afundando o nariz nos fios emaranhados, aspirando o cheiro doce de morango
que emanava deles e estava a beira de cair no sono novamente quando um ruído choroso ecoou por
todo o quarto. Agarrei a babá eletrônica da mesa de cabeceira, deslizando cuidadosamente para
fora da cama, sem acordar meu marido e corri em direção ao quarto das crianças. O abajur de
algum personagem animado que eu não me dei ao trabalho de descobrir o nome estava ligado,
iluminando o rosto inchado e banhado em lágrimas de Spencer que estava em pé no berço com a
chupeta na boca.

— Calma, bebê, o papai já está aqui. Não precisa chorar, amor. — Fui até ele o pegando em meus
braços e o acalmando. Depois de mamar e trocar a fralda, Spencer voltou a dormir. O aconcheguei
em seu berço, checando se Blake ainda dormia e ele continuava em seu sono profundo e
inabalável.

O mundo poderia desabar e ele continuaria a dormir plenamente.

Passei pelo quarto, apenas para vestir uma camiseta e escovar os dentes. Harry ainda dormia.
Resolvi que seria um bom pedido de desculpas se fizesse um Black Tea para nós e quem sabe,
conseguir uma rapidinha – coisa rara depois de doze anos de relacionamento e uma dupla de bebês
– , contudo, eu mantinha minhas esperanças bastante vivas. Enquanto a água fervia na chaleira,
aproveitei para ler o jornal, torcendo o nariz para as matérias sobre acidentes nas estradas, ao que
parece as ruas de Chicago andam uma grande merda e ninguém move um dedo para solucionar o
problema.

Após despejar as bolsas de chá no lixo da cozinha e acrescentar alguns goles de leite em ambas as
canecas retorno ao nosso quarto, cantarolando junto com os pássaros, empurro a porta com o
ombro e preciso firmar o aperto nas canecas para não deixa-las escorregar quando avisto Harry,
ajoelhado, com as mãos apoiadas nas portas de madeira do closet, em um dos seus exercícios que
só ele entende pra que servem, já que aos meus olhos soa como um belo convite, ao que meu
marido se encontra basicamente de quatro, com as pernas afastadas e completamente nu, o que me
permite ter a sua entrada exposta em minha direção e daqui ela parece tão pequena e apetitosa.

— Spencer fez cocô? — A voz grave e rouca ecoa, seu rosto está entre os braços estendidos.
Confirmo em meio ao pigarreio, incapaz de pensar em algo além de enterrar meu pau naquele
espaço apertado — Estava duro ou mole? Ele anda meio ressecado, você deu água pra ele?

E em meio a essa conversa nada estimulante sinto minha ereção se esvair antes mesmo de se
formar. Triste!

— Pra mim era só cocô mesmo, querido. Fedorento e nojento. — Dou de ombros deixando seu chá
na cômoda e me sentando na beirada da cama, checando meu celular.

Mais de trinta mensagens de Sarah me lembrando da palestra com os novos recrutas.

É tão chato e sempre jogam isso pra mim.

Escuto de relance alguns passos, a porta do banheiro sendo batida e o som do chuveiro misturado
com uma cantoria aleatória do lado de dentro e fico absorto tempo o suficiente para me
surpreender quando Harry sai, já de banho tomado, com uma toalha enrolada na cabeça e um robe
curto e vermelho abraçando seu corpo. Ele se inclina sobre o móvel, bebericando seu chá e isso
definitivamente é melhor do que trabalho.

Esqueço o celular, juntamente com o chá e vou para trás dele, abraçando sua cintura e afundando o
rosto em seu pescoço, sentindo-o mover os quadris preguiçosamente.

— Bom dia, babe. — Harry ronrona contra a porcelana da caneca.

O aroma do líquido fumegante misturando-se ao seu perfume natural.

— As crianças estão dormindo e eu tenho exatos vinte e dois minutos antes de ficar atrasado de
verdade.

Meus dedos correm pela seda macia, esfregando-a apenas para poder sentir a carne sendo apertada
por minhas mãos apressadas e lhe arrancando suspiros engasgados.

— Não, ainda estou chateado com você.

— Mas eu pedi desculpas. — Teimo, lambendo seu lóbulo e praticamente esmagando meu pênis
coberto contra suas nádegas.

— Não é o bastante, você foi.... Hm, um...um garoto muito mau.

Assisto seu sorriso desdenhoso e deslizo a mão para debaixo do hobby, apanhando seu membro
duro e com a outra puxo a toalha, fazendo seus cabelos úmidos se desenrolarem em cachos longos
batendo abaixo de seus ombros e ele parece cada dia mais delicioso.

— Pode me punir se quiser. — Mordo seu pescoço e ele arfa, por um momento eu acredito ser o
causador disso, até que afasta minhas mãos e corre para o banheiro com a mão em frente a boca. A
porta não inibe o som e eu sei que uma rapidinha matutina está fora de cogitação.

Ah, o milagre da gravidez.

Recolho nossas xícaras e assim que me encontro no corredor tropeço no cágado – bicho idiota que
Harry resolveu comprar para os meninos, com a desculpa de querer que eles conheçam animais.
Como se dois gatos e um cachorro não fossem o suficiente – , a porcelana se espatifa no chão, eu
xingo, Harry grita do banheiro e os gêmeos começam a chorar no quarto ao mesmo tempo que o
relógio começa a ressoar no despertador.

Xx

A manhã se inicia do pior jeito possível, ou seja, comigo tendo de amassar frutas e recebendo
chupetas e cuspe na cara toda vez que me atrevo a aproximar a colherzinha da boca de Spencer. Ele
é um garoto muito, muito, muito difícil. Ambos podem ter o rosto idêntico ao meu, mas essa
teimosia dele só pode vir do Harry, tem que vir dele.

Acabo deixando que ele devore um pote de biscoitos de chocolate, pouco me fodendo para a sua
prisão de ventre, enquanto fica passando seu carrinho pelas portas do armário.

Blake, sendo um anjo, como sempre. Come tudo direitinho e fica quieto ao colorir seu livro de
desenhos, ambos já estão trocados e com as mochilas prontas para irem para a crechê, assim como
eu também uso minhas calças, camisa e sapatos sociais, a gravata deve estar perdida em algum
lugar do carro junto com o distintivo. Meus cabelos estão penteados para trás, com uma mecha
teimosa caindo em frente ao meu olho esquerdo e eu desisto de tentar arrumar. Apenas dou um
jeito na louça, a guardando e fingindo não ver as contas com valores absurdos dos cartões de
crédito do meu marido estrategicamente escondidas dentro de uma lata de leite vazia dos meninos.

O que é simplesmente ridículo, uma vez que ele é casado com um detetive. É claro que não pode,
tampouco consegue, esconder algo de mim.

O relógio da cozinha está marcando 8h20min quando Harry desce os degraus de dois em dois,
repetindo que está atrasado e Spencer se põe a imita-lo e segui-lo por toda a parte com seu
topetinho liso desmanchando.

— Qual é, Spen? Eu levei uma vida pra arrumar seu cabelo e você está estragando tudo. —
Reclamo, ajoelhando a sua frente e tentando ajeitar seus cabelos, mas ele só quer saber de tentar
correr atrás de Harry e quando eu não deixo ele começa a chorar – lê-se berrar, mesmo.

Tomlinson para de zanzar de um lado para o outro e pega o filho no colo, que logo se entretém em
brincar com os botões de sua camisa estampada e transparente combinada com uma dos Rolling
Stones totalmente desbotada, a única coisa que daria pra salvar ali seria o jeans escuro, nem mesmo
o óculos no topo de sua cabeça está em ordem. Harry, como normalmente, está uma verdadeira
bagunça essa manhã.

Mesmo assim ele consegue arrumar sua pasta e tomar café, dando o celular para Spencer que fica
imediatamente hipnotizado, sentando-se no sofá e Blake corre para o seu lado, dois pares de
olhinhos azuis incapazes de piscar.

— Semana passada você disse que o celular mata os neurônios deles. — Comento apoiando o
quadril na ilha da cozinha e dando uma mordida em uma maçã.

— De vez em quando não dá nada. — Responde meio perdido, batendo as gavetas — Você viu o
bilhete que a professora mandou? Era alguma coisa que precisava assinar, mas eu não lembro onde
coloquei.

— Não, eu estou em casa tipo da uma da madrugada até às oito e meia da manhã, nem sabia que
eles tinham caderno.

— É claro que eles tem! Oh, meu deus! Não acredito que estamos fazendo isso de novo, é loucura.
— Ele geme, colocando as mãos em cada lado do rosto — Eu não sei ser pai, não sei nem a onde
eu enfiei essa porra desse bilhete.

Abandono minha maçã no balcão para puxar seu corpo para o meu, ele se aninha a mim como um
gatinho emburrado.

— Você é um ótimo pai, meu amor. Vamos nos sair bem, eu prometo que assim que eu resolver
esse caso vou pedir transferência para a parte burocrática e ter um horário mais flexível, okay? —
Esfrego suas costas e ele ronrona baixinho.

— E o bilhete?

— Quando for deixar as crianças pergunte sobre o que era.

— Certo. Você tomou café direitinho? Comeu o quê? — Afasta o rosto do meu pescoço, ajeitando
o colarinho da minha camisa preta.

— Nada de mais, o que eu queria comer de verdade não me deixaram e eu fiquei na vontade. —
Lamento, alisando seus pulsos.

— Volte antes da madrugada e eu deixo você comer tudo o que quiser. — Sussurra, mordendo os
lábios cheios e vermelhos que mandam uma fisgada direto para a minha virilha.

— Papai, iscoia! — Spencer grita, balançando o celular no ar que desperta, nos lembrando de voltar
a realidade.

O caminho até a creche é cheio de canções educativas sobre respeitar os animais e repetições de
cores, depois de um tempo eu já sei todas, assim como o alfabeto e nunca pensei que isso pudesse
ser tão irritante, mas ainda assim é adorável a forma como Spencer e Blake repetem sem parar,
tentando falar igual a voz da garota no rádio.

Eles não falam tão bem como alguns de seus colegas e não se importam com o fato disso ser algo
comum, afinal, cada um se desenvolve no seu tempo, eles preferem praticar e praticar até acertar.
Só podiam ser Tomlinson's, obviamente.

Mas no meio do caminho eles começam a cochilar e quando estaciono em frente a crechê, ambos
estão dormindo e babando no bebê conforto.

— Tadinhos, se eu não tivesse essa reunião hoje ficaria com eles em casa. — Harry murmura,
apoiando a bochecha no banco para admirar nossas crianças.

— Você não precisa trabalhar, eu já disse.

— Louis, nós já conversamos sobre isso. Eu quero ser independente, ter meu próprio dinheiro.

Mesmo que você não ganhe nem metade do que gasta, eu penso, mas não digo nada. Tenho amor a
vida.

— Certo, gatinho. — Digo, me inclinando para beija-lo quando sinto meu celular vibrando — Um
minuto. — Peço, destravando a tela e atendendo — Fala.

— O auditório está cheio e o Grimshaw já está aqui, cadê você? — Sarah pergunta apressada.

— Hm... No trânsito? — Meu marido me lança um olhar repleto de julgamento e sussurra que vai
levar os meninos, saio para ajudá-lo, segurando Blake e sua mochila, enquanto Harry leva Spencer.
A professora e as auxiliares nos esperam na porta e uma delas pega Blake e suas coisas.

— É sério, Louis, você não pode se atrasar pra esse tipo de coisa. Os chefões vão estar aqui.

— E daí?

— E daí que é melhor você chegar logo antes que me mandem redigir a sua carta de demissão.

Vejo de soslaio Harry conversando com a professora e então se despedem. Provavelmente o bilhete
não era sobre nada em especial.

Ele vem para o meu lado e eu abraço seu quadril e retornamos para o carro.

— Olha, Sarah, não se preocupa, okay? Vou estar aí em dez minutos.

— Okay, se apresse! — Rosna, antes de desligar.

— Tudo bem? — Ele pergunta.

— Tudo ótimo!

A próxima parada é a galeria de artes Expression em Manhattan, Harry tem uma exposição daqui
há alguns dias e há mais de um mês tem vivido única e exclusivamente para isso. Está será a sua
primeira exposição solo e animado é um eufemismo para o seu estado de espírito atual.

Assim que o carro para, ele salta para fora, carregando sua pasta com alguns recortes de coração e
estrelas grudados, obra dos gêmeos mais talentosos da América, obrigado.

Também desço, permanecendo recostado no meu velho SUV preto, indignado por ele nem ao
menos ter me dado um beijinho de despedida e estar correndo para a portaria.

— Ei, Curly! — Grito e por sorte não há mais ninguém na entrada para admirar suas bochechas se
tornando rosadas — Volte aqui e me dê um beijo.

— Louis, eu...

Deslizo para dentro da minha jaqueta com FBI escrito em letras garrafais as minhas costas, o
distintivo no pescoço e o cassetete e a arma bem alocados no cinto. E é claro que eu não resisto em
puxar um óculos escuro do bolso da jaqueta e colocar apenas para incrementar meu visual.

— Louis, não! É detetive Tomlinson e eu mandei você vir aqui, vai desrespeitar uma autoridade?

Ele ri, com suas covinhas adoráveis, ajeitando a alça de sua bolsa rosa no ombro.

— E se eu fizer isso? Se resolver não cooperar? — Provoca, arrastando suas botas marrons em
minha direção.

— Serei obrigado a fazer o uso da força. — Respondo, agarrando sua bunda e o trazendo para
mim, chocando duramente nossos corpos, assim como os lábios que se prendem um ao outro em
um beijo urgente. As mãos delicadas dele acariciam meu pescoço e meus dedos apenas se fecham
com mais aspereza contra um dos lados de sua nádega o que o leva a gemer dolorido contra a
minha boca e essa é a minha deixa para invadi-la com a língua, envolvendo a sua e me deliciando
com seu sabor doce e necessitado.

O sinto se pressionar cada vez com mais fervor em mim e agarro a parte de trás de seus cabelos,
mudando o ângulo do beijo e mordendo seus lábios que se encontram ainda mais vermelhos.
— Tão duro. — Choraminga, pressionando a coxa por entre as minhas pernas.

— É isso o que você faz comigo. — Chupo seu pescoço, me concentrando unicamente no sabor
daquela pele suave até sentir suas unhas beliscando meus ombros — O que houve?

Harry se afasta, passando a mão pelo rosto vermelho e tentando se recompor às pressas, uma vez
que no seu estado todo hormonal ele fica destruído como muita, muita facilidade.

— Não precisamos ficar dando showzinhos no meio da rua.

— Mas não tem ninguém... — Falo olhando ao redor e meus olhos caem em um sujeito estranho
que nos encara descaradamente. Era só o que me faltava.

— Então, eu te vejo mais tarde, tchau! — Se despede constrangido, andando rapidamente em


direção a galeria.

E evidentemente noto a forma como o homem não desvia o olhar e eu percebo que não era a nós
que ele encarava e sim Harry. O observa desaparecer dentro do prédio e então faz menção de
segui-lo e isso é demais para uma homem calmo e paciente como eu.

— Onde você pensa que vai? — Entro em seu caminho, com as mãos na cintura.

O homem é franzino e tem uma aparência terrível, típico daqueles caras que vivem no porão da
mãe, se aproveitando da pensão da coitada enquanto assistem futebol, comem pizza e bebem
cerveja o dia inteiro e nos momentos de solidão ficam se masturbando ao observar pornô sujo e
barato, até gozarem em sua camisa com respingos de molho de macarrão da semana passada.

O que um tipinho desses quer com o meu marido?

— Eu quero falar com... — Responde meio avoado, como se não estivesse consciente de suas
próprias palavras — Pensei que nunca mais fosse achar, mas ela está bem aqui, dentro daquele
prédio...

Ela?

Esse cara só pode estar bêbado.

— Eu preciso daquele corpo, daquela boca em mim de novo.

— O que você disse? — Agarro a gola de sua camisa quando ele faz menção de ir atrás dele.

— Isso não te interessa. — O ogro rosna e ele fede a álcool.

— Escuta bem, miserável, aquele lá dentro é o meu marido. Meu marido, entendeu? Você não
passa de um gambá bêbado, mas é melhor guardar na sua cabecinha oca que você não pode chegar
perto dele, ou sequer olhar pra ele, tá entendendo? Agora some da minha frente!

— Marido, é?

Assinto e ele gargalha de maneira repugnante.

— O metido a bacana é casado com uma puta! — Respiro fundo, ele não sabe o que diz — Uma
puta pervertida que deixa todo mundo passar a mão, o policial não passa de um chifrudo, corno
manso.

O largo, tomando uma pequena distância e sentindo meu sangue borbulhando em minhas veias.
— Sai daqui. — Grito raivoso.

— Não sem antes foder aquela cadelinha. — Ele diz, passando por mim e a única reação que tenho
é envolver seu pescoço com meus dedos e jogá-lo contra o poste mais próximo, batendo sua cabeça
contra o mesmo até que ele pareça tonto e dolorido o bastante para não conseguir se manter em pé,
meus dedos vão se fechando com mais força, sufocando-o e ele se debate no chão.

— Se não estivéssemos em frente a galeria, eu matava você. Hoje foi o seu dia de sorte, mas se eu
ver você perto dele, mais uma vez... Não vou hesitar em descarregar todas as balas do meu
revólver na sua cabeça, desgraçado.

Me afasto, deixando-o levemente desacordado, com meus dígitos marcando sua pele e o rosto
arroxeado.

Talvez eu não seja tão calmo e paciente quanto os outros pensam.

Xx

Sarah me encontra assim que eu saio do elevador, ela puxa a minha jaqueta para me empurrar o
blazer azul e passa uma gravata da mesma cor ao redor do meu pescoço, fazendo um nó elaborado
em tempo recorde. Deixo meus pertences com ela, mantendo apenas o distintivo e caminhando até
o auditório.

— Onde você se meteu? — Liam cochicha, apertando meu braço.

— Problemas caseiros. — É tudo o que digo antes de subir no palco, observando as cadeiras se
elevando e as dúzias e dúzias de jovens recrutas, atentos e estúpidos, próximo a saída de
emergência estão os caras de renome. Por algum motivo todos estão bastante focados em mim, ou
talvez seja o meu caso.

Ah, o meu caso.

Coisa complicada de se resolver.

— Desculpe a demora, senhoras e senhores. Eu sou o agente especial Louis Tomlinson, o detetive
responsável pelo caso Andrômeda, o qual vem tendo bastante repercussão na mídia nacional e
dentro da nossa própria corporação. Me pediram que eu viesse até aqui hoje, informá-los um pouco
mais sobre o caso e responder suas dúvidas.

— Eu! Eu! Eu! — Alguém bastante empolgado começou a balançar o braço no ar e saltitar entre as
cadeiras. Estreito os olhos, tentando enxergar a criatura impertinente.

— Ainda não abri para perguntas. — Resmungo, vendo Liam balançar a cabeça e sibilar algo
como: ele é sobrinho do diretor. Bufo, vencido — Qual é o seu nome, garoto?

— Niall, Niall Horan, senhor. — Anuncia alegremente, com uma cabelo loiro demais para ser
natural e um sotaque terrível — Posso perguntar?

— Vai em frente! — Enterro as mãos nos bolsos, contrariado, uma vez que o cara era parente de
um dos meus superiores e eu não podia simplesmente mandá-lo calar a boca.

— Certo, então, por que o nome Andrômeda?

— Embora estejamos trabalhando há dois anos e alguma coisa nós nunca tivemos nenhum contato
direto com o serial killer, não há testemunhas ou sobreviventes. Nada que possa dizer se é um
homem ou mulher e nós precisamos de um nome, então com base no seu estilo de matar, com o uso
das correntes acabamos por fazer referência a história mitológica e assim ficou. — Explico
casualmente e todos sempre soam admirados, acreditando que eu realmente fiz essa relação quando
na verdade tirei o nome de última hora de uma música do Gorillaz, foi uma puta coincidência.
Apenas.

Respondo mais algumas perguntas idiotas antes de prosseguir. Sarah mostra algumas fotos no slide
referentes ao caso, cenas do crime e provas.

— Em 12 de Abril de 2016, April Copperfield foi a primeira vítima. — A jovem April com seu
corpo multidalado surge a tela — Quatorze anos, uma garota doce e gentil. Às 14h quando sua tia
retornou das compras encontrou os corpos da irmã e sobrinhas, no pescoço de April haviam marcas
profundas, que perfuraram a pele, naturalmente as correntes foram usadas para a asfixia. Não
chegando a matar, mas garantindo a perda de consciência e rendição da vítima, após isso, ela foi
suspensa no ar, cordas presas nos lustres, na maioria dos casos, e há uma perfuração — Indico,
sinalizando na imagem — , desde a garganta até pouco mais de uma polegada acima do umbigo é
totalmente rasgado, dilacerado e seus órgãos retirados, eles tendem a sumir. O que inicialmente nos
levou a crer que se tratava de alguma seita com rituais pagãos, porém, o assassino parou de
desaparecer com eles, deixando-os espalhados pela casa. Uma caça ao tesouro, como ele bem
escreveu em uma mensagem de sangue no espelho.

— Analisaram a caligrafia? — Um rapaz indagou.

— Sim, mas não houve resultados. Esse é um assassino sem práticas regulares, o que nos leva a
crer que seja alguém com uma vida. Uma vida comum como a de qualquer um, mas que por algum
motivo encontra espaço na agenda para matar pessoas inocentes. E devo acrescentar que estas
pessoas inocentes tendem a ser do mesmo circulo familiar. Três de cada família.

Niall levanta a mão.

— Algum trauma familiar, talvez?

— Possivelmente.

— Quantos assassinatos até hoje?

Abaixo os olhos, encarando meus sapatos e sentindo o desconforto que me abate a cada vez que eu
penso naquele número. O mesmo número que vejo crescer com o passar dos dias, dos meses, dos
anos.

Quando eu comecei com isso haviam sido apenas cinco e hoje eram...

— Mais de cinquenta homicídios. — Meu tom amargo propagou o silêncio.

— Isso significa que há mais de cinquenta cidadãos americanos mortos com suas famílias sem
respostas, detetive?

Ergo o rosto, encarando o fundo da sala. Onde estão os outros capitães das demais agências
espalhadas por aí e eu gostaria de acabar com cada um daqueles malditos que nunca levantaram um
único dedo para me ajudar, mas faziam fila para soltar críticas.

— Eu não entendo... Por que não encerra o caso? Não há como soluciona-lo, é uma perda de
tempo. — Uma garota fala na primeira fila.

— Porque eu sou um policial e policiais não desistem, eles persistem mesmo quando as chances
são nulas. Desistir não é uma opção, se eu parar agora muitos outros inocentes irão morrer, eu
preciso ao menos tentar, porque eu sei que mais cedo ou mais tarde a justiça será feita. Esse
maldito vai pagar por tudo e sei que vai ser pelas minhas mãos.

Quando sinto o alívio tomando meus pulmões e afrouxo o nó da gravata, após o fim da palestra,
sinto mais corpos do que eu gostaria me cercando de uma só vez.

— Senhor, eu sou Niall Horan e fiquei realmente encantado com as palavras que disse lá em cima.
Estou saindo da academia agora e gostaria muito de poder colaborar com sua investigação.

— Não estou aceitando estagiários! — Declaro em alto e bom som, para todos os fedelhos que me
seguem feito harpias. Acelero o passo até poder me enfiar na minha sala, respirando fundo e
fechando os olhos, antes de deslizar lentamente até o chão.

Todas as imagens dos corpos mutilados e todo aquele sangue atormentando meus pensamentos.

Cada cadáver era uma falha minha.

Tudo o que eu quero é gritar.

Xx

— Louis, é a sua sogra na linha 4. — Sarah diz.

Esfrego os olhos, embassados, depois de horas com a cara enfiada em toda a papelada a par do
meu único caso. Aquele que eu não consigo solucionar. Junto com mais pesquisa e testemunhos
bastante vagos que dominavam todos os arquivos.

Engulo um relaxante muscular junto com um generoso gole de gim e giro na cadeira para atender
Anne.

— Olá, sogrinha querida.

— Olá, amor, desculpe estar te ligando, mas estou realmente preocupada.

— Por que, algum problema? Não está se sentindo bem?

— Não sou eu, bem, é o Harry. Perto das nove e meia a diretora do colégio dos gêmeos me ligou,
aparentemente hoje havia um passeio e os meninos não tinham autorização.

— Autorização? Oh, sim, deve ser o bilhete que ele perdeu!

— Perdeu? Bem, ele garantiu a professora que havia assinado e que estava na bolsa dos meninos.

Coço a têmpora, confuso.

— Está me dizendo que ele mentiu pra professora, sabendo que os garotos não poderiam sair da
creche e os deixando mesmo assim?

Anne fica em silêncio por algum tempo, provavelmente assimilando minha pergunta.

— Talvez... Talvez ele tenha se enganado, anda tão avoado, não é mesmo? É claro que ele não faria
isso de propósito. De qualquer forma tentaram entrar em contato com vocês, mas como não
conseguiram ligaram para mim. Até que horas o Harry ia ficar na galeria?

— Acho que até as duas.


— Meu deus, mas já são sete e meia e nada dele atender minhas ligações ou responder minhas
mensagens.

Sete e meia? Puta merda, o tempo voou.

— Não conseguiu falar com ele?

— Não, Spencer está chorando sem parar e o Blake não consegue dormir, sem falar que o seu
zoológico está todo aqui, junto com o da Gemma. Por favor, Lou, me salve. — Ela clama, meio
risonha, meio desesperada.

— Já estou a caminho! — Garanto, encerrando a ligação e recolhendo minhas coisas, jogando tudo
na mala, desligando o computador e trancando minha sala.

— Ué, vai sair cedo hoje? — Liam indaga, saindo da sua sala, comendo um Cup Noodles.

— A paternidade me chama. — Respondo apressado, quase tropeçando nos degraus até chegar no
estacionamento. Ligo o carro, engatando a primeira e discando o número de Harry.

Chama.

Chama.

Chama.

Ninguém atende.

Ele vive desaparecendo e isso me deixa louco.

Em menos de cinco minutos adentro o condômino fechado, parando em frente a casa de Anne, que
está na varanda com os meninos fazendo um verdadeiro inferno. Nossos gatos estão se esfregando
na grama e o cachorro de Gemma e o meu estão se estranhando.

— Sonny! Mona! Shae! Vamos, entrando! — Chamo os três, mantendo a porta aberta, as duas
gatas se acomodam no chão dos bancos traseiros e Sonny, um grande e gordo são-bernardo, vai na
frente comigo,

Assim que o motor ronrona e eu olho pelo retrovisor encontro Blake totalmente apagado com Shae
esfregando o rabo peludo em seu pescoço e miando baixo.

Spencer permanece acordado, mas ao menos brinca com o botão da janela e assim fica até
chegarmos em casa, abro a porta e os animais de estimação correm enlouquecidos em direção a
porta, provavelmente com saudades pelos dois longos dias longe, carrego Blake e Spencer anda
calmamente ao meu lado, arrastando seu cobertor na grama.

— Peppa Pig, Peppa Pig, Peppa Pig... — Blake fica repetindo rente a minha orelha durante o sono.
Levo os dois direto para o segundo andar, apenas deixando-os no berço até que adormeçam, uma
vez que Anne já tinha deixando-os pronto para dormir.

Como de praxe, Spencer demora, mas quando o faz é agarrado a minha mão com meu óculos no
rosto de um dos seus ursinhos.

Desço mais do que exausto, pouco me fodendo para a briga dos, totalizando, quatro animais no
meio da sala e parto a procura do meu marido desaparecido. O encontro no ateliê, que costumava
ser nossa sala de jantar, mas ele precisava de espaço para trabalhar e nós sempre preferimos comer
no sofá, de qualquer maneira.

Aquilo é uma desordem maior do que nosso closet.

As paredes amarelas estão quase que completamente cobertas por pinturas do próprio Harry, em
companhia dos rabiscos coloridos dos gêmeos que tentavam sempre nos desenhar, acabando por
ser uma linda família de palitinhos com gatos compridos demais e um cachorro muito peludo. É
meigo, preciso concordar.

Pelo menos ele coloca em um lugar especial cada um que recebe, os meus estão mofando na gaveta
do escritório. Ao invés de uma única lâmpada no centro da sala, há castiçais espalhados pelas
extremidades do cômodo, mantendo a iluminação baixa e intimista, nunca agressiva aos olhos e
também há aqueles incensos perfumados, o sofá de veludo azul e macio e as longas cortinas que
cobrem a janela vitoriana com vista para a piscina onde a lua está sempre refletida.

A arte suave, porém excitante dele está por toda a parte. Pinturas dos mais variados tipos, cores e
formas, esculturas pomposas e simples, tudo tão rico em detalhes e eu acredito que ele se lembre de
cada uma, desde o momento em que pensou em cria-la até o percurso do desenvolvimento, mesmo
que já tivessem passado mais de dez anos e bem ao centro, sentado naquele banco giratório – o
mesmo que eu joguei fora quando o encosto quebrou – com apenas a ponta dos pés tocando o chão,
vestindo nada além de uma de suas camisetas velhas, manchadas de tinta e uma boxer, com um
coque se desfazendo e um pincel entre os lábios rechonchudos era exatamente o reflexo do garoto
que eu conhecera há doze anos atrás. Um garoto distraído e cínico que insistia em dizer que não
sabia o que era maconha e muito menos que estava vendendo.

Pois é, Harry estava vendendo maconha em seu primeiro ano na faculdade e mesmo depois de sua
mãe pagar a fiança ele continuou aparecendo na porta da delegacia e uma coisa levou a outra, até
este momento silencioso no estúdio.

Com cuidado me aproximo dele e mesmo com um pequeno susto giro seu banco, encontrando seu
rosto angelical leve e sorridente.

— Amor, eu senti saudades. — Faz biquinho, pedindo um beijo e eu fecho a cara — O quê?

— Não sentiu falta de nada?

As sobrancelhas retas se unem.

— Hoje é... Seu aniversário?

— O quê? Não! Harry, as crianças. Seus filhos, lembra? Aqueles que você deixou na escola hoje
cedo?

— Meu deus, Lou! Eu esqueci de buscar as crianças. — Seus olhos dobram de tamanho e ele tapa a
boca.

— Não, Harold, você esqueceu que não deveria sequer ter deixado eles lá hoje. Aquele bilhete era
uma autorização para um passeio, pensei que tivesse conversado com a professora.

— Eu conversei.

— Então não prestou atenção no que ela disse. — Retruco, endireitando a coluna e sentindo meus
punhos formigarem. Merda! — Onde você estava? Seu celular está desligado?

— Meu celular...? — Meu marido olha ao redor, a procura do aparelho, ainda meio desligado —
Caramba, onde eu deixei? Acabei me enrolando na galeria, droga. — Harry começa a revirar as
almofadas no sofá e a afastar quadros, sem conseguir achar.

Ele parece tão desnorteado e nervoso que eu me culpo por isso.

— Haz, tudo bem, você deve ter esquecido em algum lugar. — Tento acalma-lo.

— Não, não tente fazer isso, eu sei o que eu fiz. Fui um irresponsável desgraçado de novo, só pra
variar. — Diz irritado, puxando uma mecha de cabelo para trás da orelha — Me desculpa por ter te
feito sair mais cedo do trabalho.

— Não precisa se desculpar. A única coisa que importa é que você está bem e... Eu não quero soar
chato ou possessivo, mas por favor, Harry, não suma desse jeito, nem fique sem dar notícias. Você,
mais do que ninguém sabe o quanto eu preciso saber, o tempo todo, onde vocês quatro estão. —
Peço, com a voz baixa, olhando para o chão e me odiando pelo quão vulnerável eu pareço.

— Eu sei. Não vai se repetir.

Xx

A água morna desliza pelo meu corpo, lavando aquele dia longo e me preparando para o seguinte.
Tento não pensar nisso, enquanto passo as mão pelos cabelos - nota mental, preciso corta-los - meu
iPod, do lado de fora do box começou a tocar algo do Cage The Elephants, o que melhorou
consideravelmente meu humor.

— Well it's cold, cold, cold, cold inside... — Cantarolo junto com a música, abrindo o box e
encontrando o banheiro coberto de vapor e quando piso no chão visualizo um corpo bem familiar a
minha frente.

— Você é tão bonito. — Harry sussurra, brincando com a faixa de seu robe, que cai em um dos
ombros e ele dá um passo a frente — Podemos brincar um pouco.

Mordo os lábios, correndo meus olhos por suas longas e torneadas pernas completamente expostas.

— Eu estou molhado. — Faço menção de pegar a toalha, mas ele agarra meu pulso, levando-o
para trás de suas costas até que eu sinta o líquido frio do lubrificante escorrendo de sua entrada.

— Eu também estou molhado. — Harry me empurra, até que bata com as costas na parede,
novamente dentro do box, que ele faz questão de fechar. Ligando o chuveiro e a água passa a cair
abundantemente sobre nossos corpos, trazendo o vapor novamente e tudo o que eu consigo
raciocinar é Harry e sua boca, por toda a parte.

Com meus dedos arranhando os azulejos e empurrando meus quadris de encontro a sua boca, o
sentindo engolir mais e mais do meu membro, esfregando sua língua quente pela minha fenda e
erguendo seus pequenos e brilhantes olhos para mim. O ouço gemer como uma verdadeira vadia
quando puxo seus cabelos e o prenso contra a parede, beijando sua boca e mordendo seu pescoço,
agarrando cada centímetro de pele, molhada e escorregadia com a seda grudando-se a ela.

Ele cruza as pernas ao meu redor, os longos cabelos grudando em seu pescoço e as bochechas tão
vermelhas, parecendo terem sido tingidas de sangue e aquela maldita boca carnuda, totalmente
aberta, soltando gemidos gritados ao que ele próprio começa a se foder nos meus dedos.

Tão apertado, macio e sensível. Meu!

É claro que aquele bêbado imundo estava dizendo asneiras. Meu Harry jamais deixaria que alguém
o tocasse, ninguém além de mim o tocou daquele jeito. Ninguém.

Fecho os olhos e quando torno a abri-los me vem a imagem daquele homem asqueroso com suas
mãos nojentas correndo por esse mesmo corpo doce e alvo e... não, não, não.

— Amor... — Geme manhoso, estendendo as mãos para mim ao que eu me afasto, sem ao menos
perceber — , não está mais com fome?

Puxo a fita de seu robe com força, o trazendo pra mim.

— Perto de você estou sempre faminto. — Sussurro em seu ouvido.

— Me come. — Implora e eu obedientemente o faço, o prensando contra o vidro fumê do box,


levantando seu quadril e me enterrando de uma vez no calor de seu interior, não tardando em me
mover com o máximo de velocidade, acertando sua próstata sem parar.

A primeira vez ele grita tão alto que conseguimos ouvir alguns choramingos de bebê e depois disso
ele começa a gemer contra o braço, afim de abafar o som. Precisando fazer o mesmo, mantenho a
boca rente ao seu ombro, puxando seus cabelos apenas para que seus gemidos mais estridentes
possam ecoar pelo banheiro. Agudos e chorosos.

— Ah, eu não vou aguentar... — Soluça e suas pernas tremem, abraço seu corpo para garantir que
ele se mantenha em pé.

— Você não tem ideia do quão gostoso é ver a sua bunda engolindo o meu pau. — Ofego em sua
bochecha.

— Eu...e-eu sinto você, Lou. Forte e rápido.

— Vem pra mim, bebê. — Ordeno continuando as estocadas e sem que eu precise toca-lo seu gozo
espirra contra o vidro e sua entrada se aperta desesperadamente em meu pau, me obrigando a vir
dentro dele.

Me movo algumas vezes, até ser rudemente expulso, tomamos um novo banho e migramos para a
cama, com ele sendo puxado para o meu peito, completamente frágil e cansado.

— Ainda bem que já estamos grávidos, se não eu diria que acabamos de fazer um bebê.

— Isso me lembra que eu tenho consulta amanhã. Quer ir? — Sua voz sai abafada contra minha
pele.

— Uhum. — Massageio seu couro cabeludo — Queria que fosse uma garotinha.

— Eu já tenho a minha garotinha. — Ouço o sussurrar, mas parece tão baixo e diferente. Quase
como se não fosse a voz de Harry.

Xx

Salto no meio da noite com o som repentino do meu celular tocando, tropeço no meio da escuridão,
até encontra-lo no bolso da minha calça, esquecida na cadeira.

— Alô?

— Louis...

— Quem é?
— Liam Payne, seu parceiro, estou passando na sua casa em cinco minutos.

— Hein? Porquê?

— Aconteceu de novo, Andrômeda fez uma nova vítima.

— Puta merda! Mais uma morte?

— Sim.

— Vou me arrumar. — Murmuro soltando o celular no chão e socando a cômoda, querendo que
fosse a cara daquela porra assassina.

Eu não vejo a hora de sermos apenas nós dois, cara a cara. Eu vou fazê-lo sofrer, de verdade.

Merda, devo ter acordado Harry. Me achego até o abajur do seu lado da cama e quando a luz rasa
ilumina a cama, não há nada além de edredons e travesseiros abandonados.

Ele não está aqui.

Escuto uma porta sendo batida.

— Harry?
│2│aquarius

O som da chuva é fraco e constante do lado de fora, com o vento frio batendo nas janelas e se
esgueirando por entre as frestas, em um mórbido lembrete de que ainda há vida neste corpo
exausto, por mais que eu definhe internamente, existe um coração batendo em algum lugar e este
me move a agir, principalmente quando fareja o perigo, tal como agora. Arrasto os pés com
lentidão pelo corredor. É puro breu. Eu me movo por puro instinto, apertando o punho da arma,
ainda travada, porém carregada.

Preciso agir com o máximo de cuidado.

Empurro a porta do quarto dos gêmeos, ouvindo-os respirar tranquilamente, examino cada mínimo
pedaço daquele quarto antes de sair, seguindo em direção ao térreo, desço as escadas e meus
ouvidos atentos captam um ruído vindo da cozinha. Avanço até lá, escondendo o revólver nas
costas quando me deparo com Harry sentado no chão, em frente a geladeira aberta, que o ilumina
com sua luz amarelada. Usando nada além de um moletom imenso - que ironicamente pertencia a
mim - , as pernas abertas, com um monte de besteiras e combinações culinárias no mínimo nojentas
espalhadas a sua frente.

— Oh, meu amor, eu te acordei? — Ele pergunta de boca cheia, as bochechas em torno de explodir
e uma touca com orelhinhas pontudas que eu tenho certeza que os meninos tem um modelo igual.

Suspiro sonoramente, varrendo o lugar com os olhos.

— Ouviu alguma coisa, Haz?

— Hum? Não, eu acordei sozinho, estava me sentindo enjoado. — Diz simplesmente, comendo
mais uma fatia do que parece ser melancia com sorvete. Argh. Massageando o ventre — Lou,
porque está com isso, em casa?

Pisco confuso até me dar conta de que a mão que carregava a arma estava caída ao meu lado.

— Eu recebi um chamado. Liam está vindo aqui me pegar. — Esfrego o rosto, me perguntando
que horas são.

Meu estômago ronca.

Merda! Esqueci de jantar.

Começo a revirar as bandejas em cima da bancada, me satisfazendo com as tiras de peito de peru,
de repente sinto algo se esfregando na minha canela e ao olhar para baixo me deparo com Mona,
nossa gatinha ainda filhote. Pego a pequena bolinha de pelos caramelo, dando apenas alguns
pedacinhos para ela.

— Alguém morreu? — Harry me encara com os olhos sérios.

Por algum motivo eu detesto falar sobre esse caso com ele.

— Ainda não sei. — Dou de ombros, brincando com Mona, enquanto começo a subir de volta ao
quarto, afim de me aprontar.

E em menos de meio minuto estou completamente pronto, sem saber o que fazer com o cabelo eu
o deixo do jeito que está. Um desastre. Meu rosto ainda está inchado pelo sono, a lateral com
marcas do travesseiro e meus olhos vermelhos e lacrimejantes.

Estou no banheiro, escovando os dentes – com muita disposição, é claro – quando sinto uma
presença se aproximando e um vulto surgindo no espelho, dobro o pescoço vendo Harry
empunhando meu revólver, um tanto sem jeito, colocando-o no meu coldre.

— Você deixou na cozinha, pensei que fosse precisar.

Enxaguo a boca, seco o rosto e giro nos calcanhares.

— Toma cuidado.

— Eu sempre tomo. — Sorrio, puxando-o pela barra do moletom.

— Nós sabemos que isso não é verdade. — Sussurra, pressionando o dedo contra uma marca acima
da minha clavícula, que poderia facilmente ser confundida com um chupão e não um buraco de
bala.

Apenas um de outros milhares que estão sobre cada pedaço do meu corpo.

— Eu aprendi a lição, okay. — Garanto, beijando seus dedos e sorrindo para o fato dele não tirar
aqueles malditos anéis, nem mesmo na hora de dormir.

Um pequeno repuxar de lábios vermelhos e então ele está se jogando em meus braços, me
apertando com força. Circundo sua cintura, sem entender de seu ato repentino.

Nós não somos tão afetuosos.

— Eu tenho um mal pressentimento.

— Você é vidente agora? — Brinco, beliscando sua coxa.

— Não... Só... Só me promete que você não vai se arriscar, que vai tomar cuidado e vai voltar vivo,
por mim e pelos nossos filhos. Promete?

Há um desespero crescente em sua voz que me leva a ficar preocupado.

— Prometo, é claro que eu voltarei. — Beijo seu pescoço, tentando reconforta-lo.

— Eu te amo, Louis. Te amo mais do que tudo.

— Eu também amo muito você, Hazzy.

O som de uma buzina se faz presente.

— Preciso ir. — Segurando seus quadris, o afasto com delicadeza, encontrando seu rosto vermelho
e banhado em lágrimas. Isso só pode ser a gravidez, tem que ser — Bebê, eu já disse que ficarei
bem.

— Mas e se...?

— E se, nada, Harry! Eu já sou velho demais para ter alguém se preocupando comigo, preocupe-se
com o garotão aí dentro, entendido?

— Certo. — Concorda, colocando a mão na barriga, fazendo uma careta — Acho que a melancia
com sorvete de pistache não me fez muito bem.
— Você vai...? — Ele só tem tempo de se afastar para cair de joelhos em frente ao vaso,
despejando todas as bizarrices que comeu durante a madrugada. Como bom marido que sou, estou
puxando a liguinha que mantenho no pulso para o caso de imprevistos como esse e prendo seus
cabelos, aperto seus ombros quando eles tremem novamente — Vai ficar bem?

Sua resposta vem em forma de um polegar levantado.

Depois de deixar um copo com água, junto a um remédio de enjôo e um beijo em cada um dos
meninos desço as escadas da varanda e Payne já está a minha espera, com a grande Land Rover
preta da agência com as siglas FBI nas laterais e na capota do carro.

— Pensei que não fosse vir mais.

— Harry estava passando mal.

— Se ele ficar como a Cherryl quando estava esperando o Bear, você está muito fodido.

— Deus me livre! — Exclamo, jogando a cabeça para trás e olhando minha casa uma última vez.
Grama verde, flores na varanda e um cerca branca, dois filhos e outro a caminho e um marido que
diz que me ama. Parece tudo perfeito, meu conto de fadas.

— Hora de acordar, feliz papai! O dever nos chama. — Liam me empurra um frappucino que
queima a minha língua no primeiro gole e eu não resisto em dizer que seu cabelo está bem pior do
que o meu.

Xx

Uma residência colonial em Greenpoint, cerâmica da mais alta qualidade nos banheiros, o chão é
tão bem encerado que eu consigo ver meus poros abertos, toda a prataria, cristal e porcelana da
louça vale duas vezes mais que o meu carro, há sete quartos, quatro banheiros, duas salas de jantar,
cinema, sala de jogos e três cadáveres enfileirados no corredor que dá para o sótão.

Lúcia, Cory e Stephen Atkins, mãe, pai e filho. Todos com cordas nos pescoços, com a região do
tórax dilacerada de tal forma que expõe as costelas quebradas e pela primeira vez, suspeito que
estejamos lidando com algum animal selvagem. A forma como ele os deixa sangrando por todo o
chão, com seus corpos sem vida balançando e batendo uns nos outros. A mão da mãe está
entrelaçada a do filho e isso é tão perturbador que eu não consigo olhar por mais tempo.

— Olha só quem chegou! — O forte sotaque australiano é inconfundível e Luke Hemmings está
bem na minha frente, com todo aquele cabelo louro, piercing no lábio inferior, sorriso cínico e um
maldito pirulito. Mas o pior está sempre naquela jaqueta com CIA gravado nele.

— O que faz aqui? — Inquiro perturbado, vendo o maldito pessoal deles revirando a casa.

Esses estúpidos não sabem fazer nada além de me atrapalhar.

— Bom, seu chefe pediu ajuda pro meu chefe, sabe como é, né? Às vezes tem que deixar os
adultos trabalharem.

— Vocês não trabalham, e sim arruínam tudo. Foi por isso que foi transferido, caso não esteja
lembrado. — Digo, empurrando-o para fora do meu caminho — Ei, não toca nisso sem luvas. Está
comprometendo toda a cena do crime! Por deus, Luke! Esses caras não sabem nem que precisam
de luvas.

Hemmings dá de ombros, sugando seu pirulito como sempre faz.


Gostaria tanto que ele morresse engasgado.

— Hemmings! Tomlinson! — Liam grita.

Nos entreolhamos e eu vou na frente, é claro. Hesitando um pouco quando encontro Michael
ajoelhado no carpete azul escuro do quarto de Stephen, seus olhos atentos não focam nada além da
pequena área ao redor de seus dedos e eu preciso evitar que isso fique estranho. Aja naturalmente.

— Achou alguma coisa, Mike? — Luke praticamente me esmaga para poder ficar ao meu lado na
porta.

— Aqui. — Suas luvas mal relam na área indicada — As unhas foram cravadas com tanta força no
carpete que ele as feriu, tem até alguns pedaços, minúsculos, mas tem. Talvez isso tenha
acontecido na hora da asfixia, ele poderia estar lutando, tentando fugir e foi pego no meio do
caminho. Notem como as marcas das unhas vão se tornando quase invisíveis. — Mike delineia o
rastro fraco das unhas que levam justamente para onde meus pés estão e quando ele levanta os
olhos não há como fingir que não o vi — Detetive Tomlinson.

— Doutor Clifford. — Lhe dou um aceno estranho e ele desvia o olhar.

Isso ainda é estranho.

— Certo, então foi preciso o uso da força física. Ele já fez isso alguma vez? Costuma brigar com
as vítimas? — Luke intervém.

— Não, essa foi a primeira vez, de alguma forma ele consegue pegá-las desprevenidas. — Payne
responde, andando até as janelas e averiguando o lado de fora — A casa fica em um bairro nobre,
provavelmente a segurança aqui é uma maravilha.

— Ele não pode ter invadido. Foi convidado, talvez? — Mike vira a aba do boné para trás e a
franja loira cai sobre seus olhos.

— Nosso assassino tem uma boa aparência e deve ser gentil, cativante.

— Olha, Hemmings, sem querer ser estraga prazeres, mas todas estas constatações que vocês estão
fazendo nós já sabemos há mais de um ano. É alguém bonito e agradável e só. Em um planeta com
sete bilhões de pessoas isso não é o bastante para pegar o assassino. Precisamos de uma região,
uma testemunha, um fio de cabelo seria ganhar na loteria e não temos nada. Nadinha.

— Sempre tem algo, nenhum crime é perfeito. — Engulo em seco quando Clifford me contradiz,
se colocando de pé e correndo os olhos atentos pelo carpete até a porta, a fechando de repente na
minha cara e de Luke e tornando a abri-la.

— O que você...?

— Perceberam isso? Ela não está fechando direito. — Ele mexe nas juntas da porta — Pode ter
sido arrombada, não como se tivesse trancada. Talvez Stephen tenha corrido para o quarto, depois
que seus pais foram atacados. A porta não tem tranca, então ele tentou mantê-la fechada com o
peso do próprio corpo, mas foi insuficiente por se tratar de um garoto magro e fracote, bastou
forçar a porta e ele caiu, o assassino entrou e o arrastou para o corredor, ele tentou se prender ao
carpete, mesmo quando suas unhas começaram a se soltar. Lutando pela vida.

Mike e seu talento de visualizar esse tipo de coisa melhor do que qualquer um, não era a toa que
ele é o perito criminal predileto de todos.
— Se a porta foi arrombada existe DNA ou qualquer maldito rastro, certo? — Hemmings se
empolga e Mike assente — Venham até aqui e examinem essa porta inteira. — Grita para os seus
homens e eu lhe lanço um olhar repreensivo — E não se esqueçam das luvas!

O celular de Liam toca e ele o atende, desligando logo em seguida.

— Ei, Tommo, Christie Atkins está aqui, a filha mais velha que estuda em Jersey, vamos conversar
com ela.

— Hum, detetive, será que eu poderia ter uma palavrinha com o senhor? — Mike se avança em
pedir.

— Claro. — Digo — Liam, pode começar o interrogatório, com cuidado, entendeu? E Luke, fique
de olho nos seus garotos, se alguém fizer alguma merda que comprometa minha investigação você
está fodido.

— Entendido. — Ambos respondem.

Sigo Michael até a área dos fundos da mansão, com paredes de madeira polida e velas aromáticas,
com uma jacuzzi no centro. Ele para quando eu encosto a porta de vidro, cruzando os braços sobre
a jaqueta preta que é grande demais para ele, o rosto pálido agora tem uma barba rala e os cabelos
não são mais coloridos como antes, assim como o piercing na sobrancelha desapareceu.

Não parece diferente daquele garoto que eu conheci. O colega de quarto de Harry.

Merda!

— Já faz um tempo que a gente não se vê.

— É.

— Eu te liguei algumas vezes, não sei se você viu...

— Eu vi sim. — Respondo, apertando minha aliança de casamento no dedo anelar.

— Entendo. — Mike bufa, prensando os lábios e esfregando o tênis no chão de pedrinhas.

— Nós, nós vamos ter um bebê.

— Um bebê? Outro bebê? Mas os gêmeos ainda são pequenos.

— Pois é, nós queríamos aumentar a família.

— Tem certeza disso? — Ele me olha com os olhos verdes queimando em um sentimento que eu
não consigo identificar.

— O que está insinuando?

— Nada. — Diz com ironia — Longe de mim insinuar que vocês ficam tendo filhos apenas para se
prenderem um ao outro quando todos sabem que esse casamento está morto há muito tempo.

— Michael.

— Só não faz sentido!

— Você não sabe de nada. — Endureço a voz.


— Claro que sei, há um tempo atrás nós ainda éramos inseparáveis. Eu sou padrinho do Blake e do
Spencer e melhor amigo de vocês dois.

— Michael, isso ficou no passado, você sabe. — Insisto, começando a andar de um lado para o
outro, passando a mão pelos cabelos.

— Vão ter esse filho pra concertar o que aconteceu entre nós?

— Vamos esquecer isso, está bem? — Suplico, parando e fechando os olhos. Posso sentir os
primeiros raios do amanhecer tocando minha pele fria.

— Nós estávamos apaixonados. — Diz baixo.

— Eu só sou apaixonado pelo Harry, ele é e sempre será o único pra mim.

— Mentiroso!

— Viu? É por isso que não nos falamos mais. O que aconteceu entre nós foi um erro, um erro
estúpido, que só causou mais sofrimento para todos nós. Principalmente pro Harry, você não acha
que ele já sofreu demais?

Ele abaixa a cabeça, enterrando as mãos nos bolsos e eu tento ignorar a vermelhidão em seus olhos,
pelas lágrimas não derramadas, quando ele torna a me encarar.

— Eu vou te auxiliar nesta investigação, você é meu superior aqui e eu não quero, de forma
alguma, criar um ambiente hostil ou tóxico. Nós somos profissionais e eu prometo não tocar mais
nesse assunto.

— Isso seria ótimo, obrigado.

Michael sorri pequeno e caminha até a porta, parando com a mão na maçaneta.

— Louis, eu acho que ainda não te informaram sobre isso, mas o Grimshaw suspendeu as
investigações ao caso da Evangeline.

Meu coração erra a batida ao ouvir seu nome e meu pescoço estala com a rapidez que me viro para
ele.

— Suspendeu?

— Sim, eu não sei o porquê, mas... Bem, você deve imaginar.

— Ele vai fechar o caso. — Concluo, olhando para o nada.

— Eu sinto muito. — Mike diz, saindo, mas não antes de me informar: — Os órgãos dos Atkins
estão na jacuzzi.

Me permito sentar no lounge, observando rins, pulmões e corações subindo a superfície com a
água vermelha, pigmentada pelo sangue dos inocentes.

Eu não consigo evitar de pensar no sangue de Evangeline em minhas mãos.

Xx

A conversa/interrogatório com a filha mais velha e agora única sobrevivente da família Atkins sai
exatamente como eu esperava, uma grande perda de tempo. É óbvio que eu não a julgo por estar
tremendo e chorando sem parar, afinal, toda a sua família está morta. Totalmente sem justificativa
ou suspeitos. Por mim, não tentaria lhe arrancar qualquer tipo de informação em uma situação
como está, mas era preciso e no fim, tudo o que conseguimos foi o de sempre.

Eles não tinham inimigos.

Nenhum relacionamento violento que resultaria em um ex parceiro a procura de vingança.

E muito menos alguém que pudesse ser incluído na lista de suspeitos.

Ou seja, nada.

Por hora nossa melhor chance era com algum vestígio que pudesse ser encontrado na porta do
quarto de Stephen, se Michael estivesse certo e pudéssemos encontrar o que fosse, poderíamos
seguir em alguma direção e se Deus estivesse a nosso favor, poderíamos ter um DNA. Okay, isso é
pedir demais, mas não custa nada sonhar.

Acabei passando muito mais tempo do que era necessário na residência, Luke e Michael partiram
bem antes de mim, Liam teve de me acompanhar por ser o meu parceiro e repetia sem parar que
ficar encarando aquele trio de cadáveres mórbidos apenas me daria pensamentos perturbadores
mais tarde.

Eu fiz mesmo assim.

Até eles serem levados.

Então eu consegui sair de lá, indo direto para a agência e entrando na sala de Grimshaw, sem me
importar em bater. Ele estava em sua cadeira, usando uma de suas camisas de gosto questionável,
indicando que ele havia chegado recentemente.

As paredes estavam repletas de quadros, com diplomas e honrarias. Fotografias com pessoas
famosas e renomadas, eu mesmo estava entre elas. Uma dele segurando Eve ainda bebê repousava
em sua mesa e foi está que eu segurei ao sentar na beirada da mesma.

— Vão fechar o caso? — O tom da minha voz é rouco e choroso, bem, porque estou de fato
chorando.

Nicholas franze o cenho, continuando a desabotoar a camisa.

— Não foi escolha minha.

— Mas não fez nada para impedir.

— Eu fiz tudo o que estava ao meu alcance.

— E mesmo assim falhou. — Chuto a cadeira que cai em um estrondo alto — Alguém mandou que
disparassem mais de cem vezes contra o meu carro naquele dia, eu realmente não me importo com
os tiros que eu levei, mas ela... Ela merecia justiça, ela merecia estar viva. A única coisa que eu
pedi é que você caçasse quem fez isso e o colocasse atrás das grades, tenho esperado há anos e
você nunca me veio sequer com um suspeito e agora o caso vai ser fechado, ou seja, ninguém vai
pagar pela morte dela. Nunca.

Ele se aproxima de mim, tocando meus ombros em um aperto gentil que é prontamente repelido.

— E o que eu digo ao Harry agora? "Desculpe, querido, mas sabe o assassino da sua filha vai ficar
solto mesmo, foi mal."

— Louis, eu posso...

— Não! — Grito raivoso — Você não pode, não pode fazer absolutamente nada! Seu inútil
desgraçado!

Estou ponderando entre dar um soco nele ou não e perder o emprego no momento em que Liam,
juntamente com outros agentes abrem a porta assustados e resolvo que a melhor decisão agora é ir
embora. Passo pelos vários corpos, ignorando os puxões que me dão e esse seria o momento ideal
para tomar meus remédios e ouvir alguma música Indie pra relaxar. Ao invés disso dirijo feito um
louco em direção ao hospital, onde Harry disse que estaria a essa hora.

Chego batendo na traseira de uma caminhonete, fodendo com o farol do carro do FBI e não é como
se eu estivesse preocupado com uma advertência agora. Desenrosco a tampa do meu cantil de
prata, dando um longo gole no whisky, com uma puta dificuldade em encontrar a ala obstétrica.

Se eu não me engano é naquele andar onde todos usam rosa.

Depois do que parece uma eternidade encontro a recepção, mas é claro que eu não estou okay. E
isso é tão ridiculamente evidente que não me deixam entrar no consultório e depois de uma
discussão fervorosa com as duas recepcionistas e quebrar algumas coisas – deus, eu estou louco,
não é possível – dois seguranças são chamados e eu deixo que eles me prendam em um salinha,
cheia de uniformes para os enfermeiros, enquanto chamam a polícia.

Dã, eu sou a polícia aqui, otários.

Se eu não tivesse deixado o distintivo e a jaqueta no carro tudo isso teria sido facilmente resolvido.

Viro a última gota de álcool do cantil, sentado no chão e desejando fazer com Grimshaw o mesmo
que Andrômeda fez com a família Atkins quando a porta é aberta e um corpo grande passa por ela,
vestindo jeans, botas caramelo e uma camisa azul xadrez e é básico e tão lindo ao mesmo tempo.

— Oh, Louis. — Lamenta, encostando a porta e jogando os cabelos para trás.

— Oi, meu gatinho. Não me deixaram entrar. Você está bem? E o bebê? — Tento levantar,
encontrando muita resistência do meu corpo bêbado.

— Disseram que você está com problemas. — Diz, desviando o olhar e cruzando os braços na
altura do estômago.

— Não podiam estar mais certos. Problemas é o que não me falta agora, curly.

— O que houve? Você parecia tão bem ontem.

— Ontem ficou no passado e hoje, no presente, eu tô muito fodido. — Cambaleio, agarrando a


barra de sua camisa para não cair — Aquela porra assassina matou um casal de almofadinhas
inofensivo e um garoto, um garoto tão frágil e ele tentou fugir, ele lutou pela vida e mesmo assim
morreu, tinha que ver, o abriram tanto que estava quase do avesso e era tanto sangue, depois de
algumas horas aquilo fedia como o inferno e os órgãos... Esses estavam na jacuzzi, derretendo e
boiando. Tanto sangue, é estranho que eu tenha sentido vontade de me afogar nele?

Os lábios dele se contorcem em escárnio e seu rosto está pálido, demais.

— Meu pobre Harry, ouvir sobre isso te enjoa, não é? É por isso que eu te amo, porque você está
longe desse mundo nojento no qual eu estou afundado. Sabe, esse assassino nunca vai chegar perto
de vocês ou das crianças, eu prometo, eu juro!

Harry continua sem falar, apenas com uma expressão estranha.

— O que foi? — Falo, angustiado — Espera! Você já sabe? Ele falou com você? É claro que falou,
eu sabia que não ia deixar isso barato. Harry, você tem que acreditar que eu não tenho mais nada
com o Michael, o que aconteceu entre nós ficou no passado, eu não faria isso com você, de novo
não.

— Do que está falando? — Então seus olhos retomam o brilho natural, quase como se Harry
tivesse retornado ao seu corpo — Michael está aqui? Você o viu? Por que viu ele? Ele foi atrás de
você?

Porra!

— Nós... Estamos trabalhando juntos no caso.

— Trabalhando juntos? - Suas mãos se chocam com meu peito, me empurrando com força —
Você me prometeu que nunca mais chegaria perto dele.

— Eu não cheguei, mas é que as circunstâncias...

— Circunstâncias? Que malditas circunstâncias são essas que te obrigam a ficar perto daquele...
Daquele cretino? Eu pensei que tivesse sido claro com você, nós só ficaríamos juntos se você me
prometesse que nunca mais chegaria perto dele. — Harry fala baixo e ameaçador, seus olhos estão
afiados e as unhas maltratando as palmas das mãos.

— Eu... Eu... — Não sei o que dizer — Te amo.

— Foi o que você me disse quando eu te peguei na cama com o meu melhor amigo, foi o que você
tornou a repetir quando me pediu uma segunda chance e eu aceitei, mesmo com todo mundo
sabendo. Mesmo sendo visto como um idiota que te perdoou depois de uma traição descarada e
olha só onde estamos, mais uma vez. Algumas pessoas simplesmente não podem mudar, você é
incapaz de não me magoar, pelo menos uma vez ao dia.

— Meu amor, me perdoa, eu prometo que eu largo esse caso, eu peço demissão se você quiser... Só
me diz o que fazer, por favor.

— Não volte pra casa, nem hoje, nem nunca. — Diz, indo em direção a porta e eu o puxo de volta,
o ouvindo grunhir quando bato suas costas contra a parede e prenso meu corpo contra o seu — Me
solta, você está me machucando. — Empurra meus ombros, tentando me afastar.

O que só serve para me fazer abraça-lo com mais força, alojando meu rosto na curva de seu
pescoço com minhas unhas afundando na pele de suas costas e cintura, o fazendo gemer de dor e
eu me odeio. Harry é o amor da minha vida e prefiro me dar um tiro a tocar em um fio de cabelo
seu que não seja com total amor e veneração.

Mas também não consigo soltá-lo e deixá-lo ir.

Fecho os olhos, esfregando a testa em sua camisa e ele soluça baixinho, se contorcendo e tentando
escapar de mim.

Eu sou um maldito louco.


— Louis, por favor... O bebê. — Suspira no meu ouvido choroso e meus dedos vão se
escorregando para longe dele.

Seu choro atraiu a atenção e em questão de instantes os seguranças, desta vez acompanhados da
polícia entram na quarto, imobilizando meus braços e me arrastando para longe de Harry.

Ele nem ao menos me encara.

Xx

A ida a delegacia local é uma grande perda de tempo, já que assim que eles me reconhecem como
agente federal sou liberado com um pedido de desculpas, eles não tem culhões para me dar um
puxão de orelha.

Isso chegava a ser engraçado, a forma incandescida como eu gostava de me imaginar mais velho e
longe da figura rígida do meu pai, eu detestava ouvir suas repreensões e ter de seguir suas regras
imbecis. Eu queria ser o tipo de homem que as pessoas respeitam, temem e não ousam repreender.
Eu queria ter poder, queria ser forte, mais forte que os outros.

Porém, eu não passo de um fraco.

Um fraco que por algum motivo está acima de outros muito mais dignos.

O rapaz que devolve meus pertences me olha como se eu fosse o Super-Homem e na hora sinto um
gosto amargo na boca, o gosto da decepção.

Não passo de uma farsa.

Eu posso ter uma arma e um distintivo, mas não fui capaz de proteger uma menina de oito anos que
acreditava que eu seria seu herói.

— Eu preciso parar de pensar. — Digo a mim mesmo, apoiando a testa no volante. Abro o porta
luvas e reviro o pequeno compartimento, repleto de chupetas mordidas, pecinhas de brinquedos e
os esmaltes de Harry.

Nada.

Eu acabei com tudo o que tinha no escritório e em casa, estou oficialmente sem.

Puta merda, viu.

Minha única saída é ir até ele e eu definitivamente não queria ter que revê-lo tão cedo.

Depois do que parece uma eternidade me encontro do outro lado da cidade, mais precisamente no
Queens, dirigindo entre as mansões de luxo, adentro ao caminho de altos murros de tijolos brancos,
com portões de aço que não revelam nada de seu interior. Um homem mal encarado está de vigia e
ele me conhece a tempo suficiente para não me barrar, ele interfona e então resolve liberar a minha
entrada. Os jardins são imensos e excêntricos, tal como sua persona, um chafariz é feito a sua
imagem – sim, ele teve a coragem de mandarem fazer um chafariz consigo montando um cavalo e
segurando uma espada – Bizarro.

Tento ao máximo ignorar, correndo os degraus e encontrando mais dois outros homens em ternos
pretos com óculos escuros prontos para me revistar dos pés a cabeça. Eles ficam com meu revólver
e todas as armas adicionais que eu gosto de manter espalhadas pelo meu corpo, por prevenção,
sabe.
Johnny, um homem com o dobro do meu tamanho e provavelmente um viciado em anabolizantes
está apalpando minhas pernas quando escuto passos altos ressoando pelas escadas e então um
gritinho agudo.

— Você veio nos visitar mais cedo! — Mia berra, levando as mãos as bochechas em descrença.

Ela está impecável, usando um vestido preto e blazer branco, os cabelos negros e lisos estão presos
em um rabo de cavalo e mesmo assim eles batem abaixo de sua cintura. Grandes olhos azuis,
idênticos aos meus brilham em minha direção.

E aí está a minha filha ilegítima de treze anos.

— Senti saudades, como está? — Pergunto, me vendo livre das mãos inconvenientes me tocando.

Ela vem até mim, me estendendo a mão e eu a beijo. Suas bochechas ficam rosadas e seus olhinhos
se apertam timidamente.

— Bem, Zayn disse que não viria mais este ano.

Ah, Zayn, ele vai odiar me ver aqui.

— Tive uma emergência e precisei vir falar com ele. — Explico sorrindo amigável, tocando o
brinco de pérola em sua orelha.

— Talvez possamos conversar um pouquinho, depois.

— É claro, Mia. Agora me leve até o Zayn, sim? — Ela assente, caminhando a minha frente,
conforme vamos nos aproximando de seu escritório, os seguranças só aumentam. Calum é quem
abre a porta, enxergo Zayn sentado em um sofá dourado, soprando a fumaça de seu charuto, os
cabelos estão quase totalmente raspados e descoloridos, a barba mais baixa e um piercing no nariz
e acredito que suas roupas saíram da máquina do tempo de algum filme de gângster dos anos
oitenta.

— O Lou... — Mia começa.

— Você tem dever de casa, vá para o seu quarto terminar. — Zayn a dispensa com toda a
facilidade do mundo. A menina anui e me dá um sorrisinho brando antes de refazer seu caminho.

— Tomlinson. — Cal me cumprimenta.

O escritório de Malik está cheio de gente da pior espécie, traficantes, usuários, arrombadores,
estelionatários, agiotas e ladrões. E Zayn era o pior tipo deles, o chefe.

— Zayn. — Falo, sentando na poltrona a sua esquerda, apoiando os cotovelos nos joelhos.

— Olha só, quem é vivo sempre aparece. Embora eu tenha deixado bem claro que se você pisasse
na minha área novamente acabaria com uma bala na cabeça.

— Não é como se eu tivesse medo de levar um tiro. — Resmungo, aceitando o copo de conhaque
que o garçom me oferece — A Mia cresceu.

— Está igual pra mim. — Zayn cruza as pernas, apagando o charuto no cinzeiro — Dirigiu até
aqui? Não devia ir tão longe atrás de maconha, sabe que eles vendem em Manhattan também, não
é?

Corro os dedos por meus cabelos, batendo os pés contra o piso.


— Eu fui da narcóticos por cinco anos, tem noção da merda que seria se alguém me visse
comprando maconha por aí?

— Realmente um escândalo. — Zomba com a voz esganiçada — Cal, traga a erva do detetive
Tomlinson, por gentileza.

Torço o nariz para a inclusão do detetive. Eu realmente não preciso desses marginais sabendo o
que eu faço.

Hood retorna com a erva despojada em uma maldita bandeja de ouro, com folhas de seda para se
enrolar, ele faz o meu como um verdadeiro profissional - coisa que ele, de fato, é - me entregando
apenas para que eu acenda, dou um trago, sentindo a fumaça massageando com doçura meus
pulmões maltratados e então posso respirar com o peso em meus ombros ficando mais leve.

Quando o relógio em formato de gato marca 02:30min meus olhos estão se fechando lentamente,
apenas consigo captar as persianas balançando e o conforto do sofá acolhendo meu corpo
moribundo, mas também há alguns sussurros:

— Eu só queria dizer boa noite. — Mia diz aos sussurros.

— Era pra você estar dormindo, amanhã tem aula. — Zayn a repreende.

— O Lou vai dormir aqui?

— O que eu falei sobre apelidos, pra você é senhor Tomlinson e isso não te diz respeito, agora vá
para a cama e é melhor acordar na hora amanhã, ouviu bem?

— Sim, senhor. Boa noite, Zayn. — A tristeza em sua voz é quase palpável.

Ela deveria se sentir sozinha vivendo em uma casa tão grande, sem companhia. Tenho certeza que
Mia adoraria poder brincar com Blake e Spencer, mas infelizmente eles não podem sequer saber da
existência uns dos outros.

Mia e Eve poderiam ter sido grandes amigas, poderiam.

— Por que não a deixa chamá-lo de pai? — Minha voz rompe o silêncio, depois que o moreno
fecha a porta.

A sala está vazia. Todos se foram.

— Eu já te disse, laços afetivos são uma grande bobagem. Quero que ela me veja como qualquer
um.

— Mas que grande bobagem.

— Então porque não diz a ela que é sua filha e a deixa te chamar de papai até os cem anos? —
Retruca, indo até o bar, recolhendo dois copos e uma garrafa de vodka.

— Sabe que não posso fazer isso, você nunca quis que eu me metesse. — Me sento, estralando o
pescoço e desabotoando alguns botões da camisa, Zayn desvia o olhar quando o pego encarando
meu ato.

— Você só iria me atrapalhar e além disso já estava de quatro por aquele mauricinho do West Side.

Ele coloca os copos na mesinha de centro, despejando o líquido em cada uma delas e me
entregando uma, fazendo um breve e costumeiro brinde.
— Ele não é mauricinho. — Resmungo, dando um gole.

— Ah tá bom, eu lembro quando o vi pela primeira vez, com aquele cabelo cheio de cachinhos,
todo sedoso e brilhoso, com suas roupas bonitas, sem manchas ou amassados e os sapatos...
Italianos, se não me engano. Você disse, "ele é legal e simples como a gente" mas o cara andava na
ponta dos pés com medo de ser contaminado pela nossa pobreza e aquele narizinho franzido e o
bico desgostoso a cada vez que eu abria a boca. Aquele pirralho era um nojo, pensei que te
dispensaria em uma semana e de repente você casou e fez um filho nele. Francamente, eu e Mia
não tínhamos a menor chance contra as duas princesinhas de cabelos cacheados.

Giro o copo entre os dedos quando termino de beber.

— Eu teria assumido ela.

— Cara, relaxa, nós éramos jovens e idiotas e tudo bem, ela tem uma vida ótima.

— Não é nem de longe o ambiente apropriado. Não poderíamos ter escolhido rumos mais
diferentes, Z.

Zayn morde os lábios, parecendo desconfortável. Falar sobre o passado nunca é uma boa. Nós
crescemos juntos, nos descobrimos juntos e foi uma grande surpresa quando, ao invés de sair
vendendo drogas como os outros garotos da minha idade, eu entrei na academia de polícia. Foi
como se um muro tivesse sido levantado entre nós dois, eu era da narcóticos e ele um dos maiores
chefes do tráfico de Nova York, a justiça dizia que seu lugar era atrás das grades, mas eu não
conseguia. Harry e minha família, não sabiam que havia uma criança, mas ela estava lá. Mia.

Ela era só um bebê e eu não podia estar lá por ela, o mínimo que me cabia era garantir que Zayn
estivesse.

Quando ficou claro que eu estava fazendo vista grossa fui transferido até acabar no FBI, onde me
destaquei como investigador.

Eu dizia que vinha pela maconha, contudo, a verdade é que eu vinha por eles, queria saber como
estavam. Era só mais uma canalhice da minha parte, mas quando a minha família "oficial" entrava
em colapso eu corria para essa, mesmo que Zayn mal me olhasse nos olhos e Mia era afastada
como se eu sofresse de alguma doença contagiosa.

— Eles vão fechar o caso.

Isso atrai a atenção dele. Seus olhos âmbar pela primeira vez se fixam aos meus.

— Não terá solução.

— Louis? — Zayn diz preocupado e é quando me atento aos meus dedos trêmulos soltando o copo
para esconder o rosto nas mãos.

— Eu pensei que a polícia era capaz de tudo, que nós conseguiríamos resolver todos os mistérios
do mundo e proteger as pessoas, mas eu não podia estar mais enganado. A cada dia surge um novo
corpo e eu não encontro esse serial killer e a minha filha, minha princesa, meu amor que morreu
por nada não tem justiça nenhuma e como se isso não fosse o suficiente tem o Harry me
expulsando de casa. Tá tudo desabando em cima da minha cabeça e eu não sei o que fazer, eu não
sei como sair dessa. — Choro cada vez mais forte, escorregando do sofá até me encontrar
encolhido no chão em uma pequena bola de autopiedade.

Zayn não se abala, balançando seus sapatos de bico fino e acendendo um novo charuto.
— Você deveria chorar com mais frequência, porque quando faz isso a cada dez anos parece estar
prestes a ter um infarto ou algo do tipo.

— Cala a boca! Eu deveria te levar preso e acabar com essa merda toda. — Guincho, puxando
meus joelhos para perto do peito.

— Vai fundo, mas vou logo avisando que vai ficar com a guarda da Mia e já que a princesa te
expulsou do castelo os dois vão acabar debaixo da ponte.

— Você faz piada agora?

— Talvez... — Sua risada fraca me leva a rir também, esfrego o rosto, secando as lágrimas com
alguns soluços ainda escapando do fundo da minha garganta — Sobre a sua filha eu sinto muito.
Mesmo que não acredite eu tenho um coração e ele partilha da sua dor, sabe que no momento em
que quiser justiça, não essa babaquice legal, mas justiça de verdade. Olho por olho, dente por
dente. Estarei aqui pronto para ajudá-lo. Apenas diga e eu mando meus homens atrás desses
desgraçados.

— O FBI não foi capaz de acha-los, você acha que conseguiria?

— Eu sou bem mais poderoso que o FBI, Tomlinson. — Diz arrogante e eu reviro os olhos.

Me sinto tonto, em todos os sentidos da palavra.

— Certo, eu vou indo agora. — Tomo impulso para levantar e caio de volta.

— O quê? De jeito nenhum. Sair nesse estado é suicídio!

— Eu preciso voltar pra casa, meus filhos, meu cachorro, meus gatos, meu marido, eles estão
esperando por mim.

— Uau, quanta coisa viva te esperando em casa, mas essa não é uma boa ideia, Louis. — Malik
salta de seu assento, para me deitar novamente no sofá — Fique aqui, só essa noite. Amanhã será
um novo dia.

Quero reagir, mas meus olhos e meu corpo me traem, amolecendo e se acomodando com gosto no
estofado macio e aconchegante.

— O Harry...

— Ele vai estar a sua espera. — Sussurra e então estou adormecido.

O que não acaba durando muito. Depois de mais de uma década dormindo ao lado de alguém, não
tem jeito de dormir longe desta pessoa. Ao acordar sozinho no escritório de Zayn decidi que estava
na hora de seguir viagem, a embriaguez já havia se dissolvido, restando ainda uma bela enxaqueca
e um embrulho desagradável no estômago. Nada fora do comum.

Minha saída foi liberada, junto com meus pertences e tornei a dirigir mais tempo do que meus
ossos frágeis poderiam suportar naquelas condições, mas tudo valeu a pena quando me rastejei pelo
corredor principal, ouvindo os roncos suaves dos gêmeos e o perfume do meu amor embargando o
ar, ele provavelmente estaria bravo comigo depois do incidente no hospital. Porém, ainda são seis
da manhã, nessa hora não existe ninguém com pique para brigar e é disso que eu pretendo tirar
proveito.

Quando afasto a porta do nosso quarto encontro lençóis amarrotados, sem o corpo despojado e
adormecido que eu esperava envolver em meus braços e acariciar por horas a fio.

Meus sentidos estão bastante amortecidos ao que escuto não obstante algo como um gemido e sou
guiado até o banheiro. Forço a entrada, mas a porta está trancada.

— Hazza? —Bato na madeira. Sem resposta — Haz? — Silêncio — Harry, abra a porta agora,
senão eu irei arrombar. — O silêncio se prolonga e eu não hesito em me afastar e chutar de uma
vez a porta, a fechadura arrebentando e ela se escancarando.

Na pior das hipóteses imaginava um Harry prostrado em frente a privada, sofrendo com seus
enjoos e nutrindo ódio a minha pessoa.

E isso era ótimo, realmente maravilhoso se comparado ao que encontro.

Ele está no chão, inconsciente. As mesmas roupas que usava mais cedo, com a única diferença de
que a camisa está manchada pelo sangue abundante que escorre dos cortes de seus pulsos.

Porra!
│3│böötes

Eu odeio hospitais.

Sempre odiei! Minha mãe costumava dizer que não passava de algo psicológico, mas era um fato,
bastava por os pés dentro de um e eu imediatamente me sentia doente. Como se uma gastura
surgisse na boca do estômago e minha garganta fosse fechando, pouco a pouco.

É o tipo de ambiente que tento evitar ao máximo. Principalmente depois de passar os quatro piores
meses da minha vida preso em um, mais precisamente em uma cama, sem tevê a cabo, com vista
para um monte de mato, recebendo visitas curtas e esporádicas de Harry que precisava se dividir
entre eu e os bebês, que naquela época eram recém nascidos e não podiam ficar saindo de casa o
tempo todo.

Meus pais e minhas irmãs não podiam vir todos os dias, afinal, todos tem suas vidas
independentes. Anne era a pessoa que eu mais vi durante aquele período, ela vinha sempre pela
manhã, quando o restaurante estava fechado e passava horas sentada ao meu lado, sem conversar
sobre nada em especial, apenas mantendo a solidão longe. Hoje eu sei o quão fundamental foi sua
atitude, porque a solidão se aproxima e domina com tanta facilidade.

Ainda mais no meu caso.

Evangeline tinha morrido, eu me encontrava em um estado delicado com uma recuperação lenta,
Harry era como um fantasma que só se lembrava de trocar fraldas e fazer mamadeiras, eu não
falava com ele. Não falava com ninguém e pensamentos ruins sempre culminaram em minha
mente.

Acredito que o suicídio seja algo que todo mundo já considerou. Pelo menos uma vez.

Viver não é fácil, o mundo e as pessoas nunca colaboram para que possamos nos abrir ou tentar
mudar nosso pensamento. Cada um de nós enfrenta uma batalha, mas não era nisso que eu pensava
quando estava encarando a banheira cheia em um dos quartos deste mesmo hospital, pra mim eu
era o único que sofria.

Mas não era verdade.

Bastava olhar ao redor, fazer uma pergunta para qualquer paciente ali e você veria. O sofrimento é
coletivo. Eu não era o único, tantos outros ali se encontravam em uma situação semelhante ou até
pior e mesmo assim, de alguma forma, eles conseguiam seguir em frente. Conseguiam viver mais
um dia, vencendo a vontade de desistir, porque vale a pena lutar, para mim, valia a pena ouvir a
risada dos meus irmãos mais novos, valia a pena provar as delícias culinárias da minha sogra, valia
a pena receber flores de um batalhão inteiro, valia a pena segurar meus filhos nos braços e valia a
pena beijar meu marido e dizer que eu não iria a lugar nenhum.

Mesmo com todas as possibilidades eu não desisti. Cada dia é uma luta e a cada noite uma vitória.

Eu sabia que Harry enfrentava algo parecido, mas imaginei que ele fosse me dizer algo. Que ele ao
menos daria um sinal.

Bem, talvez ele tivesse dado, caso estivesse ao seu lado e não no Queens fumando maconha com
um ex amante.

Eu deveria ter estado com ele quando seu mundo veio abaixo.
É por isso que eu odeio hospitais, porque eles sempre estão presentes em nossos momentos de
fraqueza e dor. Estar aqui só me faz ter certeza absoluta do quão fodida nossas vidas estão.

Três anos e nada muda.

Dobro a coluna, a procura de um médico, todavia, nenhum circula pela sala de espera. Não me
lembrei de pegar o celular, apenas agi totalmente por impulso, checando a pulsação dele e
enrolando as toalhas mais grossas que encontrei ao redor dos seus pulsos, liguei para a emergência
e em três minutos estavam colocando-o em uma maca e saindo às pressas.

Não pensei em ligar para ninguém, apenas deixei água e comida para os bichos, vesti Spencer e
Blake no primeiro conjuntinho que encontrei e mesmo sendo fim da primavera e o tempo não sendo
exatamente agradável pela manhã eles foram de bermuda jeans e t-shirt. Não vejo a hora de Harry
acordar e me dar um sermão por não ter colocados roupas decentes nos garotos.

Quando Harry acordar...

Estamos aqui há sete horas.

Meu braço esquerdo está com câimbra e os nervos latejando, mas eu continuo a empurrar o carinho
de bebê duplo, onde eles dormem um sono agitado.

Spencer é muito ligado a Harry e é como se ele sentisse quando ele não estava bem.

— Papa... — Spen choraminga durante o sono.

— O papa está aqui, amor. — Acaricio seus cabelos castanhos.

— Papa Hairy.

— O papa Hairy — Imito seu jeito de falar, o cobrindo melhor com sua coberta — , já vem. Por
que não segura isso pra ele enquanto espera? — Repouso uma das bandanas de Harry próxima ao
seu rosto e ele a agarra imediatamente, colando o nariz nela e aspirando o cheiro do seu papai
preferido.

Após alguns minutos ele está dormindo completamente.

Empurro o carrinho até uma máquina de café e tomo mais de três copos para tentar me manter
acordado. Eu não durmo há 24hrs e minha aparência é digna de um mendigo, francamente, se eu
pudesse deitaria nesse chão e acordaria só na próxima semana. Beberico mais um gole do café
morno, com meus olhos lutando para se manterem abertos e minha testa raspando na superfície
gelada da janela do corredor.

Harry tentou se matar.

Harry queria morrer.

A culpa é minha?

— Louis! — O grito retumba pelo corredor e eu quero esganar Liam ao que os meninos começam a
acordar.

O observo caminhar em minha direção. Cabelos curtos, com uma espécie de franjinha atualmente,
barba densa, tatuagens por toda a parte, jaqueta de couro e um óculos escuro preso a gola da
camisa. Um verdadeiro deus grego, perto de mim. Pelo menos agora.
— Eu te liguei um milhão de vezes, Grimshaw queria falar com você. Michael disse que
deveríamos passar no laboratório...

— C-como me achou?

— Eu sou um detetive. — Diz simplesmente — O que faz aqui?

Passo a mão por meus cabelos bagunçados.

— Harry... — Cortou os pulsos, melhor não dizer isso. Minta — , estava sentindo muitas dores a
noite passada.

Liam pisca os cílios longos e coloca as mãos na cintura. Visivelmente preocupado, até demais.

— Meu deus! Mas sabe se ele está bem? E o bebê? Ele não perdeu o bebê, não é? Por que não me
ligou? Você deveria ter me ligado.

— Você é o pai por um acaso?

— Não, claro que não, mas eu sou seu amigo. Sabe que pode contar comigo. — Liam parece
chateado e eu não tenho tempo de me desculpar quando a médica surge a minha procura.

— Senhor Tomlinson, pode ver seu marido agora.

Suspiro aliviado, quase como se estivesse à beira de um desmaio.

— Vai lá, cara, eu olho eles. — Payne aperta meu ombro, segurando o carrinho.

— Obrigado, Liam. — Sorrio contido, seguindo a doutora por entre as várias portas brancas até
pararmos em frente a uma com o nome Harry Tomlinson gravado — Como ele está?

A mulher de curtos cabelos negros e óculos de grau afunda as mãos nos bolsos do jaleco.

— Bem, por sorte os cortes foram superficiais. Ele perdeu pouco sangue, acho que tudo se deu mais
pelo susto. — Balanço a cabeça rapidamente — Fizemos uma ultrassom só pra garantir e o feto
está bem, ele ainda é muito pequenininho, mas não há dúvidas de que é forte. Harry acordou há
algumas horas.

— Acordou?

— Sim, foi bastante estranho, ele não parava de falar sobre o quão pressionado se sentia pelos pais
e que a escola e as provas estavam acabando com ele, além do fato de ser o saco de pancada dos
atletas.

— O quê? Ele está delirando?

Ela torce os lábios, ajeitando o óculos quando ele escorrega pela ponte do nariz.

— Talvez ou pode ser uma lembrança...

— Eu acho isso impossível, Harry estudou em um colégio interno e via a mãe duas vezes ao ano,
ele nunca estudou pra prova nenhuma e era um atleta, na verdade o mais popular deles. Não tem
como isso ter acontecido com ele.

— Sendo assim, pode ter sido um delírio. — A médica concluí, ainda parada na minha frente —
Seja como for, tentativa de suicídio é uma coisa grave e ele precisa falar com alguém sobre isso,
podemos encaminhá-lo para...

— Tenha a certeza de que assim que ele receber alta irei marcar uma consulta com o nosso
psicólogo. — Digo impaciente. Eu quero vê-lo.

— Por favor, faça isso. — Ela sorri e então me dá licença, com seus saltos martelando pelo chão.
Viro a maçaneta, entrando no quarto de hospital.

Ele é espaçoso e arejado. Cortinas de seda, vasos com flores frescas, sofá confortável e uma cama
grande o bastante para que Harry pareça pequeno nela. Seus longos cabelos cacheados estão
esparramados pela fronha, emoldurando o rosto pálido dele, que não tem nada de abatido. Ele
parece ótimo, como se estivesse em um de seus sonos de beleza, o peito coberto pela camisola
padrão e o lençol puxado até seu ventre, toco-o com gentileza, sabendo que embora o bebê ainda
não possa chutar ele está lá, em segurança.

Contorno as maçãs levemente rosadas de seu rosto, descendo meu indicador até seus lábios que
permanecem suaves e corados.

Ele parece bem.

Tudo parece bem.

Mas meus olhos me traem ao olhar para suas mãos em cada lado do corpo, com grossas ataduras
ao redor dos pulsos.

Não me atrevo a tocar, apenas tomo distância. Sentando no sofá, do outro lado do quarto e
fechando os olhos.

Eu quase o perdi...

— Você está perdido? — Encaro os grandes olhos verdes do garoto que segura a porta, ele não era
bem o que eu tinha imaginado. Alguns cachinhos achocolatados escapam de sua touca preta, da
mesma cor da blusa de malha com a gola tão cavada que expunha o peito levemente bronzeado,
alguns rabiscos que eu presumo serem suas tatuagens e um colar prateado com uma cruz. Suas
calças parecem legging feminina pelo quão agarradas ficam em suas coxas fartas e coladas uma na
outra, devido aos calcanhares cruzados.

Mas o mais incrível se encontrava naquele rosto banhado em uma luxúria condensada com
inocência refletida naqueles olhos atrevidos, nos traços marcantes e nos lábios vermelhos e
inchados que se cerravam diante da minha presença.

Ele não parecia em nada com os traficantes que eu estava acostumado.

— Você é Harry Styles, estou certo? — Leio na ocorrência e ele assente — Agente Louis
Tomlinson, da policia de Nova York. Recebemos uma denúncia de que você está traficando drogas
ilícitas.

— Eu? Oh, que absurdo. — Ele ri debochado. Péssimo mentiroso, Harold.

— Seja como for, eu tenho um ordem de busca e apreensão. Com licença.

Ele não sai do meu caminho.

— Não pode entrar no meu quarto. Isto é abuso de poder.


Ergo o mandato na altura de seu rosto.

— Como pode ler aqui, senhor, não estou infligindo nenhum de seus direitos como cidadão.
Agora, deixe-me fazer o meu trabalho.

Styles lê com extrema lentidão, me ignorando propositalmente.

— Senhor Styles?

Bufo irritado. Estou no corredor de uma fraternidade, com um bando de adolescentes andando de
um lado para o outro, falando alto e agindo feito crianças. Quando um deles mexe comigo eu perco
a paciência.

— Com licença. — Invado o dormitório de uma vez, batendo o ombro no seu.

Seu quarto é uma bagunça terrível, com uniformes do time de basquete, pôsteres do M. Jordan e
garotas de biquíni, uma coleção de bonés em uma das prateleiras e outra cheia de bonecos dos
Power Rangers.

Uma mistura de fratboy com nerd.

— Isso é ridículo! — Ele resmunga quando eu começo minha busca. Vasculhando toda aquela
zona a procura da maconha.

Suas coisas são esquisitas e uma não tem nada a ver com a outra. Quantos garotos moram neste
quarto? Parece que há no mínimo cinco pessoas diferentes.

— Eu deveria denuncia-lo por me importunar tanto.

Depois de vinte minutos não há nada.

Talvez tenha sido só mais um trote. Eles vivem fazendo isso e como sou novo no departamento
eles me mandam para averiguar.

— Certo. Está limpo!

Ele sorri convencido, expondo um par de covinhas. Filho da puta bonito!

— Eu disse.

— Está bem, desculpe o incômodo. — Suspiro, afastando a franja dos olhos e Harry já está abrindo
a porta para que eu saia de uma vez quando meus olhos param em uma bolsa de lantejoulas cor de
rosa. A pego do closet e abro, encontrando justamente o que eu imaginava — Aqui está.

Balanço o pacote com cerca 100g diante de seus olhos que dobram de tamanho.

— Eu... Eu nunca vi isso na minha vida. Deve ser do meu colega de quarto, sim, com certeza é do
Michael. — Diz apressado.

— Eu falo mais tarde com o Michael, agora você vem comigo. As mãos atrás do corpo. — Ele não
obedece e ainda faz cara feia. Reviro os olhos, virando seu corpo e puxando seus pulsos para atrás
de suas costas, algemando-o — Você está preso por tráfico. Você tem o direito de permanecer em
silêncio; tudo o que você disser poderá e deverá ser usado contra você no tribunal. Você tem o
direito de ter um advogado presente durante qualquer interrogatório. Se não puder pagar um
advogado, um defensor lhe será indicado. Entende os seus direitos?
— Isso é absurdo!

— Não ouviu quando eu disse sobre o seu direito de ficar calado? Deveria usá-lo. — Guio o
traficante-mirim pelo corredor da fraternidade, com todos olhando, o garoto abaixa a cabeça e eu
quase, quase, sinto pena.

Seguimos até meu carro e ele guincha quando o empurro para dentro do mesmo sem delicadeza.
Entro, girando a chave e encontrando seus olhos me encarando pelo retrovisor.

— Acalme-se, garoto, esse não é o fim do mundo. Logo, logo, mamãe ou papai irão pagar sua
fiança e não precisará me ver nunca mais.

Sua expressão endurece ainda mais, seus olhos aguados.

— Eu te odeio.

Será que ele me odeia?

Batuco meus dedos contra meu estômago, com a cabeça latejando e uma dormência agoniante
dominando meus membros.

— Hm... — Salto do sofá no momento em que o ouço — Lou.

— Oi, gatinho, estou aqui. — Digo, me prostrando ao seu lado na cama, afastando uma mecha de
cabelo que cai em sua bochecha. Ele pisca devagar, franzindo as sobrancelhas.

— Onde estou? O que aconteceu? — O timbre rouco me conforta como nenhum outro.

— Você não se lembra?

Harry se remexe, tanto inquieto quanto sonolento, sem reconhecer o local.

— Eu lembro de ter ido a lavanderia.

— Lavanderia? E o médico? Você se lembra de ter ido ao médico? — Questiono com cuidado.

— Não. Só lembro da lavanderia, eu caí lá?

Lavanderia, ele disse algo sobre ter que ir até lá de manhã, mas depois foi até o hospital onde nós
tivemos o nosso desentendimento e ele deve ter voltado pra casa, cuidado das crianças, os colocado
no berço e então resolveu tentar o suicídio. Eram memórias demais para terem sido apagadas.

— Hazy, você não lembra de ter me visto depois que eu saí de madrugada? Ou talvez de ter feito
algo com você? Com o seu corpo?

— Nah. — Ele parece meio dopado.

— Tem certeza? — Me aproximo, deixando que ele esconda o rosto em meu peito.

— Harry só foi a lavanderia. — Ótimo, agora ele vai falar de si mesmo em terceira pessoa.

— Okay, Harry. — Beijo sua testa.

Me aproveito da cama larga para deitar ao seu lado, o abraçando com todas as minhas forças e
adormecendo com sua respiração quente em meu pescoço.
Xx

Harry não se lembrava de nada.

Nem uma mísera lembrança do que aconteceu depois que ele saiu da lavanderia naquela manhã.
Ele estava confuso e assustado por não saber como ou porquê foi parar em um hospital e depois de
conversar com a médica, chegamos a conclusão de que ele poderia ter tido um surto e que não
estava consciente quando cortou os pulsos, então não restavam memórias e o melhor a se fazer, no
seu estado frágil e como gestante, seria omitir temporariamente sobre o ocorrido, mas encaminha-
lo o quanto antes a um profissional.

No fim das contas, meu marido acreditou que havia caído da escada e feriu os pulsos durante a
queda. Isso o deixou apavorado em relação ao bebê, porém, após saber que ele estava bem,
relaxou.

Acabei por pedir o fim de semana de folga e como Nicholas estava tão preocupado com Harry
aceitou na hora.

Ninguém além de mim e da médica que o atendeu sabia da verdade.

Ninguém mais precisava saber.

Foi apenas um susto.

Nada mais.

A única coisa que importa é que estamos aqui, estamos juntos, com suas costas suadas grudando
no meu peito ofegante e seus quadris se chocando contra o meu, minhas bolas estalando em sua
bunda a cada nova investida. Deixando sua pele de porcelana em um tom vibrante de rosa.

— Mais rápido, mais rápido. — Ele geme, agarrando o lençol e jogando a bunda de encontro ao
meu pau que se encontra firmemente enterrado dentro dele. Meus dedos apertam a carne macia ao
redor de seu quadris e Harry grita.

Não passa das dez e nossos vizinhos já devem estar nos ouvindo.

No entanto, não é como se eu pudesse negar ao meu marido grávido e tão cheio de hormônios uma
inocente foda no meio da manhã, ainda mais de lado onde eu posso continuar a abraça-lo e ter meu
pênis tão bem acolhido por sua entrada. Era o tipo de sacrifício que eu fazia com prazer, muito
prazer.

Chupo seu pescoço, sugando sua pele até ter uma marca vermelha se formando. As unhas curtas de
Harry estão se afundando na minha bunda, me puxando para ele, me querendo cada vez mais
fundo.

— O quão fundo você me quer? — Sussurro em seu ouvido, com a voz embargada de gemidos e
ofegos — Talvez aqui. — Fodo com força sua próstata sensível e ele trêmula inteiro, levantando a
perna direita para poder me sentir ainda mais e minha mão sobe até seus mamilos que encontro
com imensa facilidade ao sentir os bicos salientes sendo esfregados por meus dígitos conforme
Harry se movimenta.

— Oh, porra, assim, por favor, não para. Não para nunca! — Grita quando eu torço um mamilo
entre meus dedos.

Puxo sua mão do meu quadril e a direciono até onde nossos corpos se unem, o fazendo dedilhar
meu membro e sua entrada alargada e bem preenchida.

— Quer ficar assim para sempre? Com meu pau se afundando na sua... — Deixo um caminho de
chupões desde seu pescoço até o ombro — pequena e delicada entrada, é isso que você quer?
Deixá-la aberta e se esforçando para me receber, é isso que quer?

O som que escapa de seus lábios é tão baixo que soa como um ronronar, observo como seus dedos
continuam onde estão alisando o anel de músculos avermelhado e abrindo ainda mais sua bunda,
arranhando sua pele e a deixando ainda mais marcada. Ah, como eu adoraria marca-la com tapas
fortes, mas Harry detestava isso, ele era sensível a dor, do tipo que chorava se recebesse um tapa e
não, não tinha nada a ver com prazer. Ele realmente não gostava disso.

Ele era uma dama e eu precisava tratá-lo como tal, mesmo que ele não costumasse me tratar como
um cavalheiro.

— Quero. — Sibila, virando o rosto para mim, com os lábios abertos e molhados, as pupilas
enormes e o rosto vermelho. Abandono seu mamilos para segurar seu queixo e sugo seu lábio
inferior, gemendo com o quão delicioso ele é, por inteiro. Contorno o superior com a ponta da
língua e Harry estende a sua procurando pela minha, me afasto apenas para provocar e quando seus
olhos brilham com lágrimas eu o beijo, afundando minha língua naquela cavidade quente e sendo
agraciado com sua língua deslizando na minha ao mesmo ritmo que ele rebola, lento e tentador.

Ao mesmo tempo sua mão e a minha envolvem seu pênis e nós dois o masturbamos. O som de
nossos dedos correndo por seu pau úmido ecoa, assim como do meu pênis socando em sua entrada
apertada e o nosso beijo explicitamente sexual.

Ele vem em nosso punho, com porra espirrando pela cama e em seu tórax. Harry está mole e
ofegante quando eu saio de dentro dele, o virando de costas pra cama, monto em seu peito,
afastando o cabelo do seu rosto e o tendo livre para mim. Seus dedos cobertos de anéis alisam seus
mamilos e ele forma um biquinho ao que pressiono a glande em seus lábios, masturbando meu
membro.

Mordo os lábios, movendo minha mão com agilidade, sentindo meu orgasmo se aproximando
apenas com a visão daquela face angelical esperando ser banhada pelo meu gozo. Ele fica ainda
mais lindo com meu esperma escorrendo por suas bochechas, pálpebras e cobrindo seus lábios.

Estou tão perto e sabendo disso, ele passa a língua pela minha fenda, girando a língua como se
provasse seu picolé predileto. E isso é demais!

Os jatos intensos vão de encontro as suas pálpebras, bochechas, queixo, testa e boca e como eu
disse, lindo.

Não digo uma palavra, apenas admiro a forma como ela vai escorrendo por sua pele e seu peito se
move acelerado, tal como o meu. Reviro a gaveta do criado mudo e pego nossa câmera instantânea
tirando uma do rosto de Harry, apenas para eternizar esses momentos divinos.

— Me diz que você não tirou uma foto disso. — Fala com a voz risonha, limpando o rosto no
lençol e piscando seus olhos verdes pra mim. Tiro outra foto — Você disse que era pra registrar
momentos em família.

— Você é meu marido, ou seja minha família e nós estamos tendo um momento. — Cutuco sua
bochecha e uma covinha afunda ali e eu a fotógrafo.

— Ótimo argumento. Deveria ter seguido como advogado mesmo, Tomlinson.


— Não, eu prefiro mil vezes as ruas do que um tribunal. — Digo, focando a lente em seus
mamilos, prendendo a pontinha entre dois dedos e Harry se arqueia e dá uma belíssima foto —
Talvez eu largue a polícia e vire fotógrafo, o que você acha? — Tenho outra ideia e também pego
uma canetinha azul que vive jogada pela gaveta e a uso para rabiscar a barriga dele, limpo o gozo,
é claro, antes de desenhar um coração bem grande e escrever Leslie acima do umbigo.

— Louis, quem é Leslie?

— O bebê! É um ótimo nome, serve para menino ou menina, e caso ele queira mudar de gênero,
sei lá... Só vai ser mais prático. — Mais uma foto.

— Então vamos seguir o mesmo método que fizemos com o Spencer e o Blake?

— Uhum. — Deixo a câmera na cama para tornar a vira-lo, desta vez o deixando de bruços.

— Lou, o que é que você está fazendo? — Pergunta, com a voz saindo abafada por conta dos
travesseiros.

— Tirando fotos, já disse. — Coloco um travesseiro por debaixo do seu quadril para tê-lo erguido
pra mim e escrevo Daddy Property em uma banda de sua bunda e uma flecha em direção a sua
entrada. Do outro lado fica BoyToy.

— Para, eu tô com vergonha.

— Vergonha de quem? De mim não pode ser. — Brinco, beijando sua entrada rubra e a
fotografando também, afundo apenas a pontinha do dedo a puxando um pouco para deixá-la aberta
e poder fotografa-la.

— Da câmera. Eu tenho vergonha da câmera. — Ele resmunga e fecha as pernas.

Reviro os olhos, tirando mais algumas fotos de várias partes do seu corpo até que eu volte a me
deitar ao seu lado, com um monte de polaroides em cima do meu estômago, começo a olha-las e é
claro que aquele cacheado curioso começa a se aproximar esticando o pescoço pra ver a si mesmo.

— Oh, eu tenho um bumbum fofinho.

Gargalho de seu comentário inocente.

— Não ria de mim.

— Desculpa, babe. — Seco os olhos depois de tantas risadas — Você tem o bumbum mais fofo do
mundo. — Continuo passando as fotos.

— BoyToy, é? Daddy Property? — Harry arqueia uma sobrancelha, pegando as duas fotos para
examinar melhor.

— Foi brincadeira. — Tento explicar antes que acabe em briga.

— Por acaso eu sou o seu brinquedinho sexual, que você usa como bem entender? Hein? Ou então
que eu sou o baby do daddy que vive implorando pra ser fodido? — Sua voz baixa muitas oitavas e
seus olhos se estreitam.

— Amor...

— Quer que eu use uma coleira com o seu nome e gema pra você como uma vadia? Você quer?
Engulo em seco, sem saber o que dizer.

De repente ele explode em uma de suas risadas esquisitas e eu não sei se deveria rir ou não. Cara
estranha, me define.

— Meu deus, Louis, que cara é essa? — Ele fica de frente para mim, esfregando o nariz na minha
bochecha e terminando de olhar as fotos. Apenas de olha-las eu fico excitado, principalmente com
as de sua entrada abusada e vermelha — Você gosta dessa? — E é justamente sobre ela que ele
pergunta.

— Muito.

— Vai andar com ela na carteira?

— Possivelmente.

— E vai fugir no meio do expediente para ir até o banheiro e bater uma apenas olhando pra ela?

— Com certeza. — Garanto, sem hesitação e Harry permanece sem expressão e então a pega e leva
até os lábios, deixando um beijo nela antes de me devolver — O que vai fazer com as outras?

— Bom, todas vão para a minha caixa da punheta.

— Ah sim, aquela caixa... Ainda com um monte de fotos do Channing Tatum?

— Sabe que ele é o homem da minha vida. — Acaricio suas costas, Harry resmunga — Eu sei que
você tem uma com um monte de fotos do Ian McKellen. Isso é sinistro.

— Todo mundo tem tesão no Gandalf.

— Não, todos tem tesão no Aragorn, alguns esquisitos no Frodo, mas definitivamente Aragorn.

— Talvez eu seja o mais esquisito de todos então. — Ele passa a perna por meu quadril, beijando
meu queixo.

— Você é louco, Hazy.

— Tem razão. Eu sou insano. — Cantarola, arranhando minha nuca e me beijando novamente,
afoito e desesperado, como se não tivéssemos transado há alguns minutos. O deixo dominar por
completo, mordendo meus lábios e sugando minha língua como bem entendesse e sei lá, parece
diferente. Principalmente pelo fato dele estar roçando em mim, em que mundo Harry estaria
esfregando seu pênis sensível em mim? Não neste.

— Shhh, bae, calma. — Seguro seu quadril, quando ele fica enérgico demais e eu temo que ele
acabe se machucando — Relaxa.

O cacheado fecha os olhos e respira fundo e assim permanece conforme o tempo vai passando e as
nuvens lá fora vão dando lugar ao sol de início de verão.

— O que acha de fazermos algo especial hoje. Já que podemos estar passando esse tempo juntos.

— Tipo o quê?

— Hm, que tal piquenique?

Harry abre apenas um olho e belisca meu mamilo.


— Você me come e depois me alimenta, muito esperto, Tomlinson, muito esperto.

Xx

Ao meio dia meu carro estava debaixo do sol quente no estacionamento do central park. Harry
estava estirado na toalha quadriculada, na sombra, usando seus óculos rosa choque da Gucci e
pintando as unhas, beliscando ocasionalmente os cookies que conseguimos ao visitar o restaurante
de Anne, já que resolvemos fazer um piquenique e esquecemos de fazer compras. Quem sabe se
Harry não tivesse o costume de demorar tanto no mercado nós poderíamos ter ido, mas eu preferi
não arriscar e ir até onde sabia que encontraria boa comida sem precisar pagar.

Spencer pedalava em sua motoca do Homem-Aranha com um boné xadrez, igual ao meu e Blake
corria sem camisa pela grama usando o Fedora de Harry que cobria seu rosto quase inteiro. Ele ria
alto com seus pés descalços e ligeiros indo o mais longe possível de mim, mas eu sempre o pegava
em questão de segundos e então era a sua vez de correr atrás de mim tentando me pegar.

— Eu pega você! — Blake anunciava, tentando chegar até mim.

Tive um momento para me orgulhar por ele ter dito aquela frase quase que completamente certa e
voltei a correr, desviando de Spencer em seu dirigível.

Estávamos indo bem. Com o dia fresco e agradável, sem possíveis assassinatos sanguinários ou
tentativas de suicídio a vista. Era apenas eu e minha família se divertindo, até os outros integrantes
dela surgirem.

Sonny, que perseguia um pássaro corria feito um louco e no meio do caminho trombou com Blake
que caiu e bateu o joelho em uma pedra e qualquer um num raio de 20km podia ouvir seus gritos.

— O que foi? — Harry correu até nós, me afastando como se eu fosse um intruso e checando o
joelho ensanguentado do bebê — Droga, Louis! Você não consegue nem ao menos cuidar deles,
olhe só pra isso. — Agarra Blake e o esconde sob sua asa, voltando para a toalha.

Deve ser só mais uma oscilação de humor. Resolvo deixá-lo cuidando de Blake e vou dar uma
volta com Sonny e Spencer, mesmo sendo minúsculo ele insiste em levar a guia do cão e eu deixo.

Paramos em frente a um sorveteiro e eu pergunto qual ele vai querer.

— Moango, por favô. — Diz com a voz infantil e então pego seu picolé e o entrego. Comprando
para os outros dois também.

— Gostou? — Indago, quando ele termina, me ajoelho para limpar seu rosto todo sujo.

— Sim, papai, porque o papa bravo?

— O papa não está bravo, apenas preocupado. Ele não gosta quando vocês se machucam. —
Explico, tentando limpar as manchas rosadas da gola de sua regata sem sucesso.

— E fala sozinho?

— Ele fala sozinho? — Ele balança a cabeça devagar, com os olhinhos assustados

— Papa oco?

— Não, Spen, papa não é louco. Isso é normal, okay. — Aperto seus ombros miúdos.

— Mas você não fala sozinho.


— Claro que falo, de vez em quando tudo bem.

— E brigar sozinho?

Ele fala e briga consigo mesmo? Mas que porra é essa?

— Acho que precisamos nos apressar e levar esses sorvetes antes que eles derretam. — Spencer
concorda e me dá a mão, chamando por Sonny que está farejando os pés de uma senhora.

Quando retornamos Harry não está mais tão puto comigo e voltamos a aproveitar o passeio, Mona
e Shae dormem dentro da cesta de piquenique vazia após comermos tudo o que havia lá, as barrigas
dos gêmeos estão estufadas e Blake virou um bebezão depois de ter se machucado, agarrado a
Harry como um filhotinho ele dormiu em seus braços e não acordou mais. Spencer e eu jogamos
bola e frisbee com Sony até o sol ir baixando e ser hora de ir embora.

Prendi os dois em suas cadeirinhas, mesmo se engalfinhando Sonny, Shae e Mona ficaram em
harmonia. Terminava de guardar a cesta no porta-malas quando notei Harry ainda em pé, com a
porta do carro aberta. O fechei e caminhei até ele, dando um toque na piranha escura na parte de
trás de seu cabelo.

— Qual é da piranha?

— Meu cabelo fica caindo no rosto. — Bate nos bolsos do shorts da Adidas, provavelmente a
procura do celular.

— Deveria fazer um trança. A Lottie gosta tanto quando você trança os cabelos dela. — Um vento
mais forte sopra contra nós e ambos os cabelos se revoltam e caem em nossos rostos — Acho que
eu preciso de uma trança também.

— Seria ótimo se eu conseguisse fazer em mim.

— Então me ensina e eu faço em você.

— O quê? Você faria isso por mim? — Pergunta com descrença.

— É claro que sim. Não há nada que eu não faria por você. — Dou um passo pra frente, beijando o
sinal próximo a sua boca — Eu te amo.

Os ombros do meu marido caem e ele entrelaça nossos dedos.

— Desculpa por ter sido rude mais cedo.

— Não precisa se desculpar, eu entendo. — Seguro seu queixo — Na verdade eu fico feliz que
você vire um leãozinho quando se trata dos nossos filhos.

— Leãozinho? — Faz careta, soltando minha mão — Respeite meu espírito aquariano.

Não consigo segurar a risada.

— Me esqueci que você tem essa coisa com signos e tal, lembra quando você me veio com essa de
aquariano?

— Você pensou que era algum tipo de religião. — Responde, desapontado como sempre por eu ser
uma merda nessa coisa de astrologia.

— Queria o quê? Você me disse que não podíamos ficar juntos por capricórnio e aquário terem
poucas chances e a lealdade não era das melhores. Eu pensei que era coisa de religião mesmo. —
Rio dando a volta e entrando no carro, junto com ele.

— Vimos que pelo menos na parte da lealdade eu estava certo. — Harry retruca e um mal estar me
sobe na hora.

É, tem isso ainda.

Se ele esqueceu do resto daquele dia, também deve ter esquecido que Michael Clifford está de
volta a cidade e trabalhando em um caso comigo.

Abro a boca, prestes a contar a ele sobre isso, mas me interrompo antes mesmo de falar. Tem uma
menina, do outro lado da calçada pulando corda. Jardineira rosa e cabelos soltos, longos cachos
grossos que pulam a cada salto que ela dá, grandes olhos verdes brilhando pela animação de não ter
errado nenhuma vez, ela é pequena, sete, oito anos no máximo e por mais que ela não seja idêntica
é o bastante para resgatar a lembrança de Eve.

Eu sei, apenas de observa-la isso acontece.

Harry está encarando, ele nem ao menos pisca, sua mandíbula treme e eu não sei o que dá em mim
quando digo:

— O caso vai ser fechado.

— O quê?

— Grimshaw me disse que a diretoria decidiu assim. Não tem provas, nem nada, três anos e
nenhum resultado. É perda de tempo. — Olho para a frente, porque não quero ter de encara-lo
enquanto digo isso.

Ouvi-lo soluçar machuca do mesmo jeito.

— Eu sinto muito. Me perdoa, eu causei tudo isso.

Me atrevo a olha-lo de soslaio e Harry está com os joelhos dobrados contra o peito, escondendo o
rosto de mim, do mundo. Ele gostaria de poder sumir agora.

— Eles queriam te matar, a culpa não foi sua. Eu sabia dos riscos quando quis ficar com você, eu
sabia, sempre soube.

Aperto meus olhos para não me deixar chorar, tento tocar seu joelho, mas ele recua.

— Só me leva pra casa!

— É claro, querido. — Engulo o bolo em minha garganta e começo a dirigir.

Xx

Quando a lua está beijando o céu e as estrelas salpicam toda a negritude infinita, meus filhos estão
desmaiando depois de fazerem uma maratona de Bob, o trem. Depois de levá-los para seu quarto e
lavar a louça do jantar, caminho em minhas meias com estúpidas girafinhas – cortesia da dona
Johanna – pelo assoalho de madeira, um pouco lascado e manchado por nunca ter sido trocado
desde que compramos a casa, mas eu sempre gostei do quão rústico ele é e dos rangidos que faz a
um passo mais pesado.

Eu passo reto por nosso quarto, porque sei bem a onde ele está.
A porta tem um rangido sofrido quando eu a abro, encontrando Harry descabelado e ainda de
roupão sentado na cama, abraçado a colcha cor de rosa, em meio a bonecas, ursinhos e almofadas
coloridas. Os livrinhos de colorir nas prateleiras permanecem em branco, assim como todos
aqueles vestidinhos da queima de estoque da Gucci de 2015.

Nós nunca tiramos uma poeirinha sequer de lugar, apenas passávamos o aspirador por cima e
abríamos a janela para entrar um pouco de ar, de resto era exatamente como ela deixou naquela
manhã, antes de ir para o ballet, indo nas pontas dos pés até Harry que lia um livro sentado no sofá
lhe dar um beijo de despedida e um tapinha em sua barriga redonda que era uma espécie de high
five com os irmãos. Evangeline bagunçou o pelo de Sonny e prometeu que voltaria antes do
almoço, Harry me disse que ele ficou na janela esperando e bem, até hoje é onde ele fica quando a
hora do almoço se aproxima.

Não como se ele pudesse entender que ela não vai mais voltar. Eu mesmo tenho dificuldades para
compreender isso e tem vezes que espero com ele.

Evangeline está morta há três anos, mas neste quarto é como se ela ainda estivesse bem aqui.
Talvez lá embaixo, assistindo televisão enquanto janta seu macarrão instantâneo com catchup.

Eu sinto falta dela.

— Eu também. — Harry diz e percebo que disse aquilo em voz alta — A terceira gaveta da
escrivaninha. — Ele aponta com o dedo trêmulo e eu sei bem o que guardamos ali.

Uma avalanche de sentimentos parece estar sempre pronta para rechear nossos dias. Pela manhã
estávamos nos ocupando em transar e tirar fotos indecentes e a noite ele me pede isso.

— Harry, eu não...

— Eu preciso disso, por favor, apenas faça.

Prenso os lábios e a contragosto vou até a escrivaninha e tiro da terceira gaveta a pasta azul. Dou o
play em seu radinho da Barbie e o único CD que ela tinha e que costumava ser o seu preferido
começa a rodar.

E enquanto os Extreme cantam More Than Words, tão adulta, penso ao abrir a primeira página do
arquivo, sentando em uma poltrona onde eu costumava sentar para lhe contar histórias de dormir.

— Evangeline Anne Tomlinson, nascida em 11 de fevereiro de 2007, em Manhattan, Nova York.


Filha de Louis William Tomlinson e Harry Edward Tomlinson. — Pulo os demais detalhes que
estou cansado de reler e vou direto ao relatório — No dia 8 de maio de 2015, às 13h45min, na
Fulton Street, uma emboscada foi armada contra o agente especial do FBI, detetive Louis
Tomlinson, na segunda parada feita pelo veículo, modelo Mustang Shelby GT, dois carros os
cercaram, na traseira e na frontal, efetuando os disparos com as armas de fogo ( não identificadas ).
Foram encontrados exatos noventa e seis projéteis. A vítima foi alvejada, recebendo trinta tiros,
oito destes na cabeça e falecendo no local. — Prendo o ar, piscando algumas lágrimas que tentam
se desprender dos meus olhos. Eu odeio chorar. Ainda mais quando a imagem dela surge de modo
tão vivaz, pequena, frágil, meiga e morta.

Os pais não deveriam ver os filhos morrer.

Muito menos com oito tiros na cabeça, deixando sua coroa de rainha das fadas manchada de
sangue.

Desvio a atenção do papel quando ouço um som de engasgo, encaro Harry que permanece estático,
com o punho fechado rente a boca, relutante ao enjoo que eu sei que sobe a sua garganta. Eu faço o
mesmo.

— As fotos. — Geme, me estendendo a mão.

— Eu não... — Ele rosna e eu cedo. Puxo as fotografias, mantendo-as viradas porque eu


sinceramente não suporto mais ver isso.

As despejo no colo dele e Harry as vira lentamente, enquanto eu retorno ao meu lugar, seus olhos
examinam vagarosamente cada imagem assustadora. Aquilo tudo ainda parecia um filme de terror
para mim.

Então ele está chorando e só me resta olhar. Sei que quem olha de fora pensa que eu sou um
marido de merda – coisa que eu também sou – mas acontece que nenhum de nós é bom nessa coisa
de ser casado, de ser um casal mais especificamente, éramos basicamente incapazes de se apoiar e
buscar força um no outro, sempre fomos individualistas e até mesmo egoísta quanto aos nossos
demônios e sofrimentos.

Prezamos religiosamente por nosso espaço, nosso momento de solidão para desfrutar plenamente
da dor.

E ao outro só resta olhar e esperar, tomar um banho, assistir algum filme e poder retornar aos
braços do outro como se nada tivesse acontecido. É assim que a gente faz e tem funcionado ao
longo dos anos.

Doze anos. Uau.

— Leia, de novo. – O timbre rouco ecoa. Obedeço retomando a leitura.

Após o que parecem ter sido horas posso observar Harry desmaiado na cama de Eve, depois de
devolver o arquivo a gaveta, debatendo comigo mesmo a possibilidade de me desfazer dele na
lareira e desistindo logo em seguida, o cubro com a mesma colcha que ele permanecera agarrado,
fecho as janelas e me despeço com um beijo na testa.

Deixe que ele passe essa noite com ela.

Saio do quarto seguindo até o nosso. Minhas roupas são jogadas no velho sofá amarelo de canto, as
imensas janelas dando abertura para a noite ventanosa e uma careta pouco atraente se forma em
meu rosto quando paro diante do espelho do guarda-roupa, ele sendo longo o bastante para me dar
uma visão completa do meu corpo.

— Um. — Conto, dedilhando a marca em meu ombro — Dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito...
— Persisto tocando meu peito e estômago — , nove, dez, onze... — Todas as três na mesma região
do antebraço e eu continuo, contando cada uma das marcas que nunca desapareceriam da minha
pele. São tantas. Algumas balas ainda alojadas por motivo de é melhor não mexer e por aí vai,
mesmo espalhadas por toda a parte nunca me incomodaram, eu meio que gostava delas por serem
um lembrete constante de que eu falhei na única coisa que não tinha o direito de falhar. Passo a
palma da mão pelo rosto, afastando minha franja da testa e expondo a pequena cicatriz ali presente.
Um pouco mais para o meio e eu não estaria aqui, a mesma bala que me acertou de raspão acertou
em cheio a minha filha... Como conviver com tamanha culpa? Nem eu sei, acho que eu venho
apenas existindo a procura da resposta dessa pergunta. Respiro profundamente, encarando minha
imagem refletida, gostaria de poder dar um soco na cara do idiota que encara. Eu não gosto dele —
Vinte e três. — Concluo com o meio tiro em minha testa.
Eu fui acertado vinte e três vezes e aqui estou.

Um sobrevivente, um herói, um maldito.

Apago as luzes, fecho os olhos e por pelo menos algumas horas finjo que tudo não está um
verdadeiro caos. Ao menos por hora vamos fingir que tudo está bem.
│4│centaurus

A bolinha branca rola pelo carpete devagar, indo mais para a esquerda e quase passando reto por
mim. Me sinto exausto e entediado, mas continuo a bater palmas e comemorar como se esse fosse
o jogo mais divertido do mundo, justamente porque Blake acha esse o jogo mais divertido do
mundo.

Ele está sentado em posição de lótus, balançando o corpinho rechonchudo de um lado para o outro,
a camisa escura do Barcelona dando um maior destaque para os olhos azuis e ele se encontra
descabelado por simples preguiça da minha parte.

Ainda era cedo. Muito cedo.

Quando ele acordou, chorando sem parar eu apenas me arrastei até o quarto e o trouxe para sala,
nós tomamos café da manhã e nos esparramamos no tapete jogando bola um para o outro, foi legal
no começo, contudo, já me torrou a paciência. Esse era o único problema do meu filho, ele nunca
enjoava, de nada.

Poderia fazer a mesma coisa pelo resto da vida, sem cansar ou desanimar. Às vezes me pego
imaginando que tipo de homem ele será.

Provavelmente do tipo que todos detestarão, porque ao invés de reclamar e agir sem pensar, ele
saberá bem o que faz. Blake não será um idiota, como o pai dele.

Eu podia ser descrito como a personificação da impulsividade, um dia eu era preto, no outro
branco, quente e frio, sim e não. Não haviam meios termos pra mim, num dia eu tinha certeza de
que fiz as melhores escolhas pra minha vida e no outro é como se tivesse preso no meu pior
pesadelo. Não era à toa que meu psicólogo suspeitava que houvesse algo de bipolar em mim,
haviam personalidades demais coexistindo num mesmo homem e isso era perigoso, sempre é
perigoso.

Afinal, ninguém quer dividir os holofotes, uma hora ou outra alguém vai querer se destacar e tenha
certeza de que a mais ambiciosa tende a ser a mais cruel.

— Feliz? — Blake perguntou de repente. Uma carinha amassada e uma mordida de pernilongo no
queixo.

— Sim, filho, eu estou feliz. — Sorrio, devolvendo a bolinha — Ficar perto de você me deixa feliz,
amigão.

— Amigão. — Repete, afim de tentar imitar minha voz. Ele está se saindo bem. Os dois sempre
foram muito espertos e determinados, era uma pena que tivessem ficado um pouco atrasados
quando ainda entorpecido pelo luto meu marido assumiu uma postura super protetora, no nível
mais assustador da palavra. Naquela época nenhum de nós podia chegar perto dos meninos, tudo o
que eu ouvia eram suas vozes fracas e pequenas do outro lado da porta sem poder me aproximar,
pois quando o fazia era pra ter de lidar com um surto violento de Harry. Nesta mesma época ele
começou a demonstrar uma agressividade nunca antes vista, eu jamais imaginaria que alguém dócil
como ele pudesse arrombar uma porta com tamanha facilidade como ele fez no dia em que levei
os gêmeos para o trabalho, apenas para que meus colegas os conhecessem. Foi tão animalesco e
apavorante a forma como ele invadiu o lugar, me repeliu e os tomou como se fossem seus, somente
seus.
Foi daí que todos na agência passaram a acreditar que eu era casado com um lunático.

Liam, por ser um amigo de longa data era o único que sabia que Harry não era daquele jeito. Então
me ajudou a remediar a situação, o levando até a academia onde treinávamos box, o esporte
poderia ajudá-lo a extravasar toda aquela raiva contida e realmente ajudou.

Ele começou a melhorar.

Voltou a ser gentil e amável, o próprio procurou por um psicólogo, o qual nós dois frequentávamos
e fazia muito bem ao nosso casamento, poder colocar para fora todos os nossos sentimentos. E foi
assim que ele naturalmente deixou que nos aproximássemos de Blake e Spencer, Anne não tardou
em se agarrar a eles como uma âncora, uma vez que Evangeline foi o seu ser humano predileto em
todo o mundo, o mesmo aconteceu com Gemma, Lottie e todo o restante das minhas irmãs. Minha
mãe sendo a menos obsessiva.

O problema é que o tempo em que Harry criou aquela concha dura e impermeável ao redor deles,
houve pouquíssimo estímulo para que eles se desenvolvessem. Com um ano eles nem sequer
engatinhavam, ainda comiam papinha e precisavam ser ninados, o que era uma grande nuance se
comparada a nossa primogênita que nesta idade já estava no ballet.

Mas eles vinham melhorando com rapidez. Uma vez que podiam ter contato com o mundo e outras
crianças – a creche sendo uma exigência minha, porque, embora Harry pudesse ficar com eles em
casa, eu preferia que não. Às vezes sinto como se todo esse grude fizesse mal para eles, os sufoca.
A obsessão de Spencer por meu marido ainda sendo um problema considerável.

Já passou da hora de cortar o cordão umbilical.

Alguma coisa peluda e pesada salta nas minhas costas com uma língua molhada sendo esfregada
na minha nuca.

— Não me lamba, eu nem sei por onde essa língua passou. — Resmungo, virando para agarrar
Sonny e o jogar no chão, o são bernardo caindo de costas balançando as patas no ar — O Sonny
tem sido um cão muito mau, acho que alguém precisa de uma lição, não acha, amigão? — Observei
o sorriso no rosto do menino crescer e assentir rapidamente pulando no cão na mesma hora que eu,
enchendo seu estômago de cócegas.

Nós brincamos com Sonny, tendo as gargalhadas escandalosas de Blake ecoando pelos cômodos
até chegar aos ouvidos do irmão, pela babá eletrônica pude ouvir o choro histérico de Spencer. O
cachorro correu a nossa frente, meu filho me estendeu uma mão e manteve a outra na parede
enquanto subia com passinhos receosos um degrau após o outro.

Assim que empurrei a porta, Blake pulou para consolar o outro, enfiando o braço por entre as
grades fazendo carinho nos fios úmidos.

— Papa Hairy, cadê meu papa? — Era o que ele balbuciava entre o pranto quando me aproximei.

— Vamos trocar essa fralda e depois vamos fazer um café bem gostoso pra ele, okay? — O peguei
no meu colo, alisando sua bochecha.

— Okae. — Fungou com um pequeno sorriso.

Alguns minutos mais tarde estávamos quase que a família completa, caminhando pelo carpete do
corredor do segundo andar, os gêmeos riam baixinho segurando uma torrada cada, porque queriam
me ajudar com a bandeja. O cachorro e os gatos se estranhavam ao nosso redor e até o cágado –
Ray, como foi batizado pelos meninos – se juntara a nós para surpreender Harry. Segui na ponta
dos pés, empurrando a porta com cuidado com os ombros por minhas mãos estarem ocupadas
equilibrando uma das bandejas do conjunto de prataria que ganhamos no casamento e nunca
usamos. Nela haviam ovos, bacon, panquecas, frutas, seu chá predileto e até uma rosa vermelha
para dar um ar mais romântico.

Tudo o que eu mais queria era ficar em paz. Principalmente com o amor da minha vida.

Mas assim que a abri por completo me deparei com o quarto vazio, apenas a luz escassa dos
primeiros raios solares atravessando a cortina, uma leve camada de poeira sendo levantada pela
brisa matutina e tudo no lugar em que eu deixei, exceto por Harry que desaparecera, deixando para
trás lençóis amarrotados e um imenso vácuo.

No fim fui eu quem recebi a surpresa.

— Ué! Cadê papai? — Blake cutucou minha perna e eu me fazia a mesma pergunta.

Sabendo exatamente como me deixar louco Harry sumiu sem levar celular, não havia um post-it
sequer dizendo a onde ele iria e após inúmeras ligações não concluídas para Anne ela resolveu me
retornar.

— Louis, amor, como tem passado? — Inquiriu com o tom alegre, característico dela.

— Bem, Anne, muito bem. Você não apareceu mais. — Comento dobrando e desdobrando um
pano de prato avulso na pia — E você?

— Estou bem, querido, sabe como é a correria no restaurante. É uma pena que o trabalho me força
a ficar longe da família às vezes, mas tem esse novo gerente que tem me ajudado bastante e... —
Minha sogra desatou a falar nos mínimos detalhes sobre o andamento de seus negócios e mais um
trilhão de coisas que eu francamente não me importo, mas jamais me atreveria a dizer porque eu
estou casado com Harry e nós temos filhos e isso automaticamente me prende a sua família... Tipo,
pra sempre.

— Anne, na verdade eu queria saber sobre o Harry...

— Oh, Harry, é claro! Imagino que ele esteja uma pilha de nervos, quer que eu o leve aquele SPA
mais uma vez? Se bem que duvido que ele irá arredar os pés da galeria em sua grande noite. —
Grande noite? Ora, mas... — Estou torcendo tanto para que essa exposição seja um sucesso, ele
tem trabalho tanto por isso.

Oh meu Deus, a exposição dele é hoje e eu não fazia ideia.

E o prêmio de pior marido do ano vai para: Louis Tomlinson! Este é o meu sétimo consecutivo.

Engulo em seco, forçando a não transparecer o meu constrangimento em ter me esquecido de um


dos eventos mais importantes da vida dele.

— Yeah, ele tem estado bem entusiasmado e ansioso quanto a isso, mas ele vai se sair bem. Então,
eu liguei para...hm, saber se... se você vai querer uma carona?

— Uma carona? — Anne parece surpresa, mas logo sua risada suave é audível — Que gentileza,
Louis, não se incomode, querido. Gemma está fazendo questão de vir de Chicago apenas para
prestigiar o irmão, já faz algum tempo que eles não se veem, será ótimo, iremos juntas.

— Certo, isso vai ser ótimo. Incrível, bem era só isso, está uma loucura aqui, então eu acho que é
melhor eu desligar. Tchauzinho, até mais tarde. — Digo meio às pressas já procurando pelas
minhas chaves e não encontrando.

Harry levou o carro? Não qualquer carro, mas o carro do FBI? Ele nem ao menos dirige!

Depois de me despedir dela, migro para a porta da vizinha, sendo um grande filho da puta que irá
receber uma conta da jardinagem do próximo mês por estar esmagando os lírios e pequenas mudas
do jardim da Bleta, que como sempre não esboça um pingo de contentamento em me ver quando
abre a porta usando sua roupa de ginástica em tons de rosa chiclete e roxo, o cabelo recém
platinado preso para o alto e uma camada de suor brilhando por toda a parte exposta de sua pele.

Bochechas rosas e tudo, que gracinha.

— Olá, vizinha. — Arrisco um sorriso charmoso, o que não surte grande efeito depois de quase dez
anos, Bebe se tornou imune a minha beleza.

— Não. — Responde virando sua garrafa de whey protein.

— Você nem sabe o que eu ia pedir.

— Não sei? — Bebe arqueia uma sobrancelha indicando os dois garotos no meu colo, as bolsas
escapando dos meus ombros estreitos demais e um cachorro roçando na minha perna porque
obviamente ele precisa de uma namorada. Se Sonny pelo menos fosse como Shae e Mona e
desgrudasse um pouco viria bem a calhar, eu só espero que toda essa superproteção conosco sirva
para alguma coisa algum dia.

— Okay, eu preciso que você olhe eles por alguns minutinhos, coisa rápida, prometo!

— Você é mentiroso, Louis. Vive dizendo a mesma coisa e só aparece no final do dia, cadê seu
marido?

— Bom, eu preciso me encontrar com ele agora.

— Leva as suas crias então, quem mandou viverem como dois coelhos e ainda resolveram adotar
todos os bichos que encontram pelo caminho.

Reviro os olhos a encarando cruzar os braços abaixo do busto e apoiar o ombro na soleira da porta.

— Vamos, Bebe, a Stacy adora os garotos. — Insisto, começando a tombar um pouco com todo o
peso.

— Não sei não...

— E se eu ficasse com ela na sexta? Você me disse que tem aquele negócio, como era o nome
mesmo?

— Papanicolau.

— Beleza, informação desnecessária, pensei que você diria algo como dentista, mas tudo bem.

— Vai ficar mesmo?

— Claro. — Ela estreita as sobrancelhas, formando um pequeno bico enquanto pondera minha
proposta e então abre a porta. Sonny é o primeiro a correr sem cerimônias, coloco os gêmeos no
chão e depois de me dar um beijo Blake some, ficando apenas Spencer choramingando ainda
querendo Harry — Spen, o papai precisa ir agora, eu já volto. Fique com a tia Bebe, daqui a pouco
a Stay chega da escola e vocês vão poder brincar.
Nada. Ele continuou chorando e se agarrando a minha camisa. Bleta, apenas examinando a situação
bufou e agachou.

— Ei, rapazinho, por que não brincamos de Barbie, hein? Podemos montar uma casinha e você
pode ser a mamãe.

— Eu v-vou ter bebezinho pra eu? — Spencer soluçou, limpando o nariz escorrendo com as costas
da mão.

— Sim, você vai ter quantos bebês quiser, amor.

— Tá bom. — Acabou concordando. Spencer deu um tchau rápido e entrou com Bebe.

Assim que eles estavam seguros com ela, caminhei a garagem, vesti meu capacete e subi na moto.
Fazia algum tempo desde que eu banquei o motociclista, mas não era de todo o ruim, acelerei e em
questão de segundos era como se estivesse voando pela pista, sentindo o sol nos meus braços e o
vento batendo contra meu pescoço, até estacionar em frente a galeria. Havia um grande cartaz
anunciando a exposição de hoje a noite.

" Um de nós, por Harry Tomlinson. "

Era o que dizia o impresso. Não entendia bem o conceito, mas segundo o que ele havia me
explicado em fragmentos era algo sobre as inúmeras naturezas do ser humano, suas formas e fases
durante a vida, encontros e mudanças e como você podia ser pessoas diferentes durante cada
transformação que sofre. Era estranho, contudo eu o apoiava mesmo sem entender nada.

Meus passos ecoaram pelo piso de porcelana, liso e branco, assim como as paredes e o teto com
partes envidraçadas. Chique e elegante. Aquele lugar combinava com Harry, era imenso e ainda
não ostentava todas as suas pinturas magníficas, apenas algumas esculturas rebuscadas que ele
vinha trabalhando nos últimos meses. Ele tinha grandes referências gregas e por isso preferia
esculpir pessoas em todas as suas riquezas de detalhes.

Harry e seu fascínio pelo ser humano.

Estava me distraindo entre aqueles monumentos engessados quando escutei uma risada esganiçada
e tão familiar para mim. Meu amor.

Caminhei instintivamente em direção ao som e não posso dizer que fiquei exatamente feliz com o
que me deparei.

Harry estava sentado em uma escada não muito alta, mas que era um perigo para alguém nos
primeiros estágios da gravidez como ele, seu coque se desmanchava no topo da cabeça e mesmo
com o rosto abatido ele se encontrava lindo em seu moletom cinza de Harvard, suficientemente
largo para ficar totalmente confortável. Estaria tudo perfeito, não fosse o homem que subia o
primeiro degrau, rindo de algo que não me interessa, cabelos castanhos armados e cacheados, uma
barba bem aparada e camisa sem mangas para expor seus braços sarados. A porra de um rato de
academia, só pode. Uma pessoa com uma vida não tem como ter braços daquele tamanho.

Não conheço.

Nunca o vi na vida.

E mesmo assim ele está com as mãos nos quadris do meu marido.

Ah não.
— Você não ousaria. — Harry o desafiou, inclinando-se pra frente.

— Ora, não me provoque, baby.

Baby? Eu vou vomitar. Esqueci minha arma, porra!

— Espero não estar atrapalhando. — Elevo a voz quando me sinto seguro o bastante para não
encher o cara de porrada, não é nada demais, estou apenas exagerando e sendo ciumento. Não seja
idiota, Tomlinson. Seja normal.

Suas risadas morrem e ambos olham em minha direção.

Dois pares de olhos verdes um tanto esbugalhados e constrangidos. Interessante.

— Amor, oi. — Harry suspira, descendo da escada numa agilidade impressionante e caminha até
mim — Tudo bem? — Abraça meus ombros deixando um beijo em minha bochecha.

— Uhum. — Murmuro, arranhando a barra da minha camisa, sentindo um pequeno formigamento


na boca do estômago.

— Ah, bom, isso é muito bom. Lou, esse é o dono da galeria, Aaron Johnson, eu falei do Aaron pra
você, não falei?

Olho diretamente em seus olhos captando toda sua hesitação e nervosismo.

— Não, não falou, querido. — Respondo com tranquilidade.

Harry pisca e olha para todas as direções possíveis parecendo atordoado.

— Bom, em compensação ele me falou muito sobre você. — O homem, Aaron, se aproxima,
estendendo a mão em minha direção, há pulseiras por todo o seu pulso e colares estranhos no
pescoço, ele é hipster e simpático e ainda por cima tem um belo sorriso. Alguém bonito demais
para ficar a sós com o marido alheio.

Aperto sua mão de volta e ele sorri mais.

— É um grande prazer conhecê-lo, senhor Tomlinson.

— Igualmente, senhor Johnson. — Me esforço para soar simpático — Então, tudo certo para a
grande noite?

Aaron coloca as mãos nos quadris e assente mais vezes que o necessário. Ele é animado demais.
Beirando ao frenético, pode-se dizer.

— Yeah, minha equipe já está chegando para colocar os quadros. Vai ser uma grande noite,
estamos todos muito animados e o Haz nem se fala. Depois de hoje as galerias de todo mundo
estarão se matando para expor algo dele e os compradores farão fila na sua porta.

— E você está me iludindo, de novo. — Harry diz.

— Apenas expondo os fatos. — Aaron ri e há aquele brilho em seus olhos quando ele olha para
Harry que tem as bochechas coradas e eu não quero começar a criar teorias estúpidas nas quais
meu marido possa estar transando com outra pessoa. Eu já carregava o título vergonhoso de
adúltero, não tinha interesse em dividir este fardo com ninguém — Então, acho que é melhor eu ir
checar os preparativos, nos vemos mais tarde, pessoal.
O homem se afastou decidido sumindo em uma porta lateral e nos deixando sozinhos. Harry não
tardou em abraçar meu pescoço e beijar o mesmo, embora meu cenho tivesse franzido e minhas
mãos cruzadas atrás das costas.

— É sério que vai ficar fazendo pose de policial invés de me abraçar?

— Não estou fazendo pose de policial. — Falo meio aéreo ainda com os olhos presos na direção de
onde Aaron sumiu.

— Está sim.

Desvio minha atenção para mirar seus olhos intensos que me olham tão diretamente, como se
tentassem ler algo por detrás da espessa armadura que cobre minha alma corroída e que não está a
vista de ninguém, nem mesmo dele.

— Me assustei quando não te encontrei em casa pela manhã.

— Eu acabei madrugando e pensei em dar uma passadinha aqui, queria voltar antes de vocês
acordarem. Deixou as crianças com a Bleta?

— Sim, eu disse cinco minutinhos e pra variar estou bem atrasado. — Checo o relógio e acabo me
rendendo a vontade de toca-lo, minha mão repousa na base de sua coluna e um sorrisinho satisfeito
começa a se formar em seus lábios — Deveria ter imaginado que você estava aqui. Não deveria
ficar indo atrás de você, eu preciso te dar espaço.

— Não, tudo bem, você sabe que eu entendo, de verdade. — Harry se apressa em dizer, segurando
meu rosto entre as mãos e deixando um selinho demorado em meus lábios — Eu estou tão nervoso
e empolgado, acho que não resisto até o fim do dia.

— Mas não devia, você vai ser um sucesso e além disso nem é a sua primeira exposição.

— De certa forma é sim, sabe, todas as outras foram com ela.

— Falando nisso sua mãe disse que ela está vindo de Chicago apenas para te ver. — Digo aquilo
acreditando que Harry ficaria um pouco mais seguro, mas surte o efeito contrário e seu rosto perde
a cor, ele se afasta e eu seguro sua mão para não perdê-lo.

— Não, eu evitei enviar o convite e mesmo assim ela vai vir. Droga, qual é o problema da minha
mãe?! — A voz rouca e grave retumba feito um trovão pelo lugar, me arrancando um calafrio.

— Harold, ela é sua irmã, ela só quer ajudar.

— Se ela quisesse ajudar ficaria longe. Tudo só piora quando a Gemma está aqui, ela nem deveria
estar mais aqui, mas resiste só pra me infernizar.

Dou um passo adiante, firmando o aperto em seus dedos.

— Eu realmente não sei se você está sendo mimado ou cruel agora, mas eu peço que pare.

Minha seriedade o leva a estreitar os olhos, ele parece avaliar a mim e a situação, como se tramasse
algo, mas antes que possa agir o abraço.

— A Gemma só quer o seu bem, como todos nós. Apenas queremos que você seja feliz. —
Sussurro contra seus cabelos, massageando suas costas e o sentindo suavizar em meus braços,
abaixando todas as suas resistências.
— Às vezes eu me sinto tão confuso.

— Como assim?

— Eu não sei direito, é como se repente eu me visse em um quarto escuro, não há janelas, apenas
uma porta. Por ela eu escuto vozes, muitas vezes a sua voz e eu tento tento falar, mas você não
pode me ouvir. Eu grito e ninguém escuta e a porta não pode ser aberta, o quarto só vai ficando
menor e me esmagando, não tem como respirar e as vozes só vão ficando mais altas, elas me
atormentam e me sufocam.

Ele se aperta em mim com mais força e desespero e eu beijo sua têmpora, tentando acalma-lo.

— Você falou com o Adam sobre isso?

— Não, tenho medo que ele diga que estou ficando maluco.

— Você não está ficando maluco, amor, apenas está assustado. É normal depois de tudo o que
passamos, mas não pode se concentrar nisso, precisa se lembrar de que hoje é um dia importante.
Sua primeira exposição solo, estamos todos orgulhosos de você, essa será a melhor noite de nossas
vidas.

Harry funga baixinho, apoiando a testa no meu ombro.

— Você promete?

— Prometo. Venha, vamos dar uma volta.

Ele concorda e me segue quando o puxo pela mão em direção a saída, próximo a porta avisto um
dos únicos quadros já expostos. É a pintura de uma garota, apenas do nariz para baixo fora
retratado, a riqueza de detalhes e expressão da boca, pele e o pequeno ramo de flores por entre os
lábios cheios chega a ser impressionante.

— Gostou dessa? — Harry abraça meu braço, sussurrado em meu ouvido.

— Ela é bastante atraente, qual foi a sua inspiração? — Inquiro sem desviar os olhos da obra.

— Não sei ao certo, é só mais uma das muitas figuras que surgem a minha mente em momentos
aleatórios, está em especial está comigo há algum tempo, eu a chamo de Sugar, ela é uma garota
fria e devassa, que gosta de provocar e ferir os homens, como uma sereia ela se mostra doce e
inofensiva enquanto os seduz e arrasta para o fundo do mar onde poderá devorar-los em paz.

Dou alguns passos em direção ao quadro, mas ele me impede.

— Não se aproxime demais.

— Teme que ela me devore?

— Não, mas é melhor não arriscar. — Ele sorri e eu acompanho.

Meu carro está no estacionamento e Harry diz algo sobre não gostar de dirigir não significava que
ele não sabia dirigir. Estranho, sempre pensei que ele realmente não sabia. Harry e suas habilidades
desconhecidas.

Acabamos por deixá-lo por lá mesmo e fomos até o Central Park de moto, meu marido não parava
de reclamar que eu estava indo muito rápido e só pra provocar eu acelerava, grunhido com os
beliscões que ele ia deixando na minha cintura. Quando o sol do meio dia estava estridente no alto
do céu nos deitamos na grama, embaixo de uma árvore, Harry comendo algodão doce cor de rosa e
fazendo uma grande bagunça.

— Você prefere que Leslie seja um menino ou uma menina? — Pergunta de repente.

— Eu não sei. — Batuco os dedos no estômago.

— Eu também não. Só espero que ele ou ela nasça com muita saúde e que nada de ruim lhe
aconteça, nunca.

— Hey, Harry, você... Você ainda pensa nela?

Isso estava entalado na minha garganta há tanto tempo, eu só precisava saber. Eu ansiava por isso.
O olhei por canto de olho, tentando decifrar qual seria a sua resposta, mas assim como uma nuvem
quando olhada por diferentes perspectivas, Harry não revelava nada. Ele continuava a comer
vagarosamente olhando para o céu.

— O tempo todo. — Foi tudo o que disse pelo resto da manhã.

Quando retornamos já no início da tarde, Harry estava um tanto animado, falando sem parar do
evento e de quais pessoas importantes eu deveria puxar o saco para que ele começasse a ter sucesso
no mundo das artes plásticas. O deixei em casa para ir até a vizinha buscar os garotos, os encontrei
saltitando ao som de alguma música da Miley Cyrus com a pequena Stacy em seu tutu de ballet.
Ela tinha a idade de Evangeline, olhar para ela era como ter a visão de como minha filha estaria
agora se estivesse viva e eu realmente não deveria pensar sobre isso e me martirizar em um dia
como hoje.

Após muito choro e um ou dois gritos Spencer pode correr pelo jardim, saltitando feliz da vida por
ter conseguido emprestado a Barbie predileta de Stacy, mas ao invés de correr atrás de Harry como
normalmente faria ele parou na porta da cozinha, Blake e eu o seguimos para encontrar Harry
fazendo lasanha, que era o prato predileto de todos nós, seu cabelo preso e um shortinho amarelo
engraçado dançando em suas pernas esguias enquanto ele remexia os quadris no ritmo de Psycho
Killer que gritava pelas caixas de som, um dos meus CD's antigos que ele vivia revirando.

— Feliz? — Blake levantou o rosto para mim.

Baguncei seu cabelo, ajoelhando para ficar na altura dos dois que se divertiam com a performance
do pai.

— Muito. — Sorri, puxando ambos pela cintura e os abraçando, antes de instruí-los a ajudar Harry
na cozinha. Spencer deixou a Barbie comigo e eles bateram os pezinhos acelerados em direção as
pernas de Harry, cada um agarrando uma. Ele guinchou assustado e logo estava os carregando e
dançando com eles.

Permaneci distante, fazendo carinho em Sony e sorrindo feito um idiota.

Se eu soubesse o que sei agora, se eu não me esforçasse tanto para me manter cego eu teria visto
que aquele era o começo... O começo do fim e que daqui há alguns meses nenhuma dessas quatro
pessoas se veria novamente. Em pouco tempo esse frágil castelo de vidro se partiria em mil
pedaços e muito deles acabariam cravados no meu coração.
│5│cassiopeia

Harry estava nervoso.

Eu estava nervoso.

Até mesmo os gêmeos estavam nervosos. Tanto Spencer quanto Blake usavam calças e camisas
sociais, suspensórios e gravatas borboletas que pareciam pomposas demais para crianças que não
tinham nem um metro de altura, seus cabelos estavam escovados para o lado e os olhos mais azuis
que o normal eram coçados com frequência pela ausência da soneca no meio da tarde, uma vez que
eles preferiram assistir desenhos animados do que dormir.

Mesmo assim eles aguentavam firme e forte sentados lado a lado no sofá, sem se mexer como
Harry tinha mandado, eu também estava imóvel como Harry ordenou porque no fim éramos três e
não duas crianças e ele sendo o único adulto é que mandava em tudo por ali. Eu me concentrava
em encarar um vaso chinês de girassóis na entrada do corredor que Gemma havia nos presenteado,
para tentar não pensar no sapato de bico fino apertando meu dedão, mas não estava funcionando
muito bem, coisas como um sapato apertado são difíceis de ignorar e agora estava mais do que
arrependido de não ter deixado Harry pegar um novo como ele sugeriu.

Já está tarde e eu me fudi bonito. Ótimo!

Vejo as horas passar em silêncio até finalmente escutar os cliques dos sapatos caros contra o
assoalho de madeira e o próprio Harry parando em frente ao espelho acima da cômoda no canto da
sala para checar o cabelo, ele estava relativamente básico - é o que se diria de alguém que gosta de
estampas excêntricas em tudo o que compra - para esta noite escolheu um terno preto e justo,
bastante acinturado que só me dá vontade de agarra-lo por aquela cinturinha fofa e fazer coisas
depravadas, a calça escura surge como uma segunda pele de tão colada em suas coxas firmes e
bunda empinada, oh deus. Por baixo do blazer é possível ver uma camisa social azul e os cabelos
longos caem pela lateral de seu rosto.

E há as botas, bem, eu deveria ter comprado botas, ele também não usa gravata, assim como eu,
que preferi vestir um blazer apenas e fingir que estou com um traje a rigor, mesmo sem a camisa
social porque a única que eu tinha está suja de sangue de um tiro de raspão que levei mês passado.

Uma dica crucial, nunca vá com suas roupas legais para o trabalho.

— Como eu estou? Acha que eu deveria colocar uma gravata? Acho que uma gravata seria melhor.
Porra eu não tenho gravata, Louis, me empresta uma? — Ele gira nos calcanhares, batendo o salto
da bota no piso, inquieto.

— Toma, papa. — Spencer oferece, tentando desfazer o nó da sua.

Harry pula para o seu lado, segurando suas mãos.

— Não, babe, não precisa e por favorzinho, deixe a sua gravata quietinha. O papa sofreu pra fazer
esse nó perfeito, então não mexe, tá bom? — A criança tenta ao máximo compreender o que Harry
diz, ele toca em sua gravata, a ajeitando e procura pela aprovação do pai.

— Deixar a borboletinha quieta, né? — Harry concorda — Posso brincar com o seu cabelo, papa?

— Talvez mais tarde, filho. Agora, vamos, os três de pé, preciso ver se a minha família está bonita.
— Fica em pé e bate as mãos, nos mandando levantar, eu e os garotos ficamos lado a lado e Harry
examina cada um de nós, usando um lenço para limpar uma manchinha de chocolate no queixo de
Blake que eu não sei onde ele arranjou, amarra os cardaços de Spencer que eu também não imagino
quem possa ter esquecido de fazê-lo e por fim me diz pra fechar o zíper que eu também fiz o favor
de esquecer.

Eu prefiro a coisa de ser atento a todos os detalhes apenas no trabalho, fora dele sou uma bagunça
como qualquer ser humano normal.

Ele para na minha frente e se propõe a arrumar minha franja, jogando de um lado, o que não
funciona e voltando ao lado de sempre, mas teimando com algumas pontas mais curtas.

— Gatinho, acho que já está bom. — Comento e ele caga pra mim, continuando a mexer sem
parar. Reviro os olhos e seguro sua cintura — Harry, está bom. É melhor irmos, nós já estamos
atrasados.

— Você tem razão, é melhor nós irmos. — Suspira um pouco mais leve, acariciando minhas mãos
— Alguém quer ir no banheiro?

— Eles estão de fralda, amor.

— Oh, é mesmo. Você quer ir ao banheiro?

— Eu estou bem.

— Legal. — Morde os lábios e balança a cabeça.

— Hum, você quer ir ao banheiro?

— Boa ideia, eu vou dar um pulinho lá. — Dito isso, Tomlinson ignora o banheiro daqui de baixo
e sobe para a nossa suíte. Encaro os rostos confusos a minha volta e eles dão de ombros sem
entender nada.

Durante o tempo em que Harry gasta no banheiro, coloco água e comida para os animais e checo
mais vezes que o necessário as bolsas dos garotos. As deixo para que Harry as leve e carrego
Spencer e Blake para que eles consigam se ver no espelho.

— Aí meu deus, vocês estão tão lindos. — O timbre rouco interrompe o monólogo cômico de
Spencer sobre o meu narizinho parecer com o seu narizinho, viramos para ver Harry parado nos
últimos degraus da escada, as mãos unidas em frente a boca e olhos molhados.

— Papa! Papa! — Spencer o chama, inclinando o corpo e esticando os braços pra ele. Harry vem e
o toma dos meus braços, parando ao nosso lado.

Nós quatro acabamos por encarar nossos reflexos refletidos no espelho.

— Os Tomlinson nunca estiveram tão elegantes.

— Quem sabe se você usasse mais blazers no lugar dos moletons. — Harry retruca com um sorriso.

— Nah, essas coisas incomodam.

— Tem muito menino aqui, precisa de menina também. — Blake diz do nada, arranhando a nuca.
Um sentimento ruim me abate e Harry apenas olha para ele em silêncio.

A ausência de um retrato de Evangeline que ficava justamente nesta cômoda é sentido mais do que
nunca. Eles ainda não sabiam que tinham uma irmã ou que ela havia morrido, o que me levou a
lembrar que eles também não sabiam que um novo bebê estava a caminho. Harry também pareceu
se recordar.

— Sabe, se vocês forem bonzinhos e se comportarem terão uma grande surpresa em breve.

— Sério? O quê? É de comer?

— Não, Blay, é algo muito especial, mas precisam ser bons meninos, okay?

— Sim! — Disseram em uníssono.

— Ótimo, agora vamos ver os quadros do papai.

Xx

A escola em si é uma merda. Pode-se dizer que é a mais traumática e insuportável fase da vida de
um ser humano que todos tem de passar, o porquê eu não faço ideia, mas quando nós crescemos e
chegamos a idade adulta acabamos por reconhecer que ela teve sim os seus benefícios.

A maior contribuição que a escola pode dar alguém é a consciência das experiências e descobertas,
veja bem, foi durante a aula de educação física que eu me vi olhando para as bundas e as coxas dos
meus colegas de classe em seus shorts esportivos, na cantina soube que tinha alergia a amendoim,
nos corredores aconteceram as minhas primeiras brigas e foi justamente dentro das salas de aula
que eu soube que não tinha talento para muita coisa.

Em humanas eu era um lixo, não prestava para escrever mais do que meu próprio nome.

Matemática era tão infernal que nem a tabuada ficou na minha cabeça e durante as provas preferia
escrever letras de músicas do que me arriscar a por um número ali.

Ciências da natureza era outra desgraça e quando a época de escolher uma universidade chegou eu
sabia que não tinha para onde ir. Mas por sorte já havia me descoberto como alguém com talentos
pouco valorizados, eu não entendia nada de cateto ou hipotenusa, porém era atento e ágil, as
palavras eram um grande enigma para mim, entretanto conseguia encontrar pistas onde quer que
fosse. Minha visão aguçada, o raciocínio rápido e o faro para a investigação me levaram para o
departamento de polícia local e quando isso não foi o suficiente parti para Quântico, Virgínia onde
ingressei na Academia do FBI, me tornei um agente especial, um detetive da mais poderosa e
competente agência de polícia e segurança nacional dos Estados Unidos e porque não dizer do
mundo e depois de trinta e poucos anos bem vividos podia levantar meus aprendizados escolares e
do mundo para dizer com convicção que eu não entendia porra nenhuma de arte.

Esse sim é um bicho de sete cabeças para mim.

Não tem como!

Harry e eu estamos juntos há mais de uma década e mesmo assim não consegui aprender nada que
me levasse a entender pelo menos um pouco dos seus conceitos e do olhar artístico, tudo é muito
bonito e bem iluminado, posso dizer isso com toda a certeza depois de entrar em uma sala com
luzes azuis e roxas, com Winter Bird como música de fundo e pinturas do que deveriam ser
pássaros expostas, as pessoas falavam e falavam e eu não entendia nada. Era lamentável.

Quando Harry desistiu de tentar me ensinar algo, ele me deu um conselho valioso de apenas
manter uma taça de vinho tinto na mão e assentir para tudo o que viessem me falar, comentários
como "é impressionante como a obra parece falar com você" e "eu amo este artista, ele é
simplesmente excepcional" eram as únicas coisas as quais eu estava autorizado a falar. Até que eu
vinha me saindo bem.

Umas oito pessoas pararam ao meu lado e desataram a falar e mesmo com essas duas frases
liberadas eles pareceram satisfeitos com o diálogo. Embora parecesse distante e indiferente, por
dentro eu estava eufórico e louco para soltar fogos de artifício pelo número de pessoas que
apareceram, excedendo as expectativas de Harry. A maioria vestia-se com esmero e todos
pareciam ter os bolsos cheios, ele conhecia gente demais pelas suas outras exposições em parceria
com Gemma que tinha um nome forte no mundo da arte e agora Harry queria ter o mesmo ou até
ultrapassar o reconhecimento da irmã mais velha. Muitos críticos e pessoas entendidas da área
circulavam pela Expression, com olhos atentos e anotando coisas em caderninhos de capas de
couro.

Foi quando o garçom passou por mim me oferecendo a quinta taça de champanhe da noite que me
dei conta de que estava há quase meia hora parado no mesmo ponto, eu precisava dar uma
circulada e fingir que estava entendo algo.

Esbarrei em algumas pessoas, Aaron sendo uma delas que me abraçou e gritou um monte de
palavras que eu não pude discernir devido ao falatório e a música ao fundo. Parecia uma discoteca
ou qualquer coisa nessa vibe.

Bati no ombro de alguém, provavelmente uma mulher pelo seu grunhido fino e a pele suave entre
meus dedos quando a toquei ao pedir desculpas.

— Eu sinto muitíssimo. — Dizia me preparando para seguir meu caminho.

— Hey, Tommo, não me reconhece mais? — A moça perguntou e então me virei para olha-la.
Gemma ostentava um largo e divertido sorriso de covinhas e uau, ela não havia economizado para
o dia de hoje, ela usava um vestido longo e dourado, brilhante e de corte fino e eu podia apostar
que Harry tinha algum terno daquela mesma cor e graças ao bom Deus ele não resolveu usa-lo
hoje.

Um dos maiores mistérios que rondava esta família, após a morte do pai que ninguém falava
absolutamente nada independente de quantas vezes você perguntasse, era a relação de Gemma e
Harry. A única fotografia dos dois durante a infância era preta e branca, onde Harry beijava a
bochecha da irmã, mas está estava rasgada e grudada com durex em uma mesinha de canto na sala
de jantar da casa de Anne.

Eles se falavam pouco e pra variar escolheram a mesma profissão, quer dizer, Gemma acabou
mudando sua profissão que de bióloga virou artista plástica como ele, era inegável que ambos
tinham talento nato para a coisa e por seis anos trabalharam juntos criando quadros complexos que
só eles sabiam explicar, mas havia algo neles que te colocava em uma espécie de transe. Os dois
estavam em um alto patamar quando nossa filha morreu e Harry parou com tudo, Gemma, por
outro lado, continuou a trabalhar e se deu muito bem na carreira solo, nem mesmo um acidente
violento que lhe levou uma perna e a deixou em coma por meses foi capaz de pará-la. Eu sempre
gostei dela, talvez por encontrar toda a descontração e vivacidade que faltava em Harry. Eles meio
que se completavam e eu gostava da combinação.

— Gem, que prazer te ver. — A abracei apertado, sentindo seu rabo de cavalo roçando em meu
rosto, alguns tons mais escuros do que a última vez que nos vimos. As argolas de ouro branco que
eu a dei no natal também estavam presentes — Você está linda!

Gemma sorriu passando a mão pela vestido, era notável que aquele acidente tirara um pouco de sua
confiança e era triste pensar que todos os pontos e as cicatrizes profundas em sua barriga e costas a
deixaram menos atraente para possíveis companheiros. Ao meu ver ela sempre seria
avassaladoramente linda.

— Obrigada. Não sabia que a exposição seria com modelos vivos, uma obra de arte como você
andando sem escolta é perigoso.

Não consegui segurar o riso.

— Tem tipo menos de cinco minutos e você já está flertando comigo.

— Me dê um desconto eu volto para Chicago amanhã, preciso aproveitar. — Diz simplesmente,


segurando meu braço para que possamos caminhar juntos.

— Ainda está fazendo fisioterapia?

— Sim, é necessário se eu quiser parar de andar como o Robocop. — Ela ri.

— Algum namorado novo?

— Nah, nem novo, nem antigo. Sabe, quando eu dizia os caras já fugiam durante o próprio
encontro, então eu resolvi adotar o elemento surpresa, e pode apostar que os caras realmente ficam
surpresos do tipo: "olha só, você não tem uma perna, que coisa não?" Quando não se assustam,
tipo: "oh, meu deus, o quê é isso? Onde está a sua perna?" A minha vontade é de falar que está no
fundo do mar, mas não seria verdade, acharam nas ferragens depois que tiraram o carro da água, eu
pensei em colocar em um vidro com água e deixar na sala, mas mudei de ideia.

— Foi melhor assim. E além disso você não deveria se misturar com esses idiotas, uma mulher
fenomenal como você merece alguém a sua altura.

— Ashton me ligou semana passada.

— Não, o Ashton não, por favor. — Paramos em uma área bem iluminada do salão, com garçons
passando o tempo inteiro, pego duas novas taças para nós e Gemma beberica enquanto fala:

— Quando ele era menor de idade eu até entendia a sua oposição, mas agora ele está na faculdade.
— Ela retrucou com um tom irritadiço.

— Isso não muda o fato de que ele é seu primo.

— Tenho certeza que ele não vê isso como um impedimento para ter um crush no Harry. — Disse,
me limitei a beber minha bebida e dar de ombros — Por que os melhores homens querem sempre o
meu irmão? Eu deveria me tornar lésbica e acabar com isso de uma vez.

— Você não tentou isso uma vez? — Arqueio uma sobrancelha em dúvida.

— Sim. — Gemma bufa — Só que não consegui ir até o fim. Será que é tão difícil encontrar uma
garota que só queira andar de mãos dadas e dar selinhos?

— Sim, porque ela não vai querer isso, muito menos você.

— Loueh, você tem razão eu não quero andar de mãos dadas, eu quero sexo, selvagem e quente
daqueles que me deixe marcada por dias, eu quero alguém que puxe meu cabelo e rasgue a minha
calcinha com os dentes e não um babaca que faça cara feia pra minha perna mecânica. Porque uma
mulher deficiente não é merecedora de um orgasmo decente? Você não faz ideia de quantos
séculos faz que eu não transo. Se você fosse um bom amigo me ajudaria nesse problema.

Gemma dizia aquilo com tanta angústia e sofreguidão, mas não deixava de ser engraçado ela
desabafando daquele jeito em um lugar onde todos podiam ouvi-la claramente, tapei a boca para
que a minha risada não soasse tão alta, contudo, precisei engoli-la de imediato quando uma figura
alta surgiu as costas dela.

Fodeu? Pode apostar!

— Esse é o tipo de conversa que eu gostaria de nunca ouvir. — Harry murmura com uma
expressão azeda.

— Quem sabe se você não ignorasse todas as minhas ligações eu poderia estar falando sobre a
minha vida sexual inativa com você. — Gemma não se deixou abater e virou para puxa-lo pela
gola do blazer e deixar um beijo em sua bochecha, Harry retribuiu de má vontade e sua cara só
piorou depois que a irmã bagunçou seus cabelos — Onde estão os meus filhos?

— Provavelmente em uma clínica de fertilização in vitro. — Ele cruza os braços — Mesmo que eu
duvide que algo poderia sobreviver dentro de você depois de tanto álcool e antidepressivos.

— É impressão minha ou você engordou? — Ela eleva a voz.

— É o tipo de coisa que acontece quando se engravida, mas não é como se você soubesse disso. —
Harry diz mais alto.

— Cuidado com a cadela raivosa!

— Hey, pessoal! Não vamos nos exaltar. — Fico entre eles — Harry, sua irmã veio para te
prestigiar, seja educado, por favor.

— Claro, me desculpe por isso. — Seu tom se suaviza e ele descruza os braços — Quer que eu te
mostre?

— Eu adoraria. — Gemma cede e eu os sigo enquanto os dois entram naquele dialeto que um leigo
como eu é incapaz de compreender sem a ajuda de um intérprete.

Após algumas voltas e muita conversa incompreensível paramos diante de uma das últimas
pinturas que Harry finalizou, eram manchas de tintas sem um molde fixo, ainda era possível ver
com clareza um homem agarrando-se a uma mulher que afagava seus cabelos, tudo isso em tons de
laranja e vermelho com nuances de branco que davam a forma correta.

— Essa aqui é mais viva e expressiva que as outras. — Minha cunhada comenta passando os olhos
por cada detalhe.

— Uma das minhas prediletas. — Harry olha por cima do ombro e pisca para mim.

— Interessante o quão bem você trabalhou com cores tão limitadas. Esse vermelho em especial...
— Inconscientemente o rosto dela foi se aproximando da pintura, assim como uma mão ameaçou
tocar, mas sendo impedida no ar por Harry que a enlaçou pelo pulso — , isso é sangue?

— Sim, sacrifiquei seis carneiros para concluir meu quadro. Por deus, Gemma, não seja idiota e
nada de tocar. A tinta ainda está fresca. — Ele a puxa pelo braço e ela cambaleia sem muita
firmeza, fazendo cara feia para a atitude do irmão.

— Faça o favor de manter suas mãos para si. — Resmunga e as orbes verdes se fixam mais uma
vez na obra — Isso me faz lembrar de um antigo escultor italiano que querendo dar uma textura
verdadeira a sua obra usou a pele da própria esposa.
Um arrepio atravessa minha espinha.

— Ao que parece todos os artistas tem um quê de louco. — Comento, pensando ser só pra mim,
mas tanto Harry quanto Gemma escutam e trocam um sorrisinho cúmplice.

— Queridos, venham, precisamos tirar uma foto em família! — Anne nos chama do outro lado do
salão, sentada em um sofá longo na companhia dos meus filhos que sorriem para a máquina
fotográfica que nem está ligada ainda.

Xx

Quando Harry se torna o grande centro das atenções eu me coloco como um simples observador
distante, o álcool aquece minhas veias e mantém a névoa tediosa que tanto me ameaça um pouco
mais distante. Essa não é a minha praia, no entanto preciso ficar aqui e me comportar, porque é isso
o que casais fazem, eles se apoiam e participam, mesmo quando sua real vontade é ficar em casa de
cueca jogando FIFA.

Gemma que era minha única companhia deu bola para o primeiro que apareceu e me deixou ao
léu, jogado num canto como um brinquedo velho e quebrado. É um pouco deprimente para quem
me vê aqui, sozinho na parte mais escura, checando o nível das minhas cutículas com as mangas do
paletó arregaçadas sentindo meu estômago roncar por esses aperitivos não serem o suficiente para
aplacar a fome de um homem faminto como eu.

— Não parece estar se divertindo muito. — Salto assustado com a voz repentina que surge as
minhas costas. Aaron não se abala e um caminho de dentes brancos e alinhados se apresenta com
lentidão para mim conforme seu sorriso se abre — Não foi minha atenção assusta-lo.

— Não me assustou, eu só... Não estava esperando por uma surpresa. — Pigarreio, tentando tirar a
castanha que parara na minha garganta quando saltei — Veja se não é o melhor amigo do meu
marido.

Aaron inclina a cabeça para o lado, cruzando os calcanhares e arqueando uma sobrancelha.

— Melhor amigo? Bem, nós temos saído para almoçar, alguns cafés da manhã e conversas fora de
hora no celular, mas isso foi por causa da exposição...

— Oh, mas ele te adora, desde hoje de manhã só escuto falar do Aaron pra cá, Aaron pra lá, o
tempo inteiro. Está se tornando maçante.

— E isso te incomoda.

— Seria estranho se não incomodasse. Você é um homem muito bonito.

— Você me acha muito bonito? - Seus olhos se iluminam.

— Naturalmente, assim como o Harry também é muito bonito e vocês andam próximos demais e
eu sei o que acontece quando pessoas tão atraentes passam muito tempo juntos, acredite em mim, o
que era uma amizade desinteressada resultou em um casamento e quatro filhos.

As bochechas do homem coram e ele começa a rir pelo tom humorístico que apliquei a história,
mesmo que fosse bastante real, principalmente o aviso claro dentro dele.

Espere um momento, ele me ouviu dizer quatro e não houve nenhuma alteração em seu semblante,
ele não me perguntou nada ou pareceu constrangido, ele simplesmente riu. Como se fosse algo
natural para si.
Então ele sabe, como Harry deu a um estranho o direito de saber sobre a nossa filha? Bem, pode
ser que ele não seja um estranho por completo.

— Eu estava aqui pensando comigo mesmo o quanto isso é injusto. — Johnson interrompe meu
devaneio, abandono minha taça há muito vazia e fixo minha atenção nele.

— Ao que se refere?

— Olhe só para todas aquelas pessoas ao redor de Harry e nenhuma aqui.

Olho na direção de Harry que está sim cercado de admiradores, ele sorri e se porta como um
verdadeiro príncipe e eu não poderia estar mais orgulhoso do meu bebê.

— É a grande noite dele. — Falo apaixonado.

— Mas não deixa de ser um crime que não haja um grupo de admiradores te seguindo, porque
você, Sr. Tomlinson parece ter sido esculpido justamente com o propósito de ser contemplado. —
Encaro Aaron a procura de um rastro de humor ou deboche, algo que denuncie a menor sagacidade
em seu comentário, mas não há nada além da seriedade e dos olhos cravados em mim como se ele
aplicasse aquilo que fala.

— Err... Senhor Johnson, sejamos francos, o que pretende com isso?

Aaron coça sua barba espessa e franze os lábios. Ele é bonito, isso eu não posso negar, porém não
acende nenhuma fagulha de desejo em mim.

A única coisa que me causa é inquietação e desconfiança, o que para um detetive aciona todos os
seus sensores e o mantém atento.

Aaron é perigoso.

Depois do que parecem horas ele me olho com hesitação e suspira profundamente.

— Eu não deveria te mostrar isto e provavelmente estou me encrencado bastante, mas eu acho que
deve ver. — Despeja sobre mim e quando abro a boca para falar ele apenas me estende a mão, em
um convite silencioso para aceitar me aventurar com ele seja lá para onde for.

A minha moral, embora corrompida grita para que eu não me afaste e me mantenha perto do meu
marido, da minha família, que valorize a minha segunda chance e demostre fidelidade. Enquanto a
minha arrogância garante que não há perigo, não sou nenhum traidor compulsivo, tenho tudo sob
controle, eu me tenho sob controle. Mas algo maior e mais forte do que ambos grita e esperneia em
excitação, a curiosidade que me corrói ansiando por saber o que se esconde por trás daquele
chamado e eu não posso recusar, eu não quero recusar porque o orgulho ferve e a moral cede.

Seguro sua mão e ele me guia por caminhos para mim tão semelhantes, chão liso e fosco, paredes
ornamentadas com obras assinadas por H.T, arranjos que perfumam o ambiente e luzes ondulando
a cada nova passada até uma porta negra que é destrancada por uma pequena chave que ele
mantém no bolso do casaco, quando a empurra eu sou introduzido neste mundo secreto e assim que
a porta se fecha as luzes azuis expunham a negritude da sala, nela não há pinturas ou esculturas.

Pequenas luzes brancas abaixo dos quadros são ligadas, servindo para iluminar exclusivamente
eles.

— O que é isso? — Sussurro, quase com medo de aumentar a voz. Aaron está perto o suficiente
para soprar no meu ouvido:
— Arte da mais alta qualidade.

Suas mãos em meus ombros me impulsionam para frente e eu me ponho a caminhar. Há dúzias de
fotografias de diferentes épocas, datas e circunstâncias, mas todas são de Harry registrando a mim.

Todas em preto e branco. É tão estranho ver meu rosto assim, tão ampliado e iluminado desta
forma e principalmente exposto em uma galeria. Eu não sou arte, sou só um cara normal, por que
alguém iria se interessar em ver um ninguém como eu levando a pior no ping pong ou fotografado
de cima enquanto ria de alguma piada sem graça? Haviam aquelas em que eu estava distraído,
fumando e contemplando o nada, de cara fechada e outras em que eu realmente pousava, porque na
minha concepção aquilo ficaria apenas entre nós dois, bem, eu estava errado, não?

Até às fotos da época em que deixei o cabelo crescer, apenas porque Harry não se sentia confiante
o bastante para deixar o seu próprio, pensei que não haviam mais registros desta fase. Isso é
bizarro, há muito de mim neste cômodo. Louis demais e de uma só vez.

— Quando começamos a discutir sobre a exposição, inicialmente seriam com as fotografias, não
estas. Harry já tinha as suas escolhidas, mas quando eu vi essas fiquei totalmente encantado,
porque veja só, você é um modelo único, com um leque de emoções e expressões tão distintos e ao
mesmo tempo sedutores. Ele não quis, disse que você ficaria aborrecido e me mandou descartar
tudo, porém não quis me desfazer de nada, não antes que você pudesse ver.

— Por que acha que eu gostaria de ver um monte de fotos estúpidas minhas?

— Não sabia ao certo até te conhecer hoje de manhã, mas no instante em que o vi ficou claro para
mim o tipo de homem que você é.

— E que tipo de homem eu sou?

— Um tipo que é movido pelo ego. — Ele responde com um sorrisinho — Ver isso te faz bem,
porque o leva a pensar nas várias pessoas que poderiam ver e cair aos seus pés, algumas pessoas
nascem com o desejo de serem adorados. Você pode ter escolhido ser um herói das ruas, mas é
inegável que o fato de apenas olhar para você surte efeito em qualquer um. E algo assim, tão
valioso, merece ser exposto. Naturalmente que ninguém mais o verá, apenas você.

Eu poderia contradizê-lo e ir contra tudo aquilo que o homem havia acabado de dizer, no entanto,
ele tinha acertado. Cada palavra que saiu de sua boca carregava um fundo de verdade absoluta. O
meu maior defeito poderia ser este, mas eu não ia contra e sim me entregava a este ego maníaco
que me movia a caçar um assassino que eu não podia pegar, assim como me levava a sonhar com
centenas de pessoas me amando e me admirando sem ao menos precisar me conhecer. Queria me
tornar um ídolo algum dia.

Balanço a cabeça em concordância deixando meus pés deslizarem pela porcelana até parar em
frente ao maior quadro, deve ser o mais antigo aqui, estou de costas, sentando em um banco usando
nada além de uma bermuda justa que não atinge o joelho e há dois galhos secos que custaram a
serem presos as minhas costas. Esta deveria ser a primeira foto tirada após o nosso casamento. Sua
atmosfera era muito diferente das outras. As demais pareciam conversar entre si, partilhar da
mesma energia, mas está estava isolada, uma imagem solo que divergia de todas.

— Está deve ser a minha preferida. — O timbre de Aaron ecoa distante quando me dou conta de
que me afastei dele, me aproximo para visualizar o mesmo que ele — Vocês são um casal muito
bonito!

Esta é a única na qual não estou sozinho, data de exatos onze anos atrás, umas poucas semanas
antes da confirmação de que teríamos a nossa garotinha, ele andava enjoado e sonolento e naquela
tarde quando foi me visitar adormeceu no meu peito meia hora depois de chegar. Os cabelos curtos
e cacheados mesmo com uma bandana ainda se esparramavam pelo meu moletom, os lábios cheios
formavam um biquinho e eu senti a necessidade urgente de registrar aquele momento.

Deve ter sido a única foto tirada por mim em todos estes anos.

Essa tem um valor tão especial para nós que há uma cópia ao lado da cama.

— Ela me traz boas recordações. — Suspiro me sentindo sóbrio e melancólico. Preciso de mais um
drinque.

No instante que me viro, tencionando sair pela porta, as minhas costas se chocam com o retrato,
posso ver o rosto adormecido do meu marido quando lábios alheios estão se pressionando com
urgência nos meus.

— Aaron! — Rosno, o agarrando pelos bíceps e o afastando de mim.

Ele tem um sorriso entorpecido e cabelos caindo pelo rosto.

— Deus, você é tão sexy, senhor policial. — Ri alto, fazendo menção de me tocar, o que me leva a
aumentar a pressão no meu toque sobre si — Eu não tenho conseguido te tirar da cabeça desde que
vi suas fotos e tudo piorou depois que o conheci pela manhã, estava começando a me odiar por
desejar o esposo de um amigo, mas então o Harry falou comigo e era bom demais pra ser verdade...

— O que o Harry disse?

— Oh, Lou, não precisa bancar o difícil comigo, eu sei qual é o seu lance. E não precisa se
preocupar, garantirei que o Hazza seja muito bem sucedido nesta exposição, assim como eu espero
que você me faça ver estrelas. Agora, me beije.

Tudo soa muito embaralhado, contudo é fácil compreender o que ele diz. Difícil de acreditar,
doloroso, mas simples.

O largo e me afasto. Aquele santuário dedicado a minha pessoa não parece mais tão atrativo, a
minha imagem me causa repulsa.

— Onde você pensa que vai? Nós temos um acordo e eu quero meu pagamento. — O homem
exige atrás de mim em um tom mimado e eu uso todo o meu alto controle pra não surtar ali mesmo.

Ele não é o meu alvo.

Xx

Quando retorno ao salão principal onde a recepção está sendo realizada hologramas de flores
desabrochando estão por toda a parte, as luzes mudaram para cor de rosa e o ar está impregnado de
um perfume enjoativo com aroma de chiclete que me embrulha o estômago. De repente eu me
sinto mal por completo.

Harry está bem no centro, rindo e gracejando para um bando de mulheres bem vestidas com
diamantes nos dedos e pescoços, assim que me coloco entre eles, elas bufam e vão embora sem
paciência para lidar com a minha falta de educação.

— Onde se meteu, bebê? — Sua voz retumba rouca e mais melódica do que o normal, beirando ao
vulgar.
Vulgaridade é tudo o que ele emana no momento.

— Você deveria saber já que me mandou para satisfazer aos desejos carnais do seu "amigo".

— Desejos carnais? Quantos anos você tem? Por que não fala foder como uma pessoa normal? —
Debocha levando uma taça quase vazia de vinho até os lábios — Soa tão mais quente.

Inflamo as narinas, respirando profundamente, porque ele está fazendo algum jogo que não me
agrada nem um pouco.

— Em primeiro lugar, você está grávido, ou seja não pode beber. — Arranco a taça de sua mão
com ignorância e ele guincha irritado — E em segundo, eu sou seu marido, não sei se você só está
bêbado e fazendo alguma brincadeira, mas eu quero que pare! Não sou sua vadia e você não é o
meu cafetão pra ficar me vendendo aos outros.

Harry passa as mãos pelos cabelos cacheados que cascateiam em espirais soltas até seus ombros,
suas pupilas estão dilatadas e ele está mostrando os dentes como um felino raivoso, caso não
estivesse me dando nos nervos eu me sentiria excitado. O que não é o caso.

— Filhote, eu vou levar sua camisa para lavar em casa. Gemma já terminou de por as crianças no
carro, estamos indo. — Anne despeja às pressas, deixando apenas seu longo cabelo escuro no meu
campo de visão ao que surge entre nós — Lou, querido, não te vi aí. O procurei por toda parte.

— Eu estava... Ocupado. — Sorrio amarelo e ela assente — Por que estão levando os meninos?

— Os pobrezinhos estão desmaiando de sono, como eu sei que vocês precisam ficar o máximo
possível perguntei ao Harry se podia levá-los e ele disse que tudo bem.

— Entendo e muito obrigado. Desculpe pelo incômodo.

— Nunca é um incômodo ficar com meus netinhos. Não vejo a hora dessa gracinha vir para alegrar
os meus dias. — Anne fala com um sorriso repleto de alegria ao tocar a barriga do filho, que dirige
um olhar repleto de indiferença para onde a mãe toca — Bom, eu vou indo, até amanhã, meus
amores.

Espero até que ela esteja suficientemente longe, então segurando os dedos de Tomlinson e o
puxando para o armário de casacos próximo a saída principal, assim que bato a porta ele desfaz o
único botão de seu blazer.

— Se queria transar deveria ter feito lá mesmo, eu iria adorar sentar na sua cara na frente de todas
aquelas pessoas. — A malícia desliza fácil por seus lábios.

— O que você disse para o Aaron?

— Hm, você não para de falar dele, vamos, conte-me como foi?

Respiro fundo, sentindo meu sangue ferver com toda a sua dissimulação.

— Ele me beijou.

Não há o mínimo tremor na expressão de Harry, ele não fica chocado ou furioso, mas ostenta um
sorrisinho entusiasmado que maridos não costumam manter quando escutam esse tipo de coisa. Eu
me lembro de uma reação bem diferente quando... Esquece.

— E...?
— Você barganhou com ele para que tivesse um maior apoio profissional em troca de uma noite
comigo.

— Uma noite? Só? — Tira sarro — Não banque o difícil, querido.

— Por que você faria isso?

— An, vamos analisar, Aaron conhece muita gente, ele tem contato e status, poderia me levar as
pessoas certas e a minha carreira estaria consolidada sem precisar viver as sombras de ninguém,
mas amizade não é uma moeda de troca tão valiosa. Eu sabia que ele estava afim de você há muito
tempo e não é como se fosse impossível pra você transar com outro. Isso já foi mais do que
comprovado.

Sinto as lágrimas embaçando meus olhos e um soluço vir a garganta. Errei, errei feio e não nego,
mas isso é passar de todos os limites.

— Qual é a porra do seu problema? — Berro exaltado, o cacheado arqueia uma sobrancelha
arrogante — Eu sei o que fiz, okay? Nós conversamos sobre isso, nos resolvemos como duas
pessoas adultas. Hoje nós tivemos um ótimo dia pra agora você me vir com uma dessas. Que tipo
de doença você tem para virar um babaca de uma hora pra outra?

— Aí, Louis, sério que você vai bancar a virgem Maria quando todos sabem que você não passa de
uma puta? — Geme entediado, massageando as têmporas e meus neurônios não estão funcionando
direito quando o prendo contra a arara, com uma das mãos segurando seu pescoço.

— Para com isso, para de provocar. — Suplico em meio a um soluço — Tudo o que eu fiz foi te
apoiar, você não tinha o direito de me humilhar desse jeito.

Ele pisca bem devagar, a língua umedecendo os lábios entreabertos e os braços imóveis ao lado do
corpo.

— Eu não preciso te humilhar, você faz isso sozinho todos os dias em que aquele assassino em
série que você garantiu pegar na sua primeira semana continua livre, matando todos que vê pela
frente. Você se humilha quando ousa fazer ceninhas de ciúmes depois de ter fodido o meu melhor
amigo, na nossa cama, com seus filhos no quarto ao lado. Você se humilha a cada novo dia em que
continua vivo quando o meu bebê morreu por sua culpa. O que eu te dei hoje foi uma chance de
fazer algo útil, enfim, mas nem pra isso você serve, talvez eu possa fazer Aaron reconsiderar. —
Harry diz tudo aquilo com uma frieza esmagadora, só esboçando um sorriso lascivo ao final
quando insinua o óbvio.

— Quem é você? — Sussurro quebrado, vendo sua mão macia acariciando a minha e a forçando
contra a própria garganta.

Ele engasga.

— Você sabe, não conseguia tirar os olhos de mim. — O ar carregado da minha respiração bate
contra seu rosto — Deve ser tão difícil manter toda essa raiva sob controle, imagino que você
esteja a ponto de bater com a cabeça na parede pra não me machucar. Você não quer me bater,
mesmo que eu mereça. Eu tenho sido tão levada.

— Harry...

— Shhh, não é como se eu pudesse evitar, desde sempre eu fui uma garota má, que precisa
desesperadamente ser punida.—- Conforme ele fala, sua palma quente pressiona a minha, de
maneira que ele está se asfixiando. Seus ofegos mínimos vão se tornando arfadas altas e seu rosto
ficando avermelhado, em parte ele parece desesperado enquanto outra está extasiada.

Fecho os olhos, encostando a testa em seu ombro e ele não mentiu sobre eu estar lidando com um
desejo insano de sair quebrando e socando tudo o que eu vejo pela frente, mas ele não. Ele nunca.

Vamos, Louis, se concentre.

Não deixe que essa merda o cegue.

Pense na pessoa mais importante pra você. A pessoa que você mais ama. A pessoa que você mais
quer cuidar e proteger, para sempre.

O nome.

O nome.

— Harry Edward Styles. — Digo contra sua clavícula.

Sua mão se solta. Harry grita rouco, com dor, praticamente socando meu peito para me afastar.
Caio entre os amontoados de casacos.

— V-Você enlouqueceu?—- Ruge, massageando a pele marcada. Grandes olhos alarmados e


assustados — O que deu em você? — Olha ao redor, perdido — Que lugar é esse? Como
chegamos aqui? Onde estão os meus filhos? O que você fez com eles?

— Harry?

Que porra?!

Levanto, tentando me aproximar.

— Não! — Grita estridente, correndo em direção a porta — Não chega perto de mim, seu monstro!
— Ele corre para fora e eu sigo, atordoado.

Obrigo minhas pernas a funcionarem e a trabalharem o mais rápido possível para chegar até ele.
Harry só pode ter ficado tão nervoso com toda a atenção sob si que cometeu a imprudência de se
embebedar, aquelas besteiras haviam sido o álcool e não ele, e agora estava tendo mais um surto.
Não era nada demais. Eu o alcançaria, o envolveria em meus braços e tudo ficaria bem.

Hoje é um bom dia e não há como estraga-lo.

Sem mais nem menos ele para, tão de abrupto que chega a dar alguns tropeços. Eu quase consigo
sentir na minha própria pele o suor frio que escorre por sua bochecha, a palidez tomando a
epiderme, o coração acelerando ao ponto de ser difícil respirar. A voz subindo a garganta em um
grito silencioso e o tremor em suas pernas.

Quando Harry desaba, eu me jogo no chão para amortecer sua queda, o apertando contra meu
peito. Ele está tão frio que parece morto, massageio seu rosto, lutando para ajuda-lo a recobrar a
consciência.

O que houve?

Ergo os olhos, assim como ele fez há segundos atrás. Agora tudo faz sentido. Me arrasto até ter as
costas apoiadas nas portas largas do hall de entrada da galeria, os degraus longos dão de frente para
a rua deserta, com postes de luz a cada um metro e em um deste uma corrente escura mantém um
corpo pequeno suspenso, poderia ser o corpo de qualquer um, mas se tratava justamente daquela
garota de ontem, que Harry e eu admiramos pular corda próximo ao parque.

A menina que tanto se assemelhava a Evangeline.

Esquartejada, ensanguentada, morta e exposta para que todos vissem.

Andrômeda esteve aqui.

Talvez ainda esteja.

Abraço Harry, disposto a protegê-lo deste maldito custe o que custar.


│6│dorado

"Onde quer que haja sofrimento, o terreno é sagrado." É a única frase que paira pela minha mente
enquanto observo meus sapatos – os mesmos que eu tanto reclamara no início da noite – pisando
no sangue vermelho-escuro que goteja do tórax aberto, a poça sendo tão grande que me alcançou
mesmo estando metros de distância.

Meus olhos correm pelos traços recém apagados, tentando desvendar que divino futuro estava
reservado aquela doce criança, seus sonhos, seus gostos, sua vida. Era impossível não associar a
Eve, eu não a vi morta pessoalmente, não fui ao seu enterro e mal estive consciente durante o
período de luto, mas eu imagino que estaria como os pais da garota. Um casal não muito jovem,
que aparentemente tiveram problemas para engravidar e aquele sendo o seu pequeno milagre, eles
tinham feito um escândalo quando foram trazidos pela polícia local, se jogando no chão e urrando
de dor.

A mãe, frágil, teve uma síncope logo em seguida e o pai a seguiu até a ambulância. Haviam várias
destas agora, após o desmaio de Harry muitos vieram assustados e um a um foram se deparando
com a cena que parecia ter saído de um filme de terror, as pessoas se eriçaram e tudo se tornou uma
grande confusão de gente correndo com medo do assassino estar por perto, outros horrorizados
com a imagem bárbara, passando mal e pra variar os curiosos que tiravam fotos e queriam chegar
perto pra tocar. O meu chamado bastou para que diversas ambulâncias, caminhões de bombeiros e
a polícia civil montassem guarda pelo perímetro.

Em uma dessas ambulâncias, Harry se encontrava apagado. Ele acordou chorando e meio histérico
e como isso era muito prejudicial ao bebê os paramédicos acharam melhor seda-lo.

A minha noite "perfeita" foi tão tragicamente desfeita, ao menos meus filhos estavam em
segurança. Chequei meu celular, lendo as mensagens de Liam de que minha equipe estava a
caminho, outra de Gemma, para aliviar o peso no meu coração:

Gemma: Eu vou moide :3

Ao olhar para eles um sorriso automático se forma. Digito rapidamente sabendo que meu trabalho
precisa de toda a minha atenção agora.

| Louis:
Por favor, cuide bem deles.

| Gemma:
Eu sempre cuido. Sou a super tia!

| Louis:
Você é.

O guardei no bolso traseiro, a brisa fria soprova contra meu rosto bagunçando todo o meu cabelo,
tratei de jogar a franja longa para trás, cerrando os dentes quando o contato da aliança fria com
minha têmpora se fez presente.

Como esse desgraçado se atrevera a fazer isso, justamente no dia de Harry e ainda por cima para
que ele pudesse ver?
E o pior, matar uma criança.

— Com licença, senhor. — O delegado da polícia local se aproximou receoso, os polegares


enganchados nos passadores de cinto.

— Pois não? — Disse focando os olhos na calçada úmida, após uma garoa fina que só agravou
para o sangue se espalhar.

— Acho que seria melhor se liberássemos os civis e começássemos as buscas pela região.

— Liberar os civis? — Perguntei e o homem me apontou a entrada da galeria, onde os convidados


se acumulavam num falatório sem parar sobre o fato de estarem todos detidos lá dentro.

— Por que estamos desperdiçando nosso tempo com eles? São apenas vítimas.

— Não, não são. Um deles fez isso. Eu vou descobrir quem foi. — Digo lhe dirigindo um olhar
severo — Continuem fazendo o que eu mandei e não toquem em nada, o FBI está chegando.

Com isso lhe dei as costas e caminhei em passadas longas até o estacionamento, carros luxuosos
estavam por toda a parte e a iluminação sendo bastante escassa me fez agir mais por intuição para
poder encontrar o carro do FBI, consegui acha-lo exatamente onde foi deixado pela manhã.
Grande, imponente e frio quando o adentrei.

Não tinha muito tempo para pensar, apenas agir.

Me desfiz do paletó e vesti a jaqueta do trabalho por cima da camisa preta de manga curta, prendi
meu coldre na cintura, assim como o cassetete e chequei se minha CZ-75 estava carregada, mas
não a guardei ao invés disso a vislumbrei tão bem encaixada entre os meus dedos, ela já era uma
parte de mim depois de tantos anos, a sua textura lisa era quase terapêutica e aos meus olhos ela
parecia brilhar. Perdi há muito tempo a conta de quantos já acertou, mas a certeza era que ela
sempre acertava.

Seria essa arma que colocaria uma bala na testa deste assassino.

Fechei os olhos, tentando acalmar os pensamentos e ao mesmo tempo relaxar o espírito.

Inspirei e expirei devagar, deixando o ar massagear meus pulmões.

Um ruído alto interrompeu o silêncio, no entanto, ao abrir os olhos tudo permanecia escuro. O
mesmo som se repetiu e eu acendi os faróis para ver do que se tratava, as luzes intensas iluminaram
uma figura a dois metros de distância: Era uma menina, pequena, magra, vestindo uma roupa de
bailarina ensanguentada, furos de bala por todo o corpo e um longo cabelo escuro e ondulado
caindo pelos ombros estreitos, lábios rachados, pele roxa e de aspecto frio e os olhos, outrora
verdes, estavam brancos refletindo o vazio... O meu vazio.

Podia ser fruto da minha imaginação ou puro delírio ao que ela andou em minha direção até parar,
de repente erguendo o rosto fantasmagórico e gritando, tão alto e tão agudo que eu tive a sensação
de que meus tímpanos estavam explodindo e sangue jorrava pelas minhas orelhas.

Foi instintivo disparar sei lá quantas vezes contra o para-brisa, apenas para que ela sumisse.

"Você está morta. Você está morta. Você está morta" Minha mente repetia sem parar, o meu
coração a ponto de arrebentar a caixa torácica e o choro contido. Eu estava em pânico!

— Louis! Louis! — Alguém abre a porta, do outro lado o mesmo acontece. Meu braço esquerdo
está ardendo e meus olhos estão irritados.

— Liam, não grita! — Sussurram de volta, este eu consigo discernir como sendo Michael.

Até meus ossos tremelicam.

— Ei, Lou, está tudo bem. Você está seguro, nós estamos aqui. — Uma palma macia se atrelou a
minha em um aperto reconfortante — Respire, respire...

Tento fazer como ele diz, acalmando minha respiração descompensada e aos poucos as coisas não
parecem mais tão intensas e esmagadoras.

Deixo que ele levante meu rosto, até a altura do seu. Mike está pálido e visivelmente preocupado
com seu inseparável boné no topo da cabeça.

Ele sorri o que me encoraja a fazer o mesmo.

— Elas são parecidas, não é? — Diz baixinho, de forma que apenas eu o escuto.

Balanço a cabeça.

— Não precisa lidar com isso, pode ir pra casa e ficar com a sua família. Nós cuidamos de tudo. —
Propõe complacente e por mais que eu deseje fazer isso, nego e afasto suas mãos do meu rosto.
Liam está em pé, mantendo a porta do motorista aberta. Passo por ela, olhando na direção em que
Evangeline estava, alguns cães balançam os rabos debaixo dos carros onde procuraram abrigo
durante os disparos.

— Não! Hoje nós vamos pegar esse maníaco. — Decreto, arrancando o caco de vidro que se
prendeu a superfície da minha pele, o sangue escorrendo pela mesma me dá a certeza de que ao
menos hoje eu estou vivo.

Os dois me seguem de volta até o local do crime. Stan, o fotógrafo registra cada mínimo detalhe
em sua lente, os carros dos federais tomam conta da rua e os policiais civis olham tudo de longe,
com curiosidade. Hemmings já está lá na frente, de joelhos próximo ao sangue, um pirulito entre os
lábios e o plasma sendo esfregado nos dedos.

— Então você conclui que isto é sangue? — Digo para provocar parando ao seu lado. Seus olhos
azuis tentam me pulverizar só com o olhar.

— Hey, Tommo, sinto muito que sua festinha tenha sido arruinado, imagino que a Barbie esteja
arrasada. — Ele ri, ficando de pé e estufando o peito achando que o fato de ser maior o torna
intimidante.

— É melhor manter essa boca grande fechada se não quiser voltar para o porão da CIA.

Liam pega a tensão entre nós e pigarreia, dando um passo a frente.

— Vejamos, está é Nancy Brown, oito anos, classe média alta, a família sem qualquer antecedente
de rivalidade ou alguém com motivações para querer ferir a menina. Nancy sumiu hoje de manhã e
agora é encontrada, esquartejada e morta.

— Acha que foi Andrômeda? — Me dirijo a Clifford.

Mike ajeita os óculos de grau, olhando fixamente para o cadáver da criança.

— A primeira vista tudo indica que sim, a asfixia com as correntes, a dilaceração do tórax, o
sangue empoçado e o cadáver pendurado. Mas os órgãos continuam dentro dela, o que é estranho.

— Mais estranho ainda é que a mãe e o pai não estão fazendo companhia. Ele sempre pega três. —
Luke observa.

— Ele segue um método, mas está noite fez alterações.

— Por que ele faria isso?

— Talvez quisesse chamar a atenção.

— Essa menina... — Começo, atraindo a atenção dos três — eu a vi ontem, no parque. Fiquei
impressionado pela semelhança dela com a minha filha.

Há um curto período de silêncio.

— Então ele pode ter feito isso pra te atacar diretamente. Como não era um dos seus assassinatos e
sim um capricho não se preocupou em seguir todas as suas regras. — Liam concluiu acima de
todos. Ele era ótimo em suas suposições e teorias, a maioria sempre se apresentavam como
corretas.

— Okay, mas porque ele iria quer me atingir? — Coloco as mãos nos quadris.

— Não é óbvio? — Luke intervém, tirando o pirulito da boca pra falar com clareza — Você é um
merda, mas ainda é um dos melhores detetives federais que existe, está na cola desse cara há dois
anos e pode ser que esteja mais perto do que imagina. Ele deve estar assustado e quer te repelir,
usar a lembrança da sua filha é uma ótima sacada, ele quer te desestruturar.

— O que ele conseguiu por um momento. — Murmuro só pra mim, coçando o queixo e ouvindo o
tumulto dos convidados. Viro para eles e Luke, Liam e Mike fazem o mesmo - Se esse assassino é
tão caprichoso e atrevido, quais seriam as chances de ele ainda estar aqui e como um convidado
nesta exposição?

— Armar tudo isso e não ficar para ver a sua reação seria irresistível.

— Como vamos descobrir isso? — Mike pergunta.

— Será uma longa noite de interrogatórios. — Bufo, passando a mão pela testa — Liam e Luke
trabalhem com os policiais para levar todos neste evento até a agência. Vejam a lista de
convidados e se alguém tiver saído mais cedo os convoque.

— Certo. — Os escuto dizer quando começo a me afastar e seguir até uma das ambulâncias mais
distantes. Harry está sentado, os pés batucando no chão e o cabelos caindo por seu rosto sem cor —
Oi, gatinho.

O cacheado olha pra mim, um tanto grogue, com os olhos pequenos.

— Como se sente?

— Frio. — Se abraça, seu blazer fino não sendo suficiente para aquece-lo. Não hesito em tirar a
minha jaqueta e colocar sobre seus ombros, puxando seus cabelos para frente — Melhor... Oh,
meu deus, Louis, você está sangrando. — Olho meu braço que ostenta um corte de nada, mal
sangrou.

— Eu estou bem. — Sento ao seu lado, puxando o corpo mole pra mim, absorvo o perfume dos
seus cachos — Você desmaiou, eu fiquei preocupado.

— Era aquela... Aquela garotinha de ontem. — Ofega em minha camisa.

— Sim, um monstro cruel a feriu e eu vou pega-lo. — Prometo e nossas mãos se encontram em seu
ventre.

— Chefe, eu faço questão de interrogar esses dois, Spencer e Blake Tomlinson, tem cara de
suspeitos em potencial, não acha? — Hemmings veio apenas para fuder com tudo, rindo ao que lia
a lista de convidados. A recepcionista havia marcado aqueles que deixaram a recepção mais cedo
— Gemma Styles, uh, ela está na cidade? Que maravilha! Suspeitissima!

— Onde foi parar a porra do seu profissionalismo? — Rosno para o idiota.

— Interrogar? Do que ele está falando? Vocês vão interrogar os convidados? Vão interrogar nossa
família? — Harry me olha chocado.

— Eu estava brincando sobre interrogar os meninos, é claro. — Luke diz.

A vontade de dar uma voadora no seu peito é grande.

— Louis, não pode fazer isso.

— Harry, amor, as chances de que o assassino esteja infiltrado entre os convidados é imensa.

— Você não entende s-se você fizer isso, se transformar essa exposição num episódio do CSI eu
vou estar acabado, vai ser o fim da minha carreira, ninguém vai querer comprar os quadros do cara
casado com o policial que os interrogou. Ninguém vai querer saber de mim. Eu vou cair antes
mesmo de ascender. — Seu tom angustiado era uma facada no meu coração.

Eu queria ceder.

— Uma criança está morta, Harry. Por mais que a sua felicidade importe pra mim, não é nisso que
eu posso pensar agora. Desculpe, amor. — Beijo sua bochecha molhada pelas lágrimas de raiva.

— Realmente é tudo muito triste, mas vida que segue. Agora que você se despediu do Ken
podemos ir, Barbie. — Hemmings oferece a mão para Harry que olha para ele e depois para mim,
confuso.

— Não, ele não. — O aperto contra meu peito feito um filhotinho.

— Você disse todos. — Ele retruca ácido, chamando o paramédico para fazer um curativo no meu
braço — Harry Edward Tomlinson, queira me acompanhar.

Harry engole em seco, o pomo de Adão se movendo quando ele acaba por aceitar a mão de Luke
que o conduz até o seu carro. Como um suspeito ele é colocado no banco de trás, Harry encosta a
testa no vidro e eu assisto dolorosamente o caminho de suas lágrimas descendo por seu rosto
bonito.

Xx

Com exceção de Anne e Gemma, todos os convidados haviam sido levados até a base do FBI. Lá
era suficientemente grande para alocar todos os suspeitos em potencial em saletas, onde tinham
seus depoimentos coletados. Liam, Luke e eu interrogávamos um por um, enquanto Michael estava
no laboratório de análise com sua equipe procurando por evidências no corpo de Nancy.
Já passava das duas da manhã e a minha exaustão era mascarada com quantidades absurdas de
cafeína. Eu terminava de beber o que deveria ser meu milésimo copo, encarando pela janela o
pátio aos fundos. O que eu não daria para estar no conforto da minha cama, enroladinho com Harry
ao meu lado respirando contra o meu pescoço.

Ah, Harry.

Eu já deveria suspeitar que ele acabaria por ser o mais difícil de lidar.

Em tantos anos de casamento ele nunca esteve tão diretamente ligado ao meu trabalho, com a
excessão de quando precisou vir até o necrotério reconhecer o corpo da nossa filha, ele nunca
esteve no banco de trás de um dos carros como se fosse um criminoso ou sequer teve de sentar em
uma daquelas salas pequenas, com as paredes em tons frios, uma única janela que não lhe permitia
ver o outro lado, câmeras em cada canto e uma mesa e cadeira de ferro.

No meio da nossa divisão ficou acertado de que eu o interrogaria, deveria ter tentado isso umas três
vezes.

Na primeira ele bebeu água o tempo inteiro, o que o impossibilitava de falar.

Na segunda foi ao banheiro de um em um minuto por conta da bexiga cheia e na terceira ficou
bocejando até dizer que precisava dormir e o bebê precisava de descanso, e eu o deixei agir como
queria em todas as vezes porque eu era tão imponente quanto um saco de merda pra ele.

Eu detestava bancar o pulso firme com ele porque acabava sempre me descontrolando, o
assustando e quebrando coisas. Era péssimo.

O ideal sempre era quando ele agia como o meu Harry, todo meigo e preocupado, bagunçado e
amoroso. De todas as suas variações de humor e personalidades este era o melhor.

Peguei minha xícara de café requentado e puxei uma cadeira ao lado de Mitch que continuava a
checar todas as câmeras de segurança do bairro. Seus olhos estavam fundos e ele não estava tão
ágil como normalmente, pelo contrário, estava exausto porque ele já vinha trabalhando em um caso
complicado e precisou me socorrer por ser um dos únicos de plantão. Na falta de mais agentes,
Sarah precisou ser recrutada, coisa que ela adorava por conseguir um extra no pagamento. Ela tinha
mais energia do que qualquer um naquele prédio.

— Alguma coisa?

— Nada, além de horas e horas de ruas vazias. Só um gato caminha de vez em quando, eu o
apelidei de Bobby. Ei, Sarah, podemos ficar com ele?

— Claro, mas se ele entrar você sai. Não tem espaço pra dois vira-latas naquela caixa de sapatos.
Louis, foi você quem comprou aquela casa linda com cerquinha branca e tudo, né?

Concordo desconfiado.

— E vocês dois ganham a mesma coisa, então, como você tem a coragem de me dizer que não
pode me dar uma casa? Eu mereço uma casa, com cerca branca e um jardim que eu não farei
questão de aparar a grama. — Sarah praticamente rosna, batendo com os dedos nas teclas do
notebook furiosamente.

Eu fujo do meu casamento e acabo caindo em uma DR alheia.

— O flat é ótimo, não tem porque nos mudarmos, amor. — Mitch diz em sua voz mansa, coçando
a cabeça e bocejando sem parar. Ele não tem chances!

E olha que ele é negociador.

— O flat é um ovo, eu sou uma mulher, preciso de espaço.

— O que uma coisa tem a ver com a outra? — Pergunto realmente curioso.

— Tudo! — Dá de ombros, então desvia os olhos para a tela, os arregalando de leve — Detetive,
acho que deveria ver isto.

Arrasto minha cadeira até ela, encaro a tela. Durante três horas de exposição ninguém saiu ou
entrou, Gemma, Anne e as crianças sendo as únicas pessoas a deixarem o evento antes do fim. Não
haviam registros de alguém abandonando o local para cometer o crime, exceto uma única pessoa.

O vídeo mostrava Harry entrando, sem imagens dele anteriormente, pela porta dos fundos até um
pequeno armazém, parou diante de um pequeno espelho, abriu a torneira da pia e passou a mão
molhada várias vezes pela camisa manchada de vermelho.

Sangue ou vinho?

Saltei da cadeira em um átimo, pegando a ficha e o gravador e andei pelos corredores, Liam estava
dispensando um casal de idosos depois do interrogatório.

— Diga a equipe que ficou no local que eu quero uma nova varredura, completa na galeria, não
deixem de examinar um milímetro que seja. Faça o mesmo com os quadros, cheque os
componentes das tintas e a cerâmica. Não deixe nada de fora. E eu quero Anne Cox e a camisa do
Harry aqui, em dez minutos. Entendido? — Ditei sem parar de andar.

Payne anuiu.

Empurrei a porta da sala onde Harry se encontrava, agora em pé e vagueando pelo lugar. Puxei a
cadeira e me sentei a sua frente.

— Senta. — Usei um tom ameno que eu jamais usaria com um suspeito qualquer.

Suspeito? Harry não é um suspeito.

Veio devagar, sentando e cruzando as pernas com um olhar rabugento.

— Quero ir pra casa.

— Você vai depois que me responder algumas perguntas.

— Eu não sei de nada, me deixa ir. — Teimou com um bico.

Liguei o gravador em cima da mesa e esfreguei o rosto.

— Você não vai sair antes de falar. Agora, colabore, sim? Você conhecia Nancy Brown?

— Não mais do que você.

Suspiro.

— Já teve algum contato com Owen ou Cassie Brown?


— Owen? Hm, não. Cassie talvez, podemos já ter feito yoga juntos, vai saber.

— Harold.

— Detetive. — Retruca com desdém.

O meu Harry não está aqui.

A questão é qual alma endiabrada está no controle agora?

— Você esteve o tempo todo dentro do recinto?

— Eu não sei, estive em tantos lugares.

— Saiu da galeria?

— O que você acha? — Me instiga, mordendo os lábios recheados e cruzando as mãos sobre a
mesa. Vez ou outra cutucando o gravador.

Bato em seus dedos e ele guincha.

— Isso não é brincadeira, é uma investigação séria e você pode estar sendo apontado como um dos
suspeitos, então, por tudo o que há de mais sagrado seja franco e não infantil. — Sussurro para que
o gravador não possa pegar isso.

Se a minha imparcialidade for questionada eu posso ser retirado de seu interrogatório e se


dependesse de Luke ele colocaria as algemas em Harry antes mesmo de questionar.

— Eu tô com sono. — Choraminga, deitando a cabeça nos braços. Pelo canto do olho sei que do
outro lado do vidro Grimshaw e Hemmings me observam e para eles eu devo estar parecendo um
idiota.

— O que aconteceu com a sua camisa?

— Ela sujou. — A voz sai abafada.

— De quê?

— De porra, quando o Aaron gozou em mim. — Um ruído pouco discreto é ouvido do outro lado e
eu sei que se trata de Luke rindo.

Largo a caneta que eu vinha usando para fazer anotações e miro em Harry zoando com a minha
cara, no meu trabalho, em meio a uma investigação importante, é como se ele quisesse me boicotar
de propósito. O meu marido quer me arruinar.

— Quando você saiu ouviu gritos ou uma movimentação estranha? — Questiono.

Harry finalmente levanta o rosto, corado e arrogante.

Um olhar totalmente novo.

— Eu sou um suspeito? É por isso que está fazendo tantas perguntas?

— Apenas preciso saber o que você sabe.

— Eu sei que você é um idiota e incompetente, que deixou uma criança morrer debaixo do seu
nariz e agora quer jogar a culpa em mim quando todos sabem que eu não machucaria uma mosca.

A porta se abre de supetão e Mike surge apressado.

— Louis, você preci–

Ele para no instante em que seus olhos se cruzam com os de Harry. O rosto inteiro é tomado pelo
rubor, ele se desculpa baixinho e rasteja para fora.

— Não...

— Harry, foco! — Peço, tentando ignorar o furacão que virá.

— Vai se foder! — Harry atira o gravador contra a parede, o mesmo estoura em vários pedaços —
Como você pôde?

— Ele está no caso, apenas isso. O que houve está no passado. Por favor, vamos esquecer isso.

— Eu odeio você. — Diz pequeno, se encolhendo na cadeira.

Indo contra a ética profissional, seguro suas mãos e as beijo.

— Baby, não fica assim, não existe mais nada entre nós. Pra mim só há você, hoje e sempre. Nada
está acima de você.

Harry funga, então puxa suas mãos para si.

— Nada além desse trabalho idiota.

— Haz.

— Hoje era a minha noite. A chance da minha vida e tudo o que você fez foi me atrapalhar. Por
que você me odeia tanto?

— Você não está sendo racional, uma garota foi–

— Uma garota foi morta, tá, é daí? O que isso tem a ver comigo? Quando a nossa filha morreu
você não fez porra nenhuma, agora com a cria alheia você quer bancar o super homem e resolver
tudo na marra mesmo. Você coloca tudo acima de mim, você não me ama, ou se importa, de que
adianta meia dúzia de palavras bonitas quando todos sabem que se fosse eu ou uma das crianças
penduradas naquelas correntes você estaria pouco se fodendo porque-

Ele se cala quando bato contra a mesa. Não em um tapa de protesto, mas sim um murro que só
Deus sabe o quanto eu me contive para não dar no meio da cara dele. Sinto as juntas dos dedos
dormentes depois do baque, mas não me importo porque milagrosamente Harry está calado e
atento a mim.

Arranco o distintivo do pescoço e jogo contra seu peito.

— Você sabe o que esse distintivo significa? — Minha voz é baixa, profunda e nada amigável. O
tipo de tom que eu não uso com ele.

Harry se acua, balbuciando algo que não entendo.

— Fala direito.
— Significa que você é um policial. — A voz pequena, quase ingênua.

Os lábios cor de rosa pressionados juntos nem parecem os mesmos que despejavam tanta merda
segundos atrás.

— Sim, mas não qualquer policial. Eu sou um federal e acima de tudo uma autoridade e sabe o que
se deve fazer na presença de uma autoridade, Harold?

Ele nega.

— Está mais do que claro que você não sabe. — Mordo o lábio inferior, meus olhos queimando
cada rastro de pele seu — Deve respeitar. Assim como eu tenho feito com você, desde que te
trouxemos para cá você tem feito o que quer. Fugindo do interrogatório e agora zombando de mim
como se eu fosse um qualquer. Acho que eu te mimei demais e acabei te deixando por fora do meu
mundo, mas nunca é tarde para aprender, então escute com muita atenção, lá fora eu sou seu
marido, o pai dos seus filhos, que te idolatra e faz tudo pra você, sem restrições. Lá você pode fazer
o que bem entender, nós somos iguais, mas aqui dentro, no meu mundo, quem manda sou eu, nós
não somos iguais e quando você abre a sua boca pra dizer qualquer coisa que soe ofensiva ou
desrespeitosa a minha pessoa eu tenho todo o direito de te algemar e jogá-lo numa cela. — Apoio
ambas as mãos na mesa e me inclino para aproximar nossos rostos, ainda o olhando de cima —
Uma criança foi assassinada, alguém pegou essa frágil criatura, a roubou do seio da sua família e
fez monstruosidades terríveis com ela. No corredor está uma mãe chorando e desmaiando porque
ela não consegue suportar a ideia de que mataram a sua garotinha, um ser tão jovem e inofensivo.
Você — Aponto o dedo em seu rosto — mais do que qualquer outro deveria ser capaz de entender,
mas ao que me parece te falta muita empatia, porque tudo o que você sabe fazer é reclamar da sua
maldita exposição. Você ainda está vivo e bem, tem um talento magnífico e o apoio de quem você
quiser, pode fazer muitas exposições. Mas aquela família, só tem hoje, a chance de encontrar o
culpado. O tempo que eu estou aqui perdendo com você eu poderia estar caçando aquele maldito,
então me diga, senhor Tomlinson, você vai agir como um homem adulto e colaborar ou eu devo
dar voz de prisão aqui mesmo?

Aguardo por mais alguma atitude imatura, um xingamento ou um bico mimado, qualquer coisa
menos seu lábio inferior tremendo e a expressão fria se desfazendo por um semblante choroso,
quase como o de uma criancinha. Ele esconde o rosto entre os braços e se põe a chorar alto,
sentido, não só os ombros como o corpo inteiro tremendo e provavelmente a mesa ficará ensopada.
Se isto estivesse acontecendo em qualquer lugar que não fosse aqui a minha reação mais natural
seria a de envolve-lo nos meus braços e afaga-lo até que as lágrimas se tornassem sorrisos, mas eu
não posso fazer isso, não agora.

Aqui eu não sou seu marido, eu sou um detetive e mostrar mais do que indiferença por ele não é
possível.

Naturalmente que ouvi-lo chorar não era o que eu desejava conseguir, a angustia junto a frustração
me levam a chutar uma cadeira, o barulho só o deixa mais arrasado e eu sei que não vou conseguir
nada. O abandono, saindo pra dar de cara com Luke roendo a unha do mindinho já que não tem
nenhum doce em vista.

— Parabéns, detetive, fazer a lindinha chorar vai ajudar bastante nas investigações. Genial!

Lhe dou o dedo do meio e ele retribui.

— Meu deus, o que está havendo? Esse é o meu filho chorando? — Anne corre em minha direção
assim que desponta no corredor acompanhada de Payne.
— Não se preocupe, ele está bem. E as crianças?

— Dormindo com a Gemma. Eu não entendi nada, pensei que já estivessem em casa, o que
aconteceu? O Harry está ferido? — Ela indaga tudo de uma vez, eufórica.

A seguro pelos ombros, tentando contê-la.

— Não, ele está bem, apenas um pouco chateado, mas fisicamente intacto. Anne, eu vou te fazer
uma pergunta e quero que você seja o mais sincera possível.

— Certo.

— Você sabe porque o Harry saiu da galeria?

— Bem... — Minha sogra desvia o olhar.

— Por favor, diga.

— Meu filho estava passando mal, eram enjoos da gravidez, então eu sugeri que ele tomasse uma
taça de vinho. Sim, eu sei que isso pode soar muito mal, mas quando eu esperava por ele isso
salvava a minha vida. Era uma noite especial e eu não queria que ele tivesse que sair mais cedo por
conta disso, mas como Harry tinha receio que você o visse bebendo, disse que ele poderia fazer
isso do lado de fora da galeria. Eu fiquei esperando e quando voltou estava com a camisa toda
manchada, ao que parece acabou derrubando o vinho em si mesmo quando ouviu algum barulho
que o assustou.

— Onde está a camisa?

— É vinho, passamos no laboratório antes. — Liam responde.

Os olhos de minha sogra se arregalam em entendimento.

— Vocês estão desconfiando dele?

A solto, para entrar novamente na sala. Harry ainda está se debulhando em lágrimas, atrapalho seu
momento, puxando seu rosto molhado para mim.

— Harry, sua mãe disse que você se assustou quando saiu, o que você viu? — Encaro suas orbes
em um verde transparente, ele pisca algumas lágrimas para fora.

— Eu não vi... Só, só ouvi.

— O que você ouviu?

Harry soluça.

— Correntes. Eu ouvi correntes sendo arrastadas.

Xx

Correntes parecem ser o tema principal da noite.

Longos metros de metal trançado embebido em sangue jovem está sendo exibido no laboratório de
análises. Michael está com as mãos enterradas no jaleco e todos usam luvas ao tocar na arma do
crime. Aguardamos pelo resultado das digitais que foram encontradas.
Eu só quero colocar um ponto final nisso tudo.

Me despedi de Harry, pedindo que ele me ligasse quando chegasse na casa da mãe. Meu celular
não tocou uma mísera vez.

— Desculpe ter entrado daquele jeito, deveria ter esperado. — Clifford pede, olhando para os pés.

— Não se desculpe. Está tudo bem.

— Tem certeza?

— Absoluta. — Garanto sem olha-lo nos olhos. As portas de metais são abertas, nos liberando
daquele momento estranho e constrangedor, Clare está praticamente se arrastando até nós com
folhas e mais folhas entre os dedos.

— Acho que nem toda a cafeína do mundo é capaz de dissipar todo esse sono. Que horas são,
hein? — Boceja.

— Três e alguma coisa, então, de quem são as digitais?

— Bem, não só as digitais como as correntes também, elas pertencem a Aaron Johnson, além desta
encontramos mais três no seu carro muito bem guardadas em uma bolsa Louis Vuitton. Segundo
depoimentos ele as utilizou para uma exposição há seis meses atrás em Seattle.

— Que motivos Aaron Johnson teria para matar a garota? — Michael se vira para mim.

— Nenhum, além de ser um serial killer em potencial. Ele recentemente tem estado próximo de
mim e da minha família. Harry poderia ter falado da menina e é claro que ele sabia onde estávamos
nesta noite.

— Não devemos tirar conclusões precipitadas. — Ela avança em dizer, entregando os resultados
para Clifford — E o advogado do senhor Johnson já fez o favor de nos informar que está a
caminho, então sugiro que se vocês têm algo a discutir com ele é melhor que façam logo.

Balanço a cabeça, ciente de tudo o que ela diz e sei que o tempo é algo escasso no momento, é
como se o cerco estivesse se fechando e o verdadeiro culpado escapasse por entre os meus dedos.

Ruas desertas, sem nenhum tipo de movimentação. A galeria sendo o único lugar recheado de
pessoas, foi alguém de lá, tem que ter sido.

Está tarde, meu corpo reclama pelo cansaço e meu raciocínio não é dos melhores depois de tantas
xícaras de café e nicotina em minhas veias. Vou até a sala onde sei que Aaron está sendo
interrogado, ele aparenta irritado e desinteressado diante de Hemmings que não ostenta um pingo
de deboche, ao menos de vez em quando ele age como um profissional.

— Vejam só se não é o policial responsável por colocar a minha galeria nas páginas policiais.
Muito obrigado, isso vai fazer maravilhas para o marketing. — Cantarola em pura ironia, com os
cabelos armados e olhos estreitos que parecem saber bem mais do que revelam.

— Espero não ter arruinado as coisas para você, senhor. — Retruco a sua altura, cruzando os
braços ao sentar na beirada da mesa.

Seus olhos me encaram tal como um cão faminto a um frango assado e suculento.

— Embora todos saibamos que a galeria não tem tanta importância para você, uma vez que tem
dinheiro o suficiente para viver umas três vidas.

Luke assente, ele corre os dedos longos pelas mechas compridas e onduladas de seus cabelos.

— Sua fortuna é impressionante. Quem te olha não deve imaginar que você vem de um longa e
bem sucedida linhagem de banqueiros, você nasceu com a vida ganha, mas isso não o impediu de
cometer delitos tolos, como: Furto, assalto a mão armada, posse ilegal de drogas, tentativa de
sequestro e há uma quantidade considerável de ordens de restrição contra você. Gosta de perseguir
as pessoas, Aaron? — O loiro se inclina em direção ao suspeito com um sorriso provocador.

Aaron o mede de cima a baixo e então recua, colando as costas na cadeira e cruzando as mãos
sobre o colo. Elegante e límpido.

— Não direi nada sem a presença do meu advogado.

Luke e eu nos entreolhamos.

— Não há necessidade de um advogado, estamos apenas tentando entender o que aconteceu e


como correntes que pertenciam a você foram parar ao redor do pescoço de uma criança.

— Eu não sei, tá legal? Alguém deve ter arrombado meu carro.

— O veículo não tem sinais de arrombamento, quem o abriu fez sem esforço, talvez possuísse a
chave... Quem além de você tem a chave?

Ele engole em seco.

— Ninguém.

— Está evidente que você está mentindo. Diga de uma vez ou terá que dizer na frente de um juiz.

— Bem, você sabe quem tem a chave do meu carro. — Um maldito sorrisinho de lado desponta
em seu rosto.

Luke se remexe em sua cadeira desconfortável e eu me levanto, particularmente atacado.

— Talvez ele não tenha te dito, mas nós temos muita intimidade.

— As correntes fizeram parte de uma exposição, nós investigamos e ela de fato aconteceu, a
questão aqui é, por que você não se desfez dela e melhor, por que andava com ela no banco traseiro
do carro? — Circulo pela sala, atento. Captando cada mínima reação sua. Aaron está hesitante, ele
sabe de algo.

— Talvez fôssemos usar nesta exposição, então eu as trouxe. Só.

— Você é um homem esperto e antenado, acredito que esteja por dentro das notícias, sabe que há
um assassino a solta que mata exatamente como Nancy Brown foi morta hoje. — Apoio as mãos
nas costas de suas cadeiras, intimidante.

— Não, você mente.

— Mesmo? — Caminho, parando ao seu lado.

— Andrômeda não fez isso, está errado. Essa morte não tem um propósito para ela.

— Ela? Como sabe que é ela?


— Apenas um palpite. — Balbucia, o playboy arrogante parece ter dado lugar a um garoto
assustado.

— E por que fala sobre propósitos?

— Porque é óbvio, todos eles tem algum, mesmo que não faça sentido para nós. Eles sempre o
fazem por uma razão.

Uma razão. Desde que eu peguei esse caso tudo o que venho procurando é uma razão para esse
monstro fazer o que faz.

— Qual é a razão dela, então? — Luke indaga.

— Eu n-não sei.

— Você falou com tanta propriedade de Andrômeda que fica difícil não desconfiar de que você
pode estar por trás disso. — Meu parceiro incita, querendo arrancar alguma reação.

— Não estou.

— Eu não acredito em você.

— Não é como se eu precisasse provar algo a você.

— Na verdade você precisa e muito. Vamos fazer uma breve análise, uma criança que
provavelmente você soube da existência pelo seu amigo íntimo é assassinada, seguindo grande
parte do passo a passo de um assassino procurado, em frente a sua galeria, a arma utilizada para o
homicídio sendo encontrada no seu carro e com as suas digitais, não há sinais de arrombamento e
agora você fala como se fosse um expert com relação as atitudes desta abominação. Desculpe, mas
tudo vai contra você.

Não é ele, está óbvio demais. Ele foi incriminado.

Mas que ele sabe de algo, ah, isso sim.

Coloco a mão na minha arma e tento soar o mais convincente possível ao que me aproximo de
Hemmings, dizendo:

— Prepare nossa melhor cela para o nosso ilustre assassino.

Luke assente, se pondo de pé. Os olhos de Aaron quase saltam.

— Oh, pobres coitados, estão tão desesperados para por um ponto final nisso que estão dispostos a
jogar a culpa em qualquer um. Tão tolos que não enxergam um palmo diante do nariz.

— Oh, é mesmo? O que eu não estou vendo? Diga pra mim. — Inclino o corpo sobre a mesa,
olhando fixo em seu rosto.

— O amor pode ser uma desgraça em momentos assim, porque ele é capaz de colocar camadas de
pele sobre seus olhos para impedir que você veja aquilo que está claro. — Conforme fala, ele
também vai se aproximando de mim — Mas você sabe que foi você quem alimentou o mal que
estava escondido, o causador de toda essa desgraça, o sangue está em suas mãos e o monstro no
seu armário tem a forma de uma garotinha, sabe quem é o assassino que você tanto caça? O
monstro demoníaco? Você quer ver? É simples, se olhe no espelho. — O homem gargalha um riso
sombrio e me puxa pela gola da camisa selando nossos lábios pela segunda vez e eu não resisto em
descer meu punho contra seu rosto, mesmo caído Aaron continua a rir histericamente.

— Porra, Louis! — Luke berra, indo socorrer o suspeito.

Foda-se essa merda toda, eu estou fora.

Eu tenho ótimos amigos no corpo de bombeiros, sou advogado, minha sogra tem um restaurante,
são muitas as opções e já está mais do que na hora de mudar de emprego. O som dos meus sapatos
contra o piso parecem bem mais altos contra os meus ouvidos, como marteladas pesadas dadas
diretamente no meu crânio. É um tormento sem fim, combinado com a visão da pequena mulher
chorando a morte da filha, ela está agarrada a um homem desconhecido e eu evito encarar.

Vou até o refeitório, vazio, a lua está em seu auge do lado de fora e meus bebês devem estar no
décimo sono. Verifico meu celular, sem nenhum mensagem, me desfaço do coldre, deixando-o
sobre uma das mesas de centro, o café frio precisa ser esquentado no microondas e o gosto embora
não sendo dos melhores ajuda a diminuir o frenesi em meus ossos.

— Eu não entendo. — Estranho a voz pouco familiar, ao me virar sou surpreendido com a visão do
pai, Owen Brown, cabeça baixa e dedos nervosos.

Não esperava vê-lo aqui, mesmo assim tento ser simpático com um meio sorriso.

Ele não pega o gesto, olhando para o chão.

— Olá, senhor, como se sente?

— Tudo, tudo parece tão surreal, ainda não acredito no que aconteceu. — Ela dá alguns passos,
curvado e abatido.

Pego outro copo de café, desta vez oferecendo ao homem que aceita com um breve agradecimento.

— Eu entendo como se sente, eu também perdi uma filha, da mesma idade que a Nancy. — Eu
posso não ser a pessoa mais agradável do prédio, mas sou uma das únicas que consegue
compreender sua dor.

O pobre Owen deixa suas lágrimas molharem sua bebida, dando alguns passos a frente e se
apoiando na mesa.

— Eu tentei ser o melhor, dar tudo o que elas precisavam. Sempre cuidei delas, sabe? — Assinto
bebericando meu café — Nós estávamos bem, éramos uma família feliz e de repente tudo mudou.

Quando o copo está vazio o deixo na bancada do armário, amassando o plástico e vendo algumas
partes se partirem.

— Sei que é difícil, mas você e sua esposa–

— Não tem esposa nenhuma, aquela... Aquela vadia me trocou por um garoto oito anos mais
jovem. — Grita de repente e quando volto a olha-lo é para encontrá-lo em posse do meu revólver,
apertando o carregador da arma sem parar.

Porra!

— Eu dei tudo o que podia e só consegui um pé na bunda. Ela ficou com o carro, a casa e nossas
economias porque ela teria que cuidar da Nancy. — Disse apressado, andando de um lado para o
outro. Meus olhos só enxergavam aquela arma, ele a destravou e adivinhem só quem não usa um
colete — Aquela menina era outra pilantrinha, igual a mãe, ela podia escolher ficar comigo, mas
não, ela quis a mamãe e as visitas só foram diminuindo até que ela dissesse que não queria mais
me ver, que só gostava de ficar com a mamãe e o Dave. O Dave era o novo papai e eu não era
ninguém. — A essa altura, Owen estava aos prantos e meus dedos apertavam o granito as minhas
costas, eu estava acuado e indefeso, isso era muito mal — Você entende isso? Eu fui traído pela
minha própria família! Me apunhalaram pelas costas. Então eu resolvi apunhalar de volta.

Meu coração para por um segundo.

Os olhos injetados, as bochechas vermelhas e aquele sorriso nervoso e o andar frenético beirando a
histeria compunham o estereótipo perfeito de maníaco. Ele esfrega o cano pelos cabelos grisalhos,
totalmente voltado pra mim. Luke surge a porta com cara de tédio e para no instante em que vê o
homem armado, automaticamente empunhando o seu revólver, mas eu balanço a cabeça, o
proibindo de se mover.

Preciso de uma confissão.

— Então, você apunhalou a Nancy?

Ele ri.

— É, foi. Ela sempre foi uma garota levada, eu tinha vontade de lhe dar uma lição e acho que ela
aprendeu agora.

A bile sobe até a minha garganta.

— Você agiu muito bem, ninguém suspeitou de você. — Digo controlado, sabendo que precisamos
do máximo de fatos possíveis antes de uma incriminação.

— Sim. — Sorri como se a memória fosse agradável — Eu tenho algumas oficinas mecânicas e
teve essa vez que o Sr. Johnson levou o carro, era um carrão bacana e haviam aquelas correntes
esquecidas no banco de trás e eu já tinha algo em mente, então fiz uma cópia da chave e resolvi
que ia ser na frente da galeria dele, onde todos poderiam ver o que acontece com garotas ruins.
Bastou achar um ponto cego nas câmeras de segurança e imitar aquele assassino da TV que
ninguém sequer pensou no meu nome. Foi até divertido, devo admitir. Mas eu pensei que a Cass
viria atrás de mim, ao seu verdadeiro amor, só que ao invés disso ela está lá agarrada naquele
palhaço como se eu não existisse, é por isso que eu tomei uma decisão.

Luke se mexe quando o homem aponta a arma pra mim.

— Vou matar todo mundo! — Dispara na altura da minha cabeça e teria sido um tiro perfeito caso
eu não tivesse me lançado contra ele, o jogando no chão, a arma ainda em punho foi apontada para
mim, mas bastou torcer seu pulso para que ele a soltasse. Owen gritava e esperneava alucinado e
até mesmo conseguiu me derrubar, contudo, foi só eu puxar a arma de eletrochoque do bolso
secreto da calça e com uma única descarga de energia elétrica ele ficou bem... Calmo.

Luke checou seu pulso quando ele parou de se debater, estava apenas inconsciente, e indiferente a
isso prendi seus pulsos as algemas.

— Você pegou o assassino. — Ele diz, sem zombaria, inveja ou qualquer indício de alegria, porque
não há nenhum tipo de satisfação ou motivos para comemorar em casos assim.

Há apenas a velha tristeza.

Xx
O sol está nascendo no leste quando estou sendo liberado. O caso foi concluído, o culpado já havia
sido colocado no camburão e seguia rumo ao presídio onde ficaria até seu julgamento.

Os convidados foram todos dispensados e Aaron precisou pagar uma multa por estar prestando
depoimento drogado, ao que parece ele tinha cheirado algumas carreiras de cocaína ainda na festa e
um pouco antes de serem intimados, o que invalidou por completo tudo o que foi dito por ele
durante seu interrogatório, mas para mim, as coisas que disse sobre Andrômeda poderiam ter um
fundo de verdade e eu não pretendia perder o homem de vista tão cedo.

Terminei meu cigarro, amassando a bituca no cinzeiro e deixando minha arma para trás quando sai
da sala, querendo tirar aquele peso dos ombros, ao menos por alguns minutos, andando sem um
rumo definido acabei na ala dos prisioneiros, quase sempre as celas se encontravam vazias, então
me permiti ir até a pia minúscula e encardida no canto e enfiar a cabeça debaixo da água fria, afim
de aliviar o latejar no meu crânio com tantos pensamentos fervilhando.

O frescor descia por meus cabelos que caiam úmidos e pesados pela minha testa, bochechas, até
pescoço e eu poderia ficar ali para sempre, até ouvir um chamado tímido:

— Louis.

Fechei a torneira, sem me importar em estar ensopado e girei na direção de uma das celas, para
minha surpresa encontrando meu marido dentro dela, ainda usando meu casaco e encolhido no
colchão fino e duro da cama baixa.

— Harry? O que faz aí? — Me aproximo, segurando as grades.

Ele dá de ombros, brincando com os anéis em seus dedos.

— Luke me prendeu depois que eu mandei ele se foder por me chamar de Barbie.

Por algum motivo aquilo me faz sorrir, Harry me acompanha e eu puxo o molho de chaves do
bolso, abrindo a cela, mas ao invés dele sair sou eu quem entra.

Caminho cabisbaixo até ele, quando estou próximo o bastante caio sentado ao seu lado, fixando o
olhar no encanamento da pia, observando algumas gotículas de água vazando.

— Me desculpe por ter falado com você daquele jeito.

— Eu é quem deveria me desculpar por ter sido um idiota. — Harry sussurra, tocando minha coxa.

— Nós dois estávamos nervosos. — Não preciso olhar pra saber que ele está concordando.

— Sim, acho que estava tão irritado que nem me lembro de tudo, as lembranças parecem um pouco
bagunçadas.

— Isso tem acontecido com frequência? Esquecer as coisas? — Viro pra ele, vendo quase em
câmera lenta a sua hesitação seguida do leve repuxar do lado esquerdo da boca; ele mente quando
diz:

— Não, quase nunca.

Eu poderia questionar o porquê de sua mentira ou fazer qualquer coisa, menos a que eu acabei
fazendo ao agarrar seus quadris e cair com o rosto em seu colo, chorando sem parar.

Até mesmo soluçando. Nada tão intenso como da vez com Zayn, mas bem fora do comum.
— Amor? — Sua voz está assustada e ele ainda não me toca.

— F-foi o pai... Foi ele quem fez isso, ele matou a própria filha por ciúmes, por raiva da mulher.
Ele fez e você precisava ver a cara dele, sem um pingo de remorso e ainda pretendia matar mais. —
Desabafo de uma vez, engasgando com minhas lágrimas. Seu toque vem como um bálsamo para as
minhas feridas abertas e transbordando rios de sangue sujo — Como ele pode fazer isso? Era a
família dele. Nancy era a filha dele, um pedaço seu, que tipo de mostro faz uma coisa dessas?

Ergo o rosto para encontrar o seu, também caído, os olhos aguados enquanto faz carinho no meu
cabelo.

— Eu não sei...

Me apoio em suas coxas para deixar meu rosto alinhado ao seu, meus dedos trêmulos traçam a
linha de sua mandíbula.

— Isso não vai acontecer conosco, nunca mais. Ninguém vai destruir a nossa família, eu vou
cuidar de todos nós.

Harry balança a cabeça, me fazendo deitar novamente, puxo as pernas para cima da cama,
ensopando seu jeans com minhas lágrimas e deixando meus soluções ecoarem pelos corredores
desertos até sentir a moleza em meus membros e a exaustão vencendo a melancolia.

Na borda do sono e do despertar, num estado de quase hipnose senti algo roçando nas minhas
bochechas, cachos provavelmente e uma respiração quente na minha orelha.

— Eu vou destruir você.

Mas eu já estava distante, sem saber se aquilo era real ou mais um dos vários delírios.
│7│draco

Havia uma manchinha escura no gesso do teto. Ela era o meu maior ponto de enfoque, até que
começou a se mover.

Uma manchinha com oito patinhas que mesmo assim levou horas para atravessar o teto, isso talvez
por ela não seguir reto, por hesitar e recuar, mudar a rota ou simplesmente parar com medo do que
vai encontrar do outro lado. Era um espaço muito aberto e amplo para uma criatura tão pequena,
tão estúpida e que fatidicamente lembrava a mim mesmo.

Eu era aquela aranha perdida, sem saber para onde ir, andando em círculos ou ficando
completamente parado.

Tomar um rumo é uma escolha difícil. Ficar imóvel é mais fácil.

É uma pena que Andrômeda não faça o mesmo e pare com seus assassinatos, enquanto o assassino
se mover eu também terei que fazê-lo, mesmo que a minha vontade seja ficar nessa cama para todo
o sempre.

Olho para o relógio digital no criado mudo, sem programação para despertar. Há uma certa
liberdade e satisfação em não precisar de um despertador para comandar sua vida, mas é só por
hoje, fiquei com o turno da noite como um presente depois de ter resolvido o caso de Nancy
Brown, há uma semana.

Agora eu vinha me concentrando mais na minha vida, em levar e buscar meus filhos da creche,
ajudar com o dever de casa que era colorir vários desenhos impressos quase todos os dias, ir a
yoga com Harry e reclamar toda vez que a minha coluna estalava tão alto que todos olhavam
assustados, fazer compras no supermercado com Blake no carrinho e ouvir algumas mães solteiras
suspirando encantadas. Tudo isso vinha sendo divertido, era como se eu estivesse tendo uma vida
normal, coisa que eu negligenciava a maior parte do tempo pelo meu trabalho, mas a vida com ele
em segundo plano era muito mais fácil.

Nicholas Grimshaw, o meu superior, odiava que eu não estivesse vivendo e respirando o FBI,
porque isso significava menos resultados e eu era o melhor.

Aaron não estava enganado quando disse que eu gostava de ser o centro das atenções e ter meu ego
massageado constantemente, de forma alguma, o meu narcisismo compõe uma grande parte de
mim. Ser recebido com aplausos e ser ovacionado é uma das minhas coisas preferidas de todo o
mundo, mas depois de tantos anos, depois de ter perdido as coisas mais importantes do mundo,
como o nascimento dos meus três filhos, bem, eu precisava dar um basta nisso.

Hoje será meu último dia como detetive.

Afastei as cobertas, já familiarizado com a ausência de Harry no seu lado da cama, um soluço
choroso do outro quarto o levou horas atrás. Puxei a barra da bermuda arrastando os pés até o
banheiro, lavando o rosto e escovando os dentes com lerdeza, pelo espelho do armarinho percebi
que minha barba precisava ser feita com urgência.

Cantarolando uma música do Bee Gees peguei o creme de barbear, espalhando pelo rosto, segurei
o gilete e me concentrei em tentar sair daquilo com o mínimo de cortes, porém antes de tocar
minha pele com a lâmina meus olhos se afixaram na imagem refletida da banheira.

Minha mente voou longe, para nossas primeiras semanas nessa casa, onde tudo era desconhecido e
Evangeline ainda era um bebê que não suportava ficar no seu quarto. Ela adormecia nos meus
braços e bastava colocá-la no berço pra despertar imediatamente, ela parou de dormir porque sabia
que não podia confiar em nós e depois ficava tão cansada e aborrecida que chorava por horas.

Mas ela só tinha oito meses e tínhamos que dar um jeito nisso, como pais de primeira viagem
optamos pelo jeito mais fácil. Se ela não gostava do quarto, não ficaria nele. Harry e ela passaram a
dormir juntos e eu quase nunca estava, então não era como se ela tivesse roubado o meu lugar. As
raras vezes que nos víamos era no café da manhã, quando eles estavam começando seu dia e eu
encerrando o meu. Em algumas ocasiões acordava com Eve esfregando a bochecha no meu peito e
Harry com o rosto no meu pescoço, em outras era com ele, exausto, dizendo que odiava sua vida e
que precisava que eu o ajudasse, enquanto empurrava o bebê aos berros em minha direção.

E por não saber como cuidar de um bebê, acabávamos os três chorando.

Houveram muitos momentos marcantes, eu perdi quase todos. Porém, teve um em especial que eu
consegui presenciar, foi por acaso. Era um sábado a tarde, precisei sair mais cedo do trabalho por
conta de um resfriado e tive que deixar um caso grande da narcóticos nas mãos de Luke que o
pegou praticamente concluído e ainda ficou com todos os créditos, ou seja, meu humor estava
infernal, no momento em que estacionei na garagem segui rezando pra que Harry e a bebê
estivessem na sua mãe, eu não queria ver ninguém, mas quando pisei em casa fui recebido com o
rádio no último volume no andar de cima.

Definitivamente não estava no clima pra Madonna.

Larguei minhas coisas e subi afrouxando a camisa pra pedir que ele abaixasse o som, ou quem sabe
fosse dar um voltinha pra que eu pudesse dormir pelos próximos duzentos anos. Não os encontrei
no quarto, então empurrei a porta do banheiro, os dois estavam nesta mesma banheira. Patinhos de
borracha e dúzias de Polly Pocket's boiavam sobre a espuma perfumada, os grandes cachos de Eve
estavam molhados e tão escorridos quanto os de Harry, também úmidos. Eles tinham os mesmos
olhos verdes, as mesmas covinhas, a boquinha rosada e a risada engasgada. Ele a segurava pela
cintura corpulenta e Eve saltitava, esmagando seu abdômen com os pés de bisnaguinhas.

Acabei esquecendo o que ia fazer quando vi Harry cantando pra ela com sua voz divina, fazendo
caras e bocas pra arrancar risadas e a pequena se inclinando para tocar suas bochechas.

— Papa don't preach, i'm in trouble deep — A fez dançar no ritmo da música, feito uma boneca —
Papa don't preach, i've been losing sleep...

Eve gritou animada, batendo palmas.

— But I made up my mind, I'm keeping my baby, hm — Ele a trouxe para o peito, beijando seu
rosto, ela se encolheu contra ele em uma pequena bolinha — I'm gonna keep my baby, hm...

Evangeline ainda não tinha dito uma única palavra que fizesse sentido, independente dos esforços
do meu marido pra conseguir arrancar alguma coisa dela, mas então, sem mais nem menos, ela
olhou pra mim, com suas pequenas esmeraldas sonolentas e balançou o punho pra mim.

— Papa. — Disse.

Harry engoliu toda a euforia e olhou pra mim, com os olhos cheios de água e como se soubesse o
que devia fazer, nossa filha também o olhou e disse, desta vez pra ele.

— Papa. — Cutucou o terço em seu pescoço, antes de voltar a se encolher.

— Oh, meu deus, vo-você viu? — Gaguejou sem conter as lágrimas.


Fui até eles, me agachando ao lado da banheira e o beijei pra que ele parasse de respirar por um
momento e principalmente porque eu o amava. Harry fungou baixinho e apoiou a cabeça no meu
ombro, alisando as costas nuas de Eve que agia como se não tivesse causado uma explosão de
fogos de artifícios nos sentimentos de seus pobres pais.

— A nossa bebezinha está falando. — Sussurrou pra mim — E você está aqui! Você está aqui com
a gente.

— Uhum, e eu sempre vou estar. — Prometi.

Prometi e não cumpri.

Uma dorzinha aguda rompeu meu devaneio, aproximei a gilete em algum momento do rosto e
cortei a bochecha, baixei os olhos para as duas gotas de sangue que pingaram na pia branca. Dei de
ombros, voltando a olhar para o espelho, mas desta vez não haviam memórias doces ou a banheira
as minhas costas, era a imagem mórbida de Evangeline, a pele e as roupas sujas, como se ela
tivesse cavado a terra ou estivesse debaixo dela.

— Papa. — Me chamou, a voz arranhada.

Soltei a lâmina, fechei os olhos e dei um passo para trás em pânico, chocando meu corpo com algo
firme que me abraçou por trás, beijando meu pescoço.

— Bom dia, sun. — O tom rouco sussurrou.

Dedilhei seus braços e corri os dedos pelas suas mãos, tentando ter a certeza de que era real, que se
tratava de Harry. Era ele. Quando não o respondi, ele me soltou, virando meu corpo e me
colocando contra a pedra da pia.

— Tudo bem? — Sondou com cuidado, tocando meu queixo.

Assenti de olhos fechados.

— Quer que eu faça? — Concordei novamente, ouvindo quando recuperou a gilete, deslizando
com cuidado desde a costeleta até a linha da mandíbula, enxaguando a lâmina e continuando a
eliminar qualquer penugem do meu rosto. Logo senti a toalha felpuda passando com leveza, me
secando, Harry ainda se ocupou em pentear meus cabelos e tirar alguns pelinhos da minha
sobrancelha sem me avisar, rindo com meus grunhidos doloridos.

— Acho que você exagerou no tratamento de beleza. — Resmunguei, girando no meu eixo para
abrir os olhos e encarar meu reflexo, agora livre de barba e parecendo mais jovem e menos sério, a
minha franja até que ficava bonitinha arrumada.

— Deus foi quem exagerou no tratamento de beleza quando te fez, como alguém pode ser tão
lindo? — Perguntou as minhas costas, apoiando a queixo no meu ombro.

Sorri um pouco corado.

Harry piscou os cílios de princesa com doçura tomando uma pequena distância e me puxando pela
cintura, me levando a andar de costas.

— Eu vou cair!

— Vai não! — Retrucou e foi quando eu caí, não no chão, como eu esperava, mas no colchão, de
costas e com as pernas no chão. Voltei a enxergar a manchinha, mas ela não parecia mais tão
atraente ao que Harry também se deitou ao meu lado, uma mão afastando seus cabelos longos do
rosto e a outra se esfregando no meu abdômen, sua pele feito porcelana se arrastando pela minha
que ardia como brasa diante do seu toque delicado e repleto de malícia.

Passei o braço por debaixo do seu corpo, até poder agarrar sua bunda sobre o jeans agarrados. Ele
suspirou baixinho, aproximando nossos rostos, sem me beijar, sua mão cansou de deslizar pelo
meu peito e correu até o cós da bermuda, a palma quente de Harry envolveu meu membro ao
mesmo tempo que se inclinou para chupar um dos meus mamilos, a língua provocando o bico
intumescido e o indicador e polegar pressionando a glande.

Não era por isso que eu esperava e meu corpo todo entrou em combustão. Com tão pouco estimulo
já estava sentindo minha pernas estremecerem e a manchinha no teto se transformar em pontos
coloridos. Respirei fundo, concentrado em relaxar. Os dedos esguios e habilidosos não demoraram
para formar um anel apertado ao redor do meu pênis, esfregando-o de cima a baixo e meus quadris
passaram a se mover frenético no ritmo que ele ditava, já podia me sentir esporrando em sua mão.

Seus lábios cheios se fecharam em um biquinho perfeito para sugar meu mamilos, a língua
molhada refrescando o ardor de suas sucções e tudo o que se ouvia, além dos carros ao longe, eram
os meus gemidos nada contidos, já que devido a hora nós estávamos sozinhos em casa e não tinha
porque fingir que eu não estava na borda do meu orgasmo.

Precisando urgentemente me agarrar em alguma coisa, fechei os dedos com mais força em suas
nádegas, Harry ofegou arranhando meu mamilo com os dentes, resolvi provocar um pouco mais,
escorregando os dedos pela costura de seu jeans, esfregando e consequentemente estimulando sua
entrada.

Depois de algum tempo éramos nós dois quem gemíamos, empinando nossos quadris, Harry
chegou a conclusão de que não queria usar mais as mãos, então passou as coxas por cada lado meu
e se sentou em cima do meu pau, nossos membros alinhados e duros se roçando quando ele
começou a se esfregar em mim, empurrando as ancas para frente e para trás, saltando e rebolando
como se estivesse cavalgando no meu pau.

Suas mãos caminharam pelo meu tórax, torcendo meus mamilos sensíveis e me fazendo agarrar
sua cintura, puxando a barra da camisa para tocar diretamente sua pele aveludada.

Uma cascata de cachos tomou meus olhos ao que ele me beijou, seus lábios famintos sugando os
meus, tomando-os para si, sua língua perseguindo a minha e se esfregando nela de uma forma tão
libidinosa como nossos corpos faziam. Ele se dividia em lamber minha boca e gemer contra a
mesma conforme nossos movimentos perdiam totalmente o controle e não havia nada além de
desejo e ânsia por alcançar o êxtase absoluto. Fechei a mão por seus cabelos, puxando com tanta
força que o fiz gritar e mordi sua garganta para não gritar tão alto quanto ele quando meu orgasmo
veio, ensopando minha cueca, a umidade extra sobre meus shorts indicava que o mesmo havia
acontecido com ele.

Mesmo moribundo, encontrou forças para rebolar uma última vez antes que eu apertasse sua coxa
em uma repreensão.

Ele virou o rosto para mim, com as sobrancelhas retas arqueadas.

— Bom dia, moon. — Respondi, finalmente, beijando seu biquinho.

Xx

A primeira parada do dia da família Tomlinson parece parte de um comercial de margarina,


almoçando em uma lanchonete no SoHo com uma baladinha da Alanis Morissette tocando na
rádio, pessoas balançando os ombros ao ritmo da canção enquanto fazem as palavras cruzadas do
The New York Times e bebem mojito ao meio-dia.

Está passaria como uma cena adorável a quem estivesse de fora, a meiguice em Harry, Spencer e
Blake estarem usando a mesma t-shirt listrada, ou em como meu marido lia a revista de guia astral
com um óculos escuros para prender os cabelos e outro enganchado na gola da camisa, a boca
aberta, esquecendo-se completamente da lasanha de berinjela que fez questão de não dividir
comigo e agora só tinha tido um pedacinho seu comido. Spencer e Blake eram um caso a parte que
chegaram em seu carrinho de bebê duplo, mas fizeram um escândalo quando viram uma garotinha
sentada na cadeirinha, como dois invejosos, abriram o berreiro querendo o mesmo, assim que a
bunda gorda de Spencer tocou a superfície lisa do banco ele quis voltar pro carrinho e voltou a
chorar e fazer aqueles típicos escândalos que levam todos no recinto a te olharem como se você
estivesse esfolando a criança quando é ela quem te tortura.

Spencer não parava de chorar, Blake vomitou na mesa, os carrinhos atrapalhavam a passagem dos
clientes, meu chá estava frio e fraco e havia um fio de cabelo no meu hambúrguer.

Depois de meia hora daquilo eu não aguentei.

Trocamos de mesa - uma mais ao fundo, com espaço para o carrinho e sem vômito - meu pedido
foi trocado também, desta vez algo decente e limpo e Spencer tinha motivos reais pra chorar com o
desenho perfeito dos meus cinco dedos na sua bunda. Mas ele era esperto e calou a boca.

Com a nuvem negra e carregada pairando sobre a minha cabeça, todos os três estavam quietos, eu
bebericava meu chá delicioso, fingindo que via alguma graça em a Caixa de Pássaros, só pra não
conversar mesmo. O orgasmo matutino havia sido divino, mas a visão no espelho incomodava,
bastante.

Preciso rezar mais vezes antes de dormir. Isso deve solucionar o problema, por enquanto.

— Hm, amor. — A mão de Harry belisca a pele abaixo do meu relógio, ergo os olhos para ele,
ajeitando meu óculos de leitura — Você fica tão lindo de óculos.

— Sei. — Estalo a língua no céu da boca — O que você quer?

Seu sorrisinho vacila e ele entorta a boca, no modo mentira.

— Isso chegou hoje. — De repente está empurrando vários envelopes sobre a mesa. Não preciso
dos meus óculos para ver que todos se tratam de cartas de cobrança, as mesmas que eu pergunto
quase todos os dias se já chegaram e ele mente que não, afim de adiar a discussão que tanto detesta.

— Isso é duas vezes mais do que eu ganho. — Digo, passando os olhos pelo valor total da fatura,
absurdo seria um eufemismo para aquela quantia. Harry era o tipo de pessoa descontrolada quando
possui dinheiro, cartão, cheque ou o que for que possa ser utilizado para comprar algo. Mais uma
vez percebo que foi um erro lhe dar um voto de confiança e deixar que ele ficasse com o meu
cartão de crédito – o seu jaz nas lixeiras do FBI depois que eu fui obrigado a dar um fim nele, pra
tentar conter seus gastos – , teve uma vez que ele saiu para comprar alguns travesseiros e voltou
com os papéis de compra de uma chácara no Arizona. Então, nada de cartões pra Harry, mas eu sou
um banana com ele.

— Mas, querido, só foram compras realmente necessárias. — Tenta se explicar, apertando os dedos
de nervoso.
Os meninos estão distraídos se afogando nos copos de sundae.

— Compras necessárias, tipo, três perfumes Tom Ford de uma só vez? — Checo os itens de
compra na fatura.

— Estavam na promoção.

— Se esse é o preço da promoção não quero nem saber o valor original. Por que mais almofadas?

— Para um lar mais confortável? — Sua resposta saiu como uma pergunta.

— Não acha que trinta almofadas sejam o suficiente, querido?

Ele dá de ombros, folheando sua revistinha.

— Seu horóscopo diz que você deve tomar cuidado com atos heroicos.

— Atos heroicos do tipo pedir mais um empréstimo ao banco sabendo que mês que vem você vai
gastar ainda mais? — Devolvo afiado, chamando a garçonete e pedindo um uísque escocês.

— Louis, ainda é meio dia.

Descarto seu comentário com um gesto e viro minha bebida de uma vez quando a moça a traz, não
é o suficiente para me deixar tonto, tampouco bêbado, mas é o que me dá forças para não bufar
feito um cavalo a cada gasto estúpido que eu leio.

— Roupas e acessórios da Gucci, Burberry, Prada, Louis Vuitton, Adidas e todas as marcas idiotas
do mundo, mais óculos que você vai usar de arquinho, mais roupas de grifes para crianças que
vivem rolando no chão, a nova base da Kylie Jenner, uma televisão pro banheiro, casinhas para os
animais de estimação que dormem no mesmo quarto que a gente e... Lingerie? — Engasgo com a
última parte, tossindo alto e chamando atenção.

— Pelo amor de Deus, fala baixo. — Harry me pede, se inclinando sobre a mesa.

Me acalmo, respirando fundo, antes de dizer:

— Lingeries da Victoria's Secret? — Pergunto baixo.

— Eu não vou vestir qualquer coisa.

— Tá, mas desde quando você gosta ou usa lingerie, e por que eu nunca vi?

— Bem, eu pensei em te fazer uma surpresa. Já que eu acabei extrapolando, pra variar, esse mês.
— Disse, culpado, girando os anéis. Dois ou três ali sendo novidade — Sabe, eu provei hoje
enquanto você dormia...

— E? — Não consegui disfarçar minha excitação. Ele riu convencido, pressionado os dentes no
lábio inferior e aproximando a boca do meu ouvido.

— Eu fiquei tão gostosa. — Soprou.

Gostosa? No feminino?

Era a segunda vez que ele fazia isso.

— Por que está falando no fem–


— Olha só pra isso, Jason, diga se não é a coisa mais linda do mundo? — Uma mulher alta de
cabelos platinados praticamente se jogou em cima de mim para ver as crianças — Eles são iguais,
será que são gêmeos? — Será? — Quais são os nomes dessas gracinhas?

— Spencer e Blake. — Harry respondeu com seu sorriso e tom de voz que exalavam; é, eu que fiz
e eles são lindos mesmo.

Olhei para os garotos e eles não estavam no seu melhor, até o nariz sujo de chocolate e
descabelados, provavelmente tinham brigado durante a nossa conversa e Spencer estava com
aqueles olhos inchados e Blake meio verde. Essas crianças já viram dias melhores, ainda assim
essa era a quinta pessoa que os elogiava.

Os pestinhas tinham sex appel, só pode.

A mulher os elogiou mais alguns minutos, antes de se despedir alegremente e arrastando o marido
sem graça.

Quando voltei a prestar atenção em nossa mesa, Blake, Spencer e Harry estavam usando boinas.

— Sério?

— Eu comprei uma pra você também. — Balançou outra boina em minha direção.

A peguei e coloquei na cabeça, rindo quando uma senhora no balcão gritou que éramos uma
família fofa.

Harry me olhou todo apaixonadinho.

— Eu ainda vou querer meu cartão de volta e vamos conversar mais tarde sobre essa sua surpresa.

Xx

— Você não deve se sentir culpado. — Tahani, a professora de yoga, me dizia pela milésima vez,
pressionando o centro da minha coluna com suas mãos leves.

— Eu não me culpo. Isso é culpa do meu sedentarismo, ele está se rebelando por não querer que eu
leve uma vida saudável. — Falo com a bochecha afundando no travesseiro macio.

A minha tarde tinha tomado um rumo inesperado quando Cams, uma garota de quinze anos do
nosso bairro tocou a campainha panfletando seu novo ofício de babá porque queria dinheiro pra ir
no show do The Neighbourhood e era estranho como nunca tínhamos pensado em ter uma babá
antes. Isso abria um leque de possibilidades, então aceitamos na hora, ela estava disponível e os
meninos se agarraram a ela por a conhecerem desde que nasceram.

Assim, Harry e eu estávamos a toa. O chamei pra transar, mas ele dispensou.

E de alguma forma misteriosa acabamos na academia, onde eu já vinha morrendo bem antes e pra
piorar fomos pra yoga, tudo ia bem até Tahani pedir que fizéssemos uma posição estranha, onde
devíamos nos equilibrar em uma perna e manter a outra perna e braços esticados e é claro que eu
não consegui e cai como um fruto podre no chão, batendo as costas com tanta força que levou um
tempo até conseguirem me levantar sem que eu reclamasse de dor.

Uma das alunas antigas assumiu a aula e a professora tentava aliviar a dor na minha coluna o que
estava funcionando.
— Melhor? — Pergunta massageando meus ombros e esse é o ápice pra mim.

— Você pode me esfaquear agora mesmo que eu não vou reclamar.

— Não, vamos apenas mandar essa tensão embora. E como vai o trabalho? O mercado de imóveis
está em alta nessa época do ano.

Não é recomendável sair por aí dizendo ser um agente federal. Corretor de imóveis era a minha
profissão disfarce, mesmo que eu não soubesse de nada. Foi palpite do Harry e eu aceitei.

— Sim, tem sido uma loucura, mas consegui arranjar algum tempo pra começar algo novo.

— Isso é ótimo, precisava priorizar sempre a sua saúde e bem estar.

— Hm. — Gemi um pouco sonolento, fechando os olhos e começando a cochilar.

— Senhor Tomlinson? — Ronquei — Louis! — Disse mais alto.

Levantei de imediato, atento.

Tahani me olhou confusa e logo gargalhando por achar que me assustou.

Se ela soubesse que a minha reação estava atrelada ao fato de ser treinado para reagir a qualquer
ação inesperada e que minha mão já tocava o canivete debaixo da manga do meu suéter saberia que
não tinha nada a ver com um simples susto.

— Meu deus, que susto! — Disfarcei, levando a mão ao peito e suspirando de alívio, rindo com ela
— Oh, minhas costas estão ótimas! Você tem mãos de anjo.

— Então podemos voltar pra aula?

— Com certeza. — A ajudei a se levantar, seguimos até a sala. Tahani retomando de onde a aluna
havia parado e estranhei quando voltei para o meu lugar, não encontrando o tapete de Harry ao
lado do meu, fiquei nas pontas dos pés para procurá-lo entre aquela gente enorme e o avistei no
canto, próximo a janela, sorri com o que vi.

Harry estava deitado em seu tapete rosa, se espremendo para caber inteiro, vestindo camisa e calças
cinzas, o coque uma completa bagunça e até roncando baixo. Ao que parece alguém não tem
problemas pra dormir, literalmente, em qualquer lugar.

Arrastei meu tapete pra colar no seu e também deitei, repousando a testa no seu peito.

— Vão pensar que não temos casa. — Balbuciei contra sua camisa.

— Me deixa dormir.

E dormimos.

E continuaríamos até deus sabe quando, se Tahani não nos acordasse. Dirigi feito um robô de volta
pra casa, cutucando meu marido de cinco em cinco minutos com inveja dele poder dormir e babar
no banco do carro e eu tinha de dirigir.

Cams havia dado banho, o jantar e feito os gêmeos dormirem e estava assistindo a série dos
lobinhos com o queixo torto quando chegamos, ela foi embora louca para voltar no dia seguinte.
Harry e eu aproveitamos para tomar um longo banho de banheira, com direito a quase nos
afogarmos por dormir lá também. Foi durante as risadas pela nossa quase morte que nos olhamos
por tempo demais e acabamos nos beijando, beijo este que durou até sairmos do banho e irmos para
o quarto, onde ele me empurrou na cama e sentou no meu colo, deslizando sua boca na minha e
pressionando nossos membros juntos.

As coisas poderiam ter um rumo bem diferente se eu não bocejasse em meio ao ósculo, rolamos
para debaixo das cobertas e nos apertamos um contra o outro logo adormecendo. Quando o
despertador tocou o pôr do sol estava começando, Harry reclamou pelo barulho e por meu corpo
estar se afastando do seu, ele foi se arrastando atrás de mim até que não restasse mais cama e eu
precisasse agarrar sua cintura para impedir que ele caísse.

Esfregou os olhos vermelhinhos de sono, a cara amassada e os cabelos esparramados pelo meu
travesseiro. Que visão!

— Precisa mesmo ir?

— Preciso, Sr. Miau. — Revirou os olhos para mais uma apelidinho besta de minha autoria —
Hm, quer que eu te conte algo que você ainda não sabe?

— Claro.

Beijei sua pintinha, sorrindo pela risada gostosa bem no meu ouvido.

— Eu vou pedir pro Nick me transferir. — A risada parou — Não quero mais ser um detetive, não
quero mais ter que lidar com homicídios ou brincar de gato e rato com assassinos.

— Mas e o caso? E Andrômeda?

Olhei diretamente em seus olhos.

— Vai ser problema de outro. — Digo apertando os olhos conforme meu sorriso vai se ampliando,
descubro seu ventre para deixar um beijo sobre a pele quente — Minhas únicas preocupações serão
dar todo amor do mundo as minhas quatro pessoas favoritas.

O cacheado deu um nova risadinha por sentir cócegas.

— E você acha que eles vão concordar assim, fácil?

Eis a questão.

E foi justamente isso que Liam me perguntou quando falei com ele durante o jantar, no restaurante
do FBI.

— Eu não sei, mas não podem me obrigar a continuar, não é? Eu não assinei nenhum tipo de
contrato e se o tiver feito já deve estar vencido há muito tempo. — Respondo, entortando o nariz
para as anchovas no meu prato. Eu não pedi isso.

— Não sei, cara. É uma decisão difícil. Ser um agente especial é o sonho de quase todos os tiras do
mundo, ou pelo menos da América, abrir mão disso não é a coisa mais sensata a se fazer.

— Engraçado que na época em que eu saí do hospital e quis voltar você só faltou me mandar pra
outro país por não me querer trabalhando novamente e agora me vem com uma dessas. — Desisti
do meu almoço para mirar seu rosto pensativo, um vinco profundo entre suas sobrancelhas
castanhas.

— Eram circunstâncias muito diferentes. — Murmurou, coçando a mancha de nascença no


pescoço.

— Na verdade, Payno, é quase a mesma coisa. Naquela época eu estava arrasado e até hoje não
mudou muita coisa. Eu tenho problemas demais com a minha família, fantasmas me
assombrando... — Literalmente — , tem horas que parece que o meu cérebro vai explodir e ver
cadáveres de pessoas inocentes que eu não pude salvar, ser frequentemente exposto a maldade
humana, isso me enlouquece a cada dia. Eu sinto que se eu não parar agora vou acabar como esses
monstros que eu caço. — Confesso, extravasando um temor que eu nem sabia ter. Liam me olha
sério, parecendo entender ao que me refiro.

— Está decidido?

— Yeah.

— Vai falar com o Grimshaw?

— Yeah.

— Ele vai pirar.

— Oh yeah.

Escondemos as risadas por trás das mãos, porque aqui é o FBI e é proibido ter senso de humor por
estas bandas.

— Como vai conseguir viver sem ser chamado de "detetive Tomlinson"?

Aperto o indicador no queixo, suspirando.

— Eu posso tentar conseguir um "delegado Tomlinson".

— Soa bem.

— Yeah.

Já passa das uma quando Grimshaw encontra um horário na sua agenda para me atender. Sua
secretária, que é a mesma de todos os agentes, Sarah Jones grita na minha janela que a rainha está
pronta para mim.

Adentro seu escritório em um silêncio mórbido, porque eu não gosto desse cara e não gosto de
pedir nada pra ninguém e mesmo assim ele insiste em bancar o amigo dos funcionários, enquanto
nos obriga a pedir permissão pra ir ao banheiro.

Dar adeus a Nicholas é um sonho deveras agradável.

— Então, detetive, no que eu posso ajudar? — Ele faz questão de enfiar o eu ali só pra ressaltar que
o poder está em suas mãos.

Cuzão.

Sorrio adorável para não revelar meus verdadeiros sentimentos.

— Bem, senhor, acho justo ir direto ao ponto. Não é de hoje que eu venho pensando a respeito e há
uma semana cheguei a conclusão de que está é a melhor decisão a ser tomada. — Me encara
confuso — Gostaria de pedir a minha transferência de função.
Seus olhos se esbugalhando na hora.

— Você o quê? Enlouqueceu?

— Hm, não. Como eu disse antes, pensei muito sobre.

— Tomlinson, você não pode estar sendo racional, alguém em sua posição e com tão pouca idade
não pode simplesmente abdicar. — Range os dentes em nervoso, revirando seu topete alto.

— Sim, eu posso e é o que estou fazendo. — Garanto — Pode me enviar para algum escritório
para lidar com a parte burocrática, talvez crimes cibernéticos ou para ser delegado em alguma
delegacia local. Eu já fui um policial civil e sei–

— Não, Louis, isso é absurdo. Além da total desestabilidade financeira que você vai embarcar, o
Harry sabe disso? Provavelmente não, porque ele não permitiria uma estupidez como está.

Eu não gostava da forma que ele falava, como se eu fosse uma criança e Harry o adulto racional da
história.

— Naturalmente, ele é o meu marido.— Disse seco.

— Então os dois são loucos agora?

— Vai saber.

— Vamos fazer o seguinte, você tira o mês de férias, viaja, respira novos ares e depois
conversamos quando estiver com a cabeça mais fresca, pode ser?

— Nicholas, você me conhece.

O moreno crispa os lábios, batendo com a mão aberta em sua mesa.

— Você é o nosso agente mais antigo, esse pessoal te tem como um herói.

— Luke está de volta, ele pode ser o herói agora.

— Sabe que isso não aconteceria nem em um milhão de anos.

— Dê um voto de confiança pra ele. — Desde quando eu defendo Luke Hemmings?

— Eu dei e você viu o que aconteceu.

Aponta para o seu mural dos casos mais longos e inconclusos em sua parede. Acima do caso
Andrômeda está o de Evangeline Tomlinson.

Balanço a cabeça.

— Certo, mas eu te peço um pouco mais de reflexão, pense, ao menos mais um dia e então volte
aqui amanhã com sua decisão e eu prometo respeita-la. Você pode até escolher para onde ir.

Me parece uma proposta aceitável.

— Okay, irei fazer isso, mas é melhor que honre a sua palavra.

— Eu vou. — Fechamos o acordo com um aperto de mãos e a certeza de que amanhã enfim
alcançarei a minha liberdade proporciona uma sensação de euforia no estômago.
Xx

— Meu irmão se forma esse ano, eu perguntei pra ele qual faculdade queria fazer e o idiota vem
todo animadinho dizendo que vai entrar na Academia em Quântico.

— E o que você fez?

— Não, não, Stan, a pergunta certa é: quantos socos você deu nele?

Sarah aponta pra mim, dando uma piscadinha dizendo que eu sou o cara. Depois de tanto tempo
acabamos nos conhecendo bem demais.

— Três e depois começamos a pesquisar os cursos de gastronomia. — Respondeu, esticando ainda


mais as pernas no meu colo. Virei de uma só vez minha Coca Cola, admirado com o quão deserta
aquela agência se encontrava.

Não houve nenhuma ocorrência, ninguém sendo procurado, assassinado ou ameaça de terrorismo.
O crime parecia ter dado uma trégua, o que era sinônimo de tédio para profissionais como nós.

Após encerrarmos toda aquela chatice de fazer relatórios sobre nossos casos, tudo ficou
meio...parado. Liam estava dormindo na sua sala, Josh e Dan jogavam Sudoku, Nicholas estava só
deus sabe onde e tinha um pessoal fumando no estacionamento, restando apenas Sarah, Stan e eu
como as únicas vozes pelo lugar.

— Acho que vou fazer uma nova tatuagem. — Comento depois de mais um longo e irritante
silêncio que berra que todos ali queriam estar em suas camas.

Stan está prestes a bocejar quando meu celular começa a tocar.

Ao ler o nome de Harry no visor, me afasto, indo até o bebedouro do lado vazio do escritório.

— Ser um homem da lei é chato. — Choramingo assim que atendo.

— Podia ser pior, imagine ter um pequeno alien crescendo dentro de você.

— É tão lindo a forma carinhosa que você se refere ao nosso filho.

— Estou de mal dele, ele me fez vomitar a noite toda. Estou um lixo. — Geme do outro lado da
linha, escuto a televisão ao fundo, Bruce Springsteen berrando o refrão de Born in The U.S.A.

— Sinto muito, gatinho, o meu turno acaba em dez minutos, quer que eu leve algo pra te deixar
feliz?

— Pizza de chocolate. — Diz sem hesitar.

— Uau, isso foi rápido. Já ia me pedir, não é mesmo?

— Você me conhece tão bem, alma gêmea.

Por que diabos minhas bochechas estão doendo?

Ah, eu estou sorrindo.

— Certo, senhor, sua pizza já está a caminho.

— Vejamos, são quinze minutos se você pegar o atalho, a pizza vai levar em torno de dez, então
você deve estar aqui daqui há vinte e cinco minutos.

— Vai cronometrar meu percurso?

— Uhum e se você demorar um pouquinho que seja eu vou chamar a SWAT.

— Que exagero!

— É sério. Toma cuidado, volte lindo e pequenininho pra mim.

Faço cara feia, como se ele pudesse ver.

— Me chama de pequeninho de novo e eu não volto mais.

— Ora, meu pequ-

Desliguei na cara dele.

Em um milésimo de segundos Harry estava mandando mensagens furiosas e eu me limitei a


responder com emojis de beijinhos e corações verdes e azuis.

— Louis, você já tá pra sair, né? — Mitch gritou do nada.

— Oi? — Guardo o celular, indo em sua direção. Sarah está guardando suas coisas.

— Não precisa amolar ele, eu pego um táxi.

— De jeito nenhum, não quando há um maníaco a solta. — Ele usa seu tom firme e Jones o encara
com aquela expressão que diz: fala direito comigo, mané — Desculpe, mas é perigoso.

— O sequestrador de garotas ainda? — Pergunto, passando a alça da minha pasta pelo ombro e
colocando as mãos nos bolsos.

— Sim. — Rowland suspira, apoiando o quadril na mesa — Esse é um daqueles casos em que não
temos nada, sem suspeito ou pista. É só alguém sequestrando moças durante a madrugada. Não
fazemos a menor ideia do que acontece com elas. Até darmos um jeito nisso não quero você
andando sozinha tarde da noite.

— Okay, okay, você tem um ponto. — Suspirou em desistência, batendo no ombro do marido —
Não vou te atrapalhar, Lou?

— Não, é caminho. — Mitch agradeceu e quando Sarah se aproximou resolvi admirar meus
sapatos enquanto eles se beijavam. Ew.

— Vamos! Eu dirijo. — Sarah me puxou pela gravata.

— De jeito nenhum. Adeus, hipster. — Acenei para Mitch que riu acenando de volta.

Sarah era bastante reclamona o que garantia sempre que ela estaria falando, mesmo que não fosse
útil ou tivéssemos interesse em ouvir. Ela o fez pelo caminho todo até a pizzaria 24 horas.
Algumas pessoas começavam a sair para trabalhar e nós estávamos dormindo no balcão quando a
recepcionista nos entregou a pizza doce de Harry e a nossa de quatro queijos que devoramos no
carro a duas quadras do flat de Sarah e Mitch.

— Tem coisa melhor do que queijo? — Ela me perguntou de boca cheia, jogando catchup em tudo.
— Cuidado com o banco, é couro legítimo.

— Ui, que rica!

Bufei, sugando o canudo do refrigerante e coçando os olhos. Sono da porra.

— Você teria coragem de deixar o caso aberto?

— Andrômeda? — Perguntei, sabendo a resposta — Eu não queria, de jeito nenhum, mas eu tenho
um mau pressentimento em relação a essa investigação.

— Tipo? — Limpou a boca com um guardanapo, jogando no chão só pra me provocar.

— Como se depois que eu resolvesse não haveria mais nada. Seria o fim de tudo. — Deitei a
cabeça no banco, olhando a rua deserta.

Um carro surgindo no meio do nada, com um bando de garotas rindo. Uma de longos cabelos
escuros saiu, usando um micro vestido e cambaleando.

— Humpf, besteira! É só mais um caso, resolva e passe para o próximo.

— Não sinto que haverá um próximo depois dele.

Sarah me olhou, tentando extrair o sentido do que eu dizia.

A risada da menina ao longe.

Sarah suspirou.

Desviei o olhar.

A garota gritou.

Olhamos para frente na mesma hora.

Um corpo grande, possivelmente um homem, em um sobretudo esfarrapado e capuz, estava a


arrastando pela rua. Sua boca estava tapada e ela se debatia, as pernas finas se remexendo em
desespero.

Apertei minha arma e sai com cuidado do carro. Ele deveria estar armado e pronto para matar a
vítima.

De repente o homem afastou a tampa de um esgoto e deslizou com uma agilidade assustadora para
dentro.

— Louis! — Jones gritou quando corri na direção do bueiro.

Parei em frente ao buraco, sem sinal dos dois. Só podia ser o maníaco que Mitch vinha
procurando.

Ouvi alguns grunhidos que deveriam pertencer a moça.

Se eu fosse atrás deles agora poderia alcança-los.

— Sabe como usar a arma, certo? — Entreguei um revólver menor para Sarah, a vendo assentir —
Eu vou salvar essa garota e você precisa estar aqui pra ela, okay? Depois disso emita um chamado.
Agachei para entrar no bueiro, Sarah agarrou meu braço.

— Isso é loucura, você precisa de reforços, não pode ir atrás dele assim. Você pode morrer.

Me desvencilhei dela, a olhando uma última vez.

— Eu até posso morrer, mas vou salvar essa garota.

Saltei para dentro, sem saber o que esperar, o que encontraria ou o quanto essa experiência me
mudaria.

Eu não imaginei que naquele momento em que mergulhei na escuridão não haveria mais retorno.
│8│eridanus

Existe um bom motivo para se temer o escuro.

Existe uma linha tênue, que serve de limite para os monstros de armários, a realidade, quando você
é criança, mesmo com uma ínfima experiência de vida, ainda é possível ter uma faísca que lhe
permite dormir o sono tranquilo: eles não são reais, os monstros não saem debaixo da cama se você
não lhes der forma. Eu nunca tive medo de um ser pitoresco e deformado, não, meu medo era tátil,
meu eu de sete anos cometeu o deslize de atravessar a débil linha que separava o pesadelo da
realidade. Quando as luzes apagavam eu me sentia mortificado, meus membros ganhavam o dobro
de peso em massa corporal, minhas extremidades ficavam gélidas, e a brisa suave que atravessava a
janela cortava minha derme através do lençol.

Nos melindres de uma criança mijona e covarde, eu suplicava aos meus pais para que eles
deixassem as luzes acesas, de alguma forma acabamos projetando uma espécie de remição nas
luzes foscas que se embrenham através das frestas pequenas da porta de nossos quartos.

No entanto, partindo do pressuposto que nada pode se esconder no escuro, que não é real, porque é
que quando crescemos, o coração permanece dúbio e apertado diante do negrume que a ausência de
luz deixa para trás, como um rastro pútrido?

Tem certeza de que não há nada a se temer, e que, envelopado pelo breu dos pesadelos tornando-se
realidade, seria capaz de projetar uma fresta de fulgor, uma... salvação?

Já aos trinta e três anos, não sou nem mesmo a sombra do Louis Tomlinson de sete anos que se
mijava todo quando acordava com um ruído, e se deparava com a escuridão e as sombras
deformadas e disformes de seu próprio quarto, mas uma forte semelhança nos une agora, a certeza
convicta de que: existe algo na escuridão, algo a ser temido, uma presença poderosa e dilacerante,
perseguidora da sanidade; que rasteja, inveterado em meus gritos histéricos que reverberavam por
toda casa quando eu era criança, algo tão aterrorizante que nem as luzes seriam capazes de detê-lo,
e ele não teria compaixão quando me alcançasse.

Eu pisco meus olhos turvos não avistando nada além do breu, a inconsciência emana de 80% do
meu corpo e, pela primeira vez, em muito tempo, eu tenho medo.

Medo porque alguém mais está aqui.

Alguém que choraminga com dor.

Alguém que implora por socorro.

O temor é, sobretudo, sobre minha inércia, minha fodida capacidade de não conseguir me mover.
Estou vulnerável, como o Louis merdinha de sete anos. E meus malditos pulsos estão amarrados,
não só eles, mas cada centímetro do meu corpo se encontra em total imobilidade, abro a boca para
falar, tentar tranquilizar quem quer que seja, porém minha mandíbula está travada. Tenho a
sensação de um aperto firme ao redor dela, uma fivela sendo pressionada na parte de trás da minha
cabeça e há uma venda espessa que barra a minha visão.

A situação não é boa. Eu fui capturado, a pergunta é: Como?

Aproveito da minha inércia para mergulhar nas tórridas lembranças que perambulam pelo meu
inconsciente: Ao longo da minha carreira já estive e lidei com situações absurdas e pouco
convencionais. Confrontar o bizarro não era exatamente uma novidade pra mim, e, mesmo assim,
eu me encontrava realmente despreparado para o que teria de lidar quando entrei naquele esgoto,
tarde da noite, contando unicamente com uma lanterninha minúscula e minha arma. O tipo de erro
que alguém como eu não poderia cometer em circunstância alguma.

A parca iluminação já contava como pontos a menos para mim. A falta de reforço também, mas
não é como se eu pudesse me dar ao luxo de esperar por reforços, perder a trilha do criminoso, e
deixa-lo fazer mais uma vítima. Era preciso agir rápido e foi o que fiz. Estava aqui para salvar uma
vida. E não fui capaz de pensar, por um segundo, que poderia cair em uma armadilha, subestimei o
perigo.

Contudo, mais alguns passos a frente, conforme meus sapatos foram se afundando na água fria, os
ecos de passos, grunhidos e da minha própria respiração foram totalmente cobertos quando Crazy
do Cee Lo Green começou a estourar por todas as direções. Sem ver ou ouvir era difícil me
orientar, minhas mãos procuraram pelo apoio das paredes de pedra rústica, mas no primeiro
esbarro em um inseto as recolhi para mim. A luz da lua que vinha por meio do buraco por onde
havia entrado se distanciava mais e mais e a segurança de Sarah era uma preocupação constante em
minha cabeça.

Precisava resgatar aquela garota, e sair logo dali.

E, como se atraído unicamente por esse pensamento, um corpo esguio com longos cabelos
esvoaçantes veio em minha direção, os saltos escorregando e disparando grunhidos desesperados
pela garganta. Lá estava ela, e em suas costas, uma coisa muito estranha também surgira,
projetando-se como a morte nas pinturas negras de Goya. Era imenso e assombroso, por um minuto
me perguntei se aquilo era humano, seja o que for, usava uma máscara de alce, o pelo escuro e
denso, narinas para fora e olhos demoníacos, que eu não saberia dizer a qual das criaturas
pertenciam, mas o pior estava nos chifres, longas pontas de ossos que arranhavam o teto do esgoto.

Ele possuía uma lança, como a que os pescadores usam para pegar peixes - com couro revestindo
parcialmente seu cabo, e uma corda trançada que serviria para pendura-la no ombro, a ponta
certeira, com as asas projetadas para dentro, de forma que perfurasse a presa sem esforço,
segurando-a de prontidão, e a disparou, antes que eu pudesse raciocinar direito.

Poderia atirar nele, mas ela já estava a caminho, seguindo sua trajetória fatal, e o espaço estreito
não permitiria fazer a garota desviar em segurança. Foi em menos de um segundo que a arma foi
lançada, e que eu abracei a menina, colocando-a na minha frente e servindo de escudo para ela;
uma pobre garota que não deveria passar dos quinze, e que se liquifez em meus braços, chorando
abertamente dizendo que iríamos morrer. Ela via sobre meu ombro, observava-o se aproximando.
Se não fosse a música, eu teria ouvido bem antes.

— Ei, você não vai morrer, me escute, quero que siga reto, tem uma saída há alguns metros daqui,
corra até lá, uma amiga minha vai cuidar de você. — Orientei, rapidamente, ela negou chorosa, e
eu tive de chacoalhar seus ombros e gritar bastante hostil, afim de assusta-la e assim fazer com que
ela se movesse — Vai!

Então, apavorada, a criança correu.

Abaixei a lanterna até a lâmina ensanguentada da lança que atravessara minha coxa, por ela estar
alojada ali ainda não sangrava muito, mas eu já não era capaz de mover a minha perna. Senti a
figura gigantesca as minhas costas, unhas longas e duras feito garras apertando meu pescoço para
enfiar uma agulha fina em seguida.

Ouvi as sirenes de polícia se distanciando quando cai inconsciente, me tornando um peso morto
nos braços do demônio. Uma excelente trilha fúnebre, se eu não tivesse a certeza de que minha
morte não seria tão fácil e ridícula assim.

— E-E eu n-não 'tô feliz porque você disse que tava vindo, mas não chegou e é feio mentir e eu
queria pizza e o papa Hairy disse que não tem pizza por causa que você não voltou e agora a gente
vai sair porque falaram que não pode ficar em casa e eu tô com medo, papai, volta, pofavôôô!!!

Era um áudio, a voz sussurrada e chorosa de Spencer.

Por que estou ouvindo meu filho?

— É adorável, não, é? — O timbre rouco, masculino e definitivamente desconhecido atraiu minha


atenção. Eu não sabia a quem pertencia, mas tinha altas desconfianças de que se tratasse do tal
maníaco — Vamos, fale.

Discerni o som de alguém se arrastando, correntes arranhando o chão de pedra.

— Senhor, por favor, minha família tem muito dinheiro. Eles podem te dar o quanto quiser, só por
favor me deixe sair daqui.

Era uma mulher, provavelmente na casa dos vinte, com cabelos longos e castanhos, pele clara e
olhos escuros, seguindo o padrão de suas vítimas.

— Jess, já falamos sobre isso. Sua insistência me irrita — Retrucou com tédio, uma fala cantada
irritante.

— Por favor, eu não como há dias, eu vou morrer desse jeito.

— Eu a convidaria para se juntar a nós na ceia, mas temos um convidado e... — Era aquele tom de
eu-adoraria-ajudar-você-sabe, envergado em falsidade e dissimulação.

— Vai tomar no cu, seu louco maldito, me tira daqui! — De abrupto, ela berrou, batendo contra o
que deveriam ser grades de uma cela.

Me forcei a abrir os olhos, uma das ações mais dolorosas de toda a minha vida. Eu só podia ter
sido drogado com calmante de cavalo, de outra forma não seria possível me derrubar daquele jeito.
Não quando meus quinze anos foram vividos a base de anfetaminas, de jeito nenhum uma
droguinha qualquer surtiria tamanho efeito.

Assim que a nuvem escura e nublada que tapava a minha visão foi se afastando, pude tomar ciência
de que estava ainda dentro do esgoto. Uma parte bem mais privada e livre dos dejetos e água
poluída sobre o chão, mas bem ao longe a podia ouvir cair, mas nenhum som exterior entrava. Era
como se sequer existisse.

A escuridão era mascarada por lâmpadas e velas, a eletricidade fizera maravilhas com esse lugar,
que nem de longe parecia um lar. Havia muitos corredores, túneis por toda a parte e o local no qual
me encontrava era aberto, amplo e com duas celas largas demais como se próprias para feras
selvagens. Como eu suspeitava, no chão de uma destas, encontrava-se a garota, seguindo as
mesmas fisionomias que supus, porém seu estado ia longe do que eu gostaria. Suas roupas de
aparência cara estavam aos farrapos, sujas e rasgadas, os sapatos desaparecidos, cabelos
desgrenhados, e hematomas nos pulsos e calcanhares onde correntes grossas eram presas, também
havia sangue seco no pescoço e lateral do rosto abatido e pálido.

Ela olhava com desprezo para alguém a sua frente.

Para ele.
— Olhe só quem acordou! Bom dia, sol. — O homem se voltou para mim antes que eu próprio
assimilasse que de fato estava acordado. Ele veio em minha direção, vi a tela brilhante com a
imagem de Harry piscando no visor entre seus dedos longos. O cara era gigante, muito maior que
meu marido, talvez na casa dos 1,90, por aí, ombros largos, porte rústico e cabelos dourados
movendo-se em espessas espirais, os olhos eram azuis e o rosto transparecia uma simpatia fria e
calculada, como a de um robô pré programado para simular a ação humana. Aquela simples troca
de olhares entre nós me causou náuseas — Olá, Louis.

Parou diante de mim, um sorriso petulante crescendo nos lábios arroxeados e um grosso sobretudo
tocando seus coturnos marrons.

Pisquei, ainda dormente, enxergando as correntes envolvidas em meus pulsos, pernas, tórax e
pescoço.

— Mmm... — Não consegui sequer mover a boca com aquela pafernalha presa ao meu rosto.

— Oh, desculpe por isso. Deixe-me tirar. — Se apressou em dizer, ele tomou proximidade,
tocando a parte de trás da minha cabeça e eu quis rosnar e chutar a cara do maldito, mas tudo o que
consegui foi fechar os punhos e despejar todos os palavrões possíveis em minha mente.

Levou menos de um minuto para que a focinheira deixasse meu rosto e eu pudesse sentir o alívio
tomar conta dos meus músculos faciais, até poder falar de verdade:

— Quem é você, filho da puta? Que lugar é esse? O que fez com aquela garota? Devolva a porra
do meu celular, ou eu juro por Deus que não terei piedade! — Despejei tudo de uma só vez, alto,
agudo e raivoso, bem ao meu estilo, rosnando a última parte, eu não teria piedade de forma
alguma.

Ele riu balançando a cabeça e coçando o nariz.

— Vamos com calma, deixe que eu me apresente, eu sou Lucian e é um prazer recebê-lo, detetive.
— Fez uma mesura que só me causou desgosto, torci o nariz.

— Vejo que não respeitou nem um pouco minha privacidade, já que sabe até mesmo minha
profissão.

— Tem razão, me desculpe por isso. Mas com desconhecidos todo cuidado é pouco e seria mentira
dizer que não gostei de tirar suas roupas e vasculhar cada canto do seu corpo. — Acrescentou com
um tom malicioso, os olhos varrendo-me dos pés a cabeça. Não, eu não me encontrava nu, mas
minha jaqueta, colete, sapatos e todas as armas extras que mantinha em pontos estratégicos como
na coxa e bota não estavam mais lá.

Ele só me deixou com a t-shirt preta e básica e os jeans. Nada mais.

Excelente!

— Foi como eu disse a Jess, você me foi enviado por ele. Nem sequer imagino quais são seus
planos para nós, mas ele nos quer juntos e assim deve ser. — Lucian diz com adoração, os olhos
piscando em vislumbre como se visse algo sagrado. Um lunático, obviamente, em minhas mãos
apenas aqueles abençoados com as mais variadas faces da bizarrice. — Eu irei cuidar de você e
garantir que tudo saia como ele planejou.

— E quem é ele, seu boçal?

— Ora, tolinho, você sabe, todos aqui sabem. — Ele olha na direção da moça que não esboça
reação alguma e se volta para mim, o rosto erguido para me encarar diretamente, e a distância é
curta, não consigo sentir algo que vá além do desprezo real e cru — Céus, você é o próprio filho de
Afrodite.

Afrodite me lembrava Andrômeda, que me lembrava que o mundo estava infestado de gente
problemática assim.

— Olha, imbecil, eu não faço a menor ideia do que está falando, mas você definitivamente não
pode acorrentar ou manter pessoas dentro de jaulas. Então sugiro que faça ao menos uma coisa
inteligente e nos solte, sabe, usar a racionalidade que falta nesse cérebro de merda. — Pedi com a
voz branda, como se não estivesse ofendendo-o, ser um negociador nunca fora realmente o meu
forte.

Lucian suspira calmo, mais um passo e o cheiro de insanidade exala por seus poros.

— Não vai acontecer. — Disse seco, erguendo os olhos gélidos até os meus, uma de suas mãos
tocou a ferida aberta na minha perna e eu me encolhi pela dor — Por hora você está seguro, mas eu
sei quem você é e graças a isso — Exibiu meu telefone celular, a mensagem deixada por Spencer
voltando a ser reproduzida — Sei quem é a sua família. Eu posso ir atrás dos seus filhos fofinhos
ou quem sabe do seu marido, ele é gestante e civil, seria tão facinho pegá-lo.

Cerrei os punhos diante daquela ameaça covarde.

— Não o subestime, ele o mataria antes que pusesse as mãos num fio de cabelo de qualquer um
deles.

— Oh, Louis, você realmente não me conhece. Mas não se preocupe, temos tempo de sobra. — O
maldito ainda ousou me dar um beijinho na bochecha que só acendeu minha ira, grunhi como um
animal feroz enjaulado contra sua vontade, eu não deixava de ser um.

— Não, tempo é a última coisa que você tem! O FBI está na sua cola e agora você pegou um
federal, é questão de minutos até que eles estejam aqui. Vão rastrear... — Rosnei.

— Isso aqui é o esgoto, não a Disneylândia. Não existe sinal e definitivamente não há possibilidade
de chegarem até nós, aceite de uma vez, detetive, você caiu na minha teia e eu não vou solta-lo,
pelo menos não vivo. — Com isso, Lucian deu um tchauzinho e saiu com seus sapatos tilintando.

Minha cabeça caiu, eu me sentia fraco e exausto. A pouca força havia se esvaído por completo do
meu ser.

E eu ainda tinha de ser resistente a quaisquer adversidades. Porra de resiliência do caralho, essa
merda não funciona.

— Ei, você é a Jess, certo? — Me dirigi com cuidado a garota, ela se mantinha acuada próxima às
grades e assentiu.

— Jéssica Bolt. E você é Louis Tomlinson, te vi uma vez no jornal, você era da narcóticos, né?

— Sim, há muito tempo. — Falei, varrendo o local com meus olhos estreitados, não encontrando
sinal algum de outros prisioneiros — Diga-me, não há mais ninguém aqui? Só você de prisioneira?

Por algum motivo minha indagação a fez rir.

— Prisioneira. — Repetiu com morbidez e minhas sobrancelhas se estreitaram sem entender a


razão.
— Algum problema com o que disse?

— Não, é só que você não faz a menor ideia de quem é esse cara, não é mesmo? — Engoli seco,
realmente não me encontrava a par da investigação de Mitch. Jess deu o seu melhor para se colocar
de pé, as mãos flageladas se apertando com força nas barras de ferro e seu rosto se desfez em
amargura encarando além de uma cortina pesada de veludo que dividia o "cômodo" — Esse cara, o
Lucian, ele não faz prisioneiros. Não somos capturados para ficar aqui a espera de uma
recompensa gorda ou qualquer coisa do tipo, ele não espera ganhar qualquer tipo de lucro conosco,
também não é um estuprador ou pedófilo e de certa forma não é um psicopata, eu acho...

Estranho do caralho.

— Então por que ele às captura?

— Porque ele tem fome... E nós somos sua refeição. — ela me sussurrou a última parte, como
quem confidencia um segredo tão absurdo, que nem em voz alta pode ser dito, ou como quem
conta de um pesado, falando baixo com medo de torna-lo real.

Aquilo me atingiu, definitivamente, como um pau grosso bem no meu cu, porém, dei meu máximo
para não transparecer, mas estava evidente na minha voz toda a minha desolação porque era
demais até para os meus padrões.

— Quer dizer que, de todos os lugares do mundo, nós caímos no covil de um canibal?

Jéssica sorriu.

— É isso aí.

Assenti, sentindo a respiração pesada, e repousei a cabeça contra a parede dura e fria, implorando
que por tudo o que há de mais sagrado que Harry tenha sim ligado pra SWAT.

Do contrário, sua última lembrança será de mim desligando em sua cara.

Xx

Alguma coisa úmida e levemente pesada bate contra a minha testa, desliza pelo canto do meu
nariz, escorrendo pela minha bochecha e outra se segue, ainda mais fria do que a última.

Uma goteira? Magnífico!

— Melhor te tirar daí, querido. — A voz absurdamente próxima me faz saltar, esquecendo das
correntes ainda por toda parte que agora parecem atravessar a minha pele e criar uma ardência
quase que insuportável ao menor movimento.

E lá estava Lucian, com seus grandes olhos anis e sorriso forçado, um filho da puta, boneco de
cera comedor de gente.

— Apenas liberte a garota. Pode fazer o que quiser comigo, mas deixe-a ir. — Murmuro, erguendo
o rosto.

— Não, não vou fazer isso. — Diz simplesmente, sumindo atrás do meu corpo e escuto os ruídos
de cadeados sendo abertos, ele fez uma verdadeira bagunça ao me prender em uma pilastra, meus
pés devem estar a mais de sessenta centímetros do chão. Sinto o aperto afrouxar, mas não sendo o
bastante para que eu me mova com o mínimo de liberdade — Já disse que tenho grandes planos
para você. — Volta a ficar na minha frente, as mãos repousando nos bolsos do casaco pesado,
sorriso afetado.

— Grandes planos? Deixe-me adivinhar, vai me servir no natal. — Digo sem a menor pitada de
humor, contudo, ele ri da mesma forma, a risada desse cara me faz revirar as entranhas.

— Jess e sua boca grande, presumo. Mas não podemos descartar a possibilidade, você parece
delicioso. — Seus olhos me analisam por uma fração de segundos antes que ele dê um passo a
frente. Eu enrijeço de pura raiva ao que ele lambe desde a curva do meu pescoço até a minha
têmpora e sopra em meu ouvido: — Realmente, uma delícia.

— Você me dá nojo. — Rosno entredentes.

— E você me dá tesão. — As correntes se soltam e eu caio de uma só vez no chão rústico, minha
perna, com metade de uma lança, sendo a primeira a reclamar pela pancada e dizer que doeu seria
eufemismo diante da agonia quase que insuportável. Todo o meu corpo se encontrava dormente e
dolorido, pela droga desconhecida que ele me injetara, junto com as horas aprisionado em uma
pilastra mantido por correntes.

Se eu estivesse um pouquinho melhor teria sido capaz de reagir. Não importava que ele fosse dez
centímetros ou dez metros maior do que eu, o destruiria sem hesitação alguma, mas naquele
momento eu não tinha a menor chance e, sabendo disso, meu captor segurou a única corrente que
manteve, a que estava presa ao meu pescoço, e simplesmente me puxou por ela. Meu corpo sendo
arrastado pelo piso em direção a uma das celas, enquanto me debatia com os dedos trêmulos
agarrados ao frio metal envolto da minha garganta que causava minha asfixia.

Sentia que estava prestes a desmaiar quando ele me jogou para dentro, a parta de trás da minha
cabeça se chocando duramente com a parede, e tudo parecia rodar diante dos meus olhos. Levei a
mão até o local, tateando meus cabelos úmidos e reavendo meus dedos cobertos de sangue.

— Deveria ser mais delicado com meus hóspedes, eu vou melhorar, prometo. — Ele assegura, se
aproveitando da minha fraqueza para afixar a corrente em um aro na parede, certificando-se de que
está firmemente preso.

Lucien, então, com o nariz a centímetros do meu, encara-me com suas pupilas dilatadas, o rosto
desenhado e febril tão próximo que posso sentir sua respiração. É fruto de meu subconsciente, eu
sei, mas consigo sentir dançando em palato o cheiro de enxofre, e ouvir gritos harmonizados
vindos diretos do Tártaro. O olhar gélido, cromatizado das labaredas de seu inferno interior, cruza
com o meu, e quando um sorriso fugaz e malicioso enfeita seus lábios, meu estômago afunda em
chumbo.

— Você é lindo, filho de Afrodite — Ele segura minha mandíbula com sua mão grande e delicada,
e eu sou incapaz de mover-me, vencido pela fadiga, mas tenho uma latência de enjoo instalada
dentro de mim.

— Não. Me. Toque.

Ele ri, soltando minha mandíbula e descendo suas mãos nojentas pelo meu peitoral, subindo-as
embaixo de minha camisa, diretamente em contato com minha pele, cravando suas unhas na parte
baixa de meu abdome. Eu grunho, com raiva, e Lucien parece divertido, o sadismo brinca em suas
íris, e eu sou orgulhoso demais para desviar o rosto.

Uma de suas mãos abandona meu abdome, e eu penso que ele está cansado de me atormentar, mas
estou redondamente enganado. Ele cutuca a lança cravada em minha perna, e eu reviro os olhos,
sentindo-me prestes a desmaiar com a dor lasciva, mas me obrigo a ficar firme, resiliência, caralho.
Ele sorri, com seus dentes perfeitamente alinhados, maravilhado com o sangue escorrendo de seus
dedos assim que ele os ergue, o líquido é denso e fascinante, eu mesmo acabo hipnotizado, como se
já não fosse familiarizado com a textura rubra.

Ele lambe os lábios, ofegando baixo perto de meu rosto, e eu vejo de canto de olho como ele
esfrega suas coxas uma contra a outra, a mão que permanece em meu abdome se pressiona com
mais força, e eu solto um ofego igualmente choroso, mas não é de prazer. Os olhos do filho da puta
brilham para mim, e ele passa os dedos sobre meus lábios, tingindo-os com meu sangue, como se
seus dedos fossem um pincel, e limpa o excesso em meu pescoço, exatamente sobre meu pulso
carotídeo. Eu travo a mandíbula.

— Não — Digo, irritado.

— Sim. — Ele me ignora, imobilizando meu quadril, não que ele precisasse, mas havia um deleite
pessoal em cravar as unhas em minha carne, a dominação sobre mim.

Ele lambeu meu pescoço, com sua língua quente, sugando meu ponto de pulso e grunhindo com o
gosto do sangue em sua boca. Não tinha força para deixar marca, então seus lábios moveram-se
vagarosamente através de minha mandíbula, até alcançarem os meus. Lucien, ciente de que eu não
abriria passagem para sua língua ousada, apertou meus quadris com mais força, e lambeu o sangue
devagar, para só então morder meu lábio inferior com rudeza, forçando a abertura, empurrando a
carne quente para dentro de minha boca, e compartilhando meu próprio sangue ali, lambendo-me
com a ardência de um alguém devoto. Eu fechei meus olhos, deixando que o filho da puta me
beijasse, ansioso para que acabasse, ansioso por não poder fazê-lo engolir a própria língua.

Só quando ele se retirou de minha cela, que me pronunciei:

— Por que faz isso? — Quase desfalecendo, arrasto meu corpo até o limite da prisão, apoiando a
testa em uma das barras. Eu não me sinto bem, tudo gira e soa distante.

Isso chama a atenção de Lucian que retorna com alegria. Ele fica diante de mim, em pé e bancando
o gigante, como que para reafirmar que mandava ali. Certo, eu já entendi. Por hora.

— Por que sequestra jovens inocentes e as transforma em sua refeição?

— Não é nada pessoal.

— Existe um padrão, então sim, é pessoal.

Lucian sorri.

— Tem razão, mas não pretendo dizer muito além de que houve uma época em que estive muito
doente. e ninguém quis ou soube como me ajudar, se não fosse por mamãe eu estaria morto agora.
— Disse com extremo sentimento e devoção e... touché!

— Então, pra te fazer sarar, a mamãe começou a te dar carne humana.

— Ficaria surpreso com os benefícios que ela traz.

— Oh imagino, eu assisti Hannibal, lembro que a pele dele era ótima.

Meu comentário acende algo no homem. Seus olhos dobram de tamanho e o rosto se torna
vermelho e furioso. Ele cai de joelhos e agarra meus cabelos por entre as grades, provocando um
aperto ardente.
— Ah, filho de uma... — Ele não me deixa terminar, apertando com mais força. Eu praticamente
sinto meus cabelos cedendo em seus dedos.

— Não vou permitir que você faça piadinhas sobre mim. Caso não tenha notado, é você quem está
dentro de uma jaula, e a minha mercê. Eu não fui atrás de você, foi você quem veio atrás de mim, e
só por isso eu ainda não acabei com a sua raça, mas é melhor não me testar porque quem tem o
poder de fazer o que quiser com o outro aqui, sou eu. Não confunda a minha simpatia com
fraqueza.

Filho da puta.

— Sim, você é muito simpático, nos acorrentando e nos deixando morrer de fome. Um doce,
realmente.

Lucian não esboça nenhum tipo de reação, apenas agarra o pedaço de madeira na minha coxa e o
afunda mais.

Eu grito e caio no chão.

Meu deboche vai me matar, caralho de sarcasmo da porra.

Ele se afasta com a mesma altivez.

— Antes de te matar, vou domá-lo apenas para o meu prazer.

— Isso não vai acontecer. — Grito, mesmo que mal me aguente acordado — Eu vou sair daqui e
vou matar você!

Não parece uma possibilidade tão próxima quando desmaio no chão.

O que mais faz recobrar a consciência, sem noção das horas e com um estômago dolorido de fome
e a garganta seca, é a voz suave de Jess me chamando não muito distante do vale do sono onde me
encontro. Luto para abrir minhas pálpebras e assim que o faço dou de cara com a escuridão quase
que absoluta, não fosse duas pequenas velas acesas na minha e na sua cela. Ela está pressionada nas
grades laterais de sua prisão que dão acesso a minha.

— Detetive. — Chama baixinho, antes de perceber que estou acordado.

— Hmm. — Gemo sentido ao tentar me mover e ter meu corpo reclamando da dor. Em toda a
minha vida nunca estive tão fraco.

Deito de costas, sem forças para fazer algo mais do que amaldiçoar o momento em que resolvi me
aventurar nos esgotos.

— Olha, eu sei que dói, mas você precisa vir até aqui.

Eu guincho de dor feito uma criança enquanto obrigo meu corpo a funcionar como pode, não ouso
ficar de pé porque andar é impossível, por isso me arrasto até próximo de Jess que sorri
encorajadora.

Quando estou perto o suficiente ela puxa minha perna por entre as grades e eu sei o que ele vai
fazer. Mas não é como se estivesse preparado.

— Eu gostaria muito de ter anestesia agora, mas se demorarmos mais...

— Eu sei, eu sei... — Tento soar firme, mas tudo o que eu quero é chorar quando me apoio nos
braços e a incentivo a seguir em frente.

— Okay, pense em algo feliz. Algo bem bacana!

Respiro o máximo de ar para meus pulmões, tentando fazer como ela diz e vasculhar pelas
lembranças felizes.

Eu, Harry e nossos bebês na praia.

O sol, a areia, o mar, as risadas das crianças e ele usando seu óculos pink da Gucci se enchendo de
protetor com medo de ficar queimado. Quase posso sentir a areia fofa por entre meus dedos e o
afago do vento sobre meu rosto, tudo é tão sereno e bonito...

E puta merda!

Enterro meus dentes no antebraço para não gritar quando ela arranca o pedaço de lança da minha
coxa. A minha visão turva é capaz de captar o caminho abundante de sangue que jorra da ferida
aberta, a moça se apressa em rasgar as mangas de sua camiseta criando um torniquete firme o
bastante para que eu não morra de hemorragia na hora.

Mas eu continuo me sentindo fraco e a beira da morte.

E talvez esteja.

O "covil" deste rato dos esgotos é quente, abafado e sem qualquer tipo de ventilação, o odor é
forte, não tanto quanto deve ser a frente, mas me deixa asmático a cada respiração mais profunda
que eu me arrisco a dar. Sem comida, água, ar ou a luz do sol, não é difícil acreditar que
começamos a definhar em questão de horas presos ali.

— Talvez, Lucian, libere alguns antibióticos. Pelo jeito ele não te quer morto, ainda. — Jess fala,
após me ajudar a encostar as costas nas grades. Sinto meu cabelo grudando na minha testa e ela o
afasta gentilmente — Você vai ficar bem.

Aperto meus olhos, respirando falho.

— Eu não sou importante, você é quem precisa ficar bem.

Jéssica é bonita, porém tem um sorriso triste que aniquila minhas esperanças quanto a sairmos os
dois dessa.

— Não me leva a mal, mas eu duvido muito, quer dizer, você chegou agora e não deve estar dando
nada pro Lucian. Eu sei que ele não parece um canibal assustador, com dentes serrados e cara de
mal. Também não levei a sério quando cheguei aqui, no entanto, pelo tempo em que estive aqui, eu
o vi fazer coisas e ele... Ele é um monstro! Ele não é humano, não pode ser e por mais que me doa
admitir não existe saída. Nós não vamos conseguir. — Observo o caminho lento que a primeira
lágrima faz, correndo por sua bochecha funda e se perdendo no pescoço machucado — Eu só não
queria ter sido tão idiota, tipo, qual era a necessidade de sair tão tarde da biblioteca? Minha prova
seria só na semana que vem, não tinha porque estudar tanto.

— Estava saindo da biblioteca quando ele te pegou?

— Uhum. Eu estava com a cabeça tão cheia de merdas sobre legislação que nem me dei conta de
que estava sendo perseguida. — Disse com um risada estranha, seus braços se cruzaram sobre os
joelhos e ela se sentou ao meu lado. Algumas barras de ferro impedindo que nossas peles se
tocassem.
— Você faz direito? — Ela assente — Eu também, eu era péssimo. Você vai ser uma grande
advogada, Srta. Bolt ou enfermeira, quem sabe. — Balanço minha perna, lhe arrancando uma
gargalhada verídica que me leva a rir também.

— Então você é casado e tem filhos. — A garota começa, seu perfil é iluminado pela luz trêmula.

— Eu sou e tem mais um bebê a caminho.

— Isso parece incrível.

— E é. — Sorrio para o nada, pensando neles.

— Eu sempre tive dúvidas se teria filhos ou não, bem a resposta está aí.

Viro o rosto para ela que continua a encarar a parede, por entre as frestas eu agarrou sua mão e a
enlaço na minha. Sua pele fria encontra o calor entre os meus dedos e Jéssica me olha com o rosto
banhado em lágrimas.

— Eu não quero morrer! — Confessa num soluço, tombando a cabeça para frente e apertando
minha mão.

— Hey, você não vai! Me escute, eu vou tirar a gente daqui. Nós vamos ficar bem e você ainda
terá que se preocupar com todas aquelas provas e se vai ou não ter filhos, entendeu? Não ouse
desistir, eu preciso de você aqui.

Jéssica se achega mais a mim e se esforça para dizer:

— Nós vamos conseguir! — É baixinho e fraco, mas é tudo o que eu precisava ouvir.

Xx

Não sei quanto tempo passa, longe do mundo não há como ter qualquer forma de marcar as horas,
porém acredito que um bom par de horas se tenha passado quando Jess pegou no sono, ela foi
inconscientemente se deitando no chão de sua cela e encolhendo-se para fugir do frio, uma vez que
as mangas de sua blusa serviam para conter o sangramento na minha perna.

Durante seu sono eu a observei por um longo tempo, até que seu cabelo escuro caiu para trás,
revelando a fonte do sangue em seu pescoço. A grande ferida fresca e sangrenta onde deveria estar
sua orelha esquerda acaba com toda a plenitude que me proporcionava olhá-la.

Ela era só uma criança que caiu nas mãos de um maníaco. Uma criança condenada, caso eu não
fizesse algo para nos tirar de lá.

Agora eu me arrependia de não ter aceitado quando Grimshaw sugeriu que usássemos chips
rastreadores, na época eu disse que era ridículo, eu quem era ridículo. Se tivesse um desse
estaríamos a salvo.

Quanto tempo passou?

Eles estão me procurando lá fora?

Sarah e a garota conseguiram escapar?

Nós vamos conseguir escapar?

Estou de pé, analisando cada centímetro, farejando por uma brecha, o que for. Tem que existir uma
saída. A porra de um ponto cego. Sempre tem.

Então eu encontro no topo das celas, não passa de quarenta centímetros, mas há este espaço estreito
entre a estrutura e o teto. Um espaço apertado no qual um corpo poderia passar, bastava escalar até
lá em cima, haviam os túneis, mas uma vez fora era meio caminho andado. Sem pestanejar agarro
as barras, subo a perna direita, entretanto, assim que tento mover a esquerda ela vem como um
peso morto que me puxa pra baixo.

Não me deixo abater com o primeiro fracasso.

Até que o primeiro, se torna um segundo, terceiro e por aí vai, até que eu esteja despencando no
chão pela trigésima vez. Minhas costas batem com tanta força que não seria exagero concluir que
uma ou duas costelas se partiram no meio do impacto. Engatinho até um canto, tentando acalmar
minha respiração pesada.

— Você não vai sair daqui, é melhor desistir, antes que se machuque. — Evangeline está andando
em círculos pela cela, suja e fantasmagórica como sempre.

— Por que você continua aparecendo pra mim? — Sussurro.

Eve para de rodar e fica estática, o rosto pendendo para o lado e um sorriso de covinhas afundando
em suas bochechas.

— Isso não é algo gentil de se dizer, papai.

Suspiro cansado.

— Eu estou com algum tumor ou coisa do tipo? Porque sexto sentido eu definitivamente não
tenho, e você está morta.

— Talvez eu só queira te ver.

Fecho os olhos, uma brisa fria bate contra meu rosto e eu sinto meu cérebro entrar nos conformes,
porra! se tem brisa tem saída!
│9│equuleus

Está correndo em nosso sangue?


Está correndo nas nossas veias?
Está em nossos genes?
Está em nosso DNA?
Humanos não vão agir como sempre achamos que devemos
Nós podemos ser maus assim como podemos ser bons
...

— Eu não sou louco! — Bato o punho fechado contra a grade, ganhando apenas um novo revirar
de olhos por parte de Jéssica.

— Bom, louco ou não, esse não é um bom plano. Quer dizer, você acha realmente boa a idéia de
cortar a sua perna pra conseguir escalar?

— Se for pra te tirar daqui é uma boa ideia sim. — Corro os dedos pelos meus cabelos ensebados.
Eu não sei quanto tempo passou, mas eu me sinto imundo vivendo neste buraco nojento.

— Me tirar daqui? Quem te elegeu a porra do Batman? Louis, querido, você não tem a obrigação
de me salvar. — Ela se volta para mim com o rosto torcido e mais abatido do que algumas horas
atrás. Está garota está definhando.

— Claro que tenho, eu fiz um juramento!

— Olha, eu te libero dele. Você não vai fazer nenhum sacrifício por mim, okay? — Jess se
aproxima, dando alguns tapinhas em minha mão e arriscando um sorrisinho gentil que só aumenta
a minha vontade de conseguir arrebentar aquelas barras e leva-la para bem longe disso.

Baixo os olhos, respirando profundamente.

Por que tudo tem que ser tão difícil?

Tremo de leve ao que sinto a unha pontiaguda de Jess se arrastando pelo meu pescoço.

— Olha, uma aranha te mordeu, quem sabe você vira um super herói nas próximas horas? Vamos
esperar. — Comenta com bom humor, o que me leva a rir brevemente. Ergo o rosto encontrando o
seu bastante próximo.

Ela é como luz em meio a toda treva.

— Existe uma saída. Daqui eu posso sentir uma corrente de ar, ela vem do sul. Se eu conseguir
escalar e passar por aquela fresta posso te tirar daqui e te levar até a saída, podemos escapar, Jess.

— Eu sei que você é pequeninho. — Brinca — Mas não tem jeito de passar por um caminho tão
estreito, você vai acabar se ferindo e...

— Eu só quero nos tirar daqui!

— Mas não vai! — Ela retruca com firmeza. Isso por algum motivo, provavelmente todo o
estresse, me faz perder a linha completamente. Soco às grades que tremem com força, mas nada
que arrisque uma queda, Jéssica salta para trás assustada.
— Qual é a porra do seu problema? Nós não podemos ficar aqui, se existe uma chance...

— Okay, então eu vou. — Jéssica se vira para a abertura no topo de sua cela, como se avaliando se
daria certo ou não. A resposta era sim, porém, minha mente gritava NÃO.

— Não. — Rosno arranhando as barras de ferro.

Ela dá de ombros, diferente de mim não havia uma corrente em seu pescoço limitando seus
movimentos. Para isso eu já estava a procura de um grampo para conseguir me livrar do problema,
mas Jéssica não me deu tempo, ela estava colocando um pé sobre o outro e de repente já escalara
mais da metade com facilidade embora a fraqueza de seu corpo.

— Jéssica, pelo amor de Deus! Não faça isso, ele pode te pegar.

Seus cabelos longos se remexem ao que ele escala mais um pouco.

— Você não parecia preocupado que ele te pegasse.

Meu peito queima pela impotência. Corro para a minha própria grade, tentando escalar como ela,
mas antes que a minha coleira aperte a perna já está fazendo um ótimo trabalho em me manter
quieto e moribundo no mesmo lugar.

— Eu sou um policial, fui treinado. Você é só uma garota, com uma vida incrível pela frente, não
vale a pena se arriscar.

A garota para, ouço sua respiração profunda e seus olhos turvos e tristonhos caem sobre mim, uma
última vez.

— Você tem filhos, um marido e um bebê a caminho, uma vida toda pela frente, não vale a pena
você se arriscar. — Diz com a voz suave, um pequeno sorriso se molda em seus lábios de menina e
ela completa: — Deixe-me salvá-lo.

— Eu não faria isso se fosse você. — Aquela frase me deixa confuso sem saber de onde viera e é
quando capto a presença de Evangeline ao meu lado, pequena e taciturna, uma morbidez sinistra a
cerca e de alguma forma me contagia com o pensamento de que o pior está por vir e então o som
das botas desgastadas de Jess atingindo o piso duro do lado de fora ecoa pelo espaço.

Ela mal se aguenta em pé do lado onde não há grades e correntes. Ao contrário do que muitos
fariam ela não toma um momento para respirar fundo e apreciar a liberdade, ao invés disso corre
para a minha cela, forçando a fechadura.

— Eu vou procurar a chave, deve estar em algum lugar por aqui. — Me diz apressada, a presença
de Eve é como uma nuvem negra escurecendo quaisquer expectativas que eu ousaria nutrir.

Jéssica vasculha às pressas algumas gavetas, em sua maioria vazias, ou com facas ensanguentadas
que a levam a torcer a expressão em desgosto e repulsa. A sensação de agonia que vai subindo pela
minha espinha chega a ser insuportável.

— Por favor, me esqueça, vá embora. Vai, eu te imploro. — Repito durante todo o tempo em que
ela segue a procura da maldita chave.

— Nem fudendo, nós somos uma dupla, eu não vou sem você.

— Jéssica...
— Achei! — Grita de súbito dando alguns pulinhos com um molho de chaves em mãos, ela
tropeça de volta até mim e encaixa a primeira chave na fechadura que sequer gira, ela vai para a
próxima e depois para a próxima — Merda.

— Jess, só foge daqui. — Praticamente imploro prestes a ficar de joelhos pra ver se funciona. Ela
nega, indo para a chave seguinte.

— Eu já disse, nós vamos conseguir, juntos, Tommo. Ah, espero que não se importe, eu te arranjei
um apelido, detetive. — Sorri um pouco mais largo, o mesmo alcançando seus olhos que ostentam
um leve brilho. A empolgação, a esperança queimam em seu interim, assim como a raiva e a
angústia explodem no meu no momento em que vislumbro a imagem lúgubre surgindo dentre as
sombras, ele é imenso em suas roupas negras, o que forra seus ombros é uma echarpe vermelha,
cor de sangue e seus olhos não expressam suas intenções, mas é fácil de deduzir quais são.

Então me vejo num impasse.

Digo que um canibal com o dobro de seu tamanho e força, presumivelmente armado, está as suas
costas, lhe dando a oportunidade de tentar escapar e acabar sendo pega no caminho por não saber
como andar nos esgotos em meio a escuridão quando ele deve ser expert nisso ou eu só... Espero?

O quão hediondo tudo isso é?

Olho de Lucian que vem como um predador lento e silencioso e para Jéssica, ela é quase como um
fantasma diante da ciência de que ela está condenada.

Eu só queria ter pulado antes, não ter dito nada e dado a oportunidade para que ela roubasse minha
ideia. Eu falhei e ela pagará o preço.

Jess tenta uma nova chave e está vira, há o som da fechadura abrindo e os lábios se rompendo em
uma breve comemoração.

— Nós cons–

Sinto o sangue que rompe de sua jugular espirrando no meu rosto e ela busca por mim, estica os
braços tentando segurar minha mão, mas eu... Eu não consigo. Vou me afastando, afastando,
afastando.

Ela grunhe, engasgando no próprio sangue com a lâmina brilhante atravessada em sua garganta.
Não satisfeito, Lucian junta seu corpo as suas costas e vejo seus dedos se afundando nos glóbulos
oculares dela, o sangue desce de lá também, suas mãos se movem desesperadamente um última
vez, chamando por mim e finalmente caem.

Minhas costas batem na parede.

Lucian se afasta e ela despenca em frente ao meu calabouço, o sangue forma uma espécie de lago
que vai deslizando para dentro. Ele a segura pelo tornozelo e vai puxando, a trilha vermelha é
extensa até sua mesa longa de ferro fundido.

A cela está aberta, grita meu subconsciente, mas eu estou imóvel. Petrificado.

Ele a joga sobre sua mesa, o cabelo bonito cascateia e toca o chão embebido em plasma, dois
buracos negros me olham de onde costumava ficar seus olhos expressivos e esperançosos.

O canibal não me dirige a palavra quando lança um olhar duro em minha direção e crava aquele
mesmo punhal no peito de Jess, cortando centímetros e mais centímetros de pele. Não há o menor
arquear de sobrancelhas ou contração dos músculos faciais ao separar suas costelas e recolher
órgão após órgão, ele vai os depositando em recipientes de vidro e minhas pernas fraquejam e eu
escorrego no chão. Lucian se afasta do corpo estripado da garota, as mãos grandes vem gotejando
com seu sangue fresco, a luz amarela acima de seu ombro e toda a maldade que o envolve só me
faz vê-lo como uma espécie de demônio. Isso não é humano, não pode ser.

A coisa caminha em passos de trovoada e eu fatidicamente estremeço com sua proximidade.

Sem se importar em sujar seus coturnos com o sangue no chão ele empurra a porta da minha cela e
entra.

— Está aberta, não vai ao menos tentar escapar? Esta é a sua grande chance, não vou impedi-lo. —
Sua voz me dá náuseas e o gosto de bile vem forte em minha língua.

Fecho os olhos. Eu não quero ver a face do diabo de perto.

Sua risada ecoa e ele puxa minhas pernas antes dobradas para poder se sentar sobre elas, seu peso
força meu corpo para trás e suas malditas mãos se esfregam em meu rosto e cabelo, me sujando
com o sangue dela.

— Para, por favor... — Soluço fraco.

— Por favor? Não era você o detetive fodão que ia me matar? — Provoca, mordiscando minha
orelha e sendo o verme desprezível que é ao também se esfregar no meu colo — Eu estou aqui a
sua mercê, pode me matar com suas mãos, vamos, faça. Eu sei que você pode.

Tento mover minhas mãos, obrigá-las a funcionar e fazer exatamente o que ele me pedia, no
entanto não adianta. Elas não me escutam, não me obedecem. O meu corpo está paralisado e por
mais que eu não queira admitir eu sei o que é.

— Me mata, porra! — Grita e eu choramingo baixinho, Lucian ri satisfeito.

— N-Não consigo.

— Por que não? — Incita e eu quase posso ouvir seu sorriso genuíno.

— Eu não sei. — Fungo apertando meus olhos com ainda mais força, me mantendo cego a minha
própria covardia. Ah, se Harry me visse agora, ele sentiria nojo de mim.

— Você sabe sim, repita comigo: Eu sou uma cadelinha assustada.

Invés de responder opto pelo silêncio.

— Vamos, detetive, não seja orgulhoso. — Força, apertando as unhas em minha ferida e nem assim
eu cedo. O silêncio o deixa inquieto coisa que eu sei que ele odeia, por um minuto escuto o
farfalhar de seu revirar no casaco e de repente há uma tela brilhante forçando minhas pálpebras a se
abrirem — Reconhece?

Era uma foto de Harry. Calça jeans, camisa de bolinhas, blazer preto, botas e um coque, a pessoa
recortada ao seu lado na foto era Liam e pude reconhecer a frente da agência do FBI. Ele saiu desse
esgoto, subiu até a superfície e encontrou o meu esposo.

A raiva ferve em minhas veias.

— Como voc–
Lucian pressiona seu dedo em meus lábios e a náusea vem com a noção do sangue de Jéssica neles.

— Ele é ainda mais bonito pessoalmente. Me pareceu bem maior e mais suculento que você,
consigo imaginar com perfeição aquela carne pálida e macia dele se rompendo nos meus dentes,
ah, eu o comeria de todas as formas possíveis. — Lucian sorri e encaro seus dentes afiados como
os de uma verdadeira besta, ele empurra minha franja para fora da testa e se aproxima — Ele seria
o prato-principal e a coisinha dentro dele a sobremesa.

Ele sabe que tocou na ferida no momento em que a minha paralisia some pra dar lugar ao furor, ele
age rápido ao fechar os dedos longos na minha garganta, envolvendo meu pescoço em um aperto
sufocante e me pressionando contra a parede.

— Eu vou matar você. Então depois vou atrás dele, farei questão de saborear aquele corpinho
delicioso bem lentamente, talvez um dedo aqui, uma perna ali, só pra fazer durar, até o dia em que
vou poder me banquetear como um rei, e aí virá a vez do bebê e não pense que eu esqueci dos
outros dois, eles também estarão no meu cardápio. A escolha é sua, detetive, pode ser sensato e
andar na linha comigo, ou pode seguir sua querida amiguinha, mas uma coisa é certa, ou você diz
que não passa de uma cadelinha assustada ou eu me certificarei de que Harry diga.

Minhas mãos que lutavam contra as suas para se afastarem de minha garganta deslizam pelas
laterais do meu corpo em um claro sinal de desistência. Lucian entende o recado e afrouxa o
aperto.

— Eu sou... — Minha voz sai arranhada.

— Você é... — Me encoraja com animação.

Olho para baixo enquanto digo:

— Uma cadelinha assustada.

Lucian toca meu queixo, erguendo meu rosto e pisca seus longos cílios com tranquilidade ao
romper o meu espaço pessoal lambendo dos meus lábios o sangue que os manchara quando
pressionou o dedo ali.

— Eu ainda vou te matar. — Sussurro.

— É claro que vai.

Xx

— Louis Tomlinson, acorde! Nós temos visita. — Desperto em um átimo, pedindo a Deus para que
a tal visita não seja Harry. Pelo jeito ele me ouve e quem avisto na ponta da mesa de jantar em uma
parte desconhecida daquela "caverna do dragão" é uma frágil menina. Ela tem um longo e liso
cabelo castanho, olhos escuros e parece jovial demais, provavelmente na idade de Jéssica —
Hailee, diga olá ao Lou.

Hailee.

A menina com um hematoma na bochecha e o lábio inferior sangrando acena pra mim.

— Oi, Lou.

O rosto está pálido, abatido e fino demais, assim como as roupas sujas e não é difícil concluir que
ela não é nova ali, pelo contrário, aparenta estar há bem mais tempo que eu. Então havia uma
garota reserva.

Tento falar, mas ao invés de palavras saem grunhidos, de início não entendo o porquê e é quando
percebo novamente a focinheira atada ao meu rosto, não só ela como correntes me prendendo a
cadeira e outra mantendo meus pés juntos.

Lucian está arrumado como se estivéssemos tendo um verdadeiro jantar em família e


coincidentemente é sobre isso que ele fala em seguida.

— Querida, não precisa ser tímida, Louis será seu novo pai e assim como eu ele cuidará muito bem
de você. — Os olhos da garota dobraram de tamanho, temendo que eu fosse como ele. Me apresso
em balançar a cabeça, negando sua afirmação, mas Lucian se limita a rir e se levanta indo até
Hailee, puxando a tampa de uma bandeja prateada diante dela, uma generosa remessa de carne
bem grelhada é exposta, o perfume causa um revirar em meu estômago por soar delicioso, porém
aquele lado do meu cérebro que não esmorece pela fome e delírio nota a realidade.

Vejo a pobre menina salivar, o carinho do homem em seu ombro a incitando a comer e ela vai
como um animal privado de suas refeições por longos dias aceitando o que lhe é dado sem
questionamentos. O sangue vermelho escorre por entre os dedos dela e ela não percebe. Lucian
exala orgulho.

Então é essa a sua ideia.

Vamos ser uma família.

Ele nos deixa famintos para depois nos encher com carne humana para que nos tornemos monstros
como ele.

Uma linda família de canibais este é seu plano maníaco.

De forma alguma compactuaria com algo assim.

Acreditando ter obtido sucesso com Hailee ele se dirige até mim, remove minha focinheira e me
estende um prato semelhante. Ele repete o olhar caridoso e o carinho no ombro.

Eu sequer penso, apenas cuspo na sua cara.

— Hailee, você está comendo a carne de uma garota incrível que não merecia nada disso! — Grito
para ela do outro lado da mesa que imediatamente solta a carne e abaixa a cabeça vomitando no
chão. Isso não agrada nosso raptor.

O observo secar a saliva que escorre por entre suas sobrancelhas, vai até Hailee, eu não posso ver
direito, mas pelos sons ele a nocauteou. Filho de uma puta!

Então tudo flui rápido demais, em um momento estou preso na cadeira e no outro estou sendo
lançado na mesa, meu corpo caindo inteiramente sobre ela e é como se todos os meus membros
estivessem soltos, eu mal posso senti-los.

Eu estava anestesiado esse tempo todo.

Lucian adota a sua postura preferida, de assassino indiferente e se senta no mesmo lugar que
ocupava antes. Puxa sua refeição para si e começa a comer normalmente, cortando a carne de
Jéssica como se fosse a de um boi qualquer.

A mim basta olhar por canto de olho.


Ele bebe seu vinho e pega novamente seus talheres para cortar um novo pedaço, sua faca parece um
tanto estranha, como se fosse uma pequena serra.

— Eu fiz tudo o que eu podia por essa relação. — Começa, colocando minha mão em seu prato,
mas que porra? — Relevei sua rebeldia e as palavras rudes. — Prossegue desolado, meus olhos não
saem da cena dele empunhando o garfo e a pequena serra perto demais de meus dedos.

— Lucian!

— Eu dei tudo de mim, Louis! Me esforcei de verdade e acreditei que você pudesse me amar. Não
precisava ser desse jeito. — Ele faz o primeiro corte, é indolor, mas eu estou em pânico, ele segue
cortando.

— Lucian, caralho, para com isso. — Exijo histérico ao que ele vai serrando a porra do meu dedo
médio.

— Você pediu por isso, eu quis ser civilizado, mas você só entende a língua da violência. Tudo
bem, querido, eu vou dar o que você merece.

— Não, por favor, não faz isso. Eu te imploro, por favor não. — Suplico com a visão embaçada
por conta de algumas lágrimas que escapam contra a minha vontade.

— Oh, veja só que interessante, você não chorou quando a Jéssica morreu, mas agora chora por um
dedinho inútil. Tão egoísta, Lou. — Diz com uma voz afetada continuando a serrar. Eu não me
importo em implorar, assim como ele não se importa em me dar ouvidos e é agonizante vê-lo
arrancar meu dedo fora. Meu sangue escorre pela carne como um molho especial e ele lambe os
lábios, empurrando minha mão e cortando um pedaço daquilo que costumava ser o meu dedo e
devorando de uma só vez.

Ele mastiga soltando sons de satisfação.

— Eu sabia que você era delicioso, querido.

Foi a partir desse momento que eu me tornei menos humano.

Xx

O objetivo matar Lucian sei-lá-do-quê vai se tornando distante a medida em que eu vou
basicamente morrendo. Depois do que provavelmente seriam dias aprisionado naquele buraco a
minha desidratação devia ter alcançado níveis alarmantes.

Minha morte deveria ter sido instantânea com a hemorragia da decepação do meu dedo, não fosse
Hailee, que era estudante de enfermagem. A lembrança de Jéssica era inevitável, na verdade ela
estava em minha mente vinte e quatro horas por dia, toda vez que fechava os meus olhos era para
encontrar a ausência dos seus depois de arrancados por Lucian, de suas mãos buscando por mim,
do sangue que inundou toda a prisão.

Eu falhei com ela e se ela está morta agora a culpa é minha.

Isso vinha me consumindo.

Mal falava com a garota ao meu lado, ela ocupava a cela de Jess e se esforçava para trocar algumas
palavras comigo, ela era uma boa garota, mas eu não queria contato com ninguém, em absoluto.

A minha situação era ruim. Eu me sentia sem força alguma, meus principais ferimentos doíam
como o inferno e nada mais me incitava a buscar por uma solução para aquele problema, porque eu
havia simplesmente desistido.

Harry e as crianças ficariam bem.

Eles podiam viver sem mim.

Talvez a minha partida fosse melhor para todos.

Algo pequeno, macio e frio tocou minha pele e eu automaticamente gelei em receio, acreditando
ser Lucian e alguma de suas diversas perversidades.

— Você está com febre. — Evangeline diz num sopro de voz.

Ela veste branco e seus cabelos estão repletos de cachinhos, em suas feições há toda a fragilidade e
palidez que eu vejo em mim mesmo.

— Você é o anjo da morte que veio me buscar, então? — Digo rouco, parece que se passaram
séculos desde a última vez que falei.

Sua mão em minha testa desce devagar pela bochecha úmida de suor, a ponta de seus dedos
acariciam meus cabelos. As sobrancelhas retas e expressão endurecida nunca a fizeram tão
parecida com Harry quanto agora.

— Eu não sou um anjo, pai.

Pisco sonolento, tombando um pouco para o lado.

— E também não sou um fantasma.

— Você está morta e eu continuo te vendo, não existe outra explicação. Eu sou como o pirralho do
sexto sentido.

— Lembra de quando me deixou assistir com você e eu tive pesadelos por uma semana?

A lembrança se acende em minha memória.

— Como esqueceria? Seu pai ficou quase um mês sem falar comigo.

— Ele era exagerado. — Sorri com suas covinhas, ressaltando as sardas abaixo de seus olhos.

— Então se você não é um anjo ou um fantasma, você é...?

Eve dá um passo a frente, agora tocando meu rosto com ambas as mãos, o mesmo carinho terno
que ela adorava dedicar as pessoas ao seu redor é feito sobre minha pele.

— Eu estou aqui por você e pra você.

Encaro seus olhos verdes aguados pelas lágrimas que trilham um caminho tortuoso por suas
bochechas, ergo a mão para seca-las e o som estridente de disparos tomam meus ouvidos. Perto
demais. Ensurdecedor demais.

Tapo meus ouvidos, querendo privar minha audição de reviver tudo aquilo. E sem que eu me dê
conta estou chorando compulsivamente.

— Tudo bem, já passou. Eles não podem me machucar, eu estou segura agora. — Murmura,
puxando meu corpo amolecido para junto de seu pequeno corpo, minha cabeça desaba contra seu
peito silencioso sem a batida rítmica de um coração pulsante.

É quieto demais.

— Hold me close and hold me fast, this magic spell you cast, this is la vie en rose... — Estendo
meu olhar até a prisão ao lado onde Hailee está com as pernas esparramados, cabelos presos no
alto e batucando os dedos nas barras enquanto canta baixinho.

A ausência de quaisquer outros sons tornam impossível não ouvir seu canto calmo e doce, os dedos
de Eve correm por meus cabelos e outra voz abraça meus ouvidos.

— When you kiss me heaven sighs... — Harry canta, dando uma pausa para fazer o que acabou de
dizer selando nossos lábios. Seus olhos brilham mais do que as estrelas, não tenho dúvidas de que
todas as constelações o invejam naquele momento.

Era o nosso casamento, depois de todo um exaustivo, mas maravilhoso dia começando pelo tão
esperado "sim" seguido por uma festa cheia de familiares distantes, brindes, comidas e fotos,
acabamos por escapulir para o terraço. A voz da cantora no salão principal podendo ser ouvida
daqui de cima, Harry havia exagerado um pouco quanto a quantidade de vinho que podia ingerir e
eu não diria que ele estava bêbado, mas um pouco alegre e maleável. Doce ele sempre era.

Seus cachos outrora moldados em um topete elegante caíram até se tornarem aquela bagunça
costumeira por sua testa, o rosto arredondado e juvenil ainda mais fofo e corado e ele estava de
tirar o fôlego naquele smoking escuro com o blazer aberto, ele se pressionava contra mim
conforme dançávamos sob as estrelas e sua barriga inchada não me deixava esquecer o que tornava
tudo aquilo ainda mais especial.

Seus braços ao redor do meu pescoço, nossos narizes se tocando e sua boca roçando na minha
quando dizia:

— When you press me to your heart, i'm in a world apart, a world where roses bloom. — Cantarola
baixinho, sorrindo entre os selinhos que eu roubo ocasionalmente, meus dedos escorregam para
baixo de sua blusa e eu sinto Evangeline dando um chutinho.

— Eu te amo pra sempre, sun. — Confesso corando em timidez, ao que ele me dá mais um
beijinho de esquimó.

— Eu te amo pra sempre, moon. — Harry fecha os olhos e me puxa para um beijo de verdade.

— Give your heart and soul to me and life will always be... La vie en rose. — Sem que eu me dê
conta estou adormecendo ao som da voz de Hailee, com o carinho de Evangeline e sonhando com
Harry.

Tão fácil quanto eu adormeço, desperto. A voz de Hailee desapareceu, contudo não há silêncio e
sim o inverso.

Mas que escarcéu todo é esse?

Me forço a abrir os olhos e encontrar a última coisa que eu poderia imaginar, mais precisamente o
momento em que o pé de Hailee se choca com força contra o rosto de Lucian. O canibal cambaleia
e bate com as costas na parede, rosnando feito um cão raivoso.

A menina está ofegante e cheia de hematomas, encontro o mesmo molho de chaves que
anteriormente esteve em posse de Jéssica e sei que assim como ela, Hailee também tentou me
salvar. Lucian a encontrou antes.

— Hailee, sai daqui. — Grito pra ela, agarrando às grades com força e me pondo, a pulso, de pé.

— Mas–

— Fuja senão ele vai te matar e te comer como fez com as outras! — Não economizo na esperança
de que ela me ouça, ela se remoi por um curto período e então assente e salta para fora, adentrando
um dos caminhos tortuosos do bueiro.

Uma parte minha se alivia ao vê-la partir.

— Ótimo, eu estava mesmo precisando de uma caçada. — Lucian diz em tom áspero, trazendo
numa mão um longo e enferrujado facão e na outra sua imensa cabeça de alce. Ele a veste, se vira
para mim com os olhos demoníacos e parte atrás da inocente, me deixando só.

Eu não tenho forças.

Eu não tenho chances.

Foda-se!

Me lanço naquelas barras com toda a determinação que há em mim. Nem que seja a última coisa
que eu faça eu vou salvar aquela garota. Após o dia em que Lucian decepou meu dedo não se deu
mais ao trabalho de me encoleirar e por esse motivo não existiam mais amarras me prendendo, é
claro que minha perna seguia como um peso morto, mas não mais tão dolorida como antes e o
ferimento em minha mão era suportável o bastante. A minha perda grande de peso me fez capaz de
passar por aquele espacinho mínimo entre o ferro e o teto acimentado.

Prendi a respiração e murchei a barriga o máximo que pude, rastejando para fora. Eu mal pude crer
quando despenquei do outro lado, era quase que surreal.

Por um momento eu não consigo me mover. Atingido em cheio por todos os traumas sofridos nos
últimos dias. É tudo demais. Apesar de tudo eu ainda sou humano...

Então o animal em mim desperta.

Seja lá o que for isso me coloca de pé, eu consigo andar sem me importar em mancar ou gemer de
dor, eu marcho como um soldado determinado, passando pela mesa de facas sem me apropriar de
uma arma sequer. Eu não preciso de nada quando minhas mãos anseiam por fazer todo o trabalho
sujo.

O breu não me cega, os sons não me assustam e nem mesmo cem demônios poderiam me parar
agora.

Enxergo os chifres compridos, o braço longo e a lâmina estendida no ar, pronta para cortar e ela
vai. A uma fração de fazer o movimento tomo seu pulso virando de forma que o osso se parte, ele
pode ser grande e levar vantagem em questão de força bruta, mas ele não teve meu treinamento,
sem ataques covardes e amarras ele não é nada se comparado a mim.

— Maldito! — Lucian vocifera, a arma caindo de sua mão e estatelando-se na água rasa, ele se vira
para mim, segurando o pulso, seu pé se lança contra meu peito. Eu me precipito, imobilizando sua
coxa antes para cotovelar seu peito em cheio no coração, ele ofega e tomba para trás, ouço os
ruídos do que arrisco ser Hailee rastejando para fora da luta.
Mas Lucian permanece de pé, imponente como um gigante e impiedoso como a fera que é, ele a
puxa pelos cabelos. Ela grita. Torno a partir contra ele, desta vez ele é quem se precipita
esmurrando meu rosto, o golpe em cheio na cabeça me deixa desnorteado pra caralho, e pra
completar joga a garota em cima de mim.

Hailee está chorando e ferida e Lucian não está mais interessado em uma família. Ele quer nos
matar.

Recupera seu facão e vem novamente.

Hailee se aperta contra mim em pavor e eu nos jogo no chão quando ele ataca, a lâmina arranca as
pontas dos cabelos dela e eu a afasto quando sinto dedos se fechando na parte de trás da minha
cabeça.

É agora.

Quando ele me põe de pé, provavelmente para dilacerar minha garganta, passo o braço por detrás
dele, a visão por debaixo daquela máscara deve ser precária. Ah, otário!

Agarro com firmeza a gola de sua camisa e confiando que há uma mísera fagulha de força pra fazê-
lo, me impulsiono para frente, o puxando e fazendo com que ele passe por cima do meu ombro. É
como carregar uma montanha, mas ela enfim desmorona. Um dos chifres perfura meu ombro,
mesmo que tivesse atingido o coração aquilo não me deteria.

Como um tubarão eu persigo sangue.

Puxo a máscara revelando seu belo rosto imaculado, jogo o facão para longe. Dou a volta,
sentando em seus quadris, me certifico de quebrar o outro pulso.

O sangue escorrendo do corte em minha têmpora faz o declive da minha mandíbula até o pescoço e
trato de envolver minhas mãos na garganta de Lucian, seguro de que não haverá escapatória o puxo
para cima e então o empurro com tudo, a cabeça martela contra o piso duro. Eu repito a ação uma
vez atrás da outra, o sangue começa a vazar da parte de trás, o som de seu crânio se esmagando no
cimento é como música para os meus ouvidos.

Mas me parece muito pouco.

— Hailee. — Chamo na quietude.

— S-sim?

Olho para onde ela se encolhe.

— Pode buscar algumas correntes para mim?

Ela assente.

Xx

Dez minutos depois estou distante, admirando o despertar vagaroso do canibal desprezível a minha
frente. Há correntes transpassadas por seus braços e pernas, prendendo-o a mesma cadeira que eu
estive atado no dia em que comeu meu dedo.

Mantenho meu semblante calmo, indiferente como ele faria, braços cruzados e quadril
descansando na sua mesa de chacina.
— O-o quê? — Balbucia desnorteado, ele conseguir falar é no mínimo desanimador depois de
tantas pancadas na cabeça. Lucian é capaz de levantar o rosto, o azul translúcido de seus olhos se
conectando aos meus — Onde... Onde eu estou? Quem é v-você?

Deixo que um sorriso cresça em meus lábios.

— Você está no inferno. — Digo rouco, brincando com o punho de um de seus punhais — E eu
sou o diabo.

Ele gargalha alto.

— Muito engraçado, então, a polícia já está a caminho? Sei que vou me divertir muito no hospício.

Franzo as sobrancelhas, Hailee prossegue roendo a unha ao meu lado.

— Não, eu fiz uma promessa e vou cumprir.

— Hum, fez, é? — Torce os lábios — Oh, sim, aquela historinha de me matar? Eu fiz a lição de
casa, detetive, sei que você é tão entediante quanto uma velinha, você tem uma ficha impecável.
Nunca matou ninguém e nem vai.

— O que te faz pensar que eu não vou fazer agora? — Endireito minha postura, olhando
diretamente para ele.

— Bem, vejamos, você é um policialzinho medíocre, cheio de ideias estúpidas que acredita na
porra de um mundo melhor onde a justiça funciona de verdade. Então não, você não vai me matar.

Não lhe dou uma resposta de imediato, normalmente ele estaria certo, era exatamente o que eu
faria. Desde criança fui incitado a acreditar que a justiça nunca falha, que policiais são fiéis
cumpridores da lei e matar é desumano e desprezível, mas como confiar que ele teria a punição
merecida? Lucian não parecia preocupado ou temeroso, muito pelo contrário.

Eu seria capaz de liberar alguém que sequestrou inúmeras jovens inocentes, as torturou, assassinou
e devorou, uma destas diante dos meus próprios olhos e que ainda por cima me aprisionou,
desmembrou e ameaçou aqueles que me são mais importantes e acreditar que a justiça de fato seria
justa?

A resposta era clara.

Eu já não era o mesmo.

Empunhei aquele mesmo facão com o qual perseguiu Hailee como uma presa indefesa.

— Você não vai... — Ele começa a dizer.

— Não vai querer ver isso. — Falo para a menina que engole em seco e balança a cabeça em
negativa.

— Não, eu preciso, eu quero ver. — Garante com a voz tremida.

Suspiro aceitando sua decisão.

Me volto para Lucian que tem o rosto contorcido em desagrado, ele realmente não botava fé em
mim.

— Me matar não te torna melhor que eu.


— Eu não estou interessado em ser melhor que ninguém. — Dou de ombros, dedilhando a lâmina
afiada, num toque superficial ela abre um pequeno corte em minha pele que me causa
contentamento. Sugo o filete de sangue que expele do meu dígito e a sensação de poder naquele
momento me agrada muito.

Ele range os dentes, se debatendo, o que não causa efeito nenhum.

— Isso vai foder com você, precisam de alguém pra culpar. Eles vão querer respostas!

— Eles não terão, não terão nada. Nenhum de nós falará o seu nome, será como se você nunca
tivesse existido.

Ele nega.

— Eles são bons, vão encontrar meu corpo e saberão que foi você. — Ameaça.

Rio despreocupado, me sentindo atraído pelas orbes escuras do Alce, toco a pelugem densa e isso
pode ser interessante.

— Eu vou garantir para que não haja corpo algum. — Vejo de canto de olho que ele estremece,
bom. Visto sua máscara, o chifre esquerdo ainda manchado pelo meu sangue e a ponta afiada do
facão arranha a parede do esgoto quando começo a andar em sua direção.

Posso ver Evangeline ao lado dele, negando com a cabeça com o rosto choroso, mas tudo o que
existe pra mim é a ideia quase doentia de fatiá-lo.

— Talvez você não seja um caso perdido, detetive. Há mais de mim em você do que podíamos
imaginar.

Não lhe dou ouvidos.

— Talvez. Agora me diga, quem é a cadelinha assustada aqui? — Seu sorriso cai e o meu cresce
por debaixo da máscara.

Então eu mergulhei de cabeça na escuridão.


│10│fornax

São flashes e mais flashes.

Sirenes zumbindo em meus ouvidos.

Tenho a sensação de estar voando quando me movo e meus pés não tocam o chão.

Com os olhos fechados apenas uma singela dúvida prevalece; paraíso ou inferno? Qual o veredito?

Quando se é um agente federal, não são raras as vezes em que essa sentença ilustra seus piores
pesadelos. Não foram poucos os momentos em que eu parei de frente a um espelho e me fiz esse
questionamento repetidas vezes, encarando meus olhos como se cada gota de sangue que eu
respinguei fosse uma mancha em minha alma, como se cada cicatriz em meu corpo fosse capaz de
sussurrar meus pecados. Por vezes, enquanto fitava meus próprios demônios tatuados à sangue em
minha pele, eu sentia as balas queimando de novo, como se fosse um sinal: não há paraíso para
alguém como Louis Tomlinson.

A constatação de que talvez eu ainda não tenha encontrado o fim do meu caminho surge com uma
nova onda de luzes esbranquiçadas e sendo refletida diretamente em minhas pupilas. Solto um
resmungo fraco, que consegue uma reação daquele que testa meus reflexos. A pessoa toma uma
pequena distância, guardando o objeto e então sou capaz de abrir os olhos propriamente e encarar o
que há a minha frente.

A enfermeira, não passando da casa dos vinte com seu sorriso metálico, rabo de cavalo e mãos
suando em nervosismo sorri fraquinho fazendo menção de me tocar e parando de repente.
Questiono seu gesto e então de canto de olho encontro o motivo para tal.

Um homem que eu nunca vi na vida está de prontidão em frente a porta, uniformizado, com colete
a prova de balas, coturnos lustrosos, cara fechada e uma bela arma de cano longo na cintura. Eu
tenho guarda costas agora, pelo jeito.

— D-Detetive. — Diz com sua voz miúda, sem se aproximar — Como se sente?

— Bem, eu acho. — Estranho o ruído quase mudo que sai da minha boca quando respondo em
lugar da minha voz altiva e estridente.

— Certo, o médico já virá vê-lo.

Dr. Bassett vem logo em seguida com toda a jovialidade e energia que me irritam. Eu não gosto de
jovens, nunca gostei. Prefiro a calmaria, frieza e bom senso. Mas ele não é de todo ruim, me
informa sobre o estado crítico no qual fui resgatado – ele não se aprofunda, porém deixa
subentendido que Hailee recuperou meu celular e encontrou sinal naquele inferno subterrâneo. Não
foi uma descoberta muito agradável saber que minha estadia na casa feliz do canibal promíscuo
durou seis dias.

O que me rendeu o dobro de tempo internado com uma profunda desidratação e provavelmente
oitenta por cento do meu corpo era puro soro atualmente, a ferida em minha perna passou por uma
microcirurgia para restabelecer as ligações nervosas e fui submetido a uma porrada de antibióticos
para combater a infecção que a falta de cuidados na ferida aberta adquiriu, fora isso me restavam
apenas algumas leves escoriações, um pulso luchado que eu sabia bem como havia conseguido, e é
claro, um dedo a menos.
Não havia o que fazer.

Não era como se eu estivesse em um bar com amigos e acidentalmente decepasse o dedo em uma
briga besta, onde chegaria aqui cercado de caras idiotas com um contêiner de gelo e um membro
para ser reposto, longe disso, meu dedo jaz no estômago de um maldito defunto esquartejado.

Mas isso não é importante.

Eu daria quantos dedos, braços, o que fosse necessário para ter o prazer de deslizar a lâmina mais
uma vez por sua carne, ouvi-la rasgar lentamente enquanto se abre, ver o sangue escuro jorrar,
aumentando o fluxo conforme a lâmina afunda seu trajeto mortal, assistir lentamente a mesma se
desprendendo de seus ossos... E não! Isso não aconteceu! Nunca aconteceu! Seja lá o que for, está
esquecido. Não sou um assassino, sou um homem de bem que fez o que devia fazer e eles jamais
entenderiam. Jamais.

Encaro as ataduras que envolvem minha mão, brancas feito neve, destoando da feiura que me
cercou dentro daquele cativeiro. Dr. Bassett está finalizando seu extenso monólogo, assimilo
pouquíssimas coisas, uma destas sendo "[...] seu psicólogo está a caminho..." E "[...] Problemas
com a família..."

A última sendo capaz de chamar minha atenção.

— O que tem minha família? — Inquiro rouco, porém decidido.

Bassett sorri com seus dentes de comercial de pasta de dente, a pele morena reluz feito cobre
polido e os cabelos negros e armados são dignos de um doutor bem sucedido como ele, parece
estar tendo o seu momento quando enfim lhe dirijo a palavra desde o meu despertar.

— Bem, Sr. Tomlinson, com esses longos dias desde seu desaparecimento muita coisa pareceu
sumir ao controle de seus familiares. Eu entendo a pressão, deve ser terrível descobrir que alguém
amado simplesmente desapareceu. Seu marido foi o mais afetado com tudo isso.

Meu marido.

Meu peito se aperta quando penso em Harry.

— Ele-ele está esperando um bebê. — Murmuro fraco — Ele perdeu o bebê?

Dr. Bassett pisca confuso, o que me leva a pensar que ele não se referia a isso. Alívio transborda
em minhas veias.

— Não. Ele está bem. Fora uma ou outra queda de pressão, está tudo okay. Me refiro mais a
relação tórrida entre ele e sua...

De repente a porta foi aberta, duas enfermeiras falando sem parar e uma figura bem familiar entre
elas revirando os olhos e jogando seu longo cabelo castanho enquanto ajeita a bolsa da Gucci no
ombro.

— Senhora Tomlinson... — Mamãe lhe lançou um olhar mortal antes que ela continuasse.

— Senhora Tomlinson é aquela prostituta arrogante que meu filho chama de marido, eu sou a Sra.
Deakin.

Não é preciso dizer com quem Harry estava em pé de guerra. Eles se estranhavam desde sempre.
O que era bem estranho na minha opinião, Jay gostava de todo mundo e todo mundo gostava de
Harry. Simplesmente não se encaixava toda essa situação.

— Doutor, dissemos que ela deveria aguardar, mas ela foi entrando.

— Senhora Deakin, ainda não está no horário de visitas e–

O agente de vigia tremeu a mão sobre sua arma quando minha mãe se jogou em cima de mim, lhe
lancei um olhar de reprovação e ele baixou a cabeça em submissão.

— Oh, meu bebê! Meu pobre bebezinho, eu vou pegar esse monstro que fez isso com você e vou
deixá-lo em pedacinhos. — Ela sussura em meus cabelos, beijando meu rosto inteiro. Pedacinhos,
bem, foi exatamente o que eu fiz.

Após diversos pedidos para que Jay se retirasse eles se deram conta de que ela não sairia enquanto
não quisesse. Então apenas a orientaram para que não se demorasse e nos deixaram, o agente
saindo relutante.

— Eu já liguei pro Wes em Hollywood, disse que pode fazer uma prótese em menos de uma
semana. — Olho para a mulher andando de um lado para o outro, torcendo o nariz para as flores na
cabeceira. Orquídeas só podem ter vindo de Anne. Johanna odeia Anne.

— Não preciso de uma prótese, foi só um dedo. Vou continuar trabalhando normalmente. — Digo
indiferente, apertando o botão para fazer a cabeceira da cama levantar um pouco.

Não percebo Jay parando no mesmo lugar, repousando as mãos nos quadris.

— Não pode estar falando sério! Louis, você acaba de perder uma parte de si, assim como podia ter
sido devorado por um maníaco, tudo por conta deste maldito emprego. Eu aceitei quando você era
mais novo, mas não vou mais tolerar que você continue se arriscando.

— Eu tenho trinta e três anos, não é como se você pudesse controlar alguma coisa na minha vida.

Jay levou a mão ao peito, estupefata.

— Isso é jeito de tratar sua mãe? Alguém que te ama incondicionalmente e só se preocupa com seu
bem estar.

Ela sabia como me sensibilizar, desviei o olhar, focando na maçaneta da porta do banheiro. Me
coçando para perguntar.

— Bom, Stanley abriu um escritório no centro de Seattle, ótimo lugar e precisa de bons advogados,
acredito que–

— Eu não quero ser advogado! — Disse de repente com a voz impaciente.

— Você é um advogado, querido. Todos sabem que essa coisa de polícia é passageiro, ao menos
deveria ser, eu me lembro como estava propenso a sair do departamento antes de conhecer ele.

— Não comece a ataca-lo. Na verdade, me diga onde ele e as crianças estão.

— Não pode estar me perguntando sobre aquela criatura.

— Sim, eu estou. Ele é meu marido, pai dos meus filhos, que a propósito está esperando o meu
bebê. Eu gostaria de ter marcado um jantar pra te contar, mas duvido que você viria. — Digo
entredentes, captando a atenção dela junto a uma expressão de horror e surpresa e tudo grita uma
única coisa: Ela não sabia do bebê!

— Como você pôde? — Quando se dirige a mim a voz dela sai despedaçada.

— Mamãe...

— Eu pensei que você fosse cair em si, mas não! Esses dias sem saber de você foram um inferno e
tudo só piorou com aquela "pessoa" por perto. Ele tem algum problema, muda de uma hora pra
outra e é péssimo com as crianças, oh, coitados daqueles meninos e pra completar tem a mamãe
dele que o trata como um bebezinho. Está escancarado que ele não é bom, tampouco digno de
você. — Ela desabafa de uma vez — Aquele garoto, o Clifford, aquele sim era bom. Foi o que eu
disse a ele.

Engasgo com a minha saliva.

— Você viu o Michael?

— Claro, pedi que ele viesse te ver.

— Você não fez isso. — Gemi desolado.

— Fiz sim. — Garantiu com orgulho de si — E pra variar Harry surtou e foi embora. Já faz mais
de um dia que aquele desnaturado não aparece. Deve estar ocupado fazendo as unhas e esquecendo
de trocar as fraldas dos filhos.

Encaro o teto pensando no que eu fiz para merecer uma coisa dessas.

— Eles estão sendo desfraldados.

— Ainda? Eles já vão fazer quatro anos!

— Três, mamãe.

— Não importa, eles são tão atrasados. Só pode ser o genes do outro lá, não é a toa que ele e a irmã
se fingem de artistas já que não tem capacidade para terem empregos de verdade.

— Sinceramente, você veio aqui só pra falar mal do Harry? — Levanto a cabeça do travesseiro
para encontrar seu rosto contorcido em desgosto porque na sua linda cabecinha eu quem estou
sendo o rude da situação. Ela prende os cabelos no alto e toma alguns segundos antes de caminhar
em minha direção, sentando-se no beiral da cama e envolvendo a minha mão esquerda e intacta.

— Você é meu filho e eu te amo! Não importa se você tem dez ou cem anos, sempre me
preocuparei com você. — Pela primeira vez não capto o deboche ou veneno em sua voz desde sua
chegada, é claro que ela está sendo sincera — Louis, eu só quero o seu bem. Você merece ser feliz
e você não é e nunca foi feliz ao lado de Harry, pode se enganar o quanto quiser, mas vocês dois
juntos nunca foi uma coisa boa... Ele não é uma coisa boa.

Não resisto em bufar alto e revirar os olhos.

— Essa sua implicância...

— Não é implicância, você sabe disso!


Quando aquela desgraça aconteceu, quando você ficou meses preso no hospital eu estive aqui,
esquecendo todas as desavenças pra ficar com vocês. Por estar em coma você não pode ver, mas eu
sim e eu vi a indiferença com a qual ele te olhava toda vez que vinha te visitar, como se você fosse
um ninguém pra ele. Harry sequer te tocava. Uma vez o peguei com a mão em seu pescoço, ele
tentou disfarçar, mas eu sei o que ele queria fazer... E antes disso, quando Spencer e Blake
nasceram, bem, se haviam dúvidas de que ele não valia nada estas desapareceram quando ele
simplesmente soltou o Spencer no chão com apenas dois meses, foi um milagre o menino não ter
morrido.

— Mãe, sobre isso você tem que entender que ele estava em um momento difícil e é normal que ele
agisse assim comigo, afinal a responsabilidade pelo que a aconteceu foi minha e sobre o Spencer,
Harry se culpa por isso até hoje, foi um acidente.

Sua expressão endureceu ainda mais e seus dedos foram se desvencilhando dos meus, como se não
houvesse mais sentido em manter o contato.

— Ah, você se cega totalmente em relação a ele. — Suspira, porém ainda persiste em tentar me
convencer — Não me surpreenderia que você criasse outro filho dele.

Não, aquela história de novo não!

Em sua mente surtada ela havia se convencido de que Evangeline não era minha filha. Ela nasceu
antes dos nove meses, eu não estava presente, no laudo médico consta que ela era um bebê
prematuro, pra Jay era um bebê perfeito com seus nove meses completos e nada meu,
principalmente o DNA.

Era absurdo e eu não tinha cabeça pra lidar com uma coisa dessas agora, definitivamente não
agora.

— Eu preciso ficar sozinho. — Peço com a voz baixa, me encolhendo entre os lençóis. Os bipes na
máquina ao lado soam mais altos.

— Filho...

— Eu mandei você sair! — Grito irritado quando ela não me dá ouvidos da primeira vez.

Jay aperta seus olhos. O alerta perigo brilhando em letras garrafais, mas eu não volto atrás e nem
peço desculpas. Eu só não quero aborrecimentos.

— Nos vemos mais tarde, querido. — Ela diz por fim, pegando sua bolsa e se inclinando para me
dar um beijo na testa antes de sair batendo a porta as suas costas.

Não perco meu tempo encarando o quarto vazio, ou me remoendo pelos meus pecados. O meu
coração não lateja de saudades pela minha família. Eu simplesmente não sinto nada, apenas encaro
o teto, arranhando as ataduras em minha mão direita e revivendo a sensação de retalhar Lucian
incansavelmente.

Se um sorriso brota no meu rosto ninguém precisa saber.

Xx

Os dias se arrastam preguiçosamente enquanto continuo internado. A comida é péssima, eu estou


irritado e a ponto de arrancar todas aqueles fios do meu braço e voltar para o trabalho. A televisão
desligada e a ausência do meu telefone só me deixam com a pulga atrás da orelha em tempo
integral, tem algo acontecendo e estão escondendo de mim.

Depois de algumas dúzias de ameaças o meu então guarda costas que eu descobri se chamar,
Jonah, me dá um tempo a sós, onde eu posso refletir comigo mesmo. Olhando para o nada e
pensando em tudo ao mesmo tempo, no processo acabo adormecendo, mas quando acordo é como
se estivesse em casa, em uma manhã de domingo. Escuto Harry e Spencer, parece distante, no
entanto sei que eles estão bem aqui.

— Spencer, você já está me tirando do sério! — A voz grave de Harry pesou em meus ouvidos
junto a um sotaque leve e esquisito. Era evidente que ele estava bravo, nem de longe aquele era seu
tom natural.

Ouvi passinhos apressados, o lençol que envolvia minha cintura sendo puxado e então passos bem
mais pesados.

Spencer gritou.

— Não! Solta! Solta! — Eu nunca tinha ouvido meu filho berrar daquele jeito. Ele parecia
apavorado.

Me forcei a abrir os olhos, mas até minhas pálpebras pesavam naquele momento.

— Me solta, eu quero o papai. — Soluçou.

— Spencer, eu sou seu papai. — Harry disse com a voz mais branda.

— Não, não é.

Então ele deve ter sido capaz de escapulir dos braços do pai para correr até minha cama
novamente. Ouvi os passos de meu marido, mas antes que ele o alcançasse, envolvi o pulso fino
agarrado ao meu cobertor. Meus olhos se abriram, embora que pouco, para encontrar o oceano
cristalino nos olhos de Spencer.

O puxei para cima e ele se agarrou ao meu pescoço.

— Papai, papaizinho. — Murmurava contra meu ombro, choramingando. Com a minha mão não
imóvel acariciei suas costas e o apertei com mais afinco. Eu mal podia acreditar que depois de
mergulhar tão fundo no inferno estava de volta a superfície, tendo um anjo em meus braços.

Beijei seus revoltos cabelos castanhos e ele suspirou manhoso.

— Tudo bem, filho, eu voltei e não vou a lugar algum.

Spencer afastou o rosto para me encarar.

— Fica pra sempre? — Uma lágrima deslizou por sua bochecha. A sequei com o polegar.

— Pra sempre.

Então ele, enfim, sorriu.

Quando meu filho parecia mais calmo e dócil em meus braços ergui os olhos para Harry que tinha
os braços cruzados sobre o peito, calça e casacos da Adidas preto e um coque com uma faixinha
vermelha e talvez fosse todo o tempo longe, ou sei lá o que, mas em toda a minha vida eu nunca
me senti tão apaixonado por ele quanto naquele momento apreciando seu rosto tão repleto de
traços harmoniosos, em seus grandes olhos esverdeados varrendo cada pequeno canto do quarto
como se tudo ali fosse deveras interessante, em sua boca carnuda se movendo levemente em seus
diálogos mentais e em seu cenho se crispando por consequência das ondas de pensamento que
dominavam sua linda cabecinha. E se me faltavam motivos ou haviam dívidas, agora eu sabia,
sabia que não matei e esquartejei, sobrevivi e lutei até o limiar das minhas forças não para vingar
Jesse, ou para salvar a mim e Hailee, eu fiz tudo o que fiz pra voltar pra ele.

Por ele.

Só havia um lugar no qual eu me permitiria morrer e este lugar era em seus braços.

Eu só morreria quando ele me desse sua absolvição.

Eu era dele, de qualquer forma.

— Como se sente? — Harry foi o primeiro a iniciar o diálogo.

— Bem, na verdade, ótimo. — Respondi sincero. Minha pele formigava em anseio pela sua. Por
mais lindo que ele estivesse de moletom e todo embrulhadinho, eu o queria nu, não para fins
sexuais, mas para me certificar de que Lucian não o tocou, de que ninguém o tocou e ele
continuava exatamente como eu deixei. Também queria poder ver sua barriga, toca-la, beija-la e
perguntar a Leslie se estava tudo bem lá dentro. Eu queria tanto... No entanto Harry deveria estar
há uns três metros de mim, evitando me encarar e sem qualquer demonstração de emoção.

Ele não estava feliz?

Ele não me queria de volta?

Ele não me ama mais?

Eu poderia enlouquecer com qualquer uma destas possibilidades.

— E você?

Harry piscou, surpreso por eu perguntar.

— Foram dias difíceis, mas nós estamos bem. — Diz com um sorriso no rosto, tocando seu ventre
e eu derreto por completo.

— Eu posso...?

Automaticamente suas sobrancelhas se franzem como se eu tivesse pedido metade de seu doce
preferido e não para tocar o nosso filho. Ele ponderou por longos instantes até começar a caminhar
em direção a minha cama parecendo subitamente incomodado com isso, a carranca aumentando ao
vislumbrar Spencer tão a vontade no meu colo, brincando com a gola da camisola hospitalar.

Quando o tive perto o bastante fiz menção de colocar a mão por debaixo do moletom, afinal todo
aquele tecido não era o que eu queria sentir, porém ele firmou os dedos na barra do casaco me
obrigando a tocar superficialmente mesmo.

— Você está chateado. — É a única explicação para seu comportamento arisco. Acaricio sua
barriga por cima da roupa e olho para seu rosto, esperando por um sorrisinho talvez, algo como:
que bom que você está vivo, imbecil. Mas não. Ele não me encara, na verdade se mostra bastante
desconfortável. Eu me sinto como um estranho e não seu marido.

— Terminou? — Pergunta quando minha mão permanece parada.

A recolho, assentindo com a cabeça.

— Onde está o Blake?


— Com a minha mãe. Ele está resfriado. Spencer não parava de chorar chamando por você, foi por
isso que nós viemos.

— Então você só veio por causa dele? Ele era o único com saudades, Harold?

Ele bufou, resmungando para si mesmo.

— Dette er ikke mitt navn.— Disse em um idioma incompreensível.

— O quê?

— Está ficando tarde e Spencer também não tem passado bem. É melhor levá-lo pra casa.

Concordei. Spencer estava sonolento e a cabeça caiu em meu peito quando tentei move-lo, Harry
teve a proeza de me ajudar, se inclinando para toma-lo em seus braços e foi quando a enorme
muralha que parecia ter sido erguida entre nós foi ultrapassada, sua bochecha estava próxima da
minha boca e o coque cutucou meu nariz, meus dedos serpenteiam pela pele exposta na base de sua
coluna quando o moletom desliza para frente e o sinto se arrepiar em meus dedos.

Seus braços já estão envolvendo Spencer e retiro minha mão de seu repouso para cavar em sua
nuca. Alinho nossos rostos e ele não recua, o seu cheiro me deixa ensandecido e em questão de
segundos a sua boca está na minha.

Eu quero que seja intenso.

Quero que seja quente.

Que registre toda a saudade, todo o amor que eu sinto por ele. Contudo esse breve selar não é
capaz de dizer nada quando Harry se desvencilha com a cabeça baixa, apenas segurando nosso
filho e se afastando de mim. Ele caminha até a porta, aninhando o pequeno em seu ombro, e a abre.

— Me diga que vai voltar mais tarde. — Solto atordoado por ter de vê-los partir.

— Eu volto. — É tudo que diz, saindo.

— Eu te amo. — Grito e a porta se fecha.

Quando o entardecer chega, Harry não vem com ele.

Em seu lugar surge alguém bem parecida, Gemma chega puxando o leito vazio para fazer uma
super cama enquanto coloca a trilogia do Senhor dos Anéis para passar no notebook dizendo que
aquilo fará com que eu me sinta bem melhor. Indo contra as normas do hospital
ela me dá chocolate e fala sobre estar de paquera com Ashton via Skype.

Na metade das Duas Torres encontro coragem para perguntar sobre Harry.

— Os meninos estão bem ruinzinhos, mas ele mandou dizer que te ama.

— Mentirosa!

Gemma revirou os olhos, se aconchegando mais em seu travesseiro.

— Você sabe que ele ama.

Não, eu não sabia.


— E me mandou te dar isso. — Ela deixa um beijinho singelo em minha bochecha voltando a
prestar atenção no filme. Porém, minha cabeça está distante.

Harry não voltou a dar as caras no hospital.

Anne apareceu certa manhã com as crianças, eles não estavam mais gripados e usavam o uniforme
da escolinha.

Os dois estavam falastrões e ela tirou algumas fotos, quando estavam de saída cruzaram com
Hailee que também veio me visitar, ela trouxe um buquê de rosas vermelhas e seus pais estavam
presentes. Eles devem ter me agradecido umas cem vezes por salvar a filha deles, ela estava quieta,
amuada...Traumatizada.

Enquanto seus pais e Anne trocavam algumas palavras ela se aproximou de mim, envolvendo
minha mão esquerda.

— Você me salvou.

— Nós nos salvamos. — Apertei seus dedos.

— O que acontece agora? Precisamos contar tudo? Você vai pra cadeia?

— Apenas não se preocupe.

Naquela tarde Hailee foi interrogada.

Ela me ligou para dizer que não havia dito nada. Ela contou para Mitch que se lembrava de ter sido
mantida em cativeiro, da fome e do medo, o raptor era como uma imagem disforme e num belo dia
ele resolveu nos abandonar.

Talvez você se pergunte o porquê de não poder dizer que eu matei um maldito serial killer canibal.
A resposta era bastante simples, o que eu fiz não foi em legítima defesa, meu pai é um soldado, eu
tenho treinamento militar e também sou um federal. Eu já havia conseguido render Lucian, quando
o tive preso a cadeira poderia ter escapado, chamado as autoridades e agido da maneira correta,
mas ao invés disso eu matei um homem desarmado e sem motivo algum eu cortei pedaço por
pedaço dele e espalhei ao longo do esgoto. Pedaços tão pequenos que são impossíveis de serem
encontrados a menos que você saiba exatamente onde procurar. Então, resumidamente, eu sou um
assassino.

Contar o que eu fiz me coloca automaticamente na cadeia.

Em outras palavras era totalmente possível que eu e Andrômeda dividíssemos a mesma cela
durante a perpétua.

E como era de se esperar eu fui o próximo.

No lugar de Rowland, o meu psicólogo e de Harry foi quem deu as caras. O doutor Prendergast
estava muito bem, sentado na poltrona ao lado da minha cama, com sua pasta preta aberta sobre o
colo e a caneta girando entre seus dedos.

Me lança um olhar simpático do tipo: hoje eu consigo te fazer abrir o bico.

Não mesmo! Penso comigo mesmo.

— Como se sente, detetive? — Indaga austero e profissional como sempre. Era um dos muitos
motivos pelo qual eu não conseguia me abrir com ele, se excluísse o fato de que eu não era de me
abrir nem com a minha mãe, toda a sua formalidade, me dava a sensação de estar diante de um
padre. Eu nunca gostei de confissões, de padres e se alguma vez pisei em uma igreja não faço
questão de lembrar.

— Surpreendentemente vivo seria uma boa resposta para sua pergunta, doutor.

— Sabe que não precisa me chamar de "doutor".

— Foi você quem começou com o "detetive".

Ele sorri de lábios fechados se dando conta do erro.

— Tem razão, falha minha. Me parece bastante atento, Louis.

— Ainda estou em forma, eu acho. — Brinco com meus dedos sobre o estômago me perguntando
quando enfim poderei chutar a porta deste quarto e voltar ao trabalho.

— Definitivamente. Quando você estava dormindo este quarto ficou repleto de flores com desejos
de melhoras, seus colegas de trabalho ficaram muito orgulhosos de você. Imagino que esteja louco
para voltar ao trabalho.

Trabalho, era por onde ele ia começar, espertinho.

— Você sabe, eu gosto do que faço.

— Eu sei. — Gira a caneta, interrompe o ato para coçar a barba escura — Embora tenha se
arriscado mais do que o normal desta vez. Foi realmente assustador saber que havia entrado em um
esgoto atrás de um serial killer em potencial com nada além de um revólver.

— Besteira! — Suspiro entediado.

— Como assim?

— Nem um civil cometeria a loucura de se arriscar daquele jeito contando com uma única arma.
Eu levo comigo no mínimo seis.

— Seis? — Sua boca se abre em um círculo perfeito — Isso é muito. Ele foi astuto em desarma-lo
completamente. — Dou de ombros — O considerou alguém inteligente? Acredita que ele soubesse
o que estava fazendo?

Novamente dou de ombros.

— Eu estive a maior parte do tempo desacordado. Não sei dizer se ele era isso ou aquilo.

— Mas você estava acordado quando... — Adam usou a caneta para indicar minha mão enfaixada.

— Não, não. Ele fez quando eu estava dopado.

Adam franze as sobrancelhas, rascunhando algo em suas folhas.

— Foi misericordioso da parte dele, visto que a tortura teria sido insuportável caso o tivesse
obrigado a presenciar a decepação de um membro seu.

Engulo em seco enquanto assinto.


Misericordioso, urgh, me sinto enjoado.

— Você viu o que ele fez com a garota, a Jéssica?

Apenas de ouvir seu nome eu tremo em remorso e agonia.

— N-Não. — Minha voz sai vacilante.

— Quer dizer que a interação entre vocês foi mínima? E os únicos ataques que ele lhe desferiu
foram físicos quando você se encontrava inconsciente?

— Exatamente.

Adam desvia o olhar de suas anotações para me encarar diretamente, em seus olhos não há
julgamento, mas a descrença em tudo o que eu venho dizendo é gritante.

— Sabe que não tem nada de errado em ser vulnerável. Admitir que alguém te machucou e
assustou não o torna fraco. Onde quer que esse criminoso esteja ele não pode mais te ferir.

Meu humor esfria.

— Ninguém me feriu. — Meu tom amargo atinge Adam em cheio que fecha sua pasta e corre os
dedos pelos cabelos.

Ele sabe que não vai conseguir nada.

Observo em silêncio ele recolhendo suas coisas. Se aprontando para partir.

— Você pretende conversar com o seu marido sobre o que aconteceu?

Me remexo desconfortável. Eu só quero que isso acabe! Vá embora, me deixe em paz.

— Poderia enfiar uma faca no peito dele. — Alguém diz.

Procuro com os olhos, mas não encontro ninguém além de nós dois.

Adam Prendergast continua a espera de uma resposta e eu simplesmente digo:

— Eu posso lidar com isso sozinho.

Não era o que ele queria ouvir.

Muito menos o que eu deveria dizer.

— Você alguma vez já parou para pensar que talvez o Harry também esteja passando por uma fase
difícil, que ele tenha algum problema realmente sério que ele não pode lidar sozinho, mas se vê
obrigado a fazê-lo porque é assim que você faz?

Touché.

Ele se prepara para sair, parando à porta.

— Não é verdade, o Harry está bem. — Digo mais pra mim mesmo do que pra ele.

— Claro, assim como você está bem. Estão todos bem. — Ele responde em ironia — Até mais ver,
detetive.
Quando a porta bate eu me vejo no escuro, mesmo que ainda seja dia lá fora. Fecho os olhos,
recostando a cabeça no travesseiro dizendo baixinho:

— Nós estamos bem.

E pode ser impressão, mas não é apenas a minha voz que ouço.

Xx

Semanas mais tarde eu recebo a notícia que mais queria ouvir.

Estou de alta!

Os dias aqui pareceram uma eternidade, ao menos não fui totalmente renegado pelo meu marido
que passou a dormir e amanhecer no hospital comigo, embora tomássemos o café da manhã em
silêncio e ele partisse com um "tchau" e um selinho rápido, por hora estava ótimo pra mim.

Naquela manhã de quinta feira eu praticamente saltei da cama e por isso quase precisei ser
internado novamente. A ferida em minha perna estava cicatrizada e os pontos haviam sido
retirados há mais de uma semana e meia, contudo precisaria de mais algumas semanas de
fisioterapia e um novo adereço ao meu estilo.

— Fica bem em você, quer dizer te deixa parecido com um homem da máfia, mas caiu como uma
luva. — Liam apoiou o quadril contra minha cama, os braços cruzados e um sorriso maroto no
rosto.

— Eu me sinto ridículo. — Bati a bengala no chão dando mais uma volta pelo quarto.

— Claro que não, o Harry vai adorar.

— O Harry me odeia.

Ele discorda.

— Ele só está te dando um gelo, bem merecido, aliás. Se fosse comigo a Cheryl teria arrancado
minhas bolas. Você só não está ganhando beijinho de boa noite, daqui a pouco ele perdoa.

Dou mais uma volta até apoiar o peso de um lado do corpo na bengala de madeira escurecida.

— Como estão as coisas no escritório?

— Tá tudo ótimo. Não é hora de pensar no trabalho, você foi incrível e merece um bom descanso
antes de voltar a ser o herói.

— E Andrômeda tem descansado muito? — Arrisco tirar alguma informação sobre o caso o qual
não tenho acesso há não sei quanto tempo. Payne abre a boca, mas no lugar de sua voz surge a do
doutor Bassett:

— É bom que não deixe de usá-la. — Ele orienta adentrando meu quarto com o prontuário em
mãos, indicando a bengala.

— Não vou. Então, estou liberado?

Liam se adianta colocando minha mala sobre o ombro e ficando ao meu lado.

— Sim, sim, claro. — Responde folheando as páginas com um olhar esquisito — Mas o quê...?
Desculpe, mas o senhor é casado com um outro rapaz, certo? — Concordo — Devem ter feito
alguma bagunça na hora de coletar a assinatura de um responsável, ao invés do seu esposo foi uma
tal de Allicent Rose quem assinou. O nome lhe é familiar?

— Allicent Rose? — Penso por um momento — Não, definitivamente não me diz nada. Isso não
vai me reter aqui, né?

— Não, tudo bem. Está livre agora, detetive.

Se eu não estivesse manco daria pulos de alegria e quem sabe um ou dois mortais, no lugar disso
comemoro dando um high five com Liam. Assim que chegamos na entrada do hospital ele mal tem
tempo para avistar o seu carro antes que o meu próprio carro surja com o motor rugindo diante de
nós. O bairro nobre e pacífico se agita com Pour Some Sugar On
Me berrando nos alto falantes do carro, eu imagino que algum rockstar sairá de lá e meu palpite
não fica muito longe quando Harry abre a porta saindo com sua jaqueta de couro cheia de fivelas,
botas douradas, os cabelos molhados e jogados para trás e óculos escuros. Ele parece a porra de um
rockstar.

— Obrigada, Lee. Eu cuido dele agora, querido. — Diz com sua voz macia estendendo a mão para
receber minha mala.

— Okay, então, eu vou indo. Depois eu dou uma passada por lá. — Liam está tão embasbacado
quanto eu.

Meio incerto eu caminho em passos lentos até a outra porta. Harry se apressa em abri-la pra mim,
não sem antes me pressionar contra a lataria com seu corpo praticamente se esfregando no meu,
diferente do outro dia em que foi me visitar ele não está todo coberto, na verdade a camisa tem
apenas os dois últimos botões fechados e a frieza deu lugar a um fogo intenso que irradia no
instante em que me toca.

Eu mal sei como reagir.

— Pensei que não quisesse dar showzinhos no meio da rua.

O canto direito de sua boca se arqueia em um sorrisinho malicioso.

— Digamos que eu mudo de ideia com muita facilidade.

Eu e o projeto de rockstar seguimos viagem. Harry pelo jeito havia reavido seu gosto pela direção
embora não fosse nem de longe um bom motorista, ele corria demais, era temperamental no
volante e se preocupava mais em ter uma boa música e checar seu reflexo a cada cinco minutos do
que prestar atenção na estrada. Devo ter perdido a conta de quantas vezes me ofereci pra dirigir.

Em todas as respostas foram negativas.

Então não era surpresa que quando chegamos sãos e salvos em casa eu só queria colocar os joelhos
no chão e agradecer pelo milagre. Mas invés disso me atentei mais ao fato de que meu marido não
estava mais tão "atencioso", quando paramos em frente a nossa casa, ele desligou o carro e
simplesmente saiu, caminhando como uma top model e balançando os quadris num rebolado que
não era nada costumeiro ao Harry que eu conheci. Eu tive que me virar para conseguir carregar
minha mala e mancar com a bengala.

Assim que pisei os pés em nosso lar não se parecia em nada com a minha casa.

Ao começar pelo jardim onde a casinha de cachorro que nunca havia sido usada agora abrigava um
Sonny tristonho e encoleirado usando uma focinheira. Quem ousou por uma maldita focinheira no
meu garoto? Do lado de dentro as coisas estavam ainda piores. Shae e Mona rolavam no chão em
tempo de se matar, tudo estava fora do lugar, livros e papéis sobre a mesa, o sofá estava empurrado
para o meio da sala onde um cercadinho havia sido colocado para também aprisionar um outro
membro da família que gritava feito um condenado: Spencer. Harry o olhou como se estivesse
prestes a lhe dar uma focinheira também.

A jovem Cams despontou da cozinha descabelada e transtornada, trazendo Blake em seus braços
enrolado numa toalha e ensopado, pela cara dos dois era difícil saber se ele havia recebido um
banho ou sido derrubado na privada. A opção um pelo amor de Deus.

— Vocês chegaram, que bom! — A menina suspira aliviada, quando Harry se aproxima Blake
estende os bracinhos querendo seu colo, mas ele passa reto parando diante do espelho do corredor
sem prestar atenção em nada além dele mesmo.

— Cams! — Grita estridente, afastando a jaqueta enquanto analisa o estômago — Você acha que já
dá pra notar o pequeno allien aqui dentro?

— Hum, não, não, senhor. — Diz apressada quando Blake se irrita e começa a puxar seus cabelos
cor de rosa.

Seu tom não é do agrado do cacheado que além de fechar a cara grita novamente para a menina,
bem mais agressivo.

— Essa camisa não está boa. Pegue a minha de leopardo.

— Acho que está na lavanderia.

— Então vá até lá.

— Mas tinha me mandado arrumar seu closet.

— Sim, você pode continuar fazendo isso depois de buscar minha camisa. Anda, garota, eu não
tenho todo o tempo do mundo.

Suspira derrotada, ela nada mais é do que um retrato distorcido e exausto da menina que eu sempre
vira pedalando pela vizinhança com seus grandes fones de ouvido e offline para o mundo real.

— Tudo bem. Eu vou lá. — Cams conclui parando ao lado de Harry com Blake completamente
enfurecido. Ele olha para ambos como se não entendesse o que ela queria ali — C-como eu vou na
lavanderia...

— Ah, você quer empurrar ele pra mim, deus, Camila, onde está o seu profissionalismo? Você é
babá deles. Eu tenho dez mil coisas pra fazer e não posso parar a minha vida só porque você não é
capaz de andar alguns quarteirões com um bebê no colo. Seus pais devem se envergonhar da jovem
preguiçosa que você está se tornando.

Harry disse aquilo sem um pingo de hesitação, remorso ou seja lá o que as pessoas normais
demonstram quando estão sendo cruéis gratuitamente com outras. Vi quando os olhos dela se
encheram de água. Eu estava ali há menos de dez minutos e depois de tudo a minha mente não
estava funcionando tão bem quanto normalmente, mas aquilo foi o suficiente pra mim.

— Cams. — A chamei com um manejo de cabeça e ela veio pra mim.

Entreguei pra ela tudo o que encontrei no meu bolso que era quatro vezes mais do que tínhamos
combinado de pagar. Aproveitei para pegar Blake que automaticamente se acalmara no meu colo,
eu não podia verbalizar a minha felicidade em vê-lo de novo.

— Vai pra casa agora, querida. E desculpe pela grosseria do meu marido, eu juro que isso nunca
mais vai se repetir.

A garota assentiu e se despediu com um aceno rápido para os meninos, escutei a porta bater as
minhas costas e caminhei até o cercadinho onde Spencer gritava. Precisei sentar no sofá para
equilibrar os dois no colo que pouco a pouco foram se acalmando completamente.

Spencer chegava estar ofegante.

— Por que você deixou ele chorando desse jeito?

— Porque ele é mimado e precisa deixar de ser. — Diz enfezado se afastando do espelho.

— Tudo parece tão... — Olho por toda a parte, parando nele — diferente.

Ele dá de ombros.

— Você ficou um bom tempo fora. As coisas mudam.

— Sabe que não foi culpa minha.

Harry solta um riso irônico.

— Não, a culpa foi minha. Não é absurdo como você sempre é vítima do acaso, amor?

Os gêmeos pararam de chorar e agora nos encaram com olhos arregalados.

— Podemos continuar isso em outra hora?

— Isso vai depender da hora que eu chegar.

— Você vai sair? — Pergunto confuso, o vendo atravessar o corredor. Spencer choraminga só de
olhar pra ele.

— Eu disse que tinha dez mil coisas pra fazer e agora que você resolveu dispensar a babá adivinhe
quem vai dar um jeito em tudo. Tchauzinho, meu bem. — Harry manda um beijo da porta e sai
sem mais.

Que porra foi essa?

— O papai anda estranho assim mesmo? — Pergunto para os meninos.

Blake faz bico, mas Spencer agarra minha camisa.

— Estranho sim.

— Obrigada, Spen. Eu vou dar um jeito nisso.

Harry só retorna tarde da noite, com o celular enganchado entre o ombro e a bochecha carregando
meia dúzia de sacolas e falando alto. Eu e nossos filhos o assistimos do sofá onde nos distraímos
com suas pecinhas de lego. Numa tentativa de amenizar o clima tenso entre nós eu deixei a casa
em ordem, dentro das possibilidades para alguém mancando e com uma mão relativamente imóvel,
mas o resultado foi muito bom. Também fiz o jantar que não era dos melhores, mas haviam velas e
vinho sem álcool, Spencer e Blake dormiram mais cedo depois que eu os cansei com tantas
brincadeiras e então era só nós dois.

Esperei pacientemente até que meu marido resolvesse descer e quando meia hora se passou e ele
não o fez achei melhor ir atrás dele. Encontro Harry na nossa cama, deitado de cabeça pra baixo, os
cabelos cascateiam em direção ao chão e ele tem uma mão dentro do decote da camisa.

— Sabe que não é assim que funciona. As coisas são do jeito que eu quero. Oh, vamos, não banque
o teimoso, nós sabemos que tudo o que você quer é me agradar. — Ronrona para o telefone, alheio
a minha presença tímida na porta — Uma nova exposição seria ótima. Não, claro que não, bem,
talvez se você for um bom menino eu posso pensar no seu caso...

Surjo em seu campo de visão antes que ele continue. Sua expressão se azeda.

— Eu preciso desligar. — Encerra a ligação, sentando-se na cama.

— O que foi isso?

— Nada. — Responde inflexível.

— Tem certeza? — Incito apertando minha bengala entre os dedos — Eu tinha quase certeza de
que havia alguém do outro lado da linha, alguém que quer te agradar.

Harry apenas me encara, quase raivoso.

— Você falou sobre outra exposição, era o Aaron?

Um cacho desliza por seu ombro, mas ele não tem nada de adorável com suas sobrancelhas
franzidas.

— Talvez.

Arqueio uma sobrancelha em direção a ele, e sinto meu semblante endurecer.

— E por que ele deveria te agradar? — Caminho vagarosamente para dentro, a bengala soa
ameaçadora a cada passo que eu dou, e Harry parece muito autoconsciente dela, uma vez que
engole em seco e arregala levemente os olhos.

Uma expressão presunçosa surge em seu rosto tão rápido que nem parecia uma criatura intimidada,
ele arqueia a sobrancelha de volta, e empina o queixo, a mandíbula marcada quando seus olhos
ferinos fazem contato com os meus.

— Porque... — Ele crispa os lábios, apoiando o peso em suas palmas e inclinando-se para trás, a
camisa expondo seu torso tatuado, o tecido caro deslizando sobre um de seus mamilos rubros,
delicada como o toque de um amante, deixando em evidência o quão sensível ele é, lambo os
lábios em reflexo, e Harry percebe. — Eu sou inalcançável

Harry levanta, com a camisa pendendo em um de seus ombros, ainda fitando-me com aquele olhar
que só ele tem, esfomeado, e caminha até mim, repousando uma de suas mãos sobre a minha,
segurando o cabo da bengala. Permaneço rígido, deixando que ele faça seu teatrinho, achando que
está me vencendo, ou melhor, me humilhando.

— Para alguns imbecis... — Ele continua, lento, com ar quente escapando entre as almofadas de
seus lábios direto para as minhas narinas, cheira a menta e eu sei que ele não bebeu. Não hesito em
nosso contato visual, continuo encrando-o — Me ter soa como um prêmio, porque eu sou bonita
demais para qualquer um deles, eu sou o que eles vêem quando fecham os olhos e fodem as
bucetas largas das esposas deles — Harry sorri com escárnio, os lábios cruéis curvando-se — É a
minha voz que eles querem escutar, é a minha pele que eles querem marcar quando fodem.

Não seguro uma risadinha desdenhosa.

Ele aperta a mão mais forte sobre a minha, os metais de seus anéis queimam minha pele, meu
sorriso morre, mas continuo rindo dele com os olhos, sei que isso o irrita.

— Então, Louis, o Aaron me agrada porque sabe que eu sou demais para ele, que sussurros e
olhares é o máximo que ele vai conseguir de mim, e mesmo essa migalha de atenção que eu dou, é
mais do que ele poderia receber de qualquer mulher, porque eu estou acima de todas elas. — Seus
olhos me medem de baixo para cima, e os cílios cheios movimentam-se sutilmente.

Harry arregala os olhos quando movimento o braço que segura a bengala, e com agilidade giro seu
corpo de forma que ele fique de costas para mim, meu antebraço cruza seu abdome, e adentra o
tecido de sua camisa, então prendo sua cintura com a mão boa, esquentando a carne com um aperto
dolorido. Meu nariz roça seus cachos, e sinto sua respiração presa a julgar pelas costelas tensas em
meus dígitos.

Jogo aquela bengala fodida sobre a cama, e uso a mão livre para afastar o cabelo da região que
pretendo tocar – sua respiração permanece dificultosa e irregular, e ele engasga quando a fecho em
sua nuca, prendendo seu cabelo em um rabo desajeitado e puxando sem delicadeza para fazê-lo
inclinar para trás, deitando a cabeça em meu ombro, de forma que meu nariz toca sua mandíbula,
bem perto da pequena orelha.

— Você já parou para pensar por que esses imbecis não são capazes de te ter, doce? — Sussurro
contra o lóbulo de sua orelha, capturando-o entre os dentes, e Harry rosna pela posição em que se
encontra, com o cenho franzido e os lábios crispados, como se as pernas não estivessem gelatinosas
e nem sua nuca arrepiada. Ele joga como uma vadia.

— Porque eu sou muito — Respondeu, olhando-me pelo canto dos olhos, uma vez que eu tinha sua
cabeça imobilizada.

— Resposta errada — Aperto sua cintura, prendendo seu corpo contra o meu com mais firmeza,
beijando a curva de sua mandíbula e puxando um pouco de pele com os dentes. Ele grunhe, e suas
pernas desequilibram por um momento, sua testa, no entanto, parece franzir mais.

— E qual seria a resposta, seu merdinha? — É o que sua boca ácida responde, ansioso por me tirar
o controle. Dessa vez eu não sou um cara cheio de hormônios querendo meter meu pau em sua
entrada apertada, é como se fosse outra versão de mim, aquela que quer provar que tem o mundo
na mão direita e um cigarro na esquerda, aquela que não é assombrada pelo sussurro de suas
monstruosidades.

Puxo seu cabelo com mais força, de modo que seus olhos encontrem os meus, Harry está
esfomeado, e um de seus ofegos necessitados escapa por entre os lábios macios. Eu aproximo meu
rosto, mordendo seu lábio inferior com força, e puxando-o entre os dentes para dentro de minha
boca, onde sou capaz de tortura-lo com a mordida dolorosa ao mesmo tempo em que estimulo a
região com a língua. Harry rosna, tentando se mover no meu aperto, ao mesmo tempo em que
empurra a cintura contra minha palma, porque gosta da dor, mesmo que mínima.

Caminho com ele até a beira da cama, Harry dá passos desengonçados tentando me acompanhar, e
consegue, de alguma forma, virar e juntar nossos peitorais – faz isso porque sua camisa está aberta,
e assim ele consegue roçar os mamilos contra mim para obter prazer. Recuo meu corpo, e Harry
me fita com os olhos enevoados, a mesma sobrancelha franzida e postura irreverente, o tronco
inteiro exposto, e eu seria capaz de dedilhar o local correto de cada uma de suas tatuagens mesmo
que fosse cego, conheço todos os traços de sua pele.

— E qual é a resposta certa, Louis? — Ele me pressiona a responder. Vejo seu peito subir e descer
em colapso, e uma gotícula de suor descendo de sua nuca em direção a gola da camisa.

Quero dizê-lo que as pessoas o cobiçam por mais do que a beleza divina que ele ostenta, esses
caras cobiçam o jogo dele, as coisas sutis que ele faz – como quando deita a cabeça na minha
palma para receber carinho, e murmura manhoso com os beijinhos que eu deixo em seus lábios, ou
como ele empina o queixo e cerra os olhos para avaliar se as coisas o agradam ou não, franzindo as
sobrancelhas porque é meticuloso demais. Harry é um conjunto de um milhão de coisas excêntricas
e o dobro disso de particularidades em relação ao sexo e ao sensual, ele realmente é demais para
qualquer um, até eu.

É quando meus olhos vagam pelo cômodo e encontram um espelho, nele eu posso contemplar
nossos corpos, e a imagem libidinosa de Harry quase curvado, quase cedendo ao poder que
imponho, a pele leitosa iluminada pela luz amarelada pendurada no teto, a camisa à um fio de
deslizar pelos seus braços em direção ao chão. Beijo seu ombro exposto, arranhando a pele com os
dentes, e deixo que a resposta morra, desconectando nossos corpos. Harry me olha indignado,
pronto para me puxar pelo ombro, seja para gritar de novo ou para despejar as ofensas que ele
guarda sobre mim, mas algo na forma como eu o encaro deixa claro que o momento não é
favorável.

Meus olhos passam através dele, para uma imagem no canto do quarto: Lucian, com seus olhos
endiabrados, com seus dentes alinhados em um sorriso que me faz arrepiar da cabeça aos pés,
tenho certeza de que estou pálido, vejo ele levantar uma mão, tocar o próprio abdômen, e depois
fingir ninar uma criança em seus braços envelopados de látex preto. Viro para Harry, que se
encontra abotoando a camisa, me ignorando deliberadamente, como se eu não estivesse ali, ele
resmunga baixinho e com um sotaque esquisito, cantarolando irritado.

Lucian me encara, sem sinal de sorriso, e eu chacoalho minha cabeça, sei que ele está morto, eu
mesmo fiz questão de garantir isso, sei que é apenas um delírio, não tem como ser outra coisa. De
repente, a imagem limpa que a figura de Lucian ostenta começa a mudar, seus olhos ficam
vermelhos, e as mãos enluvadas parecem criar garras, encontro-me preso ao chão enquanto
observo a metamorfose. Então ele some, e por instinto volto meu olhar para Harry, que permanece
na mesma.

— Toque meu pescoço, que eu tocarei o seu.

Ouço aquela mesma voz que me perseguiu no bueiro, que decepou meu dedo, que matou e comeu
uma pessoa em minha frente, eu sei que posso estar enlouquecendo, mas seguro o braço de Harry e
o coloco atrás de mim. Ele não entende nada, e belisca minha costela, sobre um hematoma, com
tanta força que quase penso que ele está deliciado em me proporcionar dor, seus olhos são
sombrios me encarando, e um sentimento de ódio parece emanar dele em ondas.

— Tomlinson, sai da minha frente.

Não lhe dou ouvidos, na verdade mando que cale a boca, aquele verme está me perseguindo. Meu
marido crispa os lábios, e torce mais os dedos em meu hematoma, mas não consigo concentrar-me
na dor, apenas nos sussurros de Lucian, que se distanciam para a parede do quarto. Estranho que
Lucian não venha em direção a mim, me atormentar como eu tive certeza de que ele faria assim
que tivesse a oportunidade.
Olho em direção ao corredor, com a visão meio turva, e o encontro parado lá, com chifres em sua
testa, grandes e curvados, não como os do alce, um pouco mais assustadores. Evangeline está ao
seu lado, e meu coração aperta, porque ele segura o pescoço dela por trás de seus cabelos, as unhas
podres parecem à um fio de rasgar a carne. Ele sorri novamente, e presas brancas e afiadas tomam
o lugar de seus caninos. Dou um passo em sua direção, mas ele acena negativamente com a cabeça,
maneando para o pescoço de Eve.

— Já conheceu seus irmãos, querida? — Ele indaga, atraindo sua atenção

— O papai Lou nunca me deixou vê-los. — Ela responde, e eu sinto o tom de acusação queimando
o inferno em minhas veias.

Eles viram as costas para mim, e escuto o atrito dos sapatos contra a madeira do piso. A presença
de Harry é um vácuo atrás de mim, mas não consigo me concentrar em buscá-lo agora. Querem
levar meus filhos embora, matar meus filhos.

— Eles podem morar conosco, Eve.

— Podem?

— Como você quiser, criança. Basta tocá-los no pescoço.

Disparo em direção ao quarto dos gêmeos, seguindo os sussurros, mas não encontro nada lá,
apenas as crianças dormindo tranquilamente.

Sento em frente ao berço de Spencer, e faço carinho na mão consideravelmente menor que a
minha. Um vento gélido invade o cômodo, perturbando minha sanidade junto com os sussurros
que ecoam nas paredes, junto com a silhueta de Lucian e Evangeline parados à porta. Olho para
meu filho, e espero que a serenidade de seu sono imaculado seja capaz de matar meus demônios.

— Então agora você corre de mim? — Torço o pescoço em direção a porta e agora é Harry quem
ocupa o lugar dos fantasmas.

Com o coração ainda disparado desvio o olhar.

— É melhor ir pra cama.

— Okay. — Diz sem fazer questão da minha presença.

Em minha primeira noite de volta pra casa eu passo no quarto dos gêmeos, zelando por seu sono.

Nada vem atrás deles.

Mas em compensação passo a ser constantemente perseguido por meu marido. Infelizmente
algumas míseras semelhanças físicas me levam a associa-lo com Lucian, toda vez que eu o toco
mais intimamente me vem a sensação de suas mãos frias e ensanguentadas me tocando, em outras
surge a relembrança daquele beijo maldito com gosto de morte.

Harry não tem nada a ver com aquele monstro, ele é puro e inocente e me procura porque me
deseja, porque precisa de mim e eu o quero ardentemente. Só que fica difícil de acreditar nisso
quando, em uma de suas investidas em cedo, tudo começa no quarto dos meninos durante uma
simples arrumação em suas prateleiras de pelúcia quando de repente estou sendo prensado contra a
mesma, vamos caminhando as cegas, matando a saudade do corpo um do outro, nos beijando e
esfregando como se estivéssemos de volta a puberdade. Harry cai na cama e eu fico por cima,
infiltrando minha mão pela barra de seu shorts para agarrar sua bunda enquanto mordo seu
pescoço.

Até aí tudo seguia gostoso e natural, e como sendo algo natural não deveria haver problema algum
nele tirando a camisa, mas é neste exato momento quando meus olhos queimam em desejo por
cada pedacinho dele ao que contemplo a borboleta em seu estômago que ele surge. O mesmo rasgo
produzido pelas minhas mãos no estômago de Lucian se projeta em Harry, eu vejo de perto suas
costelas, seus órgãos e sangue, ah, um maldito rio de sangue vermelho transbordando pela cama e
eu não consigo falar, só a bile sobe pela minha garganta e eu corro aos tropeços para o banheiro,
despejando todo o meu nojo com a lembrança daquilo que eu causei. Com Lucian foi uma coisa,
mas com Harry era outra totalmente diferente.

Estou dando descarga naquilo quando Harry para ao lado da pia, vestido novamente e sua
expressão entrega: fodeu tudo!

— Espero que goste do sofá.

Sou banido para o sofá, apesar de ser divertido ver tevê o quanto eu quiser, sinto sua falta. Ele é
meu ursinho gigante e longe dele passo noites mal dormidas pensando demais e vendo mais ainda.
Durante o dia o nosso contato é limitado, a nossa conversa de dias atrás não me revelou o que
Aaron e Harry estavam tramando, mas era óbvio que eles estavam passando bastante tempo juntos
e com ele me ignorando era difícil dar qualquer tipo de opinião sobre o assunto. Ele jamais me
trairia, porém seu distanciamento me feria da mesma forma.

Cams era o nosso pombo correio – ela continuava vindo porque tinha resolvido ir no Coachella no
próximo ano – passando recados rápidos. Na maioria das vezes ela era usada para lhe dizer que eu
queria que jantássemos juntos. Aliás, foi em um desses jantares silenciosos que eu notei algo.

— O Ray está na sua mãe? — Perguntei dando falta do cágado.

Harry enrolava lentamente seu espaguete.

— Ele ficou doente e morreu.

Engasguei.

— Morreu? Como? Por que não me disse?

— Porque eu sou o único que devo satisfações aqui? — Devolveu me alfinetando bem naquilo que
Adam ressaltou, a minha falta diálogo para com ele. Eu apenas me calei.

Na tarde seguinte me encontrava inquieto pela casa. Os meninos estavam na creche, não tinha nada
de interessante na televisão e eu queria estar investigando algo e não abrindo e fechando a
geladeira só pra checar se a lâmpada continuaria acessa. Eu detestava minhas férias forçadas e
detestava não conseguir tocar em Harry.

Foi sentado no sofá lançando uma bolinha no ar que decidi fazer uma proposta irrecusável: ir ao
shopping fazer compras!

Corri na hora pro segundo andar adentrando nosso quarto com cuidado, mas diferente do que eu
esperava ele não estava na cama, ouvi um som vindo do banheiro e me aproximei da porta. Aquilo
parecia uma conversa, entretanto só havia a voz dele.

— Nós tínhamos um acordo, você não pode simplesmente jogar isso pra cima de mim e esperar
que eu aceite numa boa. — Ele disse alto e raivoso, um tom californiano pigmentando sua fala.
Ao que ele mesmo respondeu.

— Eu não espero que você aceite nada. As coisas são assim. Eu estou no controle agora. — É a
mesma voz, claro, mas bem mais baixa e impassível, como a de um pai que repreende o filho.

Controle de que?

Há uma barulheira, coisas caindo e então um rosnado:

— Pode fazer o que quiser, mas eu não sou como eles. Não vou comer na sua mão, vadia! Entre no
meu caminho de novo e dê adeus ao seu bebezinho.

Adeus ao bebezinho?

Estou meio atônito quando a porta se abre com tudo. Harry tem os cabelos armados e um olhar
distante, a mão apertando a maçaneta ao se dirigir a mim.

— O que faz aí? Me espionando, por acaso?

— Que merda foi essa? Você estava falando com quem? — Tento olhar para o banheiro através de
seu corpo que esconde boa parte. O telefone está sobre a pia, indicando uma ligação encerrada.
Mas...

— Nada, Louis, não foi nada.

Encaro seus olhos frios.

— Você quer fazer um aborto?

Harry não se choca ou nega de imediato como eu pensei que faria.

— Talvez eu queira e faça. — Responde com tranquilidade passando por mim, agarro seu pulso o
puxando de volta — Ei, não me toque.

— Porra, não! Você não vai fazer aborto nenhum, esse é o nosso bebê, nos planejamos para isso,
nós queremos esse filho.

— Nós? Tem certeza que você quer ter um filho? De verdade?

— É claro. — Digo o óbvio.

— Se você quer tanto um bebê por que pulou num maldito bueiro ao invés de vir pra casa? Por que
se arriscou tanto, sabendo que podia morrer se você se importa com ele?

— É o meu trabalho! — Exclamo e ele cansa de ficar cativo e me empurra com o ombro me
obrigando a solta-lo para não perder o equilíbrio.

Meu marido gargalha alto me dando as costas e saindo do quarto, persigo sua trilha.

— Engraçado que o Liam, o Mitch, Luke, todos eles têm o mesmo trabalho que você, mas você é o
único que fica bancando o Batman por aí. Não tinha porque você se meter numa merda dessa,
chamasse por reforços, fizesse o que for, mas não entrasse naquela porra! — De súbito ele se vira
no meio da escada apontando o dedo pra mim — Mas você não consegue ficar sem salvar o dia,
não é mesmo? O seu ego é maior do que qualquer amor que você diz ter pela nossa família...

Merda, eu não quero discutir sobre isso. Não quero discutir sobre nada, podemos voltar para a
parte em que não nos falávamos?

— É melhor você ir descansar. — Contorno seu corpo para descer o restante dos degraus. Shae
passa por mim indo se enroscar nas pernas de Harry que começa a espirrar as minhas costas.

Fecho os olhos por um momento e de repente um miado choroso soa alto. Shae está no fim das
escadas com as patinhas no ar.

— Meu deus, o que você fez? Harry, você chutou ela?

Harry coloca a mão na cabeça, olhando tudo um pouco confuso.

— Não, eu não fiz nada, me deixa em paz! — Grita indo em direção a porta. Shae parece bem,
ronronando depois que a coloquei no colo e acariciei seus pelos macios. A deixo voltar a caminhar
e vou até ele que por algum motivo parou diante da porta aberta.

— O que há de errado?

— Tudo. Tudo está errado. — Seus ombros tremem.

— Fale comigo, me deixe ajudar. — Peço com a voz macia.

— Falar? Esse casamento não é constituído a base de diálogo. Nós não falamos. Ignoramos o
problema até esquecer dele.

— Isso não é verdade.

Ele se vira, colando as costas na soleira da porta. Os olhos vermelhos por lágrimas contidas.

— Então por que não falamos sobre o que aconteceu naquele dia do atentado? Por que não falamos
do que te fez acabar tendo um caso com meu melhor amigo? Por que não falamos sobre a sua mãe
me odiar? E principalmente, por que não falamos sobre o que aconteceu naquele cativeiro. Por que
eu não tenho o direito de saber o que houve nestes seis dias em que eu estive aqui rezando pelo
milagre de que você voltasse vivo?

Minha boca está seca e a perna mais trêmula que o normal, preciso firmar o aperto na bengala para
me sentir estável.

— Bem, eu voltei vivo.

— Não. — A aspereza em sua voz me irrita — Não completamente, tem algo morto em você.

— Ah, se ele soubesse. — Alguém sussurra em meu ouvido, e não contente desliza as garras duras
sobre meu peito.

— Vai embora. — Ordeno ao oculto, mas é Harry quem responde.

— Eu acho que você deveria ir.

Me concentro nele.

— Não, eu amo você, não vou te deixar.

— Não tenha certeza se você sabe o que é amor.

— Mostre um pouco do nosso amor pra ele, filho de Afrodite. — Então as garras então rompendo
minha pele, rasgando até se infiltrar dentro do meu peito e puxando meu coração. Alucinação ou
não, dói como o inferno, tento afastar seja lá o que for aquilo com a bengala, mas ela acaba por
atingir algo mais concreto.

Eu vejo Harry caído na frente da nossa porta, apoiado nos antebraços com a mão no peito,
resfolegando. Foi ele quem eu acertei. Porra.

— Meu amor, eu sinto muito. — Faço menção de abaixar para ajudá-lo a levantar.

Ele ignora minha mão, mantendo toda a sua atenção no meu rosto.

— Você tem que ir embora agora.

— Não seja idiota, eu não vou a lugar algum.

— Se não for você vai morrer.

— Harry...

— Se você não for agora eu vou começar a gritar e atrair a atenção dos vizinhos. A polícia vai vir e
eu direi a eles que você é violento e uma ameaça não só pra mim, mas para as crianças também e
eu não vou parar até conseguir uma medida restritiva ou você pode sumir da minha frente agora.

Eu não sei o que é isso, nem de onde veio.

Ele tem direito de estar com raiva, mas isso é ridículo. Bebe está estacionando do outro lado
quando olha em direção a nossa casa e se assusta com o que vê. É claro. Para incrementar o seu
papel de vítima ele coloca a mão na barriga.

— Então, o que vai ser?

Meu sangue ferve com seu tom cínico. Se eu fosse dar ouvidos aos meus desejos o arrastaria para
dentro e ele aprenderia uma lição, mas não. Essa é uma luta perdida, ao menos por hoje.

Ele tem um sorrisinho malicioso que vacila quando empunho minha bengala contra seu peito.

— Você não vai querer comprar uma briga comigo.

— Eu não tenho medo de você.

— Mas devia. — É tudo o que digo, passando por ele com minha bengala martelando no caminho
de pedra até a Rand Rover do FBI. Viro a chave e saio em disparada, captando de relance a pobre
"vítima" sendo socorrida por Bleta.

Eu estou com ódio.

Muito ódio.

Não sei da onde isso vem, mas é intenso.

Dirijo por horas a fio sem um destino certo até parar em um bar qualquer quando o céu noturno
está sendo poluído por nuvens densas e escuras denunciando a tempestade que está a caminho. O
pub é escuro, cheio de gente mal encarada e há uma banda cover de Greta Van Fleet.

Black Smoke Rising é uma boa música de fundo para os treze shots que eu viro sem remorso.
O barman está meio receoso de me dar a garrafa de uísque que eu pedi há mais de quinze minutos.

— Vamos, Bill.

— Eu não sei, você não parece muito bem.

— Eu estou... — Quase caio do banco — Ótimo.

— Dá pra ver. — Uma voz familiar zomba ao meu lado.

Bato palmas quando vejo Michael Clifford.

— Mikeyyy! Que saudades de você! Eu já disse que te amo?

O loiro ri se acomodando no banco à minha direita.

— Já sim, mas isso tem tempo.

— Ah, que saudade daquela época. — Suspiro coçando a nuca — Foi o melhor sexo de toda a
minha vida.

— O quanto ele já bebeu? — Michael me ignora para perguntar.

— Muito.

— Certo, o que aconteceu entre você e o Harry?

— Harry pra cá, Harry pra lá, por que todo mundo só fala desse chato? — Reclamo completamente
embriagado.

— Vocês brigaram?

— É, tipo isso. — Fungo, começando a chorar de repente. Enterro as mãos nos cabelos — Eu amo
ele, amo de verdade, mas eu não consigo...

— Não consegue o que?

— Confiar. — Digo num sussurro — Tem algo nele que me deixa sempre receoso, ele é
imprevisível. Eu não sei lidar com ele, ao mesmo tempo que o quero comigo, eu também quero
fugir pra bem longe e esquecer que ele existe. Eu não faço a menor ideia do que fazer.

Mike empurra um copo de soda para mim.

— Um brinde a quem não sabe o que fazer! — E brindamos a isso.

— O que está fazendo aqui?

— Você sabe, eu reli todos os livros das Crônicas de gelo e fogo e fiquei deprimido por não ter
mais. — Diz cabisbaixo como se fosse algo terrível.

Gargalho alto.

— Você continua o mesmo nerd de sempre.

— E você continua com as suas crises matrimoniais.

Assinto bebendo um pouco mais.


— Algumas coisas nunca mudam. — Mike murmura.

— Era essa a música que estava tocando quando nos beijamos pela primeira vez. — Indico a banda
que está cantando o refrão de You're The One.

Olhamos a banda, em silêncio, apenas ouvindo a música e sendo arrebatados pelas lembranças que
vinham com ela.

— É, era essa. — Concorda sem se aprofundar.

Depois de mais um tempo o olhando calado tento me levantar, falhando miseravelmente.

— Harry vai te matar quando chegar assim.

— Não, ele me expulsou de casa. Preciso achar um hotel.

Ele termina sua bebida também se levantando. Passa meu braço por seus ombros, após pagar a
conta, ele diz:

— Se você vomitar no meu carpete eu te jogo na sarjeta.

Eu me lembro de rir na hora, mas foi questão de minutos até que eu caísse apagado em seus
braços.

Talvez o veredito tenha sido o purgatório, que não era nada mau.
│11│gemini

Afundo a cabeça na pia debaixo da torneira por exatos vinte segundos antes de tirar mais uma vez.

Minha franja longa goteja em frente ao meu rosto e eu encaro meu reflexo sem entender como
meus olhos acabaram tão vermelhos.

— Wow, bom dia pra você também! — Mike entra no banheiro com os olhos arregalados
equilibrando duas canecas personalizadas de alguma de suas séries idiotas que ele vinha me
viciando nos últimos dias em que fui seu hóspede.

— E aí. — Gemo repousando a testa no granito sentindo como se uma marreta batesse de segundo
em segundo no meu crânio.

— Sabe, se você continuar nessa posição eu vou esquecer que você é casado. — Comenta as
minhas costas e é quando dou por conta que a minha posição é no mínimo comprometedora ao
estar inclinado no balcão da pia do banheiro e com uma única peça de roupa. Mas francamente não
estou nem aí — Cuequinha vermelha, meu deus, Louis Tomlinson, você é indecente! — Conclui
com um assobio.

— Você não tem ninguém mais pra amolar, não?

— Até tinha, mas a Vee começou a mostrar os dentes, mais um minuto encima dela e eu ganho
uma mordida.

— Se você continuar me enchendo eu vou acabar te mordendo. — Encontro forças para levantar a
cabeça mais uma vez, tudo parece girar — Liam não deveria dar uma festa com tanto álcool. Foi
muita irresponsabilidade da parte dele.

— Com certeza, a culpa foi toda dele por você encher a cara. Meu deus, Louis, você parecia um
alcoólatra.

— Tem razão, a culpa não era do Liam e sim do Harry, eu ainda não acredito que ele apareceu lá e
com aquele puto do Aaron. Eu só queria poder atirar nele. — Esbravejo irritado, batendo no
potinho de escovas e recolhendo tudo em seguida quando o mesmo rola pelo chão — Quer dizer,
você viu como a calça do Harry era apertada? Ele queria chamar a minha atenção.

Mike faz uma careta coçando a barriga forrada pela camisa velha do Seinfeld.

— Ele não parecia dar a mínima pra você.

Pulo do chão, pegando a outra caneca de sua mão.

— Credo, Mike! Você quer mesmo arruinar o meu casamento? — Indago marchando para fora do
banheiro bebendo meu café. Só então percebo que não escolhi bem as palavras, Michael é a pessoa
mais desencanada que eu conheço.

— Sempre. — Responde do outro cômodo imitando o tom de um vilão.

Ele tem sido ótimo me deixando ficar aqui mesmo depois de conseguir um outro apartamento, na
verdade sua companhia sempre me fez muito bem. Nos conhecíamos há anos e eu sabia que
Michael era alguém em quem eu podia confiar, embora uma parte de mim se receace com a
possibilidade de Harry descobrir que eu estava aqui. Ele não vinha sendo muito condescendente
comigo, muito pelo contrário, havia cortado toda e qualquer tipo de ligação. Ignorava minhas
mensagens e fez questão de sair no dia em que fui em casa buscar algumas coisas.

Quando contei pra Liam na festa ele disse que não seria nada demais, já Mitch garantiu que o
próximo passo era o divórcio. Eu fiquei em pânico e quando meu marido chegou na festa de
aniversário de Payne com o Sr. Bonitão Johnson não deu em outra, eu bebi como se não houvesse
amanhã.

Tudo ficou confuso e desesperador.

Me lembro vagamente de ter encontrado com ele no corredor, da luz ser quase nula e do glitter
dourado abaixo de seus olhos. Ele estava tão bonito e de repente não me ignorou, me prensou
contra a parede e enfiou a mão na minha calça me masturbando rápido e firme até que eu viesse
em seus dedos.

Harry não me beijou ou disse qualquer coisa, apenas esfregou a mão na minha camisa e se foi.
Quando reaprendi a mover meus pés e ir atrás dele já era tarde demais, Harry já tinha ido... Com
Aaron.

No meio da madrugada enviei uma mensagem agradecendo a punheta, ele respondeu dizendo que
eu era um pervertido nojento que deveria parar de falar dos meus sonhos imundos com ele e que
era pra buscar o saco de pulgas do Sonny que não parava de choramingar por mim. Fiquei de levá-
lo para um passeio, mas pela minha ressaca o melhor seria cancelar.

Tomei um banho frio, refiz meus curativos e me vesti a caráter para o meu retorno. Ou seja, o bom
e velho social com a jaqueta e óculos escuros.

Michael ficou sem entender quando me viu na porta rodando a chave no dedo.

Ele era o meu oposto, tênis, moletom e uma toca para conter os fios oxigenados que ele não tinha
interesse em lidar. Mike parecia meu filho punk adolescente.

— Pra onde você vai?

— De volta ao trabalho.

Solta um tom de reprovação.

— Você está de férias, deveria descansar.

— Eu já descansei. Agora vamos prender bandidos. — Anuncio animado e ele se força a sorrir
pequeno.

— Posso ver a cueca vermelha de novo? — Pergunta no corredor.

— Morre, Clifford!

— Só se for de amores por você. — Devolve.

Não faço questão de segurar o elevador pra ele que quase morre ao enfrentar as escadas.

Xx

Eu não deveria me animar sobre como sou recebido no escritório naquela manhã, eu só fiz o meu
trabalho e não o exerci da melhor maneira, ainda por cima. Mas mesmo assim todos estão de pé
batendo palmas me ovacionando e é como nos velhos tempos em que eu pegava todos os
homicidas que surgiam pra mim. Desde Andrômeda os dias de glória haviam passado, mas hoje ele
ressurge com força total.

Ajo humildemente, dispensando todo o ato com um gesto de mão e caminhando calmamente com
minha bengala, consequência de um ferimento de guerra era o que se comentava pelo lugar.

Há algumas policiais jogando confete em mim quando passo por suas mesas, Liam está gritando
algo como "o melhor", Sarah tem uma corneta e Luke mostra o dedo do meio. Invejoso.

— Como eles sabiam que eu viria hoje? — Me pergunto.

— Eu fiz algumas ligações. — Mike cochicha indo em direção a sua mesa.

Sorrio para ele chegando até meus amigos.

— Veja só o super-homem. — Mitch grita me empurrando um copo de milkshake.

Sugo o canudinho antes de responder.

— Não sei porque tudo isso, eu nem peguei o cara.

— Não, você fez muito mais que isso. Salvou duas garotas e nos levou até o esconderijo dele, o
lugar está infestado de digitais, vamos encontrá-lo assim. — Estrala os dedos em frente ao meu
rosto — Você é o cara Tommo.

Dou uma risadinha fraca ao redor do canudo me sentindo incomodado com o fato daquele maldito
rato de esgoto ser identificado. Não quero fotos ou informações dele por aí, o quero no
esquecimento, ele não existe mais...

— Tem certeza? — A voz surge de algum canto sombrio da minha mente.

— É bom tê-lo de volta. — Coloco um sorriso falso no rosto para encarar Nicholas que aparece de
supetão em sua porta.

— É ótimo estar de volta.

— Que bom! Podemos dar uma palavrinha? — Ele torna a entrar na sala, deixo minha bebida, tal
como a minha paciência do lado de fora e o sigo. A porta bate as minhas costas e me acomodo
diante de sua mesa.

— Então...? — Cruzo as pernas apertando os descansos de braço da cadeira.

Nick se senta com toda a sua postura arrogante de "chefe".

— Primeiramente devo lhe felicitar pelo excelente trabalho, os diretores pediram que eu
expressasse nossa imensa alegria em ter um profissional como você é...

Não consigo segurar a gargalhada.

— Tem câmeras aqui, né? — Estico o pescoço, examinando os cantos da sala — Você não me
chamou pra tecer elogios a minha pessoa.

— Do que você–

— Eu leio bem os meus inimigos.


— Não somos inimigos, Louis.

— Bom, amigo de estuprador eu não sou. — Ele automaticamente fecha a cara, o punho se aperta
sobre a mesa tentando me intimidar. Acho que a essa altura nem o próprio Satã com seis chifres e
um rabo pontudo causariam algo além de tédio em mim.

— Esse mal entendido foi resolvido há muito tempo. — Responde evasivo.

— Com certeza, ficou bem claro que estava tudo bem quando ela se matou. — Reviro os olhos
batucando os dedos na madeira.

Grimshaw suspira alto, irritado com o assunto.

— Pelo amor de Deus, Louis! Aquela garota não passava de uma drogada, ela alucinava
praticamente o tempo todo.

— Eu acredito na Kacey.

— Sim, porque você não passa de um viciado assim como ela era. Oh, o que foi? Pensou que eu
não soubesse?

— Eu estou limpo há muito tempo.

Ele sorri se inclinando sobre a mesa.

— O agente que esteve com você no hospital falou sobre algumas conversas suas sozinho, ou por
acaso tinha alguém aí na sua cabeça? Se eu bem me lembro você via muita gente depois de uma ou
duas carreiras, não foi você mesmo que jurava ter falado com Abraham Lincoln? Você na
narcóticos era como colocar o rato atrás do queijo, não é mesmo?

Me remexo desconfortável na cadeira.

— Por que não deixamos o passado no passado?

— Concordo plenamente e apesar de você ser um ser humano deveras desagradável eu estive
conversando com nossos diretores sobre adiarem o fechamento do caso da Evangeline.

— Você o quê?

— É, eu precisei bajular muito os velhotes, mas consegui um adiamento até o final do ano. Payne e
Rowland cuidarão pessoalmente das investigações.

— Isso...isso é ótimo! Mesmo, é incrível! Eles são mil vezes melhor do que o inútil do Hemmings.
— Minha cabeça é tomada por uma onda de alívio e felicidade, quando de repente associo uma
coisa a outra — Mas o Liam é meu parceiro, ele é um dos cabeças pra toda a investigação de
Andrômeda.

— Sobre isso. — Nick coça o queixo — O acordo foi fechado com o Horan e ele fez uma
exigência especial.

— Que tipo de exigência?

— Ele tem um sobrinho recém saído da academia e é um grande fã seu.

Eu quero morrer.
— Vai me dar um tiete como novo parceiro?

— Infelizmente é esse o trato, ou você aceita Niall Horan como seu pupilo e parceiro ou não
teremos um responsável pelo que houve com a sua filha.

Era óbvio que eu não tinha escolha e era óbvio que eu ia aceitar, assim como era óbvio que eu
sairia daquela sala puto da vida em direção a minha sala e querendo matar a porra loira mexendo
na minha estante.

— Que merda é você? — Rosno da porta me sentindo um velho de duzentos anos com a bengala e
a cara enfezada. Foda-se. Eu quero empurrar Niall daquela janela e pegar Liam de volta.

Ele deve ter algum problema porque toda a minha raiva e desgosto não parecem atingi-lo, pelo
contrário, ele vem sorridente em minha direção, todo uniformizado feito um babaca com sua
arminha recém comprada e uma estrelinha de bom menino no peito.

Otário. Eu te odeio. Some. Morre. Sai já daqui.

Há uma possibilidade de que eu esteja projetando no garoto toda a minha ira e frustração e não me
importo nem um pouco com tal injustiça. Estagiários servem pra isso mesmo.

— Eu sou Niall Horan, detetive Tomlinson, e preciso dizer que é uma honra estar trabalhando com
o senhor. — O menino espevitado para saltitante na minha frente — E-Eu posso apertar sua mão?

— Não, você não pode tocar em mim, assim como não pode falar comigo, mas essa regra você já
quebrou, então vamos esclarecer algumas coisas, Niall. Você não é um detetive, nem ao menos um
recruta, só está aqui porque você tem dinheiro e pode passar por cima de gente bem melhor que
você. Não espere que eu sirva de mentor, eu tenho um caso sério pra resolver, se quiser aprender
volte pra academia. Não encha meu saco, não faça perguntas, melhor, não fale! Eu quero que você
seja como uma sombra silenciosa por esse escritório, entendeu?

Ele tem os olhos azuis arregalados.

— Sim, eu acho que sim.

— Perfeito!

Meu celular apita com uma nova mensagem de Harry, espero que seja algo mais romântico do que:

Venha buscar o saco de pulgas senão vou ligar pra carrocinha!

— Horan, tenho uma missão pra você. — Digo animado como se fosse algo de verdade.

— Sim, senhor. — Niall bate continência.

Qual é o problema dele?

— Você vai até a minha casa e vai pegar o meu cachorro, leve ele no parque e deixo-o se divertir
ao máximo. Faça ele feliz! Aqui. — Coloco alguns dólares em sua mão — Pode levá-lo até em
clube de stripper se ele quiser. Depois disso leve ele de volta e se o meu marido reclamar ignore,
ele é surtado mesmo. Pegue o endereço com a Sarah.

Niall permanece parado por mais tempo que o necessário o que acaba me tirando do sério.

— Agora, Niall. — Grito e ele pula para fora pedindo várias desculpas.
Me jogo na minha cadeira desacreditado que colocaram um idiota desses pra trabalhar comigo.
Andrômeda deve estar rindo da minha cara.

Xx

Na hora do almoço escapo para o bar do outro lado da rua. Foda-se que é meio-dia, eu preciso de
uma bebida.

Acabo de receber o meu scoth quando Luke puxa uma cadeira do meu lado, não trocamos
nenhuma palavra. Bebemos em silêncio, ele resolve terminar sua vodca enquanto joga sinuca com
uns motoqueiros mal encarados e eu tento entender qual é o problema de Harry. O sino da porta
soa quando alguém novo passa por ela, cambaleante, com seus cabelos armados e roupas em tons
de terra: Aaron.

Percebo que Hemmings está olhando pra ele, assim como eu, ele cai em uma mesa na parede ao
fundo. Desnorteado e passando a mão pelo rosto e cabelo sem parar, a recordação do que ele me
disse em nosso último encontro vem como um soco na cara.

"Essa morte não tem um propósito pra ela."

Foi o que ele disse na ocasião. Pode ser loucura escutar alguém como Johnson, mas já é alguma
coisa. Ele pode ser a conexão com Andrômeda.

Saio do balcão e vou até Luke. Após encaçapar mais uma bola ele dá um longo gole em sua
bebida.

— Ei, Luke, como eu estou?

— Estagnado no mesmo caso há anos, manco e sem um dedo. — Responde amável como sempre.

— Engraçado! Hilário! Vou me lembrar de rir mais tarde, o Aaron está bem ali. Você acha que eu
estou atraente o suficiente?

Junta as sobrancelhas loiras em confusão.

— O que v– Oh, meu deus! Puta merda, Tomlinson! — Ele ri alto e escandaloso chamando muita
atenção indesejada — Você vai mesmo foder o amante do seu marido? Isso é contra as regras,
cretino. Eu respeito isso. Vai lá, precisa de alguma coisa? Quer que eu vá comprar lubrificante ou
te ensine algumas cantadas? Se bem que aquele ali fica de quatro por você rapidinho.

— Eu não tenho interesse nele de quatro, mas eu quero que ele fale. Você lembra do dia em que o
interrogamos?

— Claro. — O outro adota uma postura mais séria — Ele falou como se tomasse o chá das cinco
com Andrômeda. Sabe que nada do que ele disser pode ser relevante por ele ser usuário e é claro,
pela forma pouco ortodoxa que você espera tirar informações dele.

Balanço a cabeça em concordância, puxo meu maço de cigarros do bolso, acendo um e dou o trago.
A nicotina não vai me amansar agora.

— Não preciso de nada oficial. Uma pista é uma pista de qualquer forma. — Me afasto de Luke
para ir em direção a Aaron que ainda não pediu nada e provavelmente se esqueceu onde está.
Chapado é apelido pro seu estado. Sento na cadeira ao seu lado e ele se sobressalta — Oh,
desculpe, posso sentar aqui?
— S-sim, claro. — Responde confuso, voltando a me olhar exatamente um minuto depois — Você
é o detetive. Louis, o marido do Harry.

— Touché. — Sorrio soltando a fumaça devagar.

Seus olhos seguem cada movimento meu. Excelente.

— Eu queria me desculpar por aquele dia, durante o interrogatório eu fui um completo idiota. Por
que não tomamos alguma coisa? — Sinalizo para o garçom que prontamente atende, peço uma
rodada de tequila.

— Acho que já estou bêbado o bastante. — Ele diz embolado.

— Oh, não, é só meio-dia.

— Eu meio que não dormi desde ontem, então...

O olho atravessado, pensando comigo mesmo: por que não, seu monte de bosta, é por que você
estava fodendo meu marido? E por um momento estive bem consciente da arma no quadril.

Baixa a bola, Tomlinson.

O garçom logo trouxe a bebida, Aaron estava meio relutante em aceitar. Eu precisava que esse cara
soltasse língua de uma vez, Luke sibilou um "vadia" quando me viu desfazendo os primeiros
botões da camisa. Meus métodos não tinham nada de ortodoxos.

— Vamos só uma, eu insisto. — Falo sorrindo e lhe dando uma piscadela ao virar a pequena dose
de uma vez garganta abaixo. Essa merda tá forte! Não transpareço nada ao correr os dedos pelos
cabelos, uma mecha longa cai pela minha testa e o idiota cai na minha.

— É só um pouco de tequila, acho que tudo bem. — Ele pega o copo e o esvazia facilmente, logo
passamos para as outras doses.

— E como vai o trabalho? — Começo com uma conversa furada.

— Fraco, a exposição, ou melhor dizendo fiasco, de Harry foi o último grande evento na galeria.

— Foi uma pena o que aconteceu. Todos estávamos fora de controle, agindo fora do normal, o jeito
que eu te tratei no interrogatório. — Tento parecer o mais culpado possível, não é fácil, mas serve
perfeitamente para um bêbado.

— Pensar que eu fiz aquilo foi absurdo. — Aaron ri, desfazendo alguns cachos com os dedos.

— Sim, totalmente, e você não estava lá muito bem, falando sobre Andrômeda como se o
conhecesse. — Arrisco para ver sua reação, o homem encara o vazio por um bom tempo até estalar
a língua no céu da boca e me olhar de canto.

— Andrômeda é uma garota e ela fica muito aborrecida quando se referem a ela no masculino. —
Fala como se estivesse compartilhando um segredo.

Eu posso acreditar nesse cara?

— Andrômeda é uma garota?

— Uma garota muita má. — Sorri, batendo o ombro no meu.


Uma garota muito má? Eu nem percebi.

— E muito forte também.

Um vinco surge entre suas sobrancelhas.

— Por que forte?

— An, você já viu o que ela faz? Como suspende homens corpulentos no teto como se não fossem
nada. Ou ela é muito forte ou tem...

— Amigos. — Aaron arrota pedindo ao garçom a garrafa mais cara da casa.

Passo o braço sobre o estofado atrás dele e o cretino se vê no direito de apoiar sua cabeça nele,
piscando sonolento em minha direção.

— Você é um desses amigos?

— Eu não me meto nos assuntos dela.

— Por que não é mau o suficiente?

— Ela não é má, as pessoas só não compreendem, o que ela faz é proteger eles, os mantém unidos.
Na verdade é muito lindo, detetive.

— Como matar gente inocente pode ser lindo, Sr. Johnson? — Meu tom endurece. Porra.

— Eu acho melhor eu ir... — Diz, tentando se levantar.

Me apresso em segurar sua mão.

— Olha, Aaron, me desculpe, talvez eu ainda não a compreenda.

Ele se empertiga assim que o solto.

— Você irá, quando for a sua vez. — Disse antes de me dar as costas e partir.

Luke se aproximou da minha mesa, girando o giz na ponta do taco.

— Conseguiu arrancar alguma coisa dele?

— Bom, ele garantiu que Andrômeda é uma garota e que não está sozinha, além disso ela não é
uma vilã, mas sim uma salvadora que está protegendo suas vítimas.

— Isso não faz sentido, é a erva falando.

— Pode ser, mas também temos isso. — Entrego o celular de Aaron em suas mãos.

— V-você roubou o celular dele? Tomlinson, esse cara pode ferrar com você.

— É por isso que você é quem vai cuidar disso, um processo não é nada pra quem já tem quatorze,
não é mesmo? — Lhe dou uma piscadela e ele acaba por concordar.

Estamos indo a algum lugar.

Pegaremos essa garota pelas pontas soltas que ela for deixando.
Xx

Depois da conversa com Aaron eu resolvo dar uma volta pelo quarteirão, deixar que minha cabeça
absorva as novas informações e pense além. Eu estou vivo e de volta, a minha sobrevivência só
pode se dever a um propósito maior, o propósito de pegar Andrômeda e salvar o máximo de vidas
possíveis, em muito tempo começo a ter alguma direção para qual seguir. Ela se acha esperta, mas
eu sou mais, tenho que ser.

E parece até engraçado como o meu pessoal e profissional andam atrelados, eu reflito sobre um
caso enquanto avisto uma pessoinha em frente a uma banca de sorvetes com um grupo de meninas,
todas usando o mesmo uniforme padronizado em vermelho e azul. Ela parece brilhar sob o sol do
início de tarde, rindo absurdamente alto com os olhos apertados, na maioria das vezes em que eu a
vi ela só expressava pontos característicos ao Zayn, mas talvez ela tivesse um pouco de mim.

Suspeito que ela tenha puxado o meu sexto sentido para quando estou sendo observado porque no
exato momento em que meus olhos estão fixos nela, Mia se vira e pode ser impressão, mas seu
sorriso se amplia ao correr em minha direção.

— Louis! Olá, ouvi dizer que o senhor estava no hospital, está melhor?

Mia tem seus grandes olhos azuis fixos em mim.

— Sim, sim, estou melhor. — Pigarreio, vendo um carro preto dobrar a esquina. A menina está
alheia a chegada iminente de seu pai, assim como ao sorvete de chocolate derretendo e gotejando
em sua mão — E você como está?

— Eu estou bem! Essa semana tivemos uma feira das profissões, os pais foram até a escola falar
sobre os seus empregos. O Zayn não pode ir, mas o diretor disse que tudo bem por causa das
grandes contribuições para a instituição, eu não entendi muito bem. Também haviam muitos testes
de aptidões e adivinha o que deu no meu?!

Nesse mesmo momento o vidro fumê do banco traseiro do carro abaixou, Zayn nos olhou sobre o
óculos escuro e não tardou em sair do veículo, batendo a porta com força. Ele vai achar que eu vim
atrás dela. Tudo o que eu não precisava era de mais uma briga. Merda!

Tento me atentar a Mia que continua sorrindo.

— Hum, deixe-me ver, deu que você vai ser uma veterinária? Bailarina? — Ela balança a cabeça
negando — Não sei, o que poderia ser?

— Uma super detetive! — Grita dando alguns pulinhos.

— Menos, Miranda. — Zayn diz brando as suas costas, ela se vira para ele e corre para abraça-lo
pela cintura.

— Papai, não acredito que veio me buscar.

Malik baixa os olhos pra ela e toca sua franja antes de afasta-la com um olhar reprovador.

Haviam muitos pontos a serem levados em consideração nessa história antes de concluir que Zayn
era algum monstro sem coração ou amor pela única filha.

Nós dois crescemos juntos no Brooklyn, meus pais viviam um casamento infernal e eu me
refugiava na casa de Zayn. Éramos inseparáveis e foi lado a lado que lidamos com nossas
primeiras descobertas, ele definitivamente foi o meu primeiro amor, junto com a justiça, mas eu
não era o amor dele. Talvez não o suficiente. Ele sempre foi ambicioso, por isso começou a andar
com quem eu não aprovava e fazer coisas que só foram nos afastando.

Eu nunca disse a ele, mas todas as vezes em que ele me rejeitava por ser um "careta" eu chorava
trancado no quarto a noite inteira.

Foi só quando a mãe dele morreu em um acidente de carro que ele me deu uma brecha pra voltar a
me aproximar, na época eu estava na academia de polícia e Zayn me desprezava por isso. Mesmo
assim nós estávamos juntos quando ele engravidou e é claro que ele não gostou disso.

Estava construindo um nome de peso no mundo do tráfico e um bebê seria um puta empecilho, ao
mesmo tempo que seria sua única família. Indo contra todas as expectativas Malik quis a criança,
porém impôs a condição de que eu não me meteria em seus assuntos, em outras palavras me
mandou cair fora.

Nunca fez parte dos seus planos ter um marido, um bebê e uma casa com cerca branca. Ele queria
a ostentação, luxo e extravagância e um policial a tira colo como pai da sua filha não lhe era
vantajoso.

Foi assim que eu tive de seguir outro rumo e no meio do caminho encontrei alguém que quis
comigo tudo aquilo que Zayn rejeitou.

Por outro lado Zayn não era um pai ruim, nunca foi, ele protegia Mia com tudo o que tinha e ela
deveria ter a melhor educação de toda a América. Nos primeiros anos ele foi bem amável e
carinhoso, era inevitável, mas um chefe de uma gangue rival queria acabar com ele, então mandou
um assassino até sua casa, o homem entrou, só que Zayn estava fora do país.

Mas Mia estava, em companhia dos funcionários e a babá.

Ele a levou.

A menina tinha cerca de quatro anos e não havia sinal de onde ela poderia estar.

Aquela deve ter sido a minha primeira e mais arriscada ação ilegal. Mobilizei uma equipe de peso
para localizá-la, nós a encontramos do outro lado do país e quando foi devolvida em segurança,
Zayn não quis tomá-la nos braços e enchê-la de amor. Deixou tudo o que envolvesse a criança na
responsabilidade das babás e foi atrás da tal gangue, no outro dia só se falava sobre o massacre no
Queens.

Ele nunca mais foi o mesmo.

A rigidez, frieza e sobriedade o dominara.

— Por que não estava dentro do colégio?

— Eu vim comprar sorvete com as m–

— Bom saber! Você está de castigo. Entre já no carro.

— Mas.... — Começou não sendo capaz de concluir pela expressão do pai que não dava espaço
para discordância — Sim, senhor. — Se deu por vencida caminhando até o carro.

— Fico feliz que não tenha morrido ainda, mas eu não quero saber de você vindo atrás dela. — Ele
fala arrogante com as mãos dentro dos bolsos do terno Armani. Debaixo do sol com os cabelos
negros novamente e toda a sua pose de grande chefe ele parece o próprio Hades saído do
submundo.

— Nos encontramos por acaso.

— Claro. — Franze os lábios girando nos calcanhares e se pondo a caminhar.

— Ela está linda. — Digo de repente.

— Eu sei. — Zayn olha por cima do ombro com um pequeno sorriso e esse deve ser o máximo que
já partilhamos de um momento paternal em relação a Mia.

Um pouco antes do carro andar ela surge na janela e lança um beijinho. Faço o mesmo e ela ri.

— Uma super agente? — Pondero sozinho — Nem por cima do meu cadáver.

Estou em caminho de acender um novo cigarro quando meu celular começa a vibrar no bolso,
interrompo com má vontade minha ação para poder atender.

— Alô?

— Boa tarde, é o senhor Louis Tomlinson, correto? — Resmungo sim, sem reconhecer a voz da
mulher, só pode ser alguém querendo me vender algo, estou prestes a desligar e tocar com o meu
dia quando ela continua: — Eu sou Margareth Downson, diretora da escolinha dos gêmeos.

Isso definitivamente me faz mudar de ideia quanto a desligar.

— Boa tarde, Sra. Downson, algum problema com os garotos?

— Não exatamente, mas acho que precisamos falar com urgência sobre o Spencer.

Em questão de minutos retorno até o FBI onde deixo avisado que não retornarei mais hoje e vou
direto pra creche. É no mínimo estranho estar do lado de dentro do lugar, me lembro vagamente de
ter vindo a uma peça deles no outono passado, mas logo recebi um chamado e deixei tudo por
conta de Harry. Mesmo assim tento soar o mais relaxado possível quando a Sra. Downson retorna
com duas xícaras de café, ela entrega uma pra mim que a recebo bastante grato, depois de beber no
bar eu havia ingerido muita água para driblar o álcool, mas nunca se sabe e se tratando do meu
filho devo estar o mais sóbrio possível.

— Eu sinto muito pela ligação no meio do dia, devo tê-lo atrapalhado. — Ela diz solene se
acomodando em sua cadeira giratória.

— Não, está tudo bem, eu só estranhei um pouco que tenha entrado em contato comigo. — Disse
coçando a nuca e dando um gole em meu café. A mulher franze o cenho.

— Como assim?

Dou de ombros.

— Normalmente é o meu marido, Harry, quem lida com esses assuntos.

— Esses assuntos?

— É, assuntos das crianças. O meu emprego me mantém ocupado a maior parte do tempo, então eu
não participo muito da vida académica deles.

— Sim, compreendo, eu normalmente buscaria entrar em contato com o seu marido, porém,
acredito que você seja o melhor para termos essa reunião.

Termino minha bebida e deixo a xícara vazia sobre sua mesa, me ajeito na cadeira ainda sem
entender o que isso significa.

— A senhora falou sobre o Spencer? Por acaso ele bateu em algum coleguinha? Talvez por eu ser
um policial a senhora pense que eu incito nele algum tipo de violência, mas...

Ao que ela se apressa em dizer:

— De forma alguma, o Spencer é a criança mais doce da turma dele e não tenho dúvidas de que é
um excelente pai. A questão é que já faz alguns dias que ele vem demonstrando um
comportamento preocupante. — Arqueio as sobrancelhas, esperando que ela se explique melhor —
Ele sempre foi mais tímido e sentimental, sabe que ele é muito sensível?

Concordo plenamente.

Na verdade eu não fazia a menor ideia que ele fosse sensível, na minha cabeça Spencer sempre me
pareceu mimado, manhoso e insuportável.

— Além de empático e observador, ele nota absolutamente tudo ao seu redor, é impressionante,
cada mudança de comportamento dos coleguinhas ou dos professores, acredita que foi por meio
dele que descobrimos que uma estagiária havia sido vítima de violência sexual?

— Meu deus! Eu nem imagino como isso foi possível. — Comento embasbacado.

— Ele apenas notou as mudanças e se fixou com firmeza a elas, segundo o que a mesma nos
contou, seu filho disse que ela "deveria contar os probleminhas pra alguém grande que saberia
como ajudar, que ela não podia deixar o coração tristinho" foi por isso que ela se abriu conosco e
pudemos ajudá-la. Spencer é um ótimo garoto.

Balanço a cabeça ainda consternado com tudo o que ouvi. Ao que parece meu filho de dois anos é
muito mais esperto e maduro do que eu.

Um sorriso orgulhoso cresce em meu rosto.

— Acho que com isso ele acaba de conseguir uma passagem vip pra Disney. — Margareth sorri,
porém algo parece incomodá-la — Não foi por isso que me chamou até aqui, não é mesmo?

— Como eu mencionei, o comportamento dele tem sido preocupante, repentinamente Spencer está
afastado e meio assustado com tudo. Ele não fala e evita contato visual, normalmente quando isso
acontecia eram devido ao seu acesso de saudades pelo seu marido, então bastava dar alguma coisa
dele ou mostrar uma foto, em casos mais extremos recorríamos a um Facetime e dez minutos de
conversa com Harry eram o bastante para colocá-lo nos eixos. No entanto, todos esses recursos tem
sido brutalmente recusados por ele, semana passada ele jogou na caixa de areia a bandana do pai
que costumava ficar na escola e que ele tratava como um amuleto da sorte, nós tentamos conversar
a respeito, descobrir o que houve entre ele e o papa Hairy que ele tanto ama, mas ele só diz que o
papai sumiu. Conversamos algumas vezes com o seu marido e foi no mesmo período em que o
senhor esteve desaparecido, associamos essa atitude do Spencer ao seu sumiço, mas mesmo após o
seu retorno ele continuou estranho e recentemente começou a desenhar, sem parar.

— E o que ele tem desenhado?

No lugar de palavras ela me dá provas visuais, dispondo sobre a mesa dúzias de rabiscos em
sulfite, todos brilham em vermelho com palitinhos caídos sobre. Leva um curto tempo até que eu
associe o vermelho com sangue, os bonequinhos estão sangrando no chão até a morte.

Que porra é essa?

Vou passando as folhas e todas mostram a mesma coisa. Algumas mostram o que parece ser uma
senhorinha sentada em uma poltrona enquanto... Isso é um capacete de cabeça pra baixo? Mas tem
patas. Uma tartaruga? Um cágado! Isso, um cágado sangra no chão.

— Todos estamos preocupados com esses desenhos, não sabemos o que significa, talvez ele tenha
visto um filme de horror ou... — Fixo os olhos em uma especial, a única na qual o bonequinho usa
uma roupa, está sendo cor de rosa e com um tutu.

— Uma foto. — Concluo, imaginando da onde viria a origem de seus desenhos. A mulher me
encara confusa.

— Ele foi encaminhado para a psicóloga, os dois têm conversado bastante e ele expressou seu
desejo de ficar com você. Pelo que soubemos não está vivendo com seu marido no momento.

— Nós tivemos um breve desentendimento, mas já está tudo em ordem.

— Que bom ouvir isso, espero que possamos trabalhar juntos para que Spencer volte a ser o
garotinho fenomenal de sempre.

— Com toda a certeza, e o Blake, como está?

— Ele é ótimo, só vive correndo atrás da bola e tentando escapulir pra quadra. — A diretora conta
aos risos e se levanta para me guiar até a porta, deixando que eu mantenha os desenhos comigo,
antes que eu saia ela julga necessário pedir: — Talvez seja uma boa ideia manter o Spencer
afastado do Harry, enquanto não identificamos o problema entre eles.

Meio incerto acabo concordando ao mesmo tempo que a professora surge no corredor correndo
atrás de um anãozinho com a fantasia do homem aranha que não tarda em escalar minhas pernas.

Algo no banco de trás me faz dirigir bem mais atento e nervoso que o normal. Olho de um em um
minuto o retrovisor para checar se está tudo bem com meu filho preso na cadeirinha no banco de
trás, ele sequer percebe toda a atenção, ocupado em assistir ao desenho animado pela televisão
acoplada ao banco do passageiro.

Paro a espera do sinal liberar e um carro também para ao meu lado, assim como surge outro na
minha frente. Um suor frio brota no meu pescoço ensopando minhas costas, desde Eve eu não
consigo relaxar quando tenho um dos meninos no carro sozinho, os meus dedos abandonam a
marcha pra envolver o cabo da arma. Apenas a espreita e então o meu coração para quando o som
de tiros enche o carro.

Foi um milagre eu não ter sacado a arma e atirado no carro ao lado.

Não se tratava de um ataque. Os outros dois veículos seguiram viagem tranquilamente, o carro do
outro lado era de Cheryl e ela sorriu e acenou, Bear também.

E os disparos vieram do maldito desenho de Spencer.

Dobro o pescoço para encontrá-lo gargalhando com toda a inocência do mundo. Nossos olhos se
encontram e ele sorri, uma covinha brotando em sua bochecha.

— Eu te amo, carinha.
— Também amo você, carinha. — Devolve só então voltando para os seus desenhos.

Quando passo na minha casa, afim de pegar algumas coisas de Spencer, primeiro preciso lidar com
seu ataque quando ele pensa que vai ter que ficar lá; Segundo, encontro Niall flertando com Cams
do outro lado da calçada, pelo menos ele está com Sonny, tanto Shae quanto Mona se enrolam nas
minhas pernas e eu luto contra a vontade de levar todas comigo. Não há sinal de Harry e eu não
procuro por ele.

Com as malas feitas retornamos ao apartamento de Michael, onde almoçamos, tomamos banho e
assistimos Discovery Kids até eu sentir vontade de dar um tiro na cabeça, mas é meio que
terapêutico ficar jogado no sofá envolto em almofadas e cobertores, bebendo iogurte natural tendo
como único preocupação não deixar o pesinho no meu estômago cair no chão.

Assistimos em silêncio, começando a pegar no sono quando Mike chega pra dar fim a ordem.
Fazem literalmente anos desde a última vez que ele viu Spencer e quando o encontra na sua sala de
estar sua reação não podia ser mais desesperada. Eu chego a me assustar com a forma que ele pula
do meu lado, pegando Spencer e falando sem parar, meu filho se anima porque Mike tem um
cabelo legal e ele se encanta.

— A última vez que eu te vi você era desse tamanho. — Mostra o dedo indicador pouco afastado
do polegar. Spencer acredita — Você sabia que eu sou seu padrinho?

Os dois não se desgrudam mais e a última coisa que associo é a televisão ligada com o Just dance
de alguma música da Kesha passando e os dois pulando no centro da sala. Eu rio do quão limitado
os movimentos do meu filho são por conta de suas pernas curtas, porém, sou interrompido pelo
toque da campainha.

Ando descalço pelo corredor e olho pelo olho mágico antes de abrir a porta para o meu
excelentíssimo marido que está no clima pra uma boa briga.

— Cadê o Spencer? — Ruge olhando por cima do meu ombro.

Ele está fenomenal com um sobretudo listrado, cachecol, botas e todo aquele cabelo bonito jogado.

— Ele está bem e vai ficar alguns dias comigo. Eu te deixei um recado.

— Não importa, me dá o meu filho. — Avança para dentro do apartamento e coloco uma mão em
seu peito.

— Nosso filho. Como eu disse, o Spencer vai passar alguns dias comigo. — Digo calmo e devagar
para que ele entenda — Agora vai pra casa, está tarde e é perigoso ficar por aí.

Harry resmunga, batendo em minha mão.

— Não finja que se importa. — Cruza os braços rente ao peito, repuxando os lábios em um
biquinho irritado. Temperamental.

— Eu não preciso fingir nada. — Coloco as mãos nos bolsos para conter o desejo de puxa-lo pela
cintura — Eu te amo.

Harry me olha desconfiado, então estica a mão, tocando minhas ataduras. Por um momento eu até
acredito que estamos chegando a algum lugar quando Mike e Spencer começam a cantar,
reconhecendo a voz, meu marido avança repentinamente com tudo, me empurrando o bastante para
correr o corredor e encontra-los na sala.
— Harry. — Escuto Clifford murmurando, desconcertado, Spencer está em seu colo.

Eu temo que ele irá separar a pele dos ossos de Michael, contudo ele o ignora e apenas dá mais
alguns passos adiante, estendendo os braços e chamando por Spencer que tem uma expressão
estranha, antes de começar a chorar.

— Não, não, não! Papa mau! — Berra como eu nunca ouvi antes, Harry também não parece
entender a reação dele.

— Spen, meu amor, sou eu, o papa Hairy, eu não sou mau. — Diz o cacheado com a voz vacilante.
O bebê olha atento, como se reconhecesse seu pai, mas ainda reluta em ir com ele.

— Quero fica aqui.

— Você tem que ficar comigo, querido. — Harry dá mais um passo, mas eu o seguro pelo braço,
não deixando que ele chegue mais perto ao que Spencer vai ficando mais nervoso.

— Vem, Haz, eu te levo pra casa.

Ele me olha com horror, se desvencilhando e encarando nós três como se presenciasse uma traição,
o que de certa forma ele concluiria, mantendo-se calado atravessou a porta, eu fui atrás dele,
esperando não encontrar rastro algum seu, mas ele ainda estava ali. Andando de um lado para o
outro no corredor.

Fui até ele e quando estava próximo o bastante agarrei sua cintura e deixei que ele me abraçasse
apertado, chorando no meu ombro. Seus braços envolveram meus ombros e eu o apertei com mais
afinco.

— Por que ele me rejeita? O que eu fiz de errado? — Soluçou entre o pranto incessante.

Massageio suas costas, apenas sentindo o peso da sua dor sobre mim.

— Eu não sei, gatinho, mas logo vai passar. Ele te ama.

— P-Primeiro você, agora ele, eu não posso perde-lo também.

— Você não me perdeu, nós só estamos dando um tempo, foi você quem quis assim.

— Eu quis? Eu não entendo, eu não entendo o que está acontecendo. — O desespero escorre por
entre suas palavras, o afasto o suficiente para contemplar seu rosto choroso, seco suas lágrimas e
Harry vai se aninhando as minhas mãos.

— Você precisa descansar, me deixe te levar pra casa.

Ele assente.

O caminho até nossa casa é silencioso, a noite é fria e nublada e eu deveria ter calçado meus
sapatos. Adentro nosso bairro parando em frente a grande casa antiga, uma luz do segundo andar
está ligada.

— Sua mãe ficou com o Blake? — Harry balança a cabeça, também concordo, batucando os dedos
no volante.

— Assim que o Spencer quiser eu o trago, na mesma hora. — Digo, mas ele continua cabisbaixo e
perdido em si mesmo — E sobre o Mike ele...ele só está sendo um bom amigo, não existe mais
nada entre nós. Você sabe que eu me arrependo do que fiz e...
Subitamente o sinto tocar minha mão e sem explicações a coloca por debaixo do suéter que está
vestindo. Depois do que parecem anos, estou, enfim, tocando nosso bebê.

Harry está beirando os três meses ainda, sendo recente demais para que eu possa sentir qualquer
movimento do feto, mas isso, esse pequeno gesto significa tanto. Aos poucos ambos vamos
relaxando e ele permite que eu desenhe espirais ao redor do seu umbigo, admirando cada pequena
reação sua.

— Eu preciso entrar. — Diz quase meia hora mais tarde, me inclino sobre ele para abrir a porta
recebendo sua respiração ofegante em meu pescoço. Caso eu quisesse poderia travar essa porta,
mandá-lo para o banco de trás e fode-lo como eu quiser, mas é estranho concluir que eu só o quero
na cama, dormindo profundamente.

Volto para o meu lugar, ignorando sua expressão perdida.

— Boa noite, Lou.

— Boa noite, Haz. — A porta bate e de canto de olho o assisto entrar em casa.

Quando chego no apartamento de Clifford, tanto ele quanto Spencer estão dormindo no sofá,
ambos roncando feito tratores. Levo meu filho até o meu quarto onde o seu cercadinho está
montado e repleto de seus travesseiros, bichinhos e cobertas, trazê-lo foi um truque de mestre. Ele
espera até que eu esteja saindo do quarto pra pedir a mamadeira e lá vou eu, só depois de alimentar
a minha cria, volto para sala onde tomo Mike nos braços até o seu quarto, ele continua tão
organizado e meticuloso como sempre foi, assim que seu corpo toca o colchão ele começa a se
remexer, esse cara se mexia mais do que um peixe fora d'água durante o sono.

Num desses movimentos sua camisa acabou por se embolar alguns centímetros acima do estômago
e esse mínimo de pele foi estranho de se ver, por vezes eu acabo esquecendo o que aconteceu e que
sim, eu já vi muito mais do que isso, que nós de fato fizemos coisas que um homem casado não
deveria fazer, principalmente com o melhor amigo do seu marido.

Como eu não quero me perder em pensamentos que não valem o meu tempo rumo para o meu
quarto onde depois de uma hora inteira olhando para o teto eu consegui adormecer bem
lentamente.

Perdido no reino dos sonhos uma sensação deliciosa me envolve quando sinto um peso sobre mim.
Quente e macio deslizando sobre o meu peito para sugar um beijo molhado no meu pescoço,
minhas mãos deixam de ser imóveis ao lado do meu corpo para ir até debaixo dos cobertores
envelopar o par de pernas firmes ao meu redor. Ele está completamente nu.

Sua boca toca o centro da minha garganta e o cabelo faz cócegas no meu nariz. Abro os olhos a
tempo de captar o loiro.

— Eu sabia que você ainda me queria. — Mike solta antes de atacar meus lábios em um beijo
intenso, exatamente como no passado. Não, eu não posso. Ele se afasta minimamente tocando a
minha franja, sob a luz do luar ele soa angelical e tentador — Eu sou o seu melhor erro.

As palavras formigam na minha garganta, incapazes de encontrar libertação.

Tomo um fôlego profundo e então a meu pescoço é rudemente agarrado, o atrito dos metais
gelados causam arrepios em cada uma das minhas vértebras.

Ele é alto, esguio e tem cabelos longos que caem por seus ombros nus. Minhas unhas se apertam
em suas coxas.
— Mas eu sou tudo o que você quer, tudo o que você ama, tudo o que você é. — Harry sussurra,
apertando com mais força, ao mesmo tempo que arqueia os quadris e senta perfeitamente no meu
pau. Oh sim. Cavo as unhas até agarrar sua bunda.

O cacheado morde os lábios recheados satisfeito e se move, quicando no meu colo.

Vou me deixando levar pelo calor sufocante ao redor do meu pescoço e pela sensação de sua pele
se apertando entre meus dedos, até que a pressão em meu pescoço aumenta em 50% e é frio como
gelo, levo as mãos até ele sentindo o metal trançado.

Correntes.

Ele me puxa e eu dou de cara com Aaron que agarra meus cabelos ofegando próximo ao meu
ouvido:

— Você é tão sexy, senhor policial.

O agarro pelo cintura e inverto as posições, o deixando contra a cama, mas aconteceu de novo. A
mudança.

Zayn tem aquele olhar presunçoso de sempre, como se fosse o rei do maldito mundo e bom demais
pra mim. Diferente dos outros ele está vestido, exatamente como hoje, mas com a diferença de que
ele está na minha cama, seus braços estão abertos e idêntifico de relance um brilho prateado em
seus pulsos. Algemas.

— Por que as algemas?

Ele ri como se eu tivesse contado alguma piada.

— Esse é o único jeito de me ter. — Responde puxando as mãos, provando que não existe
escapatória — Você me pegou.

— Eu não...

Deus, ele é tão bonito!

Me curvo para beija-lo, os lábios macios, quentes e entregues.

Tem algo de errado, o Zayn de agora não seria quente nem se o lançassem em uma fogueira.

Sinto uma presença pairando atrás de mim. Beijos delicados vão tomando cada centímetro das
minhas costas e então está me empurrando na cama, por algum milagre Malik está livre e eu tomei
o seu lugar, com as algemas me aprisionando. Harry senta no meu peito e esconde o rosto no meu
pescoço.

Então ele morde.

Não uma mordidinha leve e sensual, mas sim uma mordida de verdade que me causa uma dor
horrível. Tento me libertar sem sucesso. Mike surge as costas do meu marido, me levando para
dentro dele, e a morbidez só aumenta com seus sorriso satisfeito com dentes e unhas afiadas como
ele não costuma ter normalmente.

Suas unhas que agora formam garras correm pelas coxas de Harry, criando filetes de sangue que
escorrem por sua derme, mas ele não parece se incomodar e me morde mais vezes.

Sinto algo tocando minha ferida na perna e mergulhando o dedo dentro. O grito que dou é
bloqueado pelo beijo que Harry me dá, a sua boca está úmida e com um gosto diferente, só quando
ele se afasta vejo o sangue colorindo sua boca e o queixo.

Fecho os olhos, sentindo dentes, unhas e rosnados por toda a parte enquanto a dor só vai
aumentando, aumentando, aumentando... Até que eu desperto, ofegante e suado, com o coração em
disparada.

Afasto alguns fios úmidos dos olhos e tento acalmar minha respiração.

Spencer está dormindo calmamente em seu berço improvisado, as janelas e portas estão fechadas,
sem sinal de Michael, Harry, Aaron ou Zayn. Não há ninguém aqui.

Bem, é o que eu penso.

Olho pro chão, diante da janela onde a luz da lua entra em abundância pelo quarto, uma silhueta
enorme só cresce. Vou subindo os olhos, é escuro, alto e com cabelos longos.

Ele dá um passo a frente.

Vejo seu rosto.

— É bom te ver de novo, Louis. — Lucian diz se aproximando mais e mais — Gostou do sonho
que te dei? Foi feito com muito carinho.

Embora o cabelo esteja diferente, ele permanece igual, com a mesma expressão congelada de olhos
vazios e sorriso amedrontador.

— Isso não é verdade. Você não está aqui. — Digo ansioso, esfregando os olhos na esperança de
que ele desapareça, vou me forçando a acordar, a despertar daquele transe.

Não é real.

Não é real.

Não é real.

Sinto o ar quente tocando minha têmpora.

Despedaçado o encaro, sem entender porque ele não vai embora.

Seu rosto se parte em um sorriso demoníaco.

— Quando eu acabar você vai implorar.

— Pelo que? — Soluço.

Lucian toca meu peito, me deitando.

— Pela dor, Louis, você vai ficar viciado nela.

Fecho os olhos e sendo verdade ou não, eu sinto tudo.


│12│grus

A moça da farmácia não tem uma expressão muito boa quando despejo a cesta de remédios sobre a
bancada. Em suma são medicamentos próprios para cortar o sono e me manter acordado pelo
máximo de tempo possível.

A cafeína tem me ajudado nesses últimos dois dias, mas todos no escritório começaram a notar e
tem um momento ou outro no qual eu cochilo e os pesadelos voltam, por esse motivo resolvi
recorrer a medidas mais drásticas.

— Uhmm, o senhor tem alguma receita? — A garota sardenta indaga, ainda abismada com a
quantidade de medicamentos.

Eu poderia inventar alguma desculpa esfarrapada ou forjar uma receita, o que não seria muito
difícil por conhecer os melhores falsificadores de Nova York, mas invés disso apenas reviro o
bolso do meu moletom e mostro o distintivo.

FBI.

Seus pequenos olhos se arregalam por um momento e ela assente rapidamente, colocando tudo na
sacola e quase esquecendo-se de cobrar. Provavelmente em sua cabecinha idealiza que estou em
alguma missão secreta, ou interrogatório no qual pretendo deixar o cara mau vidrado e cansado o
bastante para me dar a confissão perfeita. Longe disso...

Então, eu reflito por um instante no quão fácil é conseguir qualquer coisa apenas com essas três
letrinhas. Eu obtenho passe livre pra absolutamente tudo.

Nunca suspeitam de um agente do FBI.

Eu posso fazer o que for e sairei isento.

Talvez haja algum assassino que se encaixe nessa posição de segurança.

Alguém intocável.

Andrômeda talvez seja intocável.

— M-mais alguma coisa, senhor... An, policial, detetive? — Mal me atento a forma como ela vai
se embaralhando nas palavras. Nego veemente, pegando minha sacola após pagar. Pego Spencer
que se divertia em reconhecer os personagens animados nos shampoos próximo ao caixa e saímos
em direção ao carro.

É tão cedo que o sol ainda nem raiou.

Eu não dormi a noite passada e Spencer resolveu me acompanhar nessa. Tem quase uma semana
que ele está comigo e não é preciso nem dizer o quão furioso Harry está.

Sempre que nos vemos ele só faz gritar e me atirar coisas e Spen está sempre desconfiado em sua
presença. Tudo isso ainda me soa estranho, ele só deve ter se assustado com uma bronca sem
importância, mas mesmo assim parece ressentido.

— Ei, bonitão, quem vai ficar com a vovó Anne hoje? — Pergunto, o fazendo saltar no meu colo.
Ele gargalha alto se agarrando no meu pescoço.
— Eu, eu, eu! — Berra com toda a animação que somente uma criança pode ter as seis da manhã.

Abro a porta de trás, deixando as sacolas no banco e o colocando em sua cadeirinha. Spencer me
olha com atenção enquanto vou atando seu cinto. É engraçado perceber como alguém tão
pequenino pode ter um olhar tão duro e compenetrado exatamente como o meu em certas ocasiões.

— E você está com saudades do papa Hairy?

Uma marquinha severa surge entre suas sobrancelhas ralas.

— Nah.

— Filho, isso não é jeito de falar do papai. Você sabe que ele está morrendo de saudades de você.

— Mas eu num falei ontem? Falei. — Resmunga emburrado.

Ora, ora.

— Pelo celular não é a mesma coisa. Ele quer te abraçar, te beijar.

Ele continua indiferente demais em seu pijama dos Minions e os cabelos bagunçados sob seu gorro
com orelhinhas de gato.

Resolvo jogar sujo.

— Poxa, que pena! E eu pensei que você gostasse de bebês...

Imediatamente ele fica em alerta, os olhos dobrando de tamanho e uma excitação crescente em seu
rosto.

— Onde tem bebê?

— O papa Hairy tem um.

— Eu não vi. Ele guardou?

Sorrio para ele.

— Bem, digamos que ele está meio que guardado sim.

— Na casa da vovó?

— Não. Ele está bem aqui. — Toco sua barriguinha gorducha.

— Em eu? — Diz chocado.

— Não. No papai, ele está na barriga do papai. — De repente o rosto de Spencer se contorce em
um choro sentido, Lágrimas grossas rolam por suas bochechas — Amor, o que foi? — Acaricio seu
rosto, secando as lágrimas.

— Papa comeu o bebê. — E chora mais forte.

É impossível segurar a gargalhada diante de seu olhar consternado. Ele parece a ponto de me dar
um soco por rir de algo que na sua cabeça é tão sério.

— O papa não comeu o bebê. — Explico com calma — Na verdade o bebê era uma sementinha,
bem pequeninha, e agora ele está se formando dentro da barriguinha do papai, está desenvolvendo
as perninhas, os bracinhos, assim como você fez um dia.

— Ahhhh... E como a sementinha foi parar na barriga do papai?

— Eu coloquei ela lá. — Respondo sem pensar na pergunta que se seguiria.

— Como?

— Como o quê? — Pisco confuso.

— Colocou a sementinha no papa.

— Isso, bem, foi pelo... An, pelo, pelo umbigo.

— Imbingo?

— Umbigo. — Corrijo, tocando o seu próprio.

— Umbigo. — Fascinado, sua mão fica sobre a minha — Eu posso ter bebê também?

Franzo a testa, é claro que tinha mais e ele só complica.

— Não... Você ainda é muito pequenininho.

— Oh! — Exclama com um biquinho — Agora tendi porque você não tem bebezinho.

— Como assim?

— Você é muito pequeninho, papai.

Reviro os olhos, me certificando de que ele está bem preso, se ele fosse um pouco mais velho eu
lhe daria o dedo do meio, mas invés disso apenas digo:

— Você é um merdinha.

— Medinha! — Ele repete rindo.

Ooops!

Xx

A bateria de Spencer já está esgotada quando adentro o estacionamento do prédio de Michael.


Basta o tempo no elevador até chegarmos ao décimo terceiro andar para que ele adormeça com a
cabeça no meu ombro, babando em todo o meu moletom e balbuciando coisas que só ele entende.

No corredor estou em tempo de gritar para Clifford me socorrer, uma vez que eu também fiz as
honras de passar no mercado, o que resultou em compras desnecessárias de porcarias simplesmente
porque meu filho se jogou no chão e começou a berrar e eu definitivamente não sei lidar com
crianças escandalosas.

Harry sempre foi o pai. Eu nunca passei de doador de esperma e caixa eletrônico e eu estava
bastante satisfeito com isso, até agora.

Porém, antes que eu pudesse chamar por Mike ouvi a sua voz, vinda da sala. A porta de entrada
estava entreaberta e eu pude entrar sem emitir ruído algum, o corredor extenso dava direto para o
meu quarto, mas a curiosidade me interpelou no caminho e foi inevitável não parar para ouvir a
conversa, ainda mais quando havia um Luke Hemmings com aparência desgrenhada e sem camisa
bem no meio da sala de estar. Opa!

Mike estava sentado no sofá, o rosto tão vermelho quanto sua nova cor de cabelo e ele tinha um
cigarro o que significava que ele estava puto, somente quando a coisa fugia ao seu controle que ele
fumava.

— Então vai fazer de conta que eu não estou aqui? — Luke bufa depois de um tempo, tenho
apenas a visão de suas costas, os músculos tensionando conforme toma uma respiração profunda
— Michael!

Mike dá um trago longo, ele aparenta toda a calma e tranquilidade do mundo.

— Não vai dizer nada?

— Eu já estou cansado de dizer que isso é um erro. — É sua resposta ácida.

É o suficiente para acender o temperamento explosivo de Luke, ele resmunga raivosamente


reavendo sua camisa preta com as siglas amarelas do FBI. Se joga no sofá para calçar seus
coturnos, bem ao lado do novo ruivo que não desvia os olhos do chão.

No meio da amarração dos cardarços ele para e une as mãos, respirando profundamente contra
elas.

— Ele nunca vai te amar de volta, não com a mesma intensidade que você o ama.

— Isso não tem... — Sua voz se perde.

— É claro que tem, antes dele nós éramos um casal. Você me amava, nós éramos noivos, e daí ele
te seduziu...

— Me seduziu? — Mike eleva a voz, raivoso. Spencer se remexe no meu colo — Eu sou alguma
donzela intocada por acaso? O que houve entre nós foi consensual e entre dois adultos, ninguém
induziu ninguém a nada.

— Mas isso não muda o fato de que ele te usou.

— Por que é tão difícil pra você admitir que outra pessoa me amou? Que houve outro alguém na
minha vida que não você? — A máscara de gesso de Clifford se desfaz e agora ele olha
diretamente para Luke — Enquanto você não admitir pra si mesmo que o mundo não gira ao seu
redor, nós nunca teremos um futuro.

Assisto Luke se inclinar sobre ele, seus narizes quase se tocando, a mandíbula do loiro se
apertando e por um momento eu penso que eles estão prestes a se beijar.

— Mesmo que eu mude, nós não teremos futuro algum, não enquanto você amar um homem
casado.

Mike geme em desgosto, o empurrando pelo peito.

— Você é um escroto. — Há uma frieza inédita em sua fala.

— Que novidade. — Retruca, terminando de amarrar os cadarços e recolhendo seus pertences.


Quando ele adentra ao mesmo corredor que eu, me esgueiro para o quarto, mas plenamente atento
— Vamos, Vênus! — Chama dando um tapinha na coxa, o Pinscher vem em disparada pra ele.
— Espera, o que você está fazendo com o meu cachorro?

— O cachorro é nosso. — Luke retruca, tomando Vênus em seus braços.

As vezes eu me esquecia de que próximo do final de seu relacionamento eles haviam tentado criar
um ambiente mais acolhedor, familiar e por isso adotaram um cachorro.

— É meu. — Mike declara, se colocando de pé e tentando tomar o animal dos braços do outro.

— Eu quero a guarda compartilhada. — Luke o levanta alto demais.

— Desde quando?

— Desde agora. — Um sorrisinho vitorioso desabrocha em seus lábios — O Harry me disse que
você tem hóspedes. Se você quer brincar de casinha com o marido e filho dos outros o meu
cachorro não vai fazer parte disso.

— Você está sendo ridículo.

— O único ridículo aqui é você. — Luke grita, passando como um relâmpago, com Vênus no colo
e batendo a porta as suas costas.

Mike vai atrás dele, sumindo por poucos instantes antes de retornar soltando fogo pelas ventas.

— Gostou do showzinho? — Indaga de repente, com as costas viradas para mim, as mãos
repousando nos quadris. Deslizo para fora do meu esconderijo, com um sorriso envergonhado.

— Eu sou um detetive, curiosidade é tipo a minha essência.

— Eu sei. — Ele vira, sorrindo relaxado — Foi um daqueles momentos desnecessários da minha
vida.

— Quer conversar sobre?

— Nah, é muito cedo. Onde vocês se meteram? — Mike avança, pegando um Spencer inconsciente
dos meus braços, quando ele afasta os fios lisos de seus olhos, meu filho franze o nariz em uma
mania antiga.

— Estava sem sono e precisávamos de algumas coisas. — Índico as sacolas em minhas mãos, ele
assente, caminhando até a cama e aconchegando Spen entre as cobertas.

— Eu tenho notado que a sua falta de sono tem sido recorrente, quando não está fazendo hora extra
no escritório está em casa, andando de um lado para o outro e bebendo copos e mais copos de café.
Tem algo de errado?

— Errado? — Tirando meus pesadelos vividos e recorrentes, que estão me deixando mais
perturbado que o normal, está tudo maravilhosamente bem — Acho que eu só estou um pouco
abalado ainda com toda essa história de canibal, as investigações e... Harry, é claro.

Não deixo passar a forma como ele fica tenso ao ouvir seu nome.

Será que Luke dizia a verdade? Mike está brincando de casinha conosco? Eles não voltam por
minha causa? Ele ainda me ama?

Seja como for, eu nunca me atreverei a perguntar.


— Sim, imagino que seja impossível relaxar com tanta coisa acontecendo. Entretanto, você precisa
descansar, já sei! Vou preparar uma xícara de chá e podemos assistir algo, você ainda dorme
automaticamente toda vez que vê algum filme?

Reviro os olhos, embora concorde silenciosamente.

Mike faz meu chá preferido e em seguida vamos até a sala onde ele escolhe um filme qualquer na
Netflix em que o mocinho morre, é razoavelmente interessante e eu estaria dormindo há muito
tempo se não tivesse tomado um dos meus remédios quando ele não estava vendo, o que me
mantém perfeitamente acordado, o mesmo não se pode dizer de Michael que dorme ainda no
início, no começo ele estava bem animado e falante, porém antes dos dez minutos ele desabou.
Quando sua respiração bateu contra meu pescoço foi que eu me dei conta de que sua cabeça havia
escorregado para o meu ombro.

Eu me sinto morbidamente culpado de sequer contemplar o seu rosto, assim de perto. É como se eu
fizesse de novo, como se eu o traísse novamente.

Aquele dia foi terrível.

Harry só tremia, andava de um lado para o outro em tempo de arrancar os cabelos, falando que não
podia lidar com aquilo.

Pensando bem, ele disse mais alguma coisa. Mas o quê?

Oh sim.

Que eu precisava cuidar daquilo pra ele.

— Você precisa fazer alguma coisa. Você precisa cuidar disso, eu não posso, eu não consigo, por
favor...

Era o que ele repetia incessantemente.

Eu cuidei daquilo, eu fiz uma promessa e a estou quebrando agora. Não é pra menos que ele não
me quer.

O despertador do meu celular toca, não é como se eu precisasse acordar, uma vez que nunca
durmo, mas serve para que eu reveja meu papel de parede onde Harry está segurando Blake
quando recém nascido, eu não estava presente por conta do coma, porém, Anne me disse que
aquela foi a primeira vez que ele sorriu depois da morte de Eve.

Eu preciso tê-lo de volta!

Saio do sofá com cuidado para não acordar Clifford e vou até o meu quarto tomar um banho frio, é
uma manhã quente, deixo Spencer na creche a caminho do trabalho. É um dia aparentemente
comum. Niall ainda está tentando me conquistar com suas habilidades inúteis e errando sempre na
quantidade de açúcar no meu café. As investigações estão lentas.

Luke não dá as caras por lá, justamente quando eu queria saber se ele conseguiu alguma coisa com
o celular de Aaron.

A tarde chega rápido e as três estou dirigindo para pegar Spencer e Blake também, hoje eles
ficarão com a vovó e sua animação é totalmente justificada uma vez que ela faz qualquer doce que
eles quiserem. Assim que adentro ao grande portão negro do condomínio e contorno o jardim
florido ouço os latidos de Sonny, seu pelo claro é soprado pelo vento enquanto ele corre tentando
acompanhar o carro.

Harry está sentado nas escadas da varanda, usando óculos escuros, scarf no pescoço e uma blusa
preta de seda desabotoada, nada casual, mas avassaladoramente lindo.

Blake e Sonny correm para ele, um gritando e o outro latindo. Harry sorri para os dois, abraçando
um por vez antes de deixar que eles continuem com sua gritaria do lado de dentro.

Spencer se agita no meu colo ao que caminho em sua direção. A postura do meu marido
automaticamente enrijece ao nos ver, posso ver pela forma como brinca com seus anéis que não
tem nada de calmo. Ele quer mais do que tudo segura-lo.

A princípio fiquei confuso e irritado por não entender o que havia acontecido entre eles, até Harry
me confessar cheio de remorso que havia deixado as fotos do caso de Evangeline na sala onde
Spencer viu as imagens, ele disse ter sido rápido, mas o bastante para assusta-lo e que em meio ao
choque gritou com o bebê que passou a repudia-lo por isso.

Havia sido um infeliz incidente, Spencer já parecia ter esquecido e não desenhava mais nada de
estranho na escola. Tudo parecia bem e agora era hora de fazerem as pazes.

— Lembra do que falamos de manhã? — Sussurro para Spen que assente várias vezes com a
cabeça — Ótimo! — O coloco no chão e ele caminha, de início incerto, até tornar-se decidido para
correr em direção a Harry que afasta as pernas para recebê-lo com um abraço apertado.

Spencer praticamente desaparece quando os braços de Harry o envolvem e seu cabelo longo cobre
todo o rostinho dele, que começa a rir porque ele sinceramente ama todos aqueles cachinhos e já
deveria estar morrendo de saudades de fazer nó neles.

— Amigos de novo? — Harry pergunta quando eles se afastam.

Nosso filho sorri e balança a cabeça, levando a mãozinha rechonchuda para a barriga do pai.

— Tem bebezinho. — Cochicha como se fosse um segredo.

Harry deixa o queixo cair e pisca atônito, até olhar pra mim e eu dar de ombros, sem querer
assumir a fofoca.

— Sim, tem um bebezinho.

— Onde? — De repente Blake surge por de trás do ombro de Harry, puxando seu cabelo e
querendo se inteirar da história.

— Na barriga do papa! — Spencer responde.

— Mentira! A barriga do papa não tem bebê! — O outro retruca.

Resolvo cruzar os braços e observar a distância o desenrolar daquela conversa interessantíssima.

— Por que não? — Harry se vira para ele que vai se apoiando no cacheado ao descer para falar
diretamente com Spencer que tem uma expressão emburrada por ser contrariado.

— Porque quando tem um bebê a barriga fica bem grandona e a barriga do papai é pequenininha.

— É porque o bebê ainda é sementinha! Seu bobo!

— Eu não sou bobo. — Blake diz sentido.


— É sim. — Não satisfeito, Spen ainda lhe dá a língua.

Em questões de segundos eu preciso impedir que um punho minúsculo acerto-o no meio do rosto
quando Blake perde a paciência.

Tirando a quase briga, ambos ficam animados com a notícia de que terão um irmãozinho ou
irmãzinha. Eles fazem mais algumas milhares de perguntas sobre o bebê, tocam a barriga de Harry
e Blake resolve ir brincar com Sonny, Spencer fica mais um pouco, matando a saudade de seu pai
predileto, esparramado no seu colo, mexendo no seu cabelo e falando sem parar.

Quando volto para a varanda, depois de conversar por mais de uma hora com a minha sogra eles
ainda estão juntos, Spencer com a cabeça jogada sobre o braço de Harry e suas perninhas
balançando tranquilamente.

Escuto apenas o final da conversa deles que me faz querer fugir o quanto antes.

— E o titio Mike vai poder me visitar? Ele disse que é padrinho meu.

Titio Mike. Merda.

Dou graças a Deus por não estar no campo de visão de Harry naquele momento.

Há uma longa pausa antes que ele responda.

— O titio Mike... — O desprezo dança em seu tom de voz — é uma pessoa muito ocupada, não sei
se ele vai poder vir.

— Ah, mas se o papai chamar ele vem. O titio Mike gosta muiiiiiito do papai Lou, sabia?

— Sim, eu sei que ele gosta bastante do seu pai. E você acha que o papai também gosta muito
dele?

Merda! Merda! Merda!

— Não! — Spencer responde estridente, quase ofendido — O papai só gosta do papa Hairy.
Porque você é a princesinha mais linda de todas!

— Eu sou a princesinha, agora?

— Sim, princesinha do papai.

— Okay. — Só pela voz de Harry posso dizer que ele está sorrindo — Agora vai brincar com o
Sonny e o seu irmão.

Spencer pula para o gramado e sai correndo para os outros dois e eu vou chutar que é algo parecido
com pega-pega.

Quando a situação parece não apresentar mais perigo, sento ao lado de Harry. Permanecemos em
silêncio, o tipo de silêncio calmo e confortável, onde apenas apreciamos nossos melhores trabalhos
em parceria tentando serem mais rápidos que um labrador.

É tragicamente hilário.

— Os olhos deles estão verdes hoje. — Comento batucando meus dedos no joelho.

Harry desvia o olhar das crianças, ele está sério até se desmanchar em uma gargalhada como só ele
tem.

— O quê?

Meu marido continua rindo com os olhos lacrimejantes.

— Você notou que os olhos deles mudaram de cor, mas ainda não percebeu que vestiu o Spencer
com a camisa ao contrário.

— Espera, não! — Olho para o garoto, correndo animadamente com a camisa do avesso. Eu bem
senti falta da estampa e definitivamente a etiqueta deveria ter me dado uma pista — Eu sou um pai
terrível.

— Eu também sou, aquele camisa é horrível! Por que eu faço isso com meu filho? — Se lamenta,
sem deixar de rir.

Vê-lo assim preenche meu coração de um sentimento de tão plena alegria.

— Eu te amo. — As palavras escapam da minha boca.

Harry para de rir e então se inclina e me beija, tão leve e macio que parece um sonho. Respiro seu
perfume e a sensação de seu rosto aninhado ao meu.

— Eu amo você, meu amor. — Confessa de volta e me puxa para que possamos entrar na
brincadeira das crianças.

As coisas ficam perigosas quando Anne traz arminhas de água, e eles não tem a menor chance
contra mim. Eu devo tê-los matado umas dez vezes antes que em um ataque elaborado, Spencer
surge como isca, enquanto eu tento acerta-lo, Sonny vem por trás batendo em minhas pernas e me
derrubando, Blake rouba minha pistola e Harry senta no meu estômago, apontando a sua pistola em
direção ao meu rosto.

Levanto as mãos em rendição.

— Eu desisto!

— Tarde demais. Nós pegamos você. — Mantém a mira, impassível.

— Harry, eu sou seu marido, nós fizemos juramentos, eu sou pai dos seus filhos, nós nos amamos,
como pôde fazer isso comigo? — Dramatizo, recebendo um revirar de olhos. Ele nunca esteve tão
sexy quanto agora, de preto debaixo do sol escaldante, descabelado, com o rosto vermelho
empunhando uma pistola de plástico pra mim.

— Foi tudo uma farsa, eu só me aproximei de você doze anos atrás pra poder te pegar agora, você
nunca suspeitou de nada. — Ele vai além e ambos tentamos não rir quando as crianças estão dando
gritinhos e pulando, torcendo pra ele me matar. Até mesmo meu cachorro está contra mim.

— Você me traiu, afinal de contas quem é você?

Algo estranho acontece, a minha pergunta idiota parece surtir algum efeito nele. Seu sorriso vacila
e ele olha para mim como se estivesse completamente perdido e assustado. Acho que ele encarou
essa última parte mais a sério, Harry sempre foi meio lento.

— Vamos, acabe logo com isso. Me mate.

Ele empunha a arminha como se segurasse uma de verdade, me encara diretamente nos olhos e por
um momento parece que não estamos no meio de uma brincadeira, de repente aquelas palavras
parecem tão sérias e sombrias.

O dedo de Harry está sobre o gatilho.

Ele vai me matar!

— Eu não consigo fazer isso nem de brincadeira. — Suspira, soltando a arminha no chão,
aproveito para agarra-lo pelos quadris e coloca-lo contra o chão, reavendo sua arma e o acertando
no rosto, Harry grita como se estivesse se afogando no oceano aberto, os meninos tentam me
levantar de cima dele, dizendo que eu vou fazer dodói no bebê e Sonny late sem parar.

Quando eu levo Harry para o banheiro para que ele possa secar o rosto, ele me encara sobre o
ombro com um bico emburrado.

— Você não pensou duas vezes antes de me matar.

Sorrio um tanto arrogante.

— Eu sou um homem prático.

— Você é mau. Assassino!

— Mortos não falam, Harold! — Dou um tapa forte na sua bunda antes de sair, do corredor o
escuto me xingando e tudo está as mil maravilhas.

Durante o almoço fico sabendo que Harry teria uma consulta hoje e que não estava muito animado
para ir.

— Nós estamos nos divertindo tanto. Eu posso remarcar depois. — Teima, brincando com os
botões da minha camisa.

— Sua mãe me disse que você tem faltado em muitas consultas.

— As coisas tem sido meio corridas, sabe...

Seguro seu queixo.

— Nós vamos, okay?

Ele me olha com uma ruguinha teimosa entre as sobrancelhas, a desmancho por meio de beijos que
vão descendo por sua bochecha, queixo, até parar na boca e se não fosse por dois pequenos
intrometidos as coisas teriam esquentado muito mais do que deveriam naquele corredor.

Xx

Atribuo o declínio daquela tarde divertida ao Dr. Barnes. Harry tinha ido todo o caminho falando
sobre como não conseguia entender nada do que a Dra. Fitzgerald falava por conta de seu sotaque
russo, enquanto devorava duas caixas de bombons, depois de ter almoçado e repetido algumas
vezes e ter tido a sobremesa.

Ele estava alegre e tagarela até a recepcionista nos informar que sua médica tinha tido um problema
pessoal e precisou ir embora mais cedo, porém o deixou nas mãos habilidosas do Dr. Barnes. Este
era um velho conhecido nosso, um excelente médico e sabíamos disso porque ele foi o médico de
Harry na sua primeira gravidez, o responsável pelo parto de Evangeline.
Ele também foi o pediatra dela, que lhe dava um pirulito quando ela aguentava sem chorar as
vacinas e imitava sons de monstros que a faziam saltitar por esse mesmo consultório, assim que o
adentramos qualquer resquício de alegria em meu esposo morre. Harry tem aquele olhar distante e
sombrio, como o de um animal ferido.

O doutor chega em seguida, conservando-se o mesmo de sempre, ele de princípio não nos
reconhece, Eve mudou de médico quando tinha cinco anos quando o médico se mudou para Nova
Orleans, quem imaginaria que ele estaria de volta.

Então quando ele lê nossos nomes com um pouco mais de atenção, reavê as memórias passadas.

— Eu sabia que conhecia esses rostinhos de algum lugar. Vocês eram duas crianças quando nos
conhecemos. — Ele ri.

Tento acompanhá-lo, uma vez que Harry parece estar no modo avião.

— Sim, já faz tempo.

— E como vai a pequena bailarina? Já deve estar uma moça, imagino o quão linda ela ficou. Os
garotos devem estar batendo em sua porta querendo levá-la ao cinema.

Engulo em seco.

Olho para o doutor, é um velho senhor a beira dos oitenta, não me parece justo dizer a ele que uma
de suas antigas pacientes morreu baleada antes dos dez anos.

Então eu só...

— Ela está ótima! Realmente linda e os garotos não são bobos de mexer com a filha de um policial.
— Dizer aquilo automaticamente traz lágrimas aos meus olhos e um soluço a minha garganta, mas
eu não liberto nenhum dos dois. Diferente de Harry que começa a chorar ali mesmo.

— Oh, os hormônios, eles te deixam tão sensível, não é mesmo?

Harry olha para o médico, frio e raivoso, beirando a sanguinário.

— Sim. Hormônios.

Nesta ultrassom ainda não é possível descobrir o sexo da criança, porém podemos ouvir as batidas
altas e ritmadas de seu pequeno coração. O doutor precisa dar um generoso zoom para que eu
consiga discernir a cabeça do pé do bebê.

Eu estou empolgado feito uma criança.

Até peço uma foto.

Harry estava dividido, por vezes ele olhou encantado para a tela, sorrindo e tocando a barriga, em
outras fechava a cara e franzia os lábios para baixo, baixando os olhos com escárnio para o ventre.

A última era a sua expressão atual, depois que o doutor me entregou a foto nos deixou a sós para
que Harry pudesse se limpar e fechar a camisa, ele o fez em um silencioso insuportável, ignorando
quando lhe ofereci a mão e marchou na minha frente até o carro, a indiferença se perpetuou durante
todo o caminho em que o peguei por vezes resmungando consigo mesmo.

Automaticamente lembrei de quando Spencer falou sobre as conversas que Harry tinha sozinho.
Se ele era louco...

Olho de soslaio, seu rosto bonito, porém fechado, os cabelos sendo soprados contra o vento e a
maneira discreta com que seus lábios vão se movendo a cada palavra sussurrada.

Ele não é louco.

Mas é claro que tem algo de errado com ele.

De supetão ele muda tão completamente que me leva a impressão de que é outra pessoa, quer
dizer, é como uma espécie de usurpador, ele tem o mesmo rosto, a mesma voz, o mesmo cheiro, no
entanto não é ele. Pode ser estresse, claro, ou a gravidez, possivelmente tenha a ver com todo esse
turbilhão de crises que temos enfrentado, mas é um fato, o meu Harry está perdido em algum lugar
e eu desconheço a pessoa sentada ao meu lado.

Quando chegamos em casa a primeira coisa que ele faz é bater com a porta na minha cara.

— Amor, o que houve? — Indago depois de empurrar a porta, o puxando pelo braço.

Ele me repele com um tapa ardido justamente na minha mão onde os pontos da amputação ainda
cicatrizam. A dor me enfurece.

— Cala a boca e não encosta em mim. — Grita seguindo em direção a cozinha.

Meu subconsciente dita que é melhor ir embora, deixar que ele se acalme sozinho, dar espaço e
tempo, mas que se foda!

Nunca fui do tipo que foge de confusão.

— Calar a boca? Que porra deu em você pra falar assim comigo? — O encurralo contra o armário,
meus punhos se apertam ao lado do meu corpo para não toca-lo e acabar fazendo alguma merda —
Eu já estou cheio disso! Eu não sou seu brinquedinho pra ter por perto só quando convém, eu sou
seu marido, caralho, o pai do bebê que você está carregando.

Harry pisca lentamente, erguendo os olhos escuros para o meu rosto, sua mandíbula trava
duramente.

— Esse "bebê" não é meu e talvez nem seu.

Como é que é?

Tropeço para trás, sentindo meus ossos tremerem.

Harry me olha com os olhos estreitos. Completamente diferente de como estivera mais cedo.

Ele é frio, distante e... Me lembra muito seu aspecto da noite da exposição.

— Você não pode ter feito isso, você e o Aaron...

— Aaron? Deus, não! Como pode ser tão imbecil? — Ele diz como se estivesse lhe dando nos
nervos e tenta se afastar, mas o alcanço assim que ele entra no quarto, o pego pelo braço, ele luta
para se soltar me obrigando a encurralar o cacheado entre meu corpo e a parede.

— Me solta. — Geme, tentando soltar seus pulsos das minhas mãos que os mantém acima de sua
cabeça — Eu vou gritar!
— Fique à vontade.

— Você que pediu... — Está prestes a gritar quando tapo sua boca, seus olhos esmeraldinos
dobram de tamanho e ele me morde. Praguejo, jogando-o para o meio da quarto, ele cai estatelado
na cama, mas logo tenta sair de novo.

— Meu Deus, Harry, o que há com você? Eu sei que a gravidez causa todas essas alterações de
humor esquisitas que você tem tido nos últimos meses, mas isso já é demais. Você está tornando
nossas vidas um inferno e destruindo nosso casamento. — O seguro pelos cotovelos, Harry me
olha como se eu fosse o diabo.

— Talvez eu não possa falar por ele, mas foi você quem destruiu tudo. Foi você quem dormiu com
Michael Clifford, não, espere, dormir é muito baixo, vocês viveram um romance, não foi? Uma
linda história de amor. Desculpe por atrapalhar, embora você sempre tenha feito um excelente
trabalho em me ignorar. O único brinquedo aqui sou eu, você não me enxerga, Louis. Doze anos e
você nunca notou.

— Nunca notei o quê? — Minha voz é baixa.

Meu marido abre a boca como se fosse falar, contudo muda de ideia.

— Hazz, fala comigo.

Incapaz de sequer me encarar, se desvencilha de mim e deita-se por completo na cama, o rosto
pressionado contra os lençóis. A voz saindo abafada ao dizer:

— Esquece, não me dê ouvidos! Eu sou só... Um idiota, um estúpido que não faz o menor sentido.

Embora esteja um tanto enraivecido por ele jogar a história do Clifford pela milésima vez na minha
cara, eu não consigo suportar ouvi-lo se diminuir daquele jeito.

— Amor... — Me inclino, acariciando seus cabelos.

Harry se encolhe, sussurrando em desespero:

— Eles tem razão. Eu deveria sumir... — Soluça baixinho.

— Já chega! — Grito, o puxando pra que ele se volte pra mim — Só... Por favor, para com isso. Eu
te amo, eu quero ficar com você, mas se você não-

— Eu te amo. Eu quero ficar com você pra sempre. Eu só não... Não sei o que tem de errado
comigo. Acho que preciso de ajuda.

Apoio as mãos aos lados de sua cabeça e torno a acariciar seu cabelo com a destra, sustentando seu
olhar de filhote perdido.

— Vamos voltar pra terapia e vamos fazer certo dessa vez, ok? Vamos cuidar do nosso casamento,
eu vou cuidar de você, amor.

Harry assente e uma sombra de um sorriso perpassa por seus lábios que de repente são
pressionados contra os meus. A surpresa me faz ofegar e ele se aproveita desse deslize para
escorregar sua língua para a minha boca, aprofundando o beijo, ao que tenta desafivelar meu cinto
e acaba esbarrando na Glock em minha cintura.

— Oh. — Solta assustado.


— Desculpe. Eu já deveria ter tirado isso. — Me afasto para poder deixá-la sobre a cômoda.

Quase deixo a arma cair quando sinto beijos molhados sendo espalhados acima da minha clavícula,
ele dobra a coxa e esfrega sua ereção já formada exatamente sobre a minha.

— Harry! — Deveria ser uma repreensão, mas sai como um gemido.

— Lou! — Geme em resposta, puxando violentamente meu cabelo para trás e sugando um
hematoma em meu pescoço.

É bom, mas mesmo assim...

— Espera. — Coloco uma pequena distância entre nós.

— O quê? Está com medo que o seu marido chegue mais cedo? — Brinca sem qualquer resquício
de divertimento na voz.

— Hãn? Eu não entendo essas variações de humor, até parece que você está bêbado.

Harry revira os olhos, caindo de volta na cama, os cabelos longos se esparramando pelo lençol e a
camisa aberta me dando a visão privilegiada de seu tronco se movendo suavemente ao respirar.

— Talvez eu esteja. — Rebate, tirando a mão do meu campo de visão, a reencontro no momento
em que ele a usa para apertar meu membro — Mas é de tesão.

Ele começa a mover a mão lentamente, me provocando.

Tenciono a mandíbula tentando me concentrar em qualquer parte aleatória do quarto, não importa
o que, apenas para não admitir pra mim mesmo que uma punheta de meio minuto está prestes a me
dar o primeiro orgasmo em semanas.

Que vergonhoso!

Sinto meus músculos tensos, o frenesi cobrindo a minha pele e meus dedos se agarrando a colcha,
estou perigosamente perto quando ele para.

Movo o quadril tentando algum tipo de fricção, mas sua mão não está mais lá. Harry me puxa pela
gola da camisa, me forçando a encara-lo.

Deus, de perto ele é ainda mais lindo.

Existe algo naqueles olhos que não me deixam desviar.

— Já que você está tão desesperado pra gozar porque não faz isso dentro de mim? — Diz com a
voz rouca.

Meus braços vacilam e eu caio completamente sobre ele.

Puta merda, faz tanto tempo! Quando foi a última vez?

Acho que no dia do parque. Aquilo tem bem mais de um mês.

Estou praticamente revirginado, o que explica o fato de estar esporrando nas calças feito um
adolescente.

— Isso significa que você quer que eu volte pra casa? — Afasto o decote de sua camisa, o mamilo
rosado já está intumescido, sopro superficialmente rodeando a auréola com a língua.

Harry arqueia as costas, pedindo silenciosamente por mais.

— Não... — Sussurra afetado quando chupo seu mamilo direito, torcendo o esquerdo entre os
dedos — , significa que eu quero que você me foda.

É quente, pra caralho, porém, não é o que eu queria ouvir.

O meu desgosto deve ser evidente porque meu marido se apoia nos cotovelos e arrasta a boca
aveludada pela minha barba, gemendo baixinho porque ele adora a sensação e eu adoro ouvi-lo.

Fecho os olhos e Harry arranha meu pescoço.

— Eu tenho sido péssimo com você e eu sei que você está fervilhando de raiva há um bom tempo.
Não podemos voltar antes que você possa desconta-la em quem a merece.

O olho de soslaio, cético.

— Casais normais costumam conversar.

Ele ri e se remexe embaixo de mim pegando algo em meu bolso. Ele balança a algema diante dos
meus olhos aos retrucar:

— Como se algum de nós fosse normal. — E a empurra pra mim. Fico de joelhos, o observando
sobre a cama, me esperando ansioso enquanto dedilho o objeto de metal grosseiro.

— Isso não é um brinquedo sexual. São algemas de verdade, do tipo que você não pode se soltar,
além disso, vão ferir seus pulsos se você se mover muito. Não quero que se machuque.

Pela segunda vez ele revira os olhos pra mim e lambe o último botão da minha camisa.

— Não precisa fingir se importar, você é um filho da puta egoísta que não se interessa por nada
além de você mesmo, tudo bem, é o que eu adoro em você. Só faça o que tiver vontade.

Eu, egoísta?

Respiro profundamente.

Largo as algemas e me levanto.

Bem, ele está absolutamente certo.

Destaco os botões da camisa e a deixo cair no chão, corro os dedos pelos cabelos antes de reaver as
algemas. O cacheado continua a me encarar com aquela expressão de vadia arrogante que me dá
nos nervos. Ele também está certo sobre eu estar irado com ele.

Me inclino sobre ele, puxando seus braços para cima e algemando seus pulsos, no instante em que
as prendo ele resmunga.

— Está apertado. — Se contorce.

Seguro a scarf em seu pescoço que pressiona sua garganta quando o puxo em direção a mim.

— Agora você só vai abrir a boca pra gemer ou me chupar, fora isso, calado!
Assente obedientemente.

E volto a me afastar, desta vez o puxando pela scarf como a guia de uma coleira, ele engasga e cai
de joelhos diante de mim. Com os pulsos presos diante do corpo, me assiste abrir a calça e trazer
meu pênis para fora, como era de se esperar estou uma bagunça e é tudo por causa desse idiota
gostoso que levanta o rosto para mim, me olhando com os olhos imensos e límpidos, o rosto
corado – fala sério, eu nunca o vi corar, pensava que ele não tivesse essa capacidade – e uma
expressão que se pode dizer quase virginal.

— Essa é a primeira vez que você vê um pênis, baby? - Zombo beliscando seu queixo.

Ele parece prestes a confirmar quando, invés disso, pergunta:

— O q-que quer eu faça, senhor?

Senhor? É, eu gostei.

Geme quando toco delicadamente seu rosto. Oh, que sensível.

— Apenas fique parado e seja um bom menino.

Fecho a mão ao redor do meu pau começando a movimentar para baixo e para cima, enrijecendo
ainda mais ao sentir sua respiração quente e contemplar a forma como ele vai espremendo as
pernas e remexe a mão sobre o colo, ele está nervoso? Com a mão livre ergo seu rosto, seus lábios
estão cheio de pequenas marcas deixadas pelos dentes, amacio a carne avermelhada com o polegar
e ele vai se aninhando a mim como um gatinho.

Meu gatinho.

O pré gozo suja minha mão quando pressiono o polegar em direção aquela cavidade quente e
molhada, sem desviar o olhar envolve meu dedo com a língua macia o sugando como se fosse...

Era impossível não associar.

Tiro o meu dedo para envolver a mão ao redor da scarf o puxando em direção a minha ereção
necessitada, minha porra mancha seus lábios e no momento que ele os abre tudo perde o pouco
sentido que tinha.

Fecho os olhos, jogando a cabeça para trás e enchendo o punho com seus cabelos.

Ouço seu breve engasgo, mas ele não deixa de me tomar por inteiro. Esse é o segundo motivo pelo
qual me casei com ele, depois de ser o amor da minha vida, é dono do melhor boquete do mundo.

— Assim. — Digo com a voz rouca o guiando.

Me suga com força, enrolando a língua ao redor das veias, me torturando. Empurro o quadril,
enfiando-me mais fundo em sua boca. É excitante olha-lo, ele mantém aquele olhar falsamente
inocente pra me enlouquecer, meto repetidamente nele, observando meu pau afundando em sua
boca. Erótico é pouco para o que estou vendo e sentindo, estou tão perto quando...

Puta que me pariu!

Inferno!

Caralho!
Eu vou dar um tiro nele.

Ele me olha com a mesma expressão, beliscando o lábio inferior.

Agora eu estou literalmente tremendo de raiva.

— Você me mordeu. — Olho trêmulo para baixo onde posso ver exatamente as duas marquinhas
de seus dentes da frente.

— Foi sem querer, senhor. — Ele nem se esforça pra me fazer acreditar.

Ajoelho diante dele, sem saber o que fazer com esse petulante provocador quando noto a sutil
mudança. Ele me lembra daquele dia...

— Você fez isso de propósito, pra me provocar, você gosta de me ver bravo. Não tem nada a ver
com o Harry... É como um... — Me encara ansioso — um personagem. Um alter ego, é isso, não?
— Seguro seu rosto, minhas unhas arranham suas bochechas vermelhas — Você está tão parecido
com aquele quadro. É ela, não é? Sugar!

Seus olhos tem um brilho quase eufórico.

— Entendi, amor, esse é o seu jogo. Sugar, a garota que gosta de seduzir e ferir os homens.

Apoia as mãos no chão e levanta os quadris para ficar um pouco mais próximo de mim.

— Então você se lembra? Acho que gostou de mim.

— Eu lembro que te achei uma cadela.

Em resposta ele rosna.

Merda! Isso pode ser divertido.

Sem mais delongas o jogo de volta na cama, ele cai praticamente estatelado, se remexendo, mas
recebe uma palmada e a ordem de permanecer quieto. Arranco suas botas e puxo seu jeans por suas
pernas, me surpreendendo com o que encontro.

Corro os dedos por suas coxas até alcançar a renda preta da calcinha.

— Oh, a Victoria Secrets que eu paguei.

Ele consegue se firmar e ficar sobre seus joelhos, arqueando as ancas e balançando a bunda no ar,
se exibindo.

— Você não acha que foi um ótimo investimento?

— Definitivamente e não há nada mais apropriado para uma garota.

O ouço suspirar de êxtase.

Harry nunca falou sobre gostar de ser chamado no feminino antes, mas uma fantasia deveria ser
levada a sério, por mais súbita que fosse.

Encaixo meu quadril no seu, apertando uma banda e esfregando meu pau por entre elas, pensando
no quão fundo eu estaria dentro dele se não fosse por aquela pequena peça de roupa. Mesmo assim
a fricção é deliciosa, mancho sua bunda com o pré gozo que escapa e o espalho por ela, vendo sua
pele brilhar.

Mas não posso me esquecer da mordida.

Ela merece ser punida.

— Sabe, Sugar, se você não tivesse agido como uma cadela arrogante nós poderíamos estar
fodendo agora. — Digo tomando distância e caminhando pelo quarto em direção ao closet — Eu
poderia estar metendo bem fundo no seu cuzinho apertado e nossa única preocupação seria gozar
perdermos a razão. — Escuto seu gemido manhoso do outro cômodo e sorrio perverso comigo
mesmo, encontrando o que desejava junto aos meus uniformes. É tão brega, porém útil, retorno
para o cômodo com o objeto em mãos — Foi realmente uma pena porque agora vou ter que
castigar.

Me aproximo e ele vacila.

— O quê? Você tocou na minha arma, está usando algemas, pensei que quisesse o pacote completo
pra brincar de polícia e ladrão e isso... — Golpeio a minha mão com o cassetete - também está
incluso.

— Mas o que você pretende fazer com isso? — Pergunta e eu sorrio desatando o nó da scarf do seu
pescoço e a usando de mordaça.

— Você não é o único que pode fingir ser outra pessoa, querida. — Prendo bem, dando a volta
para parar atrás dele, sentindo a presença de alguém as minhas costas, mais especificamente
sentado na poltrona, pronto para ver o show.

— Isso vai ser divertido. — Lucian cantarola.

— Calado! — É a minha voz, mas com certeza não sou eu ali. Existe outro em meu lugar.
│13│hércules

— Louis! Louis! Pare com isso. Você vai matá-lo. — Alguém gritava distante enquanto minha
mente vagava pelo limbo, eu não sentia absolutamente nada, nada além do meu punho se chocando
contra a carne esponjosa, o sangue manchava meus dedos e o impacto dos ossos era incômodo,
mas não o suficiente para me parar. Nada me pararia, não enquanto ele estivesse vivo.

(...)

— Eu juro por Deus que não entendo o seu problema. — A diretora, Srta. Smiths repetia, andando
em círculos por sua sala. Meus pais estavam a caminho, a polícia estava lá fora e o garoto que eu
nunca tinha visto antes estava a caminho do hospital dentro de uma ambulância.

— E-Eu não fiz por mal. — Solucei angustiado, torcendo meus dedos sobre o colo — Eu juro!
Quando eu olhava pra ele, não era o Jack que eu via, era outra pessoa, não foi por querer, não
queria machucar ninguém. Me perdoa, por favor.

— É sempre a mesma desculpa. — Ela se sentou em sua cadeira, a mesa entre nós e seu olhar
cortante caindo sobre mim — Quando você apenas gosta disso, não é, Louis? Você gosta de ferir
os outros. Te faz se sentir superior? Te ajuda a esquecer que você é na verdade um fraco?

Desvio a atenção dos meus dedos para encara-la diretamente. Até então ninguém me olhou daquele
jeito antes. Um olhar de repulsa e medo.

— Por que está dizendo isso?

— Porque eu conheço seu pai e sei que você está se tornando exatamente igual a ele. — Srta.
Smiths colocou as mãos sobre a mesa e abaixou o rosto, alinhando-o ao meu, a voz baixa e fria,
sussurrante ao dizer: — Um maldito psicopata.

Por um instante fiquei magoado, no seguinte enfiei o lápis em sua mão.

(...)

— Eu não quero ir! — Resmunguei me agarrando ao travesseiro e correndo para dentro do


armário. Minha mãe que já tinha a mala pronta em mãos revirou os olhos, dando mais um trago em
seu cigarro, ela estava aborrecida comigo e tinha mais uma das minhas muitas irmãs na barriga.

Porém, meu pai dizia ainda ter um pouco de paciência e pediu que ela já fosse descendo com as
minhas coisas. Quando ela saiu, me arrastei mais fundo pra dentro do closet.

Mark entrou, calmamente, afastando os casacos do caminho e chutando meus sapatos, ele parou
exatamente a um milímetro de me pisotear.

— Não me diga que é um covarde. — Resmungou, severo como sempre foi.

— Não sou... — Retruquei ofendido, embora apavorado, enfiei o rosto no travesseiro — mas eu
não quero ir. Se eu pedir desculpas talvez eu possa ficar...

— Pedir desculpas? — Mark cuspiu enraivecido — Mas você mesmo disse que ela havia nos
chamados de psicopatas, quer mesmo se desculpar com alguém que ofende você e o seu pai? Que
tipo de verme é você?
— Não me chama de verme. — Gritei chutando sua canela.

Em um piscar de olhos ele se abaixou, com o punho fechado na parte de trás dos meus cabelos me
arrastou para fora do armário e me jogou na cama. O cinto já estava em sua mão quando ele
começou a se aproximar, normalmente eu teria medo, fugiria, choraria, me acuaria, mas por algum
motivo o meu corpo queria reagir. E foi exatamente o que eu fiz, tão rápido quanto ele podia ser,
puxei o abajur e o acertei na cabeça, meu pai cambaleou e caiu.

Pulei em seu peito, socando-o sem parar.

— Eu não sou um verme! Não sou! Não sou! — Berrava possesso, golpeando constantemente.

Até que ele segurou meus punhos e levantou o rosto, o sangue escorria em abundância de seu
couro cabeludo, mas por algum motivo desconhecido ele me olhava com orgulho e sorria.

— Não, você não é um verme, meu garoto, você é perfeito, Louis.

— Incrível para o quê?

— Para o exército.

(...)

Depois de ter sido considerado alguém com sérios problemas de raiva e impulsividade e ter
atacado a minha diretora, foi decidido que eu deveria ser transferido para uma escola militar.
Aquele era o meu maior pesadelo, aquele ambiente me assustava, embora fosse de mim que todos
se afastavam e sopravam boatos horríveis.

Eu era o monstro. O Hulk da vida real. O garoto que perdia a cabeça com facilidade e não via
dificuldade em fazer coisas monstruosas com quem quer que fosse. Eu mesmo começava a ter
medo de mim, tinha medo de machucar as pessoas que amava. Será que eu nunca poderia amar
alguém? Me apaixonar? Me casar? Não, seria perigoso demais, não poderia correr o risco de sujar
as mãos com o sangue do meu amor, não poderia suportar. Eu era um monstro e nada mais justo do
que viver sozinho para sempre.

— Ei, garoto. — Era o capitão Carter, ele se sentou ao meu lado no banco aos fundos da escola,
para onde eu tinha fugido depois de me descontrolar mais uma vez — Não precisa chorar.

— Sinto muito. — Funguei, esfregando os olhos — Eu não queria...

— Eu sei disso, todo mundo sabe. O Holland vai ficar bem. — Disse despreocupado.

— Parece que só piora, eu não aguento mais ser assim, malvado e violento, ninguém quer ficar
perto de mim. Eu sou amaldiçoado. — Bradei entre o choro e algo dentre estas palavras atraíram de
imediato o descontentamento do capitão que tratou de me chacoalhar pelos ombros.

— Escute aqui, garoto, não ouse falar que você é amaldiçoado. Eu nunca vi ninguém tão forte
assim, e você tem o quê, dez, onze anos?

— Eu tenho nove.

— Nove anos, Louis, e já é quase imbatível. Imagine do que você será capaz com o treinamento
adequado, com as armas adequadas. Invencível, no mínimo. Poderia fazer qualquer coisa, contra
quem quisesse.
— Mas eu não quero machucar ninguém. — Murmurei.

O capitão balançou a cabeça, rindo como se tivesse ouvindo alguma piada.

— É justamente o contrário, você quer machucar, quer tanto que aceita fazê-lo com qualquer um.
De vez em quando surgem pessoas pelo mundo assim como você, que nascem cheias de ódio, você
tem muito ódio dentro de si, Louis, um ódio inexplicável e mortal, que precisa ser descontado em
alguma coisa. Você tem muito potencial...

— Pra ser um soldado, senhor?

— Claro, definitivamente. Potencial suficiente para ser um grande herói... — Sorri ao ouvi-lo. Eu
queria ser um herói, mas então seu semblante escureceu e desfiz o sorriso — ou um exímio
assassino. Eu não consigo imaginar qual dos dois você será, Louis, seja lá qual for, tenho pena de
quem ficar no seu caminho.

Xx

Lucian está bem atrás de mim, o queixo apoiado no meu ombro, um sorriso maníaco partindo seu
rosto eufórico em dois.

— Hum, isso é tão excitante, veja como ele está preso, nessa posição completamente a nossa
mercê. Há tanto que podemos fazer. — Cantarola no meu ouvido. Eu a sinto dentro de mim,
despertando e se revirando como um antigo vulcão adormecido voltando pouco a pouco a ativa, a
lava efervescente começando a correr pelas minhas veias, elevando meus níveis de adrenalina, de
raiva, de ódio... Não, ódio, não!

— Quieto. — Minha voz soa tão baixo que nem mesmo uma alucinação é capaz de escutar.

— Ele tem uma pele tão macia. — Acaricio a cintura de Harry como que para tirar a prova — Viu?

— Tão macia. — Repito sendo levado por suas palavras.

— Deve se rasgar tão facilmente, não precisaria de força alguma, apenas uma lâmina
suficientemente afiada, igual a que você tem na bota, não é? Seria perfeita.

Torno a tocar a mesma região, mas não com carinho e sim arranhando e novamente Lucian está
certo, sua pele é tão fina e frágil que logo fica marcada, um pouco mais de pressão e ele sangraria.

— Você já o viu sangrar, Louis? — Lucian indaga, se afastando para ficar do outro lado da cama,
bem a minha frente.

— Já. — Puta que me pariu, eu estou tremendo.

Fazia tanto tempo que eu não me sentia assim. Todas essas confusões não me deixaram ir atrás de
Zayn ou Calum, ah, sim, Calum podia me ajudar, ele tinha aquilo que me mantinha sob controle,
mas agora eu estava paralisado, sendo encantado pelas palavras insanas ditas por esse demônio
podre e provavelmente o obedeceria em tudo porque... Bem, porque ele sou eu, certo? Ele sou eu,
verbalizando os meus desejos mórbidos e sanguinários. O animal que sempre viveu em mim e
agora tem a cara e a voz desse verme desprezível.

— Sim, ele fica tão bem de vermelho. Por que não faz só um cortinho, apenas por diversão.

— Onde? — Me vejo inquerindo. Eu não sei escapar disso.


Ele não diz, mas sinaliza, o indicador deslizando pela garganta.

Será apenas um cortinho.

O seguro pelos quadris e o giro, meu marido está estranhamente quieto, os olhos pequenos como se
estivesse sonolento, fora de si. Ele costumava entrar no subspace nas raríssimas ocasiões em que
tentávamos algo um pouco mais intenso, no entanto, não estou presente o bastante para constatar
nada.

— Vamos, Louis. — Lucian insiste — Oh, espere! Roxo também pode ficar bem. — Estou
confuso até que ele me lembra do cacetete em minha mão.

Olho para o objeto não me recordando de sequer tê-lo pegado.

— Onde?

Ele volta a sinalizar, a mão massageando o estômago. Lucian quer que eu acerte a barriga de Harry,
existe um incomodo com a ideia, mas eu sinceramente não me lembro. O que eu estou
esquecendo?

— Faça, agora. — Ele ordena e eu firmo o aperto. E como quando eu era criança, sinto que sou
feito de ódio, ele me domina e eu obedeço.

Então acontece.

Uma dor que extrapola qualquer uma que eu já tenho sentido antes, fico tonto e caio ao seu lado na
cama. Depois de ter chutado meu ferimento ainda em cicatrização na perna, Harry senta em cima
de mim, minha cabeça está girando, enquanto ele pesca a chave das algemas na cômoda e se solta
habilmente, transferindo as algemas para os meus pulsos.

— Harry... — Tento falar e ele bate com o cacetete na minha bochecha — Caralho!

— Eu não tenho interesse em palavras, meu bem. — E mantendo a mão sobre o meu pescoço ele
se inclina para trás, afim de envolver meu membro entre os dedos. O mesmo toque súbito e áspero
da noite da festa de Liam quando ele me masturbou sem me dirigir a palavra, ele é o mesmo
daquele dia. Frio, impessoal, pensando única e exclusivamente nele, o que de certa forma alivia a
minha raiva, como se esse Harry pudesse domar o que há de ruim em mim.

Apesar dele não parecer se importar muito com o que acontece comigo da cintura pra cima. Tê-lo
sentado sobre o meu quadril, com a camisa preta caindo pelos ombros e a scarf amarrada ao seu
pescoço, caindo por entre seus mamilos rubros e intumescidos e vestindo uma pequena calcinha é
mais do que o suficiente para que eu torne a ficar duro em questão de instantes. Meu marido afasta
a calcinha e sem mais está tomando meu pau inteiro dentro de si, ambos perdemos o ar, me sinto
sufocando e jogo a cabeça para trás, contorcendo os pulsos sob as algemas.

— Isso não é divertido. — Abro os olhos minimamente, desconfio que eu esteja no tal subspace
agora. Encaro Lucian de cabeça pra baixo, sua carranca mal humorada encara um ponto
desconhecido. Não tenho energia, tampouco tempo para respondê-lo quando sinto unhas se
afundando na pele da minha mandíbula e minha boca ser coberta por outra, Harry me beija
profundamente, sugando minha língua e gemendo descaradamente contra meus lábios. Quando se
afasta, suas bochechas estão coradas e o cabelo caindo pelos ombros toca o meu rosto.

Um fio de saliva mantém nossas bocas conectadas, não consigo pensar em nada além dele. É no
que o meu mundo inteiro se resume nesse momento.
— Você não precisa pensar, nem ver nada além de mim. Eu sou tudo pra você agora, certo? —
Movo a cabeça devagar, assentindo — O que houve? Não consegue falar? Mas você pode me
sentir, meu bem? Bem aqui. — E como se ele não estivesse apertado o bastante, se espreme ainda
mais ao meu redor, me matando um pouco mais.

— Sim, eu posso. — Respondo ofegante quando ele levanta e então desce de volta em mim.

Minha respiração sai entrecortada enquanto luto para me conter. Já perdi a conta de quanto tempo
faz desde a última vez em que estivemos juntos, a única certeza que possuo é que faz longas
semanas e por isso não há certeza alguma de que eu seja capaz de aguentar, principalmente quando
Harry faz questão de sentar em mim com tanta força, mesmo algemado, tento trazer as mãos para
frente do corpo e controlar seus quadris.

Ele é mais rápido e segura a corrente entre as algemas, mantendo minhas mãos sobre a minha
cabeça e propositalmente arranha desde o meu pescoço até a clavícula como uma forma de
punição. Os vergões são ardidos e vívidos sobre a minha pele onde pequenas gotículas de sangue
se revelam.

Não sou o único propenso a violência aqui.

Resolvo ser obediente e deixar que ele tenha total controle da situação, apenas observando como
seus olhos, agora escuros, ardem de desejo. Lascivo. Harry geme alto, arqueando todo seu corpo
maravilhosamente delicioso em cima de mim, jogando a cabeça para trás, o cabelo cascateando em
uma bagunça de cachos pelas costas e mais do que nunca desejo enterrar meus dedos neles.

Rendido por completo, fecho meus olhos, saboreando deliciosamente cada centímetro dentro dele.
Ansiando por mais, me atrevo a erguer o quadril, indo de encontro ao dele.

Puta merda!

E isso consegue tornar tudo ainda melhor. Mordo os lábios para não gritar ao que juntos
encontramos o nosso ritmo selvagem com ele montado em mim, gemendo alto e me mantendo sob
seu domínio. Posso sentir a sensação familiar se projetando no baixo ventre, o furor, a sensação de
urgência e adrenalina tomando todo o meu corpo. Estou perigosamente perto quando sinto sua mão
se fechando na minha garganta, a princípio não espero por nada além dele simplesmente mantê-la
lá, como sempre fez.

Harry não gostava de violência, não gostava de correr o menor risco de ferir alguém. Ele era o tipo
de pessoa que se fosse eleita presidente ordenaria que todos vivessem dentro de bolhas pra não
correr o risco de caírem, serem picadas por uma mosca ou receber uma rajada de vento frio e
ficarem resfriadas. Ele era do tipo que protegia, enquanto eu era do tipo que feria.

Mas hoje ele decidiu ser incoerente.

As minhas mãos estão presas e meus olhos fechados, minha mente flutuando na borda do meu
orgasmo quando ele começa a apertar, fico surpreso, mas longe de ser o bastante para incomodar,
até que a pressão cresce de forma que o oxigênio se torna rarefeito e meu coração acelera, na
verdade tudo em mim acelera, o meu corpo, meu cérebro, tudo reage em alerta. Eu não consigo
respirar, tento puxar o ar e não vem nada, nada além da dor insuportável inundando o meu peito de
maneira desesperadora.

Puxo minhas mãos e elas mal se movem, desta vez impunho bem mais força e nada acontece. Não
consigo me livrar de seu domínio, o que me é inédito. Ele consegue ser mais forte que Lucian. Ele
sempre foi tão forte assim? Tão mais forte do que eu?
Com dificuldade consigo abrir minimamente meus olhos, incapaz de enxergar seu rosto, o cabelo
atrapalha a visão, mas sei que Harry tem os olhos vidrados.

Minhas pálpebras pesam e volto a fechar os olhos, a ponto de desfalecer, percebo seu peso caindo
sobre meu peito e sua respiração tranquila soprando em meu ouvido.

— Com correntes isso é bem mais excitante. — É o que eu penso ter ouvido. Os tons de vozes se
misturam, parece a minha voz, a dele, de Lucian, Jéssica, Hailee, Eve e mais um milhão de outras
que eu não conheço. Aquilo é real, eu não sei mais, só sei que a escuridão me envolve e me possuí
como se eu fosse uma pequena peça em um jogo muito maior.

— Para, por favor, p-para...

E ele para.

É difícil assimilar os momentos seguintes, mas ele não está mais me sufocando, meus braços estão
dormente acima da minha cabeça e Harry não os segura, meu pescoço arde, no entanto consigo
respirar novamente. Ruidosa e desesperadamente, porém respiro. E é só quando os vultos se
dissipam que consigo enxergar as paredes azuis cheias de quadros pintados por Harry, o sofá
amarelo com almofadas vermelhas ao canto, o ventilador de teto e aquela honrenda cabeça de
cervo acima da cabeceira da cama. Eu estou em casa. E meu marido está deitado encima de mim.

Me contorço embaixo dele que se agita e esfrega o nariz na minha orelha, completamente
adormecido, e então noto que algo passou desapercebido por mim, um pouco mais abaixo de
nossos quadris. Nós dois gozamos. Muito.

Eu gostei disso?

Me movendo com cuidado faço com que ele deslize para o colchão e eu consigo recuperar a chave
entre os lençóis, solto as algemas que caem no tapete em um baque surdo.

E cá estou, paralisado ao lado dele, sentado na cama sem saber o que fazer ou pensar.

Por fim, resolvo abrir a gaveta a procura de lenços e logo de cara me deparo com um DVD.

— Império dos sentidos. — Leio o título, torcendo a boca ao lembrar da história. Foi daqui que ele
tirou a brilhante ideia de me enforcar? Péssima referência, péssima, péssima, mas em comparação
ao fim do cara, eu me dei bem. Deixo o filme e pego os lenços, depois de limpar nós dois e debater
comigo mesmo por quase meia hora sobre ir embora ou ficar, caio de volta na cama, exausto.

Estamos frente a frente. Ambos deitados de lado e muitos centímetros de distância entre nós.

— É mais seguro assim. — Sussurro sonolento. Estico a mão até poder envolver a sua que repousa
a frete de seu rosto.

Nós temos os pulsos feridos das algemas. Sua cintura está marcada assim como o meu pescoço. Eu
pensei, ele fez.

Eu não sei exatamente o que está errado, mas tenho a impressão de que seja tudo.

Tudo está errado.

Eu sou errado pra você.

E você é errado pra mim, Harry.


Isso precisa acabar antes que... Antes que um de nós se machuque fatalmente.

Xx

Quando abro os olhos, estou enroscado nos travesseiros. Estou desorientado, me sento, bocejando e
esfregando os olhos com uma imensa vontade de mijar. Corro em direção ao banheiro e após
cumprir minha missão de máxima prioridade vou até a pia lavar as mãos, o espelho me dá o
vislumbre de meus cabelos desgrenhados apontando em todas as direções possíveis, tenho um lado
do rosto avermelhado com as marcas de travesseiro nele, o que acaba por combinar bem com o tom
do meu pescoço.

O toco, me preparando psicologicamente para a ardência, mas ele não dói. Tem algo pegajoso
nele, com um cheirinho de remédio. Uma pomada. Harry passou pomada no meu pescoço e nos
pulsos também e não só isso como ele também me trocou, me vestiu com o pijama e até mesmo
colocou meias de pelúcia.

Certo.

Okay. Eu estou acordado. Ele está acordado. Essa é nossa casa e nós somos adultos. E como um
adulto eu sei o que devo fazer.

Aperto a porcelana da pia, uma gota cai sobre a superfície lisa, seguida de outra e depois mais
uma. Estúpidas lágrimas.

— Tudo bem, Louis, respire! — Repito fazendo o meu melhor para respirar adequadamente. Seco
o rosto com o antebraço e volto a encarar meu reflexo — Não tem nada de errado com isso,
algumas pessoas são apenas incompatíveis e não importa o quanto você as ame não tem como
mudar isso. O melhor a se fazer é aceitar. Todo mundo se divorcia hoje em dia. Todo mundo, é
normal. Vamos encarar isso numa boa. Vamos sim. — Estou tentando me convencer quando meu
celular começa a tocar em algum lugar do quarto.

Abandono a sessão de auto piedade para sair a sua procura, mas quando encontro já é uma
chamada perdida, junto com mais outras trinta de Liam, Niall, Michael e Luke. Que porra
aconteceu?

Um barulho agudo vem do andar de baixo. Alto e sinistro o suficiente pra me assustar.

— Harry? — Grito da porta, esperando que ele diga que deixou algo cair e não foi nada. Invés
disso sou contemplado com o silêncio. Aconteceu alguma coisa aqui também. Disparo em direção
ao andar inferior, tudo parece bem, em ordem, calmo. Tem música na cozinha e cheiro de massa de
bolo de morango, porém, ele não está aqui.

Escuto a televisão baixinha, rumo até a sala, hesitante e atento. Tudo parece igualmente bem,
Harry está aqui, inerte diante da televisão, também de pijamas, o cabelo preso em um coque e uma
faixinha vermelha, a tigela do finado bolo está a seus pés, massa e vidro espalhado pelo chão aos
seus pés descalços, tem sangue misturado, mas ele parece alheio a dor.

— Harry? — Me aproximo, preocupado e é quando presto atenção ao noticiário.

— E mais uma vez, o serial killer que vem amedrontando a cidade de Nova York faz uma nova
vítima. Indo contra seu modus operandi, a vítima desta vez foi a jovem universitária de vinte e dois
anos, Adrienne Peterson. — Colocam na tela a imagem de uma garota bonita de expressivos olhos
verdes e cabelos cacheados, ela parece com Harry — Adrienne foi encontrada morta em seu
dormitório na Universidade de Nova York, segundo as autoridades, a jovem havia sido
estrangulada e mutilada, sendo deixada dependurada pelo pescoço por correntes. O que mais é de
se assombrar no caso é que Adrienne estava grávida de seis meses, a garotinha que já era chamada
pela mãe de primeira viagem e amigos, de Emma, enfrentou o mesmo trágico fim que a mãe, que
ao invés de ser suspensa por uma corrente... — A jornalista fez uma pausa, dando um longo gole
em sua água, ela estava chocada e enojada. Eu também estava — , a polícia diz que o bebê tinha as
tripas da mãe enroladas ao pescoço.

A bile subiu instantaneamente e foi preciso muita força de vontade pra não vomitar ali mesmo. Eu
estava enjoado, furioso, inconformado. A mesa de vasos de vidro estava a minha frente e eu tinha
que descontar em algo, soquei cada um dos vasos, amaldiçoando tudo e todos.

— Maldita Andrômeda! Maldita! Eu queria você na minha frente. Desgraçada! Maldita! Maldita!
— Quando não há mais vasos faço da parede um alvo. O impacto faz o quadro despencar, a
moldura se desmancha e o vidro espatifa, entre os cacos está o sorriso meigo dela.

Eve.

Uma mão pequenina surge no meu campo de visão, recolhendo a fotografia. Ela não diz uma
palavra, enquanto encara a si mesma.

— Isso é culpa minha. — Diz baixo e quando me olha seu rosto está manchado de lágrimas.

— Eve... — Digo, sendo acompanhado por outra voz. Desvio o olhar em direção a Harry.

— Eve. — Repete angustiado e subitamente começa a caminhar, tento me colocar na sua frente,
mas ele segue rapidamente para o segundo andar. Vou acompanhando até o momento em que ele
entra no quarto da nossa filha, e se ajoelha diante da cama, pressionando o rosto e as mãos na
colcha — Me perdoa, eu te imploro, não me odeie.

— Amor... — Me aproximo atordoado, meus punhos feridos deixam pequenas gotas de sangue
pelo caminho.

— Foi por você, sempre foi por você. — Declara fervorosamente — Não! Cala a boca, assassina!
Não ouse dizer que foi por ela, você é um monstro. — Paro no mesmo lugar, seu modo de falar está
completamente diferente — Um monstro! — Grita alto e de repente se encolhe, a postura dele é
mais receosa, como se estivesse com medo, ao mesmo tempo que transparece alguém mais novo,
acovardado — Por favor não gritem! Eu tô com medo.

Que porra...!?

Meu celular volta a tocar. Olhamos ao mesmo tempo em direção ao outro quarto, quando olho pra
frente nossos olhares se encontram. Ele me encara sem desviar, um olhar penetrante e nada
humano, é como se eu estivesse diante de uma fera selvagem. Me lembra os olhos da cabeça de
alce de Lucian, os olhos de uma criatura assassina.

Eu também estou com medo.

E tão de repente quanto surgiu, se vai. O rosto de Harry se contorce e ele solta um grito de dor, de
primeira não tenho reação, até ele colocar a mão na barriga e me chamar.

— Lou, tem algo de errado com o bebê. — Não respondo — Louis, você não me ouviu? — Ele
volta a me chamar mais agitado. Quando não dou resposta ele tenta se aproximar, eu recuo — Qual
o seu problema... Ah! Louis!

— Talvez seja um castigo, você matou o bebê de alguém e agora o seu morre.
Harry me olha estarrecido.

— Você enlouqueceu? Do que está falando? — Grita espantado, falhando miseravelmente em se


colocar de pé — Eu não sei o que está acontecendo com você agora, deve ter sido o choque
daquela notícia, mas será que você pode deixar esse surto pra depois? Eu acho que é um começo de
aborto. Me leva para um hospital agora. — Estende a mão em minha direção.

Respiro profundamente, decidindo o que fazer.

— Querido. — Falo com a voz amena.

— Lou- Aí meu deus! — Grunhe recuando até bater as costas na cama. Eu espero encontrar aquele
olhar predatório de antes quando aponto minha arma em sua direção, mas no lugar dele está todo o
pânico e temor que eu esperava de Harry.

Dou um passo adiante, mantendo a arma apontada para seu peito.

— Eu vou perguntar só uma vez, então é melhor que não minta pra mim. Harry, você é
Andrômeda?
│14│hydra

Agora estou sob seu feitiço, preso em uma mentira


Não deveria ter ficado tão perto do fogo
Não há volta, não há para onde correr, nenhum lugar para se esconder
É tarde demais para dizer adeus
Puxe do meu coração, queria que nós voltássemos para o inicio.
Mas, oh meu Deus! Isso é real? Não há mais tempo
É tarde demais, é tarde demais para dizer adeus
To Late To Say Goodbye - Cage The Elephant

Durante aquele curto espaço de tempo, eu não sinto nada. O meu coração não está acelerado,
minhas mãos não suam, meu peito não dói e eu não tenho medo de sua resposta, porque eu não me
sinto integrado a cena. É como se estivesse no trabalho, observando um caso trágico sem ter
qualquer tipo de sentimento à respeito.

Como se eu fosse uma máquina, sem emoções, sem temor. Apenas fazendo o que me mandam.

— Se mirar um pouco mais abaixo vai acertar em cheio o coração. — O demônio segredou em
meu ouvido.

Olhei para meu alvo, procurando mirar onde Lucian havia sugerido. Não daria certo, Harry está
com o joelho na frente do peito.

— Esqueça, vamos direto na cabeça. É assim que se corta o mal pela raiz.

Faço com ele diz erguendo o braço. Mas então, Harry me olha diretamente, os olhos grandes e
assustados, lábios trêmulos e completamente atordoado, seu corpo se encolhe ainda mais em seu
entorno e ele olha repetidas vezes para o lado.

Tão perdido.

Tão inocente.

— Lou, p-por que está fazendo isso? — Pergunta, por fim.

Eu já ouvi isso antes.

"— Policial, por que está fazendo isso, an?

— Porque você é um criminoso. Um traficante. — Harry revira os olhos e anda pela cela.

— Eu não sou traficante! A erva era minha, ok? Só pra mim. Eu posso ter exagerado na
quantidade, mas é só, você não precisa me deixar atrás das grades como se eu fosse um maníaco ou
coisa parecida.

— Talvez você seja, estou checando seus registros.

— Vai se impressionar com a minha ficha limpa.

— Quem sabe. A sua mãe já está a caminho, relaxe.


— Você diz que a minha mãe está a caminho e espera que eu relaxe. Que piada! Olha, policial, eu
não posso estar em uma cela quando a minha mãe chegar. Me deixa ficar ali no banco, pode ser de
algemas mesmo e eu fico quietinho, por favor.

— E por que eu deveria acreditar que você não vai tentar alguma coisa? Você pode ser do mal.

Ele agarra as barras da cela e deixa que eu veja bem o seu rosto.

— Argh! Apenas olhe pra mim, olhe bem nos meus olhos, eu pareço um vilão pra você? Eu devo
ser a pessoa mais inofensiva da terra. Nunca machucaria ninguém. "

— Você fez como disse, você não fez nada. Não era mentira. — Tremulo com a arma em minhas
mãos.

É o mesmo Harry.

O meu Harry de sempre. É fácil notar quando olho em seus olhos. Por que eu nunca mais o olhei
de verdade?

— Meu amor, você não está bem. Esse caso todo tem mexido com você.

— Apenas me responda. — Tento soar firme.

— Você passou por muitas coisas, desde que voltou daquele esgoto não tem sido o mesmo. — Diz
com a voz macia, calma, justamente para ir me domando, pouco a pouco — Aconteceu mais do
que você disse, não foi? Aconteceu algo muito mais sério e isso está te atormentando.

— Touché! — Lucian comemora com um berro que ressoa nos meus ouvidos, me deixando ainda
mais nervoso.

— Só fala comigo, Lou, você pode me contar qualquer coisa, eu quero te ajudar.

— Eu não preciso de ajuda, preciso apenas que você responda.

— Encontrei os seus remédios na garagem. Há quanto tempo parou de tomá-los? Sabe que precisa
deles...

Seus desvios acabam por me dar nos nervos. Toda a indiferença que eu sentia há poucos minutos
deu lugar a um nervosismo e temor ao mesmo tempo que paralisante era também efervescente.

Diminui a distância entre nós, sem nunca deixar de mirar. Mas mesmo com uma arma apontada
para si, Harry não aparentava medo. Ele se assustava, no entanto nada o amedrontava.

— Só me diga.

Ele me olha de baixo, com os lábios crispados e então, solta um suspiro.

— Quer que eu diga que sim?

— Eu só quero a verdade.

— Você sabe a verdade. — Seu tom muda — Se eu fosse um assassino aqueles homens que
mataram a minha filha já teriam pagado há muito tempo, Michael Clifford não estaria por aí
pagando de bom samaritano e você...

— E eu?
Harry não responde, sem desviar o olhar seus olhos lacrimejam e ele olha em direção a janela onde
as cortinas dançam conforme o vento sopra.

— Precisa de alguém para culpar, não é? Já fazem anos e você não conseguiu nada. Quer tanto
pegar essa Andrômeda que acreditaria ser qualquer um. Mas como eu faria isso? Que horas? Em
qual momento? Acha que eu estriparia pessoas e depois voltaria a tempo de fazer o jantar e colocar
as crianças para dormir? E você não teria notado nada, em dois anos? Eu precisaria ser um gênio
do crime, coisa que eu não sou. Você me prendeu uma vez, viu a minha ficha, eu sou tão criminoso
quanto o Spencer ou o Blake. Eu não sou e nunca seria capaz de matar ninguém, mas só cabe a
você acreditar ou não em mim.

Eu não sei o que dizer. Não faz sentido que ele seja Andrômeda. É possível traçar um perfil de
assassinos em série. Harry não se encaixa em nenhum deles, ele é a pessoa mais normal que eu
conheço, exceto por...

— Você fala...

— Falo quê?

— Fala como se tivesse mais alguém, como se não fosse apenas você. Até mesmo briga...

— Todo mundo fala sozinho. — Retruca.

— Não é falar! Você aje como se tivesse mais pessoas com você. — Teimo sentindo minha cabeça
doer.

— Eu não faço isso.

— Você fez há pouco.

— Não. — Ele diz sério — Eu não fiz.

— Como não? Você disse.... Você disse... — Não consigo me lembrar.

— Será que aconteceu mesmo? — Lucian começa a rir.

— Quieto, eu preciso lembrar.

— Você não consegue.

— Claro que consigo.

— Não pode se lembrar do que não existe.

— Não tente me confundir.

— Não estou! É só a verdade. O louco é você, é você, Louis, seu doente, seu louco, louco,
louco....! — Ele não para de gritar e sua voz só vai ficando mais alta e mais alta. Eu não posso
ouvir meus pensamentos. Não posso pensar, eu só quero cala-lo.

Procuro por ele e enquanto berra surge no espelho da penteadeira e disparo contra ele, até
descarregar por completo o revólver. Por entre os cacos estilhaçados de vidro encontro fragmentos
do rosto de Harry. Nove pedacinhos. Todos me dirigem repulsa.

— Você não tem dormido, o carro está cheio de remédios que cortam o sono. Tudo o que você faz
noite e dia é pensar nesse caso, você está obcecado e não se abre com ninguém e isso está te
consumindo. Te enlouquecendo. — Harry sussurra com a voz quebrada, lágrimas gordas rolam
pelo seu rosto — Em pensar que você me prometeu que o seu trabalho nunca iria interferir nas
nossas vidas. É o seu trabalho que está nos destruindo. Ele vai acabar com nós dois, você quer me
por na cadeia e vai parar num hospício ou pior, e se você me matar...

— Eu não vou! Eu não vou nunca. —Prometo, atordoado e desesperado, deixando a arma cair,
enjoando por ter ousado apontar aquela coisa pra ele.

— Então pare com isso agora. Volte pros seus remédios, vá até o Adam e deixe-o te ajudar e pelo
amor de Deus, largue esse maldito caso.

Ajoelho diante dele, assentindo.

— Se eu fizer isso você me perdoa? Nós podemos voltar a ser como antes?

Harry olha por sobre meu ombro. O espelho.

— Isso só depende de você, porque no momento, eu te odeio um pouco.

Aquilo foi como uma facada no meu peito. Uma faca profunda que alguém girava, dilacerando o
meu coração.

Fechei meus olhos, afim de administrar toda aquela dor e foi quando ouvi passos.

— Uhm, com licença?

De alguma forma Niall Horan havia se materializado na minha casa.

— Ah, bem, a porta estava aberta e eu fiquei preocupado que tivesse acontecido alguma... — Se
cala ao que seus olhos miram nos cacos de vidro, na arma no chão e Harry acuado — , acho que
não é um bom momento.

— Isso não importa. — Passo a mão pelos cabelos, de costas para ele, encarando o chão — O que
faz aqui?

— O detetive Hemmings me pediu para vir, como o senhor não atendia as ligações e–

— Tá, tanto faz! — Exclamo, abruptamente me pondo de pé. Olho para o meu marido e ele
respirava devagar colocando a mão sobre a barriga, mais uma vez meu peito lateja com o remorso.

Que merda eu achei que estava fazendo?

Harry ser Andrômeda? Não. Não faz sentido.

E assassinos sempre possuem um sentido. Um motivo. Ele não tem nenhum.

— Niall, por favor, leve o Harry para o hospital. — Digo, saindo do quarto de uma vez. Niall
assente e eu já estou longe o bastante, em nosso quarto, recolhendo meu celular e carteira, deixo a
arma para trás. Eu não preciso daquilo.

Mas é parado naquele cômodo que me vem uma necessidade maníaca de procurar e é exatamente o
que eu faço. Reviro por inteiro, entro no closet e vou tirando todas as roupas do caminho, faço o
mesmo com as gavetas, empurro móveis, olho debaixo da cama. Vasculho por cada mínimo objeto
pertencente a Harry, leio e releio suas agendas, não satisfeito vou até o quarto dos meninos, afinal,
faria muito sentido esconder uma faca no berço do seu bebê.
Mas não há nada.

Nada em nenhum dos cômodos.

Faz meia hora desde que ouvi o som do carro de Niall. Eles já devem estar no hospital e é quando
procurando por pistas inexistentes na lareira que caio na realidade dos fatos. Não existe nada
porque ele não fez nada. Ele é bom e inocente e eu sou um completo louco paranóico que quer
desesperadamente colocar um ponto final nisso mesmo que nos destrua.

E vai destruir porque sem ele...

Sem ele eu não funciono.

Eu não existo.

Ele é o amor da minha vida.

O pai dos meus bebês.

— Aí meu deus. — Me jogo contra o encosto do sofá, esfregando meu rosto ao ponto de sentir
pequenas ardências ao causar arranhões acidentais, vou subindo meus dedos nervosos até os
cabelos, apertando os fios entre eles. Minha respiração engata e estou suando.

E se ele perder o bebê?

Se ele perder o bebê a culpa vai ser minha, eu não o ajudei.

O que eu disse... Maldição, eu disse que ele merecia perdê-lo.

Como eu pude dizer isso?

Como eu pude? O que há de errado comigo?

E se for tarde demais e ele estiver tão mal a ponto de morrer também?

Se o Harry morrer o que eu vou dizer ao Spencer e ao Blake?

Spencer vai morrer também e o Blake vai me odiar e eu vou me odiar e vou ter perdido tudo aquilo
que eu amo. Tudo aquilo que me mantém são.

Preciso da minha família.

Preciso mais deles do que resolver esse maldito caso, senão vai ser como se eu mesmo estivesse
envolvendo aquelas correntes ao redor do pescoço dos três e os observasse morrer. Eu seria como
ela.

Eu seria ela.

Apavorado e atormentando corro em direção a garagem, desbravo as caixas de arquivos que


amontoei ali ao longo dos anos até reaver a caixa de madeira que abandonei ali no início do ano
quando resolvi me dar alta. Até tinha me esquecido de que precisava de tantos antidepressivos e
estabilizadores de humor, mas é um fato que eu sou melhor com eles, menos neurótico e explosivo.

Diante da urgência de me estabilizar tomo dois comprimidos de cada e estou inclinado a subir e
pegar uma bebida quando escuto vozes familiares, olho pela janelinha que dá a visão para o outro
lado olho e vejo Anne conversando com Bebe em frente a casa dela, as três crianças riem e
brincam com Sonny que rola de barriga para cima na grama.

A vergonha esmaga meus ossos só de pensar que eles entrarão nessa casa que eu destruí a procura
de uma justificativa para tirar o Harry deles.

Não posso lidar com isso agora. De maneira nenhuma.

É somente quando abro a porta da garagem e saio com o carro que eles desviam sua atenção do
labrador para mim. Minhas mãos ainda não estão firmes o bastante no volante e por isso hesito
quando os vejo ignorar os chamados da avó para correrem em minha direção gritando sem parar
"papai, papai".

Afundo o pé no acelerador e arranco em direção a rua. Observo pelo retrovisor, tanto Spencer
quanto Blake permanecem parados, em choque, o sorriso alegre morrendo e a mágoa dominando
suas feições. Eu os magoei. Magoei todo mundo hoje.

— Desculpa, mas eu não sou bom pra vocês agora. Desculpa. — Repito como se eles estivessem
comigo, mas a verdade é que eu estou tentando me consolar.

Permaneço repetindo isso do lado de fora do consultório do Dr. Prendergast. Os remédios fizeram
efeito, me sinto bem mais calmo e presente do que antes. Isso é bom.

A secretária surge anunciando que o psicólogo me espera.

Adam está sentado em sua poltrona de couro reclinável, prancheta sobre o colo e as mãos
batucando nos descansos de braço de seu assento. Os olhos me seguem atentamente.

— Você nem disfarça! — Resmungo sentando no divã.

— Desculpe, mas esse é o tipo de coisa que nunca aconteceu antes, você costuma faltar até em
suas consultas, quem dirá vir por livre e espontânea vontade. Estou incrédulo desde que recebi sua
ligação.

— Bom, eu só... — Esfrego as mãos nas calças, correndo o olho por cada centímetro de sua sala até
acabar voltando pra ele — , acho que está na hora de fazer terapia de verdade.

— Isso é ótimo, Louis! Tem algo que deseja falar, em especial?

— Eu gostaria de falar sobre... — Sobre Andrômeda; sobre a minha raiva; sobre o inferno que foi
viver com meus pais; sobre ter sido rejeitado pelo Zayn; sobre ser pai de uma garota que eu quase
não tenho contato; sobre estar vivendo com meu antigo amante; sobre ver a minha filha morta;
sobre desconfiar que meu marido seja um serial killer. Céus! São tantas opções — Eu gostaria de
falar sobre o Lucian.

Adam arqueia a sobrancelha e pega sua caneta.

— Quem é Lucian, Louis?

Respiro fundo, sentindo um ligeiro incômodo sobre meu dedo decepado.

Talvez se eu falar sobre ele deixe de existir e saia de vez da minha cabeça.

— Foi o homem que me torturou.

Xx
Me abrir sobre Lucian foi estranho, perturbador e absurdamente desconfortável. Era humilhante
dizer em voz alta o que ele fez comigo, eu nunca aceitei isso de ser vulnerável e frágil, não era o
tipo de coisa que meu pai valorizava e consequentemente eu também não, mas precisava admitir:
Foi libertador.

Pela primeira vez em muito tempo não me sentia um baú de segredos, não sentia que meus
demônios estavam corroendo a minha carne. Eu era uma pessoa normal que não precisava guardar
tudo, nem ter que lidar com tudo sozinho, era okay pedir ajuda e agora Lucian havia perdido seu
poder sobre mim, uma vez que não mais era um segredo, ele era apenas um fantasma que perdera
toda a sua força. Nada mais.

Infelizmente ainda havia trabalho a ser feito.

Por mais anti profissional e irresponsável que fosse optei por não ir até a cena do crime. Luke,
Liam e Michael já tinham estado lá e me mandaram fotos o suficiente para fazer meu estômago
revirar e caso eu dormisse, ter pesadelos a noite. Durante a investigação, Clifford notou pegadas no
tapete da porta da cozinha que servia como uma espécie de saída dos fundos e que raramente era
usada – segundo testemunho da família – , as pegadas se destacavam por ter uma coloração
avermelhada, barrosa, obviamente de alguém que andara por um terreno lamacento e terroso,
alguém que tivesse vindo de uma floresta ou campo.

A área mais próxima que se enquadrava melhor nesta descrição era o Edwin Park, uma área de
acampamentos, muitos jovens frequentavam e escolas organizavam curtos períodos de
acampamento aqui, Evangeline veio uma vez, quando ela tinha cinco anos, brincou, comeu, nadou
no lago e se divertiu o dia inteiro até o anoitecer quando ficou com saudades e começou a chorar
sem parar para a professora pedindo que ligasse para nós.

Me lembro como se fosse ontem, dela encolhida no banco de trás, embrulhada no edredom
agarrada a Harry, choramingando feito um gatinho sobre como era assustadora a floresta durante a
noite e que tinham barulhos estranhos e que ela ficou com muito, muito, muito medo e que só
queria os papais dela. Harry estava tendo o seu momento porque ele foi efetivamente contra, Eve
era o seu tesouro e ele não a queria fora de suas vistas nem por um minuto.

Embora me lembre das imagens não consigo recordar o que eu sentia na ocasião.

Mas o que eu sinto agora, ao pisar nessa floresta anos depois é saudade, talvez a mesma saudade
que Eve sentiu naquela vez, tanta saudade que eu confundo com medo.

A equipe está espalhada pela área em busca de provas.

Michael está próximo, agachado ao lado de um velho carvalho, todo cuidadoso e meticuloso, de
luvas e até toca, enquanto varre a terra por sobre o que parece ser um copo descartável.

— Isso não me parece uma prova em potencial. — Comento cruzando os braços as suas costas,
rindo quando ele se assusta e cai de bunda no chão.

— Louis, você me assustou. — Fala se levantando e limpando a calça — Onde você se meteu?
Todo mundo ficou preocupado.

— Eu estava com o Harry.

Sua expressão se contorce ligeiramente, mas ele luta para esconder.

— Então, já deve estar inteirado do caso.


— Andrômeda pode ter deixado um rastro dessa vez.

— É um palpite. Alguém que esteve na casa também esteve por aqui, espero que tenha deixado
algo para nós.

— Certo, então, eu vou dar uma averiguada.

— Okay, só tome cuidado! O Luke saiu trotando por aí feito um cavalo e destruiu boas possíveis
evidências. — Resmunga sem conter sua irritação.

— Deveria controlar seu namorado. — Brinco, começando a me afastar.

— HAHA, some daqui. — Ele me atira um galho que eu consigo pegar no ar e acenar como se
fosse um bracinho.

Adotando um ar mais sério e compenetrado passo a observar com o máximo de atenção a floresta,
não há nada fora do comum. Provavelmente não é um santuário de corpos, se Andrômeda esteve
aqui foi de passagem. Meu próximo passo é em falso e eu tropeço em alguma coisa, está debaixo
da terra remexida. Penso em chamar por Clifford, mas reconheço a pulseira no braço de plástico da
boneca.

Me curvo para desenterrar o brinquedo há muito esquecido.

"— Papai, nós precisamos voltar! Eu esqueci a Spencer no acampamento.

— Sem chances, Evangeline. Estamos muito longe, quando chegar em casa eu ligo pra professora
e peço pra ela trazer pra você, okay?

— Mais ela não vai saber! Eu enterrei porque a Lisa queria roubar ela de mim.

— Então já era.

— Mas papai... — E a manha começou, seguida do choro.

— A gente compra outra, minha bebê. — Harry a consolava, fazendo carinho em seu cabelo.

— Eu não quero outra, eu quero ela.

Olhei pelo retrovisor para o seu draminha e resolvi usá-lo a meu favor.

— Pipoquinha, porque não pede um bebê de verdadinha para o papai Harry, hein?

— Louis!

— Papai, eu quero um bebê de verdadinha.

— Eu também quero. — A imitei rindo em seguida.

— Não comecem.

— Olha, papai, eu vou cuidar da bebê e vou dar comidinha e vou trocar quando ele fizer caquinha e
vou dá banho e vou brincar e vou...

— Tá, eu entendi, você vai fazer tudo.

— Isso. Tudo. Tudinhodinho.


— Tudinhodinho?

— Isso.

— Pode ser que eu pense a respeito, então.

— E eu tenho uma condição.

— Qual?

— A bebê tem que se chamar Spencer.

— E se for menino?

— Spencer também. "

Limpo a terra do rosto da boneca, os olhos azuis perderam quase toda a cor, o vestido está em
farrapos.

— Quanto tempo Spencer! Como está? Sabia que você tem um xará? Ele vai gostar de você, ele é
um grande fã de bonecas e de brincar de chá da tarde e princesa, igual a sua antiga mamãe, lembra
da Eve? Ela virou um anjinho, sabe. — Acaricio o cabelo castanho dela e me lembro a quem
realmente pertenciam aqueles cachos escuros. Foi a minha mãe quem fez aquela boneca, Eve
insistiu para que elas fossem gêmeas de cabelo e por isso quis cortar o seu para doar a sua filhinha.

E esse mesmo cabelo era tudo o que restava da minha filhinha.

Por um momento esqueci completamente a onde estava e por consequência da minha falta de
atenção eu tropecei e cai, mas não na terra e sim em algo mais fundo e duro, as minhas costas
doíam como o inferno e tinha algo molhado e pegajoso abaixo do meu corpo, me revirei ficando
ainda mais enlameado em toda aquela sujeira.

Um buraco.

A porra de um buraco.

Que bosta!

O céu brilhava distante, provavelmente estava a uns nove ou dez metros abaixo da terra.

Antes que o desespero batesse Clifford surgiu.

— Louis? Você tá bem? — Sua voz ecoou.

— Sim. Tirando a imundice eu vou bem.

— Graças a Deus! Fique calmo, eu vou chamar os outros e nós vamos te tirar daí.

— Okay. — E ele desapareceu.

Estava esperando pacientemente quando aquilo começou.

As correntes se arrastando.

Lentamente.

Devagar.
Elas deslizavam pelo chão de madeira.

O ruído de uma porta sendo aberta, os gêmeos dormindo tranquilamente e então seu choro alto.

Abro bem os olhos, eu estou em um buraco, fundo e escuro, sem lugar para ir. Não é real, é fruto
da minha imaginação.

Não é real.

O choro vai crescendo, encorpando como o de um adulto, o de uma mulher adulta.

— Socorro! — Ela grita e sua voz retumba mais do que a de Mike.

Parece a Jéssica.

— Tudo bem. Só respira, respira, Louis, só respira. — Digo a mim mesmo, me concentrando em
olhar para um só ponto, mas então esse ponto vai se desintegrando e é como se uma passagem
secreta se abrisse, ela dá acesso a um túnel semelhante ao esgoto e então ele surge, o corpo grande
e imponente, caminhando com lentidão até mim, o facão na mão gotejando sangue da lâmina, os
chifres arrastando no teto, provocando um rangido parecido com um gemido de agonia e os olhos,
aqueles velhos olhos mortos do alce focados em mim.

Lucian está perto e ergue sua arma, prestes a me partir ao meio e é quando a corda cai diante dos
meus olhos. Rapidamente a prendo em minha cintura e mais rápido ainda sou puxado para cima.

Viu? Não era nada demais. Foi só o escuro. Sob a luz do dia nada disso existe. Repito mentalmente
até ser atingido pelo clarão e alcançar terra firme, porém, quando olho para frente a boneca se
tornou de carne e osso, suja de terra, lama e sangue, cheia de buracos por toda o corpo, alguns
ainda com estilhaços de bala, a única coisa que me leva a reconhecê-la são seus olhos verdes.

Mas não consigo dizer seu nome ou fazer coisa alguma porque meu cérebro para. Literalmente. Eu
posso sentir. Ele se desliga e depois, o meu corpo faz o mesmo.

Sinto a agitação ao meu redor e então Eve está estendendo a mão e fechando meus olhos para que
eu possa cair completamente na inconsciência.
│15│indus

Desperto num átimo, com a respiração descompensada e sem a menor ideia de onde estou ou como
vim parar aqui. É tudo muito claro e meu cabelo está pegajoso em contato ao meu rosto úmido
pelo suor. Minha agitação chama atenção e logo a porta do banheiro está sendo empurrada e
Hemmings sai de lá cantarolando.

— Você está vivo! Que pena! Ousei ter esperanças desta vez. — Lamentou e não, não parecia estar
brincando.

Menos eufórico deixo minha mente assimilar o local. É um quarto de hospital. Um maldito
hospital, novamente.

— O que eu faço aqui? O que houve? — Olho nervoso para as intravenosas em meus braços. Tem
até mesmo uma máquina acompanhando meus batimentos cardíacos.

Luke caminha pelo quarto até se jogar em uma poltrona ao lado do leito, pescando um pirulito no
bolso da jaqueta começa a folhear a prancheta com meu prontuário e só depois de cruzar e
descruzar as pernas algumas dúzias de vezes me encara, com um riso contido e diz:

— Ignorando todos os termos médicos e cheios de frescura, você está muito estressado.
Assustadoramente estressado. Meu deus, Tomlinson! A coisa está sinistra, qual a merda do seu
problema? Você não fode ninguém? Não dorme no trabalho? Dá uns tiros pro alto? Por que você
está tão pilhado, cara?

Estresse? É claro.

Após o anúncio de Luke, o médico surge, como que para complementar seu ponto. Resumidamente
era a isso que se reduzia todo o episódio. Estresse. A receita é bastante simples e venho seguindo-a
a risca há um bom tempo.

Meus pensamentos são uma imensa e perturbadora bagunça, constante e incontrolável, acelerados
demais para qualquer pessoa sã; me mantenho 24/7 focado no trabalho, única e exclusivamente
nele. Tudo se resume a maldita Andrômeda; não durmo; raramente como e se o faço não há nada
de saudável no cardápio. Nos últimos tempos, basicamente esqueci que sou um ser humano.

Os sinais estavam lá: instabilidade de humor, dores de cabeça e no corpo, tremores, palpitações
cardíacas e batimentos descompensados, fadiga, irritação constante, muita neurose e mania de
perseguição, sudorese e mais um milhão de outros sintomas gritantes que eu ignorei.

— Você não tem mais vinte e poucos anos, sabia? Numa dessas você morre, assim. — Luke estala
os dedos, voltando a girar o cabo do pirulito. É tão irritante — Precisa desacelerar, senão, é melhor
providenciar o seu terno de madeira.

— Eu vou lembrar do conselho. — Resmungo, batucando os dedos sobre o estômago, aguardando


o momento em que o médico retorne com a alta que eu exigi.

— Não vai não. — Retruca — Você vive a sua própria maneira e na sua cabeça todos estão errados
e o único certo é você, mas acredite, você não é nenhum mestre dos magos, Louis Tomlinson.

Reviro os olhos, bufando sonoramente.

— Mais um excelente conselho que eu vou guardar com muito apreço, obrigado.
Ele me olha sobre o ombro, o olhar sombrio e sinistro, em seguida explode.

— Você é um filho da puta, sabia disso?!

Balanço a cabeça assentindo.

Mas não acho que seja a minha aprovação que ele está buscando. Luke nunca quis nada de
ninguém, havia um claro motivo pelo qual ele me detestava tão ferreamente. Li em algum lugar
que as pessoas tendem a odiar aquelas com quem mais se parecem e infelizmente, nós éramos
muito parecidos, em todos os péssimos sentidos.

Olhar para mim era enxergar tudo aquilo que ele tanto repudiava em si mesmo.

Claro que isso não foi o tipo de coisa pela qual ele se atentou desde o início, quando éramos jovens
recrutas, ansiosos para fazer a lei valer, pelo contrário, nós fomos inseparáveis durante aqueles
anos. Amigos, talvez, até melhores amigos por um tempo.

Eu o acobertei quando ele foi assaltado e o ladrão levou sua arma. O que lhe garantia uma bela
repreensão. Estava ao seu lado levando esporro enquanto nosso supervisor gritava com ele por
conta de seus porres e principalmente, estive ao seu lado quando seus pais morreram e ele deixou
de ser aquele menino ansioso e justiceiro.

É natural que o senso de justiça se perca quando você não a vê sendo cumprida, o que foi o caso.
Uma simples briga de trânsito que acabou com seus pais baleados poucos quilômetros a caminho
do apartamento de Luke na época.

Ninguém viu ou sabia de nada. O homem era como um fantasma e como todos sabemos, fantasmas
não podem ser capturados.

Uma nova chama de esperança surgiu quando Eve nasceu e Anne insistiu em uma festa imensa,
convidou todos que conhecíamos e pela primeira vez, Michael Clifford e Luke Hemmings
ocupavam o mesmo espaço, tendo de se virar com um bebê escandaloso – mas adorável, diga-se de
passagem – enquanto Harry e eu discutíamos por eu ter uma tonelada de coisas para estudar do
meu curso na Quântico e ele não ter uma vida há um ano inteiro. Coisa de novos pais que se
estenderam pelos anos que vieram. O importante é que entre a discussão e o choro de Eve, Luke e
Mike encontraram algo em comum que fez com que eles se gostassem.

Posteriormente, também se amaram. Foram morar juntos, davam ótimas festas e então ficaram
noivos.

Harry e eu seríamos os padrinhos até que, do dia pra noite, eles romperam.

Não foi exatamente uma surpresa, a certa altura nós meio que esperávamos que aquilo acontecesse.
Bem, de certa forma, o único pego desprevenido foi Luke.

Desde o início havia aquela coisa ruim, serpenteando, deslizando pelas bordas e se aproveitando de
cada brecha, cada mínima oportunidade que tinha para tomar espaço, forma e poder sobre ele. Não
importa o quanto você ame, admire, se dedique a esse alguém, se você não confia nela, nada disso
tem valor e a questão é que ele não conseguia fazer isso, não conseguia confiar em ninguém e a
principal fonte de toda a sua desconfiança sempre foi a pessoa que ele mais adorava.

Michael aguentou o máximo que pode, mas quando alcançou seu limite, ele desistiu.

Era bem triste, pra falar a verdade. O pior era que Luke jamais aceitaria que o aconteceu foi culpa
sua, não, era melhor desviar toda a responsabilidade para outro alguém, o destruidor de lares a sua
frente.

O único lar que eu destruí foi o meu mesmo.

O dele já não mais existia quando tudo começou.

— Nunca o vi tão preocupado com ninguém antes, o mundo simplesmente parou. Que se foda toda
a investigação, Louis sempre é a porra da prioridade. Andrômeda podia ter dado as caras e
decapitado meia dúzia e você continuaria sendo o centro das atenções.

Ele passa a mão pelos cabelos loiros, um emaranhado se prendendo entre seus dedos nervosos.

— Não entra na minha cabeça quando isso começou, foi na festa de cinco anos da Eve quando
vocês dançaram? Ou na nossa viagem pra Roma? No trabalho? Sei lá, quando eu saia, você
aproveitava pra trepar com o meu namorado, era isso? — Pisca seus atônitos olhos azuis em minha
direção, eles tem um brilho suspeito, para não dizer lacrimejantes. O rosto adquire o tom vermelho
e ele exala com força, exasperado. Ciúmes é o tipo de coisa que te corrói até não sobrar mais nada,
havia muito pouco do Luke que eu conheci.

Empatia não é o meu forte, mas pode ser o remédio, o resultado de algumas horas de inconsciência
ou pura nostalgia, tanto faz. Eu só não ajo como um filho da puta, ao menos desta vez.

— Houveram muitas pessoas a quem eu trai, menti, enganei e feri deliberadamente, mas você não
foi uma delas. — Digo calmo e sincero, sustentando seu olhar — Nunca aconteceu nada entre nós
durante o relacionamento de vocês. Você não vai acreditar, tampouco isso vai te fazer me odiar
menos, eu só quero te dizer isso, pelo menos uma vez.

O clima entre nós é pesado e nada amigável, embora ele não faça menção de me sufocar com o
travesseiro, tensiona a mandíbula em um gesto irritadiço e apoia as mãos nos quadris, mais
precisamente no coldre onde sua Glock deve estar implorando por um pouco de ação.

— Precisavam que alguém viesse. Você é o principal investigador do caso, não pode ficar
desprotegido. — Ele começa desviando o olhar em direção as persianas, o bico da bota cavando o
piso — O novato disse que o Harry está bem, o bebê também. Foi só uma subida de pressão...

Tenho um sobressalto e quase caio da cama, meus olhos imensos se fixam nele.

— Sério? O que mais ele disse? Ele foi examinado direito? Onde ele está agora? — Deslancho em
perguntas desesperadas. Luke tem uma expressão surpresa a mudança da minha postura apática, ele
não esperava que eu fosse me importar com a minha família?

— Eu não sei e não estou nem aí. — Dá de ombros, mordendo o cabo do pirulito, os lábios se
retorcendo, revelando o azedume de seu interior — Já conversamos demais para uma vida, te
espero no carro.

O assisti sair, os ombros largos caídos e o andar rastejante. Havia uma estranha melancolia no ar.
De repente senti vontade de chorar.

Onde está a minha mente?

Quando eu me perdi na minha própria inconsciência?

Por que estou tão frio por dentro?

Resta algo além de amargura e ressentimento, ou tudo se desmanchou, desapareceu.


Deixo a cabeça cair sobre o travesseiro, a televisão muda, está passando alguma animação. Aperto
os olhos, demorando a reconhecer, de repente casais estão saindo dos quadros, rodopiando em
trajes imperiais, vestidos flutuando no ar, a poeira se levanta ao que as pinturas tomam vidas. Os
mortos retornando para uma última dança no salão. Já sei que filme é.

— Anastasia?

— É, não é bonito? — Harry dizia empolgado, lendo os rótulos de lenço umedecidos procurando
por alguma diferença. Desistiu rapidamente, jogando ambos no carrinho que eu empurrava —
Nomes curtos são tão sem graça!

— Hey. — Reclamei, sorrindo para uma fantasia de policial minúscula presa em um cabide
brilhante — Vamos chama-la de Mary ou Brittany, sei lá.

Ele parou no meio do caminho, horrorizado. Seria assustador se ele não estivesse no meio da loja
usando pantufas, pijama e tendo uma barriga enorme.

— A minha filha vai ter um nome legal. — Sibilou apontando o dedo pra mim, como um veredito
— Oh, amor, o que acha de Miranda?

Engoli em seco ao ouvir. Eu gostava do nome, mas ele já pertencia a alguém. Mia.

— Vamos pensar um pouco mais... — Me assustei ao que ele parou, bati de leve o carrinho em seu
quadril. Harry não sentiu — Haz, o que foi?

Levou alguns instantes até que respondesse, os olhos presos na tela do celular.

— O bebê da Karlie, ele... Ele, morreu hoje de manhã. — Disse com a voz quebrada.

— Como?

— Foi um tombo, só um tombo bobo, ela nem chorou, mas de repente, ela só fechou os olhinhos
por um minuto e não abriu mais. Uma morte breve e silenciosa.

Deixei o carrinho e fui até ele, porém, Harry começou a andar, foi até às poltronas e tirou um dos
ursinhos do caminho para se sentar, apertando a pelúcia contra o peito. Os olhos vagando pelo
vazio.

— Pobre, Karlie, como ela vai conseguir... Como vai conseguir viver sem o coração dela? —
Sussurrou — Eu morreria se perdesse minha filha. Poderia continuar andando, comendo, falando,
mas eu estaria morto.

Estamos mortos?

Ouço batidas na porta e em seguida alguém a empurra. Anne surge pela fresta.

— Louis, querido, como está? — Disse em seu tom maternal, vindo direto me abraçar apertado,
acariciando meu cabelo — Liguei no seu trabalho, queria que pudéssemos almoçar juntos e fiquei
em choque quando soube que tinha desmaiado. O que houve? Fizeram todos os exames? O médico
falou com você? Eu deveria ter trazido uma sopa, está tão abatido, deveria ir para o campo. Posso
encontrar uma pousada linda para vocês...

Não entendi metade do que ela disse, o meu raciocínio estava mais lento que o normal.

— Anne, Anne, está tudo bem. — Arrisquei um sorriso tranquilizador na esperança de impedi-la
de exigir uma cirurgia exploratória — Eu só tenho trabalhado muito, não foi nada além de um
colapso nervoso.

— Oh, um colapso? — Diz mais calma, cruzando os braços. As sobrancelhas se franzem daquela
maneira compenetrada como Harry faz — Deveria fazer algo mais tranquilo, é óbvio que está mais
te atrapalhando do que ajudando.

Balanço a cabeça evitando olha-la diretamente ao perguntar:

— O Harry te disse?

— O detetive Horan comentou que vocês estavam no meio de uma discussão. Eu não aprovo, mas
sei que isso faz parte da vida de qualquer casal. É comum. — Aperto os olhos ao ouvir isso. Niall
não disse tudo, ele claramente me acobertou — Tenho notado como Harry anda irresponsável com
essa gravidez. Ele parece no mundo da lua o tempo todo e não presta atenção nas coisas do
presente, ele não se cuida e aí está o resultado. Sustos! Mas ele me pareceu bem preocupado
quando a doutora lhe deu uma bronca, vamos torcer para que ele mude de atitude de agora em
diante e você também, Louis. O que estava pensando ao tratar seus filhos daquele jeito? Crianças
também tem sentimentos.

Harry também não disse. Por que ele não disse nada?

— Louis, eu estou falando com você! — Chama a minha atenção.

— Ah, eu... Eu sinto muito, não estava me sentindo bem e ligaram do trabalho. Não queria que eles
me vissem naquele estado.

— Bom, eles estão chateados e Blake rabiscou uma monoselha em uma foto sua.

Sorrio ao imaginar a cena.

— Acredito que mereci. — Murmuro, voltando a atenção para as janelas largas. O início da tarde é
sombrio, a relva úmida revela a garoa fria que desabou sobre ela, não há cantos de pássaros, nem
crianças pulando sobre as poças, apenas alguns jovens fumando na esquina, quietos e taciturnos.
Tentando fugir de suas vidas miseráveis, ansiando por uma saída. Um desfecho — Eu deveria
deixar o Harry em paz.

— O quê? — Anne dá um passo para perto.

— Não funciona mais, esse casamento, essa relação. Cada dia, menos resta do amor que
costumávamos sentir. Só tem trazido dor.

— Não, não, querido, a dor que você acredita existir no momento não será nada a que virá se você
deixá-lo. Você não pode deixar o Harry. — Seu tom de voz urgente me deixa confuso.

— Anne, eu traí o seu filho, você deveria querer me vê-lo o mais longe possível.

Ela suspira, apertando o anel sobre o dedo anelar. Uma aliança.

— Independente do que você faça, ainda é o único para quem ele sempre volta. Ele precisa que
você cuide dele, que o mantenha aqui, conosco. — Prensa os lábios antes de prosseguir — Se você
não o ama mais, tente permanecer, pelo menos... Pelo menos pelos seus filhos, por favor, eu te
imploro. — Ela toma minha mão entre as suas ao suplicar.

— Anne, eu realmente não estou...


— Não permita que nada destrua a sua família, só você pode impedir que mais sangue seja
derramado. — Diz num sussurro.

Estou prestes a perguntar o que aquilo significa quando o doutor surge com a alta. Em algum
momento entre os formulários para preencher e a chegada da enfermeira, Anne vai embora,
levando consigo as respostas para o enigma que ela simplesmente lançara sobre mim.

Saio com a cabeça fervilhando em pensamentos sortidos. Nada faz sentido, é tudo sem nexo. Sem
explicação, estou caminhando até o carro, Luke rompe da porta do motorista, nunca o vi tão
eufórico.

— Eles conseguiram! Conseguiram! Pegaram, Andrômeda, Louis, pegaram! — Grita para que toda
a rua saiba. E de todas as reações possíveis, eu não esboço nenhuma.

Xx

Acabou sendo uma boa estratégia não comemorar ou expressar reações exageradas antes da hora,
porque bastou colocar os olhos em Andrômeda para saber. Andrômeda deve estar rindo da nossa
cara, em liberdade.

O que temos aqui é no mínimo vergonhoso.

Um casal magricela do subúrbio. Os braços finos do homem pareciam intermináveis em sua regata
encardida, o cabelo comprido desbotado e sujo, a barba esburacada poluindo ainda mais seu rosto
feioso. O nariz parecia facilmente um bico e durante o julgamento percebi que ele era gago.

Quem abriria a porta alegremente para uma figura dessas?

A mulher não era muito melhor, provando que os iguais também se atraem. Ela parecia ter sido
arremessada de um trem em movimento e rolado pelo morro alto até um curral de porcos e depois
disso foi capturada. Não que a aparência contasse muito para dizer se alguém é culpado ou
inocente. Não se pode apontar um serial killer pela beleza ou falta dela, gênero, etnia, crenças,
nada disso serve para automaticamente concluir quem é capaz de matar seres humanos como
baratas ou não.

Na verdade tipos como esses são as figurinhas carimbadas no setor dos assassinos seriais, os
largados à margem da sociedade. Inúteis, fracassados, irados com o sistema, dolorosamente
abusados, físico ou emocionalmente.

Eles podem ser assassinos, claro.

Mas eles são Andrômeda? Não.

Desde o início foi traçado um perfil criminal meticuloso pela Unidade de Apoio Investigativo e
apesar de não ter sido tão preciso quanto gostaríamos levantou aspectos importantes e inegáveis
sobre nosso assassino: boa aparência; extrovertido; uma figura agradável e amigável, que inspira
confiança; alto e forte, um corpo atlético; trabalha com reparos, serviços prestados a domicílio;
vindo de um lar desfeito ou em crise; inteligente, observador, com nível superior ou mestrado.
Senso de justiça distorcido.

Assim que adentrei ao anexo da sala de interrogatório, Michael sentou ao meu lado, depois de
perguntar diversas vezes sobre o meu bem estar, começou a explicar como encontraram a dupla
horripilante e deram a eles o título primoroso de serial killer em atividade mais procurado do país.

— Quando você desmaiou estávamos prestes a encerar as buscas, mandei que a equipe
reagrupasse, quando Stoner pisou em algo duro, ele abaixou para averiguar e encontrou essa placa
gasta. Imediatamente trouxemos para cá e uma busca simples nos registros do departamento de
trânsito revelou que a placa pertencia a esse furgão Sprinter. — Passa a fotografia da placa, afim de
revelar a imagem do furgão imundo com o logo de uma empresa de internet — Os dois são
funcionários dessa empresa de internet, fizemos uma varredura nas câmeras nas localidades das
residências de todas as vítimas e em boa parte delas, esse mesmo furgão aparecia. Não há indícios
ou registros de que as vítimas tenham feito uso dos serviços dessa empresa, mas não era incomum
que eles fizessem a promoção de porta em porta. A filha dos Atkins os reconheceu, um dia antes
do homicídio eles estiveram na porta da família e tiveram uma desagradável discussão com Cory, o
homem teria sido bastante agressivo e prometido "cortar a porra da cara dele".

Escuto com atenção, aceitando quando ele me entrega uma imagem das câmeras de segurança do
homem esguio à porta dos Atkins.

— Eles podem ser suspeitos em potencial, agora concluir que eles são...

— Não foi uma conclusão, Louis. Eles confessaram. — Mike diz, agora espalhando todos os
registros fotográficos das evidências sobre a mesa de metal, começa a apontar — Fomos atrás deles
pensando neles como suspeitos, porém, assim que chegamos nos deparamos com um show de
horrores. Eles cultuam tudo o que se pode haver de pior, ditadores genocidas, seitas que praticam
canibalismo e sacrifício, estupradores e pedófilos de renomes. Haviam quatro gatos mortos e
abertos sobre a bancada do armário, um dentro da panela apodrecendo. Foi... Urgh, repulsivo!
Tinha uma criança também, franzina e desidratada, não é deles, eles só a pegaram e deixaram
amarrada ao lado da latrina. Claro que bastava para uma ordem de prisão, mas quando descemos
ao sótão encontramos um novo altar, nomes e fotografias não divulgadas das cenas de crime,
cadernos com endereços rabiscados, dizendo quem estaria na casa, a que horas. Todo o
planejamento. Eu me aproximei para ver melhor e foi quando a madeira do chão rangeu abaixo dos
meus pés, estava solta. Então, arrancamos todo o assoalho e lá estava, sacos plásticos, fitas
adesivas, facas manchadas com o sangue seco, cabos de aço, pequenas serras e é claro, as
correntes, longas correntes trançadas de aço polido, reluzentes em meio aquela sujeira. — Suspira,
coçando a testa com respingos de suor. A descoberta parecia lhe ser particularmente sofrida, talvez
porque a maioria de seus casos fossem simples. Michael nunca esteve em meio a um mar de
podridão criminal tão cheio de camadas. Ele deveria ter mantido o sonho de ser pediatra.

— Bom, mandamos tudo para o laboratório, e tendo esse caso como prioridade, a análise correu
em velocidade recorde. E é isso, o sangue da vítima mais recente, Adrienne, estava presente na
faca. Encontramos resíduos do casal no dormitório da jovem e nos demais objetos, cabos, correntes
e serras, haviam outras amostras de DNA das vítimas. Por fim, só lhes restou confessar e foi o que
fizera de bom grado. Está feito, Louis, acabou! — Mike solta em um suspiro cansado. Sinto seus
olhos analisando meu rosto, mas não estou nada convencido — Louis...

Continuo olhando fixamente para a dupla sentada lado a lado, mãos algemadas e encurvados, um
advogado e Liam e Luke na dianteira do depoimento, Nick está atrás deles, atento como uma
coruja a tudo o que se passa, o que inclui meu ceticismo. Mesmo com um vidro grosso sobre nós,
que não permite que ele me veja propriamente, ele sabe. Sabe que não vou cair nessa. Que não vou
aceitar essa historinha.

O homem, que eu leio nos altos ter o nome de Greg O 'Neil erra mais de dois ou três vezes
informações sobre os crimes. Tem dificuldade para lembrar o nome da segunda família. Um
assassino dedicado e organizado como Andrômeda não cometeria erros, não se esqueceria de uma
presa sequer. Ele as coleciona com carinho e obsessão, eu sinto isso. Os pobres diabos são meros
fãs, apreciadores. Eles arranjaram uma criança, formaram uma "família". Papai, mamãe e filhinha,
era quase como se estivessem montando o cenário ideal para Andrômeda, como se pedissem: ei,
olhe para nós, somos exatamente aquilo que você caça, venha, nos destrua, seremos gratos em
sufocar ao redor de suas correntes." Apenas loucos.

Preciso ouvir o perjúrio por eu mesmo. Deixo a sala para chegar até a outra, mas assim que saio no
corredor, Grimshaw está parado na porta feito um sentinela. Se não fossemos civilizados, com
certeza tacaria algo em mim para me espantar, me manter longe, porque ele também sabe, ele vê a
mentira, só não se importa.

— Por que estamos perdendo tempo com esses palhaços? — Solto me aproximando dele, que se
move para impedir que eu avance.

— Palhaços ou não, são assassinos confessos. Deveria estar animado, você os teve procurando por
todo esse tempo. Veja só, era uma dupla, agora tudo faz sentido. — Diz com um sorriso afetado.
Cínico do caralho.

— Não importa se são dois ou cinquenta, eles não tem a capacidade para saírem por ai matando
famílias em bairros de classe média alta sem serem pegos, ou no mínimo roubarem tudo o que
puderem. Mike disse o que encontraram na casa deles, eles são admiradores. São a porra de
copycats! Querem fama e atenção, estão imitando Andrômeda para chamar a sua atenção, eles
mataram Adrienne e seu bebê em uma clara provocação, querem enfurecê-la.

— Enfurecê-la? — Indaga com desgosto — Acha que uma única mulher está fazendo isso? Por
deus, Tomlinson!

— Aaron Johnson se refere a ela desta maneira.

— Aaron Johnson é um viciado. — Retruca feroz.

— Independente disso, seu testemunho tem valor. — Insisto, sentindo minha respiração engatar.

— Um viciado defendendo o outro, que nobre. — Ri zombeteiro, dando um tapinha em meu


distintivo — Você só tem isso graças a mim, não se esqueça.

Estreito os olhos, consternado.

— Me deixe interrogá-los. Eu sou o detetive responsável.

Ele nega.

— Você acabou de ter um colapso, não tem condições de fazer nada, Hemmings assumiu a
responsabilidade pelo caso, ele decide se aceita ou não a acusação.

— Luke vai fazer exatamente o que você mandar.

— Luke vai fazer o que é certo. O país está apavorado há mais de dois anos e você não teve a
capacidade de colocar um ponto final nisso tudo, eu confiei em você e você fracassou, Tomlinson.
Aqueles dois podem não ser o seu antagonista tão sonhado, mas temos evidências e depoimentos
de culpa, finalmente temos não só suspeitos como culpados e tudo isso graças a outros que não
você e isso te deixa louco, eu sei. Adoraria salvar o dia, mas não conseguiu. Você fracassou. —
Concluiu, batendo o dedo indicador duramente contra o meu peito e me seguro para não avançar
contra ele — Vamos fazer um pronunciamento para a mídia e Luke é quem irá falar.

— Fico grato por me livrar da humilhação de declarar imitadores como culpados, enquanto o
verdadeiro assassino continuará solto e agindo.
— Não entende que não temos mais tempo para ficar nessa de Andrômeda.

— E por que a pressa? Ficaram três décadas no rastro do BTK.

— Esse é um péssimo exemplo.

— Pelo menos pegaram o cara certo. Toda a investigação será prejudicada, vamos perder pistas
importantes, estaremos perdendo tempo e dando tempo a Andrômeda para matar. Você sabe que é
um erro, Grimshaw. Eu não vou ficar calado, vou entrar em contato com a diretoria e denunciar
formalmente a sua ação.

Nicholas solta um riso estrangulado e negando com a cabeça se apoia contra a porta.

— Um agente problemático e de caráter duvidoso denunciando um SAC exemplar e correto, diga-


me, acha mesmo que vale a pena se dar ao trabalho? Esqueça essa porra toda, está feito e fora dos
seus ombros. Descanse, vá para casa, fique com a sua família, tente ser normal, se puder.
Andrômeda já não te diz mais respeito. — Nick tenta tocar meu ombro, me afasto e ele suspira —
Que seja! No fim eram só dois caipiras querendo um pouco de emoção, nenhuma sombra de uma
mente complexa e sinistra por trás de tudo isso.

— Você está errado. — Digo, mas ele só dá de ombros e entra na sala.

Embora, Nick tenha sido claro ao me mandar para casa, permaneço no escritório. Esperando e
esperando, na esperança de que Luke ou Liam surjam depois do julgamento e eu possa convencê-
los de que eles não passam de farsantes, mas vejo que não terei sucesso quando falho
miseravelmente em mostrar meus argumentos para Clifford, que acredita bem mais nos indícios e
provas circunstânciais do que na minha intuição.

Luke chega quando estou falando com Mike e me lança uma careta incomodada, deixo Clifford
para tentar ter uma conversa decente com ele, porém tudo o que consigo é a mesma fala de
Michael sobre o que encontraram na residência, todas as provas e como eles disseram
absolutamente tudo, apesar de imprecisões que ele atribuiu as rotineiras falhas da mente humana,
um discurso tão descaradamente incutido por Nicholas Grimshaw. Estava de mãos atadas.
Conversei com Liam, mas ele não tinha grandes poderes sobre a decisão e partilhava da crença de
que tinham capturado as pessoas certas.

Sarah, vendo a minha chateação, me fez uma xicara de chá. Acabei largando-a pela metade para
fumar no estacionamento.

Dei uma longa tragada, soprando a fumaça para cima, vendo-a se misturar com a camada espessa
de neblina. Sapatos vinham tilintando de algum lugar, martelando contra o concreto molhado e
então, estava ao meu lado.

— Esqueci de te devolver isso. — Luke estende o celular para mim. O celular de Aaron.

— Não deu em nada? — Pergunto, colocando o telefone no bolso da jaqueta.

— Não, completamente limpo. Além disso, o cara está fora do país, não tem muita utilidade, talvez
nunca tenha tido. Agora vê se relaxa, o trabalho acabou. — Diz amigável, dando um breve sorriso
e se afastando.

Sei que não acabou, mas não preciso acabar com o breve momento de vitória de ninguém.

Encaro os poucos carros que restaram. A viatura foi recolhida e meu carro está em casa, a
caminhada até o apartamento de Mike é longa e ele estará de plantão hoje. Fumo mais um pouco,
me sentindo derrotado. Penso na possibilidade de só ir para casa, para o meu marido, para os meus
filhos... Não sei.

— Senhor! Senhor Tomlinson! — Não reconheço a voz escandalosa, mas resolvo seguir até a
viatura com as luzes piscantes.

Assim que me aproximo, desânimo me domina.

Niall Horan expõe toda a sua arcádia dentaria em um sorriso desnecessário.

— Oi, senhor, como vai? Quer uma carona? Eu te levo. — Sem dar tempo para uma recusa,
escancarou a porta do passageiro e fui obrigado a aceitar.

A viagem transcorria um tanto desconfortável, eu não ia com a cara de Niall, não por ele e sim
pelas condições em que tive de aceitá-lo como parceiro. Só mais uma manifestação de tudo o que
havia de errado na corporação.

— O senhor deve estar feliz, né? O caso foi solucionado. Eu não consegui ver os culpados porque o
Grimshaw...

— Nada foi solucionado. São copycat.

— Quê? Tipo a música da Billie Elish? — Indaga, dividindo a atenção entre a estrada e eu.

— Billie quem? Não! Não! Assassinos famosos como Andrômeda tem grande exposição na mídia,
os tablóides e revistas adoram um assassino serial a solta, podem exagerar no sensacionalismo.
Teve um otário que nos sondou por vários meses e agora está escrevendo um livro. Algo assim
chama a atenção de pessoas normais, imagine como é para as desequilibradas. Esses criminosos
veem em Andrômeda uma figura a seguir, se espelhar, podem estar querendo ajudar ou apenas ter
seus quinze minutos de fama, mas é bastante recorrente que surjam copycats pelo caminho. Ou
seja, quando saem por aí repetindo os crimes e ações do assassino original.

— Então, eles podem ser só imitadores?

— Eles são.

— Mas como conseguiriam ter tantos resíduos de material genético nas correntes e demais objetos
de homicídio, quer dizer, a Adrienne eu entendo, mas os outros...

Assim como todo mundo, Niall se apega nessas evidências medíocres.

— Horan, você já foi fã de algum cantor ou banda?

Ele me olha intrigado, provavelmente confuso sobre a onde isso vai dar.

— Bem, tive uma fase com o N'sync. — Diz ligeiramente envergonhado. Eu poderia zombar dele
sobre isso, mas também tive essa fase.

— Certo. Existem aqueles fãs que acompanham a distância, só sabem o que acontece por
intermédio de terceiros, mas também há aqueles fãs que gostam de ter tudo em primeira mão, de
ter informações exclusivas, imagens exclusivas. Ficou evidente pra mim no momento em que
Michael me mostrou as fotos que o casal tinha dos corpos, desconhecidas pela polícia, eles são o
tipo de fã que perseguem seu ídolo.

— Isso... Isso significa que as amostras de DNA nas tais armas do crime foram simplesmente
tiradas de cadáveres, eles as conseguiram visitando as cenas dos crimes, chegando antes da polícia.
— Niall conclui, o rosto pálido sendo iluminado pelas luzes do farol. De súbito bate com o punho
na buzina — Eles sabem quem é Andrômeda! Se estão no rastro dele, se chegam nas casas em
seguida, eles só podem saber exatamente para onde Andrômeda vai e esperar que ele saia para
entrarem em ação.

— Exatamente! Mas ninguém se importa com a verdade, apenas em acabar com tudo isso. Em
partir para outra. — Suspiro, apoiando o braço na janela aberta, olho de relance no retrovisor.
Sempre checando o banco traseiro na esperança de encontrar algo — Grimshaw está disposto a
fazer o que quiser.

— Eu-Eu posso falar com o meu tio. — Sugere.

— Você não pode passar por cima do seu SAC.

— Mas ele está errado.

— Não temos como provar isso, Niall. Não enquanto Andrômeda não voltar a matar.

— Então, estamos dependendo disso... — Engole em seco, aborrecido — Eles não mostravam isso
em Anjos da Lei.

Olho para ele, mas então estou rindo. Gargalhando, na verdade. As bochechas de Horan coram,
porém, ele me segue, deslanchando a rir também e é como se eu estivesse fazendo isso pela
primeira vez na vida.

Meus olhos estão lacrimejando de tanto rir quando me lembro de algo e acerto um tapa na cabeça
loira espetada de meu parceiro.

— Aí! — Niall geme, massageando a área acertada.

— Isso é por ter mentido. Deveria ter dito a Anne a verdade, você viu o que aconteceu, deveria ter
me denunciado.

— Eu achei que não deveria me meter.

— É claro que você tem que se meter, eu estava armado e ele encurralado. Eu podia... Você nunca
deve fazer vista grossa, mesmo para um parceiro.

Ele assente, nervoso.

— Mas o senhor não iria machucar ele de verdade, né? Foi um caso isolado.

— Não importa, Niall! O seu trabalho é proteger os civis, não importa qual seja a ameaça, mesmo
que seja eu, você tem que elimina-la. — Digo firme, recebendo seu olhar perplexo.

— Entendido, senhor.

— Não me chame de senhor.

— Posso te chamar de Louis? — Seus olhos brilham.

— Não. — Nego veemente, pensando por um instante — Podemos manter o chefe.

— Certo, chefe.
Com o silêncio voltando a reinar, Niall resolveu ligar o rádio, deixando na primeira rádio sem
chiado que encontrou. A música cowntry estava no fim, apoiei a cabeça no banco, acendendo um
novo cigarro, uma nova garoa se iniciava, chuviscos gelidos correndo pelos meus braços, captei no
ar a nova música, mais precisamente a letra. Pensamentos turbulentos seguiram soltos.

Strumming my pain with his fingers

Lembrei da sensação de assistir Lucian comendo uma parte de mim. A dor indolor, como a agonia
ao ter Harry encima de mim, me sufocando sem hesitação. O ar minguando e o ardor do desespero.
Eu odeio isso, eu quero isso.

Singing my life with his words

As palavras confusas de Harry, sua rejeição seguida de "eu te amo". Ele me abandona ao mesmo
tempo que me pede para voltar. Me enlouquecendo, devorando o pouco juízo que me resta, a
maneira como me leva fácil em sua fala macia, que manipula meus pensamentos. Que me tem
como uma marionete, como um brinquedo. Sou seu refém.

Killing me softly with his song

Sinto as correntes se apertando por meus membros, o metal frio arrepiando a derme quente, a
pressão aumentando ao ponto de machucar. A dor que me inebria. O corpo suave e macio sobre o
meu, deixando seus beijos cálidos e calmantes, a medida que me tira a vida. A voz rouca, hipnótica
sussurrando:

— Eu vou destruir você.

Me destrua, por favor.

— Chefe, seu telefone está tocando. — Desperto ao ouvir o chamado de Horan.

Me atrapalho em encontrar meu celular. O nome de Cams brilhando no ecrã.

— Cams, oi. — Atendo, surpreso por sua ligação. No painel do carro marcam 21:00.

— Oi, senhor Tomlinson, desculpe te ligar essa hora. É só que eu não sabia o que fazer. — Salto ao
ouvir sua voz agitada e chorosa. Meu deus.

— O que houve, Camila? — Vou direto ao assunto.

Ela tenta acalmar a respiração.

— É o Harry, eu não sei bem o que houve. Tava tudo bem, nós fomos ao shopping com as
crianças, foi super divertido, mas teve uma hora que eu perdi ele e daí eu o encontrei junto aos
seguranças, um deles disse que tinha um cara importunando ele e foi só isso. Ele não estava
machucado, nem nada, só quieto, meio distante, mas eu sei lá, adultos tem dessas, né? Mas há meia
hora atrás eu ouvi uns barulho vindos lá de cima e quando eu entrei estava tudo bagunçado, ele
arrancou tudo do closet e entrou lá. Eu tentei conversar, mas ele só continua chorando muito e
chamando por você sem parar. Tem vezes que ele grita, como se estivesse com dor. Os meninos
estão assustados, eu estou assustada. Chamei pela Bebe, mas ela não respondeu, acho que saiu. A
senhora Wilson veio aqui e quando ela saiu do quarto estava pálida feito um fantasma e disse que
ele era o demônio. Eu não sei o que fazer, senhor, pode vir aqui, por favor. — Ela termina aos
prantos e consigo ouvir os choramingos dos gêmeos, suscetíveis a chorar sempre que vêem alguém
fazendo isso.
Tento administrar toda as informações, pensando o mais rápido que consigo.

— Escute, Cams, suba silenciosamente e tranque a porta do quarto.

— Trancar?

— Sim, depois disso, fique na sala com as crianças. Coloque um filme chato, o mais insuportável
que encontrar, eles vão dormir rapidamente. Deixe num volume alto para que nenhum som chegue
até vocês e tem uma coisa na cômoda, pegue por precaução.

Ouço seus passos e o ruído da gaveta.

— Isso é...?

— Eu já estou a caminho. — Desligo, pedindo a Niall que mude a rota. Não foi assim que eu me
imaginei voltando pra casa.

Xx

Quando Niall me deixa em casa, paro por um momento. Observo a minha linda casa saída de um
conto de fadas, abrigando meu marido amável e doce, meus filhos perfeitos, minha família incrível.
Sinto um aperto no peito ao ver a grama alta com um aspecto cru, como se estivesse morta, a tinta
descascando da fachada, a cerca amarelada. Silenciosa. Parece um lar abandonado, ou uma casa
mal assombrada.

Entro com isso em mente, por isso me surpreendo quando encontro sinais de vida. Sonny salta em
minhas pernas logo que chego no vestíbulo, late alegremente e logo sinto duas bolinhas de pelos se
enganchando em meus jeans, miando como em saudação. Ajoelho para dar um beijo de boas
vindas em cada um dos meus filhos de quatro patas e caminho até a sala.

— Oi, senhor Tomlinson. — Camila acena num sussurro.

A televisão está ligada em um documentário. Boa garota.

Me inclino sobre o braço do sofá em L. Lá está a minha dupla dinâmica, adormecidos com os
membros não respeitando o espaço pessoal do outro irmão. Eles parecem bem, ao menos
fisicamente. Camila nem tanto. O rosto inchado, denuncia seu choro.

— Vamos colocá-los nos berços e você vai pra casa. — Digo, dando a volta e pegando Blake.

— Não, tudo bem, eu posso ficar. — Ela oferece solicita, segurando Spencer.

— Não e sem discussões.

Subimos e os deixamos confortáveis em suas próprias caminhas. A levo até a porta e me desculpo
por todo o transtorno, depois de vestir o casaco, ela se vira, lembrando de me devolver.

— Felizmente não precisei usar isso. — Me entrega a arma — Acho que nem teria coragem. —
Estremece só com o pensamento.

— É uma arma de tranquilizantes, não de fogo. Você não iria matá-lo. — Mostro as pequenas
seringas e ela arregala os olhos — Obrigada por protegê-los.

Assim que Camila sai, eu reluto sobre subir ou não com a arma. Deixo sobre a mesa e sigo até
nosso quarto, destranco a porta, contemplando o caos. Nada está no lugar. Mas os objetos pouco
me importam, procuro por Harry. Escuto os soluços vindos de dentro do closet, empurro as portas
de madeira e o encontro encolhido, abraçando os joelhos, chorando copiosamente, feito uma
criança.

Ele soluça alto ao me ver e salta no meu colo, chorando com mais força.

— Onde você estava? Por que me deixou? Por que? — Diz entre engasgos, fincando as unhas em
mim, não me soltando em momento algum.

— Harry, do que você está falando? O que houve? — Estou desnorteado, massageando suas costas,
mas ele segue tremendo.

— Eu te esperei, esperei por horas. Você disse que estava vindo, mas você não chegava e então, no
meio da madrugada eles tocaram a campainha e foi como naquele dia, quando a E-Eve morreu. —
Não existe mais força em sua voz ou corpo e ele começa a desfalecer sobre meus braços, o seguro
com firmeza, suas unhas em mim são o restante de sua chama — Eu achei que você estava morto,
Louis. Eu achei...

Forço meu cérebro a compreender o que está sendo dito. De que diabos ele está falando.

— Por que você entrou naquele esgoto? Por que você não pensou em mim? — Sibila em meio a
histéra — Eu não podia suportar, não podia lidar com aquilo, de novo não, eu precisava fugir, me
esconder. Sumir. Eu sumi e quando voltei você tinha me deixado. O que eu te fiz? Por que você
queria atirar em mim? Por que você saiu de casa? Por que... — Ele se solta, caindo em seus joelhos
diante de mim, rasgando a bainha da minha camisa tamanha a força que se prende a ela.

Harry é outra pessoa.

Em nada se parece com aquele que vem me desprezando desde que eu voltei. Esse parece quase
que devoto a mim, sensível e desesperado demais, frágil como um garotinho. Era o Harry que
tocava violão ao contar historinhas para os meninos antes deles dormirem, que era um fiasco na
cozinha, mas achava que se colocasse chantily e uma cereja por cima ninguém notaria o sabor
intragável, que passava horas pensando em que roupa vestir e sempre escolhia errado, o Harry que
tinha medo de armas e sentia calafrios só de pensar no meu trabalho, que estava tentando tricotar
um sapatinho para o bebê, mas não sabia sequer segurar a agulha, o Harry para quem eu disse sim
no altar, o Harry que eu amo e que eu sei, que me ama além da conta.

É como se tivessem tirado a venda dos seus olhos e ele se desse conta de que sou eu quem estou
aqui.

— Que brincadeira é essa? Você me colocou pra fora e tem me tratado feito merda todo esse
tempo e agora o quê? Isso é mais um dos seus joguinhos ou você só se cansou e quer bancar o
marido apaixonado? Que porra é essa, Harold? — Exalo confuso e nervoso. Eu não entendo —
Isso é por mais cedo? Olha, eu sinto muito, mas fazer essa cena toda só pra me assustar e magoar
não é...

— Que joguinhos? Cena? Eu não... Eu não... Louis! — Geme em agonia, se contorcendo, os nós
dois dedos esbranquiçados. A mão esquerda está enfaixado, a pressão com que me segura faz o
provável corte abrir e a atadura vai sendo pigmentada com o vermelho do seu sangue — Louis! Faz
isso parar, eu não quero mais ver isso. Eu não quero ver, não quero ver...

Ajoelho, ficando no seu nível, afasto os cabelos longos de seu rosto vermelho, eu nunca o vi chorar
tanto e completamente sem fôlego. Seguro suas bochechas, colando nossas testas.

— Harry, respira, respira bem fundo. Sinta o ar entrar e sair, isso, concentre-se na minha voz. Só na
minha voz. Fica comigo. — Peço baixinho, passando a calmaria para ele. Leva algum tempo até
que ele possa parar de espasmar e chorar, lágrimas gordas continuam a rolar por seu rosto, mas
suas mãos cobrem as minhas e ele olha diretamente para mim. O verde cristalino procurando
refúgio nos meus.

Permito que o silêncio nos embale, até que a sua respiração se normalize e o veja relaxar.

— Qual a sua última lembrança inteira? — Mantenho o timbre baixo.

Ele pisca, as pupilas tremulam.

— Nós nos falamos por telefone. Eu pedi pizza e tinha algo sobre a SWAT, o tempo foi passando e
eu fiquei com medo, muito medo. — Ele vai tentando reaver os fragmentos de memória com
dificuldade — E então quando disseram que você tinha ido atrás de um... De um canibal e não
conseguiram te achar, quando uma moça disse que uma coisa com chifres te pegou... Eu fiquei
apavorado, eu senti no meu coração que você estava morto, que tinham te arrancado de mim. Eu
senti tanto medo e tanta raiva, uma raiva animal... Então, eu, não sei, acho que só apaguei, o meu
cérebro desligou. Lembro de ver coisas, do Spencer chorando quando eu quis pega-lo, de almoçar
com a mamãe, de pintar, olhar os meninos brincando no jardim e você... E de repente, nós
estávamos brigando, eu sentia muita dor e você apontou uma arma pra mim. Eu não sei porquê.

Meu cérebro fica paralisado. Como assim ele só lembra disso? Como ele pôde apagar tantas
memórias?

— E como você se "religou" hoje? Foi do nada?

— Um homem no mercado. Ele estava com uma máscara e de joelhos, ele segurava as minhas
mãos e dizia que me amava e me adorava, que eu era o ídolo dele e então, tirou uma faca da
cintura e cortou a minha mão, eu tentei fugir, mas ele me segurou e lambeu o meu sangue. Depois
agradeceu e me soltou. Eu corri para os guardas, mas não acharam ninguém.

Harry me mostra o curativo em sua mão.

— Depois disso eu quis vir pra casa, pra ficar com você, mas a Cams me disse que você não estava
aqui, que tinha saído de casa há muito tempo e eu perdi a cabeça. Ah meu Deus! Coitadinha, eu a
assustei, Louis, eu preciso pedir perdão.

— Tudo bem, você vai. Mas depois. — Digo, resgatando entre a bagunça do quarto a caixa de
primeiro socorros, enquanto faço um novo curativo, ele me olha com atenção — Amanhã vamos
ao médico, você vai fazer um check up completo e vamos descobrir o que há de errado e curar isso,
okay? Você precisa de um sprey de pimenta para jogar nos olhos desses tarados.

— Você vai voltar para casa, né?

Desvio o olhar, terminando de enfaixar, pego um frasco de calmantes.

— Você precisa descansar agora. — Lhe entrego um comprimido.

Harry recua, negando com a cabeça.

— Não, você vai embora enquanto eu estiver dormindo. — Diz em pânico.

— Eu não vou. — Suspiro cansado.

— Promete.
— Eu prometo.

Só então ele aceita tomar um e me deixa carregá-lo. Quando faço menção de deita-lo na cama, ele
resmunga e decido deixar que ele adormeça nos meus braços, mesmo enorme, ele é tão leve como
uma pena, não é incomodo algum embalar seu sono. Ao afundar na mais pura inconsciência sua
cabeça tomba para trás, as pontas dos fios cacheados roçam pela minha coxa e o pescoço e a linha
do peito ficam expostas. O assisto ressonar baixinho, suave e imperturbável.

Uma brisa fria entra pela janela, zumbindo em meus ouvidos.

Meu dedo traça desde o centro de seu peito, subindo pela garganta, pairando sobre uma veia
acentuada.

" — [...] aquela carne pálida e macia dele se rompendo nos meus dentes, ah, eu o comeria de todas
as formas possíveis."

— Se quiser mesmo terá de afiar os dentes até ter presas como eu. — Escuto a voz de Lucian
rastejando pela minha mente. Não lhe dou ouvidos.

Coloco Harry sobre a cama e ele rola ficando de lado, eu pisco um pouco de cansaço e quando
torno a abrir os olhos Evangeline está lá, deitada de frente para ele, a mão pequena repousando
sobre sua bochecha, um carinho singelo que não pode ser sentido. Ela não diz nada, só aproxima o
rosto dele, até seus narizes se tocarem e ela sorri pequeno. Uma covinha afundando na bochecha e
os olhos fechados, como se estivesse dormindo também.

Deito as costas de Harry, abraçando sua cintura e escondendo o rosto na curva de seu pescoço.
Penso na imagem que projetamos e que só existe no meu imaginário, é como se eu estivesse
recriando uma fotografia que eu já vi, um registro da família Flynn. Uma pequena família. Três
membros. Um alvo certeiro para Andrômeda...

Se Andrômeda não é mais problema meu. Vou focar todas as minhas energias em cuidar de Harry,
descobrir o que está acontecendo com ele e fazer todo o possível para ajudá-lo.

Em doze anos, ele, enfim, será o alvo de toda a minha atenção. Eu quero saber tudo sobre ele, cada
ação, cada intenção, pensar ou tramar. Eu o irei desvendar por inteiro.
│16│lupus

Você me destrói assim


Eu vou parar, não quero mais você
Eu não consigo mais fazer isso, que merda
Por favor, não me peça mais desculpas

Você não pode fazer isso comigo


Cada palavra sua é como um tapa-olho
Escondendo a verdade e rasgando-me
Me corta, me faz louco, eu odeio tudo
Leve tudo embora agora, eu te odeio

Mas, você é o meu tudo


I Need U - BTS

...

— Quer dizer que os últimos meses foram agitados. — Adam observa, apoiando o queixo sobre a
mão e me lançando aquele seu olhar provocador "diga-me mais" — Como diria que está a
paternidade?

Suspiro desviando os olhos do quadro pavoroso próximo a janela para lhe encarar propriamente.
Deixei que minha vagasse até a última vez que encontrei Mia, ao acaso quando ela saia da escola.
Zayn está com problemas, com o recente tempo livre, o FBI vinha dando uma forcinha a
narcóticos na busca pelos traficantes de renome e Malik estava no topo da lista.

— Bem, eu diria... — Me ajeito na cadeira, pensando em como soar mais emocionado e


convincente — Agora eu sei que eles precisam ser estimulados o tempo todo, o celular não é legal
e eles são até que bons no futebol.

— Isso é ótimo, Louis. Então vocês tem passado algum tempo juntos?

— Na verdade eu tenho passado muito tempo com eles. Estou meio que na geladeira por agora.

— Como assim?

— Você sabe. Aqueles... — Farsantes de merda — criminosos apontados como Andrômeda estão
prestes a irem para julgamento e milagrosamente a taxa de homicídios nessa cidade tem diminuido.
Tenho lidado mais com a parte burocrática. A última vez que vi sangue foi quando a temperatura
subiu demais e o nariz do Blake sangrou, isso já deve ter mais um de um mês.

Adam parece surpreso e anota algo em sua prancheta.

— E o bebê, Leslie, certo?

Me mexo mais uma vez na poltrona, inquieto.

— Por enquanto sim, é um nome sujeito a mudanças. Mas o bebê vai bem, decidimos que dessa
vez não queremos saber o sexo, ter alguma surpresa. Tem sido divertido, eu sempre fui um pouco
ausente durante as gestações anteriores, mas nessa eu estou totalmente presente. Decorei as datas
de todos os pré-natais do Harry, sei a hora de cada vitamina, esses dias eu calculei o tempo de
gravidez em minutos. — Digo, esperando que ele esteja orgulhoso do quão dedicado sou.
— Você parece estar tentando demais. — Ele diz justamente o que eu não esperava ouvir.

— Pensei que era isso que você me disse para fazer. — Retruco contrariado.

— Sim, mas de uma maneira natural, agradável para você. Ambos sabemos que você tem um
problema, um vício com o trabalho, adrenalina e simplesmente sentar e estar com a sua família em
um ambiente calmo e pacífico não é fácil para você, mas precisa, de fato, estar presente. Atento.

Atento? Reviro os olhos furiosamente, levantando da poltrona e andando ao redor da sala estreita.

— Eu não sei se você sabe ao certo como é a minha família, mas não tem nada acontecendo, hora
nenhuma. Eu os amo com toda a minha vida, porém, existe um limite para o quanto suporto ver
Harry cochilando e acordando e os meninos fazendo a mesma brincadeira por semanas. Não sou
caseiro e não consigo me limitar as inexistentes emoções domésticas, não serve pra mim.

Por um momento penso que meu psicólogo irá retrucar, apontar o quão ingrato e insensível eu sou,
invés disso, ele vira a página e começa um assunto "novo".

— E Harry? Os resultados dos exames saíram? — Pergunta atenciosamente e isso me traz de volta.

Vagueio um pouco mais, admirando o porta retratos sobre a estante, perdido entre os livros
empoeirados. Adam, sua esposa e filhos. Uma família feliz. Me lembro da foto que tiramos semana
passada no parque, um lindo dia de sol. Harry, eu e os gêmeos, talvez eu emoldure e leve para o
escritório. Ficaria bem.

— Sabe, assim que eu voltei para casa e ele me apareceu naquele estado, não tive dúvidas de que
havia algo de muito errado com ele. Os lapsos de memória, só estavam se agravando, parecia meio
óbvio. O avô dele e uma tia já haviam sido diagnosticados com Alzheimer precoce, no fundo, eu
sabia que era isso. Mas com os exames descobri que estava errado, o seu cérebro está bem, assim
como a memória, ele lembra de absolutamente tudo na maior parte do tempo. Pensei que pudesse
ser outra coisa, por isso insisti que ele fizesse um check-up completo, todos os exames possíveis e
hoje de manhã, quando fomos ao hospital, eu esperava ao menos um positivo, mas todos foram
negativos. Não existem amostras laboratoriais de que Harry esteja doente.

— Porque talvez ele não esteja.

— Ele está, eu sei que está. — Minha voz sai quase como um rosnado. Tento me conter, passo a
mão no rosto e vou até a janela, observando as árvores imponentes, os troncos úmidos das garoas
gradativas e as folhas abundantes cobrindo seus galhos, colorindo a paisagem em tons de verde,
laranja e vermelho. As nuvens acinzentadas, carregam o céu em anúncio a chegada de uma nova
tempestade, o café recém aberto traz no ar o perfume aconchegante de um chá borbulhante. Fecho
os olhos sorvendo o perfume, sorvendo a estação. O outono chegou — Você não o viu, isso não é
de hoje. Desde aquela vez que ele cortou os pulsos.

— Foi um caso isolado, Louis. Ele nunca quis tocar no assunto, vocês tiveram um dia ruim e ele
cometeu um equívoco. Posso afirmar categoricamente que Harry não tem tendências suicidas.

— Será? — Toco a janela, o desenho da minha mão se projeta sobre o vidro — Tem momentos em
que eu não o reconheço, ele parece outra pessoa.

— Muito cônjuges se sentem desta forma, Louis.

— Não, eu digo como se ele... Ele não estivesse presente. Eu acho que é Boderline, talvez um
transtorno maníaco-depressivo, ou na pior das causas esquizofrenia. Ele tem visto um psiquiatra.
— Sim, nós entramos em contato. O Dr. Olson não identificou nenhuma das suas suspeitas, ao seu
ver o único problema de Harry é estar um pouco deprimido, o que é bastante normal dada a sua
perda irreparável e as variações de humor e memória pouco precisa são comuns durante a gravidez.

— Mas eu sei que tem algo sério... — Insisto teimoso.

— Louis! — Adam chama a minha atenção, sua expressão endurecida por sobre os óculos de grau
— Parece que está projetando novamente suas angústias sobre o Harry. Talvez fosse melhor que
você passasse por esse check up.

— Eu estou bem! — Afirmo, voltando a me sentar. Cruzo e descruzo as pernas — Isso pode ser
coisa da minha cabeça, não é? O Harry tá legal, eu sou só ansioso demais e fico vendo coisas onde
não tem. Se houvesse algo de errado, errado de verdade mais alguém saberia, certo? Você saberia.

— Eu saberia, Louis. Fique tranquilo, as coisas, enfim, estão se ajeitando. Precisa relaxar, por que
não me fala sobre os planos para a ação de graças?

— Planos? Certo. — Forço um sorriso que se assemelha bem mais a uma careta.

Xx

Os meus planos para a ação de graças eram exatamente estes: permanecer deitado nessa mesma
posição no sofá, assistindo a reprise do jogo e reagindo como se não soubesse cada lance de cor.
Ao menos, Blake soltava um ou outro gritinho surpreso, o que me fazia sentir um bom pai por estar
vendo futebol com meu filho. Onde está a People pra me dar um prêmio por isso?

Spencer estava atarefado indo e vindo até seu fogãozinho de brinquedo, ele achava que ninguém
via enquanto ele "disfarçadamente" roubava a ração da tigela de Sonny e saia depositando em suas
panelinhas, naturalmente o cachorro ia em seu encalço e surrupiava de volta e assim se seguia no
ciclo em que Spencer tentava encher sua panelinha sem sucesso. Me lembrava o meu drama de
economizar para comprar um barco, enquanto Harry vivia sacando o dinheiro sem dizer nada.

Por falar em Harry ele nunca esteve tão onipresente.

Depois da minha consulta com Adam foi como se algo tivesse se acendido nele e de repente estava
cheio de energia. Os primeiros dias após o meu retorno para casa foram estranhos, ele agia como
um animal ferido em território estranho, me seguia pela casa e vivia pendurado à manga da minha
camisa, não dormia a menos que tivesse todos os membros enrolados nos meus, conforme os dias
foram passando ele foi se soltando e voltando a rotina normal, embora dormisse demais e passasse
muito tempo quieto ou isolado. O ateliê era seu point.

Ele havia feito muitos quadros, uma coleção completamente nova e já começava a tagarelar sobre
a possibilidade de uma exposição. Não me aprofundei no assunto porque não queria que o nome de
Aaron Johnson fosse mencionado, mas certo dia quando a campainha tocou, lá estava ele.

Sua aparência era péssima. Ouvi algo sobre ele ter estado no Tibet, mas pelo que vi era presumivel
que ele tivesse retornado na caminhada mesmo. Seus olhos vidrados me capturaram no momento
em que abri a porta.

— Louis! — Disse num sopro de voz.

Não fazia ideia do que ele poderia ter para me dizer. Será que eu seria processado por conta do
celular? Mas não tinha nada. Merda.

— Sim? — Respondi sem ânimo.


— Eu preciso te co... — A frase pendeu incompleta no ar ao que ouvi sons de passos as minhas
costas e o rosto de Aaron empalidecer ao que Harry surgiu entre nós.

— Aaron, você voltou! — O cacheado soltou em êxtase, se atirando aos braços do outro em um
abraço apertado. Fingi não estar possesso por Harry ter saído só de camiseta e cueca e mantive o
sorriso amarelo.

— Harry? — Aaron inquiriu num chiado. Harry se afastou, o rosto corado e ainda amassado pelo
sono, mas um sorriso radiante presente.

— Claro, quem mais séria? Ou já se esqueceu de mim? — Riu bem humorado, colocando o cabelo
atrás da orelha e tocando os ombros de Aaron — Senti sua falta, eu liguei na sua casa, mas
disseram que você ficaria mais um mês. Voltei a pintar e acho que tem alguns com ótimo potencial,
você precisa ver... — Ele o puxou, porém o homem não moveu um único músculo — Você não
quer ver? — Senti a mágoa de Harry e lancei um olhar raivoso ao outro. Eu não suporto esse cara,
mas ele vai mesmo desprezar o trabalho do Harry? Oh não.

— Vamos, Aaron. Está fantástico. — Disse amigável, passando o braço pelo ombro dele e o
forçando a entrar, embora continuasse estático — Você vai adorar.

Ele me olhou, um olhar estranho e perplexo. Quase desesperado.

Sei que tive momentos de descontrole diante dele, mas eu estava sem meus remédios e sei da sua
condição de dependente. Não o vejo como uma ameaça e se Harry o vê como amigo, não me
oporei a essa amizade. Adentramos ao ateliê, as paredes forradas por novas telas, as pinturas mais
recentes eram em tons suaves, rosa e lilás em peso. Ele nunca esboçou imagens tão delicadas,
Aaron não parecia prestar muita atenção enquanto Harry ia falando de cada uma, orgulhosamente.

— E então? Acha que eu conseguiria uma nova exposição? Que conseguiríamos reunir aqueles
mesmos compradores em potencial? Sabe, a Prudence me ligou esses dias e... — Ia falando ao
mesmo tempo que gesticulava e fazia caras e bocas.

— Que porra é você?! — Aaron gritou de repente, calando Harry — Como tem coragem de sair
desenhando a porra de um jardim florido depois de... — Ele me olha e se cala, lágrimas gordas
vindo aos seus olhos.

Harry parece em estado de choque. As mãos caídas ao lado do corpo e um vinco entre as
sobrancelhas.

— Quem vo- — Começo quando meu marido levanta a mão.

— Lou, pode nos dar um segundo? — Pede suave. Não tenho muita certeza, mas ele tem um
sorriso tranquilizador e assim me retiro.

Poucos minutos depois, enquanto estou na sala lendo um livro vejo Aaron passar cambaleante,
Harry vem logo atrás e lhe dá um abraço antes que ele parta.

— Tudo resolvido? — Pergunto, deixando o livro de lado para recebê-lo no meu colo.

— Sim, é só que... — Suspira, desenhando espirais sobre a tatuagem na coxa — depois do


incidente em frente a galeria as coisas não tem ido bem. Ele perdeu muitos patrocinadores, seus
pais estão fazendo pressão e o vício parece ter piorado, acho que ele me culpa por isso.

Franzo o cenho, passando os braços ao redor de sua cintura.


— Te culpa?

— É, eu tenho fortes suspeitas de que ele acabou se apaixonando por mim e como eu não
correspondi, passou a me odiar. — Diz num murmurio, beliscando o lábio inferior e se inclinando
contra mim.

— Sendo assim, é melhor manter distância. Você não precisa dele, pode fazer muito sucesso por si
só.

— Você acha?

— Eu tenho certeza.

Desde então a ideia da exposição era recorrente e ele acabou fechando com uma galeria ainda
maior que a de Aaron. Os bons ventos pareciam soprar e eu gostaria de poder me manter na
calmaria nas semanas que antecediam ao circo dos horrores que seria o julgamento da Andrômeda
do Wallmart.

Eu jurei a mim mesmo que não me intrometeria mais no caso, ao começar por não ver a declaração
do FBI a imprensa, o que foi rapidamente refutado quando Harry adormeceu e procurei pelo
Youtube até encontrar a figura morena e a loira diante de uma coletiva de impressa se vangloriando
pelo excelente trabalho e que após uma árdua caçada a justiça seria feita. Os repórteres fizeram
ótimas perguntas que foram vagamente respondidas, Michael foi o único que soou verdadeiro em
suas palavras, ele esperava que tivessem pegado os verdadeiros culpados, mas não cometeria o
equívoco de afirmar a vitória antes da hora.

Embora soubesse que eles não estavam nem perto.

Harry se revirou na cama, o braço caindo sobre o meu estômago quando se esticou, apesar de não
conseguir ver seu rosto sob o cabelo longo ouvi seu resmungo incisivo:

— Espero que isso seja pornô e não a coletiva.

Agi rapidamente colocando em algum pornô para disfarçar porcamente, quando ele ouviu os
gemidos exagerados começou a rir e imitar.

— Por que você sempre faz isso?

— O quê? — Grunhiu, me abraçando depois que desliguei o notebook.

— Imita todo som que você ouve.

— Eu faço isso?

— Uhum. — Baguncei ainda mais seu cabelo.

— Pare de prestar tanta atenção em mim, seu psicopata.

— Acho que você está me transformando em um. — Sussurrei, começando a piscar sonolento.

— Que medo. — Foi a última coisa que disse antes de adormecer e sim, eu também vinha me
assustando com o quão empenhado eu podia ser quando quisesse.

Dois meses e meio após a minha decisão de ter meu marido como meu mais absoluto objeto de
foco, aprendi muito sobre ele. Harry era bagunceiro – isso eu já sabia – mas seu problema era
fortemente agravado pelo tanto de coisas que ele tinha e na maior parte do tempo não usava ou
sequer lembrava, ele comprava demais e comprava mal porque não combinava com ele. Sem falar
que errava feio nos tamanhos, era tudo pequeno demais, parecia o armário de uma adolescente.
Notei que ele era muito musical, fazia tudo com uma trilha de fundo, normalmente uma playlist
aleatória encontrada nos confins do Spotify e ele nunca sabia quem estava cantando. Quando a
música era lenta em demasia, parava o que estava fazendo e olhava o vazio.

Um dia cheguei do trabalho e ele estava estático diante de um de seus quadros, um cover de No Air
ecoava ao fundo, flutuando como a nuvem de poeira que vinha das janelas abertas, o pôr do sol
caía sobre a pele de alabastro de Harry, clareando as manchas de tinta sobre sua camiseta e então,
sem que eu fizesse qualquer som, ele me notou. Sentiu minha presença e retornou, dobrou o
pescoço, me olhou e sorriu com covinhas e correu para os meus braços. Então fui eu quem perdeu
o ar.

No momento não percebi, mas agora conseguia me lembrar de como me senti, verdadeiramente
feliz. Amado. Eu estava com meu amor, o que mais poderia querer?

Ele também era um excelente pai. Disso eu sempre soube, porém, era bom poder vê-lo embarcando
em todas as brincadeiras que os gêmeos inventavam e ele dava tudo de si. Se era uma princesa, era
a mais dócil e encantada possível, se era um cavaleiro, era o mais corajoso e bravo já visto e se era
um monstro, era o mais temeroso e horripilante que já vagou por estas terras. Spencer e Blake
vinham saltando, correndo, tropeçando, caindo e levantando enquanto gritavam histericamente
com o terrível monstro as suas costas. E Harry era tão maligno que os obrigava a receberem uma
enxurrada de beijos por terem sido capturados. Que terrível! Mas também havia o lado menos
animado e meigo, aquele que o afligia quando achava que ninguém estava vendo, que o fazia
desviar do caminho usual e parar na porta de Evangeline, de soprar seu nome baixinho como se ela
pudesse responder e ao cair da noite ele ficava quieto e distante. Perdido em algum lugar sombrio
que eu não podia alcança-lo por mais que tentasse.

Uma parte dele se foi para sempre.

Assim como uma minha.

Ela as levou.

— Lou... — O timbre rouco de Harry surgiu sobre a voz do narrador. Não respondi entretido
demais na partida — Louis... — Continuou, soando menos manhoso, quando a resposta não veio,
ele largou de fazer charminho — Louis Tomlinson, está surdo?

— Quê? Oi? — Pisquei quando ele se colocou na frente da TV — Ah, Harry, não! Qual é? Vai pro
lado, minha vida.

— Não! Eu estou te chamando e você me ignorando. — Declarou rígido, cruzando os braços


diante do peito e jogando o quadril para o lado, cobrindo a fresta da TV.

— Que saco! — Suspirei aborrecido.

— Saco! — Blake repetiu, jogando os braços dramaticamente como eu e Harry me olhou daquele
jeito.

— Ei, o que é isso? Você pode falar desse jeito? — Assumi o modo pai, cutucando sua perna para
que ele me olhasse.

— Não posso.

— Então por que está repetindo? Virou um papagaio ou o quê?


Harry pigarreou.

— Quer dizer, querido, o papai está errado em falar desse jeito, não é educado e eu não quero você
copiando meus maus custumes, okay? Isso deixa eu e o papai muito tristes.

Blake ergueu o rosto, os olhos grandes nos encarando cheio de arrependimento.

— Desculpa, papas. — Disse baixinho, me abraçando e pulando do sofá para abraçar as pernas de
Harry que lhe sorriu derretido e bagunçou os cabelos castanhos — Posso brincar?

— Pode, leve o Spen pra tomar um ar no jardim dos fundos. — Ele assentiu e correu gritando para
Spencer e os dois saíram para os fundos, seguidos por Sonny latindo. Shae e Mona se esticaram no
tapete, aproveitando de terem a sala só pra elas.

— Então...? — Perguntei depois de desligar a TV, me dando por vencido.

— Oh, agora você está interessado no que eu tenho a dizer?

— Eu sempre estou interessado.... — Levantei um dedo, indicando minha pausa pra terminar
minha cerveja — no que você diz, baby.

— Baby? — Soltou um riso, voltando a sua postura austera — Eu tenho mais de trinta, não tenho
nada de bebê.

— Claro que tem. — Resmungo, olhando sobre as costas do sofá para além da porta da cozinha
aberta, ouço os garotos, mas eles estão fora de vista — Você tem esses olhinhos meigos. —
Escorrego os joelhos pelo carpete e me apoio nas mãos. Meu marido arqueia uma sobrancelha —
Um rostinho angelical, bochechinhas rosadas, a boquinha mais doce e aveludada que eu já provei...
— Engatinho até aproximar o rosto de suas pernas, esfrego a bochecha pelo jeans escuro —
praticamente um nenê.

— Você só está sendo gentil, eu estou virando uma milf.

— Milf? — Digo estridente.

— É... Por que essa empolgação de repente?

— Hum, bem, eu-eu tinha um crush na mãe de alguém quando era adolescente. — Digo aquilo
sentindo minhas bochechas esquentarem.

— Não brinca! Seu pervertido.

— Pervertido? A culpa não era minha se o Stan tinha uma mãe gostosa.

— A mãe do Stan? — Repete e sei que pela pequena pausa está se recordando da figura da mulher
e então explode em uma gargalhada — Louis, não! Ela tem bigodes.

— Sim e foi um forte indicador de que eu era gay. — O acompanhei na risada, deixando que meu
lado pervertido se demorasse um pouco mais ao subir as mãos por suas pernas, serpenteando pelos
quadris arredondados — Meu Deus, as crianças irão sofrer tanto por culpa do pai gostoso deles.
Você consegue imaginar a dúzia de garotos que vão viver enfiados aqui só por sua causa? Você vai
ser a mãe do Stifler de toda uma geração.

Ele respira fundo, secando as lágrimas que escaparam e se encolhe quando deixo minhas mãos
caírem por sua bunda, fincando os dedos sobre sua carne macia.
— Os meninos...

— Tudo bem, faz parte do ciclo ser traumatizado por seus pais transando, eu não quero tirar isso
deles.

— Eu não vou transar com você. — Declara, empurrando meus ombros.

— Por favor, Sr. Tomlinson, eu prometo que o seu marido nunca saberá. — Enceno uma voz
juvenil, piscando meus olhos da maneira mais inocente que posso — Te foder contra as janelas é o
sonho da minha vida.

— Que horror! Não me toque, seu nojento. — O assisto se afastar e cair no sofá dobrando uma
perna e balançando a outra, vestindo um dos dedos com a meia que Blake deixou para trás — Vem
cá, Tommo. — Diz com a meia, simulando um fantoche.

— Que é? — Digo sem empolgação, sentando no tapete, deixando Shae se enroscar em mim.

— Mamãe ligou. Ela está péssima.

— O que houve?

— Ela ligou para a sua mãe.

Oh.

— Eu já disse que isso não é uma boa.

— Ela só queria socializar.

— Amor, a minha mãe detesta que pessoas que ela detesta tentem fazer com que ela deixe de
detestá-las.

— Mas, Louis, nós temos filhos!

— Sim e ela os ama com todo o seu coração.

— Sim e me odeia e odeia toda a minha família, você não acha que isso os afeta? Os meninos
estranham como ela fica me alfinetando sem parar e perguntam porque as vovós deles não são
amigas. — Diz num sussurro — Até o bebê sente essa negatividade toda. — Ele toca a pequena
barriga, como se pudesse tapar os ouvidos do bebê em seu útero.

— Eu sinto muito, ela sempre foi uma pessoa difícil, a minha família no geral é difícil, por isso eu
prefiro a sua.

— Mas amor...

— Shiu. — Vou até ele, pressionando o dedo contra seus lábios gordinhos e ele faz questão de
fazer um bico maior, tocando minhas laterais com os joelhos, querendo que eu me aproxime e
fique entre suas pernas — Não devia usar essas calças se não quer que eu pense em te comer o
tempo todo.

Ele me olha inocente, quase em choque. Afasto o dedo com um sorriso sínico se formando.

— Fui explícito demais para você?

Harry permanece calado.


— Ei, gatinho. — Dou um apertão em sua bochecha, o cacheado solta um suspiro afetado.

— Louis Tomlinson. — Fala ofegante, como se estivesse surpreso em me ver.

— Sim, sou eu, Harry Tomlinson.

— Harry... — Repete, baixando os olhos para o próprio corpo, as orbes crescendo ao contemplar a
elevação no abdômen — certo.

— Meu Deus, você está corando, Harry. Numa hora você é uma perfeita milf e na outra um bebê
envergonhado. — Me pressiono mais contra ele, sentindo seu membro dando sinais contra meu
estômago — Ah, Haz. — Suspiro apertando suas coxas, lhe arrancando um gemido baixo e ao que
seus lábios se rompem, eu o beijo.

E por algum motivo desconhecido ele não o faz de volta. Sinto sua boca macia contra a minha, mas
sem qualquer indício da sua língua envolvendo a minha, de suas mãos nos meus cabelos ou seu
corpo se atrelando ao meu. Simplesmente não há nada.

Recuo alguns centímetros, o observo sob os cílios. Harry está paralisado, os olhos bem abertos e
assustados. Olho sobre o ombro, conferindo se Andrômeda não está as minhas costas com uma
serra. Não.

— Você... Não está afim de me beijar?

— E-eu, não, quer dizer sim, eu só, não estava pronto.

— Não estava pronto? É só um beijo, você sabe muito bem fazer isso. Na verdade, você sabe fazer
coisas bem mais complicadas do que isso. — Dou uma piscadela, esperando que ele pegue no ar
minha insinuação, mas não acontece — Você subitamente desaprendeu a beijar, Harry?

Ele não me encara, sobe as mangas e começa a esfregar os pulsos, sobre as marcas quase invisíveis
dos cortes de outrora.

Harry mudou, posso ver isso. Os cortes foram feitos por esse Harry.

Frágil. Nervoso. Ansioso. Depressivo.

Quase o Harry de sempre, com excessão dessa áurea inexperiente, confusa, adolescente?

— Não, claro que não, eu sou um homem adulto, eu sei fazer essa coisas muito bem, o senh- você,
você sabe bem disso, Louis, amor... Querido?

— Sei, querido.

— Sabe, me deu uma vontade de dar um volta por aí, acho que vou fazer isso, andar um pouco.

— Mesmo? Pensei que tivesse algo importante para dizer, você me fez perder o jogo.

Sua expressão é confusa.

— Ah, é, bom, não era nada não.

— Tem certeza?

— Tenho sim. — Assegura apressado, se levantando e praticamente correndo para a porta — Até
daqui a pouco, meu bem.
Quando a porta bate desfaço o sorriso falso.

— Meu bem? Céus, você não é meu marido.

Quando Harry volta, eu testo minha teoria de que há algo fora do normal com ele e ela é muito
bem sucedida. Faço hora no banheiro até o momento em que escuto a porta do quarto se abrindo e
faço minha entrada triunfal, bem diante de seus olhos. Eu não sou nenhum exibicionista, mas sei
que não faço feio ao surgir completamente nu.

Bom, um homem adulto e que faz coisas de adulto, não deveria ofegar e cair para trás daquele jeito
ao ver seu marido pelado, mas é justamente o que acontece. As mãos de Harry estão tremendo
sobre os lençóis quando me aproximo com as mãos nos quadris.

— Até parece que nunca viu. — Zombo, imaginando qual pode ser sua resposta.

Um ato de fúria, irritação, se a minha teoria de uma possível bipolaridade estiver correta...

De início ele apenas me encara, e então, hesitante estende a mão, os dedos pendem a uma curta
distância da minha pele, prestes a tocar e puxa novamente, cobrindo o rosto com as mãos.

— Não, não...

— Harry, você não-

— Eu não o quê? — Diz de repente, olhando para mim. Quase salto pela subita mudança, sua voz,
seu rosto, tudo nele mudou rápido demais — Pelo amor de deus, Louis, use uma toalha, está
molhando tudo. As crianças já estão dormindo? É muito cedo, como elas vão dormir direto a noite?
Hum, isso me lembra, Anne nos quer no campo durante a ação de graças, toda a família reunida,
será uma linda comemoração. Precisa levar o carro para uma manutenção, não queremos ter
nenhum contratempo, eu tomei as vitaminas hoje? Acredito que sim, céus, preciso dar um jeito
nessas cutículas. — Ao fim de seu monólogo está concentrado nas unhas e eis que ele muda
novamente, mais jovial, mais sedutor e estridente — Bebê, cadê o seu cartão? Preciso de uma
manicure de emergência.

Apenas aponto para a carteira na poltrona. Harry pega, dá um tchauzinho e sai.

Certo, eu nunca vi nada assim. Isso é inédito ou é só a primeira vez que eu presto atenção?

Xx

Seja lá o que estivesse acontecendo era incerto, nenhum dos médicos deu um diagnóstico a
respeito da situação de Harry mesmo após meses de exames. Logo, era provável que eu só
estivesse sendo neurótico, voltar a minha medicação facilitou um pouco a organização dos meus
pensamentos e agora, sendo mais racional tudo parecia tão exagerado. Ele não tinha mudado tanto
assim e afinal, todos somos inconstantes, mudando de supetão, cheio de facetas, não era motivo
para tanta preocupação.

Dois dias após seu anúncio, estávamos caindo na estrada. A primeira hora foi empolgante, Spencer
e Blake eram os mais novos fãs de kpop e insistiam em ouvir a mesma música agitada e eles
tinham o talento de cantarem uma única parte da maneira mais incompreensível possível, riamos
toda vez e Harry estava relaxado ao meu lado, ele não tinha amanhecido muito bem, estava se
sentindo mal, enjoado. Menos de dez minutos dentro do carro, já tinha se desfeito dos sapatos e se
encolhido no banco, no entanto, ao longo do caminho sua inquietude foi aumentando e a janela
abaixada e os remédios para enjôo não estavam ajudando em nada.
A primeira parada veio a exatamente uma hora de viagem.

A segunda parada foi quarenta minutos depois.

A terceira veio em vinte. Os meninos olhavam preocupados pela janela, Harry tomou uma longa
respiração, deitando a cabeça sobre os braços, se mantendo apoiado no carro. Quando ele
praticamente saltou pela porta assim que estacionei, tinha a certeza de que ele iria vomitar alí
mesmo, mas no lugar disso apenas tomou o ar fresco, enquanto estava obviamente suando frio.

Vê-lo desse jeito me deixava tão agoniado. Eu sentia dor solidária por ele.

— Você já tem cinco meses, isso não deveria ter passado? — Digo angustiado, massageando suas
costas, de mãos atadas.

— Pra mim sempre vai até o segundo trimestre. — O vento sopra forte, levantando a bainha de sua
camisa branca de linho — Hum, eu quero cachorro quente.

— Você me pediu um na parada anterior e vomitou.

— Não vou mais vomitar.

— Não sei se você consegue controlar isso.

— Ah, seu filho está tentando me matar. — Choraminga, estremecendo.

Estou prestes a propor que voltemos para casa, quando uma mulher surge em nossa direção, a saia
de tafetá verde arrastando no chão e as pulseiras tilintando em seus pulsos. Essa não.

— Uma cigana. — Sussurro para ele, na esperança de que entre no carro e possamos fugir a tempo.

— Onde? — Harry se vira a procura da mulher.

— O quê? Você não vai querer falar com ela, vai?

— Claro que vou! — Garante, sorrindo quando a cigana chega — Olá, aqui. — Lhe estende a mão.

A mulher dá uma largo sorriso satisfeito. É sempre bom encontrar um cliente crédulo, suas mãos
ossudas tomaram a mão delicada de Harry, a ponta do dígito traçando as linhas de sua palma.

— Hum, vejo que tem uma criança a caminho. — Fala com seu tom místico artificial.

— Uau! Que novidade. — Reviro os olhos.

Harry me encara irritado.

— Um bebê forte e saudável.

— Isso é muito bom, sabe me dizer se ele vai ser do tipo que dá muito trabalho?

— Ele... Ah, meu Deus. — Ela toca o peito, consternada.

— O que houve?!

— Está perdido, seus caminhos não se cruzam. Você nunca verá o seu filho.

— Como assim? — A voz dele se eleva.


— Eu vejo a perda.

— Louis... — Harry diz com os olhos lacrimejantes.

— É por isso que eu não gosto de ciganas, são mentirosas. — Rosno aborrecido, puxando Harry
pelo braço, no entanto, ela segura sua mão.

— Os seus pecados são irreparáveis. — Sussurra com horror, então solta a mão dele para tocar seu
rosto — O preço será alto pela sua heresia, eu vejo os pedaços, os seus pedaços espalhados sobre o
chão frio. Um rio vermelho, o seu sangue embargando tudo ao seu redor. É só uma casca, é só uma
casca.

Meu marido vacila, o pânico é evidente em sua face e não perco mais do meu tempo ouvindo
aquelas bobagens, empurro Harry para dentro do carro e entrego uma nota de vinte para a mulher
que faz questão de agarrar mais do que a nota.

— Onde está a sua alma, rapaz? — Bufo, puxando minha mão de volta e entro no carro assistindo
a mulher vaguear para longe, a procura de outros viajantes para importunar.

Tento falar com Harry, mas ele esta totalmente afetado pelas palavras da cigana, deixando que
lágrimas de temor rolem em silêncio por sua bochecha. Ciganas são mentirosas, sempre são.

Chegamos a casa de campo da família de Harry pouco depois das 16h e estão todos reunidos, seus
primos, tios e tias, avôs. Tem crianças arteiras correndo de um lado para o outro e os meninos
rapidamente se unem a bagunça. A propriedade num estilo rústico colonial é aquecida pela lareira
ao centro da sala, com o entardecer a frente fria soprou no leste e eu estava mais do que ansioso por
tomar um banho e me aconchegar na poltrona mais próxima.

Harry foi rapidamente cercado pelas tias, todas querendo saber sobre o bebê, cada mínimo detalhe,
embora Anne já tivesse entregado todas as informações que possuía. Gemma também compareceu,
os seus passos incertos na minha direção entregavam que ela já estava bêbada. O que era
costumeiro, raro era vê-la sóbria.

— Acho que mais alguém não conseguiu pensar em uma desculpa pra escapar da reunião da
família Addams. — Cantarolou me abraçando.

— Se essa é a família Addams tenho medo de pensar o que a minha pode ser.

— Estamos muito fodidos então, meu amigo. Oh, olha quem veio. — Gemma toma minha mão e
me arrasta até o bar, onde seu avô explica detalhadamente como se abriam as garrafas de uísque
durante a segunda guerra, o rapaz a quem é dedicado a preciosa lição tem uma expressão
compenetrada, até demais. No entanto, assim que ouve o chamado de Gemma ergue os olhos
verdes em nossa direção, os cabelos loiros e armados são contidos por uma bandana, a camisa preta
de banda é larga em seu tronco magro quando ele caminha até nós e me recepciona com um forte
abraço.

— Louis, quanto tempo, você não mudou nadinha. — Ele diz, sorrindo com suas covinhas
despontando nas bochechas.

— Já não posso dizer o mesmo de você. Meu deus, quanto tempo eu dormi, Ashton.

Dá de ombros, rindo.

Eu poderia jurar que ano passado esse garoto era um tampinha de aparelho com a cara enfiada em
um dos livros de Harry Potter. Agora me parecia compreensivo que Gemma estivesse alimentando
uma paixonite por ele.

Infelizmente, Ashton também tinha uma paixonite por alguém.

— Quem é esse homem? Onde está o meu priminho?

Ashton não fez esforço para disfarçar a forma como seu corpo se acendeu ao contemplar a chegada
de Harry no cômodo.

— Bom, esse sou eu agora. — Falou tímido, o rosto corando quando Harry passou os braços ao
redor de seu pescoço — O que acha?

— Acho que você está lindo. — E o abraçou apertado. Ash envolveu sua cintura e afundou o rosto
entre seu cabelos, particularmente emocionado.

Gemma e eu, que assistíamos a cena de fora, trocamos olhares desconfiados e ela me deu um gole
de sua bebida.

— De olho na ninfeta, Tomlinson.

Xx

Nossa primeira noite foi cercada pela eufória das festas comemorativas, haviam toneladas de pratos
a serem feitos em tempo recorde. Discussões sobre receitas, a quantidade de sal a se acrescentar
aqui, quem tem o molho melhor e porque Cindy – uma das milhares de primas de Harry –
continuava terminando e reatando com o namorado de anos.

Quando me tornei o exemplo de bom partido dei uma sorrisinho amarelo e me retirei levando
minha cerveja comigo, sabendo que no minuto seguinte viria os cochichos sobre a minha traição.
Ashton estava seguindo Harry como um cachorrinho, olhos brilhantes e tudo.

Eles trocavam relatos sobre o universidade e vida no campus, após dedicar atenção exclusiva ao
meu marido, Irwin me notou.

— E você, Louis? Se divertiu na faculdade?

— Não, eu já era um tira, tinham medo até de falar comigo. E quando teremos o nosso psicólogo
na família?

— Em breve, eu espero. — O garoto sorriu, seu acanhamento me lembrava o Harry no início do


nosso relacionamento. Quando tudo tinha a doce ilusão de ser perfeito.

A conversa se estendeu por mais duas horas quando os mais velhos se juntaram a nós e depois do
jantar estava louco para dormir, o chamei, mas ele disse que viria só mais tarde.

— Pode ir agora, eu já vou.

— Okay. — Bocejei, esfregando os olhos ao pé da escada — Qual o quarto mesmo?

— Primeiro a direita. Boa noite, amor. — Nos despedimos com um selinho.

Segui sua orientação, não me preocupando em acender a luz, apenas tirei a camisa e cai na cama e
logo no momento do impacto senti que algo estava errado. Aquele não podia ser o meu quarto, do
contrário, alguém tinha decidido me fazer companhia. Logo em seguida a porta tornou a ser aberta,
a luz foi acesa, os raios da claridade me cegando por um momento até que conseguisse assimilar os
olhos verdes escuro me encarando de volta, questionando o porquê de ter me jogado sobre ela, sem
mais nem menos.

— O que significa isso? — Gritou a voz feminina alarmada. Era a cunhada de Anne, se não me
engano.

— Só adivinha. — Gemma retrucou mal humorada, enquanto eu me arrastava para fora de sua
cama, fazendo todo o possível para evitar uma nova troca de olhares.

— Eu só errei o quarto, me desculpe. — Pedi baixo, ao passar pela mulher tornei a me desculpar.

Acabei encontrando nosso quarto no final do corredor. Não fazia sentido que Harry tivesse feito
uma confusão tão grande, agora eu me recordava que Gemma sempre ficava naquele mesmo
quarto.

Ele gargalhou quando contei sobre o engano, mas eu não via a menor graça. No dia seguinte
acordei sozinho, Harry já estava entretido com a briga de sua mãe com as demais mulheres da casa
sobre qual temperatura o frango deveria ser assado. Escapuli, tentando não chamar a atenção,
Gemma ocupava o lugar que eu pretendia me refugiar na varanda.

— Veja só se não é o arrombador de quartos mais gatinho da região. — Disparou assim que me
viu.

— Foi um acidente. — Passei uma perna pelo peitoril da mureta, sentando como ela.

— Acidente conveniente, perdeu a chance da sua vida de ver a Styles mais bonita de camisola.

— Sim, o arrependimento já me consome. — Disse, apreciando o canto dos pássaros e o campo


aberto diante de nós, a relva selvagem em seu esplendor ao amanhecer. Gemma ajeitou os óculos
escuro, torcendo o nariz para o sol brilhante e meteu a mão no bolso, mantendo em segredo sob a
manga até acender — Sabia que eu sou um federal?

Ela deu um longo trago e segurou o baseado entre os dedos finos.

— Você não vai me prender por causa disso. — Um novo trago, ela joga a cabeça para trás
soltando a fumaça e me entrega — Tente não acabar com esse, é o meu último precioso.

— Não, obrigado, estou tentando me tornar careta. — Dispenso com dor no coração.

— Que bosta! Bom, sobra mais pra mim.

— E como tem sido a vida em Nova York?

— A mesma merda que era em Chicago, mas pelo menos eu não morava com a minha mãe. Eu me
sinto uma criança. — Com a mão livre passa a batucar os dedos nervosamente sobre a coxa —
Trabalhar em um agência não é tão ruim.

— Mesmo? Talvez eu devesse mudar de área. — Digo pensativo.

Gemma faz um sinal com a cabeça, indicando um homem alto e grisalho chacoalhando as mãos no
ar, em busca de chamar minha atenção.

— Vamos, Louis. Deixe a tristonha aí e vamos fazer algo de homens. — Estou tentando puxar pela
memória qual o nome do homem quando Gemma grita em resposta:

— Vá chupar um pau e me deixa, Joey.


Ah, Joey. Mais um tio. O tio insuportável, que eu detesto. Ele esteve no Vietnã, umas duas
semanas antes da guerra acabar e por isso agia como se fizesse parte do elenco de Apocalypse
Now, quando ele sequer teve um treinamento militar de verdade e mesmo assim me chamava de
garoto e ficava fazendo críticas a minha mira.

Fomos à caça. Não tinha um coelho sequer pelas redondezas e seus filhos imbecis ficavam
disparando contra arbustos, eu não os repreendia sobre isso desde o ano passado quando alguém
acabou com uma bala no pé e felizmente esse cara não fui eu. Acabamos na quadra de tênis que um
dos garotos de Joey usava como tatame.

Miles tinha o tronco fraco e depositava todas as esperanças em suas pernas, mas com pouca
firmeza nos pés, se Ashton tivesse a menor consciência sobre isso não teria sido vencido com tanta
facilidade. O garoto cambaleou para o meu lado envergonhado. Um outro candidato surgiu.

— É assim que um garoto deve ser, forte, bom de briga, valente. — O velho Joey discursava como
se alguém se importasse com o que ele dizia — Um dos seus meninos vai ser assim, já o outro é
meio estranho.

Com uma expressão de poucos amigos, o encaro.

— Estranho?

— Sim, o mais magrinho, Stan, não é?

— Spencer.

— Spencer. — Repete com uma risadinha — Ele parece uma garotinha, se preocupando em fazer
comidinha e trocar o vestidinho da Barbie dele.

— Ele é uma criança e pode brincar com o que quiser e isso não é da sua conta.

Joey riu, achando graça.

— Continua o ranzinza de sempre.

— Sim e se você falar sobre as Barbies do meu filho mais uma vez, eu vou levar uma delas pra
passear na sua garganta.

— Você me lembra o Styles.

— Styles? Tipo, o pai do Harry? — Assente com desdém — Você o conheceu?

— É claro que conheci. Ele casou com a minha irmã, eu a levei até o altar e é claro que sabia que
aquele circo todo foi pelo dinheiro dele.

— Anne se casou por dinheiro? Não consigo imaginar isso.

Joey revira os olhos em zombaria.

— A pequena Annie nem sempre foi esse docinho, mamãe e vovó exemplar. Ela costumava ser tão
perturbada quanto as crias dela.

Acabo me virando completamente para o homem, lhe dando minha absoluta atenção.

— Harry e Gemma perturbados?


— Você não faz ideia de onde se meteu. — Diz aos risos — Bom, quando eu digo perturbado não é
sobre eles saírem botando fogo no gato do vizinho ou matando bebês, era só coisa de
comportamento. Isso, lembro que a menina tomava muitos remédios, vivia dopada, Anne não
gostava de lidar com ela, era muito agitada e bagunceira, mas o que estava por vir era ainda pior.
Harry sempre foi esquisito, ele já era estranho quando o pai era vivo, mas depois que ele morreu...
Eu sei lá, só faço o possível pra não ficar sozinho com ele.

— E eu devo dar ouvidos a um bêbado amargurado?

— Bom, se quiser tirar a prova do quão não-amável o seu querido esposo pode ser desdenhe da
força dele, mas tem que ser com vontade, ele precisa querer arrancar a pele da sua cara.

— Está me dizendo para ter um confronto físico com o Harry? Primeiro que isso não é uma
possibilidade e segundo, ele está grávido.

Joey não dá a mínima para os meus argumentos e gesticula, chamando o filho. Miles corre até nós
ofegante depois de ter derrubado mais um parente.

— Lembra-se do Andrew? Aquele que caçou briga com o Harry. — Miles balançou a cabeça — O
braço quebrado impediu que ele desse ao pobre garoto um traumatismo craniano?

— Não, papai.

— Viu, Louis? Você não é o único durão nesse casamento. — Me cutucou rindo de sua própria
piada ao que eu ainda tentava administrar tudo o que ouvi.

Sem acesso a internet ou podendo dispor de qualquer tipo de privacidade, comecei a elaborar um
mapa mental dentro da minha cabeça, elencando todas as informações que havia obtido fosse por
observação ou por meio de conversas. Em doze anos, uma imagem era pintada sobre Harry, uma
que eu não simplesmente criei na minha cabeça, mas uma correspondente à realidade.

Uma realidade crua e complexa.

Xx

A comemoração de ação de graças foi como manda o roteiro.

Comemos muito, bebemos muito, demos graças, houveram fogos e depois das crianças irem caindo
no sono, uma a uma, alguém ficou bêbado o suficiente para resgatar a máquina de karaokê e
Gemma fez a honra de iniciar, assassinando It's My Life. Em comparação com as apresentações
que se seguiram não parecia mais tão ruim.

Ashton estava no grupo de primos que cantou Don't Cry.

Meu marido e eu nos apertavamos na mesma poltrona minúscula ao lado da lareira, sua cabeça
deitada no meu ombro e eu o embalava feito um bebê gigante enquanto Cindy virou sua dose de
bourbon antes de se colocar na frente e escolher uma música.

There Are Worse Things I Could Do foi a escolhida, talvez para nos lembrar que ela foi escalada
para interpretar Rizzo no novo musical de Grease e ninguém se dispôs a ir assistir.

Gemma e Ashton começaram a dançar juntos, encenando um casalzinho apaixonado.

Eu já vi essa cena. A sensação de djavu cresce a medida que a canção segue.


Eu já estive exatamente aqui, sentado nesta poltrona, observando um casal ao som dessa mesma
música.

Michael e Liam estavam dançando, os observava, sentindo a respiração suave de Harry contra meu
ouvido. Ele dormiu.

Luke estava rondando, bêbado e nervoso. Michael deixou Liam e foi até o noivo, não podia ouviu-
los, mas sabia. Luke estava tendo mais um de seus acessos de ciúmes e Mike estava tão cansado
disso que lhe deu as costas e por mais que eu não devesse, eu fiz. Sai de perto do meu marido e fui
atrás dele.

O principio do meu fim teve início bem ali.

Quando toquei sua bochecha, dizia a mim mesmo que só queria acalmá-lo quando na realidade eu
almejava por aquele toque. Tão deliberadamente nos corredores daquela mesma casa. Ele cedeu,
tão desesperado por aquilo, tanto quanto eu. Nossos narizes se tocando quando me inclinei para
beija-lo e lá estavam os olhos embargados. Sérios e que sempre sabiam demais.

Como se atraída por meus pensamentos, Gemma me olhou.

Ela sempre soube, antes mesmo de começar.

A pior coisa que eu podia ter feito ao seu irmão e ela foi minha cúmplice.

— Próximo! — Cindy anunciou depois de ver sua brilhante pontuação.

Me esforcei 0% na minha apresentação e tirei a nota máxima e Harry cantou alguma do Elton John
espalhando seu charme por toda a salão e garantindo todos os olhos fixos nele. Pouco tempo depois
ele foi para o quarto, cansado demais. Continuei na sala, bebendo e fumando até ver dobrado e no
instante que Elvis virou o sucesso do karaokê, decidi encerrar minha noite.

Me dirigi em passo vertiginoso até meu quarto, procurando por mais de uma vez o apoio nas
paredes até alcançar a porta. Virei a maçaneta e cai para dentro, com um esforço extra arrastei meu
corpo até a ponta da cama, sentando diante do espelho comprido de carvalho – que eu
particularmente achava um péssimo adereço de decoração – no entanto, serviu para que eu me
encarasse por um instante.

Envolto no breu, aparentando o auge da decadência, embriagado e desalinhado. Se possuísse um


livro, seria o retrato fidedigno da boêmia.

Deixei a cabeça cair, exausto demais para lidar com o peso dos meus pensamentos. O colchão se
moveu, me surpreendendo ao que pensava que Harry já estivesse dormindo, mas não. Ele estava
bem acordado. Senti suas mãos macias subindo pelas minhas costas, ombros e descendo pelo
peito, desfazendo os botões da minha camisa, o calor de seu corpo se fez presente as minhas costas,
instintivamente levei as mãos para trás, tateando o tecido fino e suave cobrindo suas pernas. Sua
única peça de roupa. Tornei a olhar para o espelho, onde nossos reflexos me olhavam de volta. Sob
a escuridão captei a vermelhidão artificial sobre seus lábios, o cabelo caindo por sobre um lado do
ombro e os olhos inebriados de malícia.

— Vamos brincar enquanto o seu marido está fora. — Soprou rente ao meu ouvido.

Quis dizer algo, mas minha cabeça estava em desacordo com minha boca que se calou e permitiu
que ele me puxasse para a cama e se derramasse em luxúria sobre mim.

Xx
Despertei num átimo durante a madrugada. O relógio marcava 3h30min e Harry estava ao meu
lado, dormindo profundamente com os cobertores lhe cobrindo até o pescoço. Estranhamente
pudico depois de uma foda tão repleta de depravação.

Afastei as cobertas colocando os pés no chão e sentindo a pontada na cabeça, meu crânio
martelando o cérebro. Precisava de uma aspirina, mas sabia que não tínhamos nenhuma, por isso
me vesti e sai em busca do armário de remédios. Assim que sai no corredor encontrei Gemma
parada, de roupão e bengala.

— Sem sono? — Me aproximei.

— Oh, oi, Lou. Eu só estava olhando. — Indicou a parede repleta de retratos emoldurados, mais
especificamente um casal com uma garotinha e um bebê nos braços — Família de comercial de
margarina.

— Como ele morreu?

— Não sei, dizem que se matou, mas isso não combinava com ele. Ele era um cara legal, sabe. —
Disse nostálgica e sorriu brevemente — Allicent.

Olho para Gemma, perplexo.

— O que disse?

— Ah, era o nome preferido dele, ele era escritor e havia uma personagem com esse nome.
Quando não sabiam que o Harry seria um menino, ele o chamava assim. Bom, está tarde, tenha
uma boa noite, Lou.

— Boa noite! — Disse, retardando meus movimentos para examinar por mais uma última vez o
retrato.

Allicent Rose.

Dei mais alguns passos em direção a cozinha quando escutei o ruído de uma conversa, ainda
haviam pessoas acordadas discutindo na sala. Eu normalmente não me interessaria, até que...

— Ele tinha em torno de umas 23 personalidades, cada uma com a sua própria narrativa e
identidade. — Ashton disse para Miles que tinha uma expressão cética — Você sabe, eventos
traumáticos podem causar dissociação. Às vezes você não vivencia algo que é muito intenso e é
como se estivesse vendo de fora? O seu corpo se move, a sua boca fala, mas não é você que
controla as palavras.

— Pensava que isso fosse possessão.

— Mas é uma espécie de possessão, não uma demoníaca, mas algo criado no seu subconsciente,
como um mecanismo de defesa. Elas podem emergir em situações ameaçadoras, a personalidade
que melhor lida com aquelas circunstâncias vem à tona, para proteger a personalidade original, o
"receptáculo" que costuma ser o mais passivo e frágil. Como o Hulk que é totalmente o oposto do
Bruce Banner, ou o narrador e Tyler Durden.

— E todo mundo vê e pensa a mesma coisa ou o quê?

— Não, eles podem ou não compartilhar memórias e pensamentos, mas no caso de traumas é mais
provável que esse compartilhamento não aconteça. E sempre pode haver aquela personalidade
dominante, que sobrepuja até a original.
— Que sinistro, isso é verdade mesmo ou você só tá me zoando?

— Bom, é uma questão controversa. Há quem pense que é um trastorno manipulado, um tipo de
esquizofrenia ou histeria, ou simplesmente mais um artifício inventado para liberar assassinos da
morte. A maioria dos meus professores fala disso como se fosse uma piada.

— E você acredita nisso? — Sem que eu pense a respeito, me vejo entrando na conversa,
assustando os dois garotos.

Ashton deixa o queixo cair, piscando, confuso.

— Hum, e-eu não sei, comecei o curso faz pouco tempo, não tenho nenhuma opinião formada,
nem nada.

— Mas e se você passasse vinte e quatro horas por dia com alguém, vendo de perto cada sutil
mudança, acha que poderia dizer se se encaixa com esse transtorno? — Ashton engole em seco e
então assente, pouco confiante — E qual é o nome desse transtorno?

— Transtorno dissociativo de identidade ou TDI. Então, quem você suspeita que seja assim?

Baixo os olhos para os meus dedos, apertando minha aliança. Um único nome paira na minha
mente: Harry!
│17│lyra

Os ecos no andar de baixo parecem distantes enquanto mantenho a cabeça debaixo travesseiro, mas
é em vão quando o martelar incessante no meu crânio persiste. Emito mais um longo suspiro,
sentindo o suor frio descendo pela nuca e minha pele arrepiando em estado febril. Escuto passos, a
mão acariciando minhas costas, suave e macio. Harry.

— Amor, tem certeza de que não quer ir ao médico? — Ouço sua voz, abafada por conta dos
ouvidos tapados.

— Não. — Murmuro incompreensível e ele não entende. Relutante, tiro o travesseiro para encara-
lo com o rosto amassado e abatido por conta do meu forte resfriado — Vou ficar legal.

Ele franze as sobrancelhas, não acreditando nem um pouco. Coloca o dorso da mão em minha testa
e as sobrancelhas se unem mais.

— Está com febre de novo. — Declara se levantado e indo até o banheiro, atrás do termômetro.

Penso em responder, mas minha garganta raspa de um jeito que tenho a impressão de que morrerei
se ousar emitir qualquer som. Acabo fechando os olhos por um segundo e estou começando a
cochilar novamente.

— Louis? Louis? Amor!

— Oi? O quê? — Acordo num átimo, encontrando-o em pé ao lado da cama.

— Você está péssimo. Esse remédio é forte demais, você mal consegue se manter acordado. —
Diz, me manipulando como uma criança ao levantar minha camisa e colocar o termômetro debaixo
do meu braço, mantendo-o imóvel, tal como fazia com Spencer e Blake — Precisa mesmo ir
trabalhar?

— Uhum. — Balbucio, apertando o polegar sobre um de seus anéis — Hoje será a execução.

— Tão cedo? Quer dizer, esse tipo de coisa não costuma demorar um tempo?

Pisco, tentando afastar o sono.

— Depende, em ocasiões como essa quando todos estão protestando pela pena de morte, bom... Dê
o que o povo pede.

Harry assente, retirando o termômetro quando começa a apitar.

— Oh, você não está com febre. — Fala se levantando, mas no caminho ele para, sem virar, me
dando a visão de seus ombros encolhidos sob a camisa solta, indaga: — Acredita que pegaram os
verdadeiros culpados?

Uma pergunta muito perspicaz. Se eu acredito? É claro que não. Nem por um único segundo
comprei essa história bizarra, mesmo quando me sentei naquele tribunal ouvindo um monte de
merda avulsa que nada tinha haver com o caso no qual vinha trabalhando por dois anos. Foi um
belíssimo circo midiático, exaltando o FBI e colocando Andrômeda como uma dupla de imbecis
lunáticos que invejavam as famílias perfeitas que viam por aí e por puro despeito matavam com
requintes de crueldade. Estive balançando a cabeça a cada declaração, Nicholas fez bem em não
permitir que eu desse meu depoimento, mas os demais não tiveram escolha e quando Michael
passou por mim no tribunal abaixou a cabeça envergonhado. Desde então, não nos falavamos, na
verdade eu não falava com ninguém, sabia que estava cercado por idiotas e só podia me apegar a
única pessoa incrivelmente sã naquele lugar.

Meu celular começou a vibrar, anunciando uma nova mensagem, era Niall Horan:

O que se usa pra assistir uma execução?

Revirei os olhos para evitar enviar um xingamento e me voltei para Harry. Eu queria poder dizer o
que pensava de verdade, queria dizer cada desconfiança que dominava meus pensamentos, com
relação ao caso, com relação aos meus colegas de trabalho e principalmente sobre ele. As suas
costas eu vinha revirando cada particularidade de sua vida, tudo o que ele disse ou fez que me
causou estranheza, que quando nos sentavamos a mesa ou fazíamos amor eu me perguntava se era
o mesmo com quem havia me casado, se não havia algo de muito errado em sua cabeça que o
fizera retalhado em personalidades distintas que me eram desconhecidas e até onde poderia se
saber perigosas. Não só para ele, como para mim, para os meninos e quem mais entrasse em seu
caminho.

Respirei fundo, substituindo o eu não vou te responder porque não confio em você, por um simples:

— É o FBI, eles não erram. — Me sinto enojado com tamanha mentira. Agora, se meu marido
acredita ou não, eu não sei dizer, apenas o assisto se virar, o termômetro sendo girado entre seus
dedos longos em um gesto ansioso, os cabelos caindo pela lateral do rosto ao que mantém a cabeça
baixa, evitando me encarar.

— Se... Se isso acabar mesmo agora, será que- Será que podemos ir pra outro lugar? Refazer as
nossas vidas em algum lugar longe de tudo isso? Longe do FBI, do Michael, da minha mãe? Nós
podemos? Por favor, podemos? — Ouço sua voz embargando, mas só fica evidente que ele está
chorando quando ergue o rosto molhado de lágrimas, olhos aguados e vermelhos me encarando
com expectativa.

— Haz, por que está chorando? — Digo preocupado, abrindo os braços para que ele venha até
mim.

Ele corre, me abraçando apertado, chorando no meu ombro.

— Eu não sei. Só tenho esse pressentimento ruim, eu estou com medo. Eu não quero te perder.

— Você não vai. Hoje é o fim de tudo isso. Eu prometo. — Passo os braços em volta dele,
puxando-o para junto de mim, afundando o nariz em seus cachos perfumados o sentindo se
acalmar.

Hoje é o fim.

Xx

Alguém vindo da Quântico nos dá uma longa palestra sobre negociação com reféns e não escuto a
maioria das informações, já estive em quinhentos iguais a esse. É basicamente sempre a mesma
coisa e se eu me esquecer de algo posso consultar o Mitch, negociação não é o meu caso e nunca
foi.

Niall, por outro lado continua a anotar cada palavra dita e como se não bastasse, levanta a mão e
pede para que o professor repita o que ele não conseguiu anotar, ele é o tipo de pentelho irritante
que atrai olhares aborrecidos pelo auditório e eu não acredito que seu futuro na polícia seja
promissor. Ele passa a impressão de uma eterna criança, sem o necessário para liderar algum dia.
Mas pelo menos por enquanto, ele é meu único aliado dentro deste pandemônio.

O único que não acredita que Andrômeda foi tão facilmente capturada.

— Você gostou, chefe? Eu achei o máximo! Eu queria falar daquele jeito, viu como todos pararam
para ouvi-lo, ele é bom, mas o senhor é melhor, quando nos conhecemos você estava palestrando
também, lembra? — Niall vinha tagarelando ao meu lado, não deixando que eu me concentrasse
na máquina de café.

— Não.

— Ah, bom, quando nos conhecemos você estava e o senhor parecia tão legal, eu quero ser assim
algum dia.

— Legal? — Digo virando o sachê de açúcar tentando dar algum sabor aquela água morna com
cafeína.

— Não, não, estou falando de ser respeitado, sabe? Das pessoas quererem me ouvir.

Uma risada zombeteira sobe pela minha garganta, mas me policio para não solta-la porque não
quero magoar o garoto, ele é um chato inconveniente, porém é gente boa, apesar de saber que o
que ele deseja não vai acontecer. Todo o escritório zomba de Niall, nem mesmo o rapaz das
correspondências o respeita, ninguém o reconhece como um federal e não acredito que isso venha a
mudar algum dia. A menos que algo muito intenso o obrigue a mudar. Talvez se ele prendesse a
verdadeira Andrômeda conseguisse um pouco de respeito. Talvez.

— Um dia, Horan. Um dia. — Dou alguns tapinhas em seu ombro, o deixando para ir até a minha
sala. Antes de me sentar, Sarah surgiu com uma pilha de relatórios a serem preenchidos e demais
questões burocráticas. Os jovens agentes estavam se dispersando, indo para as ruas a procura de
alguma ação e eu, como sênior deveria ficar recluso em minha caverna pelo restante da minha
existência tediosa de agora em diante.

Tranquei a porta e abaixei as persianas. Seria um longo dia, mas antes disso queria revisar algo em
especial. Sentei a minha mesa, abrindo a gaveta e retirando o fundo falso, pegando o arquivo no
qual vinha trabalhando nas últimas semanas, desde que voltamos da casa da família de Harry.
Ashton só estaria livre algum tempo, enquanto isso eu não me permitia ficar parado.

Fazia tudo o que podia para descobrir se a minha teoria teria algum fundamento.

Primeiro, o Dr. Pendergast riu e desdenhou descaradamente quando sugeri a possibilidade de Harry
ter algo semelhante ao transtorno. Não, claro que não, aos seus olhos Harry era o exemplo supremo
de saúde mental. Tão amável, calmo e centrado. Pelo que ele dizia, Harry nunca demonstrou nada
além da mais absoluta calma e lucidez. Diante de um psicólogo, psiquiatra, o que fosse ele não
deixava a peteca cair e sustentava bem a fachada. Naturalmente havia alguém garantindo que não
houvesse nenhum diagnóstico. Alguém que queria cuidar das coisas por si só, sem intromissão de
terceiros.

Era estranho pensar em outras pessoas dentro do corpo do meu marido, mas era ainda mais
estranho pensar que ele era mesmo daquele jeito, inconstante e manipulador. Porque sim, eu já
tinha notado como ele exercia seu controle sobre mim e tudo ao seu redor, parecia involuntário,
inocente, mas de qualquer modo era sempre ao seu favor e me fazia deixar quaisquer convicções
que o desagradasse de lado para voltar a rastejar aos seus pés.

Harry me controla. Ou melhor, alguém dentro de Harry me controla.


Abro a primeira página do arquivo, as informações principais sobre Harry dispostas em ordem,
nome completo, data de nascimento, local, pais e familiares mais próximos, escolaridade e
antecedentes. Duas coisas me chamam a atenção nessa primeira seção, a primeira é a história sobre
a morte de seu pai, Desmond Styles. Quinze anos mais velho que Anne, nunca havia se casado e
para todos os seus conhecidos declarava não ter intenções de ter filhos, mas ainda assim teve dois.
A primeira foi um golpe, era óbvio, eles tinham poucos meses de casamento e as coisas não iam
bem. Gemma era a garantia de que a fortuna de Desmond não se perderia. Mas Harry, Harry
parecia bem mais um acidente. Uma gravidez indesejada. E pelo que levantei ele foi indesejado por
muito tempo, por ambos os pais.

Quando o questionei sobre sua relação com o pai ele disse o mesmo de sempre:

— Eu era muito pequeno quando ele morreu, mas lembro que passávamos pouco tempo juntos, ele
trabalhava demais.

Desmond era um escritor de histórias de horror. Sua personagem mais célebre era uma boneca
demoníaca que obrigava crianças a fazerem coisas ruins, em um dos livros ela obriga um garotinho
a furar o olho da irmã. Será que ela também conseguiria induzir Harry a provocar um acidente que
arrancaria a perna de Gemma ou... Matar seu próprio pai? Não, espere, muita calma nessa hora.
Uma coisa é considerar uma doença, outra bem diferente é aponta-lo como um assassino por ser
doente. Eu não estou sendo nada justo. Harry não é perigoso, em anos de casamento ele nunca fez
nada para me machucar ou machucar as crianças, pelo contrário, era eu quem machucava.

Não devo me equivocar. Não posso.

Também tem a questão da escola, depois que o pai morreu, ele foi mandado para um internato,
porém, não há nada sobre seu tempo na escola. Tudo o que sei foi o que ele disse: era um lugar
ótimo e fim. Nada sobre amigos ou relacionamentos, o diretor que o conheceu morreu poucos anos
depois que Harry se formou.

Jonnah Prescott, não havia nenhuma recomendação em seu nome sobre Harry. Então, haviam dois
períodos cruciais sobre a vida dele que permaneciam omissos. Duas grandes lacunas que poderiam
fornecer as respostas as minhas perguntas.

Claro que eu poderia perguntar a Anne ou Gemma, mas Anne era tão evasiva e tagarela que era
raro manter uma conversa séria com ela, Gemma tinha uma memória péssima e por mais que eu a
ame, ela é uma bêbada e uma bêbada não é exatamente uma fonte segura de informações. Por mais
de uma vez ela perguntou sobre como Eve estava indo na escola, mesmo depois de morta, porque
ela simplesmente se esquecia desse pequeno detalhe.

Michael o conhecia quase o mesmo tempo que eu e dizia o mesmo que eu já notara. Harry era
inconstante, hiperativo, acumulador e com oscilações de humor, nada anormal ao seu ver.

Na página seguinte estavam as minhas suposições quanto as identidades.

1° Harry: aquele com quem eu havia me casado, ansioso, meigo, inofensivo e desorganizado. Que
perdia horas a fio em seu ateliê criando sua arte e se perdendo em pensamentos, as vezes até no
tempo, amoroso, porém distante. NADA AMEAÇADOR.

2° Pirralho depressivo: primeira aparição, quando cortou os pulsos superficialmente, que disse ter
problemas na escola e com os pais para a doutora, nervoso e acuado, aparentemente um
adolescente em idade escolar com questões quanto a sexualidade e confiança. NADA
AMEAÇADOR.
3° Megera egoísta: suspeito ter ligação com os excessos de compras e gastos, superficialidade e
exagero. Atitude egoísta e fria, ex: quando joga coisas na minha cara, como traição, falhas no
trabalho e como relação a Eve, vitimismo e desprezo pelos outros. Definitivamente era quem
estava no comando quando voltei do hospital e havia instaurado o inferno contra Cams e os
meninos. ALERTA.

Essa identidade levanta a questão sobre a possibilidade de personalidades do sexo feminino. O que
é provável, uma vez que não há dúvidas de que a próxima é uma mulher.

4° Sugar: essa sem dúvida é a mais enigmática, tem ambas as facetas de dócil e cruel,
manipuladora e vulgar, que usa de sexo e sedução para controlar...

Fechos os olhos, tomando alguns instantes antes de ler as próximas linhas escritas por mim.

"... Potencialmente infiel. Envolvimento com aquele homem que nos observava do lado de fora da
galeria e com Aaron, foi quem me provocou na noite de exibição, transou comigo depois da
consulta e na casa de campo. Quem faz as ameaças de aborto e sente indiferença pelo bebê.
AMEAÇADORA.

5° S/N: apareceu pouco, no entanto, é notável o seu repúdio por mim e cuidado excessivo com as
crianças, sistemático e organizado, tomou a frente quando o pirralho se desestabilizou ao me ver
nu, foi atrás de Spencer na casa de Michael e estava no hospital quando eu acordei. Quando chamei
por Harry, retrucou "Dette er ikke mitt navn", e segundo o Google tradutor significa "Este não é o
meu nome" em norueguês, ou seja, existe uma identidade de outra nacionalidade, o que só torna
tudo mais confuso.

Cinco. Além de Harry, quatro outras facetas se mostraram, ao menos, foram as que eu consegui
identificar, mas sei que existem outras, como a tal Allicent Rose e aquela com força e
agressividade o bastante para ser comentada por seu tio e primo. Então, seriam sete? Sete
personalidade, mas algo me diz que há mais, mais sombrias e escondidas, entranhadas dentro dele.

Será que quando ele me enforcou e não quis parar ou quando sussurrou, crente de que eu estava
dormindo que iria me destruir... Aquilo, aquele era outro fragmento de Harry?

Meu celular está tocando novamente.

Retardo de atender, repassando minhas anotações e a ligação persiste. Atendo sem olhar o
indentificador, acreditando que seja Niall com sua conversa fiada.

— Precisamos conversar. — Uma voz embargada soluça do outro lado.

— Quem é? — Questiono, não reconhecendo a voz distorcida.

— Venha ao Plaza, quarto 18B.

E desligou.

O número é desconhecido. Levanto, vestindo minha jaqueta apressadamente, Horan está parado em
frente a sua mesa lendo um relatório, sem dizer nada o puxou pelo colarinho e o arrasto comigo
rumo a viatura.

— É uma emergência, chefe? — Pergunta, colocando o cinto de segurança.

— Acredito que sim. — Respondo, pisando no acelerador e seguindo o mais rápido que posso até o
endereço.
Chegamos em poucos minutos, Niall tropeça as minhas costas, indagando qual seria a urgência em
um hotel luxuoso como o Plaza. Tudo funciona normalmente, sem indícios de caos pelo caminho.
Quando peço a chave do quarto, a recepcionista reluta até cooperar quando mostro meu distintivo,
o nome que ela me dá não me diz nada, Sr. White, é o hóspede do quarto.

Eu não conheço nenhum Sr. White.

Mesmo assim, arrisco a seguir com esse encontro.

— Tem certeza disso? — Niall pergunta com os olhos vidrados sobre mim, a mão agarrada ao seu
coldre e fico dividido entre dizer que: não, eu não tenho certeza e pelo amor de deus, que ele não
esteja pensando em usar a arma, ele acabaria me acertando um tiro no susto.

— Não faça nenhuma besteira. — O alerto, empurrando a porta e entrando primeiro, com cuidado
e a primeira vista nada parece anormal. O quarto está limpo e sem indícios de ações suspeitas, tal
como parece vazio. Entro, sendo seguido por meu parceiro que está praticamente colocado as
minhas costas, quando paro, Niall bate com o nariz no meu ombro e resmunga — Quieto!

Examinamos o dormitório de onde estamos, o silêncio absoluto e nenhum movimento, parece que
quem quer que estivesse aqui, se foi. O edredom perfeitamente branco e afofodo está impecável,
nada amarrotado, o que aconteceria se alguém se sentasse, o telefone está no gancho, alinhado e as
janelas da sacada abertas, as cortinas de seda voando livremente, como um véu se erguendo e
revelando o que se mantinha oculto, o corpo em pé do outro lado da grade, exposto a parte
desprotegida do arranha-céu.

Congelo ao ver o rosto que me encara de volta.

Aaron é uma figura deformada do homem que conheci há poucos meses. Os cachos grossos são
soprados contra seu rosto quando olha sobre o ombro e murmura:

— Adeus. — E então ele se solta e mergulha em direção ao concreto.

Tanto Niall, quanto eu demoramos para agir, parados no mesmo lugar depois de presenciar Aaron
Johnson se matando. Eu ainda não vi o corpo, mas é impossível esperar que ele sobreviva depois
disso.

— Chame o FBI. — Digo para Horan, sabendo que estamos na cena de um crime e no pior cenário
possível, acabamos de nos tornar suspeitos. Ele faz como peço, os dedos trêmulos inciando a
ligação para a agência, enquanto isso caminho até a sacada, não tocando em nada, apenas estico o
pescoço, enxergando-o estatelado no meio da avenida, carros parados, uma multidão se
aglomerando ao redor do corpo que mal parece humano, membros retorcidos e o sangue pintando o
concreto de vermelho escuro.

Uma péssima visão para se começar o dia.

Xx

O que era ruim vai se mostrando pior a medida que as coisas se desenrolam. Durante aqueles cinco
minutos em que a segurança do hotel, seguida da polícia nos algemaram e fizeram mais perguntas
do que poderíamos responder, acreditei na possibilidade de que aquilo era uma grande armação.
Aaron, como Harry dizia, tinha uma paixão descomunal por ele e ao não ser correspondido
resolveu me condenar pela sua morte e no calor do momento me parecia um plano infalível no qual
eu caí facilmente. Exceto pelo fato de que eu estava redondamente enganado.

Aaron cometeu suicídio. Seu estado só tinha piorado mais e mais, ele tinha ido fundo nas drogas e
não via saída há muitos meses, até mesmo tinha feito um bilhete onde explicava seus motivos e se
despedia. Não foi encontrado nenhum celular com ele, o que minava a minha história de ter
recebido um telefonema. O telefone do hotel não foi usado.

No entanto, ninguém estava interessado na razão de estarmos naquele quarto, não quando ao
mesmo tempo, do outro lado da cidade Susan Parker, a parte feminina de Andrômeda, estava
coincidentemente se matando no corredor da morte. Horas antes de sua execução.

Um bom lençol deu conta de ajuda-la a se enforcar, quando a encontraram estava pálida e fria, as
veias roxas e vermelhas estouradas subindo por seu pescoço e mandibula. Como puderam deixar a
mulher tanto tempo sem supervisão não entrava na minha cabeça, assim como não entrava o fato de
que ninguém fez caso sobre o ocorrido. Embora abalado com a morte abrupta de Aaron e sem
saber como Harry reagiria a notícia, continuei no trabalho, lutando para convencer Nicholas a
intervir.

— Você precisa tomar alguma providência, é claro que isso foi uma armação. Aaron sabia sobre
Andrômeda e agora Susan simplesmente se mata, como ela pode ter feito isso? Alguém a queria
morta, alguém de dentro, você não enxerga que estamos cometendo um erro, sendo manipulados.
— Insisto, tentando manter o tom baixo ao atravessarmos os corredores da penitenciária, sendo
seguidos por promotores, advogados e figuras do alto escalão do governo que vieram prestigiar a
execução do inimigo público da nação.

Nicholas comprimenta um dos chefes de estado, acenando como uma celebridade.

— Isso não é mais da nossa jurisdição. Não importa, eles são criminosos e estão tendo o que
merecem e Aaron Johnson era um drogado nojento, não é problema nosso. — Foi sua resposta
cortante ao que ele acelerou o passo, me deixando para trás.

Na pequena sala escura sentei ao fundo, em uma das cadeiras de ferro, longe dos outros agentes, no
momento me envergonhava em ser um membro do FBI. Niall se esgueirou até o meu lado,
apertando os dedos no colo e tremendo covardemente.

— É muito terrível de ver?

Dei de ombros, encostando a cabeça na parede.

— Não, é bem chato, pra falar a verdade. Eles não sofrem, o que é bastante injusto.

Com todos em seus lugares, vimos os policiais trazerem Greg, estava bem melhor do que quando o
conheci, limpo, barbeado e penteado. Os olhos grandes mirando na platéia e os passos letárgicos,
evitando chegar ao seu lugar de condenação, mas seus condutores estavam sem paciência e o
empurraram para a maca, braços abertos e devidamente preso, a maca foi erguida para que ele nos
proferisse suas últimas palavras.

— Eu não tenho medo da morte porque sei que ela não pode me fazer mal nenhum. Eu tenho
sangue sagrado correndo em minhas veias. — O lunático gritou com um sorriso maníaco.

Revirei os olhos, contando os segundos para aquilo acabar. Colocaram as intravenosas e a


administrar as drogas, o processo de sempre, dali há poucos instantes ele adormeceria e... Horan
saltou do meu lado e não só ele como tantos outros quando o condenado começou a se contorcer e
berrar de dor. Algo estava errado, muito errado. Tentaram fazer algo em seu auxílio, mas seja o que
for já estava correndo em suas veias e nem o tal sangue sagrado o pouparia. Não foi lento, porém
também não foi indolor e quando ele caiu estava cinza e sangrando pelos olhos, ouvidos, nariz e
boca.
Niall parecia pior do que ele.

O levei para fora e antes de alcançar o banheiro, vomitou na lata de lixo.

— O que foi isso? Louis, o que- — Niall me olhou, percebendo que eu não o ouvia, estava
hipnotizado pelo celular em minha mão. O celular inativo de Aaron tinha recebido uma mensagem,
uma única e simples mensagem.

Impostores merecem morrer.

Sem assinatura, ou identificação, mas eu sabia, aquela mensagem era de Andrômeda.

Xx

Passei o restante do dia no presídio, acompanhando a investigação sobre as doses adulteradas.


Pouco havia sido descoberto e ninguém estava particularmente interessado em esclarecer os fatos,
mesmo que eu tivesse mostrado a mensagem, fui completamente ignorado. Pelo menos quando era
o chefe da investigação me era dado um pouco de poder para agir, mas tendo de responder a
Hemmings eu era invisível e inútil, então cansei de falar com as paredes e resolvi ir para casa,
continuar desconfiando da sanidade do meu marido e contar o porquê de seu pedido para que
recomeçassemos nossas vidas em um novo lugar não iria acontecer tão cedo .

Era uma noite escura e fresca com um céu sem estrelas, o chão molhado da garoa de mais cedo e o
estacionamento deserto. Niall disse que ficaria com Mike e eu estava grato por poder ir direto para
casa, entrei no carro e antes de mais nada, acendi um cigarro, tirando um momento para respirar e
colocar as ideias em ordem antes que a minha sanidade faltasse. Que dia tenebroso.

Dei uma nova tragada e fechei os olhos e como num sonho, quando você é bruscamente despertado
e tem a sensação de que está caindo eu fui duramente trazido de volta a realidade com o impacto na
traseira da viatura, não foi forte o suficiente para me lançar para fora, mas bati a cabeça contra o
painel e o vidro trincou, meu peito acertou com força o volante e os ossos das minhas costas
pareciam moídos, definitivamente algo foi deslocado e sangue escorreu por meus olhos, o cigarro
queimou meu dedo e soltei para tocar minha cabeça, o plasma corria em abundância.

Mas que po-

De repente um punho acertou a janela do meu lado, incontáveis cacos de vidro se lançando em
minha direção, a maioria flagelando minha pele e a mão desconhecida me encontrou no caminho,
sem dificuldades, me agarrando pela nuca e puxando pela janela, quando fui lançado contra o chão
estava completamente desnorteado. O remédio para gripe já tinha me deixado aéreo e somado ao
fato de uma pancada violenta na cabeça tudo parecia girar, até mesmo a figura altiva a poucos
metros de mim, usando uma roupa toda preta, semelhante a um macacão, cheia de fivelas e faixas
de couro, as mãos em luvas de couro e os punhos com socos ingleses de cobre o que explicava a
facilidade para arrebentar a janela, mas não mudava o fato de que havia muita força física
envolvida. Os coturnos pretos de cano longo pareciam intimidantes o bastante para esmagar a
minha cabeça e sobre a cabeça um capuz e no rosto uma máscara de metal lisa, exceto por dois
buracos de vidro escuro no lugar dos olhos e por fim, as correntes longas e brilhantes ao redor de
seus braços, pendendo na altura dos joelhos. Da onde eu estava, no chão, ele parecia imenso, um
titã amedrontador e satânico. Sem um centímetro sequer de pele exposta, mas não podia acreditar
que se tratasse de uma mulher.

Não era homem ou mulher, de qualquer forma, era uma coisa, uma criatura, um demônio.

Andrômeda.
Bem diante de mim.

Com dificuldade fiquei de pé, meu calcanhar reclamou, mas persisti. Encarando de igual meu
inimigo, eu quis isso por tanto tempo e não podia ter acontecido em momento pior, quando eu não
sou páreo para ele.

— Olá, finalmente nos encontramos. — Soltei sentindo no meu âmago que não havia como
escapar dessa vivo, então, que se foda — De onde vem o lance das correntes? É um fã de The
Chain?

Nada. Nem o menor ruído. Ótimo, não esperava por uma conversa.

Mas também não contava com as mãos deles se fechando ao redor das correntes com firmeza e
lançando-a contra mim, tirando uma fina do meu rosto, bastou o meu corpo recuar um centímetro
para que ele viesse com tudo e ele o fez, definitivamente com tudo. Acertando meu abdômen e me
lançando contra o chão, a parte de trás da minha cabeça atingiu o chão e pensei que fosse desmaiar,
mas meu corpo entrou no modo automático e rolou antes que sua bota viesse contra a minha face.

Esquivar não servia de nada e ele era mais rápido, mais forte e tinha todas as vantagens existentes
sobre mim, só que não era do meu feitio dar o braço a torcer. Quando o senti se aproximar,
concentrei todas as minhas forças em uma só parte do meu corpo e no momento certo usei as duas
pernas para chutar seu peito, ouvi seu resfolegar e o impacto do corpo grande se chocando com o
carro e atingindo o chão. Era a minha hora. Avancei contra Andrômeda, indo no único lugar que eu
sabia que não estaria bem protegido e pisei em sua garganta, o som de engasgo aumentou e fiz
mais pressão, disposto a quebrar seu pescoço com o maior prazer, mas antes que fosse mais longe
ele tornou a atacar, o golpe latejante da corrente contra minhas costas me desestabilizou mais
ainda, o pouco equilíbrio que me restava foi por terra, porém fiz o que pude para não cair e rastejei
para longe dele, me apoiando no carro, o atracamento entre os dois carros bloqueou a visão de seu
corpo e o fato de ser inconvenientemente silencioso pesava contra mim.

Não consigo correr de volta ao presídio.

Não consigo ligar sem ser pego.

Não consigo enfrenta-lo.

Tomo um instante para pensar e é pelo reflexo do vidro do carro que vejo que não adianta forçar
meu cérebro, esse é um embate de músculos e vendo-o surgir as minhas costas é gritante que não
tenho chances. Nem mesmo Lucian foi tão implacável.

A minha mente está dissociada do meu corpo, as luzes se apagam e algo pisca incessante, mas eu
não consigo entender, só administrar o gosto de sangue na boca e a visão nublada e disforme. Não
estou mais perto do carro, o estacionamento está distante e estou me movimentando, não pelas
minhas próprias pernas, estou sendo arrastado, o vento lambe meu rosto ferido e escuto o som do
lago se agitando. Ele está me arrastando para o lago. Eu não sei nadar e se soubesse não serviria de
nada.

Andrômeda me arrasta até o limite do píer e agarra minha garganta, me fazendo olhar diretamente
para si.

— Eu sabia que você era melhor do que eu, tinha que ser. — Digo com um sorriso sanguinário e
por mais condenado que esteja estou animado ao contemplar que o meu alvo não é nada parecido
aqueles criminosos estúpidos.
Andrômeda é um desafio que eu vou superar. Que eu vou destruir.

Olho para a água negra sem temor algum porque eu sei. Assassinos são tão previsíveis.

— Deu um belo show hoje, muito criativa a sua estratégia. Mas você já atingiu a sua cota de
homicídios para o dia, suas três vítimas já estão mortas e você não vai me matar, não hoje. O que é
uma pena pra você, porque eu vou te pegar e te matar.

Andrômeda permanece em seu silêncio infindável e por um instante cogito a possibilidade de estar
errado, de que ele vai me matar independentemente de seu modus operandi habitual, mas ele me
solta e eu caio estatelado sobre a ponte. Me encara pela imensidão das orbes distorcidas e se afasta,
as tábuas de madeira rangendo sob as pisadas duras e uma estrela desponta quando as nuvens se
afastam.

Não sei quanto tempo depois escuto Michael e Niall se aproximando apressados e preocupados, no
entanto, eu me sinto em paz. Com a plenitude de saber que Andrômeda me vê como seu inimigo e
que essa história vai acabar com um de nós morto. É o final perfeito.
│18│mensa

"Eu não posso escapar


do jeito que eu te amo
Eu não quero,
mas eu te amo. "
I love you - Billie Eilish

...

— Tem certeza de que está bem? — Niall indaga pela quinta vez desde que deixamos o hospital.
Assinto calmamente, descendo do carro.

— Estou ótimo, Horan, pode ir pra casa. — Digo tranquilizador, dando um sorrisinho amarelo na
esperança de que ele vá embora.

Niall ainda hesita com as mãos no volante, já começa a amanhecer e eu não estou com energia para
ficar fazendo discursos motivacionais a um pirralho impressionável. Ele estava uma pilha de
nervos, o que era compreensível, logo cedo se deparou com um homem saltando de um prédio,
depois uma mulher enforcada e por fim uma execução que mais parecia uma sessão de tortura e eu
entendia perfeitamente o seu lado e estava tentado a lhe dar uma folga, mas pra mim também não
havia sido nada fácil. Literalmente levei uma surra épica e depois de pontos e exames precisava ir
para a minha cama lamber as feridas e remoer o ódio.

— Sinto muito pelo Nick não acreditar em você. Espero que não fique mal por isso.

Sorri verdadeiramente por sua preocupação.

— Ele nunca foi de acreditar em mim de qualquer forma. — Bato na lataria do carro, incentivando-
o a seguir seu caminho — Vá descansar, ainda temos um assassino para pegar.

Horan cedeu e balançou a cabeça por vezes de mais e com um último olhar brilhante e revigorado
partiu. Fiquei mais algum tempo observando, até que a viatura sumiu e meu coração se apertou.
Não deveria deixar um garoto ingênuo me ter como herói. Eu não sou digno de sua admiração.

Caminho pelo jardim, empurro a porta, encontrando Sonny adormecido no vestíbulo agarrado a um
sapato meu. Faço uma nota mental de passear com ele e termos um momento de irmandade, mas
há um ruído na cozinha que me chama a atenção. Se movendo graciosamente, fazendo um
verdadeiro banquete de café da manhã está Anne, bela e enérgica demais para as quatro da manhã.

— Oh, Louis, você voltou! — Minha sogra soltou, vindo rapidamente em minha direção,
segurando meu rosto — Mas o que aconteceu? — Toca a atadura em minha testa.

— Nada, só ossos do ofício. — Estou grato por todos os analgésicos que não me permitem sentir
nada — O que faz aqui tão cedo?

Ela se afasta, ajeitando o coque e voltando as suas tarefas.

— O café da manhã, querido.

Eu disse que ela era evasiva.

— Não, eu digo, aqui em casa. Aconteceu alguma coisa? — Varro cada canto da casa pelo meu
campo de visão.

— Nada de mais, Harry estava um pouquinho resfriado, então vim ajudar.

Então devo ter passado meu resfriado para ele, mas isso não justifica a presença de Anne aqui. Não
que ela precisasse de uma justificativa, para onde quer que eu olhasse ela sempre estava por perto e
acreditava que isso também vinha incomodando Harry. Quando ele disse sobre nos mudarmos
também citou querer ir para longe da mãe. Ela é sufocante e na maior parte do tempo se coloca
como uma muralha entre nós dois.

Será que ela...?

— Quanta gentileza, mas não precisa se incomodar. Podemos dar conta de tudo por aqui.

— Não, não precisa, é pra isso que eu estou aqui. — Ela tornou a assegurar, abrindo as portas dos
armários e manuseando tudo como se estivesse em sua casa. Ela não estava, fui eu quem comprou
a porra dessa casa.

— Se está tudo bem pra você, eu vou me deitar um pouco. — No instante em que me virei ela
disse:

— Se importaria de dormir no quarto de hóspedes?

Girei nos calcanhares, um ponto de interrogação tomando minha expressão confusa.

— Porque eu dormiria no quarto de hóspedes? — Meu tom de voz era baixo e ríspido, não estava
mais afim de fingir cortesia.

A pergunta não a agradou, era visível seu desgosto, na maior parte do tempo ela era tão querida e
doce que era fácil esquecer o que eu descobri sobre seu gênio ruim e temperamental.
Aparentemente nada havia mudado, mas seus olhos esboçavam um claro "como você ousa me
questionar". Eu acabei de sobreviver a uma maníaco com uma corrente, uma sogra raivosa não é
nada ameaçador.

— Porque eu não quero que você pegue o resfriado do Harry.

— O resfriado é meu. — Retruco sem paciência.

— Mesmo assim...

— Olha, Anne, eu vou correr o risco, obrigado pela preocupação.

— Louis, eu acho que-

— Foda-se! — Explodi alto, encarando seu olhar de horror — Por que toda vez que eu tento
chegar perto do meu marido você fica no caminho? Ele é um homem adulto e não uma criança que
precisa da mamãe vinte e quatro horas por dia, e se ele precisar de alguém, vai ser de mim. Então
porque não volta toda essa atenção para a Gemma que tem problemas realmente sérios e precisa de
você.

Anne passa de estupefata para raivosa e desdenha do que digo com uma risada.

— Claro que ele não precisa. — Murmura repleta de ironia, passando por mim para pegar sua bolsa
na sala.

Vou atrás dela.


— Você sabe, não é? Claro que sim, por isso fica aqui o tempo todo, vocês os acoberta e garante
que eu me mantenha cego.

— Você não precisa da ajuda de ninguém para se manter cego. — Diz secamente, batendo o ombro
no meu ao sair.

Engulo em seco e subo as escadas, assim que abro a porta, em meio ao lento retirar da noite está
Harry, um pontinho minúsculo entre os cobertores, cabelos soltos caindo por seus ombros e um
grosso casaco de lã que cobre por inteiro seu pescoço e uma pequena parte do queixo, os olhos
arregalados em minha direção e sei que ele ouviu tudo.

— Nós vamos brigar? — Pergunto, chutando os sapatos para fora dos pés e largando as roupas
sobre a poltrona, me arrastando para debaixo das cobertas com ele.

— Não. Eu só fiquei... Surpreso. — Murmura com a voz rouca, ele deve estar mesmo gripado. Sua
expressão muda quando percebe meus ferimentos — Louis, o que é isso? — Fala em pânico,
colocando as mãos quentes sobre os curativos.

— Tentei carreira no MMA e não deu muito certo. — Brinco e não recebendo um sorrisinho
sequer, deslizo para perto dele, sua presença me traz uma paz sem igual. O perfume de seus
cabelos, a textura sedosa de sua pele, o calor que ele emana, o som da sua respiração, é só... Meu
ideal de paraíso — Não precisa se preocupar, o outro cara ficou pior. — O aperto e ele geme
quando nossos peitorais se tocam — Que foi?

Ele parece tão surpreso quanto eu por ter sentido dor.

— Não sei. — Tateia o tórax — Devo estar sensível.

— Sinto muito. — Afasto um pouco, começando a brincar com seu cabelo, a mão dele vai para a
minha nuca, raspando o final da atadura — Ficou o dia todo na cama?

— Não. Eu... Sei lá, eu só vi o dia passar e foi pior depois que o jornal noticiou a morte do Aaron,
ele se matou, você sabia?

Não, ele não se matou, alguém mandou que ele se matasse. Assim como fez com Susan e esse
mesmo alguém mandou trocar uma das drogas da execução de Greg, alguém gosta de brincar de
deus da morte.

— É, eu vi na TV também. — Menti, o assistindo fechar os olhos, os cílios curvados sobre as


bochechas e então ele tornou a abri-los, trazendo o rosto mais perto do meu em um pedido de
carinho, alisei sua bochecha macia — Vamos ter que adiar a mudança um pouco mais, tudo bem?

— Isso significa então que você realmente pensa sobre nos mudarmos? — Diz, olhando-me
esperançoso.

— Bom, se eu fosse você já começaria a procurar pela cidade dos seus sonhos.

— Aí meu deus, aí meu deus, Louis, amor! — Me agarra, puxando com força para si e pressiona
um beijo apaixonado em meus lábios — Eu estou tão feliz. — Sussurra entre o beijo, os cachos
caindo contra meu rosto quando dou passagem para sua língua se juntar a minha.

É tão silencioso e calmo, a sua respiração entrelaçando-se a minha e os pequenos raios de sol
atrevessando a cortina num tom morno de laranja, a mão dele se embrenha em meu cabelo, os
dedos cavando entre os fios, mas a memória dos eventos recentes serve de gatilho para esse
simples ato me trazer ao momento em que Andrômeda fez exatamente o mesmo comigo, antes do
punho metálico me atingir mais uma vez. Foi puro instinto inverter as posições, ficando sobre
Harry e mantendo suas mãos acima da cabeça para imobiliza-lo, mesmo que não oferecesse
ameaça alguma.

Ele soltou um suspiro surpreso, o peito descendo e subindo a medida que sua respiração engatava e
ele não parecia assustado pela minha reação, mas sim ansioso.

Ashton me aconselhou sobre isso, disse que eu deveria manter uma distância segura, se realmente
existem outras personalidades eu deveria restringir meu contato ao estritamente necessário até que
entendessemos o que está acontecendo, mas se isso for real, essas personalidades já transaram
comigo um milhão de vezes e fodam-se elas, sei bem quem está comigo, quem me lança esse olhar
de pura adoração.

Me inclino e Harry se arqueia, procurando por um beijo que não vem, aperto seu queixo para
mantê-lo no lugar enquanto reviro a mesinha de cabeceira, as orbes verdes seguindo meus
movimentos ao que solto seu rosto para puxar sua cueca para fora do caminho. Harry se mantém
obedientemente imóvel, as mãos ao lado da cabeça e os lábios vermelhos partidos em pequenos
ofegos quando levo um dedo molhado de lubrificante por entre suas pernas, o tocando em seu
ponto mais sensível que o faz estremecer e jogar a cabeça para trás, a gola escorrega um pouco
para baixo e desço para plantar um beijo em seu pescoço, mas ele me encontra no caminho,
agarrando meus ombros e me beijando com urgência, o sinto conter os gemidos contra meus lábios
quando empurro o primeiro dedo para dentro dele. Tão fodidamente apertado e gostoso como
sempre, mordo seu lábio inferior para poder ouvi-lo gemer livremente e ele o faz brevemente antes
de virar o rosto para o travesseiro, mordendo a fronha e me olhando com os olhos molhados,
suplicando para que eu não o torture mais.

Dobro o dedo e ele se arqueia lindamente, os cachos se espalhando pelo travesseiro. Meu pau lateja
ao vê-lo assim, tão perfeito.

Ele é a minha recompensa por sobreviver.

Quando escorrego mais um dedo começo a me masturbar, misturando o pré-gozo ao lubricante


garantindo que fique o mais molhado possível até que eu possa me encaixar entre suas coxas
abertas para mim, espalmo a mão sobre a pele firme e torneada, descendo até sua nádega
perfeitamente redonda e cheia que se arrepia ao que corro as unhas por ela, levantando seus
quadris, posiciono meu pau em sua entrada e bem lentamente fui afundando dentro dele.

Meus olhos caem sobre os seus turvos. No momento em que nos tornamos um.

Mesmo que nosso casamento não seja nada perto de exemplar, mesmo que tenhamos segredos,
alimentemos nossas mentiras, com fidelidades questionáveis e um talento dolorosamente
comprovado de machucar um ao outro e eternamente presos sob a linha tênue do amor
incondicional e do ódio irracional, ainda assim eu...

— Eu te amo. — Murmuro, os olhos ardentes sobre sua tez ruborizada — Harry, me escuta. —
Seguro seu rosto alinhado ao meu — Eu amo você, apenas você e mais ninguém. Só você. Não se
esqueça disso.

Ele prende a respiração e sorri para mim, sem entender exatamente o que eu digo que muito se
assemelha a uma mera declaração de amor. Ele não sabe, ele não faz ideia. Sinto meus olhos
ardendo e minhas lágrimas caem por sua blusa.

— Louis, não precisa chorar, eu também te amo, muito, com todo o meu coração. — Diz de volta,
me agraciando com um sorriso radiante de covinhas e olhos verdes brilhantes que só torna tudo
pior. Nos beijamos e eu sinto uma dor quase física pela sensação de que estou perdendo-o.

Harry está escapando, entre os meus dedos. Finco minhas unhas com mais força em sua pele e
parece em vão quando sua partida não é material, é a sua alma que está se afastando, flutuando
como a brisa que atravessa nossas janelas e quem fica para trás não me pertence.

Impulsiono os quadris para frente, chocando com o seu que tensiona, ele enrijece embaixo de mim,
mas vai relaxando e se abrindo completamente para mim, a cada movimento o sinto estremecer e
se arquear em busca de mais. Agarro suas mãos porque de repente o sinto tão terrivelmente distante
mesmo que ele permaneça no mesmo lugar me beijando e gemendo com o corpo colado ao meu e
comigo literalmente dentro dele. Eu nunca senti tanto medo como agora.

Eu só preciso senti-lo aqui.

Sua respiração está entrecortada e estoco com mais força, Harry se contrai e cruza os tornozelos
em minhas costas, me trazendo para mais perto. Entramos naquele ritmo frenético em que seus
soluços são música para os meus ouvidos e ele me arranha e me morde desesperadamente tentando
se agarrar em algo antes de ceder ao seu mais absoluto prazer e quando ele cede é ainda mais
perfeito, ele arqueja e geme arrastado, os olhos fechados e a cabeça inclinada para trás, as mechas
longas se agarrando em seu rosto úmido de suor. Eu gozo pouco depois dele, entorpecido por ele,
preenchendo-o por inteiro, recuo quando sinto que estou apoiando todo meu peso sobre ele, mais
especificamente em sua barriga, enquanto ele parece flutuar em sua nuvem pós-orgasmo acaricio
sua pequena barriga. Elas sempre são pequenininhas e fofas, parece que foi ontem que ele me deu a
notícia de que teríamos Evangeline. Eu esperei ansiosamente para ver o quão lindo ele ficaria com
um barriga grande e redonda, mas isso só foi acontecer no último mês e em seguida ela nasceu.

Tudo parecia tão confuso agora.

Estou na cama com meu marido e uma dúzia de estranhos, tocando um bebê que talvez não seja
meu.

Isso... Isso vai me deixar louco.

Deito a cabeça em sua barriga, sentindo quando ele começa a acariciar meus cabelos. Eu só quero
esquecer de tudo isso.

Eu só quero o Harry.

Xx

Tem um carro de polícia na entrada da casa da frente. As sirenes ligadas e pessoas se aglomerando,
as vozes exaltadas se levantando acima dos rádios pedindo por reforços. É uma cena de crime e
cenas de crime podem rapidamente se tornar um caos. Sonny e eu assistimos junto ao cortador de
grama, meu vizinho sendo escoltado para uma viatura, ele sempre foi educado, acenava e nunca
reclamou de Sonny roubar seu jornal na entrada, uma vez jogamos golfe e ele fez um churrasco e
nos convidou, é estranho pensar no vizinho amigável e sorridente sendo detido por matar a esposa
e a filha. Encontraram pedaços da mulher no forno, era medonho de pensar que as pessoas diante
de você, aquelas que parecem inofensivas e queridas são capazes de atrocidades.

Sonny late quando um esquilo passa perto do cortador, quase sendo degolado. Volto a minha
atenção para o cortador, desligando no momento em que Harry sai, Spencer e ele estão brigando e
Blake equilibra uma bola na cabeça.

Quando não consegue o que quer Spen começa a gritar e se jogar na grama fazendo birra. Harry
fica parado, sem reação e parecendo em tempo de chorar.

— Spencer está na hora da escola. — Digo firme, o levantando e o fazendo andar até o carro —
Sem showzinho ou gracinha, você já está grande demais, se algo te incomoda, fale. — Ele me olha
aborrecido, os olhos azuis frios e rancorosos que não causam efeito nenhum em mim. Prendo ele e
depois o irmão na cadeirinha e fecho a porta, abrindo a do motorista, esperando para me despedir
de Harry que está sendo vítima dos carinhos de Sonny.

— Acho que alguém está carente hoje. — Comenta com o são-bernardo agarrado a sua perna.

— Ele precisa de uma namorada ou uma almofada, não deixe ele ficar muito íntimo da sua perna.
— Tento enxotar Sonny que me encara como se eu fosse seu rival e não seu amigo, devolvo seu
rosnado irritado e puxo meu marido para um beijo — É melhor você sair hoje, vá ao shopping,
tanto faz, só não fique por aqui, isso vai ser um inferno.

— Ainda não acredito que algo assim aconteceu praticamente na nossa porta. — Sussurra, olhando
por cima do meu ombro.

— As pessoas são imprevisíveis. Bom, eu vou indo, até mais tarde, sun. — Deixo mais um beijo
em seus lábios e entro no carro.

Harry e Sonny acenam quando partimos em direção a creche.

Deixo os garotos e pego Niall a caminho do trabalho, é estranho pensar em como nos aproximamos
desde que eu fui isolado e mais estranho ainda é pensar em como nos entendemos bem.

— Você diria que ele estava mais para Rocky Balboa ou Apollo Creed? — Questiona com
seriedade quando entramos no elevador.

Reflito sobre sua pergunta.

— Definitivamente era um Ivan Drago.

— Porra! — Exclama em choque — E você sair dessa vivo foi um milagre.

— Não foi um milagre, foi uma mensagem. Ele não gosta de impostores e era o que os dois eram.

— Mas e o Aaron? — Niall diz baixo quando mais pessoas entram no elevador.

— Ele sabia demais. O que me deixa indignado é como Andrômeda conseguiu influenciar nas
drogas do Greg, isso é coisa do alto escalão.

— Talvez seja alguém influente dentro da polícia.

— Isso explicaria... — Murmuro.

— O quê?

— Ele tinha treinamento, tudo o que eu sei, ele sabia e fazia melhor. Não é um cívil, é no mínimo
um militar exemplar.

— Isso explicaria muita coisa. — Horan concluiu, caminhando comigo quando as portas se
abriram. Boa parte da equipe estava reunida na mesa de Luke, mas eu não queria partilhar daquela
reunião de imbecis incompetentes e entramos em minha sala.

Niall se acomodou no sofá e eu puxei o quadro onde vínhamos tentando matar a grande charada.
— Por que um militar estaria assassinando famílias inocentes? — Ele perguntou, apertando a
lapiseira entre os dentes. Todos os dias fazíamos a mesma pergunta.

Exceto que hoje...

— Por que eles são inocentes?

— Hein?

Salto da minha cadeira, revirando os arquivos sobre a mesa.

— Okay, talvez não fossem criminosos ou pessoas terríveis, mas e se eles pecaram de alguma
forma. Se não eram bons em ser uma família. Aqui está! — Balancei a ficha de Tom Jacobs no ar
— Esse cara, ele transava com a babá. — Passo para outra ficha — Donna Esteves era viciada em
jogos de azar e hipotecou a casa da família. Benson Quentin, era um filho rebelde que vivia
fugindo de casa. Consegue ver o que todos eles têm em comum?

Niall hesita.

— Fugiam ao modelo ideal da família americana.

— Exatamente! Andrômeda tem alguma questão séria com o assunto família, na sua cabeça as
coisas devem ser de uma determinada maneira e quando fogem a isso, bem, precisam ser
castigados ou como Aaron disse, eles estão ficando juntos, sendo libertados. Talvez ele acredite
que a morte é a forma de unir essas famílias problemáticas. Alguém que lidou com uma perda
severa. Que tem uma ferida aberta.

— É uma ótima conclusão, senhor, mas ainda não nos dá nenhum suspeito. — Ele diz aquilo que
eu já temia.

Decidimos voltar ao trabalho quando uma comoção do lado de fora acaba com toda a nossa
concentração. Niall precisa colocar a cabeça para fora e saber o que está acontecendo e sem
escolhas, faço o mesmo. Liam vem sendo aplaudido, um grupo da SWAT ao seu redor, enquanto
ele faz questão de conduzir ele mesmo sua prisão atual, puta merda!

Não acredito no que meus olhos estão vendo quando me deparo com o terno desalinhado e o
cabelo preto caindo sobre olhos sombrios, Zayn os olha debaixo com desprezo puro, mas quando
me enxerga entre o mar de rostos algo se ilumina nele e ele se lança contra mim, coisa que nunca
fez, nem mesmo quando éramos íntimos. Todos correm para contê-lo, mas ele consegue me passar
sua mensagem:

— M está no baú! Você precisa pega-lo antes que afunde! — Diz com urgência e então é arrastado
para longe.

Meu cérebro luta para assimilar suas palavras.

Zayn foi pego. Zayn foi traído. Se Zayn caiu, onde está...? M, Mia, Miranda! Mia está no baú, um
baú que está prestes a afundar.

Quando corro, sou seguido prontamente. Dirijo para o esconderijo de Zayn o mais rápido que
consigo, além dos limites da mansão fica um bosque com um lago gelado e que tem acesso ao
canal, uma rota de fuga. Dois homens franzinos dentro de uma lancha estão equilibrando um baú
de madeira quando paro o carro de arma em punho, no momento em que nos vêem eles soltam.

— Niall! — Grito para que ele vá atrás do baú, enquanto começo a disparar, tentando acertar um
dos homens que estão fora do meu alcance. Horan é veloz em se jogar na água, com braçadas
longas ele chega até onde o lago é mais profundo. O baú está fora de vista, assim como Niall,
espero angustiado quando ele some e mais ainda quando volta a superfície para respirar de mãos
vazias.

Quando mais de dois minutos se passam eu caio de joelhos, com a certeza de que perdi mais uma
filha.

Zayn vai me matar.

Não, eu faço questão de me matar.

De repente há uma chiado e enxergo a silhueta de Niall, sem caixa alguma, meu deus. O choro
cresce em meu peito e quando ele se vira está trazendo um corpo miúdo em seus braços, o
uniforme escolar ensopado e o cabelo preto caído sobre o rosto pálido.

— Niall. — Vou até ele, mas ele não me dá atenção, colocando Mia no chão e massageando seu
peito, para empurrar a água para fora de seus pulmões, na quarta vez que ele pressiona ela se
arqueja, cuspindo toda a água e tossindo ruidosamente.

Apenas quando ele se certifica de que ela está bem, se permite cair, tossindo e tentando recuperar o
ar.

— Muito obrigado, Niall, obrigado. — Digo com a voz embargada lhe dando um abraço e me
voltando para Mia, a tomando em meus braços quando ela estremece, assustada e confusa.

De longe observo Mia adormecida na cama de Horan, é um quarto pequeno a duas quadras da
agência. Ela mantinha o olhar desconfiado e os braços cruzados, acuada e atenta como Zayn
costumava ser quando adolescente. A única coisa que ela havia herdado de mim eram os olhos,
estes que estavam minúsculos depois que ela tomou banho e vestiu roupas secas, ainda sem
entender bem o que tinha acontecido. Ao que parece ela esteve escondida por todo o tempo em que
o golpe ocorreu.

Por mais de uma vez ela perguntou sobre Zayn e perto de cair no sono o chamou de papai num
sopro de voz.

Eu nunca tinha sentido o instinto paterno tão latente quando a vi afundar naquele lugar e agora eu
queria poder abraça-la e dizer que a protegeria de tudo. Quis que o pai que ela chamava fosse eu.
No fundo, sempre quis ser pai dela.

— Mia Malik. — Niall diz, tirando o blazer de Mia da secadora. Ele sabia, mas ter uma prova
circunstancial faz toda a diferença — Estamos refugiando a filha de um criminoso.

O "por que?" paira no ar.

— Ela não tem culpa do que o pai dela faz, essa criança é um alvo e precisamos protegê-la. —
Declaro, reavendo minha postura de federal e encostando a porta para não perturbar seu sono.

— Filhas de prisioneiros não ficam na casa de agentes do FBI, se ela não tiver nenhum familiar...

— Ela tem. — Ele estremece onde está, no meio de sua minúscula lavanderia — Eu... Eu... — Eu
sou a família dela — preciso ir, será que ela pode ficar aqui, só por um tempo? Zayn vai... Vai
tomar alguma atitude a respeito, é só.

— Pode ir. Eu cuido dela. — Garante, sem fazer perguntas. Confiando o bastante em mim para
arriscar sua carreira, sua vida, ter Mia aqui é fazer dele um alvo também.

Aperto os lábios, correndo os dedos pelos cabelos.

— Se você não quiser-

— Tudo bem, nós somos parceiros, eu não vou te deixar na mão, chefe.

Administro suas palavras e algo revira em meu peito.

— Eu prefiro dizer que somos amigos, tudo bem pra você?

— Amigos? — Ele deixa o blazer cair e se abaixa rapidamente para pegar de volta, com os olhos
fixos em mim — Sim, tudo ótimo. — Aceitando meu aperto de mão — Amigos, então.

Xx

Retorno o quanto antes até o escritório, a recente captura de Liam está sendo o centro das atenções.
Pego as informações no ar, mas pelo que entendi sua investigação levou ao rastro de alguém com
contatos e querendo conseguir uma aliviada na pena entregou Malik. As expectativas eram que ele
fosse julgado e transferido para o presídio de segurança máxima o mais rápido possível, mas isso
não aconteceria, seus aliados já haviam entrado em contato com alguém no gabinete e em breve
seu alvará de soltura seria emitido, mas até então eles não pareciam ter pensado tão além.

Aguardei discretamente no corredor quando um guarda conhecido ficou sozinho com Zayn e
liberou a minha entrada por poucos minutos, no instante em que entrei ele saltou da cadeira, se
esquecendo das algemas e provocando um ruído escandaloso ao arrastar a estrutura de metal
consigo.

— Conseguiu? — Sussurrou angustiado.

Olhei ao redor, me certificando de que não teríamos uma platéia. A câmera as minhas costas me
deixando alerta, quando sentei diante dele desliguei o microfone acoplado ao interior da mesa
tentando conseguir o mínimo de privacidade.

— Ela está bem. — Respondi, transparecendo bem menos emoção. Seria difícil explicar porque
estava consolando Zayn Malik.

— Onde ela está agora?

— Com um amigo.

A resposta não o agradou, com os movimentos limitados se inclinou em minha direção.

— Que amigo? Um tira? Você enlouqueceu?

— Ele é confiável, Mia está segura.

— É melhor que esteja ou eu juro por Deus...

— Pelo amor, Zayn! É sério isso? Se você se importasse mesmo com a segurança dela teria saído
dessa merda há muito tempo, você escolheu envolvê-la nisso. — Devolvi no mesmo tom
acusatório que ele.

Os olhos âmbar queimaram em furor.


— E quais opções eu tinha? Deixar ela sob os seus cuidados? Pelo que eu soube os seus filhos não
estão lá tão seguros.

Recuei enojado por seu golpe baixo. Era impossível manter uma conversa civilizada com Malik,
ele era assim.

— Quando vai sair? — Optei por desviar do assunto, cruzando os braços e me mantendo distante.

Zayn deu de ombros, jogando as costas contra a cadeira, ele não parecia um bandido perigoso que
acabara de levar uma facada nas costas, ao invés disso estava mais para um playboy milionário que
se envolveu em uma batida ou inflingiu uma regra de trânsito.

— Muito em breve. Então não estrague a garota.

— Ela chamou por você.

— Ah, é?

— Se fazer de indiferente não funciona depois que você quase caiu aos meus pés pedindo que eu a
salvasse.

— Eu não- — Desistiu de negar, balançando a cabeça, cansado — Eu deveria ser mais cuidadoso.
Isso... Isso é puro egoísmo da minha parte, eu escolhi fazer o que faço, escolhi continuar mesmo
depois de tudo, ela nunca teve escolha alguma, foi obrigada a nascer e ser minha filha — Me
lançou um olhar enfezado, completando em um sopro de voz — e sua filha. Nunca vi ninguém tão
azarada, ela veio ao mundo com um alvo nas costas, se eu tivesse um pouco de caráter a mandaria
para o mais longe possível, para o outro lado do mundo, ela teria um novo nome, novos pais e
esqueceria que eu existo. Seria o certo. — Zayn estava divagando, o pensamento distante — Sou
pior do que o diabo e mesmo assim quero uma família, que lastimável.

— Você não ficou com medo?

Ele me olha confuso.

— Quando te pegaram e você ficou aqui sem saber dela, tendo de lidar com a possibilidade de que
eu não a encontraria a tempo, que ela poderia morrer, você não ficou com medo? Quer dizer, não
só do momento, mas de tudo. Medo de ter sido um péssimo pai, de a ter decepcionado e falhado,
por não ter conseguido protegê-la ou sequer ter dito que a amava uma última vez? Isso não te
deixou estarrecido de medo?

— Essa é uma possibilidade que me assombra o tempo todo, o meu trabalho é pura inconstância e
eu penso sobre ter sido um merda, mas se fosse o caso do pior ter acontecido, eu... Eu disse a ela
que a amava sim.

— Você disse? — Digo surpreso.

— Você não disse a Evangeline?

Sinto a ardência em meus olhos pelas lágrimas contidas e abaixo a cabeça, tentando ignorar o
incômodo que envolve meu peito.

— Não, eu-eu quis dizer isso, mas quando olhei pra ela e ela parecia tão assustada, eu só... Disse
que ficaria tudo bem e não foi o que aconteceu, a última coisa que ela ouviu foi uma mentira.

— Foi uma mentira necessária. — O ouvi dizer menos ácido que antes.
Esfreguei o rosto, tentando apagar o recente momento de vulnerabilidade.

— Seu serial killer continua à solta. Foi o que eu ouvi de seus amiguinhos tagarelas. — Malik
aponta com o queixo para além da sala, onde é possível enxergar minha equipe discutindo ao redor
do escritório — Ele veio atrás de você?

— Sim, veio, mas o meu SAC jura que não passou de um desordeiro querendo chamar a atenção.

— Pelo jeito vocês estão lidando com alguém com um ego muito grande, alguém que quer aparecer
e quer ser visto. Se ir atrás de você não funcionou, já deve imaginar o próximo passo.

Dobro o pescoço, desta vez compreendendo o que ele está insinuando.

— Ele não vai ser páreo para tantos-

— Não precisa ser todo mundo, basta um, um único golpe certeiro pode desestruturar todos de uma
só vez. É questão de saber onde doi mais, pense no elo mais fraco. É ele o próximo alvo. — Zayn
diz convicto, automaticamente a imagem de Niall se pinta em minha mente. Ele é o novato,
inexperiente, ingênuo, todos gostamos dele, ele é o elo mais fraco e desde que nos tornamos tão
próximos. Meu coração acelera com a possibilidade de Andrômeda estar no rastro do garoto,
principalmente agora que ele está com Mia.

Niall e Mia podem estar em perigo.

Levanto, deixando a cadeira cair num baque surdo, cego pelo temor e a adrenalina que mal percebo
o impacto que causo em Malik.

— O que houve?

— Eu preciso vê-los! — Digo prestes a sair, mas ele não aceitaria meias palavras e como pode
agarra meu pulso me obrigando a parar. Quando sinto sua pele contra a minha um formigamento
familiar, há tanto tempo esquecido se espalha pela minha derme, eu o olho de cima, me deixando
levar por sua expressão suplicante, e então, ele olha para o lado e recolhe a mão de imediato.

Volto a atenção para onde ele olhou e encontro o oposto do castanho suave, lá está um verde hostil
e furioso, com algo selvagem exalando, quase brutal, mortal. Ele se parece com Harry fisicamente,
mas eu sinto que é alguém diferente, um desconhecido e tem algo em seu olhar, em sua presença
que me deixa acuado, intimidado, é como quando... Quando Andrômeda surgiu na minha frente.

Se não houvesse a máscara cobrindo o seu rosto, aposto que ele estaria me olhando exatamente
daquele jeito.

Andrômeda teria os mesmos olhos de Harry.


│19│monouros

— O que faz aqui? — Inquiro quando saio da sala de interrogatório.

Harry permanece imóvel, fuzilando Zayn com os olhos que não recua e sustenta seu olhar
enraivecido.

— Harry! — Endureço o puxando pelo braço, ele se vira para mim contrariado — Os meninos
estão bem?

— Estão ótimos! — Diz com um sorrisinho simpático, se desvencilhando de mim, fazendo questão
de evitar meu toque. Ele mudou de novo. Se é assim, isso significa que... Seguro sua cintura e o
trago pra mim, nos colando propositalmente e sua expressão se retorce de tal maneira que acredito
que ele irá vomitar — Não faça isso, estamos no seu trabalho. — Ele luta para empurrar meus
ombros e nada acontece. Ele é mais fraco?

Me afasto, observando como ele passa a mão várias vezes pela camisa preocupado com o pequeno
amassado que se formou.

— Ainda não respondeu a minha pergunta... — O nome Harry coça em minha garganta.

O cacheado ajeita o fedora sobre sua cabeça, dedicando uma última olhadela para Malik e me
encara.

— Você me disse para sair de casa, então pensei que poderíamos almoçar juntos.

— Almoçar?

— Uhum.

— Certo. Me espere na minha sala, eu preciso fazer uma ligação.

— Okay. — Concorda e caminha para longe. Sigo na direção contrária, a cada chamada não
atendida por Niall a sensação de agonia se espalha.

— Alô? — Horan murmura do outro lado.

— Como estão as coisas? Vocês estão bem?

— Sim, está tudo bem. Por quê?

Porque acho que tem um serial killer atrás de você.

— Hum, por nenhum motivo em especial, só checando, qualquer coisa me ligue, está bem? —
Concorda e eu desligo, antes de ir de encontro a Harry vou até um pequeno grupo de agentes
desocupados e mando que eles fiquem de prontidão do lado de fora do prédio de Niall. Só por
precaução.

Retorno a minha sala, esperando encontrar Harry, mas dou de cara com Gemma girando na minha
cadeira cantarolando baixinho.

— Oh, olá?

Ela me nota e sorri.


— Oi, cunhado, como vai?

— Bem. — Respondo entrando na sala, virando a cabeça procurando por Harry — Onde ele foi?

— Acho que ele voltou pra casa, disse que não estava se sentindo muito bem. — Dá de ombros,
espiando as pastas sobre a mesa.

— Assim, do nada? Ele parecia bem há um minuto atrás.

— É, ele olhou pra isso aí e disse que estava enjoado. — Ela aponta para o isso aí, que nada mais é
do que o quadro com a investigação do caso Andrômeda onde fotos de corpos mutilados estão
expostas e detalhes sórdidos transcritos ao lado. Às vezes esqueço como pode soar perturbador
para os demais — Eu disse que ia com ele, mas ele insistiu para que fôssemos almoçar.

Parece que uma de suas personalidades quis se livrar de mim e conseguiu com maestria.

Gemma e eu vamos almoçar em um restaurante muito frequentado por mim e meu marido. Ainda
no início da tarde poucas mesas são ocupadas e temos a disponibilidade de tempo dos garçons, o
que é magnífico uma vez que Gemma costuma levar em média quinze minutos lendo e relendo o
menu, pensando no que pedir. Ela é uma pessoa muito indecisa, após trocar cinco vezes seu
pedido, somos servidos.

— E como vão os negócios? Alguma exposição em vista? — Pergunto, pulando a refeição e indo
direto para o álcool.

— Hum, sim, sim, Harry não te falou? — Indaga entre uma garfada e outra. Nego com a cabeça —
Que estranho! Bom, ele está me ajudando. Tenho algumas pinturas mais antigas que precisavam de
uns retoques nas cores e ele se ofereceu para fazer isso, achei até um pouco suspeito, ele nunca
quis tocar em um quadro meu. O que será que ele está planejando?

Eu não faço ideia.

— Mas de qualquer forma, estou muito animada. E você, quais são as novidades? Fiquei sabendo
que o Pegasus foi executado.

— É Andrômeda, na verdade e não, não eram os caras certos.

— Sério?

— Sim, ele veio atrás de mim praticamente em seguida.

Gemma congela.

— Veio atrás de você? Como assim? Meu deus, Louis.

— Está tudo bem. — Tento tranquiliza-la.

— Não tem como estar bem, Louis. Pelo que eu sei não é normal assassinos atacando diretamente
os responsáveis pela sua captura, esse cara é louco, ele pode ir atrás do Harry ou das crianças.

— Eu tenho certeza que n- — Quero negar e assegurar que isto está fora de cogitação, mas é
quando a minha ficha cai. Por que ir atrás de Niall se onde mais me dói está totalmente
desprotegido? Finjo ter recebido uma ligação para dar um motivo a minha escapada — É uma
emergência, eu preciso ir. Desculpe.

— Claro. Boa sorte. — Diz com um aceno.


Movido por puro mal presságio, dirijo de volta para casa, estarrecido no instante em que piso no
jardim e vejo a porta da frente escancarada. A polícia não está mais na casa da frente.

Caminho cuidadosamente, consciente da arma em meu coldre e na mais plena atenção para
qualquer movimento brusco, embora meu emocional esteja em pedaços com a possibilidade do que
encontrarei no lado de dentro.

Entro e não encontro nenhum rastro de Harry, Spencer e Blake. Até os nossos animais estão fora de
vista, adentro um pouco mais, nossa sala está revirada, a mesinha de vidro virada com a superfície
estourada, cacos espalhados por todo o tapete, a tela da TV trincada, fotos rasgadas sobre a lareira.
Roupas e objetos pessoais por todo o chão do corredor, que parece terem sido lançadas do peitoril
da escada. Cada centímetro foi remexido e nenhum sinal deles.

Os quartos estão vazios.

Vacilo ao que me deparo com pequenas gotas de sangue sobre o travesseiro dentro do berço de
Spencer.

A simples ideia do meu filho machucado é demais para mim e eu ligo para o FBI. Enquanto eles
estão a caminho, persisto em procurar, até que ouço um gemido baixo, seguido de um latido e
então o choro estridente de criança. Corro, a procura da origem do pranto e então me deparo com a
porta do sótão que fica no interim da dispensa, é um cômodo praticamente esquecido. Forço a
fechadura e o choro se intensifica.

— Spencer, Spencer, tudo bem, é o papai, okay? Vai ficar tudo bem.

— Papai? — Sibila do outro lado.

— Isso, meu amor, eu preciso que você fique bem longe da porta agora, está bem? Eu vou entrar e
preciso que você se afaste.

— Tá.

Respiro profundamente e chuto a porta que se abre num rompante, o lugar está mergulhado em
escuridão, de repente uma figura minúscula surge, se jogando em meus braços. Aperto Spencer
com força, conferindo que ele não está machucado, apenas assustado. Acendo a luz tremulante e
Sonny corre para mim, assim como Shae e Mona, procuro por Blake, mas acabo encontrando
Harry, encolhido ao pé da escada de madeira.

— Harry! — Grito, me lançando em sua direção, ele permanece com a cabeça baixa, abraçando os
joelhos. Soluçando — Harry, o que aconteceu?

Balança a cabeça, sem emitir som algum.

Olho ao redor.

— Onde está o Blake? Cadê o nosso filho? — Ele não responde, continuando a murmurar e chorar
— Harry, por favor, fala comigo. — Não há resposta — Harry! — Desta vez eu grito,
acompanhado de um puxão que o faz despertar — Cadê o Blake?

Harry me encara com os olhos enormes, as bochechas manchadas pelas lágrimas. Ele não parece
entender de início o que estou dizendo, mas deixa a atenção cair sobre Spencer e a falta de sua
cópia idêntica, então salta ofegante.

— Eles o levaram. Eles o levaram. — Repete com a mão sobre o peito, se encolhendo até estar
ajoelhado novamente — Meu Deus, não! Meu bebê não! — Ele começa a gritar e eu não tenho
reação, assim como não tive quando perdi Evangeline, eu não posso perder o Blake, mas não
encontro uma forma de agir.

Xx

O pânico e a agonia parecie ter durado horas, dias, anos, quando não passaram de cinco minutos.
Mas aqueles foram os cinco minutos mais aterrorizantes da minha vida que nada se comparam a
sensação de alívio extremo quando Liam entra em casa com Blake no colo. Harry praticamente cai
de joelhos agradecendo e eu teria feito o mesmo se não estivesse tão anestesiado pelo medo.

Há vários agentes examinando cada centímetro da casa e somos todos levados até a agência. Harry
continua contando a mesma história sobre dois homens terem invadido a casa, afim de roubar. Eles
os prenderam no sótão e levaram Blake, planejando pedir algum tipo de resgate.

A história caiu por terra rapidamente, quando Spencer disse que não havia visto ninguém e não
sabia porque estavam no sótão, Blake foi mais além e acusou Harry de ter bagunçado toda a casa e
o deixou sozinho na sala com a porta aberta, por isso ele saiu.

As câmeras de segurança não captaram nenhum invasor em potencial, ninguém mais entrou na
nossa casa. Ela até mesmo mostrava com nitidez Blake saindo da casa e andando pela calçada. E
mesmo sendo claramente desmentido ele continuava a contar a mesma história.

Quando Liam fez um intervalo do interrogatório, aproveitei para ver como ele estava.

— Eu quero ir embora. — Choraminga, puxando minha jaqueta quando ajoelho ao lado de sua
cadeira.

— Amor, você não pode sair daqui enquanto não disser a verdade.

— Mas é assim que eu me lembro, Louis. Tinham dois homens, eu não lembro dos rostos, mas as
vozes deles... As vozes deles ficaram na minha cabeça, deles dizendo que iriam se livrar dos
meninos, de você, eles sabiam sobre você e disseram que iam te machucar. Eu fiquei com tanto
medo. — Harry está chorando novamente, ciente de que não tem nada que eu possa fazer por ele
no momento, cruza os braços sobre a mesa e esconde o rosto entre eles, chorando
descompensadamente.

Fico a espera de Liam e quando o vejo retornar, o abordo.

— Liam, você não pode mantê-lo aqui.

— Louis, olha, eu-

— Ele está esperando um bebê, você faz ideia do estresse que está causando nele?

— Bom, estar esperando um bebê não o impediu de forjar toda uma cena e mentir para a polícia.
Ele cometeu alguns crimes.

— Qual é? Você não pode estar falando sério, ele só está confuso.

— Confuso? Não sei se percebeu, mas o seu filho estava sozinho na rua, ele podia ter sido
atropelado, podia ter sido levado por alguém. Você quase perdeu o seu filho hoje e nem falemos do
outro, hoje foi a primeira vez que eu vi uma criança de três anos tendo um colapso nervoso e tudo
isso graças ao seu marido. Eu sei que você ama o Harry e faz sacrifícios demais para manter a
imagem de santo que você criou dele, mas é evidente que o Harry tem problemas. De qualquer
maneira precisamos dar parte no conselho tutelar.

Engulo em seco.

— Está insinuando que vai tirar os nossos filhos?

Ele nega.

— Eu só estou informando que não me parece seguro para eles estarem sob a guarda de vocês no
momento. Só estou cumprindo meu trabalho, não é nada pessoal.

— Claro. — Concordo afável, sentindo meu corpo borbulhar de puro ódio.

Tento equilibrar Spencer e Blake e fazer com que suas cabeças parem de deslizar sobre os meus
ombros ao mesmo tempo que tranco a porta do meu escritório, me viro, trombando com um garoto
de óculos e jaleco.

— Desculpe, detetive. É que a sua análise ficou pronta. — Me estende um envelope.

Encaro aquilo confuso.

— Eu não pedi análise de nada.

— Oh, que estranho. Junto com as outros matérias tinha uma boneca, disseram que era uma
evidência colhida pelo senhor.

A boneca. Ah.

— Certo. Obrigado. — Me forço a sorrir sem a menor vontade e deixamos a agência, é doloroso
partir sem Harry, mas os meninos precisam descansar. Durante o caminho me lembro do quão
caótica estava a nossa casa, penso sobre a possibilidade de ficar em Anne, mas não. Bebe? Não
também. Posso alugar um quarto de hotel.

Acabo decidindo quando estaciono no hall de entrada do prédio de Niall. Dentro do elevador frio,
encaro meu reflexo no espelho, os dois garotos adormecidos agarrados em mim. É engraçado
como me esqueço que ambos são como versões menores de mim mesmo.

Eve era tão diferente.

Como o outro bebê será?

— Boa- — Niall perde a fala quando se depara comigo em sua porta no meio da noite.

— Se importa em ter mais alguns hóspedes?

— De jeito nenhum. — Ele me ajuda, segurando Spencer. Conforme entro no apartamento,


encontro Mia dormindo no sofá, trancinhas pelo cabelo escuro e uma camisa com a bandeira da
Irlanda — Por aqui. — Indica, indo até seu quarto e acomodando os meninos que se enrolam nos
edredons rapidamente, Niall vai até a sala e retorna com Mia, a deitando ao lado de Blake.

Permaneço estático por alguns minutos. Tentando administrar a cena. Os três na mesma cama, os
três irmãos que sequer sabiam da existência do outro. É tão estranho ao mesmo tempo que me
causa alívio e alegria.

Deixo um beijo na cabeça de cada um, hesitando antes de fazer o mesmo com Mia.
— Pelo jeito as coisas não estão muito bem. — Niall diz, voltando da cozinha com um engradado
de cerveja até a sala, onde estou inerte sobre o sofá — Harry?

— Ele está depondo. — Respondo, abrindo uma latinha — Hoje foi um dia muito longo.

— Nem me fale. Pelo menos eu tive uma folga. — Diz, oferecendo um brinde — À dias mais
calmos.

Sorrio descrente que voltarei a ter dias calmos.

— Por dias mais calmos. — Bebo um longo gole, me permitindo derreter contra o estofado.
Percebo o jogo de um time irlandês passando na TV — Você é irlandês?

— Eu nasci lá, mas cresci em Wisconsin e tirei minha cidadania.

— Oh, faz sentido, Irlanda.

— O que é isso?

— Seu apelido.

— Um apelido, que legal. — Sorri, relaxando.

Abrimos outra cerveja, assistindo o jogo.

Xx

Desperto com o corpo dolorido, sem entender ao certo o que estou fazendo no tapete e porque
estou usando um chapéu. Os mistérios do universo.

— Louis. — Ouço um sussurro, mas não sei de onde vem até sentir uma almofada se chocando
com a minha cabeça.

— Niall. — Resmungo, tentado a lançar a almofada de volta. Mas ele tenta me dizer algo com sua
expressão, não entendo nada, ainda não chegamos ao nível de nos comunicarmos com os olhos —
Que é?

— Avião! — Blake grita rindo alto e eu olho para trás, encontrando Mia o levantando pela cintura,
os braços dele abertos e os cabelos bagunçados caindo sobre seus olhos apertados a medida que
seu sorriso aumenta.

— Eu, eu, eu, agora eu. — Spencer pula ao lado dele, puxando sua camisa, temendo ser esquecido.
Mia abaixa Blake e o pega, fazendo o mesmo com ele, que ri de início e logo está choramingando
com medo de cair, então ela torna a trocar, mas basta Blake ser erguido para ele voltar a pedir —
Eu, eu, eu de novo.

Uso da almofada para acertar seu corpinho pequeno e ele para, me olhando chocado.

— Você é um chato, sabia disso? — Provoco com humor e ele me devolve mostrando a língua —
Que coisa feia! — E teima em mostrar. Levanto correndo atrás dele e ele sai em disparada.

Blake insiste em ir para o chão e se juntar a bagunça, os dois se trombam e milagrosamente não
choram, mas continuam a correr rindo. Pego um desvio entre a mesa e o sofá e tenho Mia bem no
meu caminho, então faço algo que deixaria Malik de cabelos brancos e a ergo, exatamente como
ela tinha feito com os meninos antes. Ela solta um gritinho surpreso.
— Agora eu quero ver vocês fugirem do avião. — E a faço "voar" na direção deles que gritam e
saem correndo.

As risadas e gritarias são interrompidas pelo bip alto. Paramos imediamente.

— Ah, eu fiz panquecas. — Niall se lembra — Alguém vai querer?

Depois de um longo banho e um café da manhã reforçado me sinto renovado. Mia e eu jogamos
FIFA e Spencer fica na frente perseguindo os bonequinhos azuis. Eu quase esqueço o contexto no
qual estamos reunidos. Quase.

A campainha toca e Niall está em algum lugar deste cubículo, Mia se oferece para atender a porta.

Sua demora chama a minha atenção, deixo os meninos brigando pelo joystick e vou atrás dela, a
encontrando parada diante da porta, os grandes olhos azuis bem abertos e o calcanhar direito
erguido, como se estivesse prestes a recuar.

— Mia? — Chamo e não só ela olha em minha direção como o visitante, que nada mais é do que
Harry.

— Louis, esse moço disse que é seu marido.

— Ele é. — Confirmo, me aproximando — Pode voltar para a sala, querida. — Toco seu ombro,
percebendo como os olhos de águia seguem vidrados sobre a menina, mesmo quando ela sai de
uma vez — Então...?

— Eu contei a mentira que eles queriam ouvir e agora acham que eu sou um surtado que inventa
historinhas para chamar atenção, vou ser processado e vamos receber a visita de uma assistente
social, também passei a noite numa sala de interrogatório, mas você parece estar se divertindo
bastante. — Diz ríspido, com as mãos metidas nos bolsos de seu sobretudo e um coque contendo
seus cachos.

— Niall é meu amigo e eu não tinha mais para onde levar as crianças. — Retruco em voz baixa.

— Sei, bom, eu fui para a casa da minha mãe, mas não sei porque você veria a casa da avó deles
como um bom lugar para passar a noite. Eu nem imagino como funciona a porra da sua cabeça. —
Ele eleva o tom de voz e sei que estamos brigando, prefiro sair e bater a porta as minhas costas
para poupar os demais — Que merda é essa? Por que essa menina está aqui?

Ele fala como se tivesse alguma noção de quem ela é.

— Essa menina? Como assim?

Harry ri, batendo com os saltos da bota de couro pelo corredor lustroso, indo até às janelas.

— Eu sei quem ela é. Claro que sei. É a filha de Zayn Malik, com você, meu querido marido.

Oh, porra.

Fico sem chão e reação.

— Pela sua cara essa foi uma grande surpresa. — Seu sorriso cresce expondo as covinhas — Não
foi muito difícil, há uns quatro anos ela mandou uma cartinha para Eve desejando feliz aniversário,
ela me perguntou quem era Mia Malik e porque a garota a chamou de irmãzinha. Foi questão de
juntar os pontos.
Senti meu rosto empalidecer, não apenas Harry sabia, como Mia também sabia há anos. Ela sabe
que eu sou o pai dela.

— Harry, eu-

— Eu não me importo. — Diz cortante — Pelo menos ela é mais velha, o que me dá a esperança
de que não tenha sido concebida com uma traição, o que me impressionou foi a aparência dela.

— Você nunca a viu antes? Como a reconheceu?

— Eu não a reconheci, ela disse o nome quando eu disse o meu. É de se surpreender que alguém
como aquele homem tenha criado uma criança tão bem educada.

— Ele é um bom pai. — Sério que eu vou defender Malik para Harry?

A forma como ele me olha parece dizer justamente isso.

— Ela é muito parecida com a Eve.

— Você acha? Ela tem muito do Zayn.

— Mas não é só a aparência, ela tem alguma coisa que me faz lembrar dela, quando eu a vi foi
como se ela estivesse diante de mim. Um pouquinho diferente, mas a minha garotinha estava de
volta. — Harry não me olha ao divagar, é como se ele estivesse olhando para dentro, conversando
com outro alguém. Fico em alerta.

Abro a boca, porém meu celular recebe uma notificação. Zayn está me informando que foi solto e
está a caminho para buscar Mia.

— Ela vai voltar para a casa dela.

De repente, ele está perto demais, me puxando ao que súplica no que parece mais uma exigência
incisiva.

— Não pode deixar que ela continue com o Zayn, ele é um criminoso. Você precisa tomar
providências, é o pai dela.

— Não exatamente, Harry. Eu sou mais um progenitor, ele nunca me deixou sequer tirar uma foto
com ela.

— Foda-se, ela é sua, é nossa, okay? Viu, eu posso aceita-la, eu quero ela, vamos leva-la para a
casa. Vamos ser uma família completa de novo. — Ele segura meu rosto, aproximando nossas
testas e a fala macia flutuando por meus ouvidos: — Nós perdemos a Eve, a Mia pode ser a nossa
segunda chance. Não podemos perder ela também.

— Zayn jamais permitiria...

— Eu jamais permitiria o quê? — O timbre ácido ecoa pelo corredor. Viramos para vislumbrar
Zayn nos olhando de volta com uma expressão de poucos amigos, ele não gosta de mim e
definitivamente não gosta de Harry.

— Eu vou buscar a Miranda. — Digo, não querendo alongar o momento.

Mas é claro que o tiro sai pela culatra quando Harry se volta para Malik.

— Você é um egoísta, sabia?


— Mentira, eu nem fazia ideia, obrigado por me contar.

Observo como a mandíbula do cacheado se aperta em nervoso.

— Estou falando sobre a Mia.

— Miranda. — Zayn corrige, puxando um maço de cigarros do bolso de seu Armani e acendendo
um, expelindo a fumaça em direção a janela — Não use apelidos, estraga o nome da criança.
Evangeline foi banalizado com aquela coisa de "Eve".

— Como você ousa falar o nome da minha filha?

— Você falou o nome da minha filha primeiro.

Harry fecha os olhos e vira o rosto de uma maneira um tanto esquisita. Não é normal, Zayn
também parece perceber.

— Ela também é filha do Louis.

— Não, ela é apenas minha. — Garante, dando uma nova tragada — Ele tem filhos demais, graças
a você, algumas pessoas só servem para isso. — Harry avança e eu preciso entrar no caminho.

— Zayn, não faça isso.

— Você deveria tomar muito cuidado em como fala comigo, não faz ideia do que eu poderia fazer
com você. — Ameaça raivoso.

— E o que seria? Pretende tacar um pincel na minha cabeça? Me sujar de tinta? Estou curioso para
o que alguém que sequer reagiu ao encontrar o marido com outro na cama pode fazer a minha
pessoa. — Ele provoca para ter uma reação explosiva de Harry, mas desta vez ele não tenta
esmurrar Malik ou xingar.

— Eu vou tirar a sua filha de você. — A maneira como ele diz, o tom sombrio e ameaçador, não
transparece uma simples ameaça ou algo dito no calor do momento. Parece uma promessa — Eu
vou tomar o seu coração entre os meus dedos e vou esmaga-lo e você só vai poder assistir, incapaz
de reagir.

— Harry, que merda é essa? — Me volto para ele, mas sua atenção permanece em Zayn, que
perdeu a áurea superior e sarrista. Isso o afetou.

Maldição, se Malik achar que Harry está ameaçando ferir Mia ele vai mandar matá-lo.

— Oi. — Uma vozinha baixa surge em meio aos ânimos exaltados. Mia vem em passos pequenos,
segurando o uniforme lavado contra o peito, perfeitamente dobrado.

Zayn podia abraça-la e chorar por ela ter se salvado, ou dizer algo bonito e emotivo, ao menos um
sorriso, invés disso ele preferiu focar na única coisa que não fazia a menor diferença.

— Que roupa é essa?

Mia baixou os olhos para seu uniforme de futebol do time irlandês, largo e um tanto gasto, mas ela
tinha gostado.

— Foi um presente do Niall. — Disse sorridente.

— Niall? Que diabo é um Niall?


— Ele é meu parceiro. — Digo.

— Oh, vem, vamos embora.

— Certo. — Mia anda em sua direção, porém ele a para ao notar algo — Seus colares, onde estão?

— Eu dei para o Spencer e o Blake. — Como se fosse sua deixa, duas cabecinhas curiosas
despontam da curva do corredor, os pingentes das correntinhas brilhando em seus pescoços — Eles
fizeram aniversário recentemente e eu quis dar um presente.

A expressão de Zayn era um claro "e por que você se importa com isso?", mas ele não disse, só
indicou que ela entrasse no elevador.

— Tchau, Harry. — Mia acena, Harry retribui e ela faz o mesmo comigo — Tchau, Lou.

Ao ver ela partindo sinto o átimo de dizer algo, foi a primeira vez que estivemos juntos por tanto
tempo e tão pouco foi dito.

— Mia, eu- — Engulo as primeiras palavras que vem a minha mente, porque de um lado tenho
Harry, Spencer e Blake me encarando e do outro está Zayn e Mia, é quase como uma escolha. A
família que eu poderia ter tido e a família que eu tenho. Eu não sei o que dizer.

Mas ela não vê mal algum na minha súbita mudez e sorri, repetindo seu tchauzinho.

— Eu sei.

Zayn aperta o botão e as portas se fecham e seja um lapso, uma ilusão de ótica ou uma peça da
minha mente conturbada, nos instantes em que as portas de ferro estão se unindo, Mia parece
idêntica a Eve.

E eu temo não ter sido o único a notar isso.

Xx

A nossa casa não é uma cena de crime, uma vez que tudo foi considerado um grande surto de
Harry e ninguém é tecnicamente incriminado por bagunçar a própria casa, mas ele ainda teria de
lidar com um processo e teríamos de parecer a família perfeita quando recebermos a visita da
assistente social na quinta. Enquanto nossa casa é colocada em ordem passamos o dia na casa de
Anne.

Nós não estamos nos falando, então é estranho estar debaixo do teto dela.

Gemma estava em algum lugar da casa com os meninos e eu me sentia tentado a me juntar a eles,
invés de ouvir a conversa de "adultos" que tínhamos na cozinha com Anne exaltando a equipe de
limpeza e organização que estaria cuidando da nossa casa.

— Eles são excelentes! Deixaram o restaurante um brinco. — Dizia fazendo o almoço que cheirava
muito bem, diga-se de passagem.

Harry franziu o cenho, não parecendo muito animado enquanto continuava cortando em
pedacinhos a mesma cenoura há duas horas.

— Eram só algumas coisas fora do lugar, não precisava de tudo isso.

— Não seja bobo, querido. Eu já queria cuidar disso há muito tempo. Pedi que eles lavassem o
sofá.
— Lavar o sofá? — Me fiz presente.

— Sim, considerem isso como um presente de natal. — Harry e eu nos entreolhamos.

Ele está diferente de novo. Parece o meu Harry de sempre e não aquele que literalmente deu um
ultimato para Malik. Aquela faceta me preocupa.

Sem ânimo para ouvir sobre lavagem de sofás, decido guardar minhas coisas no quarto de
hóspedes. Pego minha bolsa e o envelope cai, já não lembrava mais dele.

Deixo os demais objetos de lado e abro de uma vez. Foi um desperdício, era o cabelo de Eve na
boneca, os resultados seriam óbvios... O quê?

Leio novamente e de novo, de novo, de novo. Esfrego os olhos, não confiando no que vejo, devo
ter algum problema, só pode ser o cansaço, não pode ser isso mesmo, está errado, é um engano.

Mas se fosse um engano não haveria o nome de nenhum de nós no resultado, porém o de Harry
está presente, apenas o meu que não. Tem o nome de um outro homem.

Prescott. Eu já ouvi esse nome...

Jonnah Prescott, o diretor do internato.

Por que essa merda de análise está dizendo que esse homem é pai da minha filha?

Sinto as lágrimas brotando em meus olhos e não tenho estruturas para continuar aqui.

— Louis? — Escuto Harry chamando quando bato a porta e entro no carro, acelerado para sair
daquele lugar.

Eu não sei para onde ir, só quero sumir.

Piso no acelerador e em questão de minutos estou na autoestrada, dirigindo rápido demais,


trocando de faixas quando reviro o porta luvas para pegar meu cantil de uísque. Uma viatura
começa a me seguir, exigindo que eu encoste por conta da direção irresponsável, mas sei
perfeitamente como despistar uma viatura. Não é difícil, os criminosos fazem isso o tempo todo, eu
sei ser bem mais esperto que a maioria daqueles que caço.

Eu sei ser pior que eles.

Eu sei... Porra! Malditas lágrimas.

O sol está se pondo quando estaciono em um posto de gasolina, equilibrando quatro garrafas de
vodka nos braços porque não quis uma sacola, despejo tudo no banco do carona. Meu celular está
tocando mais uma vez e a foto irritante de Harry continua aparecendo.

O que essa maldita prostituta quer agora? Que eu assuma outro filho bastardo seu?

Jogo o telefone no meio da rua e depois passo por cima com o carro. E sigo meu passeio agradável
com uma ligeira tontura e errando de vez em quando a questão dos faróis, eu passo por alguns e
encontro com outros carros, mas não é grande coisa. Tá tudo bem.

No apogeu da noite, tropeço por entre o terreno irregular, com tufos de grama se agarrando no meu
sapato. Tenho uma das mãos ocupadas e um cigarro apagado na boca, o lugar é escuro, mas não é
como se os morados se importassem com a falta de luz. Eles não precisam.
Esforço meus olhos a enxergarem a lápide que eu sei que está em algum lugar. Ah, ali está. É
pequena, se destaca entre os mausoléus. Caio de joelhos diante dela, sorrindo para a fotografia, ela
parece uma adulta com o cabelo preso, olhando sobre o ombro. Eu tirei essa foto.

— Como você pode não ser minha?

— Eu sou sua. — Tenho a sensação de braços frios envolvendo meu pescoço, uma pequena cabeça
deitando em minhas costas. Ela está de volta, mas eu não a quero mais aqui.

— Não, você não é. É só mais uma mentira. Uma farça criada para me machucar.

— Não é isso, você é meu pai, eu te amo. Eu quero te proteger.

— Vai embora. Eu te odeio. — Suplico com a voz arranhada, tem algo dentro de mim se
contorcendo furiosamente.

— Eu não posso ir, você precisa de mim. — Ela me segura com mais força e eu odeio isso.

— Não preciso de ninguém! Muito menos da porra de um cadáver! — Soco a cova, cavando a terra
entre meus dedos.

— Não sou um cadáver, não sou um fantasma. Eu sou você, o que resta de você. — Diz com a voz
chorosa — Não entende, estou aqui por você. O que está acontecendo, o que você está se tornando,
papai... Você...

— Não sou seu pai. — Levanto, abrindo a garrafa que trouxe comigo, derramando o líquido ao
redor do túmulo — Eu não sou pai de ninguém, marido de ninguém, eu não sou ninguém.

— Está tão doente. — Sibila, olhando o que estou fazendo — Por favor, não. Você não é assim.

Paro diante dela, um sorriso encubido de perversidade crescendo em meu rosto.

— Você não me conhece.

— Se me mandar embora, não vai conseguir voltar nunca mais.

Dou de ombros, soltando a garrafa vazia e acendendo meu cigarro. Dou um longo trago e solto o
esqueiro, as chamas caem em contato com a gasolina espalhada e o fogo se alastra rapidamente ao
nosso redor. O fogo intenso se reflete em seus olhos verdes que se tornam cristalinos a medida que
as lágrimas se propagam.

— Não precisa ter medo, você já está morta, meu bem.

A última coisa que vejo é seu corpo miúdo se encolhendo rente ao túmulo, fecho os olhos quando o
calor se aproxima.

— O que você mais ama no mundo todinho? — Ela perguntou, rindo com a janelinha amostra, se
espremendo entre os espaços do banco quando parei no sinal.

— Hum, eu diria que você, e o papai e os seus futuros irmãozinhos. E você, Eve?

— O ballet. — Gritou, fazendo sua coroa escorregar um pouco. Estendi a mão para arrumar e foi
quando percebi o carro parando perto demais — E você, papai, você é o que eu mais amo.

Estava prestes a devolver o "eu te amo", no entanto, havia outro carro parado na nossa frente.
Escorreguei a mão pelo encosto do banco, sem querer chamar a atenção fazendo movimentos
bruscos. Eve percebeu e ficou nervosa.

— Papai, o que foi?

Mesmo sabendo que seria baixar a guarda, me virei para ela.

— Vai ficar tudo b- — Pude sentir quando o vidro rompeu e a bala passou a um milímetro do meu
rosto e a atingiu em cheio na testa e ela simplesmente emitiu um último suspiro e caiu e a chuva de
balas se seguiu.

Estou morto desde então.

— Eu nunca disse que ficaria tudo bem. Eu sou outro mentiroso. — Subitamente algo se lança
contra mim, envolve um tecido ao meu redor e me puxa através das chamas e estou fora.

Mas não ileso.

A dor seria insuportável se não estivesse tão bêbado, mas sinto minha garganta queimando e o
sangue fervente em meu pescoço, como se a pele estivesse tostando. As chamas estão rentes aos
meus olhos e crescem e sou puxado para mais longe.

— Meu Deus, garoto, essa foi por pouco. — O homem, que eu acredito ser o coveiro diz. Empurro
seu casaco para fora do meu corpo e começo a levantar — Você não está em condições.

— Me deixa em paz. — Fico de pé com dificuldade e tento me arrastar de volta ao carro.

— Precisa de um médico. — Ele insiste, o velho manca indo em meu encalço — Você fez isso,
vou precisar chamar a polícia.

Interrompo meu caminho e me viro para o homem.

— Eu disse para me deixar em paz. — Puxo a arma do coldre e dou um único disparo em sua
cabeça, ele cai morto.

E eu não sinto absolutamente nada contemplando seu cadáver.

Matei um inocente e não me importo nem um pouco.

— Tenho certeza de que será bem mais divertido quando atirar nele. — Sinto a fala serpenteando
ao meu redor e então os coturnos pretos surgem esmagando a grama, o sobretudo longo e os cachos
louros. Ele admira o sangue correndo do crânio do homem com devoção — Senti saudades,
detetive. Enfim mandou a garotinha embora, ela acabava com toda a diversão.

Suspiro e ele não está mais na minha frente, mas atrás de mim, ouço sua voz rouca sussurrando em
meu ouvido:

— Vamos acabar com eles, Lou.


│20│norma

"Talvez não haja nada


depois da meia noite
Que possa fazer você ficar
E agora estou em pedaços
E agora você sabe disso"
5Seconds of Summer - Jet Black Heart

...

O volante está coberto de sangue quando afasto minhas mãos dele. Estou diante da casa de Anne, a
lua cheia brilhando as minhas costas, mas existe uma sombra sobre mim quando atravesso o
jardim, esmagando suas rosas sob minhas botas enlameadas.

Não há ninguém na sala ou na cozinha, o silêncio denunciando que foram todos se deitar. Eu
deveria fazer o mesmo, deveria, no entanto me mantenho obstinado, subindo até o segundo andar
onde o nosso quarto de hóspedes tem a porta entreaberta, conforme me aproximo consigo
visualizar Harry deitado na cama, os olhos quase que totalmente fechados, Spencer em seu colo,
segurando uma mamadeira vazia e completamente apagado, apenas o ruído baixo da TV rompendo
com a plenitude.

Parei ao lado da porta, deixando apenas parte do rosto visível.

— Harry, Harry! — Chamei baixo, esperando que ele ouvisse.

Logo seus olhos se abriram e ele se arqueou um pouco, como se tivesse se assustado.

— Lou... — Disse rouco, esfregando os olhos.

— Vem aqui.

Harry assentiu, deitando Spencer na cama e pegando a mamadeira. Os seus passos contra o piso
eram praticamente inaudíveis e o pijama estava mais justo na barriga, ele vinha como a
personificação da inocência. Eu me deixei levar tantas vezes pelo teatrinho de dono de casa
dedicado e inofensivo que me esqueci completamente que Harry era capaz de muito mais.

Assim que ele fechou a porta e me seguiu quando me afastei, eu perdi o controle. Era como se não
tivesse poder sobre mim mesmo e contra a minha vontade meu punho se fechou e eu acertei seu
rosto.

O som de Harry caindo no chão e a mamadeira rolando pela escada retumbou por toda a casa.
Finquei os dedos na parte de trás de sua cabeça, o puxando para cima pelos cabelos e o jogando
contra a parede. Ele estava exatamente como eu esperava, apavorado e confuso, lágrimas caindo
por seus olhos sem a companhia de qualquer soluço e a boca sangrando pelo impacto do soco.

— Louis, o que é isso? — Sibila, a respiração descompensada — Você está m- — O empurro com
mais força contra a parede, propositalmente batendo suas costas, automaticamente a mão vai em
direção a barriga e a encontro no caminho, virando seu pulso, é evidente em seus olhos o instante
em que ele está prestes a gritar, então tapo sua boca, tendo os olhos vidrados de horror fixos em
mim.

— Não ouse chorar sua vadia imunda, se soubesse o que eu tenho vontade de fazer com você
agora. — Digo em tom baixo, Harry se agita, tentando se soltar e o prenso mais firme, as lágrimas
caem em abundância sobre minha palma — Você deve ter achado tudo isso hilário, me julgando
todos esses anos e me tratando como se eu fosse um monstro enquanto você fazia bem pior. Foi
divertido zombar de mim? Me ver como um trouxa que acreditava em tudo o que você dizia? —
Pego o papel do bolso, o balançando diante de seus olhos — Está vendo isso? Me explica essa
merda direito!

Afasto a mão e ele inspira ruidosamente.

— Eu não... Eu não sei do q- — Ele não consegue falar, chorando sem parar e cambaleando.

— Eu não deixei você chorar. — Grito, Harry se encolhe — Por que aqui diz que esse homem é o
pai da Evangeline?

O cacheado passa os olhos avermelhados sobre o papel, embora eu divide que ele consiga entender
algo agora.

— Não sei, deve te-ter sido algum erro. Não sei.

— O único erro foi você abrindo as pernas para outro enquanto já estava comigo.

— Não fala desse jeito comigo.

— Eu falo do jeito que eu quiser. — Soco a parede ao lado de sua cabeça — Você me enganou, me
enganou desde o início.

— Lou, eu não entendo o que está acontecendo, eu nunca fiquei com ninguém além de você,
nunca...

— Para de mentir. Você fodeu com seu diretor e mentiu para mim por todos esses anos, assim
como você deve ter fodido com outro alguém para ter os gêmeos e deixa eu adivinhar, esse aí deve
ser do Aaron, acertei?

Harry me encara com a mais completa repulsa pelo que digo.

— Como se atreve? — E tenta se soltar, mas aperto seus braços garantindo que ele se mantenha
imóvel, preso entre a parede e eu — Você perdeu a cabeça, me solta!

— Eu perdi a cabeça? Sério? Eu? E como poderia esperar que eu me mantesse são estando casado
com alguém como você. Ah, Harry, você é nocivo, cruel, egoísta, mau, sim, você é mau, podre e
odioso. — Seu rosto está pálido e abalado, me aproximo para dizer o mais perto possível de seu
ouvido: — Eu te odeio, está feliz? Odeio você e a armadilha que criou pra mim em forma de
família, odeio cada um de vocês.

— Não... — Engasga, apertando os olhos.

Seguro seu rosto.

— É verdade, eu te desprezo do fundo do meu coração e espero que você tenha uma morte
dolorosa muito em breve.

Harry praticamente desfalece, tentando engolir o choro intenso e não conseguindo.

— Isso não é você, não pode ser... Eu não fiz, não fiz, eu nunca... Com mais ninguém. É mentira! É
mentira! É mentira! — Sua voz vai se elevando, tal como o timbre se modifica, embargado pelo
choro e a respiração acelerada, ele parece em tempo de desmaiar, encolhendo e se debatendo.

E de súbito tudo para. O choro, a fala, a falta de ar, suas pernas reavém a força para se manter em
pé, ele respira tranquilamente, quando ergue o rosto para mim não há mais nenhuma lágrima e o
absoluto silêncio. Ele não fala porque seus olhos dizem tudo. Estou diante de outra pessoa.

— H- — Antes que possa dizer, sua mão aperta minha garganta e me empurra contra a outra
parede, tamanha é a força que a intenção não parece ser asfixia e sim quebrar meu pescoço, tento
andar e percebo que meus pés não tocam mais o chão.

Seu rosto inexpressivo me encara de volta.

É como uma máquina sem vida, programada para matar.

Não lhe parece dificultoso me manter com uma única mão, meu joelho se dobra automaticamente
pensando em acertá-lo no estômago e por mais que eu tenha raiva de tudo e de todos no momento,
não sou capaz de deliberadamente fazer uma coisa dessas. Sinto meu corpo letárgico e a vista
escurecendo, como se alguém tivesse apagado as luzes. Impaciente com a minha demora em
simplesmente morrer, ele fecha o punho e o lança em minha direção, num último fôlego de
adrenalina consigo desviar e Harry acerta o espelho, me soltando em seguida, o sangue goteja por
seu punho rasgado e o Harry que eu conheço teria uma síncope só com aquilo, mas este não se
abala pelos cortes sobre a mão, sequer emite um som de desconforto enquanto puxa um pedaço de
vidro do dorso.

— Quem é você? — Digo o olhando de baixo, com a mão sobre a garganta.

Ele me olha, indiferente.

Então a porta está rangendo, e uma figura pequena sai dela, cabelos pra cima e olhos inchados e
nos olha de volta, confuso, mas tornam a se fixar em Harry e Spencer grita.

Não um grito de teimosia ou manha, como ele costuma fazer, mas um grito de pavor, como se ele
estivesse diante de um demônio ou pior.

Harry gira nos calcanhares indo até ele, mas eu sei que esse não é o verdadeiro Harry, sei que pela
forma que ele se aproxima não está tencionado acalmar Spencer e ele ainda mantém o pedaço de
vidro, não penso duas vezes antes de me lançar sobre ele, envolvendo os braços ao redor e usando
de toda a minha força para pará-lo.

Spencer continua a gritar.

O agarro com mais força do que há em mim, lutando para obriga-lo a parar. Ele me arrasta sem
dificuldades.

— Harry, para, é o Spencer, você não pode machucar o seu filho, você não quer isso, então para. —
Nada funciona, então tento puxar pela memória algo que eu possa ter lido entre os muitos livros
sobre TDI, oh, o nome — Harry Edward Styles, Harry Edward Styles... — Sigo repetindo, até que
finalmente parece fazer efeito, com seus passos perdendo a intensidade e ele cai em seus joelhos,
me levando junto, a menos de cinco centímetros de Spencer.

Suspiro, observando sua cabeça baixa, o cabelo caído sobre o rosto e os membros moles em meus
braços. Gemma abre uma das portas do corredor, correndo até onde Spencer continua a chorar e
nos olha com espanto, ouço a movimentação no quarto de Anne também.

— O que é tudo isso? O que aconteceu? — Minha cunhada pergunta, balançando o bebê no colo,
tentando acalmá-lo.

Não sei o que dizer, então me calo. Os olhos dela caem sobre Harry, a preocupação estampada em
seu rosto quando não nota nenhuma reação vinda dele, toca seus cabelos querendo afastar de seu
rosto, mas no instante que ela se aproxima demais, apenas a mão dele reage, tal como uma cobra
dando o bote, enterrando o pedaço de vidro na coxa de Gemma e desfalecendo de verdade desta
vez.

Xx

Não consigo lembrar da última vez em que estive no banco de trás de um carro, talvez quando
entrei no quinto ano, talvez. Seja como for, fazem décadas, mas hoje nada soa normal. Anne
continua dirigindo sem ter dado nenhuma lição de moral, ela deve estar se remoendo por dentro
depois que seu filho furou a sua filha sem nenhum motivo. Gemma também não falou nada, nem
mesmo enquanto nós três estivemos lado a lado na emergência, felizmente seu corte foi superficial
e alguns pontos resolveram o problema, Harry precisou de mais pontos do que ela e uma dose
cavalar de sedativos e agora estava desmaiado no meu colo, eu, por outro lado, perdi boas horas
enquanto tratavam da queimadura no meu pescoço.

Todos voltavam para casa com curativos e a base de diazepam.

Eu não pensei além, apenas me deixei ser guiado pela raiva. Não imaginei o que fazer quando a
raiva passasse. Qual o próximo passo?

Anne para o carro, ela ajuda Gem e eu levo Harry em meus braços, Cams está cochilando com as
crianças na sala e seguimos direto para o quarto, deito meu marido na cama, puxando as cobertas
sobre ele e deixando a mão enfaixada sobre outro travesseiro. Sentado aqui, depois de todo esse
inferno, apenas os dois me dói perceber que eu o odeio na mesma intensidade que o amo. Sempre
tive horror daqueles casais que matavam o cônjuge e se matavam em seguida por não serem
capazes de viver sem, hoje em dia não parecia tão irreal que esse fosse o nosso fim.

Tão dopado quanto ele, acabo deitando ao seu lado, uma distância enorme entre nossos corpos,
adormeço.

Desperto sem noção das horas, as cortinas fechadas perpetuam o breu mesmo que já seja dia. Me
espreguiço, sentindo um peso sobre minhas costas, torço o pescoço, encontrando o rosto de Harry
aninhado em mim, o braço ao redor da minha cintura. Em outros tempos não me moveria em
hipótese alguma, aproveitaria de sua proximidade, de estar com ele. Agora eu tenho um ataque de
ansiedade só de estar no mesmo cômodo que ele. Tomo um banho e troco de roupas rapidamente,
apavorado com a possibilidade dele acordar, escapo do quarto ainda calçando um dos sapatos.

Estou alimentando a esperança de passar desapercebido, porém, o cheiro de café fresco e a


torradeira ligada denunciam que não será bem assim.

— Olá? — Digo, imaginando que Anne estará sozinha, mas percebo uma cabeça loira lhe fazendo
companhia — Ashton!

Ashton deixa a bancada da mesa e vem até mim, me dando um abraço apertado.

— Ei, Louis, como vai? Eu cheguei tem um tempinho, espero não ter te acordado.

— Não, está tudo bem.

— Ashton, está procurando por um estágio na cidade, disse que você o convidou a ficar na casa de
vocês enquanto isso. — Minha sogra comenta, servindo uma xicara de café para mim, aceito,
bebendo tudo de uma vez.

— Sim, foi isso mesmo.

— E qual é a opinião do Harry sobre isso? — Pergunta com desconfiança.

— Acho que ele não vai se importar.

— Deveria ficar aqui em casa, Ashton.

— Não. Ele vai ficar na minha casa.

Anne bufa, jogando o pano de prato sobre o balcão e marchando escada acima.

— Que clima tenso. — O rapaz observa, sentando-se novamente — Notou mais alguma coisa?

Rio de minha própria desgraça.

— Não tem como não notar, Ashton. — Pego minha pasta, reavendo o arquivo no qual vinha
trabalhando a respeito das supostas personalidades de Harry, abro para ele — Essas são as
personalidades e as singularidades que consegui apontar de cada um, não sei o nome da maioria,
mas é notável que algumas são perigosas e outras não, e eu acho que as mais sinistras podem se
comunicar com as outras, isso é possível?

Irwin analisa tudo meticulosamente, os lábios se movendo a medida que lê silenciosamente.

— Sim, é possível, elas podem ter consciência uma da outra, conversar, até mesmo trabalharem em
conjunto. Se o Harry realmente for um TDI e mesmo depois de todos esses anos tendo
acompanhamento psicológico não ter sido diagnosticado só existe uma possibilidade, ele tem uma
ou mais personalidades que não permitem que isso seja exposto, ou seja, elas sabem exatamente o
que são e não querem ser controladas. Essas que você apontou como manipuladoras podem ser
grandes colaboradoras do grupo para manter o disfarce.

— Grupo?

— Se o número que você supôs for este mesmo nós temos um grande grupo aqui, bem articulado e
engenhoso.

— Acha que o Harry pode ter consciência disso? — Indago, temeroso de sua resposta.

— Ainda não sei dizer, vou precisar passar algum tempo com ele. Também precisamos descobrir
os traumas relacionados a essas quebras de identidades, sabe se ele já sofreu algum abuso?

Abuso? Penso em seu horror e negação quando mostrei o resultado do exame, em sua certeza de
que nunca esteve com o diretor Prescott, que eu fui o único, e se esse homem abusou dele? E se
Harry foi violentado e sua mente criou uma outra persona pra se livrar do trauma e ele nunca soube
que a filha que esperava era de outro homem? Então ele é uma vítima... Ele sempre foi a vítima em
tudo isso.

Minha cabeça está girando.

— Nós tivemos um probleminha em casa, mas voltamos hoje mesmo, quando o Harry for, eu
quero que você vá com ele, por favor.

— Claro, Louis, não se preocupe, eu farei todo o possível para descobrir o que o Harry tem e como
ajudá-lo da melhor forma, está bem?
— Certo. Obrigado.

Xx

— Ela está gritando com ele até agora. — Michael disse gargalhando para alguém do lado de fora,
empurrando a porta com o quadril, equilibrando uma rosquinha e um copo de chá nas mãos. Ele se
vira, soltando um som de surpresa quando me encontra em sua sala, encolhido no sofá — Louis...
oi?

Suspiro, esfregando as mãos sobre as têmporas.

— Por que você faz isso?

— O quê? Como rosquinha com chá? — Arrisca uma de suas piadinhas, me fazendo rir, o que me
leva a chorar também e quando as lágrimas começam a rolar pelo meu rosto, Clifford se apressa
em deixar suas coisas na mesa e sentar ao meu lado, preocupado — Louis, o que foi?

— Mike, eu estraguei tudo, estraguei tudo. — Choramingo, escondendo o rosto entre as mãos —
Eu fiz uma bagunça tão grande, estou afundando na minha própria merda.

— Não fala isso, você não fez merda nenhuma. — Sinto seu carinho reconfortante em minha nuca
e volto a olha-lo.

— Por que você continua me amando? — Pergunto aquilo que me prometi nunca indagar, era um
assunto esquecido, encerrado, mas eu precisava de uma resposta. Precisava entender o que existia
em mim para ser gostado, não consigo enxergar nada.

Michael é pego de surpresa e sem palavras, olha para as persianas, seus cabelos estão loiros de
novo, a franja longa cai sobre os olhos de um verde cristalino ao serem iluminados pelos primeiros
raios da manhã, e eu percebo que foi observando-o que me apaixonei por ele.

— Você é lindo.

Ele sorri pelo elogio aleatório e ajeita sua jaqueta, não sabendo o que fazer com as próprias mãos.

— Eu fui um bosta com você, fui um bosta com todo mundo. Eu perdi a cabeça de um jeito que
você nem imagina, se soubesse as coisas que fiz, você teria medo de mim, medo e nojo. — Torno a
me afundar na angústia, chorando em um oceano de autopiedade e remorso, até estar escorregando
até o chão, puxando meus cabelos e querendo gritar ao mundo o quão maldito eu sou.

Quase consigo ouvir os neurônios de Mike debatendo sobre fazer ou não, até que seu coração
vence e ele me toca – o que prometeu não fazer nunca mais – mas diante do meu sofrimento não se
controla e me abraça, deixando que eu chore contra seu peito, e ele me aninha como se eu fosse
merecedor de seu cuidado, de seu amor.

— Foda-se, eu te amo! Pronto, é isso, te amo e não preciso de razão nenhuma pra isso, apenas amo
e não consigo tirar isso de mim, eu não supero e sou patético, satisfeito? Não me importa o que
você fez, eu vou te proteger do que for.

— Eu matei um homem inocente ontem. — Digo esperando que ele me chute ou coloque algemas
nos meus pulsos, não que ele beije meus cabelos.

— O que mais?

— O cara que me manteve preso no esgoto, eu matei ele e... O cortei em pedaços. Nunca vão
achar nada dele e desde então eu o vejo, como uma assombração e ele me diz para fazer coisas
ruins.

Sinto seu pomo de Adão se mover, mas ele não diz nada além de:

— O que mais?

— Eve não é minha filha.

— Ah, Louis. — Lamenta, me abraçando mais forte e eu torno a chorar desesperado.

— Devia ter te ouvido, você tinha razão, isso, esse casamento, ele vai me matar, vai matar nós
dois. Eu devia ter ficado com você, eu gosto de você.

— Devia mesmo.

Sorrio de seu bom humor até em momentos como esse.

— Mike, eu estou perdido.

Permanecemos desse jeito por horas a fio, sem a necessidade de palavras, apenas a companhia um
do outro. Ele escuta tudo o que eu falo, por mais vergonhoso e medonho que seja e ele canta para
mim quando não tenho mais tanto pavor de tudo. Ao lado dele o mundo parece menos assombroso,
até um passarinho pousa em sua janela e o olhamos de perto, claro que ele faz questão de fincar
suas patinhas no dedo de Clifford.

Em menos de vinte e quatro horas tive a oportunidade de contemplar todos os possíveis rumos que
a minha vida poderia ter seguido e o mais tenebroso foi o que escolhi seguir. Por dois dias, nós
dois fomos pai do mesmo filho, Sonny era um filhotinho órfão quando ambos nos apaixonamos por
ele e não conseguimos chegar a um consenso de quem ficaria com ele. Harry não queria um
cachorro, Luke também não, então nós dois fizemos uma guarda compartilhada e em um daqueles
curtos dias fomos ao parque e deitamos sobre a grama, Sonny correndo ao nosso redor e as nuvens
macias como algodão doce flutuando livres no céu azul.

Uma criança disse que éramos um casal lindo e nenhum de nós a desmentiu.

Michael fechou os olhos e sorriu tranquilamente.

— Queria ficar aqui pra sempre.

— Que foi? — Indaga, quando percebe que estou olhando pra ele.

Vamos ao parque, quero dizer, mas a porta é aberta e Sarah diz que ele tem que acompanhar uma
equipe de investigação. Talvez outro dia, penso comigo mesmo.

— Nos falamos mais tarde. — Ele se despede, com um último abraço e eu retribuo profundamente
grato — Vai ficar tudo bem.

Ele chega até a porta e acena, com um sorriso, a fechando em seguida.

Desabo no sofá, vai ficar tudo bem.

O dia foi embora quando saio da minha sala, com o corpo moído por ter ficado deitado o tempo
todo. O escritório está em alvoroço, todos que não tem plantão se aprontando para ir embora, noto
a falta de muitos rostos no dia de hoje. Niall não deu as caras, assim como Liam, por algum motivo
penso em Mia e sinto um aperto no peito, como o aviso de um mal presságio.
Luke está bem a vista, sentado na mesa de uma secretária, lhe contando algo que a faz rir e ele dá
de ombros, abaixando os óculos escuros para me dar o vislumbre de seu olhar de desprezo mútuo.

É o fim do expediente, só quero ir embora.

Sarah está reunindo suas coisas quando o telefone toca, ela o atende com uma expressão tediosa,
mas não parece entender de início, então pede silêncio e continua ouvindo seja lá o que for e
quando parece identificar o que há do outro lado da linha, grita e solta o telefone.

— Meu Deus! — Berra, em estado de choque. Me apresso em atender, enquanto Mitch e os demais
tentam acalmá-la.

Não preciso de mais do que um segundo para discernir o ruído de engasgo e golpes, algo se arrasta,
é metálico e próximo demais ao telefone, como se quisesse que fosse ouvido. É Andrômeda
matando alguém ao vivo.

Lanço um olhar urgente para Mitch que entende de imediato, correndo até o computador,
rastreando o quanto antes a chamada que não é interrompida, sendo assim, a finalidade é que
encontremos.

Essa vítima é alguém que conhecemos. Essa vítima é uma vingança direta.

Estremeço ao perceber que o endereço que Mitch me entrega é onde encontrarei o cadáver de
alguém importante. Quem?

Uma equipe é prontamente convocada e entramos nas viaturas, Luke está dando a volta para entrar
no carona.

— Dirige você.

Ele franze as sobrancelhas, confuso.

— Tudo bem?

Não.

Mesmo assim ele dirige e somos os primeiros a chegar ao local da ligação, é um casébre antigo,
serviu de asilo por muitos anos até que um incêndio definitivamente o tornou um lugar inóspito,
caindo aos pedaços, a relva selvagem alta ao redor e nenhuma movimentação dentro e fora.
Entramos de armas em punho, próximos o bastante para cobrir a retaguarda um do outro e quando
não encontramos nada no hall nos separamos, poucos minutos depois tornamos a nos reunir, sem
nada.

— Deve ter sido só um trote. — Luke suspirou, coçando a nuca e olhando ao redor, assim que seus
olhos passaram pelo topo da escada ele empalideceu de tal forma, segui seus olhos e senti que o
mesmo me acontecera.

Não haviam correntes.

Não havia um corpo pendulando do teto.

Não havia um cadáver.

Só havia Michael, em pé, a silhueta salientada pela janela de vidro atrás dele de onde a lua
cintilava, tudo parecia bem, ele deu um passo a frente e depois outro, a vista de seu corpo se
tornando mais nítida do que a mera sombra e foi quando percebi que sua mão estava sobre seu
estômago, tentando inutilmente manter seus órgãos dentro do corpo quando todo seu tronco estava
dilacerado, suas roupas, o chão ao seu redor, era puro sangue e continuava a correr abundante para
fora dele, como uma fonte.

Foi como em câmera lente, a noção da realidade nos abatendo.

A vítima de Andrômeda naquela noite era Michael Clifford.

Seu próximo passo não pode ser concluído, ele não conseguiu suportar o peso de seu corpo e
tombou, caindo sobre o próprio sangue, Luke disparou tão veloz que mal pude perceber até que ele
estivesse ajoelhado no chão, tentando estancar o ferimento de Michael, mas não era possível, não
quando ele fora praticamente rasgado de fora a fora. Os outros agentes vieram em nosso encalço,
perdidos ao contemplar a tragédia, Payne cavou espaço entre os corpos, ele estava em patrulha e
atendeu ao chamado, Niall também, subimos os degraus com o coração na garganta, porque Luke
estava visivelmente entrando em estado de histéria, lutando para juntar os pedaços de seu amado, o
sangue estava por suas mãos, até seu rosto porque ele tinha trazido Mike para perto dele.

— Cadê a porra do médico? — Gritou trovejante, seu pescoço marcado por veias grossas. O
médico estava a caminho, mas não parecia haver muito o que fazer, cai de joelhos ao seu lado,
Michael moveu os olhos até mim, os mesmos olhos que admirei mais cedo estavam perdendo o
brilho, se apagando, assim que me viu moveu a boca, como se ansiasse por falar, foi quando notei
que o sangue em sua boca ia além de uma simples pancada. Sua língua foi cortada, eu solucei não
podendo controlar quando o pranto me atingiu em cheio.

Ele não merecia isso. Não ele, eu sim. Eu merecia tudo e mais um pouco, mas ele não, ele nunca.

Ainda assim ele não se desesperou, apenas me estendeu a mão e eu a segurei, seus dedos frios que
se empurravam contra meu peito, como se tentasse dizer algo, uma última mensagem.

— Não se esforce, precisa descansar agora. — Hemmings murmurou, acariciando seus cabelos e
Mike o olhou, sua mão escorregou da minha e ele a levou até o rosto de Luke, uma lágrima
solitária caindo do olho direito e antes que sua mão tocasse a bochecha dele, o braço caiu e os
olhos se fecharam. Clifford morreu.

Niall foi o primeiro a reagir, tapando a boca quando o choro se desencadeou, Liam aguentou
mesmo com os olhos marejados e eu estava chorando desde o início.

Foi nesse exato instante que as palavras de Zayn voltaram com força, sobre Andrômeda ir no elo
mais fraco, acertar onde doi. Parecia tão claro agora, a morte de Michael era um golpe doloroso e
profundo, uma facada no meu coração, mas eu não era o alvo dessa vez.

Estava olhando para ele, tremendo por inteiro.

— Luke. — Me aproximei e ele me afastou com um rosnado.

— O médico... — Foi tudo o que disse, o médico chegou no mesmo minuto, mas tanto ele quanto
todos nós sabíamos que Michael já estava morto, mas Luke insistiu e quando ouviu o doutor
declarando a hora da morte o chão de Luke Hemmings desabou.

Luke era como eu, um desajustado que concentrava todo o seu amor, sua paz, sua sanidade em uma
única pessoa, em Michael e com Michael morto, ele não seria capaz de se controlar.

— Eu sinto muito... — O médico dizia quando Luke acertou um soco em sua boca, o pobre homem
caiu para trás, Liam e eu tentamos contê-lo, mas em seu estado atual ele era mais forte do que vinte
de nós e por um tris Payne não foi arremessado da escada e Luke se agarrou no corpo de Michael, o
rosto entre os fios loiros.

— É mentira, você não está morto, você está bem, só está dormindo, você vai acordar já já, meu
amor. — Dizia em meio aos soluços, ofegando ruidosamente — Tudo bem, amor, tudo bem, eu te
amo e você vai acordar, você tem que acordar.

Ele não acordou e depois do terceiro médico atestar o mesmo resultado e Luke tentar matar o
homem, o IML chega e é uma nova saga para fazê-lo soltar o corpo de Michael, quando ele o faz,
está inteiramente banhado pelo sangue dele, ignorando quando tentamos levá-lo até o médico já
que é evidente que ele não está bem. A ambulância sai e ele caminha até o carro, a chave tilintando
entre os dedos ensanguentados.

— Luke, espera. — Chamo, indo atrás dele.

Hemmings para, os olhos mortos caindo sobre mim.

— Você fez isso.

— Eu?

Ele se vira para mim, a expressão de quem está prestes a começar uma carnificina.

— Ele só veio pra cá, só aceitou investigar esse caso por sua causa, se não fosse você estaríamos
bem longe de tudo isso, mas por sua culpa ele está morto agora. Morto. — Repete mais para si do
que qualquer um, encarando a lua — O amor da minha vida morreu. Ele morreu nos meus braços,
consegue imaginar uma coisa dessas, Tomlinson? Num minuto podia sentir sua respiração e ver
seus olhos olhando pra mim e no outro tudo se apaga, como se ele nunca tivesse existido. Como eu
vou para o escritório sabendo que não o encontrarei? Para quem eu vou ligar bêbado fazendo
declarações de amor? Onde eu vou encontrar alguém que me olhava com tanto carinho? Alguém
que me amou tanto ao ponto de nenhum outro amor servir senão o dele? Ele não era meu ex-noivo,
ele era meu melhor amigo, era o meu porto seguro, minha paz, minha casa, minha vida, ele era o
sangue correndo em minhas vidas, ele era tudo. Tomlinson, como eu posso te perdoar por ter me
feito perder tudo isso?

— Você não pode.

— E eu não vou. — Diz, baixando os olhos para todo o sangue em si — Tudo o que havia de bom
em mim se foi e agora eu sou uma casca oca, fria e cruel e nem que seja a última coisa que eu faça,
eu vou acabar com você, vou te destruir, você vai querer morrer e eu não vou deixar para garantir
que o seu sofrimento seja eterno, como o meu. Faço questão de ser o seu carrasco. O diabo terá
pena de você, maldito. — E me deu as costas, cambaleando até o carro.

Eu o conheço e sei que ele vai cumprir. Vou sofrer as consequências dessa morte, serei castigado e
Andrômeda sabia disso.

Retorno para dentro do casebre, sento nos degraus e não me movo mais. Fico assim por horas, até
que escuto passos e meu subconsciente quer acreditar que é Michael, que nos finalmente vamos ao
parque, que tudo não passou de um pesadelo, mas Michael não usa sobretudo e não tem o cabelo
longo e ele jamais me olhou com tamanho desgosto, mesmo quando o acusei de ter arruinado a
minha vida.

Harry subiu os degraus, a indiferença estampada em sua expressão, ele parou perto o bastante para
que eu o tocasse.
— Michael está morto.

— Eu sei disso. — Respondeu, tocando meu queixo para me encarar — E você está me fazendo
assisti-lo chorar por seu amante.

— Ele não era meu amante. — Afasto o rosto.

— Isso já foi longe demais, você precisa sair disso antes que você seja o cadáver, Louis.

— Luke tem razão, a culpa é minha, se eu não... Eu pedi a ajuda dele, por minha causa ele veio
para cá e eu sei que Andrômeda me odeia, aquilo foi pessoal, ela nunca mutilou ninguém daquele
jeito, ela cortou a língua dele.

— Oh, pobrezinho. — Acaricia meu cabelo, como ao pelo de um cão de rua.

Sou cada vez mais dominado pela dor, passamos todo o dia juntos. Eu sinto que podia ter
impedido, eu podia tê-lo salvado de alguma forma. Tem um buraco no meu peito. Tombo para
frente, a cabeça apoiando na coxa de Harry e choro abertamente, sentindo seu toque seco.

— O que está sentindo agora vai passar, em breve não vai mais doer, querido. Não vai sentir mais
nada.

Sim, por favor, é tudo o que eu quero.

Suas palavras teriam soado bem menos afáveis se eu tivesse visto a forma orgulhosa com que
olhava para o sangue de Michael sobre o chão. Mas naquele tempo eu estava cego.
│21│orphiuchus

Me dê um longo beijo de boa noite


E tudo vai ficar bem
Me diga que não vou sentir nada
Give Me Novacaine - Green Day

...

Por favor, me deixe sozinho... Eu estou com medo.

— Sr e Sra. Tomlinson, entendem a importância do que estou dizendo? Ainda está no começo, mas
com o tratamento adequado... — Assistia os adultos conversando, mas não conseguia entender
muita coisa do que estava sendo dito, eu sabia que era por minha coisa. Algo em mim não estava
bem.

Tinha a ver com as coisas que eu fazia, da forma como me comportava.

A doutora bonita se inclinou, tocando meu ombro, apesar da fala macia pude perceber seu receio.
Como se se dirigisse a um animal raivoso.

— Você vai ficar bem, Louis. — Sorri, querendo acreditar.

Mas no caminho de volta, meus pais não estavam falando sobre o tal tratamento ou tentando me
tranquilizar. Eles discutiam fervorosamente. Mamãe estava no terceiro cigarro, revezando em
beber sua garrafa de gim mesmo que estivesse no sétimo mês de gestação.

— A culpa é sua, viu o que a médica falou essa coisa se desenvolve na gravidez. — Meu pai
rosnou ao volante, pisando no acelerador. Agarrei o cinto, assustado.

— Ela não falou isso, disse que era uma possibilidade. — Ela retrucou, dando um novo gole — Ele
deve ter puxado isso de você.

— Não fode, Johanna, é claro que ele não puxou nada de mim, nem sei se o moleque é meu. Essa
coisa pequena e mariquinha.

— O que é mariquinha? — Indaguei, inocentemente.

Mark virou o rosto, um sorriso zombeteiro rasgando suas bochechas e seu olhar ficando para
sempre gravado em minha memória.

— Agora o de menos, porque você também é louco. A médica disse que não tem cura e pode
piorar, então logo logo vamos estar te dando uma camisa de força de presente de aniversário.

— Mark, não fale isso para o menino. — Ela o repreendeu e sorriu para mim — Você está ótimo,
querido.

Eu tenho muito medo.

Eles estiveram por aqui durante muito tempo, serpenteando nas sombras, me cobrindo quando eu
adormecia, surrando as portas do armário, rolando debaixo da minha cama, espreitando sobre meu
ombro e sussurrando ordens ou ameaças. E eu as temia e chorava, mas não tinha como se esconder,
elas viviam dentro da minha cabeça.
— Cara, isso não passa nunca? — Zayn se virou para mim, vestindo a camisa, uma sobrancelha
arqueada. Ele devia me achar esquisito, sempre tive medo de perder o controle perto dele.

Dei de ombros, encolhido a onde estava, no canto do quarto de onde vinha a mancha escura como
a sombra de um grande morcego escalando o teto, dois grandes olhos vermelhos brilhantes me
olhando de volta.

— Meus pais dizem que eu tenho muita imaginação.

— Não acho que seja isso. — Malik franziu o cenho e foi até a cadeira, tirando algo do bolso da
jaqueta e se ajoelhou ao meu lado — Eu não devia te dar isso, mas... Talvez ajude um pouco. —
Desviei os olhos para sua mão estendida, ele passou para mim e então pude encarar o saquinho
com o pó branco.

— O que é isso?

— É um tipo de remédio.

Tenho a impressão de estar caçando remédios a vida inteira e nunca encontrar o certo. As drogas só
fizeram tudo pior, o emprego onde eu poderia me deparar com coisas tão terríveis quanto as que a
minha mente criava não tornaram nada menos assustador, todos os casos me deixaram mais vazio,
a família surtiu um leve efeito, mas foi com Harry que eu finquei meus pés na realidade.

Ele me trouxe de volta ao mundo real.

O meu remédio.

Por tantos anos eu estive bem e sob controle ao lado dele, haviam recaídas, mas desde que estivesse
ao seu lado tudo ficaria bem novamente, porém, como toda medicação que quando usada
irrestritamente e sem acompanhamento causa efeitos adversos o mesmo aconteceu aqui, os efeitos
adversos chegaram em peso.

Os delírios voltaram, junto com a desconfiança, mudanças de humor, irritação, violência e por fim,
a perda completa da razão.

A minha cura se tornou meu veneno.

Mais do nunca posso sentir o quão ruim eu estou. Pisco os olhos lentamente, os cílios úmidos
gotejam sobre minhas bochechas, sinto a espessura dos fios de cabelos molhados grudando em
minha nuca e testa, o teto branco imóvel as minhas vistas com sua luz pálida e incandescente que
queima minhas retinas e me obriga a desviar e encarar a situação na qual me encontro.

A última coisa que me lembrava era de estar no lugar onde Michael morreu, sentado nas escadas
íngremes e chorar contra a perna de Harry, de seu carinho rígido e do vento zumbindo lá fora e
agora, como num piscar de olhos estou em casa, de volta ao lar doce lar, dentro da banheira de
nossa suíte, imerso na água morna, os sais flutuando ao meu redor e Harry contra meu peito, o
coque se desmanchando e a suavidez de sua pele em contato com a minha.

— Como- o que eu? — Digo, estranhando o quão difícil é formar e emitir aquelas parcas palavras,
me sinto aéreo, meio anestesiado.

Harry se mexe lentamente, virando os olhos plácidos para mim, sem vestígios do nosso encontro
anterior.

— Não acredito que você cochilou. — Disse, fingindo estar chateado.


Tento administrar toda a situação, eu não acho que eu tenha cochilado. Esfrego minha cabeça, tem
algo errado.

— Como voltamos pra cá?

— Nós viemos de carro, você dirigiu, amor. O que foi? Isso é alguma ressaca?

— Dirigi? Eu não me lembro de ter feito nada disso. — Suspiro, ouvindo sua risadinha.

— Lou, você tem trabalhado tanto, isso é exaustão, amor, ainda bem que conseguiu alguns dias de
folga.

— Que folga?

— Eu disse ao Nick que você precisava descansar e ele concordou.

— Eu não preciso descansar. — Tento me apoiar nas laterais da banheira para levantar, mas Harry
é ágil em tomar minhas mãos e colocá-las sobre a barriga.

— Shiu, está sentindo? — Pergunta, guiando minha palma sobre seu ventre levemente inchado —
Bem aqui. Ela está mexendo.

Fico menos agitado, me permitindo sentir a movimentação sutil, os pequenos golpes contra a pele
característicos de um chute. Eu me sinto feliz em algum lugar, mas não é um sentimento que chega
até o meu coração, eu, de fato não estou sentindo nada no momento. Porém meu marido não parece
dar importância, mesmo depois de todas as lembranças vivídas do nosso confronto na casa de sua
mãe.

— Ela?

— Sim. — Afirma, dividindo atenção entre a barriga e meu rosto — Queria ter feito uma surpresa,
mas... Você sabe, aconteceu aquele incidente.

— Aquilo foi mais do que um incidente.

— Não tem mais importância, querido. — Ele diz, empurrando minha mão para longe dele e se
virando, ficando em seus joelhos, as unhas fincando em minhas bochechas ao que ele agarra meu
rosto, alinhando-o ao seu. Quem é você? Desejo dizer, mas a nuvem densa paira sobre minha
mente, anuviando meus pensamentos, sou incapaz de raciocinar, de expressar qualquer coisa — Eu
vou cuidar de você à partir de agora.

O que quer dizer com cuidar de mim? Penso, mas não consigo dizer. Tudo escurece e sinto minha
testa tocando seu ombro.

Acordo sem qualquer noção de espaço ou tempo, apenas registro que estou no quarto. As paredes
azuis, o sofá amarelo no canto e os ruídos externos, sinto uma mão quente tocando minha testa.
Ashton está me olhando preocupado.

— Tem razão, ele está um pouco febril.

— Eu disse. — A voz rouca de Harry retumba pelo quarto, o encontro na pia do banheiro,
revirando cartelas e mais cartelas de remédios — Deve ser um resfriado.

Estreito meus olhos, que relutam em se abrir. Os comprimidos vermelhos que ele traz consigo não
são para gripe. Novamente tento falar, mas não sou acompanhado por meus músculos.
— Calma, amor, prontinho. — Meu marido se senta ao meu lado.

Ashton levanta, colocando as mãos nos quadris.

— Será que não é melhor levá-lo ao médico?

— Não, Louis odeia hospitais, isso não é nada demais, já já ele estará novinho em folha, só precisa
dormir um pouquinho e... — Ele me move, de maneira que consegue colocar o comprimido dentro
da minha boca e virar o copo d'água quase que completamente, me obrigando a engolir — tomar
todos os remédios. — Conclui, sorrindo vitorioso, deixando um beijo sobre a minha testa.

Harry se afasta e Irwin ainda parece receoso, ele dá um passo em minha direção como se quisesse
me dizer algo, porém...

— Vamos? — Harry o chama e ele sai.

Nas horas seguintes enquanto sigo dormindo e acordando, sem conseguir me mexer ou falar
adequadamente e com a porta trancada, começo a acreditar que estou doente, muito doente. Mesmo
com as janelas abertas podia sentir o suor escorrendo pela minha pele, encharcando minha camisa,
os lençóis grudando em mim.

Os dentes batendo e uma pontada ardida no estômago que ia subindo até se alojar no peito como
um princípio de infarto, me encolhi confuso do porque tudo aquilo estava acontecido. Até então, eu
não sentia nenhum desconforto físico, mas de repente era como se estivesse acometido por alguma
doença viral.

Senti o frescor de algo frio tocando minha testa, afastando um pouco da quentura e achei Harry
entre a nuvem de tremores.

— Vo-ocê. — Sibilo, agarrando sua coxa quando ele se ajeita ao meu lado, minha cabeça
tombando para o lado de sua cintura.

— Vai ficar tudo bem.

— Onde você estava?

— Aqui.

— Não... Você não estava. — Garanto, piscando com lentidão. Uma sombra se formando ao pé da
cama.

— Eu fiquei aqui o tempo todo.

A sombra balança a cabeça, discordando.

Xx

Ele está te drogando.

Está querendo te tirar do caminho.

Harry está fazendo algo muito ruim.

Você sabe.

Pode mentir o quanto quiser, mas você sabe.


Eu sei.

Estas frases rondam meus pensamentos a cada instante, não é como se eu pudesse evitar. Tudo o
que sinto é desconfiança, eu já tive muitos resfriados, já estive doente de verdade, já levei tiros e
em nenhum destes momentos estive tão debilitado como agora.

E Harry nunca me foi tão solícito.

Mesmo antes, ele era do tipo que corria para o hospital e não me deixava ter alta enquanto não
fosse garantia de que eu não acabaria morrendo no meio da noite, mas desta vez, bem, desta vez,
ele está bastante seguro em cuidar de mim pessoalmente. Entre os flashes de lucidez sei que ele
cuida de todas as minhas necessidades, que me leva de um lugar para o outro como um boneco de
pano, quando desperto ofegante com meu corpo efervescendo pela febre ele está ao meu lado,
pronto para abaixar a febre, quando sinto dores fortes um novo remédio é empurrado garganta
abaixo. Tão atencioso.

Porém não há sinais de celulares ou notebooks a vista, tudo o que escuto são as vozes distantes. A
mais recorrente sendo a de Niall Horan. De início sua voz era mais próxima, como se estivesse do
outro lado da porta, mas rapidamente ela foi se afastando, até que fossem trechos avulsos vindos
do lado de fora da casa, difíceis de discernir.

— Mas que resfriado é esse? Sr. Tomlinson, eu preciso de verdade ver o Louis. — Ouvia o irlandês
insistir.

— Desculpe, está fora de cogitação. Eu aviso que você esteve aqui. — Harry respondia sempre.

Ele nunca me avisou.

O motivo das vistas de Niall nunca chegaram explicitamente aos meus ouvidos, no entanto tinha
uma singela suspeita ao ouvir pedaços das notícias quando Harry achava que eu estava
suficientemente inconsciente e ligava a TV, em todos os canais o assunto era o mesmo: o serial
killer de Nova York estava indo a caça com mais frequência do que nunca, a cidade vivia em
pânico e alerta porque Andrômeda não vinha dando mais trega.

Um assassino que sai todas as noites com sede de sangue.

Sempre que pensava nisso virava na cama, estendendo o braço e sentindo o outro lado vazio.

Você sempre fez isso? Sempre escapulia entre meus dedos quando sabia que eu não estava
olhando?

Haviam dias em que eu me sentia melhor, não o bastante para andar, mas o suficiente para sentar e
não desmaiar em seguida.

Nesses dias era como se estivessemos de volta aos velhos tempos. Os tempos felizes.

Nós quatro ficávamos na cama, as crianças traziam uma infinidade de brinquedos, espalhavam-nos
sobre minhas pernas e depois brigavam com unhas e dentes pelo mesmo bonequinho Woody,
Harry se enfiava entre eles, gritando para ninguém chegar perto demais e borrar seu esmalte até
que dois segundos depois ele mesmo borrava a unha e tinha um ataque de diva que fazia as
crianças rirem. Havia pipoca, trancinhas e alguém choramingando no meu ombro quando acontecia
uma cena triste no filme animado e esse alguém nunca era Spencer ou Blake que não se
importavam o suficiente para ficarem tristes.

O dia em específico que ficou gravado para mim entre estes emaranhados confusos foi o qual a
chuva caia lá fora, uma se encerrava e outra tinha início, um dia cinza e frio, mas eu me senti em
paz, como não acontecia em muito tempo. A sensação de sonolência dominando meus olhos.

Estávamos todos deitados, Blake agarrado em mim, Spencer em Harry, ambos dormindo com seus
gorros idênticos, alheios ao mundo a sua volta.

Harry estava em silêncio, olhando para os meninos, o polegar acariciando o pé que perdera a meia
de Blake que estava quase tocando sua barriga.

— Eu sinto muito. — Senti a necessidade de dizer.

Ele não me olhou, mas uma covinha marcou sua bochecha.

— Estragamos tudo.

— Podemos tentar consertar.

Então ele me encarou.

— É tarde demais. — Suspirou com uma única lágrima caindo, que ele se apressou em secar.

— O que está fazendo?

— Eu não sei. Eles não me dizem.

Eles. Foi a primeira vez que Harry disse algo assim. A primeira.

Engoli em seco, estava dopado demais para fazer sentido.

— Pode chamar o Harry aqui, por favor?

Sua expressão se acendeu em surpresa e indignação, os olhos crescendo. Era o garoto. Eu sei que
era, ele é o mais distraído e ingênuo, eu poderia ter tirado tanto dele se... Se eu tivesse resistido só
mais um pouquinho.

Depois disso esses momentos acabaram. Spencer e Blake não retornaram, assim como Harry.

Era outro que estava comigo todo o tempo e esse não gostava nenhum pouco de mim.

Sempre que eu dizia que queria meu celular, ou falar com alguém, ele agia como se não fosse nada.
Uma mosca zumbindo em seu ouvido. Um nada.

O meu instinto de sobrevivência estava me deixando louco, comendo o meu juízo. Sem ter mais o
apoio do meu próprio corpo tive de obrigar meu cérebro a ir ao limite e consegui lembrar de um
velho celular que costumava usar para falar com Michael. Cuidadosamente estiquei o braço,
tensionando tocar a gaveta.

Por entre o breu meu braço foi agarrado, o abajur acesso e a figura de meu marido iluminada. Não
consegui visualizá-lo por inteiro, mas ele estava bem vestido e perfumado, aliás, era um perfume
familiar.

— Precisa de algo, meu bem? — Disse gentil, mantendo o aperto firme em meu braço.

— Eu só... — Quero fugir — estava com saudades.

— Oh, Lou, eu só vou me trocar e volto para você.


E ele o fez, tão rápido que não tive a menor chance e quando voltou fez questão de tomar o lado
que eu precisava. No outro dia quando consegui abrir, o celular não estava mais lá.

Eu sou como um rato preso em uma ratoeira.

Xx

O rato aqui tem seu primeiro evento social em semanas quando alguém que eu não faço ideia de
quem seja está casando com uma colega de faculdade de Harry que eu também desconheço a
identidade, apenas sou arrastado para o seu casamento, dentro de um terno abafado, cheio de
retoques para não parecer uma alma vagante pelo salão, não que eu esteja caminhando por aí.

Comecei a me sentir melhor bem recentemente, mas não o bastante para conquistar minha
liberdade. Era apenas uma marionete que andava com as próprias pernas, mas que não decidia o
caminho.

Observei a azeitona afundando na taça, pequenas bolhas subindo pela superfície. Os tremores
faziam o mesmo com meu corpo, borbulhando algo que me era conhecido.

A sombra passou por mim, pude sentir sua presença, o sopro rente ao meu ouvido. Um chiado
baixo, como um choro vindo de algum lugar, as asas se abrindo no teto sobre nossas cabeças. Eu
via isso o tempo todo quando era criança, quando pensava que teria de usar uma camisa de força.

Louco.

Tapei meus olhos por tanto tempo.

— Quer outro Martini?

Harry está se sentando diante de mim, em seu terno bem alinhado, preto com um lacinho amarelo.
Notavelmente elegante, cachos castanhos caindo harmoniosamente por seus ombros, um sorriso
engessado em seu rosto para parecer normal a todos seus ex-colegas de turma.

Eu sei fazer isso, parecer normal, ou sabia.

— Por que está me drogando?

— Porque tenho um plano e não quero que me atrapalhe.

Ele resolveu ser franco. É tarde demais para mentiras.

— Que tipo de plano?

— Um ótimo plano, você é a peça central dele.

Ergo o rosto, me deparando com seu sorriso sereno, a sua aliança afundando na taça de Martini. A
valsa costumeira é interrompida e uma música sombria tem início.

Harry se levanta, contorna a mesa e me estende a mão.

— Dance comigo.

Não é uma pergunta. Aceito sua mão e caminho com ele até a pista onde todos dançam, abraço sua
cintura e ele o meu ombro, nossas mãos se entrelaçando no caminho. A luz baixa e somos apenas
nós dois.
Eu e o diabo.

Sobre seus ombros vejo os vultos, formas, os fantasmas antigos e novos. Uma criatura de chifres
longos rodopiando pelo salão com suas asas espinhosas.

— Não é impressionante como duas pessoas como nós nos encontramos? Fingimos ver o mundo
como eles, mas somos tão diferentes. Tão especiais. — Harry ronrona no meu ouvido, seguindo
meus passos.

— Tão doentes. — Corrijo.

— Pode ser também. — Solta uma risadinha.

Uma das formas sai da escuridão, se colocando sob a luz do salão, roupas pretas, uma máscara e
correntes pendendo de seus braços. Está aqui? Como...? Paro de dançar, me afastando de Harry.

— Andrômeda. — Digo descrente que ele me seguiu até aqui.

— Onde? — Harry pergunta, me olhando. Andrômeda se aproveita do ligeiro instante em que olho
para o meu marido e aproveita para fugir — Está indo embora.

— Vá atrás dele, Louis. — Ele incentiva, saindo do meu caminho.

Eu preciso pegá-lo, esse é o momento. Dou um passo a frente, as sombras se aproximam, oscilando
ao meu redor, fodam-se, preciso agir desta vez. Sigo seu rastro pelos sons das correntes, o ruído das
botas, não posso vê-lo, mas sinto sua presença.

— Não é ele bem ali? — Harry está ao meu lado.

Olho para onde ele aponta, o estacionamento aberto, debaixo da chuva torrencial ele está tentando
fugir roubando um dos carros. Não há dúvidas, se trata de Andrômeda, cada detalhe daquele dia se
mantém intacto. Não se trata de um delírio.

— Você consegue ver também, certo? — Preciso checar que não estou alucinando.

É real.

Meu marido assente.

Num piscar de olhos estou distante, sentindo meus punhos formigar, no outro estou acertando-o,
um golpe na garganta e ele guincha, então aproveito para acertar sua cabeça na janela do carro, o
vidro trincando e uma mancha de sangue brotando da rachadura em sua testa, sento em seus
quadris e meus punhos estão formigando novamente, desta vez sendo cobertos de sangue.

A música continua no salão.

A voz melodiosa soprando em meu ouvido: Mate-o!

É exatamente o que quero fazer. Um golpe seguido do outro, com seus ossos rangendo, os
grunhidos perdendo a força, ele vai emudecendo, morrendo.

Estou prestes a colocar um fim em todo aquele martírio, mas quando olho para seu rosto, ele é só
um homem comum, um dos padrinhos, vestindo seu terno simples e sem correntes ou máscara,
apenas um rosto completamente fodido depois de tantos socos.

— Por favor... — Geme num último resquício de voz, desmaiando.


— Pensando bem, acho que não deve ser Andrômeda não. — Harry observou.

A tempestade revolta caindo sobre nós, debaixo daquela chuva ele parecia diferente também,
porém idêntico ao que eu lembrava de Andrômeda.

Baixo a cabeça, encarando minhas mãos sujas com o sangue de um estranho.

— Do que você tem tanto medo? — Alguém perguntou e eu não soube responder.

Agora eu sei.

De mim mesmo.
│22│orion

Vivemos cada dia contando com o seguinte. Tão confiantes e arrogantes com a certeza de que
haverá um amanhã e que ele será como uma folha em branco, aguardando ser preenchido com
aquilo que for da nossa vontade, não consideramos os imprevistos, o caos que o amanhã pode nos
reservar.

São tantas as possibilidades e desgostos que podem ser trazidos neste singelo trocar de páginas,
mas não pensamos tão além. Usamos o hoje como o molde para o que virá, no entanto, um dia
nunca é igual ao outro. A certeza não existe e a verdade é que nunca sabemos quais são os dias
felizes e o quanto prezamos por aqueles dias tidos como "normais" até que o caos nos invade, a
incerteza e o temor de se encontrar encurralado e oprimido não por uma pessoa, mas pelas
circunstâncias, aquelas sobre as quais somos impotentes.

O medo de não haver um amanhã.

Nesta mesma cama onde experienciei tantos momentos de paixão e alegria eu concluo que sinto
falta dos dias monótonos e comuns, o meu último dia normal parece ter sido há eras, como se outra
pessoa o tivesse vivido. Tenho a impressão de que sempre estive aqui, trancado neste quarto,
observando as paredes me engolirem, sem saída. Apenas contemplando minha própria
insignificância.

Eu quero dormir, quero me afogar na inconsciência, mas toda vez que fecho meus olhos estou de
volta a aquele estacionamento, acertando o rosto daquele estranho com meu punho tão
violentamente que o ruído de ossos se partindo e ligamentos se rompendo ecoam por meus
ouvidos. O pior é saber que Harry me observa, não com temor ou horror e sim algo semelhante a
orgulho, peguei de relance o brilho em seus olhos e pensei que era pura impressão, a chuva era
densa, nada era certo, mas no fundo, eu sei. Ele me instigou a fazer aquilo.

E por falar nele, não o vejo desde então. Não tenho noção de quantos dias se passaram, a cama ao
seu lado está arrumada, assim como estava na noite anterior e na noite antes dela. De repente, a
porta é aberta, ao invés de encontrar a figura esguia de meu marido um certo indivíduo de quatro
patas é quem entra, com uma bolinha de borracha na boca, ele corre até mim, esfregando o focinho
em minha mão.

— Desculpe, Sonny, eu não tô legal.

Claro que ele não entende e persiste.

— Son- — Resolvo fazer o esforço de envolver a bolinha com meus dedos frouxos e lançar tão
fracamente que ela acerta a porta entreaberta do closet. Sonny vai pegá-la, mas muda seu caminho,
se esgueirando para dentro do armário.

Penso no estrago que seus dentes podem fazer nas roupas de grife de Harry e no quão possesso ele
vai ficar.

— Sonny! Vem pra cá! — Grito ao mesmo tempo que ouço o estardalhaço de objetos caindo.
Sonny sai assustado, abrindo ainda mais a porta e expondo sua belíssima bagunça, ele fez a proeza
de se apoiar em uma prateleira e virá-la, entre o caos percebo a caixinha preta de metal, aberta e as
fotos espalhadas. Oh, espere.

Afasto as cobertas e puxo meus pés para fora da cama, o primeiro contato com o piso frio faz com
que um arrepio violento corte a minha espinha, mas tento meu melhor para prosseguir, no primeiro
passo caio de joelhos. O som ecoando pela casa e meus olhos voam em direção a porta, Sonny
torna a se aproximar, empurrando o focinho contra meu braço, em um claro "ei, cara, levante-se",
porém, não consigo, então faço o meu melhor para impulsionar meu corpo sobre o piso, me
arrastando até o meu destino final. É como subir o Himalaia, mas finalmente consigo alcançar a
caixa, olho de relance as polaroides, como eu disse: parece que aquele é um casal desconhecido,
aqueles me são objetos não familiares.

Puxo o fundo falso da caixa e o saquinho caí. Prometi a mim mesmo que jamais tornaria a fazer
isso dentro de casa, mas a situação atual não me dá escolhas. Separo pequenas fileiras e inalo
rapidamente cada uma delas, é a única coisa que pode me tirar deste estado de inércia.

Rapidamente surte efeito e sou incapaz de me colocar de pé. Tomo um banho agitado e visto
roupas pretas, nada do FBI, eu não quero saber disso. Deixo minha cabeça sob a torneira da pia,
tentando colocar meus pensamentos em ordem, relembrar a onde estava antes de ter sido tão
abruptamente encarcerado. Ergo o rosto, puxando o cabelo para trás, há gotas de água deslizando
por meu rosto, mas não é o meu reflexo que me encara de volta e sim os velhos olhos de alce,
toquei minha testa procurando pelos chifres de osso, não encontro nada, apenas o enxergo de volta
como se aquela fosse a minha imagem.

Não há mais tempo para voltar atrás.

Não há ninguém em casa e não encontro meu celular. Felizmente meu carro está na garagem e
passo em uma loja de conveniências para comprar um celular descartável e tento entrar em contato
com Ashton, mas ele não atende. Pelo horário deve estar em aula, luto para puxar pela memória
em qual universidade ele está, mas nada vem. Se não me engano tenho isso em algum lugar... Ah,
sim, no trabalho, sim, um folheto. Dirijo até o escritório, entrando pelos fundos, sem fazer alarde,
apenas entro na sala e saio sem chamar a atenção, mas é óbvio que Niall Horan estaria velando
pela minha sala e me veria no mesmo instante em que empurrasse a porta.

— Chefe! Como está? Se sente melhor? Recebeu minhas flores? — O irlandês se jogou contra
mim, literalmente me abraçando.

— Niall?

— O quê? — Ele me olha com os braços ainda ao meu redor.

— Menos, okay? — Me desvencilho dele, indo até minha mesa, revirando as gavetas. Estão vazias
— Que porra! Quem mexeu nas minhas coisas?

— Hum, é, então... Foi o detetive Hemmings.

— Luke? Luke mexeu no meu escritório? Por que diabos ele fez isso?

Merda, não tem nada aqui. Procuro por minhas pastas, aquelas onde escrevi sobre Harry. Sumiram.

— Acho que ele estava procurando informações sobre o caso, ele tem estado bem... Envolvido em
tudo isso.

— Envolvido como?

Niall me encara, hesitante.

— Vamos, fale. — Digo, dando a volta na mesa e ficando diante dele.


— Eu não sei ao certo, desde a morte do… do Michael ele parece outra pessoa, ele não fala, às
vezes nos manda ir até lugares que não tem relação com a investigação e ele monopolizou todas as
provas dos últimos de Andrômeda e o Grimshaw não diz nada, ninguém diz nada. Talvez se você
falasse com o Nick, ele poderia reconsiderar colocá-lo de volta ao comando. — Niall sugere, todo
esperançoso. Sinto minha cabeça a mil, eu literalmente estou de pé graças a umas boas carreiras de
cocaína, não existe um universo onde eu esteja apto a exercer uma função de comando.

— Não. — Nego, dando um passo em falso e batendo com a mão nas persianas para reaver o
equilíbrio — Eu só preciso pegar uma coisa com o Luke, só isso.

— Ele não veio hoje.

— Tudo bem, sei onde ele mora.

— Quer que eu vá com o senhor?

— Não precisa, vai ser rápido. — Garanto, lhe dando um sorriso e me afastando, na esperança de
que ele não possa ver além do meu disfarce, que ele não perceba o quão fora de controle estou.
Entro no elevador e pela primeira vez, desde que Zayn me apresentou as drogas, eu os vejo, vejo
todos eles novamente.

Olá, meus velhos amigos.

xx

O apartamento que Luke alugou em Nova York ficava a poucas quadras da agência, um prédio
muito semelhante ao que viveu naqueles seus primeiros anos como recruta. De alguma forma me
faz pensar no quanto foi penoso chegar a onde chegamos e francamente, nada disso valeu a pena.
Nossas vidas poderiam ter sido muito diferentes se tivéssemos nos contentado em sermos simples
policiais, se eu tivesse seguido com meu sonho de ser delegado. Dado as costas a Quântico,
narcóticos, homicídios, ao FBI por inteiro, isso não era pra mim, jamais poderia ser. O que eu sou
jamais me permitiria ir tão longe e eu forcei todos os limites.

Esse era o preço da minha imprudência.

Surpreendentemente tenho passagem livre para o apartamento de Hemmings, as escadas íngremes


levam até o quarto andar de onde desponta a porta entreaberta com uma música alta retumbando
pelo corredor. Empurro a porta, a voz de Amy Winehouse ficando ainda mais alta.

Espero não estar atrapalhando, apenas preciso reaver minha pesquisa sobre Harry, apenas isso.
Adentro mais, a sua procura, achando bastante reprovável que um detetive deixe sua porta aberta,
ele se coloca desnecessariamente em uma posição de vulnerabilidade.

— Hemmings? — Chamo, mas o som se perde, sendo sobrepujado pela música que parece vir do
quarto.

Assim como a da frente, a porta do quarto está escancarada, estou prestes a avançar quando noto a
movimentação na cama. Luke está vivo, o que é bom, no entanto não podia ter vindo em pior hora.
Ele está acompanhado. O que é estranho já que eu o imaginava se afundando em tristeza e
autopiedade desde a morte de Clifford, mas ele não parece sofrer tanto assim, garrafas de vinho
vazias rolam pelo carpete cinza, assim como sua calça, jaqueta e arma, empilhados
desajeitadamente aos pés da poltrona onde roupas bem mais elegantes estão perfeitamente
dobradas, os detalhes das fivelas da bota de couro lustrosa quase me cegam quando algo dispara
em meu cérebro.
Os cabelos longos da pessoa abaixo de Hemmings cascateiam pelo box, não posso ver seu rosto,
mas os gemidos são como lixa em meus ouvidos. Arranhando meus tímpanos até não sobrar nada.

Eles invertem as posições e tenho um vislumbre do corpo nu de Luke, fios loiros desgrenhados que
rapidamente são envolvidos entre os dedos longos repletos de anéis. Malditos anéis. Maldita
aliança que me encara, debochando de mim, a lâmina em minha bota geme querendo ter serventia.
Agora ele está sentado em seu colo, e cavalgando como se sua vida dependesse disso, como se não
houvesse maior deleite e então Luke tomba para trás, tornando a deitar, as mãos apertando a
cintura tão conhecida por mim, coberta por um longo robe de seda rosé. Talvez estivesse numa das
muitas faturas pelas quais paguei. É adorável ver que eu paguei por algo que agora diverte Luke
Hemmings.

O tecido desliza por seu ombro leitoso e ele passa as mãos pelos cabelos, mordendo os lábios
quando ergue o rosto e nossos olhos se encontram. Divertimento dançando por suas íris.

Agora eu sei como é, agora eu posso experimentar o sentimento de ser traído, de encontrar o amor
da sua vida nos braços de outro e dói, dói como o inferno. É tão forte e dilacerante que mesmo
depois de Luke seguir os olhos de Harry e não demonstrar nada além de deboche ao me encontrar
ali.

— Agora estamos quites, seu merda. — Sibilou beijando o pescoço de Harry e sorrindo.

Não encontrei forças para reagir. Eu só quero sumir.

Dou as costas para os dois e saio apressado. Vozes demais na minha cabeça, falando sem parar,
imagens disformes tomando meus olhos e me fazendo tropeçar e esbarrar em tudo o que surge no
meu caminho. Meu coração dói como se tivesse uma faca alojada nele, espremendo com mais
força a cada fraca pulsação. Quero chorar, mas não tenho lágrimas. Não tenho nada.

— Louis… — Ouço o chamado e o peso puxando meu braço e reajo mecanicamente agarrando a
garganta de quem está as minhas costas, empurrando-o contra a parede. Harry resfolega com os
olhos enormes, segurando meus pulsos.

Eu o reconheço, vejo em seus olhos que ele é meu Harry, mas eu não sou seu Louis e o solto. Sinto
meu rosto molhado, estou chorando, assim como ele está aos meus pés, tentando me segurar
quando me afasto.

— Lou, espera! Eu não queria, eu não sei…. — Bato a porta com força às minhas costas, correndo
pelos degraus e indo para o carro sem olhar para trás, sem pensar nada.

Dirijo sem saber bem para onde estou indo. Então é isso? É resultado dessa possível doença? Ele
vai mentir, trair, enganar e manipular e eu vou ter que lidar com isso? Vou ter que aceitar ou ter de
ficar vinte e quatro horas por dia de olho nele? Eu não posso, não consigo lidar com isso. Sem um
destino ligo uma dúzia de vezes para o Dr. Pendergast tentando convencê-lo de que Harry pode
sim ter TDI, o que ele discorda completamente já que jamais encontrou indícios disso e ele integra
o grupo de descrentes quanto ao transtorno.

Se nem um profissional vê cabimento nisso, o que eu posso fazer?

Em algum ponto do início da tarde Ashton retorna a minha ligação e pede para que nos
encontremos em um clube no centro da cidade onde poderemos conversar com mais segurança.
Faço como ele me pede e dirijo imediatamente até lá, sentando no bar e esperando por horas a fio,
sem qualquer resposta dele.
Com o cair da noite o clube foi enchendo. Corpos se espremendo por toda a parte e a luz baixa com
toques de neon por toda a parte, a música alta fazendo o teor com a minha cabeça latejante. Tive de
dar inúmeros foras e recusar pedidos para pagarem minha bebida, quando meu copo tornou a ficar
vazio pedi uma garrafa e alguém se prontificou em jogar o costumeiro:

— Essa é por minha conta.

Virei no banco com uma expressão enfezada, mas minha resposta caiu por terra quando encontrei
Harry ao meu lado, os cotovelos apoiados sobre a bancada e um sorrisinho malicioso dançando em
seus lábios vermelhos.

— O que você faz aqui? — Digo, mais fraco do que gostaria. Sinto meus olhos marejarem só de
olhar para ele.

— Estamos juntos há doze anos e você nunca me trouxe em um lugar como esse. — Comenta
casualmente, movendo o rosto para observar todo o lugar. Ele veste uma camisa de botões e manga
curta com estampas de flamingos, é escura, assim como seu skinny jeans, há apenas o leve relevo
de sua barriga e finalmente entendo o que Michael sobre tentarmos consertar as coisas tendo filhos.
Eu concordo com ele. E sinto pela pobre Leslie.

— Não lamente, você poderia ter me drogado e me trazido como um boneco de pano, sei que não
viu problema algum em fazer isso no casamento ou talvez bastasse chamar o Luke, ou seja lá com
quem você anda transando. — Retruco, virando uma grande dose de vodka no meu copo. Harry
volta a olhar para mim, não há afetação ou remorso, ele não poderia estar mais brando e amigável.

Quem é você?

— Você não devia se apegar tanto ao passado, se eu fosse pontuar tudo o que você fez- — Bato
com o punho sobre a bancada e ele se cala.

— Eu sei o que eu fiz e sei o que você fez.

— Não, você não sabe de nada. — Ele nega, sorrindo — Se você tivesse a mais leve noção não
estaríamos aqui. Vi que você acabou com o que restava do seu estoque de cocaína em casa, pensei
que tinha tido que havia parado com isso.

— Bom, ainda bem que não parei, senão estaria vegetando no quarto até agora.

— Eu estava cuidando de você.

— Não, você estava me tirando do caminho. — Faço menção de pegar uma nova dose e ele age
antes de mim, enchendo o meu copo e fazendo o mesmo com o seu — Vai beber?

— E você se importa? — Se inclina, tentando me beijar e eu viro o rosto, tomando uma longa
respiração e pego meu copo, virando todo o líquido de uma vez. Ele faz o mesmo e levanta —
Então, adeus!

Harry some entre a multidão na pista de dança e permaneço no bar. Ashton não veio, ele não vai
vir, Harry tirou dele a onde eu estaria. Será que Ash está bem? É melhor eu tentar ligar para ele.

Tiro o celular e sem mais o derrubo e não consigo pensar em uma forma de pegar. Simplesmente
sou incapaz de associar o simples ato de abaixar e pegar o telefone. Ergo o rosto e a sensação é
inconfundível, a forma como as luzes, cores e formas parecem se fundir e raciocinar parece fora de
questão. Me arrasto pelo balcão até as portas do banheiro e agarro os lados da pia, aproximando
bem o rosto do espelho e puta merda, minhas pupilas não deviam estar assim, a menos que…
Ele me drogou. De novo.

Enfurecido volto ao salão, todo aquele frenesi me deixa doente e ao mesmo tempo excitado.
Empurro as pilhas de corpos sem rostos para fora do meu caminho, procurando por ele, mal
consigo associar as imagens então me fixo na única coisa marcante. Flamingos. Isso, flamingos
vermelhos em um fundo azul, ele deve ser o único usando uma camisa assim.

Com isso em mente, mantendo os olhos quase fechados porque a pista está girando, me assusto
quando encontro as figuras que tanto mentalizei, puxo-o para mim e com ela vem um corpo forte
que se choca contra meu peito.

— Oh, é você. — Harry suspira, segurando meu braço ao redor de sua cintura — Como se sente?

— Que merda você colocou na minha bebida? — Rosno em sua orelha, os cachos caindo em meu
rosto quando ele balança a cabeça no ritmo da música — Harry!

Ele continua me ignorando e não só isso, mas começa a se apertar contra mim, dançando e
rebolando como se não fosse uma víbora. Reviro os olhos, exausto de seus joguinhos, olho para
cima, o mezanino. Já estive aqui antes, meses depois que o prendi, eu estava exatamente nesse
lugar quando Luke gritou por mim e olhei para cima e o encontrei apoiado no peitoril, ele tinha
tantos cachinhos e imensos olhos assustados. O que teria acontecido se eu não tivesse te chamado?
Se não me oferecesse para pagar sua bebida? Se não tivesse dançado com você nesta mesma pista
de dança? Onde nós dois estaríamos?

— Baby? O que foi? — Ele deita a cabeça no meu ombro, brincando com o decote da camisa.

— Eu preciso de ar. — O solto e me afasto, vagueando até encontrar a pesada porta de metal que
dá para um beco aos fundos. Está frio, o presságio do inferno flutuando e o novo ranger da porta às
minhas costas quando Harry chega.

— Por que não paramos com esse joguinho de gato e rato e vamos direto ao ponto?

De repente, sou tomado por um furor quase efervescente, que transborda dentro de mim e quando
percebo já o tenho em meus braços, pressionando-o na parede de tijolos, suas pernas longas ao
meu redor e minha boca sugando hematomas por seu pescoço e peito. Alguns botões caem no chão
e sua camisa inteiramente aberta me leva a morder seu mamilo sem cerimônias, enquanto ele geme
alto e sem pudor. Ele empurra os quadris para trás, arrastando a bunda por meu membro coberto, o
equilíbrio com uma única mão e puxo minha calça o suficiente para alcançar meu pau, algumas
bombeadas bastam para espalhar o pré-gozo e ele está gemendo e ronronando o tempo todo,
ansioso e desesperado, arranhando minha nuca.

Paro a um instante de nos unir.

— Sugar? — Indago e ele me olha por debaixo das mechas que caem sobre seu rosto, uma
expressão tão inegavelmente safada.

— Sim, baby? — Ofega, mordendo os lábios e firmando com mais força as pernas ao meu redor,
acabando com qualquer possível distância entre nós — Vamos, amor, por favor, me coma, por
favor, eu preciso tanto do seu pau, eu quero tanto sentir você me preenchendo.

Aproximo nossos rosto, roçando nossos lábios ao perguntar:

— Mais do que você quis o Luke?

Ele explode em uma risada.


— Luke Hemmings? Não me faça rir, eu nunca perderia meu tempo com um homenzinho ridículo
como aquele, mas não se preocupe, amor. A vadiazinha será definitivamente punida.

— Então, não era você a tal “vadiazinha”?

— Claro que não. Eu nunca teria uma foda tão entediante. Agora, vamos deixar os dois imbecis
para trás e aproveitar antes que alguém chegue, isso seria tão embaraçoso, não acha? — Suas mãos
correm por meus cabelos, pincelo sua entrada vagarosamente o sentindo estremecer.

— Mesmo que não nos vejam, eles vão nos ouvir. — Sussurro, me afundando nele de uma só vez e
é impossível que seu grito não tenha ecoado até o outro lado da cidade.

— Oh, mais, mais, mais…!

Eu devia estar muito fora de mim para não compreender o quão péssima era a ideia de transar com
ele depois de tudo que vi, depois de tudo que passamos. Mas sou um fodido refém de seus
encantos, então me entorpeço completamente nele, sentindo seu interior apertado me sufocando,
em seus gemidos angustiados me instigam a estocar com mais força, no quão lindo ele fica sendo
solavancado para cima e precisando se agarrar em mim, em como sou sua única âncora e como
essa merda continua absurdamente incrível mesmo depois de doze anos.

E mesmo com um turbilhão de nuvens e pontos escuros pela minha mente continuei segurando
suas coxas fartas e o acertando incessantemente naquele ponto que o fazia gritar e se apertar até
não ser mais capaz de se segurar e vir de uma vez, sendo acompanhado por mim que me derramei
em seu interior. Nos encontramos em um beijo desajeitado, com seus cabelos úmidos se
embrenhando em meus dedos e nada foi dito, nós apenas demos as minhas mãos e ele me puxou
até o carro, onde nos jogamos no banco de trás e fodemos mais uma vez.

Em algum ponto da noite conseguimos chegar em casa, minha única certeza é que eu não havia
sido o motorista porque lembro de estar nos masturbando o caminho todo e quando entramos pela
porta ele estava no meu colo e minha camisa caiu em algum lugar da sala, cambaleei sem destino
até que caímos em seu ateliê. Era um lugar que eu raramente entrava, mas agora parecia incrível
simplesmente empurrar todos aqueles pincéis e potes de tinta seca para fora da mesa manchada e
trepar com ele ali mesmo e foi o que fizemos.

Mas quando me perdia em foder ele no ritmo constante de nossos quadris uma sombra surgiu na
porta, os cabelos armados e a camisa com estampa de alguma banda de rock denunciavam a
presença de Ashton mesmo no escuro. Ele gesticulou e soprou o que eu entendi como um: “que
merda você está fazendo?” Do que ele está falando? Então ele tornou a gesticular, oito dedos
levantados e apontando para Harry. Oito Harry 's?

— Lou, mais forte! — Gemeu apertando os mamilos e eu gesticulei para que Ashton desse o fora.

Amanhã tento entender o que ele estava querendo dizer com isso, essa noite nada faz sentido.

Xx

Acordo assustado e fico praticamente em pânico quando percebo que estou de volta aquele quarto,
ao menos não estou na cama, o que minha coluna faz questão de denunciar depois de uma noite
dolorosa sobre o carpete. Estou nu e cheio de marcas pelo peito e pescoço, há uma ardência em
particular na minha nuca e quando toco sinto os resquícios de sangue. A memória da noite passada
vem como um punho poderoso bem na minha cara.

Porra.
Está feito, sendo assim vou atrás de me recompor, escovando, tomando um banho e fazendo a
barba porque tenho parecido um louco que fugiu do hospício. Assim que cruzo o corredor sinto o
cheiro delicioso de café da manhã e meu estômago revira, café preto parece o único tolerável.

Harry está andando de um lado para o outro, pondo a mesa. Suco, café, frutas, panquecas, bacon,
ovos mexidos e torradas. A rosa vermelha está pendendo para a esquerda, solitário em seu vaso de
cristal. Tento ajeitar seu caule, enquanto me sirvo de uma xícara de café, assim que me vê Harry
larga a frigideira, o avental e vem até mim, seus braços cobertos pela manga do suéter são suaves
ao redor de minha cintura e a bochecha se aperta justamente onde minhas costas reclamam pela
noite mal dormida.

— Bom dia, moon. — Diz com uma voz meiga.

Dou um único gole no café, ele está amargo demais para o meu gosto, ou talvez eu seja o amargo
aqui.

— Harold.

Ele me solta, me fazendo virar para ele.

— Harold? O que houve com o “sun”?

— Eu não vou usar mais nenhum apelido carinhoso com você, eu pensei bem e cheguei a
resolução mais lógica para tudo isso. Quero o divórcio, então irei dar entrada em tudo ainda hoje,
você pode ficar com tudo, casa, carro, é seu. Minha única exigência é ficar com as crianças e claro,
Sonny, Mona e Shae.

— Quê? — Pisca confuso — Isso é alguma pegadinha? É primeiro de abril? — Ele checa o
calendário na geladeira.

— É dezembro e eu quero o divórcio. Isso não funciona mais, é impossível e doentio, talvez você
esteja doente e eu não posso te ajudar, te darei todo o apoio do mundo, mas esse relacionamento
precisa de um ponto final. Eu vou providenciar as passagens, pensei em ficar um tempo em
Minnesota na casa dos meus avós, tem ótimas escolas para os meninos, há uma firma de advocacia
que está contratando e ficaremos bem.

— Minnesota? Que porra, Louis! — Grita, ficando alterado — Você não vai pra Minnesota, não
vai levar os meninos para longe de mim.

Dou de ombros, indo até a sala e pegando minha chave.

— Sim, eu vou e espero que não tente me atrapalhar. — Digo decidido, observando as lágrimas
deslizarem por seu rosto, um cacho escapando de seu coque. Não sinto o menor ímpeto de arrumar
— E quando a Leslie nascer, eu também ficarei com a guarda dela. — Ele balança a cabeça, em
negação, mas não tenta brigar ou reagir, somente cai sentado em um dos degraus da escada, a
cabeça entre as mãos, chorando silenciosamente.

Sabemos que será melhor assim.

E se antes eu sofria pela memória de qual teria o meu último dia dito como normal, bem, agora eu
sei qual é o dia exato em que meu mundo veio abaixo e ele teve ínicio no instante que pisei no
escritório do FBI e centenas de repórteres e câmeras vieram direto em minha direção, microfones e
perguntas gritadas e desesperadas. Populares com cartazes marchando ao redor do prédio, a pulso
consegui chegar até o hall de entrada onde não podiam mais me importunar.
Foi apenas quando saí do elevador que entendi.

Agora eram agentes me cercando e falando um em cima do outro.

Luke surge, batendo palmas, altivo como sempre e sorridente.

— Como se sente agora que o mundo todo sabe que você é uma merda de detetive?

Não tenho paciência para suas gracinhas, tento passar por ele, mas ele passa o braço por meu
ombro e me conduz em outra direção.

— Desta vez nós temos correntes, temos facas, muito DNA e até a porra de quadros cheio de
sangue e pedaços diluídos das vitimas. Nós temos Andrômeda.

— Do que está falando?

Paramos diante da sala de interrogatório e ele aponta para a pessoa do outro lado do vidro que anda
nervosamente de um lado para o outro, com as mãos algemadas e um olhar definitivamente
assassino ao que me vê, exceto que:

— Isso não é hora para piadinhas. Tire-a daí. — Faço menção de chegar até a porta, mas uma
pequena equipe da SWAT se interpõe entre ela.

— Não é piada, é a verdade. Nós temos nossa culpada, nossa assassina, a serial killer mais
procurada de Nova York é nada mais, nada menos que a Srta. Gemma Styles.

Que abram as cortinas, está na hora do terceiro e último ato.


│23│pegasus

O único paraíso para o qual serei enviado


É quando estou sozinho com você
Eu nasci doente, mas eu amo isso
Take Me To Church - Hozier

...

— Isso não tem a menor graça. — É a primeira coisa que Gemma diz ao me ver entrando na sala
depois de muito argumentar com Hemmings, já que claramente não deveríamos ter nenhum
contato uma vez que somos da mesma família.

— Certo. Eu preciso que você se mantenha calma. — Digo apaziguador, indicando que ela se sente
na cadeira. Ela nega, erguendo os pulsos algemados.

— Tira essa merda de mim!

Olho em direção a Luke que segue com os braços cruzados e negando com a cabeça.

— Eu não posso. — Suas sobrancelhas se unem em desentendimento — Você agrediu dois


policiais, um deles está com o supercílio sangrando até agora.

— Ele me agarrou.

— Ele te deteve.

— Tanto faz. A questão é, eu não fiz nada e me jogaram nesse lugar e estão me tratando como uma
criminosa.

Ao que parece ela ainda não tinha noção da gravidade de sua acusação.

— Gem... — Torno a sinalizar a mesa de ferro e a contragosto ela segue, sentando quando puxo a
cadeira, o impacto do metal das algemas retumbando ao cair sobre a mesa. Puxo a cadeira diante
dela — Certo. Você foi detida como suspeita de ser Andrômeda.

— Andrômeda, eu?

— Exatamente.

— Só pode ser piada. — Balança a cabeça descrente.

— Muita coisa foi encontrada no armazém ao lado da casa da sua mãe. Objetos que são provas
circunstanciais dos crimes, troféus que foram recolhidos e nunca divulgados à imprensa, como uma
garantia de que apenas o criminoso as teria. E encontramos chamadas entre você e Aaron Johnson
que tinha uma ligação direta com Andrômeda, vocês se falaram antes dele morrer.

Ela suspira, apertando os lábios.

— Éramos velhos conhecidos, o que isso tem demais?

— Ser a última pessoa a ter contato com alguém que veio a óbito te coloca em uma posição muito
delicada.
— Mas você não disse que essa Andrômeda foi atrás de você? — Diz com a respiração engatando,
sua pouca paciência se esvaindo — Que te deu uma surra? Olha pra mim! Você acha que eu
consigo dar uma surra em alguém? Que eu consigo içar um cara de 120 quilos no ar com uma
corrente ou, sei lá, render uma família de três pessoas? Você sabe que não. Eu nunca conseguiria
fazer nada disso, não tem cabimento, eu sou fisicamente incapaz de qualquer uma dessas coisas.

Desvio o olhar antes de dizer o que Luke me passou.

— É por isso que você foi colocada como idealizadora e tem um parceiro, alguém que te ajuda.

— Oh, eu tenho um parceiro agora? — Ela ri secamente — Hoje de manhã o meu maior dilema
era escolher de que lado deixar a franja e agora eu sou um gênio do mal, meus ícones femininos
são Lizzie Halliday e Mary Ann Cotton, em Julliard eu passava meu tempo livre desossando gatos
e cachorros que passavam pelo Campus. Agora tudo faz sentido.

Eu ainda tentava raciocinar em como isso tudo foi respingar em Gemma, em como tudo aquilo
tinha sido direcionado para ela, eram provas demais, evidências demais. Muito mais do que com o
casal, aqueles dois eram tão ridiculamente óbvios, mas ela era fora de suspeitas e seu QI elevado a
colocava facilmente como uma perfeita idealizadora, lhe faltava força física, mas nunca
inteligência. E quem quer que fosse a pessoa que a colocou como alvo contava com um ponto
fraquíssimo de Gemma.

Os ruídos do outro lado eram evidentes. Haviam mais pessoas do que o aconselhável nos
observando e ela podia ouvi-los claramente, os risinhos e conversas sarcásticas sobre a "perneta
mal amada destruindo famílias inocentes", assisti suas narinas inflamando e as veias salientes em
seu pescoço. Me inclinei segurando sua mão.

— Você não pode ficar nervosa agora.

Ela me deu um olhar sombrio. Semelhante ao que Harry me dera daquela vez no corredor, quando
sua alma parecia distante.

— Eu não estou nervosa. — Ela rosnou se levantando e sem mais jogando a cadeira contra o vidro,
não foi o suficiente para quebrar, mas assustou quem nos assistia e principalmente enfureceu
Hemmings que mandou a SWAT entrar na sala, antes disso Gemma me agarrou como pode pela
lapela da jaqueta — Os quadros, tinha alguma coisa com os quadros?

— E-Eles encontraram DNA, sangue por debaixo da tinta. — Disse rapidamente, vendo os homens
empurrando a porta e vindo em sua direção, ao menos uns quatro a puxaram para longe de mim.

— Foi ele, Louis. Você sabe que foi ele. — Gritou e vi a sombra de Luke sinalizando algo e logo
um dos homens tapou a boca dela, arrastando-a para fora.

Foi ele.

Luke e Aaron. De repente, nada mais parece ao acaso, um grande quebra cabeças está sendo
montado e todas as peças se encaixam.

— [...] Harry não te falou? Que estranho! Bom, ele está me ajudando. Tenho algumas pinturas
mais antigas que precisavam de uns retoques nas cores e ele se ofereceu para fazer isso. Achei até
um pouco suspeito, ele nunca quis retocar um quadro meu. O que será que ele está planejando?

— O amor pode ser uma desgraça em momentos assim, porque ele é capaz de colocar camadas de
pele sobre seus olhos para impedir que você veja aquilo que está claro.
— [...] Você não é e nunca foi feliz ao lado de Harry, pode se enganar o quanto quiser, mas vocês
dois juntos nunca foi uma coisa boa... Ele não é uma coisa boa.

— [...] Ele precisa que você cuide dele, que o mantenha aqui, conosco.

— Por que eu tenho um plano e não quero que me atrapalhe.

— Harry, você é Andrômeda?

Ah, meu Deus.

Xx

Bato a porta do carro e Anne olha sobre o ombro, o queixo raspando sobre o casaco grosso de
inverno, o vento intenso sopra no topo de seu jardim de onde observa a equipe de investigação
recolhendo evidências de dentro do galpão. Fico ao seu lado, apenas o zumbido do ar a nossa volta.

Solto um suspiro cansado e sou o primeiro a falar:

— Foi fácil? Escolher o filho que iria para o abate?

Anne baixa os olhos, não parecendo surpresa. Os cabelos escuros sendo soprados contra seu rosto
me impossibilita de discernir sua expressão. Mas sei que ela está tão exausta quanto eu.

— Não é como se eu tivesse tido alguma escolha. — Responde em tom brando — Sabe, os pais
costumam mentir para os filhos, falar que não existe um preferido, mas não é verdade. Nós sempre
preferimos algo ou alguém, um filho terá um pai preferido, um irmão terá um outro irmão
predileto, faz parte. Harry sempre preferiu Eve a qualquer um dos outros, Spencer sempre o
preferiu invés de você e sei que você é o queridinho da sua mãe...

— E Harry é o seu preferido, entendi.

— Ele não é meu preferido. — Diz firme, erguendo o rosto para voltar a encarar a movimentação
— Às vezes gostamos mais de alguém por se parecer conosco, mas se não gostamos de nós
mesmos não vamos gostar de quem expõe o que temos de pior. Eu nunca suportei o quão parecida
comigo a Gemma era, principalmente com a minha versão jovem e estúpida, ela melhorou
bastante, mas sua imprudência sempre pesou contra o nosso relacionamento e então veio Harry e
eu pensei que ele poderia ser o meu menino, aquele a quem eu seria devota, mas ele veio igual ao
pai, a cópia exata e eu odiava Desmond, um homem fraco e tedioso e Harry era idêntico. — Ela
não parece orgulhosa ao admitir aquilo — Eu queria escapar daquilo, porém meus pais jamais
apoiariam que eu estivesse abrindo mão de um bom casamento com um homem com tantos bens e
principalmente depois de dois filhos, acho que o desespero falou mais alto e tive aquela maldita
ideia que nos colocou nessa situação.

— O que você fez?

— Eu dei ao Harry um trauma e depois deixei que muitos outros acontecessem. Pensava que ele
era só uma criança, iria crescer e esquecer, mas não foi o que aconteceu. Sabia desde o início, cada
coisa ruim e assustadora que acontecia ao seu redor, eles causavam isso, mas o que eu podia fazer?
Eu encontrei nos meus netos todo o amor que pensava ser incapaz de dar. Só queria que eles
fossem felizes, que estivessem bem, porém nunca me deixaram esquecer do meu erro e os usaram
contra mim, foram tantos psicólogos que precisaram ser silenciados, tanta sujeira varrida para
debaixo do tapete e se eu ameaçasse não cooperar ou te dizer algo, Eve casualmente caia do
balanço ou Spencer estava acamado com uma bactéria misteriosa.
— Está dizendo que ele te ameaçava usando as crianças?

Ela assente, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.

— Claro que quando nos desentendemos mais seriamente ele precisou agir de uma maneira mais
incisiva e veio o acidente de Gemma.

Engulo em seco, tentando assimilar.

— Quer dizer que...?

— Sim. Amar demais os meus netos me fez acoberta-lo e ajuda-lo e agora minha filha está na
cadeia e a culpa é minha.

Eu não posso assimilar que a pessoa da qual estamos falando é Harry, quer dizer é e não é. Esse
alguém tem o seu rosto, corpo e voz, mas ao mesmo tempo não é ele.

— O que acha que ele está planejando?

Ela dá de ombros, ajeitando a bolsa.

— Não sei, apenas espero que você aja rápido e pegue aquelas crianças e as leve o mais longe
possível, troque seus nomes e recomece. É a única forma de escapar.

Quando ela faz menção de se afastar a seguro pelo braço.

— Anne se tudo o que está dizendo tem cabimento, se... Se for ele o verdadeiro assassino você
precisa testemunhar, precisamos provar que-

— Você vai fazer isso mesmo? Vai conseguir colocá-lo atrás das grades? Você consegue não estar
do lado?

Eu consigo... Eu acho.

Mas a resposta não consegue escapar por meus lábios e minha sogra sorri, como se já esperasse por
isso.

— Nunca mais falarei sobre isso, deste dia até o meu último eu seguirei dizendo que ele é
inocente. Porque ele de fato é. — Acaricia meus dedos, antes de afastá-los de seu casaco — Agora
preciso ir ver minha filha, antes que a mandem para a cadeira elétrica.

Anne se afasta e seja lá qual a razão, resolvo corrigi-la.

— Ela provavelmente receberá uma injeção letal.

— Oh, obrigada por esclarecer, querido. — Escuto seu passos se distanciando.

As nuvens escuras pairam sobre mim, pesadas e sombrias e então transbordam, a chuva fria cai
sobre a minha pele, o céu brilhando com raios, nunca houve dia mais melancólico em toda a minha
vida.

Harry você...

O celular em meu bolso vibra, checo a mensagem. É de Ashton.

Venha para casa imediatamente. Acho que descobri algo muito sério!!!
Aquilo me deixa em estado de alerta e corro até o carro, pisando no acelerador. No meio do
caminho surge uma nova mensagem.

Ele tinha se mantido calmo desde que cheguei, mas hoje as coisas saíram do controle. Louis acho
que você tinha razão.

Saiu do controle como? Respondo perguntando sobre as crianças. A falta de uma resposta me deixa
mais angustiado e me leva a infringir mais de três regras de trânsito. Os pneus derrapam na pista
quando acelero ainda mais para fugir do guarda de trânsito.

Louis... Eles não acordam.

Por um triz não bato em um caminhão, assim que o automóvel atravessa. Se ele tiver ferido os
meninos eu o mato, eu juro por Deus que eu o mato.

Poucas quadras de chegar em casa me deparo com um engarrafamento. Com meu carro de civil e
sem sirenes fica impossível conseguir um atalho, então simplesmente abro a porta e deixo o carro
para trás, correndo entre os carros sob a chuva torrencial até arrebentar o portãozinho da cerca e
abrir a porta da frente. O primeiro andar está em silêncio, tudo apagado, janelas fechadas.

As tigelas de ração estão viradas, o leite da tigelinha da filhote se espalhando pelo chão da cozinha.
Sigo até a entrada do banheiro do térreo, estou entrando em pânico ao pensar em Sonny morto.

Entro no banheiro, na banheira atrás das cortinas encontro Mona e Shae desacordadas, as toco
sentindo que ainda há pulsação. Elas foram dopadas.

Ouço um choramingo do andar de cima, resistindo a urgência de subir com a arma em punho.

Ainda não. Ainda não.

Subo os degraus de dois em dois. A porta do quarto dos meninos está escancarada, nenhum sinal
deles. Torno a ouvir o choramingo e o som de patas arranhando a porta, vem do quarto de
Evangeline, vou até ele, empurrando a porta e Sonny me recebe mostrando os dentes, está em seu
modo protetor.

— Calma, sou só eu. — Digo tentando tranquiliza-lo e ele amansa, e se vira indo para o outro lado
do quarto, arrastando a pata traseira de onde um furo jorra sangue e traça um caminho vermelho
conforme se move dolorosamente.

Apanho um lenço indo atrás dele afim de fazer um torniquete para estancar o sangramento.

Harry deu a porra de um tiro no nosso cachorro.

Por falar em Harry, onde ele estará?

E as crianças?

E Ashton?

Sonny morde a ponta de um colcha e exibe o que estava escondido sob a cabaninha improvisada,
Spencer e Blake usam o uniforme da escolinha, estão deitados bem próximos no tapete felpudo ao
lado da cama, fico de joelhos, procurando por quaisquer ferimentos ou por um furo semelhante ao
de Sonny. Nada, assim como as gatas eles estão apenas dormindo.

O sangue no dorso da mão de Blake é de Sonny, ele empurra o focinho contra o peito dele,
tentando acordá-lo.

— Tudo bem, Sonny. Eles já já vão acordar. — Vou falando, acariciando seu peito e deixando que
ele se aninhe em meu colo, enquanto envolvo o tecido em seu ferimento. Ele está cansado e
rapidamente se aconchega ao lado dos meninos, puxo o cobertor sobre os três, me afastando
silenciosamente.

A melhor alternativa é neutralizar Harry primeiro, se foi ele mesmo quem me enfrentou daquela
vez no estacionamento não existe forma de bater de frente com ele trazendo Blake, Spencer e
Sonny comigo. Ao menos por enquanto ele não os vê como um alvo.

Eu devia ligar para a polícia, devia ligar para alguém...

"— Você consegue não estar ao lado dele?"

Merda! Entro em nossa suíte e nada dele.

Os lençóis estão cobertos de sangue. Mais sangue do que um ser humano é capaz de perder,
caminho até o centro, tocando-o, está fresco.

O celular apita. Uma nova mensagem.

Louis, você não veio rápido o suficiente.

Plink, plink, tem algo gotejando as minhas costas.

Preciso me virar, mas eu não quero.

Vamos, Louis, não é hora de ser covarde. Não é hora de ter medo.

Sem pensar mais, me viro e sigo até a fonte do barulho, mantendo os olhos baixos. Interrompo o
passo antes de entrar no banheiro, o piso está coberto de plasma, uma imensa poça cintilante, ergo
os olhos reconhecendo os coturnos, a skinny jeans rasgada, em frente ao seu cinto estão os pedaços
de pele dilacerados de seu tronco, órgãos escapando para fora dele, pendendo como seu corpo
mutilado, a cabeça tombada para frente, as espirais douradas de seus cabelos se enrolando no metal
lustroso da corrente grossa ao redor de seu pescoço que o mantém suspenso no ar.

Ashton está morto. Morto como todas as vítimas de Andrômeda.

Isso não aconteceu no tempo em que estive a caminho, não daria tempo. Então, ele não me mandou
nenhuma dessas mensagens, solto o celular no chão quando sinto algo passar acima da minha
cabeça e circundar meu pescoço, tento reagir, virando e lutando, mas o metal frio se aperta em
minha garganta, um corpo grande e forte cai sobre mim, roupas pretas e a mesma máscara de ferro.

Andrômeda.

Me enforca com mais força do que posso resistir, mesmo que eu me esforce para romper com o
aperto uma corrente é demais.

Ele não tem hesitação, montando sobre mim e apertando com mais força, meus dedos tremem e o
ar simplesmente desaparece, meus olhos viram para trás e tudo está escurecendo, a sensação é de
que ele quer me decapitar com aquela merda e está perto. Perto demais. Desta vez eu consigo
enxergar através da máscara, encontrar o verde de seus olhos.

Por mais forte que seja ele é só uma pessoa.


E pessoas sangram.

Desisto de resistir, ele não recua e investe com mais força e essa brevíssima desatenção serve para
que eu dobre rapidamente a perna e alcance minha faca na bota e a crave em seu quadril e então a
giro. Ele urra por debaixo do metal e suas mãos vacilam para tentar puxar a faca, e este é o
momento ideal para que eu reaja, me movendo para rendê-lo no chão, Harry cai e jogo a máscara
para longe, para encarar seu rosto, para que minha arma toque sua testa quando miro nela.

Meu dedo titubeia no gatilho.

Nos encaramos sem impedimentos.

Então é isso, é assim que acaba?

Meus olhos ardem, mas não me permito chorar, não tenho tempo pra isso.

Ao contrário de mim, uma lágrima desliza pelo olho direito de Harry e como se estivesse estado
inconsciente por todo esse tempo, ele desperta. Como se houvesse sido injetado com alguma droga
que o torna frenético, Harry solavanca abaixo de mim, os olhos arregalados.

— L-Louis, o q-que está fazendo? O que é i-isso? — Grita, tentando engatinhar para trás, para
fugir da arma, mas a noção de seu ferimento também o abate e ele geme, olhando para baixo e
vendo o sangue se acumular ao seu redor — Ah! Merda, isso dói, o que...? É uma faca? Por que
tem uma faca em mim? Aí. — Ele se contorce em agonia, os olhos nervosos olhando ao redor e ele
enxerga sobre o ombro sua obra — Meu Deus! Meu deus! Meu deus! Ash...! Louis...

Aperto os olhos com força porque essa merda é demais para mim e empurro o joelho, levando a
faca mais fundo em seu quadril e Harry torna a gritar e desaba enfraquecido de volta no chão,
ofegando e chorando enquanto sustento a minha mira sobre ele.

— Você não vai conseguir se safar dessa. E-Eu não vou deixar que você me manipule.

— Louis, e-eu não entendo. — Choraminga.

— Você — Empurro o cano frio contra seu queixo, obrigando-o a olhar para onde o corpo de
Ashton apodrece suspendido — fez isso. Você fez tudo isso, seu assassino maldito.

— N-Não! Eu não fiz nada! Eu não sou um assassino! Para com isso! Para... — Seu rosto fica
vermelho e ele parece estar tendo um ataque de asma, misturado com pânico e histéria. Eu já vi
isso antes. Ele agiu da mesma forma quando me flagrou com Michael, quando viu a reportagem
sobre aquela mãe e seu bebê, quando o confrontei no corredor, isso é... Isso é Harry não suportando
algo e dando o controle para outra identidade, ele vai embora.

Eu não posso deixá-lo ir.

— Harry, Harry, olha. — Mostro a arma e a jogo para longe, e tomo seu rosto entre as mãos —
Você tem que ficar aqui comigo, fica comigo, não tente escapar, okay? Você é forte, não precisa
fugir, você consegue, apenas ouça a minha voz, olhe pra mim, estou bem aqui. — Peço,
observando como sua respiração desacelera lentamente e seus olhos voltam a focar em algo, em
mim — Fica comigo.

— Lou... — Murmura, como se estivesse me reconhecendo — dor.

Os olhos de Harry se fecham e ele amolece, puta merda, ele definitivamente não pode desmaiar.
Tomo-o em meus braços, um grunhido de dor escapa de seus lábios quando meu corpo atrita com a
o punho da faca, mas soa ainda mais dolorido quando o coloco sobre a cama e seguro seu quadril,
começando a remover a faca.

— Ah, porra! Eu preciso de um médico, o que está fazendo? Não pode mexer nisso. — Ele tenta se
arrastar para longe, mas o firmo no mesmo lugar.

— Você não vai a médico nenhum. Eu vou tirar isso de você agora.

— Não, não, não... — Repete relutante, porém não serve de nada. Com cuidado, vou puxando a
lâmina e por mais que Harry trinque os dentes, isso não impede que seus grunhidos de dor ecoem
em alto e bom som — Você fez isso comigo?

Talvez esse seja o momento para conversar, já que não sei quanto tempo terei com ele até que
outro assuma seu lugar.

— Sim, você quase me matou, tive de reagir.

— Eu não entendo. — Ele está voltando a quase desfalecer contra a cabeceira, então uso uma das
mãos livres para segurar seu queixo.

— Você está doente. Você tem uma doença e acho que você tem convivido com ela desde que era
criança.

Harry reage um pouco, me olhando com atenção.

— Doença? Que doença?

— Se chama TDI, transtorno dissociativo de identidade, é como se a sua mente tivesse se


repartido, entende? Ela foi se dividindo e criou essas outras identidades.

— Outros eu's?

— Eu não diria isso, eles não se parecem em nada com você, Harry. — Estou quase, apenas mais
um puxão.

— Eles? Quantos são?

Penso em Ashton, em seus oito dedos levantados apontando para Harry.

— Oito. — Digo, no mesmo instante em que puxo, a o fluxo de sangue vem imediatamente e Harry
se agita, tanto pela informação quanto pelo sangue. Mas já trouxe a caixa de primeiros socorros
militares sobre o meu colo e estanco parte da ferida ao mesmo tempo que começo a limpar —
Você precisa ficar o mais quieto possível.

— Eu vou sangrar até a morte.

— Você não vai sangrar. Eu vou suturar a ferida.

— Não...

— Harry, eles se aproveitam do seu medo para dominarem. Por mais assustado que esteja agora,
você deve se manter presente. Precisa focar na dor, ela vai te aterrar. Certo?

— C-Certo. — Diz incerto, fungando ao me assistir aproximar a agulha de sua pele — Merda! —
Ofega no primeiro contato.
Fiz isso tantas vezes comigo mesmo que era estranho ver alguém se contorcendo e sentindo tanta
dor ao que para mim não passavam de leves picadas.

— Você vai ficar bem, sei exatamente onde acertar sem provocar hemorragia interna ou atingir um
órgão, apenas dói e está sangrando tanto pela sua agitação, mas já está diminuindo, vê? Agora,
preciso que me escute. Essas personalidades, cada uma delas tem um jeito próprio, elas tem
gêneros, idades e visões distintas, pelo que descobri elas vão surgindo de traumas. Traumas
severos que você não soube administrar, então, você precisa me dizer quais foram eles.

Harry nega com a cabeça, os dedos apertando o lençol.

— Eu não tenho traumas.

Interrompo o próximo ponto, quase solto uma risada irônica. Santo Deus.

— Você tem. E tem de se lembrar deles. Vamos, Harry.

Ele balança a cabeça, relutante em tentar, mas sua mente não deve estar seguindo as ordens de seu
corpo e sei que ele conseguiu o vestigio de uma lembrança.

— Tinha uma xícara. Uma xícara para o meu pai, ele estava com um livro no colo, sentado na
poltrona...

Me movo devagar, não querendo que ele se perca.

— Eu dei o chá pra ele e ele começou a passar mal, foi... Foi horrível, parecia que ele sentia tanta
dor e a aparência dele foi ficando estranha e aí alguém gritou e disse que-que eu fiz aquilo. Que eu
ma-ma-mat...

— Shiu, Harry, tudo bem. — Aperto seu ombro — Não precisa continuar, não precisa ir tão longe.

Foi isso o que Anne quis dizer ao falar que deu a Harry um trauma. Ela deixou que uma criança
desse ao próprio pai uma boa xícara de chá com uma generosa dose de veneno e o fez acreditar que
era o culpado por isso.

No fim, minha mãe estava absolutamente certa em detestar Anne.

— E quando você era adolescente? Tem algo?

Ele passa longos instantes em silêncio e temo que outro tenha assumido, mas ele rompe ao falar:

— Na escola tinha um homem, o diretor, ele me olhava estranho. Todo lugar que eu ia, ele estava
lá, com os olhos em mim e eu sentia que algo em mim gostava disso, mas eu. Eu odiava. Aquele
homem era tão nojento. — Diz retorcendo o rosto em repúdio — Costumava frequentar a sua sala
porque eu era líder do comitê estudantil, lembro de esperar na recepção e ouvir a sua secretária
dizendo que eu podia entrar, mas eu nunca estive dentro da sala. Não me lembro de ter falado com
ele uma única vez. Então como, como você disse que a Eve é filha dele? Não é possível.

É possível se uma das suas personalidades teve um caso com ele.

Com isso, pode ser como Ashton me explicou certa vez, sobre memórias compartimentadas. Harry
não tem consciência do que suas personalidades fazem, ele é a parte frágil e oprimida, então elas
não só o controlam, elas dominam completamente.

Ele é a marionete delas.


Suspiro, continuando a fechar a ferida, precisando apertar seu quadril e o fincando no mesmo lugar
para não tornar tudo ainda pior.

— Você se lembra de alguma Mia? Se lembra da morte do Michael? Ou de estar com o Luke?

Harry está balançando a cabeça incansavelmente.

— Não, não, meu deus, não! O q-que houve com o Michael? Como ele morreu? Isso fui eu? Eu
não posso ter feito nada disso, eu não tenho memória nenhuma, fiquei desolado na época, mas eu
nunca quis o mal dele, jamais ousaria machucá-lo. Ele foi meu amigo, ele não pode estar morto. —
Como eu imaginava, Harry é de uma fragilidade tão grande, ele rapidamente perde o chão e fica
vulnerável, ao dar o último ponto corto a linha e começo a fazer o curativo.

Também não era ele quem foi me buscar naquela noite.

De repente, percebo que eu não sei distinguir os momentos em que Harry estava presente.

E se tudo o que eu amava nele, tudo o que me cativou e se tudo isso não for ele? E se eu não tiver
me apaixonado por Harry?

— E quem é Mia? Eu machuquei ela?

Nego um tanto desnorteado.

— Ela está bem.

— E o Luke? O que eu fiz com o Luke? — Ofega, indiferente a dor agora.

— Harry, eu não-

— Se o que você está dizendo é verdade, significa que estou sendo manipulado há quase trinta
anos por essas coisas dentro de mim, que eu não tenho controle sobre o meu corpo, sobre as minhas
ações. Eu estou ferindo pessoas... Eu... — Ele congela, as pálpebras tremulam como as asas de
uma mariposa — Eu sou Andrômeda.

Abro a boca, mas as palavras me faltam. Harry desvia o olhar, encontrando a máscara largada no
chão, o metal em nuances de dourado desperta algo nele.

É mais do que uma lembrança.

Ele solavanca com tanta força que penso que ele vai vomitar e por um instante, acredito que iria
mesmo. As mãos voam até seu rosto e ele grita. Muito mais alto e dolorido do que quando o
esfaqueei e então, o que se segue é o choro.

Um choro profundo e desesperado.

O choro de alguém que desperta depois de um átimo de loucura e percebe que matou todos que
amava e então contempla o horror que causou, o buraco incurável no coração, as lacerações em sua
alma. O quão aterrador é perceber que está fora de controle?

— Eu matei todo mundo. Matei todos eles. Suas vozes, o choro, eles implorando, posso ouvir tudo,
eu achava que eram pesadelos, mas... Mas era tudo verdade. Era verdade.

— Harry... — Tento acalma-lo depois de concluir o curativo, mas ele escapa de meus braços, se
levantando, mantendo-se apoiado na cama ao caminhar.
— Specer. Eu fiz alguma coisa com ele, eu lembro dele chorando e fugindo de mim, por favor, m-
me diz que ele tá bem! Cadê ele? Cadê o Blake? Spencer! Blake! — Ele berra, tentando ir até a
porta, mas cambaleando e tombando contra a parede — Louis... Cadê eles? — Chora mais forte.

Eu sempre me imaginei capturando Andrômeda.

Em uma caçada voraz.

O momento em que não teríamos mais saída.

E eu saindo vitorioso desse embate, na justiça sendo feita.

No fim, meu marido era a minha presa. Isso não é nada justo.

— Estão no quarto. V- — Não parece certo falar como se ele tivesse feito qualquer uma dessas
coisas — Eles foram dopados.

— Dopados? Eu não entendo de calmantes e se eles tomaram demais, se eles tiverem uma
overdose ou algo assim?

— Acho que uma das suas personalidades sabe bem administrar medicação, fizeram isso comigo
por um tempo e eu estou bem, mais ou menos.

Meu marido me olha, a dor que ele sente é quase palpável.

— Eu te causei tanto sofrimento. — Diz com a voz quebrada.

Fecho os punhos ao lado do corpo para não ceder ao impulso de abraçá-lo e consolá-lo.

"— Você consegue não estar do lado dele?"

Ele se apoia na parede, cambaleando até a janela, empurra o vidro e o vento em conjunto com a
torrente sopra as gotas de chuva em direção ao seu rosto pálido.

— Por que não chamou a polícia ainda? Tem o corpo de alguém no nosso banheiro, eu dopei
nossos filhos e nós dois sabemos o que eu sou. Por que o FBI não está aqui?

Engulo em seco, me aproximando dele.

— Porque eu não consigo ficar contra você. — Admito o que todos sabiam, exceto eu.

— Louis, você- — Harry soluça e o percebo afundar as unhas na palma da mão. Onde está a sua
cicatriz.

Aquele corte feito por um homem estranho.

O sangue sagrado do qual Greg havia falado...

Não existem mais peles sobre meus olhos, mas permaneço refém desse sentimento, desse amor.

— Você não pode estar pensando em me proteger depois de tudo isso. Depois dessas
monstruosidades!

— Harry, isso tudo, não era... Não era você, a gente pode só ir embora e recomeçar em outro lugar,
um lugar onde você pode conseguir um bom tratamento e...
— Existe cura? Existe uma cura para o que eu tenho?

— Bem, ainda não.

— Então, sabemos que mesmo que recomecemos em outro lugar eu vou continuar matando. E não
existem dúvidas que você e os meninos vão acabar sendo minhas vítimas em algum ponto. — Sua
voz soa tão fria e cruel ao falar de si mesmo.

Harry não só se enoja, como ele odeia a si próprio de uma maneira que me assusta.

— Não fale como se fosse você quem fez essas coisas. — Digo, com cautela.

Mas Harry explode.

— Louis, fui eu! Eu fiz, era o meu corpo, eram as minhas mãos. A minha estupidez, a minha
fraqueza causaram tudo isso. A minha covardia custou a vida dessas pessoas. — Ele faz uma pausa
momentânea e expira — Eu não iria para uma cadeia convencional, não é?

— É, você receberia a alegação de insanidade mental e seria condenado a cumprir pena em uma
instituição psiquiátrica.

— Eu iria para um hospício.

— Bem, se fosse possível comprovar sua autoria nos crimes e claro, se ocorresse o diagnóstico do
TDI, mas as suas personalidades, elas não deixam que isso aconteça, Harry.

— Elas escondem a doença?

Assinto.

— Oh, estou preso numa ratoeira dentro da minha própria cabeça. — Harry fala em voz baixa e
franze a testa — Tem minhas digitais no corpo do Ashton, todas as armas que eu usei para fazer
aquilo com ele, tudo tem as minhas digitais, as correntes que usei para te enforcar, a máscara. Tudo
isso são provas, provas que você pode usar contra mim, você pode revelar que eu era Andrômeda.

Dou um passo a frente, confuso.

— Era?

Harry contrai os lábios ao se abaixar, quando ele torna a se erguer está com meu revólver na mão e
recuo.

— Ainda sou eu. — Esclarece, me oferecendo a arma — Os outros nunca vão permitir que você
saia daqui ou que fique com essas provas, mas se eu estiver morto, eles vão comigo.

Recuo mais até bater as costas na poltrona.

— Eu não vou matar você!

— É o único jeito.

— Não, tem que ter outro.

— Mas não tem. Não tem nenhum! São praticamente três anos assassinando pessoas inocentes,
ninguém descobriu, ninguém conseguiu me parar. Eu sou um perigo, eu não posso ser detido, não
temos outra saída. Por favor. — Harry continua a me oferecer a arma, em um gesto suplicante —
Por favor, me salva.

Aperto os lábios, negando. Estou cego pelas lágrimas.

— O bebê!

— Eu nem sei se ele é seu! — Murmura envergonhado — Já não basta o que os meninos estão
passando, é cruel trazer mais alguém para o meio desse caos. Então, faça isso, por nós.

— Não consigo, eu não consigo. — Baixo a cabeça, mal conseguindo respirar.

Ouço os passos, sua respiração próxima da minha orelha, o nariz acariciando a lateral do meu rosto
quando ele beija minha bochecha e se afasta.

— Tudo bem, você não precisa fazer nada.

Ele volta para perto da janela, apreciando a chuva, o dedo sobre o gatilho tão casualmente.

— Harry...?

— Pode me dar um minuto, querido?

— Por favor.

Ele me encara com os olhos sombrios e intensos para em seguida dar um lindo sorriso de covinhas.

— É rapidinho.

Concordo timidamente com a cabeça e acato ao seu pedido, deixando-o só. Olho por cima do
ombro, observando sua silhueta uma última vez, emoldurada na janela, os primeiros raios de sol
florescem depois da tempestade.

Talvez nasça um arco-íris.

Ou talvez o dia permaneça cinzento.

Fecho a porta e quando estou do lado de fora, escorrego até o chão. A cabeça tombando para trás.

Tudo vai ficar bem.

Vamos encontrar um jeito. Só precisamos ficar sozinhos e pensar, sempre pensamos melhor
separadamente.

É apenas isso, um momento de reflexão.

Brinco com a minha aliança, puxo-a do dedo e leio a escrita na parte interna, a data é... É hoje.

É nosso aniversário de casamento.

Levanto para entrar novamente no quarto, para mostrar a Harry. Para lembrá-lo disso, mas o som
cortante do outro lado da porta me paralisa.

Harry está... Morto?


| 24 | phoenix
Chapter Notes

ESTE CAPÍTULO POSSUI DESCRIÇÕES DE ESTUPRO

A hesitação persiste por um momento, quando meu corpo parece congelado. Meus pés fincados no
chão e os membros incapazes de reagirem a pressão que esmaga todo o meu psicológico ao cogitar
a possibilidade de que ele não estará de pé quando entrar por aquela porta. Já devia imaginar o que
aconteceria, mas sempre fiz isso, de me prender ao improvável e acreditar em absurdos para aliviar
minha consciência e tornar tudo mais simples.

Agora, não parecem haver formas de amenizar o que houve.

Então, por mais aterradora que seja a dor, abro a porta e entro no quarto. Os soluços subindo para
minha garganta, mas rapidamente se extinguindo quando contemplei o vazio no interior, Harry não
estava aqui, assim como a arma. A trava da janela havia sido destruída – obra de uma arma de fogo
– o que possibilitou que ela fosse escancarada, as cortinas tremulavam ensopadas, a chuva
soprando livremente para dentro do quarto.

E se invés de se matar com um tiro ele...?

Me lancei contra o peitoril da janela, olhando para baixo.

Não, Harry também não está sobre o gramado.


É quando fixo a atenção no telhado, o caminho que leva até o quarto ao final do corredor. Não, ele
estava mancando e ferido, ele não, mas talvez um outro alguém não sentiria a dor de seu ferimento,
outro alguém que psicologicamente falando pode ter um corpo livre de quaisquer danos, alguém
que não estaria de fato grávido para se preocupar com os riscos de escorregar enquanto escalava
pelo teto. As possibilidades são imensas, mas minha mente grita ALERTA porque aquela janela dá
acesso ao quarto de Eve, dá acesso aos gêmeos.

Corro para o quarto, diminuindo o passo na entrada para não assustar ninguém ou fazer alguém se
precipitar. Percebo a silhueta de Harry perto da cama, onde os meninos estavam escondidos. Com
calma, sigo me aproximando.

A consciência de estar desarmado é um banho de água fria, mas a essa altura ele já me viu.

— Oh, olá, Tomlinson! Pode dizer ao saco de pulgas que se ele continuar rosnando para mim eu
irei lhe dar um buraco no meio da testa? — Ele pede tão casualmente, o tom não combina com as
palavras. Puxo Sonny pela guia, que segue rosnando em sua direção.

Posso captar a mudança, ele não parece combinar com seu corpo. É fato que outra personalidade
assumiu o controle.

Ele está agachado, pingando dos pés a cabeça, o cabelo molhado grudado em partes do pescoço e
bochecha, o cano da arma batucando em sua têmpora. Algo que Harry nunca faria, mas não se pode
dizer o mesmo de alguém familiarizado a um revólver.
Houve algo também, a forma como ele falou. Parecia uma mania, um vício aleatório, mas ele
puxava a boca para o canto superior da esquerda. Harry não fazia isso.

— Onde está Harry? — Indaguei com cuidado, minhas mãos livres me causavam aflição.

Ele deu de ombros, olhando para mim.

Aí está. Não era um olhar desafiador ou maligno, era só... Desconfortável. Ele olhava diretamente
e sem hesitação, sem emoção. Como se visse tudo o que havia de pior em seu interior e não
estivesse impressionado porque sabia ser pior.

Já vi esse olhar.

Sim, um pouco antes de perguntar se ele era Andrômeda. Ah, se eu soubesse naquele tempo o que
sei agora.

Seja como for, quase posso sentir que se eu perguntar, terei a confirmação.

— Você é Andrômeda, certo?

— Sim, você insiste em me chamar assim, então acho que eu sou "Andrômeda". — Confirmou
indiferente — Eu fiquei impressionada, nunca pensei que Harry iria tão longe ao ponto de cogitar
morrer. Mas foi divertido por um tempo, toda aquela conversa dramática e o choro. — Solta uma
risada divertida.

Eu me aborreço.

— Você se diverte ao vê-lo sofrer?

— Sim. Eu me divirto com tudo que envolva machucar, matar ou mutilar. Não me leve a mal, não
estou aqui para ajudar ou proteger o Harry, algumas vieram com essa função de auxílio, mas eu
sou só a externalização de algo mais intenso. — Explica, mantendo aqueles olhos amargos indo e
vindo sobre mim, a mania com a boca se repetindo.

Preciso gravar isso.

Como o ódio?

— Bingo! — Grita estridente. Andrômeda é uma personalidade maníaca, ela olha ligeiramente
acima do ombro e se mexe muito, em estado de urgência o tempo inteiro. O que vai na direção
contrária ao seu modus operandi, seus crimes demonstram uma meticulosidade e frieza que
parecem lhe faltar, ela jamais se enquadraria como um assassino organizado — Sabe, eu não podia
te dizer nada diretamente, mas sempre torci para que você descobrisse. Você precisava descobrir
para termos alguma emoção, matar aquela gente era divertido, mas isso, isso aqui é o Grand
Finale. Então, vamos, me diga... — Sinalizou com a arma os meninos — qual desses é o Spencer?
Quero atirar nele prprimeiro.

—O-Olha, não precisamos envolvê-los nisso. — Digo, me lembrando que tudo o que tenho comigo
é um spray de pimenta que não serviria de porra nenhuma contra uma Glock carregada.

— Bom, eles são parte disso, querendo ou não. Sempre foram. Veja, um — Aponta para Spencer,
sem saber que é ele, depois Blake —, dois — E por fim, eu — , três. Viu? Vocês são os últimos.
Minhas vítimas.

Mas o Ashton...
— Ashton só foi para matar o tempo. Agora, me diga, quem é o Spencer? Vamos, se você
colaborar eu posso cogitar não atirar na cabeça do outro, é Brandon, não é?

— É Blake.

— Tá, tá, Blake, que seja. Diga, em quem eu atiro? Incita novamente, uma empolgação anormal
em seus modos.

Eu não...

— Louis, por favor. Céus. Bufa contrariada — Então, eu escolho. Esse! Aponta a arma para
Spencer.

— Espera!

E dispara.

Sinto meu coração afundar.

O torpor e uma surdez temporária embargando meus ouvidos. Tudo parece fora de foco.

Caído em meus joelhos, espalmo as mãos sobre o chão, incapaz de me manter por si só.

Ela atirou nele? A essa distância não existem chances de escapar.

Ele é só um bebê... Ele está morto?

Andrômeda está imóvel, no mesmo lugar.

Quando reuni coragem para esticar o pescoço e olhar mais além, percebo algo que me devolve a
vida. Spencer está resmungando e se virando, ainda inconsciente. De fato houve um disparo e esse
aconteceu bem ao lado dele, a arma continuava rente ao travesseiro.

Isso foi proposital ou Andrômeda fez a proeza de errar?

Como uma resposta às minhas perguntas silenciosas, ela torna a se mover, vagarosamente, apenas
o rosto se contorcendo em uma carranca. O restante imimóvel.

—Que merda você está fazendo?

De início penso que a pergunta é para mim, porém...

— Você entrou na porra do meu caminho. Eu te disse para nunca fazer isso. — Há um tremor no
braço direito, como se tentasse movê-lo, mas não possuísse o controle sobre ele.

Isso é... Duas personalidades se desentendendo?

— Qual a sua, Kyle? Esses meninos não são seus, não finja que se importa, ninguém aqui se
importa. Então, é melhor parar!

Kyle. Esse só pode ser o nome de alguma das personalidades que eu não sabia o nome. Tento
reunir informações: megera, depressivo, norueguês... O depressivo era acovardado, quem se
importaria o suficiente com as crianças para intervir? Já sei! O norueguês. O norueguês se chama
Kyle, só pode ser ele.

— Devolva o meu braço ou você nunca mais verá a luz. — Ameaça a figura interna do seu
subconsciente e arrisco, já que está tão entretida em sua conversação, em chegar mais perto.
Contando com sua desatenção, poderia tentar desarmá-la.

Agora faz sentido, Andrômeda ser uma garota com tantas habilidades além de suas capacidades
físicas. Ela é uma personalidade feminina em um corpo masculino. Uma verdadeira missão
impossível de ser dedetectada.

— Allicent não vai gostar nada disso... — Diz entredentes e eu congelo.

— Allicent?

De repente, em menos de um segundo o controle do braço parece ter sido reavido e a arma não
mais aponta para os meninos e sim diretamente para a minha cacara.

—Você já sabe demais, Tomlinson. — E atira.

Mas não rápido o suficiente para que me impedisse de desviar, agarro seu pulso, acertando-o
contra meu ombro, tentando tirar a arma de seu punho. Andrômeda tem a mão firme e não cede de
primeira, reagindo rapidamente em acertar uma joelhada no meu estômago.

Forte o suficiente para me fazer resfolegar, não para me parar. Devolvo o golpe contra seu peito,
ela tomba até suas costas irem de encontro a janela aberta e por um triz não cai para fora, eu
próprio perdi o fôlego com isso.

É só, tão fodido. Ao mesmo tempo que sei que preciso ir com tudo, continuo me contendo, porque
em algum lugar ainda é Harry.

— Vai se arrepender de não ter me jogado. — Diz com um sorriso, voltando a disparar. Me
escondo atrás da cama, enquanto as chuvas de balas acertam o closet, paredes, destruindo todos os
tesouros que Harry guardara com tanto afinco, a memória de Evangeline.

Com cuidado, rastejo para fora do meu esconderijo, sem ser visto.

O plano parece ter dado certo. Andrômeda interrompe os disparos, olhando com atenção, à minha
procura. Tem a mira fixa e a arma engatilhada ao chegar em meu esconderijo anterior, sem
perceber que estou atrás da escrivaninha. Ajo rapidamente, às suas costas seguro seus braços, ela
os ergue, atirando para cima, a poeira dos buracos abertos no teto cai sobre nós e o ligeiro
praguejar de Andrômeda indica que seus olhos foram atingidos.

Perfeito.

Puxo novamente a arma e quase consigo desta vez, mas sem o recurso da visão, ela usa o que tem a
seu favor, o corpo. E se joga para trás, luto para não cair, entretanto, não sendo o bastante para me
impedir de recuar contra a parede do corredor. Antes de ficar encurralado, mudo as posições e é ela
quem tem as costas sendo jogadas contra a parede, prendo sua mão, virando seu pulso, para que
solte o rerevólver.

—Vamos, é melhor desistir. — Tento persuadi-la.

Andrômeda aperta a mandíbula, balançando a cabeça.

— Nunca. — Me acerta uma cabeçada. Por essa eu não esperava.

Tomo consciência do meu nariz sangrando e de seu corpo se afastando pelo corredor.
Não penso muito antes de me lançar contra ela, infelizmente bem na altura da escada e nós dois
caímos, rolando pelos degraus.

Andrômeda desliza para fora dos meus braços, depois que a segurei em algum momento para que
sua barriga não se machucasse durante a queda, mas ela definitivamente não levou isso em
consideração quando engatinhou em direção a arma que havia sido perdida. A Glock praticamente
brilhava no meio do hall.

Apanhei seu calcanhar no trajeto e a puxei de volta para mimim.

—Não, tire suas mãos de mim! Seu maldito! — Gemia e esperneava, tentando me golpear com
seus punhos, mas eu já estava sobre ela, imobilizando-a no chão.

— Eu te peguei. — Ofeguei, ligeiramente tonto.

— Não, não, você não está nem perto disso, detetive.

Ri secamente, torcendo seus pulsos para assistir sua expressão de dodor.

—Confesso que estou bem desapontado, como alguém tão fraquinha conseguiu fazer tudo isso?

— Fraquinha? — Seus olhos escureceram — Bom, talvez você estivesse equivocado achando que
se tratava de um único assassino.

— O que quer dizer?

— Eu quero dizer que você está ferrado!

Andrômeda sorriu divertida e fechou os olhos, suas costas se arquearam brevemente e quando
tornou a abri-los pude sentir que era outro alguém.

Inexpressivo.

Ele puxou os braços que se soltaram com uma assustadora facilidade do meu aperto, sendo que há
um instante atrás Andrômeda mal podia se mover.

Essa é a personalidade da outra vez.

E provando ser quem eu acreditava que era, me acertou um chute que me atirou para longe dele.
Cai do outro lado, minhas costelas pareciam todas partidas, apertei os olhos, engolindo a dor
quando o vi se aproximando, ambos os punhos fechados.

Nunca pensei que algo poderia dar a Harry um aspecto tão sombrio, mas essa identidade fazia um
excelente trabalho. Os cabelos caindo contra o rosto e a expressão dura.

Cambaleei para trás.

Tentei abrir uma porta e depois outra. Todas estavam trancadas, assim como as janelas. Não sei
onde está a minha chave.

Esbarrei com o interruptor e concluí, a energia também se foi. Isso não pode ter sido obra da
tempestade, isso foi obra dele...

Ou melhor, deles.

Estou preso.
Olho para o lado e sem saída, resolvo arriscar o que me resta em um plano estúpido, ao menos sei
que ele marcha em meu encalço quando corro até o porão, tropeçando na escada de tábuas frágeis.

A escuridão pesa contra ambos.


Esse Harry maligno desce devagar, a cada passo fazendo a madeira gemer. Tento ser silencioso,
me esgueirando entre as tralhas acumuladas ao longo dos anos.

Ele caminha, posso enxergá-lo pelo fiapo de luz que se esgueira entre as frestas da casa, aperto o
que tenho entre os dedos, esperando-o se aproximar o bastante. Ele vem, pouco a pouco até mim,
alheio a minha presença e quando sei que não existe erro, espirro todo o spray contra seu rosto,
mais diretamente em seus olhos.

Geme e grunhe, tentando tocá-los, mas agarro seus braços para trás, algemando-o. Empurro seu
corpo contra uma mesa e ele tomba o peito contra a superfície lisa, se remexendo até relaxar.

— Merda...!

— Andrômeda?

— Se eu deixasse a Sugar assumir isso facilmente acabaria em sexo.

— Eu não acho que esse truque pode funcionar, não depois de tudo o que soube.

— Mas você ainda não sabe de nada, detetive.

Eu não entendia o que ela queria dizer, apenas queria tempo. Por isso levei o pano com
clorofórmio contra seu rosto, e em questão de minutos estava inconsciente.

Quando seu corpo tombou, o segurei em meus braços. Assim ele parecia o Harry de sempre, belo e
inofensivo, o rosto relaxado aninhado ao meu peito, seus longos cílios fazendo sombra nas
bochechas rosadas, os lábios cheios quase formando um biquinho, quem poderia imaginar que
nesse mesmo corpo habitam criaturas capazes de tantos horrores?

Xx

Calei meus pensamentos quando ouvi o ruído vindo dele, indicando que estava despertando. Ele
ficou inconsciente por quase quinze minutos, não foi o suficiente para que eu pudesse administrar
toda essa bagunça.

Assisto-o silenciosamente, resignado na poltrona, enquanto ele pisca preguiçosamente, remexendo


as mãos, algemadas em cada extremidade da cama, as pálpebras se abrem e sua reação vem com
um ligeiro delay, mas ele tem um sobressalto ao estar diante do corpo de Ashton, a cena mórbida
não só o assusta como o faz gritar histericamente, ele puxa as mãos, percebendo que está cativo e
se desespera ainda mamais.

—Merda, o que é isso? Onde eu estou? O que aconteceu?

— Harry?

Cogito por um momento, mas a forma como ele se encolhe e treme. É só um menino muito
assustado.

— L-Louis? — Ele finalmente me encontra ao seu lado — Acho que eu esqueci como chegamos
até aqui. — Se esforça para adquirir uma postura mais madura, e falha miseravelmente.

Suspiro, passando as mãos pelos cabelos e sentando na ponta da cama.

— Não precisa fingir que é ele.

Os olhos verdes dobram de tamanho, o rosto empalidece automaticamente.

— Querido, eu não...

— Sem essa, onde está Andrômeda? Ela ficou com tanto medo de me encarar que mandou o
aborrecente?

— Eu não sou aborrecente! Tenho quase dezoito. — Esclarece, ofendido, só então se dando conta
do que disse — Quer dizer, hum, e-eu...

— Não tem que mentir pra mim.

Ele concorda, enfim, desistindo.

— Desculpe, eu não sou nenhum mentiroso, mas não podia dizer nada para o senhor. Na verdade,
acho melhor eu voltar, não deveria estar aqui, se alguém perceber que eu estou com a luz agora...

— Não, não, por favor, espere! — Avanço, suplicando — Você é um dos poucos que não parece
um maluco completo, então, por favor, fale comigo.

— Hum... — O garoto fica pensativo. Diferente de Andrômeda, ele não tem uma mania evidente,
mas parece ter uma certa incapacidade de olhar diretamente nos olhos, ele tem um olhar vago — ,
meu... Meu nome é Cody, tenho dezessete anos e meio e grandes chances de ir para Princeton.

Que caralhos?!

— Oh, isso é, isso é muito bom, parabéns, Cody! Como você já sabe, eu sou Louis Tomlinson e
sou casado com o dono do corpo em que você mora.

— Eu não moro em um corpo. Ele é meu também. — Retruca, ligeiramente áspero.

— Ah, sim, com certeza, desculpe o meu erro. Então, vocês todos vivem aí juntos?

— É por aí, eu não fico muito com o grupo, provas finais e tudo mais.

Harry tem a porra de um vestibulando dentro dele. Que pesadelo.

— Você pode falar com os outros?

— Sim, mas eles não curtem muito falar comigo. Nem contam o que está acontecendo, é meio
chato, pra falar a verdade.

— Entendo... Foi você quem cortou os pulsos, daquela vez?

Cody olha para baixo, os lábios apertados em uma linha dura e por fim balança a cabeça,
assentindo.

— Você é o único com depressão neste grupo?

— Uhum. Eu fui o premiado, Aimee tem alergia a gatos, mas nunca fica triste, ela está muito
ocupada adorando a si mesma.

A megera egoísta, só pode ser ela.

Harry, Andrômeda, Sugar, Kyle, Cody, Aimee.

Allicent.

Sete?

— Cody, quantos são?

Ele abre a boca, mas antes que diga algo, se assusta.

— Essa não! Alguém me viu... — Guincha angustiado, como se visse alguém e como Andrômeda,
seus olhos se fecham e o corpo arqueia brevemente. Os olhos se abrem, grandes e curiosos,
adoravelmente cruéis — Olha só onde o franguinho se meteu, você está tão fodido, garoto. Vão
matar você. — Sorri animada, essa é Aimee, tem que ser.

Ela me olha, porém, não dá tempo de me ver, porque uma troca torna a acontecer.

Esse grupo está fora de controle.

— Louis Tomlinson, seu fodido idiota! — Essa voz rouca, melodiosa e estranhamente sedutora me
é familiar.

— Sugar! — Exclamo aliviado. Ela não é exatamente uma aliada, mas diante das demais opções é
a menos tetenebrosa.

— Foda-se se você me reconhece, eu tenho esfregado isso na sua cara há tanto tempo. Não
importa. O que ainda está fazendo aqui? Você tem alguma noção do inferno que eu passei tentando
manter Allicent fora disso, ela vai mandar seus cãozinhos atrás de mim. Sabe bem o que
Andrômeda é capaz de fazer e ela vai acabar com a minha raça por ter trancado ela naquele
maldito quarto, mas eu ousei pensar que você usaria um dos seus raros neurônios para sair dessa
casa, pegue aquelas crianças chatas e seus bichos fedorentos e vá.

— Eu não posso, eu não posso simplesmente virar as costas para o Harry, ele precisa de ajuda.

— Não existe ajuda, Louis. Você está preso na porra de uma ilusão, isso aqui é um filme de terror,
não tem como escapar, não mais. — Ela diz em voz baixa, é a primeira vez que ela não está
jogando seu charme para cima de mim ou me envolvendo e é quando consigo enxergá-la, através
dos traços de Harry, visualizo aquela figura que ele pintou certa vez — Eu te odeio tanto.

Engulo em seco quando uma lágrima desliza por seu rosto, ela franze o cenho, tentando parecer
indiferente. Sento mais perto, tocando sua lágrima, sem secá-la, apenas sentindo.

— Há quanto tempo você vem me protegendo? — Sugar bufa — Só desta vez não precisa bancar a
durona.

— Eu sou durona. Sei lá, tem um tempo. Quem liga? — Resmunga

— Eu ligo. — Digo, selando brevemente nossos lábios, me afasto, mantendo nossas testas juntas
— Obrigada.

Ouço seu fungar e sua testa relaxar contra a minha.


— Andrômeda é uma psicopata, ela só gosta de ferir e matar do jeito mais cruel possível, mas ela
não é o cérebro por trás disso, a inteligência, a força e a habilidade, o fato de nunca terem nos
alcançado, de todos os crimes perfeitos. Isso se deve aos outros.

— Que outros?

— Louis, tem quatro assassinos aqui. — QUATRO? — Sua cadela maldita! — O grito de abrupto
me apavora. O corpo de Harry começa a se debater, o metal tilintando contra a cabeceira em um
ruído alto e estridente, seus cabelos caem por todo o rosto e entre as frestas encontro o olhar de
Andrômeda — Me solta.

— Não. — Levanto, tomando distância.

— Detetive, não precisa ser assim. Podemos negociar, o que acha? — A voz amena é tão
descaradamente fingida.

— Acho que está na hora de ligar para o FBI. — Olho para baixo, o meu telefone está destruído
depois de ter ficado na linha de frente do nosso primeiro confronto.

— Claro, vá em frente, enquanto isso eu vou matar o Harry.

— O quê?

— Você ouviu, detetive. Se não tirar as algemas, eu mato ele.

— Está blefando. Não pode fazer isso.

— Eu posso tudo. — Diz pausadamente. Um segundo depois, Harry está de volta, puxando o ar
com força, como se tivesse retornado à superfície depois de um longo tempo submerso — Louis!
Louis! Perdão, eu achei que conseguisse, eu pensei que... Eu pensei qu–

A cabeça dele tomba para frente, o peito se movendo rápido demais, a respiração ruidosa.

— Ah, meu...

Harry grita, um grito seguido de outro, de pura dor e agonia.

— V-Você está fingindo, não é ele... Não é. — Luto para acreditar nestas palavras.

— Lou, desculpa, d-desculpa. — Sibila entre um gemido e outro.

— Não é verdade. — Coloco as mãos na cabeça, sentindo as lágrimas acumularem — Não.

Ele se dobra novamente e desta vez cospe sangue.

Okay, isso não tem como ser fingimento.

— Harry. — Vou até ele, quando seus gemidos encerram e seu corpo estremece rapidamente, até
que começa a convulsionar — Puta merda! — Tiro as algemas, puxando-o para o meu colo,
completamente inconsciente, apenas seu corpo permanece tremendo até que para completamente e
ele amolece em meus braços — Harry, amor, acorda. — Dou tapinhas fracos em sua bochecha e
passo a chacoalhá-lo, não há resposta Não, não, não...

De repente, ele desperta e salta para cima de mim, seus movimentos vem com tamanha velocidade
e força que sou facilmente rendido, desta vez não parece disposto a um confronto, seu antebraço
pesa contra meu pescoço, bloqueando a oxigenação.
— Foi divertido. — Andrômeda ri ao me asfixiar.

— Você estava fingindo. — Digo com dificuldade, sem conseguir escapar.

— Não, só na parte em que mordi a língua, mas Harry realmente se foi. Olha só, Harry Edward
Styles? — Olha para os lados, como se esperasse que ele fosse se materializar — Harold? Harry
Tomlinson? Oh, acho que não tem mais nenhum Harry por aqui. — Finge lamentar quando estou
quase inconsciente, ela sopra em meu ouvido:

—Harry está morto.

Xx

Em algum lugar há um ruído, seguido de outro, uma pancada, uma porta batendo, um choro baixo.
Sinto minha pele quente, como se estivesse sob os raios de sol, aquela manhã em que acordei em
uma nuvem de relaxamento em nossa cama, nenhuma preocupação, nada além de deixar que meus
dedos corressem pela coluna de Harry, ouvindo sua respiração suave e sentindo seus cabelos
acariciando meu rosto. Doce, suave e morno, era o céu.

Onde estou agora?

Abro os olhos de súbito. Tento me mover, mas estou completamente preso, braços, pernas, tudo
bem apertado e preso envolto a uma cadeira, as correntes grossas me espremem, a porta do
banheiro está fechada e o corpo de Ashton conseguiu alguma privacidade. É sempre doloroso
pensar na situação em que meti esse garoto.

— Shhh, está tudo bem. — O sotaque forte me faz olhar sobre o ombro. Porra.

"Harry" está sentado na cama, embalando um dos gêmeos em seus braços, apenas o cabelinho
castanho me é visível, o choramingo diminui até restar o som da respiração baixa.

— Bom menino.

E o deita cuidadosamente.

Esse é o tal Kyle.

— Ele está acordado. — Diz e ele mesmo responde — Não, não quero fazer parte disso, apenas
quero ajudar o grupo nada além disso. Por favor, só os deixe de fora disso. Eu- eu entendo. Sim,
sim, me desculpe...

E dada por encerrada a discussão se levanta e caminha até mim e é quando percebo a grande
diferença, ele não está mais vestido como um assassino esfarrapado, agora usa jeans e camisa de
botões, tudo em preto e casual, botas de cano curto e a aliança cintila em seu dedo com um brilho
dourado, mas o que há de mais chamativo é o cabelo.

Ele sumiu, simplesmente não há mais os cachos longos caídos por seus ombros. Mechas curtas e
lisas jogadas para trás tomaram seu lugar e ele parece outra pessoa ao se sentar na cadeira diante de
mim, pernas e mãos cruzadas sobre o colo, a expressão sóbria como a de um terapeuta.

Alguém muito paciente e meticuloso, mas sem a frieza e distanciamento de Kyle. Era uma
personalidade presente em demasia, que sabia demais e totalmente controlada.

— Então, vocês alteram a aparência dele também? — Indago, engolindo o nervosismo.


— Existe um propósito maior, faz parte do plano. — Sem sotaque ou maneirismos — Sinto muito
por toda essa bagunça, houveram desavenças mais cedo e eu não estive presente para manter o
grupo em ordem, realmente lamento.

— Quem é você?

— Quem sou eu? — Suspira com um meio sorriso, não há a amargura de Andrômeda, essa é
quase... Cativante, tem uma certa doçura em seu modo de falar. O tipo de pessoa que poderia
passar a imagem de inofensiva, de te convencer a deixá-la entrar em sua casa e que você não
suspeitaria que ela fosse matar toda a sua família em uma espécie de ritual macabro. Enrijeço com
a suposição — Sempre pensei nisso, em todos esses anos, o que eu te diria se pudesse me
apresentar? É tão surreal, Louis.

— Você é a Allicent.

Ela olha para mim e deixa o sorriso se ampliar, como se estivesse encantada por me ouvir dizer seu
nome.

— Sim, Allicent Rose, você não devia saber disso, senão fosse aquele meu momento de descuido.
Estava num período muito atordoada, entende? Eu fiquei muito preocupada com o seu
desaparecimento.

— Mas pelo jeito o meu retorno não foi o bastante para que você mandasse os seus pararem com a
matança. — Disparo incisivo e uma contração desponta em sua mandíbula, aborrecimento.

— Eu não mando neles. — Ela diz, reavendo a calma.

— Sei que está mentindo.

— Você acha que sabe demais, Louis.

— Tudo bem. — Mordo os lábios, concordando — Então, me diga o que eu não sei. Como isso
tudo aconteceu? Como Harry Styles ficou desse jeito? Como um assassino em série surgiu? Só
me... Me ajuda a entender.

— Te ajudar... Bem, acho que posso fazer isso por você. Checa seu relógio de pulso temos algum
tempo. O que dizer, o que dizer? Oh, melhor começar do princípio, não sou boa com histórias, mas
ironicamente vim de uma. Ilaviam esses livros imensos com capas duras e figuras esquisitas, lá era
o meu lar, entre aquelas páginas estava aprisionada, um personagem sem vida, sem forma, um
brinquedo de plástico que era usado para matar, apenas. Tão monótono. A velha boneca Allicent
Rose, seu divertido brinquedo demoníaco. Péssimo. Porém, tinha esse garoto impressionável e
franzino que via algo em mim, ele gostava de mim, pensava em como era ser eu, fazer o que eu
fazia, até que um certo dia algo muito ruim aconteceu em sua vida.

— A morte de Desmond.

— Sim, a morte do pai por suas próprias mãos, veneno é um artifício cruel, assistir alguém
praticamente se desintegrando, sofrendo tão dolorosamente ao ponto de quem vê sentir na pele.
Pobre Harry, ele adorava o pai, mas sua mãe tinha outros planos e não era bom que o filho saísse
por aí contando o que ela armou, por isso o convenceu de que o culpado por aquilo era ele. Ela o
segurou pelos ombros, olhou bem em seus olhos e disse: você fez isso, por quê? Ele era o seu pai e
você o matou, que tipo de monstro faz isso?" Harry Styles definitivamente não, ele era um bom
garoto, um garoto com tanto medo e tão horrorizado com a possibilidade de ter sido o causador
daquilo. Afinal, apenas tinha levado o chá que a mãe pediu. Harry não podia lidar com aquilo, foi
quando eu cheguei, eu pude ouvi-lo me chamando, suplicando que eu ficasse com ele, que cuidasse
de tudo e eu cuidei.

Então o trauma da morte de Desmond trouxe Allicent.

— Eu era a primeira e por muito tempo achei que fosse ser a única. — Diz com nostalgia Nunca
estive fora de um livro antes, agora eu tinha pernas e braços, podia correr e falar e crescer, era tudo
tão incrível e intenso e eu adorava Harry, adorava-o com todo o meu coração, o motivo da minha
existência era cuidar dele, protegê-lo. O que houve com seu pai jamais o atormentaria, eu havia
tirado aquele sofrimento de sua cabecinha e tudo estava bem. - Uma pontada de decepção perpassa
por sua voz ao dizer a última palavra — Mas Anne teve a péssima ideia de colocá-lo naquele
colégio. Aquilo seria o nosso fim, era óbvio. Os primeiros anos foram terrivelmente ruins, nem
mesmo eu podia cuidar de Harry naquele lugar, as outras crianças eram cruéis e más e de repente,
tinha alguém choramingando e se escondendo, foi quando percebi que mais alguém tinha chegado.
Cody veio como resultado de todo o bullying e perseguição, ele era duas vezes mais covarde que
Harry. Não estava preparada para aquilo e não sabia como impedir que aquele menino se
machucasse ou arriscasse não só o Harry, como a mim mesma.

— Então, você não sabia sobre a possibilidade dele ter TDI?

— Claro que não. — Ela nega — Mas logo estávamos recebendo um novo membro ao grupo,
quando Harry passou a desenvolver certa admiração pelas meninas que ele via do colégio ao lado,
garotas marrentas e sem escrúpulos, ele começou a pensar muito em como seria poder agir como
elas agiam. Sabe, as personalidades não são moldadas ao nosso bel prazer, elas se criam sozinhas,
mas o pensamento obsessivo do hospedeiro pode ajudar a conceber alguns traços dela e foi o que
aconteceu com a Sugar.

Allicent se remexe na cadeira, uma pitada de desconforto denuncia que Sugar é uma inimizade
declarada, mesmo assim tento confirmar.

— Uma outra personalidade feminina, você deve ter gostado da companhia.

Ela me fuzila com os olhos.

— Eu não precisava de companhia, eu já tinha o Harry e precisava lidar com um garoto


problemático, a última coisa da qual precisava era uma puta.

Certa, ela a odeia.

— Porém, ela teve sua utilidade, Harry cresceu muito em popularidade com o auxílio dela e na
adolescência já não tínhamos mais contratempos com os valentões, no entanto, ela tinha essa
mania repulsiva de se envolver mais do que devia. — Franze os lábios — Ela gostava de se divertir
e nenhum de nós queria isso, mas ela não se importava e em um claro desafio a mim começou a se
encontrar com o diretor.

— Era a Sugar. — Concluo para mim.

— Óbvio que era a Sugar. Somente ela se prestaria ao papel de... Foi uma experiência bastante
traumática, Louis. Talvez seja difícil para você compreender, mas apesar de não compartilharmos
dores físicas nós partilhamos de sensações e quando está ao nosso alcance tentamos intervir, existe
algo que chamamos de "luz" que nada mais é do que o poder de estar consciente, naquela época em
que éramos apenas quatro qualquer um podia tomá-la no momento em que quisesse, mas Sugar
abusou disso, ela sempre estava com a luz e nunca pensava no grupo, nunca pensava em Harry.
Sabia o que ela fazia com os garotos e quando escapava do colégio e ia as festas universitárias,
porém, aquilo com o diretor, todos nós sentimos e não podíamos fazer nada, porque ela estava no
controle, era como se o corpo de Harry fosse só uma casca para ela, ela não o respeitava, precisava
ser detida, foi por isso que a outra veio.

Começo a assimilar o que ela está dizendo.

— Isso significa que nem todas vieram de traumas?

Allicent examina as cutículas, desinteressada.

— Sim, as próprias identidades podem conceber outras. Claro que esse é um nível bem elevado,
mas Harry e eu estávamos juntos há tantos anos e não podia permitir que a Sugar o destruísse,
então, Aimee surgiu e ela era uma ótima garota, interessada única e exclusivamente nela, para ela
pouco importava as nossas desavenças e quando a garanti que ela teria todas as roupas e
extravagâncias que desejasse, ela ficou ao meu lado. Então, éramos três contra dois, Cody veio
para o meu lado rapidamente e eu tomei a luz para mim, e como você disse, assumi o controle.

— E o Harry no meio de tudo isso?

— Oh, o Harry estava fantástico, ele tinha amigos, uma ótima rotina de estudos e conseguiu uma
bolsa para a faculdade dos sonhos dele.

— E estava completamente alheio ao que se passava dentro da própria cabeça.

— Ele não precisava daquele estresse, não precisava saber de nada além do futuro brilhante à sua
frente.

— Ele nunca soube sobre vocês?

— Hum, naqueles primeiros meses, ainda na infância, nós conversamos, brincamos, mas depois ele
pareceu se esquecer da minha existência e foi melhor assim. Ele estava seguro desse jeito.

— Seguro, mas cada vez mais doente. Você podia tê-lo ajudado de verdade, permitindo que ele
encontrasse um tratamento para a doença.

— Não existe doença, logo, não há necessidade de tratamento. Nós somos a família dele, sabemos
o que é melhor pra ele.

— Vocês–

Allicent revira os olhos e se levanta, contornando a cadeira e se apoiando nas costas dela, uma
mecha de cabelo desliza por sua têmpora.

— Na faculdade vieram os dias de glória. Harry fazia o que queria e não haviam ameaças, todos
nós estávamos bem, até que você bateu a nossa porta.

— Quer dizer que quando o conheci ele já tinha...

— Sim, cinco personalidades.

— Meu Deus! — Fecho os olhos, descrente de tamanho absurdo.

Observando o meu abalo, ela inclina a cabeça para o lado e se aproxima, ficando de joelhos diante
de mim e uma mão deslizando pela minha bochecha, recuo, estranhando o gesto, mas ela não para.

— E você foi a melhor coisa que nos aconteceu. Não, não, que me aconteceu. — Diz sorrindo,
quase maravilhada só de me olhar.

— Te aconteceu?

— Sim, porque fui eu quem me apaixonei por você.

O quê? Sinto meu corpo enrijecer por debaixo das correntes.

— Não, não, o Harry...

— O Harry eventualmente também gostou de você, mas desde o início você era meu.

— I-Isso é mentira! — Elevo o tom de voz, sabendo que ela está brincando com a minha cabeça —
Você já está aqui. Já destruiu tudo, já tirou ele de mim, não precisa acabar com o passado também.

Allicent recolheu a mão, deixando-a sobre o colo, as sobrancelhas unidas em irritação.

— Eu não destruí nada, tudo o que eu fiz foi por você, pelo Harry, por essa família. — Fala
cortante — Você pode até não aceitar, mas fui eu quem me apaixonei por você, foi comigo que
você dançou naquele bar e também era eu na nossa primeira vez.

Continuo negando em silêncio.

— Eu fiz muitos planos para nós dois, era a minha primeira vez amando e estava tão feliz que é
óbvio que a Sugar tinha que estragar.

Interrompo meus pensamentos para escutá-la com a devida atenção.

— Ela voltou aquele internato, voltou para aquele velho repulsivo e… — Sua expressão se
contorce em nojo — deixou que ele fizesse coisas tão repulsivas quanto conosco, ela sabia como
aquilo me deixava possessa, como aquilo bagunçava a mente do Harry. Talvez hoje em dia, diante
das demais personalidades ela pareça ser muito boazinha, mas houve o tempo em que ela era a pior
de nós e quando aquele monte de lixo estava terminando de se vestir, ela me devolveu a luz que
havia me roubado, apenas para que eu sentisse meu corpo pegajoso e fedendo aquele homem. Ela
adorava mostrar que podia me rebaixar, me levar a lama junto com ela e naquele momento eu
fiquei tão irada e fora de mim, não podia fazer nada contra Sugar, mas o Sr. Prescott, bem, com ele
sim. Então só peguei o abridor de cartas que observei por tantos anos, quando estava presa tendo de
assistir ao horror que eram as transas imundas com ele e perfurei seu pescoço quando estava
entretido em fechar as calças, podia ter parado ali, mas eu sentia tanto ódio que sabia que não
ficaria satisfeita enquanto não rasgasse toda a sua garganta e isso me provocou uma sensação
maravilhosa. Mais tarde naquele dia você me levou ao nosso restaurante preferido, foi uma noite
divina.

Sinto meu estômago revirar ao pensar que uma coisa dessas aconteceu naquela época em que
Harry tinha aquele rostinho doce e era pouca coisa mais alto do que eu. Ele era um anjo, com um
demônio o guiando.

— A história podia ter sido encerrada ali, se semanas depois os sintomas não tivessem aparecido.
Sugar tinha engravidado de Prescott e por um triz ela teria feito um aborto, lembro de despertar no
corredor, a espera de ser chamada. Ela não queria um bebê de jeito nenhum, mas havia algo em
mim que se apegou aquele sentimento de estar gerando uma vida, mesmo que não fosse minha,
mesmo que eu não fosse capaz de sentir por inteiro, ela podia ser minha, podia ser toda minha. E
sua. Sim, eu queria que ela fosse sua também.

— Por isso mentiu pra mim. — Sussurro com a voz séria.


— Eu não menti! Ela era sua, tão sua quanto minha. O sangue não importava, ele estava morto e eu
te amava e nós estávamos construindo a nossa família, pela primeira vez eu tinha um propósito a
mais do que o Harry, eu tinha você e a Eve. Tinha tudo o que sempre sonhei, uma casa linda e um
cão. Era perfeito! Exceto você, você não era perfeito como eu acreditava, não importava o quanto
eu te amasse ou me esforçasse para termos um lar agradável e amável só para você, tudo o que te
interessava era beber e se drogar, Louis. E daí você também tinha uma outra filha com Zayn Malik
e isso partiu meu coração, então, pensei no que poderia partir o seu coração também. Você e
Kacey viviam grudados graças ao vício de vocês, ela era uma péssima influência, mesmo depois
que deixaram de ser parceiros vocês não se desgrudaram... Precisei tomar medidas mais drásticas
para salvar nosso casamento.

Meus olhos crescem em espanto e horror.

— O que você fez?

Allicent dá de ombros.

— Pedi ao Nick que cuidasse disso, contudo, ele foi além do que eu esperava e não importa, todos
acreditaram que era suicídio e você podia voltar a ser o Louis de antes. Mas não foi o que
aconteceu, você piorou... Piorou ao ponto de chegar em casa completamente alucinado, devia
imaginar que era melhor só sair do seu caminho, porém, antes que eu pudesse raciocinar você já
estava gritando com a Eve por ela estar tocando violão aquela hora da noite, eu não podia tolerar
que alguém falasse daquele jeito com o meu mundo, nem mesmo você.

— Eu não lembro disso.

— Claro que não, estava tão bêbado. — Ela acaricia meu cabelo — E não gostou nem um pouco
quando o confrontei, então encheu um copo de uísque e invés de beber você o tacou em mim.

— Não... Eu não fiz isso, não fiz. — Balanço a cabeça, eu não tenho nenhuma lembrança disso.

— Fez, veja. — Aponta a cicatriz fina abaixo do queixo — Isso foi você, meu amor. Na hora eu
fiquei tão em choque, você tinha me machucado e sangrava tanto, não queria que a Eve me visse
daquele jeito, então corri para o banheiro, tentando limpar aquilo, mas você veio atrás de mim e
sabe o que você fez?

Engulo em seco, sentindo meu pomo de Adão arder. Eu não sei, mas posso imaginar.

— Você puxou os meus quadris para trás e pressionou meu rosto contra a pia quando eu protestei,
eu não queria, é óbvio que não queria. Só que isso não te impediu de rasgar as minhas roupas e
meter a seco como se eu fosse a porra de uma boneca inflável, você me disse que estava infeliz e
não suportava que eu fosse tão alegrinho e sorridente, me queria infeliz também. Foi uma situação
que eu não pude calcular, então houveram oscilações, você não estuprou só a mim, você estuprou a
Sugar, você estuprou o Cody, você estuprou a Aimee, você, principalmente, estuprou o Harry.

— Não! Para de mentir! Para com isso! — Vocifero, tentando me desfazer das amarras a força,
forçando minhas pernas e braços a romperem como for as correntes — Para…

— Eu lembro de te pedir pra parar. — Suas mãos correm por minhas coxas, se apoiando nelas para
erguer o rosto até o meu — Mas você continuou, e não satisfeito me empurrou contra o chão e
continuou porque sabia que aquilo estava me machucando, queria me ferir de todas as formas
possíveis e quando veio dentro de mim, fez questão de dizer o quanto me desprezava. Bem, foi um
belo banho de água fria para quem te tinha como um príncipe encantado. Então, você se levantou e
tropeçou até a nossa cama onde caiu desacordado e eu fique lá, no chão do banheiro, pela primeira
vez nenhum de nós conseguiu reagir. Todos estávamos feridos e machucados, engolidos por um
trauma tão inesperado. Eu não sabia o que fazer, foi quando percebi que nosso corpo estava se
movendo, indiferente a dor latente e ao sangue escorrendo pelas nossas coxas que deixou o Cody
em choque até hoje, essa força súbita não se importava com dor ou vergonha, ela só... Se movia.
Ao passarmos pelo espelho eu a vi, você só consegue enxergar o rosto do Harry, mas aqui dentro
podemos ver o rosto de cada um e somos todos distintos um do outro, mas ela... Andrômeda é
deformada, há uma ligeiríssima semelhança comigo, porém sua pele repuxada e derretida e os
buracos no lugar dos olhos não são agradáveis de ver, é como quando Dorian Grey vê a podridão
da sua alma no quadro, eu pude enxergar a podridão da nossa dor na imagem refletida e soube que
aquilo não poderia ser controlado facilmente e que ela era mais minha do que do que Harry.
Andrômeda se arrastou até você, como um morto-vivo, chegou bem perto do seu corpo e colocou
ambas as mãos ao redor do seu pescoço, bêbado como estava seria tão fácil, tão rápido, eu desejei
que ela fizesse. No entanto, alguém me chamou, a minha voz predileta no mundo todo, Eve estava
lá, encolhida em seu pijama, longos cabelos armados com os olhos vidrados onde eu o tocava, ela
me pediu pra não te machucar. Não te machucar? Depois do que você fez. Andrômeda o deixou
para ir até ela, eu sabia que ela iria matá-la, Eve iria morrer e só havia aquele desejo enlouquecedor
de esquecer tudo e pensar só nela, só na minha filha, nada mais importava além do meu bebê.
Então, Kyle nasceu, segundos após Andrômeda, ele a pegou nos braços, a tranquilizou e a colocou
para dormir, se limpou e dormiu no quarto de hóspedes, tão indiferente quanto eu jamais seria.
Mas sabe a melhor parte em tudo isso? — Nego, incapaz de achar algo de "melhor" nisso tudo,
Allicent sorri — Você engravidou o Harry naquela noite, os gêmeos vieram disso.

— Não, não... É mentira!

Ela se inclina sobre mim, o sorriso crescendo.

— É verdade, você fez isso e toda vez que eu olho para eles, me lembro do que você nos fez. A
prova do seu crime perverso está bem às suas costas. Andrômeda só existe por causa de você.

— Está mentindo só pra fazer com que eu me odeie — Consigo dizer.

— Você sempre se odiou, Louis.

— Então, quer que eu odeie os meninos, quer me convencer a matá-los.

— Isso seria ótimo, só daria mais veracidade ao meu plano.

— Qual é o seu plano?

— Vamos chegar lá, ainda preciso te apresentar a mais duas adoráveis personalidades de Harry. —
Diz, retornando a sua cadeira.

— Duas?

Isso significa que são nove?

Nove personalidades.

Quatro assassinos.

Os dois assassinos que ajudam Andrômeda e Allicent.


│25│reticulum

Ela levou meu coração

Eu acho que ela levou minha alma.

Closer - Kings Of Leon

...

— Sei que o que está fazendo, esse é o seu jogo, certo? Mexer com a minha cabeça, me fazer
acreditar nas suas mentiras. Você é manipuladora! Faz com que os outros pensem que não tem
nada de errado, que não é uma doença, sabe muito bem o que está provocando em mim contando
essa história falsa. É isso que você faz, Allicent, você mente. — Cuspo em um rosnado enfurecido.

Ela segue me encarando com uma expressão indecifrável.

— Se é verdade ou mentira, só cabe a você decidir. Não estou aqui para te convencer de nada, não
estamos conversando, essa situação toda é mais uma despedida. — Diz, o tom de voz monótono —
Onde estávamos? Ah, sim, bebês de estupro.

— Não fala assim. — Resmungo em voz alta.

— Ok... — Concorda, revirando os olhos — Apesar dos claros sinais de que estávamos ruindo, eu
continuei insistindo, naturalmente bem mais distante, então, durante a gravidez dos meninos Harry
esteve presente o tempo todo. Inclusive naquele dia maldito.

Por mais ódio que eu esteja nutrindo por essa personalidade perversa e mentirosa, não há como
negar o seu visível sofrimento e abalo ao falar de Eve.

— Nós não sabíamos até chegarmos no hospital, os médicos ainda tentaram fazer algo, mas era um
caso perdido e então, quando a cobriram, estávamos do outro lado do vidro. Eu não pude assimilar
o que estava acontecendo, aquilo não podia ser real. Não podia. — Ela pisca rapidamente, vejo o
lampejo de uma lágrima — Talvez se fosse eu no controle naquele momento isso poderia ter sido
evitado, porém com Harry, oh, ele nunca poderia lidar com a morte dela e com a sua perda
iminente.

Nos meses que transcorreram o ataque e a morte de Eve, tentei conversar com Harry a respeito,
saber como foi para ele, como reagiu ao ter de lidar com tudo sozinho e em um momento tão
delicado. Ele nunca soube responder, apenas dizia que suportou. Não, não suportou, meu amor.

— Pessoas iram e viram, nada ajudava, nada sanava aquela dor, aquela raiva e inconformidade. Ela
era o meu porto seguro, mais do que dos outros, eu precisava me manter sã para manter os outros
sãos, precisava que o Harry estivesse sob controle, mas como na época do colégio, ele voltou a
tentar escapar, fugir. A verdade é que ele sempre foi um fodido egoísta que não queria encarar nada
de frente e me deixava para aguentar todo tipo de merda. Só que eu não podia, não podia... Foi
quando nós dois abrimos mão da luz e alguém, alguém a pegou. — Ela para, como se
desacreditasse das próprias palavras — Como se houvesse um grande apagão, vultos, choro e
risadas, eu senti as mãos úmidas e um som metálico estranho. O corpo de Harry se movia e não era
eu quem fazia aquilo. Tudo que me restou daquela noite foi um nome, Alicia.

— Alicia? — Tenho um estalo — Alicia Morris?


O nome me era familiar, o homicídio aconteceu na época em que estava em outro caso, mas
lembro que teve grande repercussão por conta da brutalidade do crime. Ele era dado como um caso
não solucionado, então, April Copperfield não foi a primeira.

Allicent assente.

— Foi quando descobri que Andrômeda não estava só chateada com você, ela vivia chateada com
todo mundo e gostava de matar, quando ela viu uma oportunidade a agarrou e conseguiu um amigo,
alguém que a ajudaria a parecer bem mais assustadora e imponente.

Essa ajuda de Andrômeda só pode ser uma das identidades que me é desconhecida.

— Hunter. — Diz, soltando uma breve risada — Foi ela quem o chamou assim, seu cão de caça.
Ele não era exatamente novo no grupo, era como uma identidade coadjuvante, em momentos raros
de ira extrema ele surgia e desaparecia logo em seguida, nunca fomos próximos. Ele não fala,
Andrômeda é a única que o domina totalmente, ela o solta e o prende.

Hunter.

Esse é o cretino que sempre me dá uma surra. Claro que foi ele quem me pegou no
estacionamento, o responsável por causar terror em Spencer. Um cão que respondia a uma louca.

— A nossa força, por assim dizer. Eu, particularmente, prefiro manter distância. Então, quando
recobramos a consciência, sabia que ela poderia trazer sérios problemas e como Sugar, ela tinha
aliados. Aimee jamais escondeu seu favoritismo por ela, por isso, tentei me agarrar ao que nos
restava... — Seus olhos verdes caem sobre mim — você. Quando acordou você estava confuso e
tão dependente de mim, aquela seria a nossa segunda chance, o nosso recomeço. Mas menos de um
ano depois de ter perdido a Eve, eu perdi você, te perdi para Michael Clifford.

Allicent suspira, apertando os pulsos cobertos.

— E não havia mais nada, nada que me mantivesse estável. Eu não queria aquelas crianças, não
queria mais fingir que não te odiava, porque eu te odiava e ao mesmo tempo te amava e eu só
queria colocar essa dor pra fora, foi quando a vi, April, ela costumava ir até o restaurante de Anne,
ela era uma boa garota, mas frívola e vazia, olhar para ela sempre me deprimiu, talvez por
encontrar muito dela em mim mesma, por isso, achei que seria uma boa ideia por fim a agonia de
ambos. Atrás das cortinas assisti Andrômeda entrar na casa dela, rendê-la, ela se divertia com a
caçada, com os gritos, o medo era revigorante aos seus ouvidos, enquanto era tudo sem sentido
para mim, Hunter também apareceu e a suspendeu pelas correntes, um espetáculo violento e
tenebroso, porém, sem sentido. Aquilo não me fez menos amarga ou ferida, não mudou nada, não
significou nada pra mim e ainda havia os pais aparecendo na TV, chorando e pedindo por justiça e
isso me deixou pior, porque não estava em uma situação muito diferente. Também assassinaram o
meu bebê, o assassino estava por aí e eu teria de sobreviver com esse vazio pelo resto da minha
vida. Os filhos não devem morrer antes dos pais. O que eu fizemos com April foi pecaminoso,
onde quer que os filhos vão, os pais devem acompanhá-los, essa ideia começou a tomar forma e
propósito na minha cabeça, eu pensava muito sobre quando buscamos Eve no acampamento, como
quase sofremos um acidente no caminho de volta, naquele instante fiquei aliviada, mas depois...
Depois pensei em como teria sido perfeito se tivéssemos morrido ali, quando nossa família estava
bem, quando estávamos juntos e não tínhamos sido corrompidos e separados. Eu não queria que
isso se repetisse com os outros, a morte é uma forma de se salvar, de se purificar, mas ainda parecia
estúpido e sem propósito, porque nada mudaria o fato de que você destruiu tudo. Você precisava
pagar de algum jeito.

Chega . Eu não quero mais ouvir.


— Dia e noite, eu pensava em como acabar com você, foi quando Alexey chegou, ou apenas, Alex.
Assim como você, ele é muito bem treinado, um militar experiente e habilidoso, alguém com a
capacidade de pensar dez passos a frente, juntos, criamos o plano perfeito.

Alex... A habilidade. Treinamento militar.

— E como Andrômeda e Hunter ansiavam, começamos a matar, três membros de cada família, o
que remetia a nossa antiga família. Eles, enfim, estariam unidos para sempre, libertos dos traumas
e frustrações que acabaram conosco. O que eles tinham de perversidade e força, nós tínhamos de
atenção e meticulosidade, jamais seríamos pegos porque éramos quatro em um. Sem testemunhas,
sem erros, é fácil desviar de uma câmera de segurança, é fácil fingir estar perdido e receber ajuda
quando se tem uma carinha como essa e claro que com amigos poderosos, tudo é possível.

— Aaron sabia!

Ela assente.

— Claro que sabia. — Ela se levanta e vem até mim, tocando meu queixo de leve — No começo,
ele me lembrava você, um adorável viciado sem rumo, mas já tinha tido a minha cota de
problemáticos e sabia que ele serviria bem melhor como um ajudante. Aaron vinha de um lar
desfeito e tinha muitas questões quanto a isso, então, saber da minha motivação o fez suscetível a
causa. E ele me ajudou muito, todas as minhas ferramentas de trabalho ficavam em seus armazéns,
por isso nunca houve uma só pista nesta casa. A corrente que encontrou no carro dele, é a mesma
que está te prendendo agora. — Baixo os olhos, fuzilando o metal ao meu redor.

Allicent se afasta, envolve um lenço no punho da minha faca e deslizando a lâmina


superficialmente acima da sobrancelha, um filete de sangue escorre pela lateral da têmpora.

— Foi uma pena que nos últimos tempos ele tenha inventado essa coisa de sobriedade e ameaçado
me entregar. Mas ele não passava de um tolo sentimental e bastou que eu dissesse que esse bebê
era dele e que caso me denunciasse eu o faria em pedacinhos para que ele colocasse o rabo entre as
pernas e voltasse a me obedecer.

Lembro do olhar desolado de Aaron, em como ele estava estático quando Harry se despediu dele
na porta. No horror em seu semblante, um homem sem saída.

Ele me disse antes, disse sobre o que eu tanto procurava estar bem diante de mim.

— E quando eu mandei, ele pulou, simples assim. A maioria dos homens é refém do coração. —
Desce a lâmina pela mandíbula, que provoca arranhões sobre a pele frágil — Mas você não. Você
é uma incógnita para mim, Louis Tomlinson. O único momento em que manteve seus olhos em
nós foi quando "Andrômeda" surgiu. Você nunca quis um marido apaixonado, você queria um
assassino e só quando o conseguiu você pareceu verdadeiramente satisfeito.

Com um olhar sobre o ombro, contente por me ver tão abalado, ela dá a volta, sumindo as minhas
costas, sequer me dou ao trabalho de tentar entender o que ela está armando. A minha cabeça lateja
e tudo é um caos.

— Nicholas também é seu amante.

— Sim. — Responde.

Faz sentido, toda a sua negligência quanto ao caso Andrômeda, em como ele sempre atendia aos
pedidos de Harry, em como ele "deu um jeito" em Kacey por ele. Eu sempre suspeitei que
Grimshaw tivesse interesse no meu marido, mas nunca algo nesse nível.
Ele... Ela, eles, foda-se! Tinham o FBI na palma da mão por conta de Nick.

— Foi assim que conseguiu alterar as drogas na execução de Greg O'Connel.

Nick estava tenso antes da execução. Agora sei o motivo.

— Viu? Quando você quer, sabe ser um ótimo detetive.

— Luke também está com você há muito tempo? — Questiono, torcendo o pescoço, mas ela surge
bem atrás de mim, o hálito quente soprando em meu ouvido e as unhas descendo pelo meu peito,
desenhando vergões ardidos, profundos demais — Porra! — Resfolego.

— Sobre o Luke, pense um pouco mais, detetive.

Pensar mais sobre o Luke?

Ele e Harry, era bastante improvável, por uma série de fatores e o principal era Michael. Luke
podia ser muitas coisas, mas sempre foi irrevogavelmente fiel ao sentimento que tinha por Clifford,
ele não... Olho para Allicent, ela morde os lábios, animada por ter descoberto sua armação. Não é a
Allicent.

— A Sugar disse... Você é a Aimee. — Assente, puxando as mãos para longe do meu corpo e
examinando suas unhas com pequenos resquícios do meu sangue — Foi você quem dormiu com o
Luke.

— Ah sim e foi fantástico, por mim eu faria isso todos os dias. — O tom de voz diferenciado
parece tão estupidamente óbvio depois de discernir quem é quem.

— Então, Michael não morreu por minha causa, mas porque você queria o Luke, você precisava do
Luke e tinha de tirar o Michael do caminho.

— Touché, gênio. — Aimee se afasta e segundos depois, Allicent está retornando para o meu
campo de visão novamente.

Há vários cortes visíveis sobre sua pele, hematomas ao redor do pescoço e uma marca
avermelhada na garganta, não estava visível antes por conta do cabelo longo. Foi por isso que ela
cortou, para expor isso.

— Hemmings é o meu segundo trunfo dentro do FBI. Eu me aproximei dele com a desculpa de
lamentar por sua perda e fui casualmente jogando como seu temperamento e modo de agir estavam
estranhos, como você era agressivo, o medo que tenho que você me machuque ou as crianças, dos
seus remédios, seus delírios, como você some no meio da noite e volta sempre ferido ou
ensanguentado.

Olhando para ela, meus olhos dobram de tamanho em espanto e entendimento.

— Oh, você entendeu direitinho, amor. — Ela diz, baixo e melódico como um gemido, se inclina,
beijando minha boca e não penso em nada além de mordê-la. Allicent recua, o polegar dedilhando
o lugar onde o sangue escorre de seu lábio inferior e ela sorri — Bom garoto, exatamente como eu
esperava. — Não faz menção de limpar, apenas espalha para que adquira o aspecto de seco, como
se fosse um ferimento mais antigo — Não preciso nem dizer o quão satisfatório foi matar o
Clifford. Desta vez, fiz questão de participar, sem máscara ou qualquer coisa que o impedisse de
ver o rosto de quem estava fazendo aquilo com ele, o horror em seus olhos. Ele não podia
acreditar. — Gargalha, batendo palmas — Foi a realização de um sonho e quando eu cortei sua
língua. Ah, sua maldita língua que deveria ter ficado bem longe do meu marido. A vagabunda teve
o que mereceu, talvez eu vá atrás do Zayn um dia destes, lhe dar o mesmo fim.

— Não chegue perto dele! — Vocifero.

Ela volta a olhar para mim.

— Não grite, Tomlinson. Alguns de nós não são tão pacientes quanto eu sou. — Murmura
pausadamente — E por fim, não tem porque se preocupar com isso, você provavelmente vai pegar
pena de morte ou perpétua, não importa, Zayn não deve ser sua preocupação.

Engulo em seco, apertando os punhos ao lado das pernas, maldita impotência.

— Ashton não morreu em vão, ele teve um papel crucial em tudo isso. As correntes, o corpo dele,
tudo está com as suas digitais, os meninos estão dopados com os seus remédios, a noite anterior
não foi só proveitosa para Sugar como para o meu propósito. — Começa a desabotoar a camisa, o
tronco repleto de marcas, os rastros que eu deixei da noite passada. Ela pega um fraquinho
transparente, um líquido perolado, espalha pela frente da calça e peito.

— Isso é?

— Sim. Sabia que seria útil em algum momento. Todo aquele sexo de ontem a noite está bem
vivido por todo o meu corpo, os sinais claro do que... — De repente, ela se cala, fecha os olhos e
quando torna a abri-los, eles estão lacrimejantes e avermelhados, os soluços subindo por sua
garganta e a postura altiva dando lugar a uma fragilidade inesperada, ela cai em seus joelhos,
abraçando o corpo como se alguém o tivesse violado — Eu te amava tanto, eu sabia que havia algo
errado, mas não queria acreditar. Não podia, devia ser coisa da minha cabeça, desde que a Eve
morreu eu ando tão confuso e não podia ser v-verdade, você não podia estar matando todas aquelas
pessoas, você não podia ser Andrômeda, só que quando você saiu e eu vasculhei as suas coisas, só
pra tirar essa desconfiança de mim, eu descobri, des-descobri tudo. Com a minha própria irmã...

— Não! — Murmuro baixo.

Ela só vê isso como um incentivo para prosseguir com seu teatro.

— Eles estão juntos desde o início, tem mensagens deles e fotos pert- — Se finge enojado —
Perturbadoras. Eu não sabia o que fazer e quando você chegou, fiz a estupidez de te confrontar e
você ficou tão bravo, você me bateu e quando tentei escapar me jogou da escada, pobre Ash, ele
tentou me ajudar e você o asfixiou, bem ali, na nossa cama. Eu não consegui reagir, enquanto você
estripava o meu querido primo, então depois, você veio atrás de mim e me esfaqueou. — Seus
dedos pairam sobre o curativo e começam a desfazê-lo, sem hesitar rompe os pontos e o corte está
aberto novamente, sangrando — Eu não sabia o que tinha acontecido com os meninos, eu ouvi os
tiros e o Sonny estava choramingando. Tudo parecia um pesadelo e você voltou pra cá, colocou
eles na mesma cama que matou o Ashton e fez o que queria comigo, você ia me matar, você disse
que ia, esse era o plano de vocês, eu, Spencer e Blake seríamos suas últimas vítimas, a Gemma
disse que você deveria fazer isso. Foi o que ela te mandou fazer quando você esteve a sós com ela.

Estava prestes a indagar como soube que estivemos a sós, mas como dito anteriormente, Luke era
uma de suas marionetes e ele estava lá, ele nos viu conversar. Ele também sinalizou para que
calassem a boca de Gemma, porque ele sabia, porque ele sabia do plano, assim como Nicholas
sabia o plano.

Nunca existiu a mais simplória possibilidade de escapar disso com a ajuda da polícia. Se eu tivesse
ligado antes só teria ido para a cadeia mais cedo.
— As máscaras, as roupas... Tudo está com o meu DNA?

Assente, sorrindo com os lábios ensanguentados.

— As mensagens e fotos perturbadoras existem?

— Sim, tenho trabalhado nisso há muito tempo. Virtualmente vocês tem um caso, sem sombra de
dúvidas. Obviamente eu não consegui forjar nenhuma sex tape, mas há testemunhas em vários dos
seus momentos íntimos, como da conversa inadequada na exposição, na troca de carinhos no
hospital...

— Troca de carinhos? Você a pediu para me dar um beijo em seu n- Oh, até isso fazia parte do seu
plano.

— Evidentemente, depois na ação de graças, os hormônios à flor da pele, você não se conteve em
entrar no quarto dela e depois dar a desculpa de ter errado a porta, minha família não esqueceu
disso. Assim como quando tiveram um almoço muito agradável no nosso restaurante favorito, a luz
do dia. Vocês são cúmplices, amantes, os serial killers mais procurados do século e eu sou só uma
vítima nisso tudo.

O quão doentio é tudo isso?

— Eu entendo o seu ódio por mim, mas porque a Gemma? Ela é sua irmã.

— Irmã? — Repete, como se não entendesse o que a palavra significava — A minha "irmã" sempre
soube que havia algo de errado, mas ela nunca se importou em saber o quê. Ela sempre viveu
ocupada demais com ela mesma.

Será que Allicent não percebe que Gemma é Aimee? Assim como ela própria age muito como
Anne.

— Se ela tivesse se importado um pouco, se ela tivesse me ouvido alguma vez, mas tudo o que ela
fazia era ter inveja e raiva o tempo todo. Na sua cabeça deturpada eu era o favorito e por isso me
queria longe, foi por culpa dela que acabei naquele internato. Quando encontramos um sonho, uma
paixão pela arte, ela teve de arruinar isso também, em se mostrar como superior. Eu senti tanto
ódio dela por tanto tempo e cedi ao meu desejo de me livrar dela quando provoquei o seu acidente,
ela devia ter morrido, mas ao invés disso voltou, pior do que antes. Aquela sombra maldosa que
sempre esteve ao meu redor, torcendo pelo meu fracasso, pela minha ruína. Nunca pensou em
como eu cheguei exatamente no momento em que você e o seu amante estavam na cama?

Allicent dá um sorriso malicioso.

— Ela me disse, ela me contou cada detalhe com um sorriso no rosto e acrescentou que eu merecia
aquilo. Então, eu pensei, acho que a Gemma também merece algo, mas não qualquer coisa, tem
que estar a altura dela. Algo que vai perdurar mesmo depois de vinte, trinta, quarenta anos, um
legado. Pois bem, o nome, a obra, Andrômeda é dela, e como brinde, ela pode ficar com meu
marido. Eu não preciso de nada disso. Está feito, Louis, xeque-mate. — Visivelmente enfraquecida
depois de perder tanto sangue, ela começa a desfalecer sobre o carpete — Ah, e eu soltei o cadeado
das correntes quando estive atrás de você.

Puxo os braços e como dito, as correntes estão frouxas, um pouco mais de impulso e elas se soltam
com facilidade, ao mesmo tempo que as sirenes chegam aos meus ouvidos. Não se trata de uma ou
duas, é uma frota, tão veloz e mordaz que antes que eu possa raciocinar a porta está sendo
arrombada e dezenas de agentes estão me cercando. Luke Hemmings vem em disparada, a
excitação em seus olhos ao apontar a arma para a minha cabeça enquanto me ajoelho.

Grimshaw também veio e é o primeiro a ir até Harry.

Nada nunca soou tão óbvio.

Eu nunca tive a menor chance.

Xx

No instante em que a viatura dobra a esquina avisto os furgões das redes de imprensa, televisão,
revistas e tablóides, todos estão aqui, indo contra os agentes, tentando me alcançar, microfones
sendo empurrados em direção ao meu rosto, me mantenho de cabeça baixa, apenas querendo
sumir.

As perguntas ecoando pelos meus ouvidos:

"Você é realmente Andrômeda?"

"Por que fez isso?"

"Uma palavra às famílias das vítimas."

Isso se tornaria ainda pior quando a notícia se espalhasse.

O escritório estava silencioso, rostos empalidecidos e consternados fixos no meu. Liam estava
estático com uma xícara de café na mão, o líquido borbulhante quase caindo e ele alheio a tudo.
Eles não podiam acreditar, eu tampouco.

Horan vinha lendo algo distraidamente quando quase trombou comigo, seu semblante alegre
perdendo a cor quando percebeu que o prisioneiro da vez era eu.

— Chefe? — Indagou com a voz miúda.

— Está tudo bem, Irlanda.

Ele fez menção de se aproximar, mas um agente colocou o braço na frente e continuaram a me
encaminhar até uma das celas, olhei por sobre o ombro, eu não sabia que temia decepcioná-lo até
que o fiz.

Os agentes me conduziram até uma cela vazia, mas Hemmings fez questão de intervir.

— Coloque-o com os outros. — Ordenou.

— Ele é um agente. — Um deles disse.

— Não importa, agora ele é igual aos outros, sem tratamento especial para assassinos. — Fez
questão de dizer a última palavra me olhando diretamente.

— Certo. — Concordaram, abrindo a cela e me jogando lá dentro.

As algemas permaneciam em meus pulsos e em qualquer lugar isso seria como um aval para que
eles me matassem de espancar, mas invés disso os homens se afastaram, como se eu fosse o
monstro ali. Ninguém se aproveitou da maior estatura ou força para um acerto de contas, alguns
homens estavam detidos por minha causa e nem eles tinham coragem de me encarar.
Deu um passo e nenhum rosto me encarava.

Caminhei até o banco frio de metal e quando me sentei, todos que o ocupavam se levantaram.

Okay, eu sou o que há de pior aqui. Está mais do que claro.

O interrogatório demorou mais do que o rotineiro para ter início, o que mostrava que Luke tinha
esperança de que alguém acabasse me dando um soco que fosse, mas não aconteceu e sem escolhas
ele veio colher um infrutífero depoimento.

Todas as suas perguntas receberam respostas negativas. Me recusei a fazer o teste do polígrafo e
menos de uma hora depois de ser detido, minha mãe anunciou que estava chegando na cidade com
o advogado da família.

Mais provas foram encontradas, todas bastante incriminatórias para a minha pessoa.

Harry era uma forte testemunha contra mim e ele também tinha provas difíceis de desmentir. O
que eu tinha? Minha palavra. De que isso valia? De nada.

— Foi bom? —

Luke ergueu os olhos desinteressado.

— O quê?

— Trepar com o meu marido? Achou mesmo que estamos quites? Porque não sei se você se
lembra, mas você e Michael não estavam mais juntos. — Comenta, sentado desconfortável em
minha cadeira de metal preso a merda da mesa.

— Qual é? Vai tentar ganhar um soco só porque não conseguiu nada na cela? Sabe que comigo não
precisa insistir. — Sorri, virando o palito do pirulito entre os lábios — Mas se quer mesmo saber,
sim, foi ótimo. Incrível e não foi a primeira vez.

Ele acha que está me provocando. Devolvo o sorriso.

— Deve ter sido mesmo, pra você ter se tornado um pau mandado nesse nível, sério, é vergonhoso
o quão baixo você chegou, Hemmings. Mike teria nojo de você.

Luke enrijece a mandíbula, os dedos se fechando com mais força no palito, os olhos escurecendo à
medida que a mesma áurea feroz que habita em mim o domina.

— Eu poderia arrebentar a sua cabeça nessa mesa agora mesmo, mas sei que é exatamente o que
você quer. Se acha o esperto, não é? Não dessa vez! O Harry me disse tudo, o que você e a manca
andaram aprontando todos esses anos, claro que era você, seu louco maldito. — Diz em voz baixa.

— Não pode acreditar nisso, sabe que eu não matei o Michael.

— Matou, matou sim, não importa se você é Andrômeda ou não. Ele só veio pra cá por sua causa,
ele só se envolveu por você. Por sua culpa ele está morto.

Me afasto.

— Então, não é sobre justiça, é sobre vingança.

— Sempre foi sobre vingança. — Seu rosto está coberto por sombras e pela primeira vez, elas me
fazem estremecer.
Retorno a cela onde permaneci por horas a fio. A recordação de quando estive atrás destas grandes
com a cabeça deitada no colo dele, chorando até adormecer.

— Eu vou te destruir.

Estou quase dormindo quando uma voz chama pelo meu nome.

— Louis Tomlinson. — Abro os olhos, descobrindo porque me pareceu tão estranho ouvir o nome
saindo da boca de Niall, tão não usual.

Vou até ele que me conduz para fora da sala, suas mãos estão trêmulas ao que ele recoloca minhas
algemas, tentando parecer indiferente, profissional.

— Quer ajuda? — Pergunto.

E ele treme, deixando as algemas cair.

— Não, você... O senhor, bem, v-você é um prisioneiro.

— Certo. Desculpe. — Digo, abaixando a cabeça e esperando pacientemente até que ele consiga.

Niall o faz e me guia pelo corredor, silenciosamente, até que para, os olhos imensos sobre mim.

— O que aconteceu? Como isso é possível? Eu sei que não é o senhor.

— Eu me casei com alguém persuasivo o bastante para convencer a todos que eu sou o culpado.

— Harry? — Seu queixo cai — Mas ele é inofensivo.

— Ele é. — Concordo com um suspiro — Ele tem uma doença, TDI, é um transtorno, ele tem
várias identidades. É tudo muito confuso, mas uma delas é Andrômeda.

— O quê?!

— Isso, uma delas é Andrômeda. São nove ao todo, e outras três estão do lado de Andrômeda,
Allicent é quem manda em todos. Ela armou isso pra mim e pra Gemma. Ela é perigosa, as crianças
estão em perigo, Niall, eu preciso que você fique de olho nos meus filhos, por favor, faça algo.

Horan pisca atônito. É informação demais.

— Tá... Okay. Eu vou fazer o que puder, senhor.

— Obrigado, obrigado de verdade.

Então, concluímos nosso trajeto até a sala de interrogatórios novamente. O advogado não está com
a melhor das expressões e pelo sorriso vitorioso de Hemmings as coisas não parecem bem para
mim, Payne está ao seu lado, apertando nervosamente as mãos quando me sento diante deles.

— Bom, senhor Tomlinson, agora em companhia do seu advogado poderemos ter uma conversa
mais formal e objetiva. — Hemmings começa, é a primeira vez que o escuto dizer mais de uma
frase sem um palavrão envolvido. Ele tem fotos nas mãos — Conhece este homem? — Ergue uma
foto de Lucian, ele parece bem mais novo, uma fotografia do ensino médio — Este é ele depois de
encontrá-lo. — Exibe a imagem dos restos do homem que foram espalhados pelo esgoto, todos
reunidos em uma bandeja — Lucian DuPont, lhe é familiar?

Meu advogado, Dr. Reynald parece tão consternado quanto eu, o que esperar de um homem
acostumado a casos bem mais leves.

— Sim, era o maníaco que vinha assolando a cidade, eu precisei confrontá-lo. Ele me sequestrou,
decepou meu dedo e quase me matou e a uma outra vítima.

— E era realmente necessário desmembrá-lo?

Eticamente não, mas movido pela raiva foi bastante cabível.

— Vale lembrar que muitos recursos e tempo foram gastos à procura de um criminoso que você
sabia estar morto. Bom, também temos o senhor, Gerald Thomas. — Desta vez mostra a foto do
senhor que me salvou de morrer queimado no cemitério. Sinto um aperto no peito, semelhante a
culpa — A câmera de segurança do cemitério flagrou você disparando contra a testa deste simples
trabalhador que vivia por sua família, a neta dele nasceu na semana passada, aliás.

Aperto os olhos, engolindo em seco.

— E o senhor, Owen Waters, um ótimo rapaz, que foi subitamente atacado no casamento do
melhor amigo. Ele teve um traumatismo craniano e quando acordou apontou você como o
responsável pelo ataque, o que me diz disso, Tomlinson?

Não há porque negar.

— Fui eu.

— Como imaginava. — Suspira, recolhendo suas coisas — Seu advogado deixou claro que não
falará nada sobre o caso Andrômeda, então, teremos de ver o desfecho de tudo isso nos tribunais,
que emocionante. Aliás, saberia me dizer por que Aaron Johnson deixaria sua fortuna pra você?

— Ele o quê?

— Oops, acho que isso faz parte do caso Andrômeda também. Que seja, tenho certeza que o
julgamento será marcado o mais rápido possível, ninguém quer que isso perdure ainda mais.

Xx

Após dois dias sou transferido para o presídio.

Gemma está em algum lugar não muito longe daqui, pelo que soube.

A única visita que recebi foi da minha mãe, que garantiu que tudo seria resolvido. No momento eu
amaldiçoava o dia em que saí de casa, ao menos, Niall dizia que as crianças estavam bem. Eu
nunca perguntei sobre Harry.

De cabeça baixa, não prestei atenção no caminho, presídios tinham o mesmo mecanismo onde quer
que fossem, mas nenhum era tão silencioso ou escuro, então, quando ergui a cabeça percebi que
não estava sendo levado para uma cela normal.

— Isso é... — Olhei de um lado para o outro — Isso é a solitária! Por que estou sendo levado pra
solitária?!

— Ordens! — O guarda respondeu.

Comecei a me contorcer, me negando a ser arremessado na escuridão, mas não podia contra eles.

— Vocês não entendem, eu não posso ficar aí. Eu não posso ficar sozinho no escuro.
O guarda da esquerda começou a rir.

— Tem medo do escuro?

— Não! Eu tenho medo do que a minha cabeça faz no escuro. Por favor.

— Não seja um bebezão. Você é um assassino. — E sem mais me lançaram naquele vácuo escuro
e úmido, uma única fresta de onde uma facho de luz rastejava timidamente pra dentro, mas uma
nuvem caminhou para cobrir a única claridade e então... O escuro reinou.

Eu não podia ver nada.

Ouvi os ruídos característicos do mundo exterior, algo fazendo cócegas na minha canela. Baratas.
Chacoalhei a calça e algo maior passou pelo meu pé. Ratos.

Suspirei e senti um puxão na parte de trás da cabeça, unhas pontiagudas arranhando meu pescoço.

Meus demônios.

Tudo bem, vai passar, vai passar.

— Essa será uma longa noite. — Uma voz distorcida zumbiu em meus ouvidos.

Xx

Um mês e meio, novamente a justiça correndo contra o tempo para se livrar de um infortúnio, o
julgamento havia sido marcado. A população estava alvoroçada depois do papelão que foi a
errônea acusação e execução do casal como os supostos Andrômeda. O nome do FBI não estava
exatamente em seu melhor momento e dar Gemma e eu aos leões era sua última escolha e algo me
dizia que desta vez Andrômeda não voltaria a matar ou nos chamar de farsante, segundo Allicent,
isso era um presente.

Bem, Allicent disse, mas e quanto a Andrômeda, é possível que ela seja assim tão dócil e
controlável? Essa é uma questão que ainda ronda meus pensamentos.

Assim como a história do... Não, eu jamais faria uma coisa dessas e se fizesse, ao menos me
lembraria. Como algo tão hediondo como um estupro, um estupro contra o meu próprio marido
poderia ser simplesmente apagado da minha memória. Sem falar que Allicent se mostrou mais do
que performática ao contar a sua história incriminatória, ela deve ter refeito a cena diante da polícia
e eles caíram. É tão fácil acreditar em um lindo rostinho choroso.

E em algum lugar debaixo de toda aquela falsidade está Harry. Ele precisa estar ali, em algum
lugar, não é possível que possam matá-lo. Foi mais uma mentira.

— Você está muito pálido. — Meu advogado observa, olhando com desgosto para minha pele
branca em demasia.

Dou de ombros, poderia ser pior.

Minha estadia na solitária não pode se estender tanto quanto alguns querem, mas a vida em cárcere
também não vinha sendo das melhores. Meus colegas de cela não me aceitavam ter em seu
convívio, os boatos sobre mim cresceram em tal proporção que no refeitório ouvia os cochichos
sobre eu ter comido um canibal, as vezes eu mesmo tinha comido o meu dedo e dado um tiro na
testa da minha filha. Seja como for, mais de um tinha cometido suicídio para escapar da minha
companhia.
Pela minha impopularidade, não tinha horário de sol e vivia entre aquelas paredes úmidas e frias, o
cinza da tinta descascada bloqueando a imagem do céu azulado. A enfermeira disse que eu estava
com alguma insuficiência vitamínica e eu só fingia prestar atenção, de olho nos calmantes atrás dos
armários de vidro.

Em breve eu teria remédios à vontade.

Eles vão descobrir. Não tem como manter uma coisa dessas em segredo.

— Certo, precisa parecer um bom rapaz e arrependido, está bem? — Assinto e o Dr. Reynalds,
sorri confiante, ajeitando a lapela do meu terno.

Esse terno é um lixo, é claro que Harry mandaria o que há de pior no meu guarda-roupa.

Seguimos em direção à corte pela porta lateral, o guarda retira minhas algemas e nos sentamos na
mesa da defesa, Gemma está sentada na ponta, junto a sua advogada e me dá um olhar atravessado,
já que ela me culpa por isso também.

Como um "casal" perante a acusação, nosso julgamento é em conjunto.

Haviam centenas de repórteres e câmeras registrando tudo do lado de fora, a corte estava cheia,
embora todos os bancos as nossas costas estivessem ocupados poucos se declararam como nossos
apoiadores, talvez apenas minha mãe e irmãs, era a primeira vez que minha família estava na
cidade, reunida e sem gritaria envolvida.

Estiquei o pescoço para avistar a mesa da equipe de acusação. Conhecia a maior parte da
promotoria escalada para o caso. Um ou outro acenaram para mim, sem jeito. Era estranho.

Fixei meus olhos atrás deles, mais precisamente, onde Anne parecia particularmente nervosa em
manter os gêmeos quietos, eles estavam olhando para mim e me chamando, mas ela fazia um ótimo
trabalho em me ignorar.

Hemmings entrou e sorriu ao me ver no banco dos réus.

E junto com ele, outra pessoa entrou.

Harry parecia ótimo, dadas as circunstâncias, sobretudo, camisa branca, óculos escuros, o cabelo
havia crescido um pouco e os cachos começavam a se formar novamente. Ele ainda era uma
maldita visão de tirar o fôlego e quando se sentou, me permitir observar como sua barriga havia
crescido, agora era evidente que ele estava grávido. Pelas minhas contas, Leslie não demoraria
muito mais tempo.

Eu gostava desse nome.

Gostava de ter mais uma filha.

Ou gostaria.

O guarda ordenou que todos se levantassem.

Anunciou a data e o horário, mas eu mantinha os olhos presos nele.

— Juiz Norman Roffman presidindo, deus salve os Estados Unidos da América e está honorável
corte.

O juiz Roffman se sentou e pediu que fizéssemos o mesmo.


— Senhor policial, traga nosso júri.

Como pedido, o policial abriu a porta e o júri entrou. Olhei vagamente para os doze jurados que se
acomodavam em seus assentos, ninguém me inocentaria. Eu não me inocentaria.

O juíz conversou brevemente com os jurados, o mesmo que eu já vi acontecer nas milhares de
vezes em que estive em situações como esta, sempre como testemunha de acusação e nunca como
um acusado.

— Sra. Kops, cite o caso para a corte.

Perdi o início da fala da mulher, não faria diferença alguma para mim, de qualquer forma.

— Estados Unidos da América versus Louis William Tomlinson e Gemma Anne Styles.

Dessa distância Harry jamais me ouviria, mas mentalmente eu lhe dizia:

— Parabéns, você conseguiu. Você me destruiu.


│26│sagitta

S e dependesse de mim, eu não estaria aqui.

Julgamentos são sempre enfadonhos e repetitivos, um falava uma coisa e o outro dispara um:
Protesto e era obrigado a reformular toda a frase. Estávamos na metade da segunda semana e nada
apontava para uma absolvição, não quando a promotoria trazia duas vezes mais testemunhas de
acusação.

Em algum ponto foi exigido avaliações psiquiátricas de nós dois. Gemma tinha problemas com
raiva e autocontrole, isso era sabido por todos, agora eu, seria uma caixinha de surpresas. A
hipótese de um desequilíbrio mental surgiu com o depoimento do nosso psicólogo, Dr. Pendergast,
claro que ele viria animadamente fincar os últimos pregos no meu caixão.

De seu assento elevado, ao lado do juiz, ele parecia muito profissional em sua roupa social e óculos
de grau. Um homem respeitável.

— Louis sempre teve grandes oscilações de humor e comportamentos impulsivos e sem sentido.
Sem falar de sua grande resistência em buscar tratamentos adequados ou de fato, se abrir.
Basicamente ele ia até mim para assegurar que estava bem.

— Ele procurou o senhor voluntariamente? — O promotor indaga eloquentemente, se


aproximando de Adam.

— Não, não, foi uma exigência do FBI após o atentado que sofreu, eles temiam algum estresse
pós-traumático.

— E ele realmente sofre de um?

— Sim, mas também apresentava resistência em se medicar. Nos últimos meses ele havia
demonstrado uma súbita mudança de comportamento, porém, também começou a insistir que seu
marido, Harry, sofria de um transtorno raro.

— O suposto Transtorno dissociativo de identidade?

— Exatamente, o que é ilógico, em anos atendendo-o nunca demonstrou indício algum de ter dois
ou mais alters. Ele é literalmente uma das pessoas mais doces e expressivas que eu já conheci, na
verdade, senhores, se me permitirem, gostaria de sugerir que fossem realizadas avaliações
psiquiátricas com os réus, em especial o senhor Tomlinson.

E foi assim que tive toda a minha vida, passado e presente revirados. Um grupo de psiquiatras e
neurologistas me monopolizaram de todas as formas possíveis, só era liberado nos momentos das
audiências.

Minha cabeça ainda doía quando entrei na corte naquela manhã. Me instalei em meu assento e ali
permaneci cabisbaixo, até sentir um toque em meu ombro, virei o pescoço e dei de cara com dois
pares de olhos azuis.

— Spen! Blay! — Exclamei, descrente que depois de tanto tempo os tinha tão perto.

Para melhor representar a linda família feliz e unida, "Harry" os trazia diariamente, talvez fosse
realmente para passar a imagem de família inofensiva ou para me lembrar que os tinha com ele e
poderia facilmente feri-los se eu não colaborasse.
— Papai! — Os dois disseram, se empurrando para conseguirem se enrolar no meu pescoço.
Minha mãe sorriu, os segurando.

— Oi, como estão? Eu senti tanta falta. — Beijo cada um, notando como parecem crescidos e
fisicamente bem.

— Bem. — Spencer respondeu puxando minha gravata — Que é isso?

— Isso é uma gravata. Eu preciso usar aqui.

— Onde é aqui? — Blake resmungou, coçando os olhos.

— Aqui é... É um lugar que o papai precisa estar por enquanto, mas já vai se resolver.

— E a gente vai pra Disney?

Aproximo o rosto do rostinho minúsculo de Spencer.

— Sim, nós vamos pra Disney.

— Papai! Papai! — Blake se agita, de repente, me puxando pra ele — O bebê não é mais
bebezinho.

— É, é, papai, é desse tamanhão. — Spencer exibe a mãozinha, acreditando estar representando o


tamanho real do bebê — Eu ser irmão mais velho.

Sorrio, sentindo aquela estranha amargura.

— Você é. Vocês dois são.

— Louis. — Minha mãe indica onde Anne nos encara com as sobrancelhas franzidas — Eu preciso
levá-los.

— Certo. — Concordo, relutantemente me despedindo deles. Anne se acomoda com eles e logo,
Harry está se sentando ao seu lado, sem nunca olhar na minha direção. Assim é melhor.

Ao longo destas duas semanas de inquisição, muitos rostos conhecidos e desconhecidos subiram ao
banco de testemunhas para depor contra nós. Desde o garçom do restaurante, os guardas que me
deteram naquela vez em que perdi o controle com Harry na obstetrícia, até Bebe que fala sobre ter
visto Harry caído na entrada de casa e eu, aparentemente, o ameaçando, Liam e Luke também não
prestam testemunhos nada favoráveis. Eu não sabia que tinha tantos momentos nebulosos até ouvir
da boca de terceiros. Já estava calejado com os ataques entoados por vozes calmas, o promotor por
mais de uma vez fez insinuações sobre o meu caráter perverso e psicótico, enquanto era bem mais
direto quanto a Gemma ser uma vadia louca e invejosa, ele literalmente disse vadia e ninguém o
contestou.

Fatores como idade, deficiência, depressão, infertilidade, entre outros foram fortes armas contra
ela. Uma mulher é bem mais fácil e aceitável de ser crucificada, ninguém via problema na dureza
com que ela era tratada, mesmo sem ter sido condenada, homens e mulheres a descreviam como a
pior criatura da face da terra e Harry era a presa ingênua e ameaçada dentro da teia de Gemma.

Ah, se eles soubessem.

Na entrada do tribunal, grandes grupos de populares se aglomeravam, repórteres querendo


entrevistas, qualquer exclusiva, a família clamava por justiça, outros exigiam a pena de morte e
carregavam cartazes com um linguajar baixo e imagens nos demonizando o máximo possível. Uma
das "artes" a mim dirigidas, me fizeram passar noites em claro, profundamente perturbado. O que
mais doía era saber que meus filhos estavam vendo aquilo.

Eles tinham visto e vivido coisas que pessoa alguma deveria experienciar, seria um milagre se tudo
isso não deixasse traumas irreversíveis neles.

A porta lateral torna a abrir e desta vez, Gemma surge, acompanhada da advogada, suas algemas
são retiradas, o cabelo escuro caindo sobre seu rosto pálido quando ela caminha até a mesa e toma
seu lugar – porém, não é o habitual – , tento não parecer tão surpreso quando ela se senta ao meu
lado.

O nosso contato vinha sendo mínimo uma vez que estávamos acusados de sermos amantes tão
terríveis quanto Paul Bernardo e Karla Homolka.

— Tudo bem? — Indago em baixo tom quando ela mantém o rosto voltado para frente.

— Minha mãe vai testemunhar, quer dizer, ela vai mentir. — Responde, sem emoção.

Então é hoje?

Minutos depois, a corte está em sessão.

Após duas fraquíssimas testemunhas de defesa, a promotoria chama Anne. Noto o estremecer em
sua mão sobre a Bíblia ao fazer o juramento.

O promotor começa a interrogá-la.

— Pode dizer a corte o seu nome?

— Anne Styles.

— Qual a sua profissão senhora Styles?

— Eu sou proprietária de um restaurante no centro da cidade. — Ela diz.

O júri parece achar isso adorável. Ela é como a vovó amável que cozinha biscoito para os netos,
tricota casacos e acoberta os homicídios do filho. Adorável.

— Sabemos que não é fácil para a senhora ter de testemunhar contra a própria filha, mas
precisamos que não hesite. — O homem alto fala, gesticulando demais. Eu não gosto dele e nem é
pelo fato de estar tentando me conseguir uma pena de morte. Anne assente — Como era o
comportamento da ré durante a infância?

Ao meu lado, Gemma contraiu a mandíbula, as unhas batendo devagar contra a mesa de ébano.

— Era... Difícil. Ela sempre foi geniosa e tinha a tendência de perder o controle quando as coisas
não iam como ela queria. Em certas ocasiões ela se tornava agressiva. Quebrava coisas, rasgava
fotos...

A antiga fotografia dela com Harry, foi ela quem a rasgou.

— Os médicos prescreviam calmantes e isso funcionou na infância.

— Em algum momento a senhora detectou indícios de perversidade? Digo, algo que a levasse a
crer que...
— Que ela fosse capaz de matar? Bem, eu sempre percebi que ela era bastante fria e indiferente.
Ela nunca pareceu realmente feliz com nada, eu acreditava que se tornar tia a faria mais carinhosa e
próxima de nós, mas era o contrário, ela se encheu de inveja e remorso por ver o irmão construindo
uma família.

Olhei para ela de relance e percebi que suas unhas atingiam a madeira com mais força, provocando
arranhões sobre a superfície.

— Toda mulher quer casar e ter filhos, mas Gemma tinha muita dificuldade para manter
relacionamentos e bebia e usava muitos remédios o tempo todo, foi por isso que ela sofreu o
acidente. Ela raramente estava sóbria.

— E como descreveria o relacionamento dos seus filhos?

Anne desvia o olhar e Harry a encara de volta, uma ameaça velada.

— Harry sempre fez o que pode para que tivessem uma convivência harmoniosa, o que se provou
infrutífero, uma vez que ela nunca esteve disposta a tentar. Então, ela entrou para o ramo das artes,
ela me disse que queria superá-lo em alguma coisa. Até aquele momento achava que era pura
competitividade de irmãos, mas quando minha neta, sobrinha dela, Evangeline morreu e Gemma
não demonstrou um pingo de emoção, comecei a me preocupar. — Ela engole em seco, usando o
lenço para secar os olhos e os dedos de Gemma se recolheram em punho — Depois disso mais
desconfianças foram surgindo, ela aprendeu a atirar e estava mais calada que o normal, distante.
Antes dos homicídios começarem, ela se mudou para Chicago, porém, pouco tempo depois soube
que ela tinha sido demitida e estava morando no Brooklyn. Eu guardei essa informação porque ela
me pediu, mas não entendia o motivo de não querer que soubessem que ela estava na cidade.

Franzo as sobrancelhas. Ela estava na cidade esse tempo todo? Por que ela nunca disse a ninguém?

— Assim, ela frequentava minha casa, ela tinha chave e livre acesso, eu ouvia alguns ruídos no
galpão, mas nunca dei atenção. Eram as coisas dela, provavelmente.

— Nunca pensou que sua filha poderia ser Andrômeda?

— Jamais! Isso parece tão fora da nossa realidade, ela era uma boa menina, até que...

— Até quê? — O promotor força, embora isso já tenha sido ensaiado.

— Descobri que ela tinha um caso com o Louis. Eu encontrei as mensagens e tudo mais... Foi um
choque. Eles não podiam estar fazendo aquilo, uma traição dessas com o Harry, justamente agora e
depois de tudo. Eu tive de confrontá-la e quando o fiz, ela me mostrou uma faceta que eu ainda não
conhecia. Ela riu e confirmou minhas suspeitas, estava orgulhosa por "ter roubado o homem do
irmão dela", ela se vangloriou e não satisfeita, quis me mostrar o que mais tinha feito, foi quando
descobri o que se escondia no galpão, o que a fazia quando saía tarde da noite. Eu só... Tinha que
fazer algo, então, fiz a denúncia. Ela é minha filha e eu a amo, mas não poderia acobertar uma
assassina. — Ao terminar, Anne está com lágrimas nos olhos, o juiz lhe oferece um novo lenço,
compadecido por seu sofrimento. Ela tem o júri na palma da mão.

A advogada de Gemma terá um trabalho árduo-

Há um barulho alto que ecoa por toda a corte quando a cadeira de Gemma atinge o chão quando ela
se levanta e soca a mesa com ambos os punhos, levantando o dedo em direção a mãe.

— Sua maldita mentirosa! Como você tem coragem de vir até aqui e falar esse monte de merda?
De olhar na minha cara e chorar. Você é louca!
— Ordem! — O juiz exige. Os guardas se aproximam e a advogada tenta refreá-la.

— Foda-se você e esse circo! — Ela cospe para o juiz — Sabe, Anne, você é só uma marionete, o
ventríloquo está bem ali. — Gemma se vira, indicando Harry que muda rapidamente a expressão,
provavelmente outra personalidade veio à tona. É Allicent.

— Sugiro que controle sua cliente. — O juiz diz a advogada, mas é em vão.

— E Andrômeda também, ele é o culpado, o filho da puta que armou tudo isso. — Ela se aproxima
da divisória de madeira polida que reparte a corte e é claro que esse momento lhe parece propício,
Harry faz questão de se levantar, com Blake no colo. Aquela expressão fingida é proposital, para
deixar Gemma mais possessão e dá certo — Você é quem devia estar aqui, você é a porra do
assassino. Eu sei que você matou o papai.

— Gem, me ferir não vai te ajudar. — Ele diz com a voz embargada. Como se sofresse com toda a
situação.

— Tão cínico, você só pode ter um problema, isso não é normal, seu doente. — Ela balança a
cabeça, sendo contida pelos guardas que tentam fazê-la retornar ao seu lugar, porém seus olhos
sombrios permanecem nele — Eu não sou uma assassina, sabe que não, mas não me importaria em
me tornar uma se fosse pra acabar com você. Eu te odeio tanto!

Ele escuta e abaixa a cabeça, capto seu sorriso mínimo que some antes que ele torne a encará-la,
agora trazendo lágrimas aos olhos. É tudo pelo drama. O julgamento está sendo televisionado, são
momentos como esse que o deixam no topo dos holofotes.

— Mesmo assim... — Respira fundo — eu te perdôo.

Porra.

Até eu tenho um sobressalto quando Gemma engole em seco e cospe na sua cara.

Parece racional com a euforia raivosa queimando em suas veias, mas isso foi uma armadilha bem
elaborada que ela caiu, não, não, ela se afundou nela. Ela cuspiu em um santo pai de família
inocente e devoto, grávido, segurando o filho nos braços, desolado com a traição do marido e da
irmã e que mesmo assim foi benevolente o bastante para perdoá-la. E ela cospe na cara dele.

Gemma garantiu uma pena de morte.

Todos sabem disso.

Ela avança violentamente em sua direção e os guardas precisam ser mais incisivos em dominá-la.
O juiz bate o martelo ferozmente, decretando que a corte está em recesso e mandando tirar Gemma
do tribunal.

A corte alvoroçada o rodeia, agora é a vez dele ser o alvo da pena de todos. Consigo ver seu sorriso
vitorioso para mim quando sou conduzido para fora da bagunça.

O lado de fora está mil vezes pior. É difícil cavar o caminho para o carro com a enxurrada de
jornalistas em cima de mim, os policiais tentam afastá-los, mantenho a cabeça baixa, sentindo o sol
queimando minha testa e estou fritando debaixo daquele terno quando algo se choca contra mim e
aperta minha cintura, pisco tentando discernir do que se trata. É uma criança? Que criança... O
cabelo preto brilhoso cobre seu rosto, o afasto com dificuldade pelas algemas e Mia me encara.

— Papai. — Ela murmura antes de ser rapidamente afastada.


Dobro o pescoço, tentando ver o que aconteceu, escuto um: Senhorita Malik , em meio a confusão.
Um homem mal encarado e um policial discutem e ela está no meio disso, tentando se desvencilhar
do homem.

Então, sou empurrado para dentro do carro.

Ah, Mia.

Encosto a testa no vidro quando o carro é posto em movimento. Observo a cidade correndo através
da janela, sem emoção. O prédio alto onde costumava ser a galeria de Aaron está no caminho,
parece envelhecido e abandonado, as janelas rachadas, a entrada elegante pichada. Faz parte de
uma realidade que não existe mais.

Porém uma história bem vivida, uma vez que Aaron também foi apontado como um dos
apoiadores de Andrômeda, além de um possível amante – era o que indicavam os inúmeros retratos
meus que ele mantinha ainda daquela exibição em sua galeria – e que justificava ter me feito seu
herdeiro. De modo simplificado, nós o usamos e o descartamos, ficando apenas com seu dinheiro.

Aproveitando que o julgamento fora interrompido pelo restante do dia, meu advogado viu como
uma oportunidade para discutirmos minha situação no caso.

— Então, você me garante que nunca houve nada? Nenhum beijinho ou uma mão boba?

Reviro os olhos, caminhando pela sala minúscula de visitas do presídio.

— Não, eu sou definitivamente gay.

— Bom, bom... — Ele assente, não muito convencido, abrindo outra pasta — tem alguma forma de
provar isso?

Me viro exaurido.

— Não sei, ser casado com outro homem não é convincente o bastante?

Ele arqueia uma sobrancelha, os lábios se torcendo de uma maneira que já aprendi a decifrar.
Entendi.

— Eu sou muito temperamental quando questionado. — Digo o óbvio.

— Sim e é por isso que te colocar para depor está fora de questão.

— As provas não são contestáveis?

— Infelizmente não. Você sabe, quando existem armas, digitais e demais fluidos corporais, a
justiça não quer saber, eles só agem determinados a punir, sem direito a conversa. Além do mais,
as tais conversas entre você e a Srta. Styles foram aceitas e são suficientemente consistentes com a
história do caso. E não é exatamente criminoso se envolver com a sua cunhada, mas agir em
conjunto para realizarem homicídios é...

— Eu sei, eu sei. — Suspiro, coçando a nuca — As coisas não vão nada bem para ela.

— Você está sendo gentil, ela cavou a própria cova e entrou nela. Analisando tudo, só existe uma
forma de você amenizar a sua situação.

— Não!
— Louis, sejamos razoáveis. Você está prestes a ser condenado por uma série de barbaridades, o
país te odeia. E ter o seu marido grávido e traído todo o santo dia naquele tribunal só está te
queimando cada vez mais, eu sei que vocês estão brigados-

— Brigados? — Grito indignado — Ele armou toda essa merda pra mim. Ele é Andrômeda. Não
ele exatamente.

— Sim, sei das personalidades que você acredita que ele tenha.

— Eu não acredito. — Retruco, usando de seu tom de voz irônico — É verdade. Saberiam se o juiz
exigisse um diagnóstico.

— O juiz não vai exigir nada do Harry. Ele é a vítima aqui.

Abro a boca para contestar esse absurdo, mas diante das circunstâncias parece inútil continuar
batendo na mesma tecla.

— E quanto a guarda das crianças?

Dr. Reynalds não esconde mais uma vez sua frustração.

— Ela segue pertencendo ao seu marido e agora sua mãe não tem a menor chance.

— C-Como assim? — Me exalto, temendo que eles tenham feito algo com a minha mãe.

— Ela tem um ordem de restrição.

— O quê?

— Hamm me ligou agora pouco, sua mãe deu um soco e fez ameaças graves a Sra. Anne Styles.

Caio na cadeira.

— Minha mãe bateu na Anne?

— Sim. A ordem de restrição diz que ela não pode chegar a menos de 300 metros de Anne, Harry,
Blake e Spencer por representar um risco à segurança das respectivas partes.

— Isso significa que meus filhos estão completamente nas mãos daqueles dois malucos? — Berro
socando a mesa. O guarda no canto me olha duramente, a mão no coldre. Ele não seria intimidante
nem se fosse a porra do demônio — Isso é perfeito, é excelente! Eu não vou ter mais acesso
nenhum a eles. É isso, ele vai matar eles, meus filhos vão morrer. Que ótima notícia!

— Louis, pelo amor...

— Pelo amor? Pelo amor digo eu, como... — Engasgo, incapaz de completar uma mísera frase —
Como eu pude deixar isso acontecer? — Enterro o rosto entre as mãos, desolado.

— Se você se mostrar arrependido e afável, vocês estão juntos há mais de uma década, é claro que
se amam.

Solto uma risada seca.

— Você pode persuadir o seu marido a voltar atrás, faça as pazes com ele. Ter o apoio dele seria
muito vantajoso.
— Qual parte do ele armou tudo isso você ainda não entendeu?

— Eu sou seu advogado, não precisa omitir nada.

Afasto as mãos, mirando o homem à minha frente. Ele não consegue disfarçar o desconforto ao se
ver como alvo do meu olhar raivoso. Ele é como os outros presos, crentes de que o rasgarei de fora
a fora na primeira oportunidade.

— Se não acredita em mim, o que ainda está fazendo aqui?

Reynalds pigarreia.

— Claro que acredito, mas amanhã Harry irá depor e ele vai testemunhar contra você.

— Naturalmente. — Relaxo na cadeira.

— Eu tenho uma cópia do depoimento colhido pelo FBI. Ele diz que você o estuprou.

— É mentira. — Digo sem pestanejar.

— Se lembra do ocorrido?

— Não.

— Por que não estava sóbrio?

Aperto os lábios, desviando o olhar.

— Sim.

— Então, talvez seja verdade.

— Eu garanto que é mentira.

— Sim, porque você afirma que é "uma das muitas mentiras daquela boneca vadia demoníaca da
Allicent", correto?

— Correto.

— Você também não o socou no rosto durante a gestação atual e o ameaçou?

— Isso é verdade. — Admito vergonhosamente.

— Você também demonstrou um comportamento agressivo em certa ocasião no hospital no início


desta gravidez?

— Sim.

— Ao que parece você não é exatamente carinhoso com o seu marido. — Ele comenta — Você o
esfaqueou? E incendiou o túmulo da sua filha?

— Sim. Mas- — O último é injustificável, de qualquer forma.

— E o estuprou e agrediu nas últimas horas antes de ser capturado?

— Não, isso é mentira. Ela... Ele se feriu diante dos meus olhos.
— Haviam vestígios de pele debaixo das unhas dele e batem com o seu DNA. Por que ele te
arranhou?

— Para dar veracidade a mentira dele.

— Ele disse que fez isso lutando contra o abuso.

— É mentira.

— Céus, Louis, ele é um ótimo mentiroso, então. Como você encontrou alguém assim?

Dou de ombros.

— Não sei, mas ele com certeza faz parte de alguma maldição ou coisa assim. É só ruim demais
para ser verdade.

Xx

— Todos de pé! — O guarda ordena com a voz firme.

O juiz entra e nos libera para que tomemos nossos assentos novamente. Hoje, Gemma está distante
e absolutamente muda, com o rosto voltado para baixo.

— A corte está em sessão. — Dito isso, o promotor é o primeiro a se levantar.

— Meritíssimo, a promotoria chama como testemunha de acusação o Sr. Harry Edward Tomlinson.

Algo que sempre fora característico de Harry, independentemente de suas demais identidades, ele
jamais estaria menos arrumado do que o esperado. Poderia ser uma simples ida ao mercado ou o
almoço de domingo, não importa, Harry sempre seria elegante e com um ar de altivez. Blazer,
sobretudo, scarfs, mocassins, boinas, chapéus, óculos ou bolsas, o que fosse, seria da marca mais
cara possível e nunca, em hipótese alguma, seria simples. Mas hoje, logo hoje, houve uma exceção
à regra.

Em questão de vestuário, ele está irreconhecível.

Ao longo da noite, tentando refúgio das perturbações da minha cabeça, comecei a pensar no que ele
vestiria. Haviam tantas hipóteses bem mais prováveis do que a que se apresentava diante de mim.

Simplesmente porque era inconcebível que ele usasse jeans, jeans surrados, um tanto largo e com a
barra por fazer cobrindo quase que completamente seu vans – Vans? Onde estão as botas? – , a
camiseta desbotada também era novidade. Eu não lembro de tê-la visto alguma vez na vida, ele fez
questão de comprar uma camisa velha? Por cima, vestia um grande e volumoso casaco de tricô
multicolorido, os anéis sumiram de seus dedos, apenas a aliança, os cabelos bagunçados e os olhos
fundos e inchados, o rosto pálido. Tudo milimetricamente organizado para a simulação de
coitadinho.

Ele não dorme, ele não come, ele não tem paz, apenas chora e clama aos céus por um instante de
paz. Eu mereço! Se para mim soa caricato e previsível demais, para os outros é a imagem da
perfeita vítima, as feições se contorcem em pena ao vê-lo caminhando devagar, como se não
tivesse forças para manter o passo firme. No momento de subir ao banco das testemunhas, precisou
ser ajudado pelo guarda.

Estranho, duvido que tenha precisado de ajuda quando matava todas aquelas famílias diariamente.
O vi engolir em seco e se acuar ao olhar para frente e encontrar as dezenas de olhos voltados para
ele. Cody. Seu lábio estremeceu, a timidez e insegurança dominando seu rosto.

— Não tenha medo, Harry, ele não pode te machucar. — O promotor disse, olhando para mim.

Oh, ele está com medo de mim? Claro.

Harry assentiu e olhou para baixo e depois para o juiz.

— Eu gostaria de me culpar, meritíssimo, queria ter me vestido de maneira mais apropriada, mas
no momento isso é tudo o que cabe em mim.

O maldito júri se confundiu em um misto de risadinhas e olhares ternos. Em algum momento um


deles levantaria e ninaria Harry em seus próprios braços.

Ele era a coisa mais fofa e inocente daquele lugar imundo aos olhos dos imbecis.

— Não se preocupe, querido. — O juiz tranquilizou.

Querido?

A partir daí, ele repetiu toda a confissão enganosa que me contou anteriormente. Articulando ao
máximo, sempre se colocando como uma pobre vítima, Gemma como o gênio do mal e eu como
seu cão carniceiro. Ele tornou a detalhar a sua invenção do estupro e sobre como eu matei Ashton e
o torturei por horas a fio, também fazendo questão de chegar a soluçar ao contar como eu admiti
ter matado Michael. Praticamente podia sentir o ódio de Luke fervilhando em minha direção.

Harry se interrompia por vezes, chorava, soluçava e dizia que não podia continuar. Depois se
recompunha e murmurava fracamente mais atrocidades que vivenciou ao meu lado.

— Eu perdi as contas de quantas vezes ele apontou a arma para mim e me convenceu de que iria
atirar, em uma destas vezes, eu sofri o inicio de um aborto espontaneo e ele não moveu um dedo
para me ajudar. — Soluça, passando a mão pelo rosto avermelhado — E depois que ele fez aquela
monstruosidade com o túmulo da nossa filha… Ele não só me atacou covardemente, como disse
que odiava a todos nós, odiava a nossa família e disse que esperava que eu tivesse uma morte
dolorosa muito em breve, então, não tenho dúvidas de que se o FBI não tivesse chegado a tempo
eu teria tido essa morte que ele prometeu. Não sei o que aconteceu, mas esse não é o homem com
quem eu me casei.

E ele volta a chorar, o júri inteiro está utilizando lenços para secar as lágrimas, uma jurada está
literalmente em pranto e até o juiz parece abalado.

— Eu só quero que a justiça seja feita e eles paguem por todo mau que causaram. — É a sua última
declaração.

E assim como Gemma, só me resta aceitar em silêncio.

Retornamos à penitenciária, mas ao invés da minha cela, me levam até a sala de visitas onde
costumava ter meus encontros com meu advogado, no entanto, ele tinha seguido na direção
contrária, então o que seria... Estranho quando encontro Niall na porta, indicando que eu entre.

— O quê?

Ele suspira quando eu entro.


— Você tem visita. — E se afasta para que Harry entre em meu campo de visão.

Ele não aparenta o abalo de antes, pelo contrário, está ótimo. Caminhando até a cadeira e se
sentando. Eu automaticamente recuo, tentando sair, mas o policial as minhas costas me segura com
firmeza e me puxa até o assento diante dele.

— Não, eu não quero falar com você. Eu não quero ouvir nenhuma das suas merdas! Tira ele
daqui. — Exijo a Horan, que hesita — Niall, você não pode me obrigar a falar com ele.

Vendo meu nervosismo, ele chega a uma conclusão.

— Harry, não acho que seja um bom momento. — Se aproxima, tocando o ombro de Harry que
deixa as orbes esverdeadas caírem sobre a mão de Niall.

— Eu acho que é o momento ideal, agora se afaste de mim. — Retruca com a voz cortante. Os
olhos do garoto cresceram de tamanho, ele não estava interessado em bancar o inocente para Niall.

Sabendo que seria um caso perdido, me dei por vencido.

— Tudo bem, Irlanda.

— Certo, chefe. — Parecia um tanto estúpido que ele continuasse a se referir daquela forma, dada
a minha atual posição, mas sorri mesmo assim.

Quando ele saiu, Harry bocejou, entediado.

— Esse lugar é melhor do que eu esperava. Estou meio decepcionado.

— Você já deveria ter me imaginado em Alcatraz, no mínimo.

— É, por aí, mas sei que não vai continuar aqui depois da sentença, então, como tem sido? — Soa
repentinamente interessado, a voz sussurrada — Já derrubou o sabonete na hora do banho? Entrou
para alguma gangue? É a putinha de algum neonazista?

— Não para todas as suas perguntas. Na verdade todos me evitam aqui, eles tem medo de mim.

Suas sobrancelhas arquearam.

— É mesmo? Andrômeda impõe tanto respeito assim? Que divertido. — Sorri satisfeito, ele
estende a mão, ajeitando meu colarinho. Enrijeço, e é quando sinto algo raspando nas pontas dos
dedos, tem alguma coisa na cadeira. Dedilho novamente, é um brinco. Alguém deve ter deixado
cair sem perceber — Não vou poder ficar muito tempo, tenho uma entrevista com a Oprah e tem
uns dez jornais querendo falar comigo, a fama não é tão legal quanto eu imaginava. Só perguntam
de você o tempo todo.

— Foi você quem escolheu me passar essas honrarias. — Digo com desprezo, conseguindo pegar
disfarçadamente o brinco sem que o guarda do outro lado do vidro pareça notar.

— Você tem razão. Oh, isso me lembra. — Pega a sua bolsa de mão, revirando até encontrar o que
deseja e a empurra sobre a mesa. Uma fotografia de um ultrassom — A nossa bebê, ela está
enorme. Já estamos no sétimo mês. — Acaricia a barriga.

— Nossa? — Repito, olhando brevemente — Pensei que fosse do Aaron. Ou do zelador, padeiro,
mecânico, quem sabe do juiz...

Sua expressão se fecha em algo bem mais carrancudo.


— Não faça piadas, ela é nossa, minha e sua.

— Quando você diz "minha" a qual das almas endiabradas você se refere, porque eu tenho certeza
que não é o Harry.

Aquele semblante neutro e contido responde ao meu questionamento.

— Então, esse é o fruto do nosso amor, Allicent Rose? — Não escondo a ironia.

— Exatamente. — Murmura séria.

— Isso é estranho, porque eu não te amo. Na verdade eu tenho horror só de pensar como você é de
verdade, meu advogado leu os livros do Desmond e segundo ele, você é um coisinha nojenta e
feiosa. Claro que deve se achar muito digna usando o corpo do Harry como fachada, mas na
realidade, sabemos que você é só um monte de lixo feito de plástico, como alguém como eu
poderia amar alguém como você?

Ela pisca devagar, a respiração engatando.

— Você adora falar sobre o "Harry", mas não existe Harry nenhum. Esse corpo é meu, essa vida é
minha, tudo o que você acha que conhece ou sabe sobre esse tal Harry não passa de invenção,
porque ele não existe. Eu posso ter sido uma boneca há muito tempo atrás, mas hoje em dia estou
muito longe disso e você, querendo ou não, já esteve comigo muitas e muitas vezes. O que te
aborrece é saber que está aqui. — Ela exibe a mão — Na palma da minha mão. O seu complexo de
superioridade não te permite tolerar o fato de que você foi vencido. E enquanto você apodrece
aqui, eu vou ter a nossa filhinha, o meu bebê que será só meu pela primeira vez, e você nunca vai
ver ou tocar nela, assim como você nunca mais vai ver o Spencer e o Blake. Eles vão esquecer que
você existe.

Allicent sorri, o olhar frio e avaliador.

— Se você me odeia tanto, por que fez questão de ter uma filha comigo?

Uma sombra começa a se formar no canto da sala, se movendo vagamente atrás dele, os cachos
dourados tocando o pescoço de meu marido quando a sombra se curva sobre ele.

— Que audácia vir até aqui. — Diz indignado.

— Como por quê? Você me deve isso! Depois de ter causado a morte da Eve e me condenar
aqueles dois... Aqueles dois garotos, eu merecia ter uma só minha. Era o mínimo. E se isso
significa que eu te amo ou quero ter um pedaço seu na minha vida? Não. Se você me odeia, eu o
odeio dez mil vezes mais, o meu ódio por você é tão devastador e violento que nada do que eu te
causar nesta vida será o bastante, nem mesmo que eu pudesse viver outras vidas mais dedicadas
unicamente em te torturar bastaria, mas farei a minha parte, eu vou ensinar essa criança a te odiar,
a ter mágoa e raiva no coração e seja como for, algo vindo de nós dois jamais poderia ser bom.
Nós dois somos podres, imundos e mesmo sendo só um bebê, a Leslie já é o mal encarnado,
consumida pelo nosso ódio. Porque é isso que ela é, o fruto do nosso ódio, por isso ela é tão mais
valiosa do que os outros. Antes mesmo de nascer, ela tem me ajudado a te manter aqui e em
poucos dias sairá o veredito e você vai ser condenado, claro que vai e nós estaremos assistindo na
primeira fila.

Meu peito esmaga com suas palavras. Eu não sei o que pensar, eu não... É um pesadelo, só pode
ser a porra de um pesadelo.

— Se veio aqui para me dizer isso, pode ir embora. — Sussurro, girando o brinco entre os dedos,
até que a ponta metálica roça na fechadura das algemas.

Ela sorri para mim, triunfante em ver meu abalo.

— Isso te deixou tristinho? Que pena, mas era exatamente essa a minha intenção. Pelo que dizem a
sua condenação é certa e suas histórias absurdas sobre um tal de TDI tem virado piada mundo
afora.

— Você sumiu com a minha pesquisa e do Ashton.

— Eu jamais faria isso.

— Então um dos seus capachos fez.

— Ah, Louis, você deveria me agradecer por estar aqui, apesar de todo o mal que me causou.

Te agradecer por vir me perturbar ainda mais?

— Deveria ter me deixado pegá-lo quando tive a chance. — A voz de Lucian ecoa somente aos
meus ouvidos, quando ele caminha pela sala, um olhar de repúdio sobre Harry — Essa cobra
armou para nós e ainda tem a coragem de continuar provocando. O que ela acha que nós somos?

Decidido a não lhe dar ouvidos permaneço calado.

Ouço uma série de soluços e sei que a atuação retornou.

— Eu sempre te amei, sempre fui devoto a você e foi assim que me retribuiu, caçando aquelas
pobres pessoas como animais na calada da noite.

Eu não fiz isso.

— Estripando crianças inocentes.

Para com isso.

— Não era à toa que nossos filhos tinham tanto medo de você.

Chega de mentir.

— Todo esse tempo, você era Andrômeda, você estava matando, você era...

Não diga isso.

Não diga.

Não.

— Você era um assassino!

Ergo os olhos, sentindo meus dedos que se moviam sozinhos dando a última volta na fechadura.
Enxergo um montante de sombras retorcidas as costas de Harry, mas é a minha quem fala, direto
em meu ouvido o timbre rouco de Lucian rosna:

— Ele nos chamou de assassinos?

— Sim. — O cacheado parece confuso ao me ver falando sozinho.


— Se somos assassinos, o que assassinos fazem, Louis?

— Matam.

Em um instante, as algemas se soltam dos meus pulsos. Com um impulso firme, viro a mesa,
tirando-a do meu caminho e não importa quantas personalidades loucas ele tenha, a minha única é
mais mortal que todas elas e voo sobre eles, caindo em cima de Harry, ele rola para fora da
cadeira, mas o pego no caminho, forçando meu peso sobre ele e firmando as mãos ao redor de seu
pescoço. Sem vacilar ou hesitar, só apertando o mais forte que posso, assistindo de perto ele
lutando para me afastar, seu rosto muda de cor e o ruído alto do ar lhe faltando.

Algo me diz que não consegue mudar agora.

Essa é a hora de acabar com isso.

A porta é rapidamente arrebentada e vejo corpos vindo sobre mim, tentando me puxar, com um
único braço consigo golpear cada um deles e continuar meu serviço. E é quando percebo meu
joelho esmagando sua barriga e mesmo sem fôlego ele consegue gritar. Um grito estridente e
dolorido que nem mesmo Allicent poderia forjar.

Leslie.

Na mesma hora paro. Eu não consigo ir adiante e apesar das minhas mãos longe, ele continua a
gritar, gemer e se contorcer sem fôlego, a mão caindo sobre a barriga como se indicasse a sua fonte
de dor. Os policiais estão me segurando e me mantendo imóvel quando Niall, completamente
horrorizado entra e embora empalidecido, pega Harry no colo e o leva para fora da sala. Da porta
aberta escuto seus gritos pelo corredor.

Maldição.

O que eu fiz?

Xx

Na solitária, só me resta falar com as paredes, indo de uma extremidade a outra, arrancando os
cabelos e me martirizando. Eu o odeio, mas ao mesmo tempo não o odeio. Por que essa maldita
tinha que ter o rosto dele, a voz dele, ser ele? Por que eu tenho que viver nesse inferno? Por que eu
simplesmente não morro e me livro de tudo isso? Eu não aguento mais. Eu não aguento.

De repente, a porta é aberta e alguém adentra a minha escuridão. A luz rarefeita de sempre, ilumina
a expressão velada de Niall Horan, ele está diferente, não parece o garoto de antes, risonho e
ingênuo. Ele parece mais endurecido e até ferido.

— Niall, o que aconteceu? Eles estão bem?

Niall olha ao redor, procurando no ar as palavras que precisa dizer.

Eu posso ler nas entrelinhas.

— Não estão?

— O Harry está internado, mas ele vai se recuperar em algumas semanas.

— Que bom. — Aperto os olhos, suspirando aliviado.

— Mas a Leslie, ela... — Ele engasga antes de dizer: — Ela nasceu morta.
— M-Morta? Fui eu? Naquela hora eu... Eu? — Choramingo estremecendo.

Niall inspira profundamente, o rosto já banhado por lágrimas e assente.

Eu deslizo pela parede até o chão. E assim como ele, me rendo ao mais completo descontrole,
chorando abertamente.

— Ela tinha razão, eu sou um monstro, eu fiz tudo o que ela disse. — Minha voz embargada e
soluçada ecoa morbidamente pelo espaço.

Eu só quero gritar.

Eu quero morrer.

Mas morrer é bom demais, eu preciso queimar em agonia para toda a eternidade e nunca será o
bastante.

— Eu sinto muito. — Niall ajoelha perto de mim e me abraça. Abalado como estou, mal lhe dou
ouvidos, apenas deixo minha testa tombar em seu ombro e o abraço de volta, me afogando em
lágrimas e desespero — A culpa é minha, eu não devia ter deixado ele entrar, eu não devia... Me
perdoa, por favor, me perdoa. Você é meu melhor amigo e eu te trai.

A culpa não é sua, Irlanda. Não é.

Porém, eu não consigo dizer.

Xx

O país inteiro só fala de uma coisa. Sobre como eu matei a minha família.

Há manifestantes nas portas do presídio, no tribunal, na nossa casa e até na casa da minha mãe.
Todos exigem que eu receba pena de morte quando o júri se reúne para deliberar a sentença.

Parece que é um fato. Minha mãe não pode se aproximar e somente através de Niall sei um pouco
sobre o que acontece com as crianças e Harry, segundo ele, os meninos estão bem e Harry continua
internado. Por isso, ele não está presente quando o júri chega a uma conclusão sobre Gemma, por
conta da grande revolta contra a mim, a advogada insistiu para que nossas sentenças fossem lidas
separadamente.

Pela manhã era a dela.

E a minha viria ao entardecer.

Assistimos pela televisão a decisão do júri chegando às mãos do juiz Roffman. Gemma estava em
pé, usando um terninho preto e os cabelos jogados sobre o ombro direito e ela não parecia nada
calma.

— Antes de ouvir a sentença, tem algo que gostaria de dizer à corte, Srta. Styles?

Ela olha para a advogada e respira fundo.

— Eu sei que vocês não acreditam, mas eu sou inocente. — Diz com a voz baixa e afetada —
Posso ter um gênio péssimo, mas sempre tentei melhorar e infelizmente nada disso tem
importância porque sei que vocês decidiram a pior das alternativas para mim e está tudo bem, eu
não odeio os senhores. — Olha para os jurados e dobra o pescoço, para encontrar a mãe — Mas
você sim. Obrigada, meritíssimo.
— Certo. — Ele ajeita os óculos e começa a ler: — A senhorita Gemma Anne Styles foi declarada
culpada de todas as acusações e sentenciada à morte por injeção letal.

Se escuta o ligeiro grito de horror de Anne na platéia e mesmo sem qualquer estrutura, Gemma
permanece de pé, ouvindo o restante de sua condenação.

— A senhorita receberá uma injeção intravenosa de uma quantidade letal de um barbiturato em


combinação com um agente paralisador, até morrer.

Ela solenemente aceitou a decisão, mesmo que não tivesse culpa alguma. Provavelmente a
advogada iria recorrer, mas havia poucas chances da pena ser revogada.

Uma já foi.

Era a minha vez.

Horas mais tarde, eu ocupava exatamente o mesmo lugar que Gemma esteve. Observando o juiz
receber a decisão. Gostaria que ao menos minha mãe pudesse estar aqui, mas com Anne no recinto
não era possível. Niall, pelo menos, estava às minhas costas.

— Antes de ouvir a sentença, tem algo que gostaria de dizer à corte, Sr. Tomlinson?

Penso no discurso que passei e repassei com meu advogado. Lembro linha por linha, no entanto, só
existe uma coisa que desejo dizer diante destas pessoas. E ao meu ver, é a única verdade.

— Eu sou o culpado.

Um burburinho se espalha rapidamente, até que as vozes se elevam.

— Louis?! — Dr. Reynalds me puxa.

— Ordem! — Juiz Roffman bate o martelo — O que quer dizer, Sr. Tomlinson?

— A culpa é minha, eu posso não ter matado diretamente essas pessoas, mas fui eu quem
desencadeou isso. Eu causei tudo isso. A culpa é minha. — Digo num só fôlego, secando os olhos.

O juiz contraiu a mandíbula e como de costume, ajeitou os óculos antes de baixar os olhos para o
documento.

— O FBI terá de prestar contas quanto a isso. — Alguns se entreolham, permaneço imóvel com as
mãos unidas diante do corpo — Como solicitado, tenho aqui os resultados da avaliação psiquiátrica
ao qual o senhor foi submetido e segundo ele, é reconhecido que em natureza dos distúrbios
mentais diagnosticados e em sua total incapacidade de resistir aos impulsos violentos, é aceita a
alegação de insanidade mental, sendo assim, está sentenciado a cumprir prisão perpétua no
Sanatório W. Lincoln, no Estado da Geórgia.

Ele bate o martelo. Está feito.

Não expresso emoção. Um hospício? Quem poderia imaginar.

Finalmente estarei em um lugar propício ao que eu sou.


│27│serpens

U m mês. É o tempo que eu chuto ter passado, não é como se fossem me dar a resposta assim tão
facilmente, nada nesse lugar é fácil ou acessível, por exemplo, não há calendários e ninguém
responde caso você pergunte o dia. Não que a maioria aqui sequer esteja lúcida para fazer algo
além de babar e balbuciar suas maluquices.

Estar entre os loucos, te torna louco.

Sei bem disso, a TV só serve para exibir filmes antigos, perdi as contas de quantas vezes vi e revi
Casablanca, O ladrão de casacas, A felicidade não se compra, até mesmo meu filme predileto, Um
corpo que cai começou a me dar nos nervos depois deste looping infinito. Estranhamente, o único
filme que tinha vontade de ver nunca foi exibido, talvez porque eu estivesse nele agora, era o que
era no momento: Um estranho no ninho.

Uma pessoa lúcida rodeada de insanos.

Não importava o que dizia o meu diagnóstico, eu não estava nem perto de parecer com aquela
gente.

O Sanatório W. Lincoln não era o que eu esperava, pelo que via em filmes e séries tinha certeza
que encontraria um casarão fantasmagórico, paredes cheias de lodo, o ar carregado pelo odor de
putrefação, portas de ferro onde atrás ecoariam os gemidos agonizantes dos internos torturados, um
ou outro espírito se esgueirando para dilacerar gargantas e nada além do terror absoluto, mas não
era nada assim. Ao começar por ser um lugar estranhamente agradável, exatamente. Era uma
estrutura moderna, arquitetônica, a fachada branca e aconchegante como a de um SPA, era como se
dissesse: ei você que perdeu a completa razão, venha conosco e seja livre para comer grama e
fingir ser um babuíno, você não será julgado!

As paredes internas tinham tons pastéis e quadros de flores, paisagens campestres, na recepção
tocava sons da natureza. A música de um córrego flutuava pelos corredores quando fui trazido para
esse lugar, em uma camisa de força, com jornalistas em meu encalço, gritando e empurrando os
microfones contra meu rosto. Eu era uma celebridade, uma celebridade assassina.

Os internos enfiaram os rostos na janelinha para enxergar seu mais novo hóspede, alguns me
reconheceram.

Gritaram e guincharam, riram e começaram a imitar sons de correntes – era o que eu acreditava,
porque pra mim eram só ruídos irritantes – , se pudesse mover minhas mãos teria torcido os
punhos.

Meu novo lar era um cubículo, a porra de uma caixa de sardinha, um banheirinho ridículo sem
porta – porque um louco condenado precisaria de dignidade, não é mesmo? – uma cama dois
palmos acima do chão com um colchão tão fino quanto um lençol, mas eles prometiam uma
experiência mágica nos banners de entrada, talvez fosse pretensão de mais para um instituição
psiquiátrica judiciária, afinal, aqui só estavam criminosos. A nata da escória da sociedade e eu fazia
parte disso.

Como cheguei tarde, fiquei no meu cárcere durante toda a noite, rolando na minha caminha
vagabunda, pensando na minha cama de verdade, na minha casa, em tudo o que era meu e não
mais me pertencia. Eu fui destituído de tudo. Não tinha sequer uma porta no meu banheiro.
Testei os lençóis, mais por curiosidade do que qualquer coisa, eles não serviam como forca. Ou
seja, ali um cidadão não tinha a menor chance de se suicidar. Isso sim é passar dos limites para
mim. No dia seguinte, disse olá a minha nova vida.

Matthew, era o nome do fedelho sorridente de aparelho que vinha me liberar do meu calabouço
todas as manhãs. Ele perguntava sobre como eu estava me sentindo, como havia sido minha noite
de sono, se tive sonhos e o que gostava de fazer e por um tempo, até que respondi e tentei ser
civilizado, uma semana depois eu só o mandava para o inferno, mas isso não impedia Matthew de
continuar bancando o boa praça. O meu carcereiro me liberava para a nossa enfermaria. O
Sanatório era imenso e é óbvio que não estaríamos todos interagindo e correndo livres por toda a
propriedade, então, éramos divididos em Enfermarias, não sabia ao certo quantas seriam ao todo,
exceto que a minha era a Enfermaria 6 e todos tínhamos sangue nas mãos, porém, pouco lúcidos
para reconhecer. Na minha ala, éramos nove e quem chefiava era a Dra. Turner, desconfiava que
ela não fosse a única doutora por ali, mas os demais se auto intitulavam como "enfermeiros",
provavelmente porque soava menos amedrontador, por algum motivo os malucos tinham horror a
médicos. Eu detestava todos, igualmente.

A primeira ordem da enfermaria era a medicação. Formamos uma fila diante do posto e recebemos
dois copinhos, um com comprimidos e outro com água. Alguns tomavam alegremente o que lhes
era dado, outros surtavam. Nunca fiz caso de nada, apenas engolia, podia reconhecer aquelas
pílulas, tomei elas por pouquíssimo tempo na infância. Onde eu estaria se nunca tivesse parado?
Talvez não aqui.

Após isso o meu terror começava, pois tínhamos de fazer tudo em grupo. Na hora da higiene
matinal, tal como a hora da escovação em uma escola de educação infantil, era um caos. Homens
adultos que não sabiam o que fazer com uma escova de dentes e todo o tipo coisa podia acontecer,
costumava observar encostado em uma pilastra, escovando tranquilamente enquanto assistia os
enfermeiros tentando evitar que Jim e Max – os malucos nível dez enfiassem as escovas nos
ouvidos ou comessem toda a pasta. Era sempre divertido. Depois era a hora do café da manhã,
outra tortura coletiva e como se o fato de detestar estar em grupo já não me irritasse o bastante,
vinha o agravante deles tentando colocar a mão no meu prato, Jim não sentava mais ao meu lado
depois que torci seu pulso por fazer isso. Ao menos o almoço e jantar eram nos quartos.

Então, vinha a hora da recreação. Outro momento vergonhoso em que meus colegas de hospício
não sabiam o que fazer com uma bola de basquete e ficavam atrás das formigas. Provavelmente
estava me sentindo muito superior ao constatar que não estávamos na mesma página. Eu não
entendia exatamente porque fui considerado insano, quer dizer, sim, eu tenho algumas questões,
mas estou completamente lúcido. Certo?

Errado.

Errado, segundo a doutora Turner quando nos reunimos para a pior parte do dia. A terapia que
chamavam de roda de conversa, ninguém estava conversando porra nenhuma, não tinha nada de
casual e só eu notava isso.

Só descobri que dia era hoje quando colocamos nossas cadeiras lado a lado formando um círculo
ao redor da doutora e recebemos pequenos embrulhos e um "feliz dia dos namorados" em uníssono
da equipe. Se hoje é dia dos namorados, significa que o Harry já fez aniversário.

Desde que entrei aqui não soube nada sobre ele. Quando Niall casualmente vinha me ver, ele só
dizia que Harry estava se recuperando, ou seja, raso demais para se ter uma noção de como
Allicent estaria – uma vez que ela havia dominado Harry – , meu coração apertava com o
pensamento, mas ela era uma ameaça e tinha perdido o que mais queria. Eu sou carta fora do
baralho, então, o que ela poderia estar planejando agora? E contra quem?

De repente um clarão atingiu diretamente meu olho esquerdo, a ardência automaticamente me


fazendo fechar a cara em aborrecimento.

— Bravo, bravo, ele bravo! — Phil, o estúpido idiota e cabeça oca que tinha a mania insuportável
de seguir os outros cantarolava, rindo, enquanto mirava a luz de sua lanterninha na minha cara.

— Para com isso. — Disse entredentes.

Ele achou engraçado e gargalhou, apertando o botão.

— Liga. Desliga. Liga. Desliga. — Continuou, me deixando tonto e cego, tanto de raiva quanto
literalmente.

— Olha aqui seu- — Comecei, porém a doutora me chamou.

— Louis, abra o seu. — Ela sorriu, mas eu não enxergava nada de amigável em seus olhos verdes
distantes ou no sorriso mecânico. Sentia como se ela estivesse estudando minuciosamente tudo o
que eu fazia e dizia.

Puxei a fita dourada e me deparei com duas bolinhas anti-stress coloridas. Nem meus filhos tinham
isso.

— Você só pode estar me zoando.

— Claro que não, acho que vai te ajudar bastante. Você se irrita com muita facilidade e vive com
os punhos cerrados ou batendo em algo ou... — Ela deu uma olhada no grupo — em alguém. Vai
ajudar, Louis.

Assenti a contragosto.

— Já recebi presentes bem melhores.

— Não tenho dúvidas quanto a isso.

A data comemorativa abre brecha para o início da conversa do dia, as memórias associadas a
namorados. Doug fala sobre sua namorada imaginaria que todos estão cansados de saber que só
existe na cabeça dele e mesmo assim ele insiste descrevendo uma mulher que é a Shailene
Woodley, mas ele garante ser uma tal de Joan. Gavin fala das garotas que ele perseguia e matava,
acho que ele não sabe o que é uma namorada. Bruce – o mais velho do grupo e talvez do sanatório
inteiro – tagarela sobre a esposa e dos anos felizes que tiveram juntos até o dia em que ele surtou e
fez um ensopado com ela.

Os outros nunca se relacionaram com ninguém.

Eu era o único que não matei o cônjuge.

— Louis, por que não nos fala de como você e o Harry comemoravam essa data.

Respirei fundo, não querendo falar sobre nada, principalmente Harry.

— Harry? — Phil guincha — A namorada dele é menino!

— Phil, o Louis está falando, vamos respeitar a vez de cada um, está bem? — A doutora interveio
com seu timbre firme.
— Eu não quero falar sobre o Harry.

— Por que?

— Porque eu não quero. — Digo simplesmente, apesar de saber que essa não vai colar.

A doutora Turner não era do tipo que aceitava uma resposta meia boca, ainda mais quando vinha
de alguém que nunca colabora.

— Tem alguma relação com você achar que ele te colocou aqui?

Achar? Eu não acho. Eu sei.

— Você pode não acreditar, mas sei do que estou falando. Ele armou para mim, com a ajuda de
outros agentes do FBI, eu caí na sua armadilha.

Ela balança a cabeça, os dedos se movendo conforme ele escreve com a caneta em sua prancheta.

— Sabe que a ideia de conspirações e perseguição contra você integram a sua condição, não é?

— Isso não é coisa da minha cabeça.

— É normal que se volte contra a pessoa mais próxima de você...

— Eu não estou me voltando contra ninguém. Eles é que se voltaram contra mim!

— Quando você diz “eles” se refere?

— As outras personalidades. — Respondo sentindo minha cabeça doendo com toda aquela
conversa. Ela nunca me dá ouvidos. Nunca acredita em mim, acha que sou como esses idiotas.

— O TDI, você se lembra de quando teve contato com ele?

Franzo as sobrancelhas, não entendendo ao que ela se refere.

— O quê?

— Conversei com a sua mãe recentemente e ela falou sobre um colega seu, da infância, Jack, se
lembra dele?

O nome não me é estranho.

— Bem, ele costumava ser um grande amigo seu, porém ele tinha transtorno dissociativo de
identidade e possuía dois outros alters e você tinha muita dificuldade para lidar com isso.

— Eu não...

Ela deixa a expressão suavizar e a voz é menos altiva quando ela torna a falar:

— Não consigo imaginar o quão difícil era pra você, sendo apenas uma criança que não recebia o
tratamento adequado e tinha que lidar com delírios e sem saber o que era real ou não, você não
conseguia entender, não é? Jack era mesmo daquele jeito ou era só você vendo e ouvindo coisas
que não existiam. Te assustava não reconhecer o seu amigo.

Quero dizer o quanto ela está errada e que é péssima no seu trabalho, mas uma parte de mim
parece se identificar com o que ela diz.
Não existem memórias vividas na minha cabeça, porém o sentimento de me sentir perdido, de não
entender, de não saber com quem eu estava falando, de não reconhecer o meu melhor amigo, é um
sentimento pavoroso, como se... Como se eu tivesse medo disso.

— Não acha que seria coincidência demais se o seu amigo de infância e o seu marido possuíssem o
mesmo transtorno?

Ouço em silêncio.

— E se eles não sofressem? E se você projetou um medo seu, no Harry e se convenceu de que ele é
o inimigo.

Esquece, ela é um lixo em tudo isso. Não lhe dou uma resposta, apenas jogo as bolinhas no chão e
me sento no sofá diante da televisão desligada, esperando a hora em que Casablanca passará pela
milésima vez.

E assim os dias se repetem.

O mundo exterior parece não existir além daquelas paredes. No pátio, durante o horário da
recreação começo a andar pelo perímetro, dedilhar a cerca e observar o outro lado, as ruas desertas,
o beco mais escuro que foge ao campo de visão, pelo menos aqui posso tomar sol e pensar. Nunca
em coisas boas, é claro.

Sempre penso em Gemma e como ela acabou nessa bagunça.

Mas logo começo a pensar no que a Dra. Turner insinuou, sobre projetar algo em Harry, se esse
fosse o caso, isso significaria que ele era inocente, o que automaticamente faria de mim o culpado.
Essa é uma história com apenas dois lados possíveis. Eu ou ele.

Mas e se... E se eu for Andrômeda? E se eu fiz tudo isso? Há tanto que me foge a memória, tanto
que se apagou e mesmo assim não deixou de ser realidade e se fui eu quem trouxe Gemma para
essa bagunça? E se eu fiz aquilo de propósito? E se eu o estuprei e matei a nossa filha por querer?
E se nada do que eu acredito ter ouvido aconteceu de verdade?

Não, não. Nick e Anne sabem a verdade. Eles sabem. Será que sabem? E se eu inventei isso
também?

Também? Espere! Isso significa que eu acredito que estou criando uma mentira e se nada do que
aconteceu até aqui tiver acontecido de verdade?

Eu sou real?

Algo aqui é real?

Sinto falta de ar e minhas mãos estão tremendo, tem lágrimas brotando em meus olhos e o surto a
caminho. Preciso encontrar uma forma de me aterrar. Eu preciso.

Voltamos para dentro, foi um dia cheio e teremos meia hora de descanso nos quartos. Matthew
segue na minha frente e uma das enfermeiras no posto está anotando algo quando outra a chama e
ela, ela vai ao seu encontro levando o papel e deixando a caneta para trás, pego rapidamente e
escondo no bolso.

No momento em que estou sozinho, portas bem trancadas, me esgueirei para onde a câmera não
consegue me encarar e ajoelho no canto, pressiono o dedo sobre a ponta da caneta. Com um pouco
de força consigo quebrar a parte inferior, tornando o plástico pontiagudo. É só isso, um corte
pequeno basta. Vai servir.

Arrasto a ponta pela parte interna do braço, empunhando força ela começa a cortar,
superficialmente, mas o bastante para poucas gotas de sangue começarem a expelir.

Era quando eu deveria ter parado.

Mas Lucian estava sentado na cama, balançando a cabeça e dizendo que não era o suficiente. Eu
precisava de mais.

Então, continuei cortando. Pele e mais pele sendo cortada e sangrando. E eu não sentia nada.

Não existia alívio.

Não existia paz.

Não existia dor.

Quando Matthew voltou, meia hora mais tarde, ele vacilou brevemente e se jogou em minha
direção, agarrando meus braços, e se assustando ao ver o estrago que tinha feito no meu rosto, o
sangue gotejava dos meus dedos. A caneta não foi tão eficiente quanto as minhas unhas.

Xx

Passo duas noites em observação, amarrado na maca e é uma verdadeira vitória que me deixem
manter as unhas, mesmo que tão rentes a carne que chegam a machucar. Apenas no final de
semana, quando os pontos que precisaram ser dados estão começando a cicatrizar que sou liberado
para o inferno da minha nova normalidade. Matthew me deixa encarar o espelho pela primeira vez
e eu não parecia mais tão bem em comparação aos outros, estou semelhante a uma versão em carne
e osso do Chucky, com a cara toda remendada. Meu declínio está vindo mais rápido do que eu
imaginava.

Junto com a alta, recebo uma visita.

Niall espera por mim, sentado em uma das mesinhas brancas do pátio, um tanto espantado com os
meus colegas esquisitos. Já estou acostumado com isso. Ele olha para mim e sorri num primeiro
momento, até que os olhos azuis crescem e caem em horror.

— O que houve? Você foi atacado? — Diz em choque, ele sequer pisca, enquanto me sento diante
dele.

— Sim, por mim mesmo.

— V-você mesmo fez isso?

— É, pareceu racional na hora. Então, as novidades?

Horan engole em seco, tentando pensar em algo para dizer.

— O país está bem satisfeito. O FBI levou uma dura.

— Naturalmente. — Concordo, passando as unhas pela superfície de pedregulhos.

— Você sabia que era...?

— Uhum, desde criança, mas isso nunca teve importância. Não me tornava louco.
— Sim, claro. — Niall escolhe bem suas palavras — Mas você foi negligente, de certa forma.

— Eu fui. E tudo bem, mas eu não entendo porque exatamente estou aqui.

Niall encolhe os ombros e entendo que ele tem algo a dizer.

— Fala.

— Hum? — Ele endireita a postura, olhando para mim — Eu li o diagnóstico, disseram que você
tem poucos momentos de lucidez.

— Isso é ridículo! Poucos momentos de lucidez? — Bufo indignado — Mas o que esperar de todo
aquele circo, o juiz chamando o Harry de querido, foi ridículo.

— O juiz não o chamou de querido. — Horan retruca.

— Chamou sim. — Asseguro — Devia prestar atenção.

— Eu prestei e isso não aconteceu.

Como não? Eu vi, ouvi, eu sei que aconteceu.

E apesar de não duvidar do que eu sei, pergunto:

— Ele foi avaliado?

— Claro! Você disse várias vezes que ele tinha TDI, ele foi minuciosamente avaliado pelos
psiquiatras e psicólogos forense e o diagnóstico foi negativo.

— Ele foi... E não descobriram, como isso é possível? — Murmuro comigo mesmo, colocando as
mãos na cabeça, meus dedos pressionando meu crânio, tentando fazê-lo funcionar corretamente.

Percebendo meu estado, Niall muda de assunto, ele fala sobre meus filhos estarem bem, ainda
perguntando sobre a minha ausência, Anne tem estado com a saúde precária e Harry não tinha
saído de casa desde que recebeu alta, segundo a sua informante – Cams – , ele falava pouco e
ficava todo o tempo trancado no quarto.

— Ah, a Hailee te mandou isso. — Ele me entrega uma quadrinho pintado a mão, um sol nascendo
sobre uma montanha.

O seguro, admirando os traços.

— É lindo! Pensei que ela já tivesse se esquecido de mim.

— Como poderia? Você salvou a vida dela.

— Vocês tem se visto? — Indago, e seu rosto automaticamente muda de cor. O vermelho destoa no
rosto pálido — Oh, Horan, Horan...

— O quê?

— Não me diga que está caidinho pela garota.

— Eu não! — Diz na defensiva, nada confiante — Mas assim, se eu estivesse, acha que eu teria
chance?
— Não com esse cabelo. Aceite que você é moreno, Irlanda.

— Mas-

— Sem "mas". É isso ou nada feito. — Sem escolhas, Niall assente. Sorriu satisfeito, levantando
quando o horário se encerra — E diga a sua namorada que eu gostei muito do presente.

— Vou dizer. — Ele sorri como o bobalhão que é.

Quando a noite cai e olho para o quadro na minha parede, penso no sorriso idiota dele e que
mesmo no fim do poço, eu tenho um amigo e isso deixa as coisas um pouco menos piores.

Xx

E como tranquilidade é coisa rara naquele lugar, a Dra. Turner entra na enfermaria com os olhos
fixos em mim. Estou na mesa, jogando uma partida de xadrez comigo mesmo. Eu não sei jogar
xadrez, então devo estar fazendo tudo errado, mas os outros acreditam que sou um mestre naquilo
por entenderem menos do que eu.

— Se importa? — Ela pergunta, indicando a cadeira vazia.

Sim, me importo muito. Mas, ao invés disso, dou de ombros.

— À vontade.

A mulher agradece e se senta, as mãos entrelaçadas na beirada da mesa e só consigo ver a raiz
vermelha de seu cabelo ruivo. Ela deve estar na casa dos quarenta, quarenta e cinco.

— Você sempre fez isso?

— Desculpe?

— Você sempre foi observador desse jeito. Dá pra notar que presta atenção demais no entorno.
Não é de se surpreender que tenha se tornado um bom detetive.

— Eu não sou um bom detetive.

— Discordo!

— Que novidade. — Resmungo em baixo tom.

— O que quer dizer?

— Você discorda de tudo o que eu digo. Pra você, eu sou um mentiroso pirado. Um doido.

— Louis, isso não é verd- — Ela começa, percebendo o que fez, reformula — Desculpe, nunca foi
minha intenção. Eu só quero te ajudar a entender o que aconteceu e está acontecendo com você.
Por que não começamos de novo, an? Conversando casualmente enquanto te ensino a jogar.

— Pode ser.

E assim tentamos o tal recomeço. Nas horas livres, ela se senta comigo e tenta o milagre de me
fazer entender e começar a jogar minimamente direito. Somos péssimos, mas acaba sendo
divertido.

Surpreendente em um dia chuvoso, Jim vem cambaleando e move minhas peças, em poucas
jogadas ele dá o xeque-mate. Com isso, mudamos para dama.

Nestes momentos jogamos conversa fora, ela fala sobre sua vida e eu comento algo sobre a minha.
Hoje estamos falando sobre cachorros quando digo:

— Michael o chamou de Sonny por causa do Poderoso Chefão. — Sai quando estou distraído.

— Sente falta dele? — Ela pergunta, movendo sua peça.

Enrijeço ao notar a brecha que dei.

— Sim, Sonny é ótimo.

— Não é do Sonny que estou falando.

— Michael. — Como duas de suas peças e ela arregala os olhos, ela não viu aquilo chegando e
sorrio — Eu sinto falta dele. É duro encarar a morte, saber que aquela pessoa não está em lugar
nenhum, ela simplesmente sumiu. Abre uma ferida na gente.

— Sei como é.

Ela deixa que o silêncio caia entre nós.

— Não vai perguntar? — Pergunto.

— O que?

— Se eu o amava.

— Amava?

Faço meu próximo movimento, fiz uma dama.

— Hoje em dia, reconheço que não. Eu o usei porque estava infeliz.

— E por que estava infeliz, Louis?

Okay, é isso. Estou conversando, me abrindo. Que estranho.

— Porque meu marido não me amava mais.

— Ele disse isso?

— Não, mas... Mas um dia estávamos bem e quando eu acordei, meses haviam passado, a nossa
filha estava morta e nós tínhamos gêmeos. Ele cuidava de mim, claro, porém, existia uma
distância, uma repulsa e eu não conseguia me aproximar, ele não deixava, não queria. Eu passei
muito tempo sozinho, deixando que aquilo me removesse, foi quando eu percebi que o Michael
gostava de mim, não só isso, ele me amava. Me amava e me queria e de repente, comecei a
encontrar semelhanças entre ele e o Harry e passei a vê-lo como...

É pior do que eu imaginava.

Turner também faz uma dama.

— Você pensava no Harry, o via como o seu marido. É a primeira vez que ouço algo assim.
Normalmente, pensam no amante ao estarem com o marido e nunca o contrário.
— Na época, eu não pensava nisso como traição. Porque a todo momento eu só queria o Harry,
mas eu estava errado, desde o começo e acabei machucando todo mundo.

— Mas você ama o seu marido. Mesmo agora, você ainda o ama. — Abaixo a cabeça, não quero
que ela leia a resposta em meus olhos — Se lembra do momento exato em que começou a amá-lo?

Se eu lembro? Sim, eu lembro.

Lembro de conduzi-lo pelas escadas, tropeçando nos degraus e tentando manter as mãos sobre seus
olhos apesar de seus esforços para se ver livre delas e poder enxergar para onde estávamos indo.
Mas eu persistia em manter meu teatrinho, mal podia conter meu sorriso ansioso. Quase dei um
gritinho quando chegamos ao que viria a ser a nossa suíte.

— Okay, no três! Um, dois... — Harry contava comigo, tão angustiado quanto eu — três! —
Afastei as mãos e seus olhos dobraram de tamanho ao olhar por todo o espaço, ele deu um passo,
tapando a boca quando encarou o carpete.

— Um carpete. — Gritou — E paredes! Ah meu deus. — Ele correu em direção às janelas — Olha
o tamanho dessas janelas. E um banheiro! Nós temos um banheiro, dentro do quarto. Isso é... Meu
Deus! Uma casa! Você comprou uma casa.

— Tcharam! — Rio de seu rosto em choque — Eu fiz uns dez empréstimos e o meu nome, o seu e
o da Eve vão pra lama se eu não conseguir pagar.

— Você não precisava fazer isso.

— Precisava sim. Nós somos uma família, nós e a nossa bebezinha merecemos mais do que aquele
apartamento vagabundo que eu me escondo.

— Mas eu gosto do seu apartamento vagabundo. — Harry faz beicinho, alisando a parede. Tão
lisinha, ele cochichava.

— Você disse que o odiava mês passado.

— Eu ainda era um grávido mal humorado. Agora voltei ao meu estado normal. Mas não posso
dizer que não adorei ter uma casa. Isso é tão incrível. Você é tão incrível, meu amor, meu marido!
— Harry se lançou no meu pescoço e eu me joguei dramaticamente no carpete com ele em cima de
mim — Viu só? Você me protegeu.

— Não faça caso disso, foi uma queda ridícula.

— Não importa. Você me protegeu. — Ele continuava a sorrir com suas covinhas, rolando para o
lado, unindo as mãos sobre o estômago — Saudades da Eve aqui. — Murmurou, tocando a barriga
ainda inchada.

— Vamos encher essa casa de pestinhas. — Apoiei a cabeça na mão — E nós não temos móveis,
foi mal.

— Não preciso de móveis. Eu tenho vocês dois, é tudo o que importa pra mim.

Naquele momento eu parei por completo. Não havia mais um turbilhão de pensamentos
tumultuados, nada sobre o empréstimo absurdo que tinha acabado de fazer ou que era oficial, eu
era um marido, um pai e tinha uma casa pra sustentar. Nada disso existia naquele segundo que se
estendia, nós já estávamos casados, eu já havia dito "eu te amo", mas somente naquela ocasião eu
senti que o amava verdadeiramente, de corpo e alma.
— Eu te amo, Harry. — Disse porque não podia guardar aquele segredo comigo.

Harry sorriu e abriu a boca para devolver, mas pressionei o indicador contra seus lábios.

— Não, não diga nada, só... Só quero saiba disso.

Em silêncio, ele assentiu e me senti em paz.

Aquele era o Harry.

Allicent pode tentar me confundir, usar suas mentiras para me enlouquecer ainda mais, mas eu sei
quem é o homem que eu amo e sei que ele esteve presente bem mais do que ela diz. Eu sei porque
sempre estive feliz quando ele estava por perto.

E se estou tão dolorosamente devastado agora é porque ele não está aqui. Não está em lugar
nenhum. Ele...

— Eu preciso de um tempo. — Digo, deixando-a sozinha e indo para o banheiro, ignoro o boa
tarde que um dos enfermeiros me dá e bato a porta às minhas costas. Se tivessem espelhos nesse
lugar, poderia ver minhas lágrimas, mas nem isso.

Lavo o rosto, apertando as têmporas, focado em inspirar e exalar.

Ouço alguém entrar.

— Liga. Desliga. — Gemo de frustração quando a luz da lanterna atinge meu olho — Liga.
Desliga.

— Phil, para. — Tento me afastar.

Ele continua.

— Liga. Desliga. Liga. Desliga. — Aperta o botão com mais força, fazendo aquela merda na
minha cara me deixar zonzo.

— Para com isso. Que merda.

Phil acha que estou brincando.

— Só... — Ele está saltando na minha frente quando tento sair.

Meu corpo tromba com o seu e é como daquela vez, na sala de interrogatórios, com Harry. Eu
estou acordado, olhos abertos, respirando normalmente, mas eu não tenho poder sobre mim, apenas
assisto o que minhas mãos fazem sem o consentimento do meu cérebro. É a fúria dominando, a
selvageria que agarra o coitado pela nuca, ele não entende e geme, não gostando daquela
brincadeira. "Brincadeira" essa que consiste em bater a cabeça dele na pia, dois golpes fortes antes
que a porta seja arrebentada.

Phil cai no chão, chorando, a testa aberta e o sangue caindo por todo seu rosto. Deslizo ao seu lado,
os enfermeiros me seguram sem que eu reaja.

Me desculpa, desculpa, desculpa. Quero dizer, mas não consigo falar ou me mover.

Permaneço parado.

E continuo assim por mais tempo do que sou capaz de calcular.


Vejo a roupa diferente que uso, as fivelas me apertando e mantendo meus braços pressionados ao
peito.

— Catatônico? — É a voz de Harry. Do outro lado da porta.

— Sim, ele tem estado assim desde ontem.

— E vocês acham que eletrochoque é a solução?

— Sr. Tomlinson, não usamos esse termo. O correto é eletroconvulsoterapia, ECT. E é totalmente
seguro e indolor.

— Sei, bom, façam como preferir.

Pouco depois disso, estava numa cadeira de rodas, sendo empurrada por uma parte do hospital que
eu não conhecia. Olhei para o rosto do enfermeiro e era o mesmo de Lucian.

— E lá vamos nós torrar o seu cérebro.

— Não é isso. — Balbucio.

— Talvez eles façam uma lobotomia. Podem estudar essa sua cabeça de psicopata, entender porque
você é tão mal.

— Ninguém vai fazer isso.

— Você vai estar inconsciente, eles podem fazer o que quiserem. Quem vai se importar com você,
Louis? Você nunca mais vai sair daqui.

Me tiram da cadeira e me deitam em uma maca, prendem meus braços e pernas, tento me mexer,
mas continuo imóvel. Uma picada no meu braço, seguida de outra. Lucian surge colocando uma
máscara de oxigênio em mim e acaricia o meu rosto.

— Vai estar aqui quando eu acordar? — Digo dentro da minha cabeça. Ele vai escutar, espero que
escute.

— Só se você quiser.

Eu quero.

Eu não quero ficar sozinho.

Eu... adormeci.
│28│triangulum

George está correndo atrás de uma borboleta. Suas pantufas afundam na grama molhada, em
algumas partes há um lamaçal depois da madrugada chuvosa, os outros estão na quadra, rindo de
um palhaço, mas George não, ele está empenhado em pegar aquela borboleta que voa baixo com o
único propósito de provocar, mostrar a aquele velho homem que ele não é capaz de pegá-la por
mais que ela facilite. Eles não estão no mesmo nível.

Ele sempre estará muito abaixo, tão ridiculamente inferior que sequer vale o esforço da borboleta
voar mais alto. Mesmo que ela pousasse no chão, George não conseguiria apanhá-la.

Existem coisas que sempre escaparão de nossas mãos.

George é um dos internos da Enfermaria 2, onde a maioria dos idosos fica, aqueles que são os mais
dóceis, por assim dizer. Eu só sei seu nome pela costura no bolso de sua camisa, fora isso, nunca
tivemos qualquer tipo de contato. Ao menos não que eu seja capaz de lembrar.

Já faz algum tempo que minha memória não anda bem. Não sofri um apagão completo, mas muita
coisa está em confusão, um tanto embaraçado, não sei ao certo.

Enquanto as sessões durarem será assim, pelo menos estamos no fim. E segundo o que dizem, serei
um novo homem ao fim do processo.

Espero que isso signifique algo bom, uma vez que não tenho certeza de que tipo de homem vinha
sendo.

Então, me sento na janela, quieto e distante, apenas observando o mundo afora ou o que é possível
de se ver dos jardins. Essa instituição é todo o meu mundo agora.

A borboleta de George acaba se cansando daquela estúpida perseguição e resolve descansar, suas
pequenas asas batem, levando-a até um lugar para ter seu merecido descanso, coincidentemente ela
pousa na minha janela. George desiste e volta para a quadra e eu estico o pescoço, admirando de
perto o inseto do outro lado do vidro.

Tenho a sensação de déjà vu, como se já tivesse feito isso milhares e milhares de vezes.
Estreitando os olhos e tentando desvendar todas as nuances do que for, de observar com tanta
atenção ao ponto de saber o ritmo de sua respiração ou a forma que seus cílios tremelicam ao
piscar. Eu lembro de ver o mesmo verde deste pequeno par de asas em olhos manchados de
delineador quando acordei depois da primeira sessão de ECT.

Não o reconheci, mas sabia que o conhecia. Ainda estava meio grogue por conta da sedação,
pisquei devagar, lutando com minhas pálpebras pesadas, meus braços e pernas estavam amarrados
por faixas de couro na cama, uma fivela bem no centro do meu peito e tudo o que podia fazer era
mover o pescoço e foi o que fiz quando o ouvi falar comigo.

— Olhe só para você. — Um timbre rouco soou bem próximo ao meu ouvido, foi quando notei
como ele estava próximo, uma unha esmaltada de preto estava roçando por um dos cortes em
minha bochecha, pressionando os pontos e provocando uma ardência incomoda. Apertei os olhos,
incapaz de pedir que ele parasse — Oh, isso dói? Desculpe.

Mas ele continuava a arranhar minha cicatriz.

— Já ouvi que o casamento muda um homem, às vezes o arruína, mas você alcançou um nível
completamente inédito, Louis Tomlinson.

Louis Tomlinson, naquele momento eu não lembrava que aquele era o meu nome.

De perto, assimilei que sua aparência não me era estranha, os cabelos escuros, castanho com
pequenas ondulações, uma mecha caia por sua testa, acima das sobrancelhas retas, havia algo sobre
suas pálpebras, um brilho levemente dourado, como nas maçãs de seu rosto, a boca era bem
delineada e rosada, toda vez que ele falava vinha consigo um ligeiro repuxar – como um hábito
inconsciente – a linha d'água de seus olhos pintadas de preto, dando a seus olhos um aspecto
sombrio, perverso, não que ele parecesse precisar, eu podia sentir a maldade irradiar dele.

— Me informaram que você não consegue falar por enquanto, mas sei que está me vendo e
ouvindo muito bem, então, permita-me agradecer pelo imenso favor. Eu não queria a coisinha
molenga, aquela tal de Leslie, aquilo era um só mais um dos surtos daquela boneca maluca. Graças
à você, elas não podem me incomodar mais, porém, todo o meu trabalho, a minha obra-prima, tudo
foi atribuído a você e aquela vadia. Pode me chamar de ciumenta, mas nunca gostei de dividir os
holofotes, todos me veem como uma vítima e pra mim, isso é pior do que a morte. — Diz de
maneira casual, enquanto sua unha para de apenas raspar e impõe força, criando uma nova ferida
logo abaixo da cicatriz. Ergo os olhos em direção a câmera, mas ela está escondida atrás do corpo
grande sobreposto ao meu — Mas não importa o quanto tenham tentado fazer isso tudo ser sobre
você, porque mesmo que eu morra ou milhares de anos se passem, quando contarem essa história,
quando estiverem em seus lares acreditando estarem seguros e sentirem um arrepio na espinha ao
ouvir um galho batendo contra a porta dos fundos, quando ouvirem o som de correntes ou
pensarem em um serial killer no século vinte e um, só existirá um nome e não será Louis
Tomlinson e sim Andrômeda. Você pode ficar com a glória, mas sou eu quem viverá por toda a
eternidade.

Depois disso, nunca mais o vi. Atualmente tinha mais clareza quanto a quem ele era, Harry, meu
marido, mas não tão exatamente assim.

Talvez se não precisasse tomar tantos remédios e pudesse ouvir meus pensamentos as coisas se
encaixariam.

Quando disse isso a Dra. Turner ela discordou.

— Você está melhor do que nunca, livre de alucinações ou tormentos, o tratamento tem funcionado
e interrompê-lo agora te colocaria em um quadro irreversível. Essa é a sua última chance de voltar
a ser você mesmo.

Eu mesmo... Quem eu era de verdade? Continuei pensando a respeito, olhando para a borboleta.
Algumas perguntas não possuem respostas, foi o que concluí naquela tarde.

Os dias seguiam se misturando e eu vinha desenvolvendo uma boa convivência com meus colegas.
Phil e eu nos tornamos bons amigos e a noite usávamos sua lanterna para fazer formas na parede.
Segundo a Dra. Turner aquilo era algo que o velho Louis jamais faria.

Em alguns dias, Niall vinha me visitar, falava brevemente sobre o mundo exterior – ele havia sido
instruído a não fazê-lo, mas ele não era mais tão obediente.

— Ainda tem estado confuso? — Ele perguntou. Eu não conseguia desviar a atenção de seus dedos
indo o tempo todo para seus cabelos, ele estava se acostumando com os fios escuros e mais longos
do que antes.

Ele me disse que Hailee gostou bastante e até a postura de seus colegas de trabalho havia mudado,
claro, Niall não parecia mais um menininho oxigenado perdido no FBI, ele parecia um agente.

— Um pouco, sim. Acho que estou pensando como um ser humano comum pela primeira vez na
vida.

— Não fale assim...

— É a verdade, eu estava num limbo de desordem, agora as coisas estão se ajeitando e começo a
me sentir racional e focado.

— Isso é ótimo, chefe! Ah, isso me lembra... — Horan olha sobre o ombro e diminui um pouco da
distância entre nós — Talvez tenha uma acusação retirada.

— Como?

— O Clifford. Eu não estou no caso, mas ouvi boatos de que um copycat fez aquilo com ele.

— O quê? — Tento me manter centrado e não deixar que minha mente vagueie.

— Pois é, o Luke estava organizando algumas coisas dele e encontrou vários bilhetes, e-mails e
"presentes", pareciam ser coisas antigas do Michael, seguindo o rastro encontraram um Stalker.
Um cara esquisito que o persegue desde o tempo da faculdade. No interrogatório ele disse que
mandou uma mensagem para o Michael se encontrar com ele, por isso ele estava naquele velho
asilo, e quando o homem viu que não teria seu amor correspondido partiu para o plano B.

— E por que ele confessaria isso agora?

Niall me olha daquele jeito, a resposta óbvia.

— Andrômeda tem tido tanta repercussão assim? — Indago com um suspiro cansado.

— Só se fala nisso. Gemma é a pessoa no corredor da morte mais procurada da história, o que não
fazem para conseguir uma exclusiva com ela. Tem repórteres plantados na porta da sua casa. É um
milagre que eles ainda não tenham conseguido invadir esse lugar, até atrás de mim eles tem vindo.

— É claro que esse cara só quer ter os cinco minutos de fama dele. Ele não matou o Michael, foi
Andrômeda, ela me confessou isso.

É evidente como Horan muda sua postura, ele abaixa a cabeça e engole em seco.

— Seja como for, é uma acusação a menos para vocês.

Mordo os lábios, tendo um instante de impaciência.

— Se não acredita na minha inocência, por que continua vindo aqui?

— É claro que acredito na sua inocência. — Retruca ofendido.

Eu é quem deveria estar ofendido.

— Mas não acredita em nada do que eu digo. Quanto tempo mais vai conseguir se manter em cima
do muro? — Não queria ser tão ríspido, mas internamente eu vivia irado, com o mundo, com
todos.

Espero por uma resposta que não vem. Invés disso, Niall se levanta e toca meu ombro, como
sempre fazia ao se despedir.
— Eu estou do seu lado. — Diz antes de sair, mas só consigo discernir sua total falta de certeza.

Xx

Apesar do meu descontentamento com Niall, tudo segue normal. Ao menos dentro do esperado em
uma instituição psiquiátrica para criminosos. Continuo tomando meus remédios, terei minhas duas
últimas sessões em pouco tempo e depois disso poderei voltar a normalidade, evitar o poço de
descontrole e loucura no qual vinha me enfurnando. O que me preocupava era a possibilidade de
sair daqui, já havia me adaptado e até feito alguns amigos.

Consegui ensinar alguns dos meus colegas a jogarem basquete e eram quase razoáveis.

Decorei a maior parte das falas dos filmes e as recitava junto com o ator, eles morriam de rir.

Aprendi a jogar xadrez e li mais livros aqui do que fiz a minha vida inteira.

Minha mãe trouxe uma foto dos meninos que eu colei ao lado da minha cama, eu lhes dava boa
noite e fingia estar em lugar nenhum quando sonhava, isso vinha funcionando muito bem, até
aquele dia.

Tínhamos um livro de aves sobre a mesa e Roger, que estava tentando aprender a ler, passava o
dedo sobre as letrinhas abaixo da foto de uma ave vermelha.

— Ca-card... Cardinal, não, não, Cardinales-les.

— Lis. — Corrijo.

— Cardinalis Cardinalis.

— Isso! Muito bem, Roger! — Batemos palmas o felicitando.

E é quando nossas palmas são sobrepujadas pelo impacto da porta de entrada da Enfermaria se
chocando com a parede quando a última pessoa que eu esperava rever adentra o local. Zayn Malik
está diferente do usual.

Ele não exala confiança e tranquilidade, seu ar de superioridade não o acompanha desta vez. Seu
sobretudo está amassado e os cabelos caem por seu rosto transtornado, olhos injetados e raivosos se
fixam em mim, ignorando os enfermeiros que tentam impedi-lo de se aproximar.

— O senhor não pode ficar aqui.

Zayn não lhe dá ouvidos, se desvencilhando e chegando até mim. Ele ignora os demais que o
olham praticamente hipnotizados e me agarra pelos ombros, me pondo de pé e me chacoalhando.

— A onde ela está? Cadê a Miranda? Onde está a minha filha? — Indaga, sem conter as lágrimas
que escorrem por seu rosto. Zayn engoliu um soluço, apertando os dedos ao redor dos meus braços
— Cadê a Mia, Louis?

Mia...

Cadê ela?

— Eu não sei. — Digo confuso.

Ainda tenho lembranças emaranhadas e Mia não surge como uma imagem vívida. Eu não consigo
assimilar exatamente a quem Zayn está se referindo e me sinto terrivelmente culpado por isso.
— Você- Isso é culpa sua! — Grita, me soltando e agarrando os cabelos — Você não protegeu a
outra criança e agora ele quer a minha! Eu sabia, eu deveria ter percebido que tinha algo de
estranho nele, ele disse que a tomaria de mim. Imbecil, eu sou a porra de um imbecil.

— Ele quem?

Zayn congela por um instante, voltando a olhar para mim.

— Harry. Seu marido, ele sequestrou a Mia. — Percebendo o meu fracasso em recordar, Malik se
inclina, deixando o rosto na altura do meu, o inchaço e vermelhidão provocados pelas lágrimas não
escondem a severidade de seu olhar ao dizer: — Sua filha, lembra dela? É melhor que lembre e que
dê um jeito de trazê-la de volta para mim, porque já estou atrás dele e eu vou achá-lo e o farei
pagar, mas se antes disso algo acontecer a ela. Se ela sangrar, eu farei com que o Blake e o Spencer
sangrem muito mais.

Sinto meu corpo inteiro estremecer.

— Zayn, por favor, não precisa envolvê-los nisso. Eles são só bebês, eles não tem nada a ver com
isso.

A forma raivosa com a qual reage é como se ele entendesse que estava dizendo que a vida deles
valia mais do que a dela.

— Não, a Mia não tinha nada a ver com isso. Ela é a inocente em toda essa merda e a arrastaram
pra isso, então que se foda. Encontre uma forma de me devolver a minha filha, senão eu acabarei
com a raça de todos que cruzarem o meu caminho e isso inclui os seus filhos, eu fui claro?

— Foi. — Engulo em seco.

Malik me dá as costas e sai por conta própria, os passos rígidos ecoando pelos corredores amplos.
Leva um tempo até que alguém pergunte:

— Ele fez uma ameaça, ninguém vai notificar a polícia?

Um riso fraco, outro enfermeiro responde:

— Você não sabe quem é aquele cara? Nem a polícia mexe com ele.

Mas "Harry" ousou mexer e acertou Zayn bem em seu calcanhar de Aquiles.

Automaticamente tudo se transformou. Não parecia haver a possibilidade de uma convivência


pacífica, de uma nova vida. Eu tinha um assunto inacabado lá fora, um monstro que eu ajudei a
criar e que agora atacava de modo irracional e mais do que nunca, colocava inocentes em risco.

Nem Mia, Spencer ou Blake poderiam pagar pelos nossos erros.

Minha cabeça estava retomando o ritmo frenético, mas não deixei transparecer, continuei calmo e
às vezes aéreo, enquanto escondia os comprimidos debaixo da língua e os jogava na privada mais
tarde. Sem a medicação tudo foi voltando, com mais força do que nunca.

Eu me sentia pior do que nunca.

As noites eram passadas em claro, eu reconstruía cada pedacinho, cada detalhe de toda a nossa
história, pensando e repensando sobre cada personagem, cada palavra, cada ação e consegui
encontrar a solução para uma antiga incógnita. Zayn não era o único com um calcanhar de Aquiles.
Niall demorou um pouco até poder me visitar novamente.

— Desculpe, tem sido uma loucura.

— Vocês estão atrás do Harry?

— Ele está sendo procurado, mas é complicado, fazem vista grossa, dizem que é um surto. Ele
perdeu um bebê e agora está se agarrando a sua filha ilegítima.

— Harry poderia matar alguém em praça pública e encontrariam uma forma de colocá-lo como
coitadinho. — Resmungo, apertando meus dedos sobre a mesa, torcendo para que Niall não
percebesse que voltei a ser inquieto.

— Bem... — Ele suspira — segundo testemunhas, ele buscou a Mia no colégio, ela disse aos
colegas que iria ver o pai policial dela...

— Ele mentiu para ela dizendo que a traria pra me ver?

— Sim, a última vez que ela foi vista foi entrando no carro dele. Duas horas depois o carro foi
encontrado, estava em chamas, sem corpos, mas não haviam rastros. Zayn foi menos elegante, ele
mandou homens armados até a creche dos seus filhos e o guarda foi baleado.

— Meu Deus.

— Mas estamos confiantes, vamos encontrá-la, tem alguma ideia de onde ele poderia estar se
escondendo?

E por que eu diria? Luke e Nick eram aliados de Harry, Nick principalmente, e ele não hesitaria em
matar Mia e se ele matar Mia, Zayn vai matar os gêmeos.

Sem falar da possibilidade dele ser encontrado pelo FBI antes, tratado como uma vítima, receber
uma identidade falsa e sumir das minhas vistas onde ele poderia recomeçar sua matança novamente
e ninguém o impediria.

A única forma de encerrar essa história é comigo matando ele.

— O FBI vai protegê-lo e Zayn não vai descansar enquanto não matá-lo. Não importa que caminho
seguir, pessoas inocentes vão se machucar.

— E o que sugere?

— Me ajude a sair daqui.

— O quê? — Horan automaticamente recua, olhando para os lados, temeroso que alguém mais
tenha ouvido — Você enlouqueceu ou o quê? Eu não posso-

— Você sabe que eu estou certo, Irlanda! A única coisa que falta decidir é, ou você acredita que eu
sou Andrômeda ou o Harry. Escolha em quem você acredita, é o que resta. Ou tem um monstro à
solta ou você está prestes a soltar um.

Não é uma decisão simples, eu nunca exigiria algo assim se não houvesse outra saída, mas diante
das circunstâncias nos faltam opções.

Ele abaixa a cabeça, sendo atordoado por seus pensamentos conflitantes e por fim, chega a uma
decisão.
— O que você quer que eu faça?

Quase suspiro de alívio.

— Preciso que haja um problema nas câmeras, trinta segundos são mais do que o suficiente. A
segurança é fraca durante a noite, não contam com a capacidade de loucos escapando, então só
preciso dessa brecha e um carro.

— Certo. Posso conseguir isso, mas sabe que quando for pego novamente...

— Eu sei.

— O capture, vamos tentar conseguir uma confissão. — Fala objetivo, de repente parando e
arqueando a sobrancelha, como se precisasse tirar uma última dúvida — Está mesmo disposto a
fazer isso?

— Farei o que for necessário. - Garanto.

— Bom, então, essa noite você voltará a ser um homem livre, detetive Tomlinson.

Xx

Passo o restante da tarde e início da noite remoendo a ideia do que está prestes a acontecer, quando
aceitei minha pena nunca tive a intenção de escapar ou fazer qualquer coisa que pudesse colocar
Niall em risco e agora eu o tinha arrastado para o fogo cruzado. Pouco a pouco se pintava com
mais nitidez o velho Louis e sabia que ele estava diferente, bem mais medonho do que antes.

A sirene tocou, indicando que era hora de nos recolhermos. Recebemos nossos remédios e um boa
noite. Escondi o meu embaixo do travesseiro e fingi estar dormindo.

Durante a madrugada alguém sempre passava pelos quartos, aplicando uma injeção de calmamente
para o caso de alguém estar lidando com insônia. Quando ouvi o ruído da porta e Matthew
colocando o rosto na janelinha, acenei, fingindo estar com dificuldades para dormir, ele entrou,
empurrando seu carrinho, ele se aproximou de mim, tagarelando como sempre e empunhando a
injeção na outra mão. Olhei para cima e vi a luz vermelha piscar e então se apagar. Era a minha
deixa.

Tudo já havia sido esquematizado na minha cabeça, era uma equação simples. Eu só não contava
que Matthew fosse habilidoso o bastante para saber reagir quando torci seu braço e o prendi em um
mata-leão, ele conseguiu resistir e vinha afastando meu braço de seu pescoço.

— Louis, não faça isso!

— Eu queria não precisar. — Rosnei, lutando para conseguir apagá-lo. Não vai funcionar — Você
não vai me deixar sair daqui, não é?

— É claro que não. — Matthew ofega.

— É uma pena.

Desisto do golpe e quando ele pensa que me dei por vencido, quebro seu pescoço. O homem
desaba aos meus pés.

Ele era um bom rapaz que teve o desprazer de cruzar com um homem ruim.

Suspiro, esperando sentir remorso ou culpa e não sinto nada, sequer temor de não conseguir agir a
tempo. Como planejado, tiro suas roupas e as visto, colocando nele as minhas, o puxo para a cama
e o cubro, quando as câmeras retornam, estou de costas para elas, empurrando o carrinho para fora
e trancando a porta. Como esperado, não há guardas extras, apenas um enfermeiro do outro lado da
grade, na entrada da Enfermaria 6.

Continuo empurrando o carrinho, cabisbaixo. Matthew teria de ir para outra cela, mas meus planos
são mais diretos e entro no posto, o responsável por fazer o plantão da madrugada está dormindo, a
cabeça jogada para trás e a as pernas esticadas sobre o balcão, puxo algumas seringas para dentro
do bolso e as chaves.

Deveria agir o mais rápido possível, porém não tenho forças para ignorar quando enxergo a pasta
com meu nome alinhada na estante, pesco o arquivo passando os olhos rapidamente. Apenas mais
do mesmo. A última anotação da Dra. Turner não me surpreende, mas aborrece.

"Provocar uma reação com a história de um suposto amigo de infância com TDI."

Suposto amigo? Era assim que ela se referia a uma mentira? Claro que ela era uma mentirosa que
só estava brincando comigo, bagunçando com a cabeça de um pobre louco. E eu quase acreditei...

Malditos. Todos eles. Largo o arquivo e saio.

Eu consigo sair pela porta da frente, sem mais problemas, no entanto é mais complicado do que
presumi passar pelo pátio.

Dois guardas armados estão atentos, armas em punho, patrulhando. Um mais próximo ao jardim
onde George estivera perseguindo a borboleta. Me esgueiro entre a relva até conseguir dar o bote,
pegando-o de surpresa, a agulha perfura seu pescoço e ele tomba no meu colo, o arrasto para trás
das moitas onde não seja visto com facilidade.

Com o outro guarda não é tão simples, ele está andando próximo ao portão e sem ter como chegar
de surpresa, finjo ser um simples funcionário, me aproximo pedindo por um cigarro.

— Espere um pouco. — Pede checando os bolsos e arrisco erguer o rosto, apenas para saber o quão
marcado já estou. Ele me reconhece na hora e ergue a arma, felizmente o pego com o taser antes de
levar um tiro na testa, ele convulsiona por alguns segundos no chão até apagar por completo.

Depois disso, basta roubar seu revólver e uma faca, feito isso, o arrasto até empurrar seu dedo
contra o identificador que libera o portão. O guarita teria feito perguntas se eu não estivesse
escondido sob o quepe e a jaqueta de policial. Caminhei em passos comedidos até não poder mais
ser visto e então disparei até o beco onde instrui que Niall deixasse o carro, a chave estava presa
atrás do pneu, um carro simples que não chamava a atenção. Excelente. Entrei afoito e enquanto
dava ré pensei no que fiz e no que iria fazer.

Não importa de qualquer forma, eu cheguei ao ponto em que não existe mais como retornar, a vida
que eu tinha, o homem que eu era, tudo isso se foi.

Engulo com amargor e dirijo. O pré-pago no porta-luvas começa a tocar, mas não tenho nada a
dizer para Niall. Eu já o meti em confusão o suficiente.

Xx

Não sei ao certo para onde estou indo até que adentro uma rua movimentada, pessoas indo e vindo
por toda parte, música alta e luzes brilhantes. O perfume de maconha embalando o ar da vida
noturna e deixo a roupa de policial para trás, acreditando que chamarei menos atenção vestido
como um enfermeiro. Mexem comigo, mas não dou bola, caminhando obstinado até uma loja
envidraçada, caveiras e imagens com chifres estampadas nas vitrines.

Olho ao redor, roupas pretas, coturnos, máscaras, é do que eu preciso para sumir.

Mas antes disso um rapaz se aproxima de mim.

— Precisa de alguma coisa?

— Não, eu só-

— Aí meu deus. — Ele berra de repente, como se visse uma assombração — Andrômeda!

— O quê? — Aperto o taser no meu bolso.

— Você é Andrômeda! Cassandra, Amber, venham já aqui.

Duas garotas surgem detrás das cortinas de veludo, mesmo sob todo o rímel e cílios postiços posso
ver seus olhos se arregalando em reconhecimento. Que porra?!

— Eu não sei do que está falando, você deve estar me confundindo. — Enquanto falo ele já está
negando com a cabeça e revirando algo em seu balcão e então me lança uma Rolling Stones e é a
minha maldita cara estampada nela — Caralho!

— Viu só? É você! Eu te reconheceria em qualquer lugar.

Respiro fundo, meus dedos trêmulos ao soltar a revista.

— Certo, eu só vou sair daqui e-

— Sair por quê? Você fugiu, não é? Precisa de alguma coisa? — Uma das garotas se adiantou em
dizer.

— Sim! Pode ter o que quiser daqui. — A outra acrescenta.

— Senhor, somos grandes fãs do seu trabalho. Você é tipo o nosso ídolo. — O rapaz voltou a
dizer.

— Vocês... Vocês são meus fãs? — Digo com certa repulsa.

— Com certeza, o que você fez com aqueles merdas da burguesia, ensinou a eles. Isso acontece
com gente como nós todos os dias e ninguém liga, mas quando os cheios de grana e metidos a
besta começaram a se sentir em risco dentro de suas mansões todo mundo deu a maior atenção.
Você deu a eles um motivo para temer, sabe aquele Atkins? Ouvi dizer que ele abusava de
criancinhas, ele teve o que mereceu graças à você.

Encaro seus olhos encantados, é nítida a completa devoção que eles nutrem por mim, quer dizer,
não por mim exatamente, mas por Andrômeda, pela imagem santificada dela que eles pintaram em
suas cabeças. Assim como o casal O'Neil. Andrômeda tinha a sua horda de adoradores e se eu
pudesse usar isso a meu favor, o faria.

— Certo. Então, consigam roupas novas para mim.

— Claro, senhor! — Assentiram, agindo prontamente.

Minutos mais tarde estava me olhando no espelho do trocador de sua pequena loja punk, ajeitando
a gola do sobretudo, Cassandra e Amber praticamente imploraram pela honra de amarrar os
cadarços das minhas botas. Toquei meu rosto pensando no quão fácil todos me reconheciam.

— Precisa de mais alguma coisa, senhor? — O rapaz, que eu descobri se chamar Sean, perguntou.

— Na verdade...

Um pouco depois, tornava a encarar meu reflexo, desta vez com o cabelo preto recém pintado e
úmido caindo no meu rosto, um piercing na sobrancelha e outro na boca.

— Você parece diferente.

— Ótimo!

Eu não tinha tido nenhuma mudança radical, mas não parecia destoar tanto de qualquer pessoa
vagando por aquela rua. Amber estava ao meu lado retocando o batom e foi quando sua língua
despontou que notei uma coisa.

— Eu quero aquilo. — Indico ao que me refiro.

— Ah, se você quer, tudo bem, pode doer um pouco e...

— Não importa e eu mesmo farei.

Ele me olhou chocado, mas não discordou, apenas me deixou seguir em frente e foi o que eu fiz e
merda, não doeu porra nenhuma, nenhuma mísera sensação, mas ao fim da minha arte eu tinha
repartido parte da minha língua. Cassandra deu os toques finais para que eu não acabasse morto e
depois disso, sabia que estava pronto.

— Porra, você é tão gostoso que eu te deixaria me matar como quisesse. — Sean disse, se
inclinando na bancada da mesa, enquanto eu carregava a arma.

— Eu não sou conhecido por esperar pela permissão de ninguém. — Retruquei distraído, umideço
os lábios, ainda estranhando a sensação — Esse é o tipo de coisa que um agente do FBI não podia
fazer. Mas ao fim disso tudo, eu quebrei absolutamente todas as regras.

— Você é incrível mesmo! — Ele sorriu e eu dei de ombros. Seus olhos caíram sobre a tatuagem
exposta em meu pulso — Ah, quando descobrimos quem você era, fizemos algo, é como
identificamos aqueles que estão do lado de Andrômeda. — Sean puxa a manga da camisa, exibindo
uma tatuagem quase igual a minha, a diferença é que ele trocou a corda por uma corrente — Legal,
né? Todos nós temos uma.

— Não ficou horrível.

Mesmo com meu completo desprezo, ele continua sorridente.

— Eu queria saber... Por que uma corda?

— Eu costumava estar preso a uma âncora.

Ele não entende e eu não explico.

Em algum lugar Nazareth começou a tocar, a cantoria chorosa de Love Hurts sempre me deu nos
nervos, no entanto, dessa vez coloca um peso em meu peito e quando coloco a última bala, Sean
me olha intrigado.

— Por que está chorando?


Sinto as lágrimas salgadas deslizando pelo meu rosto e balanço a cabeça como se pudesse espantá-
las.

— Eu vou matar o amor da minha vida essa noite.

— Não tem outro jeito?

— Não, não tem! Agora vá fazer o que eu mandei, temos que entrar naquele lugar o quanto antes.

Sean assente e sai e quando ele o faz, fecho a porta da pequena salinha e caio miseravelmente no
chão, chorando pela última vez que sou capaz de lembrar. A última vez que me permiti ser
humano. A última vez que senti.

Se a canção estivesse certa, se o amor fosse isso, sofrer e sentir dor. Isso significa que eu amo e
amei mais do que qualquer.

O amor me dilacerou, corroeu até o fundo da minha alma e não consigo evitar de me lamentar em
perdê-lo.

E como um adolescente desiludido eu choro, encolhido e envergonhado pensando no garoto que


acabou com a minha vida.

Amar te torna um verme.

Quem sabe depois que eu exterminá-lo volte a ser algo mais do que um remendo de gente ou eu
simplesmente me acabarei nesse poço de humilhação.

Só saberei a resposta ao alvorecer quando tiver seu corpo sem vida em meus braços, quando restar
apenas o meu coração batendo.

Ele será capaz de continuar batendo quando o seu silenciar?

Deixo a sala, encontrando tudo o que pedi. Os apoiadores, fãs, imbecis com sérios desequilíbrios
mentais, foda-se como se denominam. Há mais de dez deles diante de mim, vestidos exatamente
como eu.

— Hora de acabar com essa merda. — Suspiro, colocando a minha máscara e me misturando entre
as minhas diversas cópias quando deixamos a loja.

Eu só terei essa noite e nunca mais.


│29│ursa major
Chapter Notes

ESTE CAPÍTULO POSSUE VIOLÊNCIA EXTREMA (EM TODOS OS


SENTIDOS)

Eu não deveria ter chorado, eu não deveria ter sido dilacerado


Eu não poderia dizer nada disso
Mas de agora em diante, eu tenho uma doença incurável
Você é meu início e meu fim, isso é tudo
Meu novo encontro e minha despedida
Você foi meu tudo
OUTRO: Tear - BTS

...

Do lado de dentro do clube é escuro, as luzes brilham e caem sobre nós, iluminando e levando às
trevas novamente os rostos dos corpos que se aglomeram nos bares, mesas e pistas. Em cabines
apertadas mais de meia dúzia de pessoas se espremem para conseguir uma cheirada promocional
antes que o traficante aumente o preço, em outras cabines coisas mais pesadas rolam, agulhas se
afundam em braços marcados, cristais deslizam entre dedos nervosos e notas amassadas são
rapidamente enfiadas em bolsos junto a anéis de casamentos e a poupança para a faculdade do
filho.

Sei de tudo isso porque já perdi as contas de quantas vezes estive neste lugar, de quanto tempo
perdi dentro daquelas cabines me drogando, me enervando da vida. Esse lugar é o que eu chamaria
de fundo do poço, a maioria que passa por aqui está caminhando para o destino final, um pé na
cova, esse é o impulso que resta.

Quem me apresentou esse clube continua aqui e é atrás dele que eu vim hoje.

Entrar não foi difícil, eles realmente não gostavam de se opor quando um grupo grande de
esquisitões aparecia na porta, não gostavam de confusão ou chamar a atenção, então só saíram da
frente. Se eu estivesse sozinho poderia ter encontrado alguma resistência, a essa altura não estava
com paciência para planos mirabolantes, a polícia, o FBI, todo o mundo estaria atrás de mim e isso
me obrigaria a pensar dez vezes mais, assim, estava satisfeito por poder me manter irreconhecível
dentro do grupo.

Uma vez dentro, ordenei que se espalhassem. O avistei em uma cabine, estava com uma agulha,
como nos velhos tempos.

— Leve-o para o quarto. — Disse a Cassandra, ela assentiu seguindo a direção contrária a minha.

Os meus longos anos perdidos aqui me deram certos privilégios como saber que a melhor forma de
driblar os seguranças que guardavam as suítes era se esgueirar pela porta do DJ que sempre se
mantinha como a pessoa mais chapada do recinto, ele tocava November Rain, a parte final
escandalosamente alta e tenebrosa que o deixava alheio a tudo que acontecia ao seu redor como eu
entrando na porta às suas costas, passando pelo pequeno camarim fedido e saindo no corredor
estreito. Sem câmeras. Pessoas importantes frequentavam esse inferninho e faziam coisas bem
erradas e não tinham o menor interesse em serem desmascaradas sobre isso, então, sigilo absoluto.

Caminhei forçando os olhos sobre os números dourados nas portas brancas, eu sabia o número só
precisava lembrar... 19. Isso, 19! Uso de um grampo que fisguei do cabelo de Cassandra no
momento em que entramos aqui e destranco a porta, adentrando rapidamente, fechando novamente
em seguida. O lado de dentro é como sempre foi, apático, sem graça, exceto que ele notavelmente
se mudou para cá, uma poltrona espaçosa de couro ocupa metade da sala, a TV é outro exagero, a
adega está lotada de uísque – o que ele bebe desde que o conheço – me sirvo de uma dose, não
encontro papéis, nada que remeta ao trabalho ou ao que ele faz, quanto a isso segue cuidadoso.
Bebericando do meu drinque, continuo a vasculhar o quarto, há uma parede separando a sala da
suíte e é bem ali que dou de cara com uma figura familiar.

Paro a uma distância segura – como se um quadro pudesse me machucar, bem de certa forma, pode
– engulo com amargor, sentindo o nó crescer na garganta. É como um fantasma do passado, mas
um fantasma bem vivo. É estranho concluir que essa imagem pertence a alguém de verdade, eu
quase consigo associar o rosto a pessoa, na verdade ela não se parece com ele, nunca pareceu. O
seu rosto me remete a uma garota pequena, os olhos ocultados seriam grandes e expressivos,
porém ágeis e atentos como os de uma raposa e castanhos, enegrecidos ao cair da noite. Com um
brilho de malícia.

A pele macia, aveludada, de formas voluptuosas e sensuais e ela sabe usar isso como ninguém.
Absurdamente linda, tal como ardilosa. A número dois. A segunda inquilina, indesejada. A
impertinente, complexa, maquiavélica, fingida, cretina, sedutora, adorável, cativante, vadia, a
ilustre senhorita Sugar.

Seu quadro está bem diante de mim.

Lábios rosados, feridos e inchados entreabertos, o rosto redondo, fios de cabelos soltos sobre sua
nuca e uma pequena flor.

A sereia que enfeitiça e destrói.

Então, Grimshaw comprou o quadro dela. Que bom, eu não fazia ideia, mas isso soa como um
lembrete, um motivo a mais do porquê estou aqui e porque vou matá-lo. Detestaria ter uma crise
existencial enquanto fazia o serviço.

Bebo mais um gole, mas o final parece raspagem na boca e jogo o copo contra a pintura. Quero dar
as costas e fingir que nada me abala, ainda assim estou arrastando meus pés até lá e tocando a tela,
sentindo a espessura da tinta contra meus dedos, fecho os olhos, aproximando a testa de sua boca e
inspiro. O cheio de uísque combina com ela. É familiar, como a primeira vez que trouxe Harry até
aqui.

Era um dos nossos primeiros encontros e pensei que ele fosse ficar acanhado, invés disso ele deu
um show, bebeu e dançou como nunca imaginei que ele soubesse e ao final da noite quando
sentamos em uma das mesas, ele ignorou o sofá confortável para se acomodar no meu colo. Havia
algo diferente nele que eu não conseguia identificar, mas estava lá desde o início, só não sabia o
que era. Era ela.

Foi quando conheci Sugar.

— Espera, o que está fazendo? — Perguntei sem fôlego, estava uma bagunça enquanto nos
beijávamos, Harry nunca pareceu tão eufórico e excitado antes, não me dando tempo para
raciocinar enquanto rebolava no meu colo e puxava meu membro pra fora.
— Eu quero trepar, agora. — Respondeu com um gemido, começando a ficar de joelhos para
sentar em mim, agarrei seus quadris.

— O quê? Isso é loucura! Não podemos fazer isso aqui. Estamos em público.

Ele estava acima de mim por conta de sua posição e baixou o rosto para me encarar, os cachos
espessos caindo ao redor de seu rosto e os lábios inchados e molhados entreabertos ao que um
sorrisinho se moldava neles, eu era como uma piada para ele naquela vez.

— Quando vai parar de agir de acordo com a opinião dos outros? — Franzi as sobrancelhas sem
entender — Você se importa demais e isso é irritante. Principalmente quando é óbvio que você não
está nem aí, você não quer se encaixar, você não quer ser aceito e você definitivamente não está
interessado em bancar o bom moço, então porque não para de fingir que liga pra essas merdas e faz
a porra que você quiser. Quem pode te julgar, meu amor?

Ouvir aquilo foi como se eu tivesse conseguido um aval, como se tudo o que eu julgava de errado
comigo estivesse sendo aceito de bom grado, como se estivesse tudo bem ser quem eu era de
verdade, mesmo que isso não significasse uma coisa boa e o beijei, o beijei como se tivesse
recebido um novo sopro de vida e empurrei seus quadris para baixo e nós trepamos no clube as
vistas de quem quisesse ver. Eu ainda podia ouvir seus gemidos, ele não tentou soar baixo ou ser
discreto em nenhum momento. Sem nenhum resquício de vergonha.

Aquilo me assombrou por muito tempo, ainda mais quando lhe dei ouvidos e fiz o que queria.
Quando matei um homem pela primeira vez, automaticamente eu me enchi de remorso e
arrependimento e entrei para o FBI, para mascarar e suprimir ao máximo o que eu era, apagar cada
ação ruim que sabia ser capaz. Eu sempre quis ser aquele que julga, nunca o julgado, de qualquer
forma, nada disso serviu de porra nenhuma, olhe a onde estou?

Ao menos Sugar me ensinou uma lição preciosa e que se seguida desde o início poderia ter
facilitado algo.

Naquela mesma noite eu apresentei meu então namorado a Nicholas. Eu percebi a forma como ele
devorou Harry com olhos, mas nunca pensei que aquilo poderia soar como ameaçador, o quanto
aquele homem iria querer o meu marido e até onde iria por ele.

Ouço o ruído da fechadura, chaves tilintando, a risada bêbada do outro lado acompanhada de uma
juvenil e visivelmente forçada. Ela se abre e me esgueirei para ficar fora de vista, apesar de duvidar
que ele me notaria estando tão bem envolto pelo charme de Cassandra. Os passos vão se afastando
em direção ao quarto, mais risadas, Nick conta vantagem e ela se finge impressionada, até que diz
com uma vozinha inocente:

— E se nós fizéssemos um jogo?

— Que tipo de jogo?

O tal jogo que ela sugeriu era uma ordem minha. Estupidamente embriagado, Nick foi contra uma
das regras primordiais de qualquer tira: não se deixe ser imobilizado. E ele fez justamente o
oposto, sorrindo enquanto a garota atava suas mãos com algemas de pelúcia. Quanta cafonice, mas
serviria bem ao propósito, uma vez preso a cama, ele sorriu maliciosamente.

— E agora? — Mordeu os lábios com os olhos fixos no decote dela.

— Agora ela sai e eu entro em cena. — Disse, manejando a cabeça em direção a porta, Cassandra
parecia reluzente em receber um gesto meu, por menor que fosse. Ela saiu alegremente.
— Porra, Tomlinson! O que faz aqui? Como saiu do hospício?

— Hospício? Que estranho, sempre me disseram que era uma clínica psiquiátrica. — Comento
divagando, andando ao redor da cama, sentindo seus olhos escuros sobre mim — A essas horas
meio mundo deve estar atrás de mim, você deveria estar participando dessa caçada como um
membro sênior do FBI, mas acho que você tem outras prioridades.

Ele engole em seco, estremecendo. Sei o que ele está pensando, que pode prever minhas intenções.
Patético.

— Então você fugiu e veio atrás de mim.

— Certo. — Concordo, escuto a porta e um dos mascarados deixa uma bolsa na entrada do quarto.
Sean conseguiu outra coisa que pedi.

— E pretende me manter refém, vai exigir auxílio para fugir do país e me usar como moeda de
troca.

— Errado.

As sobrancelhas grossas de Nick se unem em desentendimento.

— Louis...

— É tão óbvio que eu vim aqui te matar, Nick, pelo amor!

— M-Me matar, m-mas...? Olha, nós nos conhecemos desde sempre. — Ele tenta reverter a
situação, puxando os pulsos, mas não é como se ele pudesse se soltar só com a força do querer.

— E mesmo assim você fodeu totalmente com a minha vida.

— Eu não...

— Vai chamar a Allicent de mentirosa? Cuidado, ela pode surgir aqui do nada só pra te dar uma
facada, ela tem uma personalidade terrível.

— Eu não nego que estive do lado deles todo esse tempo. — Admite, por fim.

"Deles", então ele sabe, claro que sabe.

— E como foi esse momento de revelação, eles sentaram com você e abriram o coração? — Digo,
um tanto incomodado, parando ao seu lado com as mãos nas costas.

— Não foi preciso, eu soube por mim mesmo, quando você ama alguém você a enxerga de
verdade. E eu amo o Harry. — Ele diz entredentes.

Aperto as unhas na palma para não esfolá-lo ali mesmo.

— Você não ama o Harry. — Digo devagar para que ele entenda.

— Claro que amo e ele me ama.

Eu não consigo. É mais forte que eu. Perco a compostura e começo a gargalhar.

Quando consigo reaver o fôlego meu estômago dói pela intensidade do riso.
— Não, Nick, não... Você é um lacaio, um trouxa que acoberta as merdas deles e recebe sexo em
troca de manter o bico fechado, ninguém te ama, muito menos o Harry, ele teria nojo de novo. Tão
patético.

É visível como aquilo o atingiu, mas ele faz o seu melhor em tentar não transparecer ao incorporar
o maldito SAC arrogante do escritório.

— Nojo de mim? Bom, me amando ou não, eu continuo muito bem, e quanto a você? Você foi
arruinado, Tomlinson, uma desgraça louca com a cara toda remendada.

— E mesmo assim, mais bonito do que você.

Um novo golpe. Será que consigo fazê-lo chorar?

— Às vezes eu pedia por ele, sabia?

— O quê?

— Às vezes, quando estávamos no meio de uma transa, eu pedia pelo Harry, queria que ele ficasse
consciente naquele momento e sempre atendiam ao meu pedido e era incrível. — Nick sorri ao me
ver travando a mandíbula — Sabe por que era incrível, Louis? Porque ele nunca entendia o que
estava acontecendo, ele tinha aqueles grandes olhos confusos e inocentes e Andrômeda sempre me
garantia que ele não tinha controle sobre os braços e pernas, então não tinha nada que ele pudesse
fazer para evitar que eu o usasse como quisesse. E ele chamava por você, sabia? Ele chamava
como se você pudesse escutar e vir ao seu resgate, mas você nunca veio, Louis. Era maravilhoso te
encontrar no escritório no dia seguinte, tão desdenhoso e arrogante, você se achava o todo poderoso
enquanto eu fazia o que queria com o seu marido. Ele era a porra da minha boneca inflável e você
um maldito corno do caralho.

Eu não esperava ter tanto autocontrole quando ouvi e absorvi cada uma das suas repulsivas
palavras, mas eu tinha um plano e queria segui-lo rigorosamente, sei que Nicholas terá exatamente
o que merece. Passo uma perna ao redor de seu quadril e sento em seu colo, ele me olha confuso e
se remexe.

— Oh, o que foi? Está assustado? Eu estou bem aqui, por que não me faz de sua boneca inflável
também? Ah, já sei! Isso só funciona com alguém indefeso, não é? Então foi divertido torturar o
Harry, você gostava, se sentia poderoso em saber que estava estuprando o meu marido debaixo do
meu nariz, se aproveitando da doença dele, né? Deve ter sido incrível para você, seu doente de
merda.

— Você não entenderia. — Resfolega, erguendo o queixo.

— Não entendo mesmo. Mas o que esperar de alguém como você? A propósito, enquanto estava
no Hospício eu comecei a refletir sobre uma questão muito importante, algo que não se encaixava.
E pelo que me disse ficou ainda mais claro, segundo a Allicent você é um aliado, mas como um
aliado dela não resolveria algo que lhe causa tanta agonia, quer dizer, todo o tormento dela gira em
torno da morte da Eve, então como você não moveu mundos e fundos para solucionar esse caso
para a sua amada? Você literalmente fez tudo para atrapalhar, interromper as investigações, você
não queria, ou melhor dizendo, não podia solucionar o caso pelo simples fato de que teria de se
entregar.

Nick recua, os olhos arregalados em alerta.

— O que está insinuando?


Não há emoção em minha voz quando digo:

— Você matou a Evangeline.

Ele empalidece.

— Eu nunca entendi porque aquele primeiro disparo não me acertou. Eu pensava que havia me
movido, mas a realidade é que ele não era pra mim, era pra ela. Ela precisava morrer para que
Andrômeda pudesse crescer, ela nunca teria tido tanto poder se Allicent não tivesse sofrido tanto
pelo luto, ou se eu estivesse por perto. Com a morte da Eve, ela conseguiu o que tanto queria, o
aval para matar e ela sabia que só o teria dessa forma, foi por isso que ela te deu a ordem.

— Você não pode provar nada disso.

— Não preciso provar, eu já disse! Não vou te levar a julgamento, nem nada disso. Eu só quero
que saiba que estou aqui hoje para te fazer pagar pelos seus pecados, você vai morrer pela Eve,
pelo Harry e por todas as pessoas inocentes que você ajudou a morrer quando acobertou um serial
killer.

— Sabe que se atacar um SAC do FBI nunca mais vai conseguir sair daquele hospício! Você vai
morrer lá. — Dispara em uma última tentativa de me refrear.

Sorrio por seu empenho, tirando a faca da cintura, a lâmina afiada contorna seu maxilar.

— Eu já estou morto, Grimshaw, mas você... Eu não te dou permissão pra morrer ainda.

Empurro a faca contra sua pele e começo a cortar.

— Espera! — Berra tomando consciência do que estou fazendo — Espera! Louis! Louis, por
favor!

— Era assim que ele fazia? Era como ele gritava por mim? — Movido pela raiva desço a lâmina
com mais violência, seus gritos desesperados são como música para os meus ouvidos. A boate lá
embaixo é tão escandalosa, eu posso fazer o que quiser e ninguém nunca sequer notará.

Aos poucos a pele vai se separando dos ossos, músculos, carne, há muito sangue, mas nada que não
fosse esperado, é apenas incômodo como Nicholas esperneia sob mim. Covarde.

Enquanto corto penso na expressão de medo no rosto de Eve antes de receber uma bala na testa,
penso em Harry confuso e assustado, tentando escapar sem ter o controle dos próprios membros ao
que esse porco imundo o violava repetidamente, penso em Gemma presa em um maldito corredor
da morte, em Michael tombando na escadaria com os órgãos nas mãos, na expressão de sofrimento
de Luke, no corpo de Ashton apodrecendo no nosso banheiro, no olhar de Aaron antes de se
arremessar daquele prédio, na pobre Adrienne e seu bebê, nas famílias das incontáveis vítimas
aparecendo na TV implorando por justiça, em Spencer chorando, Blake vagando sozinho pelas
ruas, o corpinho frio de Leslie em uma vala, em Mia... Em mim.

Em quantas desgraças cabem em uma história.

Eu amaldiçoo essa história.

Eu amaldiçoo quem ousar ler ou ouvir cada uma dessas atrocidades.

Eu amaldiçoo a mim.
A você.

Estou farto de tudo isso! Termino e puxo a pele, recebendo nada além de um grunhindo de Nick.

A visão me embrulha o estômago.

Levo seu rosto diante do meu, como se fosse uma máscara qualquer.

— O que acha? Fiquei bem?

Ele abre a boca, mas acho que não consegue falar.

— É, acho que sou mais o meu rosto remendado mesmo. — Dou de ombros, guardando seu rosto
no meu bolso. Saldo para fora da cama e preciso de um lenço para me livrar de todo aquele sangue
fétido. Feito isso, sigo até a bolsa, tirando o que há dentro, Nicholas observa tudo, sem a pele seus
olhos parecem maiores do que nunca, tão alarmados quanto apavorados. Não lhe dou atenção,
subindo em cima dele para alcançar a pilastra do teto, o metal desliza para o outro lado e abaixo,
passando ao redor de seu pescoço — É a minha primeira vez fazendo isso, espero que não leve a
mau se demorar um pouquinho. Mas eu fui generoso, não? Te deixei com todos os seus órgãos aí
dentro.

Faço um nó firme em seu pescoço e solto as algemas, é quase decepcionante como Nick se apega
demais ao rosto, gemendo e tateando a carne, quanto mais ele toca, mais sangra.

Prestes a puxar, sussurro em seu ouvido:

— Não se preocupe, querido. Você está ótimo. — E puxo, Nick é suspenso no ar pela corrente em
seu pescoço, amarro a ponta no dossel da cama e dou a volta para poder assistir de frente e uau!

Eu vi e revi tantas cenas como essa nos últimos anos, mas depois que perdi por completo toda essa
estúpida noção de certo e errado, eu consegui enxergar a beleza nisso. Cordas eram tão simplórias
e podem arrebentar, mas as correntes eram estáveis, seguras e firmes e além de tudo tinham aquele
brilho prateado quase hipnotizante, o sangue jorrando do rosto de Nick constava lindamente, as
longas pernas de aranha chutavam inutilmente o ar e os sons de engasgos eram empolgantes porque
por mais que ele tentasse não havia saída. Era a morte certa e a morte é tão excitante. Sentei no
chão, os cotovelos sobre os joelhos e assisti hipnotizado o show.

Quase desejei Andrômeda aqui comigo.

Foi quando percebi que poderia tê-la, bastava visualizar seu rosto sobre o vazio de Nick. Podia ser
qualquer pessoa, poderia ser Harry, poderia ser eu.

Eu sorri mais satisfeito ao imaginar o meu rosto ali. Ao me imaginar sufocando e assistindo ao
mesmo tempo.

Então é assim que é a mais pura insanidade? Eu gostei daqui, estou me sentindo em casa.

Xx

Poderia ter me dado ao trabalho de perguntar a Nick onde a entidade ambulante poderia ter se
escondido com Mia, até me dar conta de que eles não estariam se escondendo. Ninguém os
encontrava porque obviamente estavam em um dos lugares mais óbvios possíveis e se havia um
lugar que era óbvio era o prédio no centro de Manhattan onde costumava ficar a galeria de Aaron.

Faltava pouco mais de uma hora para o início do amanhecer quando entrei no carro para dirigir até
o meu destino. Era realmente surpreendente que não tivessem me pegado ainda, o corpo de Nick
foi encontrado quando já estava na estrada, em todas as estações só se falava sobre Andrômeda à
solta. Joguei fora o celular que Niall deixou e continuei meu caminho, seguindo na rota que
traficantes costumavam fazer, felizmente ninguém tentou me impedir e quando a noite se tornava
menos escura, estava adentrando ao hall deserto da Expression.

Sentia como se tivesse estado aqui em outra vida, a lembrança de beijar Harry diante desse prédio,
depois segurá-lo quando ele desmaiou, de assisti-lo ser levado em uma viatura do FBI, tudo isso
me parecia tão distante. Perdido em um passado esquecido.

Logo na entrada me deparei com um anel. Um H dourado no chão.

Eles estão aqui.

Não havia nada no térreo, nem no primeiro andar. Eu não explorei o lugar na minha primeira vez
aqui, por isso estranhei quando as portas do elevador abriram para um estúdio mais amplo do que o
outro. A porta se abriu e desta vez um anel de rosa estava do lado de fora, desci no andar,
recolhendo o anel e atento a qualquer movimentação, quando adentrei mais a fundo foi que me dei
conta de que já estive aqui. Deve haver outra entrada, mas definitivamente estive aqui e o que me
traz a certeza são as minhas fotografias ampliadas nas paredes, o meu rosto espalhado por toda a
parte que Aaron me exibiu com tanto ânimo. Harry e eu ao canto, ou seria Allicent e eu? Não
importa mais. Eu não me reconheço nessas fotos.

Retorno ao elevador e estou no décimo segundo andar quando a porta se abre por mais uma vez,
automaticamente me esquivo quando encontro o espaço repleto de correntes presas ao teto,
tilintando do alto até quase tocarem o chão. A tal exposição de Aaron. Tem um anel com um S
brilhando na escuridão. Ao canto percebo um sofá escuro e algo parece encolhido sobre ele. Corro
até lá encontrando Mia enrolada em si mesma, assim como os meninos daquela vez, ela está
inconsciente, aparentemente intacta, exceto por um arranhão em sua bochecha, fora isso, não há
nada fora do lugar.

Cogito a possibilidade de simplesmente pegá-la e dar o fora daqui, mas neste momento escuto o
ruído do elevador e sua luz vermelha se apagando, ele foi desligado.

Nenhum de nós quer evitar um confronto.

Com a certeza de que Mia está bem, a deixo para pegar o caminho das escadas, não sem antes
pegar uma daquelas correntes para mim. No andar seguinte não há nada de pavoroso além de
espelhos, como um labirinto. No chão está a aliança de Harry.

— Parabéns por ter chegado até aqui. — Ouço o timbre rouco ecoar além dos espelhos.

— Estava esperando por mim. — Dou o primeiro passo, com a guarda alta para o caso dele dar o
bote. Entro pelo caminho, os reflexos me confundem, mas consigo encontrá-lo rapidamente, em pé
de frente para as imensas janelas que vão do piso ao teto, Manhattan começa a se acender diante
dele, ele sopra e vejo a fumaça flutuando sobre ele. E quando se vira, tem um cigarro entre os
dedos, ele não usa nada além de uma camisa branca, jeans escuros e botas.

Por alguma razão, Andrômeda não estava tentando transparecer quem realmente era.

— Você parece normal. — Observei, focando em suas mãos vazias.

O que pretendia?

— Oh, que ofensivo. — Exalou com escárnio — Mas tem razão. — Deu um novo trago, se pondo
a caminhar — Eu aceitei a minha triste condição como "vítima" e caso a noite não acabe bem para
mim, eu gostaria de manter o circo.

— Está pensando em salvar a própria pele mesmo depois de morta.

— Não pode me condenar por pensar em tudo. — Um sorriso divertido brota em seus lábios
enquanto solta a bituca de cigarro e a esmaga com o bico da bota — Desde que chegou você parece
saber exatamente com quem está falando, como isso é possível?

Mantenho a corrente enrolada em meu antebraço as minhas costas.

— Bem, eu tenho uma enorme desconfiança que você tem estado no controle há um bom tempo,
provavelmente desde o meu julgamento. Você encontrou alguma brecha e deu o xeque-mate
quando me fez perder a cabeça no presídio e te atacar.

Andrômeda sorri mais em deleite.

— Sabia que era eu, detetive?

— Claro! Allicent é uma louca, mas ela nunca se referiria ao seu precioso bebê como "fruto do
nosso ódio", ela o amava, da forma estranha e doentia dela, amava.

— Amor... Que coisa mais brega! — Bufa entediada, ela tem um ar tão temperamental e irritadiço.

— E no outro dia em que você foi me visitar, era você.

Ela para e me encara, impressionada.

— Pensei que você não passaria daquele dia.

— Mas eu passei e acho que descobri boa parte do seu jogo sujo.

— Meu jogo sujo? — Gargalha — Por favor, eu sou um poço de transparência.

— Você é uma cadela desprezível! — Esbravejo exaltado.

— Isso também!

— Você provou ser a pior de todas, você conseguiu manipular a Allicent, tudo pra conseguir
prosseguir com a sua matança, você matou a Eve!

Desta vez ela não esboça nenhuma emoção.

— Sim.

Claro que ele não tentaria negar.

— Bom, seu parceiro já pagou por isso. — Puxo a pele que costumava estar presa a cara de
Grimshaw e lanço aos seus pés, seus olhos saltam levemente.

— Agora você me surpreendeu. Venha para a luz, detetive. — Dou um passo à frente e a luz
rarefeita da lua ilumina meu rosto, Andrômeda parece gostar do que vê — Uau! Você finalmente
começa a parecer interessante aos meus olhos, deu uma lição merecida naquele verme rastejante e
perdeu a aparência de policial bonzinho, agora sim. — Morde os lábios, me olhando de cima a
baixo —Se eu não estivesse prestes a te matar, foderia com você agora mesmo.
Torço os punhos, me revirando em repulsa.

— E por que estamos aqui? Por que sequestrou a Mia?

Ela dá de ombros.

— Tédio e Allicent sentia falta de um bebê. Além disso, eu sabia que você viria. E eu precisava
disso, Louis, os outros são insetos covardes, pra eles basta se esconder e se encolher em suas
próprias insignificâncias, mas eu não sou assim. Nada me sacia, nada me acalma, eu não sou capaz
de ir contra a minha natureza, eu sou uma besta sanguinária e sei que você me entende, porque a
mesma fome pelo caos que queima nas minhas veias, queima na sua também. Nós nunca teremos
paz enquanto o outro estiver vivo. Então, estamos aqui para que um de nós possa, enfim, morrer. E
quer saber a melhor parte? Pelo que soube das notícias você matou um homem na clínica e matou o
Grimshaw e eu também matei duas pessoas, sendo assim, o último a permanecer de pé será
"Andrômeda" para sempre.

— Eu dispenso o título, apenas pegue a sua arma e me deixe acabar com você.

— Arma? Você é tão sem imaginação. — Ela está rindo quando subitamente sua expressão muda
para a mais endurecida possível. Os olhos cerrados. Hunter.

Ele avança sobre mim mortalmente ao mesmo tempo em que jogo a corrente, ela acerta seu braço
direito, rasgando o tecido e marcando superficialmente a pele, mas não indo adiante ao que ele
consegue segurar uma das pontas e me puxa contra seu corpo. Seu ombro se chocou fortemente
contra meu peito, eu resfolego e ajo rápido ao passar o restante da corrente ao redor de seu pescoço
e apertar.

Hunter é forte e mesmo quando o sufoco ele não guincha, apesar de estar claramente sem ar.

Sua atenção está concentrada em outra coisa. A mão livre agarra meu quadril e com impulso ele
me ergue e me lança sobre sua cabeça, meu corpo se choca com o chão e quase posso ouvir parte
dos meus ossos se quebrando e logo ele está em cima de mim, a mão se infiltrando em meus
cabelos e acertando minha cabeça no piso, aquilo não só me deixa tonto como desnorteado, é puro
instinto de sobrevivência que me faz fechar o punho e acertar seu queixo, quando ele me solta uno
os punhos para golpear o centro de seu peito e desta vez, Hunter recua e quando o faz, levanto
rapidamente e chuto seu rosto, seu pescoço vira e ele cospe sangue.

E antes que tenha a chance de reagir, a corrente em meu punho ricocheteia e crava suas tranças
prateadas contra o outro lado de seu rosto. Agora ele grita.

Eu vacilo ao perceber o que fiz, eu não hesitei, não houve uma só célula do meu corpo que temeu
machucar Harry, o que só pode significar uma coisa, eu irei até o fim. Sinto o sangue escorrendo
pela provável abertura no meu crânio, é úmido na minha nuca e quando ele me olha, há um corte
profundo atravessando desde a testa até o queixo, um centímetro a mais e ele teria ficado cego de
um olho.

— Oh, fez dodói, amor? — Me pego zombando dele.

Ele torce a mandíbula de uma maneira que não parece nada boa e volta a atacar, caímos em um
embate corpo a corpo. Onde eu tenho desvantagem, ele é mais incisivo e brutal, seus dedos se
apertam ao redor da minha garganta e empunho a faca rasgando seu antebraço, ele chia alto,
apertando o braço, tentando não perder tanto sangue. A faca cai entre nossos corpos e quando tento
alcançá-la, ele se coloca no caminho, o repuxar em sua boca ao sorrir me revela quem retornou e
tudo o que registro é a dor latejante, baixo os olhos e quero gritar quando vejo que Andrômeda
decepou meu dedo.

— Pra combinar com a outra mão. — Sorri ofegante.

Eu deixo que a fúria se apodere de mim e a agarro pelo colarinho, o arremesso contra um dos
espelhos e é quando nossa luta no labirinto tem início.

Está tudo girando e tem muito sangue envolvido. Mas sei que preciso ficar atento, porém é tão
difícil quando sinto que estou prestes a desmaiar, tento segurar a arma, mas ela está escorregadia
entre meus dedos ensanguentados. Encosto por um instante no espelho, um instante de respiro. Ele
praticamente explode atrás de mim com o impacto de seu chute. Andrômeda torce meu braço até o
característico som do osso quebrando, urro pela dor e ela me joga no chão, próximo ao lugar que
estava quando cheguei.

Ela vem cambaleante, o braço tomado pelo sangue que goteja pelo caminho ao que se aproxima, a
bochecha rasgada cintila o vermelho quando a lua a atinge. Faço o possível para me colocar ao
menos de joelhos.

— Você não se segurou em nenhum momento. Ainda bem que não o fez, tornou isso tudo tão
empolgante. — Diz se abaixando e levantando em seguida, a arma em sua mão.

Eu não tenho forças para reagir, Andrômeda se aproxima, destrava a arma e deixa o dedo sobre o
gatilho, empurrando o cano contra meu queixo.

— O resultado já era previsível, mas vou te dar algum crédito. Um último pedido?

— Devolva a Mia, deixe os meninos e o Harry em paz.

Andrômeda revira os olhos.

— Foram três. Mas não faz diferença, não vou cumprir nenhum deles, depois que estourar a sua
cabeça, eu desço e faço o mesmo com a menina, então com os gêmeos e o Harry, bem... O Harry
vai aguentar o que eu quiser que ele aguente. A fraqueza dele o tornou uma casca, eu não o
respeito nem um pouco, então, nada de paz pro desgraçado. Adeus, Tomlinson, passar bem no
inferno.

Ela puxa o gatilho.

Eu assisto de perto o movimento que vem quase tão rápido quanto seu pulso girando e virando o
cano contra seu próprio abdômen, um disparo e depois outro. Estremece e solta a arma, uma
enorme mancha de sangue rapidamente se espalhando pela camisa branca.

— Essa merda dói. — Resfolega aborrecida, os joelhos dobrando. Uso as minhas forças restantes
para segurá-la.

Ela me protegeu.

Sugar.

Seu rosto vai perdendo a cor e seus dedos longos dedilham minhas cicatrizes, talvez ela nem tenha
se dado conta que tem uma agora.

— Seu cabelo. — Acaricia minha franja.

Sorrio complacente, sentindo seu corpo cada vez mais mole em meus braços.
— Está bonito. Eu g-gostei. Eu gosto... — A forma como ela diz aquilo, não acho que ela esteja
falando só do cabelo.

— Você atirou em si mesma pra me proteger. Você salvou a minha vida. — Toco seu rosto e ela
soluça, engolindo um gemido de dor.

Ela está morrendo nos meus braços.

— Até garotas más podem fazer coisas legais de vez em quando. — Sorri fraco — Ela era minha,
eu devia ter cuidado dela, mas eu preferi fingir que ela não existia e isso só causou sofrimento. Eu
era a mais forte, eu devia ter cuidado dele... Eu devia... — Ela ofega, prestes a perder a consciência
— Harry. — É seu último murmúrio antes de desmaiar.

Deslizo até o chão com seu corpo abraçado ao meu. A sua cabeça tomba para trás quando o puxo
rente ao meu peito.

Harry, você ainda está aí?

Não sei se é o Harry, mas alguém ouve o meu chamado e abre os olhos, vejo pelo reflexo em um
dos espelhos laterais. Tenta se levantar, com dificuldade, o ajudo a sentar, porém seus olhos
continuam no espelho.

— Eu ouvi o nome da Eve.

— Allicent? — Ela assente. É quase irreconhecível, é claro que ela perdeu o controle, o luto parece
ter corroído tudo o que restava após a perda de Eve — Andrômeda mandou que o Grimshaw
fizesse aquela emboscada, que garantisse a morte da Eve. E depois, ela foi até o presídio para me
encontrar, ela me provocou para que eu a atacasse e ferisse a Leslie.

— Ela quis machucar o meu bebê? — Sibila em um chiado de voz. Viro o rosto, olhando na
mesma direção que ela, minha bochecha tocando a sua, eu me sinto maquiavélico ao colocá-la
contra uma outra parte de si.

— Sim e depois disso, ela me agradeceu.

— Agradeceu? — Cospe enojada, deixando meus braços para andar até o espelho. Olho para o
revólver a mais ou menos um metro de distância, posso pegá-lo e disparar. Um tiro nas costas, algo
propício a um indigno como eu, mas ela começa a falar: — Como você se atreveu a armar pelas
minhas costas? Você matou o meu bebê! — Ela grita para o espelho e através do reflexo vejo seu
rosto mudar.

— Você não tem bebê! Você não existe, sua estúpida obcecada, deveria ter me agradecido por dar
um basta nessa insanidade. — Responde com a voz ácida — Você não merecia estar no controle!
Você é fraca!

— E você é louca. Sua maldita assassina, psicopata, você acabou com tudo, arruinou tudo o que
construímos. — Allicent ofega, chorando transtornada.

Eu nunca pensei que presenciaria algo assim. É absurdo contemplar o quão rápido suas expressões
e vozes oscilam. Allicent está chorando, mas Andrômeda não. É como se eu finalmente pudesse
ver todos eles fora de Harry.

— Não construímos nada, você só quis brincar de casinha e nos manteve reféns, tendo de aguentar
suas imposições. Ninguém te queria no controle. Todos te odeiam.
— Mentira... — Allicent murmura.

— Você sabe que é verdade. — Seu rosto adquire um tom enfezado, pretensioso, as sobrancelhas
arqueadas. Aimee — Você não nos dava ouvidos, quis viver como se fosse a única e se não
cooperassemos, simplesmente nos prendia.

— Eu estava cuidando de vocês! — Ela retruca, um olhar raivoso sendo lançado para onde não
vejo ninguém, mas ela vê — Kyle diga à eles!

— Dizer o quê? Que você nos usava como marionetes? — O sotaque norueguês surge acentuado
— Quantas vezes tive de implorar para que fosse tão egoísta? Para que pensasse no grupo?

— Grupo?! Não deveria haver um grupo, eu fui a primeira a chegar! Eu era, não, não, eu sou tudo
o que o Harry precisa. — Ela se exalta, o rosto ficando vermelho e uma poça de sangue se
formando aos seus pés.

— E onde está o Harry agora? Oh, sim, enclausurado. — Essa fala monótona quase lembra a voz
natural de Harry, exceto pelo tom imperialista. Será o tal Alex?

— Não fale como se você não tivesse ajudado a chegar nisso. Todos vocês colaboraram! Esperam
o que? Que com Andrômeda as coisas serão diferentes? Ela é um animal, olhe só o que ela fez
conosco. — Pressiona a palma contra o abdômen e o rosto.

— Choramingando só com alguns arranhões? Não é à toa que as suas filhinhas morreram com
tanta facilidade. — Andrômeda zomba, rindo. E no instante seguinte os punhos estão se chocando
contra o espelho, partindo-o em inúmeros pedaços de vidros que vão rasgando seus dedos, pulso,
mas não há importância. Allicent só quer silenciar Andrômeda, esquecendo-se que ela vive em sua
cabeça.

Subitamente ela cai para trás, como se tivesse sido empurrada e então é posta de joelhos, o rosto se
movendo como se alguém o estivesse apertando, obrigando-a a olhar algo, ou melhor, alguém.

— Tire suas mãos de mim, seu cão imundo. — Vocifera.

Um rosnada vem em resposta.

Hunter.

— Chegamos a decisão de que está na sua hora de dormir, querida Allicent.

Seus olhos se apertam e ela geme, o peito arqueando como quando atacaram Harry. Mas ela
resiste, os dentes trincados e o sangue começando a despontar de seus lábios.

— Antes disso, eu mato cada um de vocês.

E acredito que um embate violento esteja acontecendo internamente, porque há grunhidos e vocês e
seu corpo se encolhe e treme. As mãos voam sobre os ouvidos e um choro desesperado começa:

— Parem, por favor, parem! Nós vamos morrer. — Cody súplica com a voz pequena.

E o confronto parece ser interrompido, seu rosto vira para a esquerda, como se estivesse
procurando por alguém.

— Cadê a Sugar?

— O quarto-
— O quarto está vazio. — Kyle responde.

— Maldição! — Andrômeda rosna, antes de ficar imóvel.

Os olhos vidrados, a mão sobre o chão tenta se mover, dobrando os dedos como se fosse uma
tarefa muito árdua, como se... Como se estivesse lutando para fazer aquilo.

— Saia daqui, garoto.

— N-Não. — A voz arranhada grunhe, lutando para fazer o mesmo com a outra mão — Esse... E-
Esse corpo é meu! — Resfolega, erguendo os olhos verdes cristalinos, sob os cabelos úmidos de
suor e sei exatamente quem me encara — Você saí.

A minha visão está turva, meu peito sangra continuamente.

Harry mantém os olhos fixos em mim e com dificuldade move uma perna, seguida da outra,
lutando com seu próprio corpo para fazê-lo se mover, ele está tão ruim quanto eu. Mas é bom revê-
lo, apesar das circunstâncias.

Ele abre a boca e cambaleia, por um tris não cai no chão. Ele tenta de novo, a voz rouca e fraca,
como de alguém que passou muito tempo entubado.

Minha mente tenta prever quais serão suas palavras, o que ele dirá?

"Tudo bem. Eles foram embora para sempre. "

"Eu sinto muito."

"Te odeio."

"Te amo"

— Me salva, p-por favor. — Implora, com os primeiros raios de sol batendo em suas lágrimas.

Ele já me fez esse pedido uma vez e eu recusei. Não tive forças. Minha mão está a caminho da
arma, mas não tenho coragem de simplesmente atirar, eu não encontro uma forma de pôr fim ao
seu sofrimento sem que eu esteja assistindo de perto.

Olho para além dele, para o sol nascendo.

Como Harry, obrigo meu corpo a ir além de seus limites, é uma tortura conseguir me mover, mas
rastejo até conseguir me colocar de pé. Tomo um último suspiro, olhando para onde ele espera por
mim.

— Eu amo você, só você, Harry.

Ele sorri, as covinhas marcando suas bochechas.

— E eu amo você, Lou.

Assinto e baixo os olhos por um momento, certo. Apenas faça. Dobro o joelho, pegando impulso e
corro, meu corpo se chocando com o seu no caminho, o aperto em meus braços e ele me segura de
volta, em um abraço firme, deixando que eu o arraste comigo quando persisto em seguir em linha
reta, até que não reste nada além do vidro, nada além daquela imensa janela a ser estilhaçada pelo
impacto de nossos corpos contra ela. Ouço o vidro estilhaçado, a ventania impiedosa sobre meu
rosto, o perfume dos cabelos de Harry, o frio na barriga e suas mãos apertadas em meus ombros e
não há espaço para temor, dor ou incertezas, nós simplesmente caímos.

Caímos do décimo terceiro andar da galeria no centro de Manhattan. É rápido. E eu não sinto nada.
Minha mente desliga antes que cheguemos ao chão.

E quando eu acordo, há luzes, carros, gritos e sirenes. Tem pessoas ao nosso redor, sem se
aproximar. Tento me situar, pisco, sentindo dor em cada pedacinho do meu corpo, mas o que mais
estranho é o fato de estar vivo, como eu posso ter sobrevivido? É quando percebo que estou
inteiramente deitado sobre o corpo de Harry, seus braços que estavam ao meu redor caíram para os
lados, mas minha cabeça permaneceu segura em seu peito.

"Você me protegeu" podia ouvir a sua voz maravilhada quando fiz o mesmo por ele, porém, essa
não foi uma queda ridícula como aquela. Isso foi ele dando a sua vida pela minha.

Sua vida.

Tomado pela adrenalina correndo ferozmente pelas minhas veias me coloco de pé, escorrego um
pouco para conseguir enxergar direito. Seu corpo está estatelado diante da galeria onde alimentou
tantos sonhos grandiosos e fez sua única exposição solo, seus braços abertos, a camisa só tem
pequenos pontos esbranquiçados, ela foi tomada pelo sangue. Uma poça gigantesca de sangue se
formou ao seu redor.

O que a cigana disse, vem a minha mente como um murro:

"Eu vejo os pedaços, os seus pedaços espalhados sobre o chão frio. Um rio vermelho, o seu sangue
embargando tudo ao seu redor."

Agora faz sentido. Pedaços, eu também vejo esses pedaços, quatro em específico em cada lado de
seu corpo.

Eu vejo eles.

A narcisista, Aimee.

O assustado, Cody.

O sistemático, Kyle.

O cão de caça, Hunter.

O misterioso, Alex.

A inesquecível, Sugar.

A monstruosa, Andrômeda.

A desiludida, Allicent.

E aquele que não era um mero pedaço, mas o centro de tudo isso. Aquele que mais sofreu.

A vítima, Harry.

As luzes se tornam mais intensas, vermelho e amarelo piscando e a sirena chega alto em meus
ouvidos, as portas são batidas e uma voz familiar grita:

— De joelhos, Tomlinson! — Hemmings exige com a arma apontada para mim.


Enxergo Liam e Mitch nos outros carros, Niall está no passageiro de Luke, e vira o rosto quando o
encaro.

Sinto muito, Irlanda.

Hemmings torna a exigir me chamando de "Tomlinson". Eu não gosto desse nome, não o
reconheço como meu.

Lembro do que ela disse. "O último a permanecer de pé será Andrômeda para sempre."

Eu ainda estou de pé.

— Diga meu nome e eu obedeço.

Luke tencionou a mandíbula e acatou.

— Renda-se, Andrômeda.

Balanço a cabeça e no caminho de ajoelhar, tombo para o lado, desabando ao lado de Harry,
deitando sobre seu sangue. Daqui posso observar seu rosto de perto, a cabeça dele está jogada para
trás, o cabelo macio fora de seu rosto, pequenas ondas suaves tocando o asfalto, o rosto bonito,
pálido e imaculado, ao menos do lado que posso ver. Ele parece exatamente como no dia em que o
conheci, os cílios longos tocando as maçãs do rosto, sem qualquer tremor, indicando que ele não
voltará a abrir aqueles olhos nunca mais.

Harry quebrou o pescoço.

Eu o invejo por isso. Ele me tirou o direito de morrer também.

Estico a mão sobre a sua, entrelaçando nossos dedos.

Amanhã que se apresenta é fria e cinzenta, o sol parece ter mudado de ideia e em seu lugar envia a
chuva, a água toca meu rosto e eu sequer pisco. Eu queria saber se meu coração bateria depois que
o dele parasse e a resposta é não.

Tudo aquilo não durou mais do que dois minutos, mas eu ficaria preso naquele momento pelo resto
dos meus dias.
│30│virgo
Chapter Notes

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Eu nunca pensei que sairia dessa vivo. A mais remota possibilidade de sobreviver não passou pela
minha cabeça, por mais que houvessem momentos em que dei a minha vitória como certa, no meu
âmago fantasiava que ele conseguiria me levar junto. Que estaríamos condenados e pagaríamos
por nossos pecados lado a lado.

Mas eu estava errado e apenas ele partiu.

E eu continuei aqui, existindo.

Existir é uma tarefa árdua quando você não tem mais energia para isso. Mesmo nos momentos
mais caóticos da minha vida tentava focar no futuro, naquilo que me reservava, nas possibilidades
e a única que me resta no momento é uma cela fria de segurança máxima no hospital psiquiátrico
de onde eu escapei. De volta ao manicômio.

De início, me convenci de que era tudo um sonho. Uma realidade maluca e traiçoeira que minha
mente criou enquanto estava cochilando na banheira me atrasando para o trabalho, qualquer coisa
que não fosse acreditar que isso era real, porém, dias se passaram, mais precisamente duas
semanas. Duas semanas mais tarde e não acordei desse pesadelo.

O médico veio até aqui e teceu elogios a minha recuperação, ele começou a tirar os pontos e
segundo ele, mês que vem vou estar novo em folha, dentro do possível. Com isso, recebi alta e
estarei retornando o quanto antes a minha sentença perpétua.

Sem visitas, sem notícia alguma do mundo externo. Tudo o que sabia além destas paredes é que os
carros de reportagens continuavam acampados diante do hospital, eles abordavam quem quer que
desse as caras a procura de uma exclusiva, mas não havia mais nada para saber sobre mim a essa
altura.

E o que de fato não sabiam, eles inventavam.

— Você tem cinco minutos. — Craig, o federal responsável por ser meu cão de guarda dentro do
quarto disse, tirando minhas algemas atreladas a cama.

Ele foi bastante generoso em concordar que eu tivesse alguns instantes de privacidade no banho de
hoje.
Logo estarei preso a uma camisa de força e coisas como esfregar minhas próprias costas deixarão
de ser uma preocupação.

— Eu vou estar bem aqui, faça alguma gracinha e eu te dou um motivo pra ficar mais uns dias por
aqui. — Ele reforça sua fala balançando a Glock e eu reviro os olhos.

— Nossa, você me pegou! Eu tenho tanto medo de levar um tiro. — Resmungo entediado,
entrando no banheiro.

— Muito engraçadinho, Tomlinson. Sem gracinhas!

Dito isso, ele bate a porta e sei que ele está grudado no outro lado da madeira e tudo bem, não
tenho interesse em fazer nenhuma gracinha além de tomar o último banho em um lugar livre de
malucos. Com cuidado puxo a camisa, seguida das calças, dedilho superficialmente meu peito, a
cicatrização estava muito boa, um corte limpo e bem fechado, o médico comentou que era quase
como se não quisessem me matar realmente. Em parte sabia que era verdade. Apesar disso, respirar
continuava sendo trabalhoso.

Abri o chuveiro e entrei debaixo da água morna, me servindo apenas de uma mão, uma vez que a
outra ainda estava com as bandagens, era intimamente frustrante saber que eu nunca mais poderia
dar o dedo do meio para ninguém. Os dois se foram. Não, eu não seria sentimental quanto a isso,
quando o que me fazia falta mesmo era minha aliança, ela teve de ser levada, assim como os anéis
de Harry, tudo era uma arma em potencial em minhas mãos.

Todos me tratavam como se eu fosse o homem mais perigoso na face da terra quando não passava
de um policial que levou a sério o treinamento, nada além disso. O perigo real estava na minha
falta de limites, quanto a isso todos nós concordávamos.

Me aproveitei ao máximo da sensação de poder fingir ser normal, apenas um homem qualquer
tomando um bom banho antes de começar o dia, eu era bom nisso. Em imaginar.

Criar o cenário perfeito na minha cabeça, de me convencer da realidade que mais me agradasse,
então, eu fingi ser qualquer um enquanto mantinha minha cabeça debaixo do chuveiro e quando
estava me sentindo satisfatoriamente iludido, desliguei e sai, puxando os cabelos para trás com a
toalha nos quadris.

Encontrei a mim mesmo no espelho.

Uma sombra distorcida do homem que conheci.

Neste ponto, os programas sensacionalistas estariam exibindo fotos minhas, da criança


aparentemente normal que fui, do adolescente com um rosto angelical, o homem da lei e por fim,
isso. O monstro. Eu atingi meu estado final, a metamorfose está concluída e o que enxergo no
espelho daria pesadelos aos meus filhos, arranho as cicatrizes espalhadas pelo meu rosto, estão
enraizadas em mim. Elas fazem parte do todo agora. Esse cabelo me faz parecer diferente, mais
tenebroso, os piercings se foram, mas as marcas permanecem, puxo o lábio inferior observando
minha língua despontar. Ou línguas, melhor dizendo.

Rio comigo mesmo.

— Ah, seu maldito insano! — Murmuro, jogando a água fria sobre meu rosto, aperto as
extremidades da pia, assistindo a água gotejando na porcelana.

Eu sou o homem mais odiado da terra.

Isso não me importava tanto assim, exceto que eu sentia falta do ódio de alguém. Eu tinha um
buraco no peito mais profundo do que qualquer tiro ou facada que já tive. Era como uma bactéria
se espalhando por meus tecidos, veias, sangue, ossos, isso era... Saudade?

— Um minuto, Tomlinson! — Craig bate na porta.

Suspiro, balançando a cabeça. Hora de ir.

Espalmo a mão sobre o espelho e ergo o rosto, mas quando miro minha mão, não a encontro
sozinha, uma palma maior e calorosa está sobre ela, os dedos longos, os anéis.

Eu a reconheceria em qualquer lugar.


Imediatamente me viro, meus quadris batendo na pia, sequer registro a dor, olhando
desesperadamente por cada centímetro do banheiro e não encontrando nada. Estou sozinho. Não,
não é possível, eu sei o que vi, eu pude sentir.

— Harry! — Chamo, andando desnorteado — Harry, eu sei que você está aqui. Apareça. Apareça,
por favor. — Aos poucos minha voz vai se destroçando em súplicas.

Craig torna a bater na porta como um aviso.

Penso em tudo o que vi desde sempre, nas formas retorcidas, sombrias e misteriosas que rastejavam
ao meu redor. Nos meus delírios constantes, com Eve e Lucian. Eles sumiram. Nenhum deles
nunca foi bem vindo ou desejado, se existe uma ilusão pela qual eu anseio, se deve haver um
demônio ao meu ombro por toda a eternidade, sei exatamente quem eu quero.

Fique comigo.

Me assombre.

Me persiga.

Me enlouqueça ainda mais.

Apenas... Não me deixe.

Desiludido, volto a apertar a pia e encostar a testa no espelho. E é quando sinto o roçar familiar de
cachos na minha nuca, a respiração quente atrás da minha orelha e os lábios tocando meu ouvido
ao sussurrar num timbre grave e rouco:

— Nem a morte é capaz de quebrar essa corrente.

Quase me desfaleço de alívio. A corrente que nos mantém atados um ao outro jamais será rompida.
Para o bem ou para o mau, para sempre estaremos juntos.

Estou tão extasiado que não faço caso algum quando Craig entra e me arrasta para fora.

Em algum ponto do dia estou nas janelas, tentando me concentrar ao máximo para conseguir vê-lo
como fiz com os outros, sei que em breve será possível. Sequer percebo que estou solto e meu
guarda não está servindo de sentinela no momento em que a porta é aberta e alguém adentra meu
quarto.

O silêncio repentino após o arrastar da porra me faz olhar sobre o ombro. Niall está parado, as
mãos abrindo e fechando ao lado do corpo, ele não parece nada bem.

— O que houve, Irlanda?

Ele praticamente rosnou, se aproximando.

— Não, não me chame assim. Você não tem o direito. E-eu confiei em você, pensei que tivessemos
um acordo e você foi lá e fez a porra de uma carnificina. — O ódio e ira em sua voz era palpável.
Ele não parecia com Niall Horan, parecia comigo e isso me deixou enjoado.

— Fiz o que foi preciso. — Digo deixando a janela e me voltando para ele.

— Preciso? — Cospe — O rapaz na clínica, ele era só um garoto, você realmente precisava
quebrar o pescoço dele?
Matthew.

— Eu não precisava, eu quis. É isso que você quer ouvir? Pois aí está, essa é a verdade! Eu gosto
de matar, eu sinto prazer em fazer isso e não sinto muito. Estou pouco me fodendo para a vida dos
outros, sei que ele tinha família, sei que tinha pessoas que o amavam e mesmo assim eu não me
importo, Niall.

— Você se importa com os seus filhos?

— Francamente? — Ele assente — Não. Eu não me importo e não me lembro de ter ao menos
gostado deles, Spencer é um covarde fraco, e sei que a vida dele vai se resumir em se esconder e
lamber as feridas e Blake, ele vai ser um idiota que vai ter uma morte tão medíocre quanto ele
mesmo.

Niall engole em seco.

— Quanto a isso você nunca saberá. Ambas as famílias perderam a guarda, eles foram adotados e
não estão mais no país, e assim como toda a vida deles até agora, os nomes Spencer e Blake
Tomlinson também foram deixados para trás.

— Claro que sim, Anne deve ter pirado com isso. — Comento com indiferença, avaliando os
objetos do quarto.

Não há nada que chame a minha atenção, nada além de Niall pensando ser homem o suficiente
para me encarar, depois de Nick eu vinha me sentindo tão inspirado, era sem dúvidas magnífico
abraçar o seu eu verdadeiro.

— Ela "pirou" bem antes. No dia em que você matou o Harry, a polícia foi até a sua residência
informá-la, mas a notícia já tinha chegado em todos os meios de comunicação e quando chegaram
a encontraram morta, ela cometeu suicídio com uma overdose de medicamentos.

— Uh, será que veneno estava em falta no mercado?

— Não zombe da dor de uma mãe.

— Estou zombando da covardia de uma mãe que sabia que estaria muito fodida se soubessem de
seus feitos.

— Você não parece triste por isso, segundo o que dizia ela era uma das únicas que poderia atestar
que Harry era Andrômeda. Assim como Grimshaw e Aaron. Todos que poderiam te inocentar estão
mortos e você não dá a mínima?

— Me inocentar? — Sorrio para sua fala sem sentido — Eu não sou inocente. E a essa altura faz
diferença? Eu ou ele? Quem era o lobo mau e quem era a chapeuzinho? Ninguém liga. Diga que
fui, ele, você, Gemma, dá na mesma. A sentença foi dada e não será revogada.

Niall se aproxima até que uma pequena distância reste entre nós, seus olhos úmidos e cristalinos se
recusam a derramar qualquer lágrima ao que ardem em fúria. Eu gosto dessa versão dele.

— Eu quase perdi tudo pra te ajudar.

Sorrio ainda mais amplo.

— Você é sobrinho do diretor e um filho da puta rico, caras como você não perdem nada. O que
levou? Uma notificação? Dois meses sem o seu Maserati?
Ele me olha de cima a baixo como se não me reconhecesse.

— Seu maldito mentiroso, manipulador, assassino. — Reviro os olhos — Como o Harry poderia
amar alguém assim?

— Eis o ponto, Irlanda. Harry está morto e o que ele sentia ou não, não é mais relevante, porque eu
estou vivo e agora a história me pertence e eu posso contá-la como quiser. E sabemos que muitas
pessoas vão querer a minha versão e eu contarei como bem quiser, afinal, a verdade é só uma
questão de ponto de vista.

Ele me olha impassível, a expressão misteriosa e sorri sem vontade.

— Eu falei com a Dra. Turner e ela disse que após interromper o tratamento você jogou fora todas
as chances de voltar a normalidade, de agora em diante a sua mente vai se deteriorar ao ponto em
que não será mais capaz de distinguir a realidade, em dez anos você terá alcançado a demência
completa.

Dou de ombros. Sem novidades para mim, uno meus pulsos e os estico em sua direção.

— Estou ansioso por isso.

Niall suspira e coloca as algemas, mas antes de sairmos, me inclino e sussurro em seu ouvido.
Quando me afasto ele tem os olhos frios, no entanto, sei que ele entendeu perfeitamente o que lhe
disse e isso vai assombrá-lo.

E vivemos torturados para sempre.

2026, Sede do FBI, Washington;

— E fim. — Louis conclui com um tom demasiado alegre para a história mórbida que havia
contado.

Seus olhos felinos pesaram sobre cada um dos telespectadores durante todo o tempo, estava
satisfeito ao ver que muitos não aguentaram até o fim. Principalmente na parte de seu cativeiro
com Lucian um terço deles correu para fora com a mão sobre a boca e rostos pálidos, a garota na
fileira da frente desmaiou. Os mais sensíveis choraram, Louis os considerou os mais patéticos, mas
ele adorava contar essa história.

Niall também estava atento aos seus alunos e se levantou da cadeira, as mãos atrás das costas e se
dirigindo à Louis:

— Você adora se colocar como um ingênuo e devoto marido.

— Culpado. — Louis riu, rapidamente fechando a cara porque gostava da ideia de parecer
horripilante no imenso telão que era projetado para eles — E se me permite, esse novos recrutas
são uma vergonha.

Horan lutou para não torcer a boca em escárnio. Ele odiava Tomlinson e o simples fato de ouvir
sua voz o embrulhava o estômago, mas era um mal necessário e por isso tomou a atitude de chamá-
lo desta vez.

— É uma opinião muito apreciada vinda de um homem em sua posição. — Ele tentou não soar
ríspido, porém Louis sentiu a alfinetada direta sem se ofender.

De repente, sua expressão se iluminou ao lembrar de algo.


— Oh, isso me lembra, meus sentimentos, deve estar de luto...

O semblante de Niall rapidamente endureceu.

— Obrigado, detetive Tomlinson, por sua enorme contribuição hoje. E por ter nos dado um pouco
de sinceridade, ao menos no final, sei como é difícil para você. Adeus.

Louis se remexeu aborrecido, ele queria mais tempo, mas estava satisfeito por enquanto.

— Adeus. — Deu um aceno para a plateia e a conexão foi rompida, e como se acordasse depois de
um longo sono, estava de volta ao pátio do sanatório. Olhou ao redor e todos continuavam em
posição, um grande círculo ao seu redor com os seguranças apontando armas carregadas para ele –
não podia culpá-los, eles estavam absolutamente certos em se cuidar – era sempre assim nas raras
vezes em que deixava sua cela — Pronto, pessoal! Descansar.

— Nem em sonhos, Louis. — O chefe da segurança retrucou, abaixando a tela do notebook, seu
revólver apontado na direção do rosto de Tomlinson — Agora fique bem calmo, okay?

Ele assentiu, ao que um deles vinha por trás e prendia sua coleira no pescoço, ele odiava aquela
merda de ferro, não só por ser desconfortável como o inferno, mas também por ser o tipo de
porcaria que se usava com cachorros. Um passo seu em falso e uma onda de choque era liberada
por seu corpo. Afivelada a coleira foi a vez da máscara de couro, ele tinha de usar isso depois de
inúmeras acusações sobre ele conseguir desestabilizar os outros pacientes, fosse com palavras ou
olhares. Isso era verdade. Enganchado a guia de ferro na parte de trás da coleira, foi instruído a se
levantar.

Ele foi guiado cuidadosamente, apenas seus olhos azuis moviam-se sob a máscara grossa.
Registrando as paredes claras e as janelas amplas, eles adentraram ao corredor e diferente de como
era em sua ala de anos atrás, aqui não haviam janelinhas nas portas, não haviam conversas em
grupos, horário de lazer ou televisão. Ele estava na Enfermaria 1, onde os casos mais perigosos e
irreversíveis ficavam. O único objetivo dos enfermeiros desta ala era mantê-los longe do mundo e
isso o faziam com primazia.

Seu quarto era no final do corredor, atrás da imponente porta de ferro. Oitos câmeras miradas para
ele, noite e dia, ele não tinha autorização de fazer nada por si mesmo, tampouco estar
desacompanhado. Não que ele saísse muito, uma vez que não restava mais ninguém para visitá-lo,
sua mãe foi por um tempo, até que deixou de ir. Era melhor assim, ela nunca soube o que falar e
não acreditava nele, além de se ressentir por ter perdido todo o contato com os netos.

Pela primeira vez em muito tempo, enquanto tiravam a máscara e as algemas, se perguntou por
onde estariam os gêmeos. Que estupidez! Ele sabia exatamente onde os meninos estavam.

Fecharam a porta atrás de si e Louis fechou os olhos por um momento e quando os abriu, estava em
casa.

"Os ombros pesando por conta do casaco ensopado, ele estava tremendo depois de receber toda
aquela chuva, lá fora, o céu brilhava com os raios e relâmpagos, era um milagre que ele tivesse
conseguido voltar inteiro para casa. Apesar da opinião não parecer ser compartilhada.

Sonny foi o único a recepcioná-lo. Latindo e pulando, correu e voltou com uma bolinha de
borracha na boca e a soltou aos pés de Louis.

— Outra hora, garotão! — Disse, coçando atrás da orelha peluda do cão e adentrando
cuidadosamente, Shae e Mona estavam confortáveis no sofá, miando ocasionalmente. O cágado
imóvel perto da mesinha.

Tudo estava silencioso. Olhou para as flores murchas na mão, não seria o bastante, mesmo assim,
se arriscou a ir até o andar de cima.

A porta do quarto dos meninos estava entreaberta, empurrou mais um pouco encontrando-os. Blake
deveria estar no quinto sono, desfalecido no berço, mas Spencer estava choramingando no colo de
Harry, que fazia o melhor para acalmá-lo, aninhando-o contra o peito e balançando-os na poltrona.

— Oi. — Sussurrou.

Ele o olhou incrédulo.

— Oi? Louis, você faz ideia de que horas são? Você disse que ia buscá-los na creche e depois me
buscar no salão! Você deu um bolo em nós três. — Sussurrou de volta com a voz irritada.

— Eu sinto muito, foi o trabalho, eu disse que precisava pegá-los, acabei me distraindo.

Invés de dizer umas poucas e boas, ele apertou os lábios e continuou com Spencer. Louis resolveu
que o melhor a fazer era tomar um banho e conversar mais tarde, o que não aconteceu exatamente,
eles brigaram pelos motivos de sempre, seu trabalho, sua ausência em casa e tudo mais.

Ao final, eles estavam tão exaustos que cairam na cama em lados opostos, Harry sequer deu um
boa noite, mas quando a madrugada chegou, ele estava rolando de volta para os braços de Louis,
que com um sorriso preguiçoso soube que tudo ficaria bem."

Na sala de comandos, um funcionário se apresentava para o serviço quando apontou para a câmera
de umas celas, as sobrancelhas franzidas.

— E esse cara? — O paciente no monitor estava deitado no chão, movendo o braço como se
estivesse abraçando alguém.

O homem mais velho ajeitou os óculos, dando uma boa olhada.

— Ah, esse é o antigo detetive, ele é aquele assassino, Andrômeda.

— E ele tá bem?

O velho riu.

— Claro, ele só é bem doidinho, quando entra na cela esquece tudo e fica revivendo coisas do
passado dele. Esse aí não tem jeito. Ele perdeu completamente o juízo, é uma pena, diziam que era
um bom policial. Agora é só mais um maluco.

Xx

Horan respirou fundo quando o rosto de Louis saiu de foco e era ele e sua turma de calouros
novamente, durante a história ele quase se sentiu de voltio aquele cenário, um jovem detetive
ansioso e inseguro, seguindo seu grande ídolo como um deus absoluto, ele reconhecia a falta de
veracidade de mais de um ponto, mas gostou de recordar aquela vez em que Louis e as crianças
ficaram no seu apartamento, como ele se sentiu animado e útil. Como ele pensou que tinha um
amigo e como seu coração se partiu ao concluir que era tudo mentira. Louis não era do tipo capaz
de ter amigos.

— Bom... — Assim que abriu a boca, dezenas de mãos se levantaram e balançaram no ar, na
esperança de que fossem escolhidas — eu irei abrir para perguntas, mas antes, quero deixar claro
que Louis Tomlinson é oficialmente considerado Andrômeda, agindo em parceria com Gemma
Styles e por isso, ambos foram sentenciados e devidamente punidos por seus crimes. Após ouvirem
essa longa narração podem estar incrédulos quanto a isso, podem achar que é óbvio o
envolvimento de Harry e suas supostas identidades em todo este caso, no entanto, o TDI nunca foi
diagnosticado, não existem provas que possam comprovar a existência de uma ou mais
personalidades, a única pessoa a levantar está hipótese foi o senhor Tomlinson, que diferentemente
do marido possui diagnósticos, sendo eles, esquizofrenia paranoide, que o acompanha desde a
infância e foi terrivelmente agravada pelo uso excessivo de drogas, que só aceleraram o processo,
psicopatia e mitomania. Quando digo que ele é um mentiroso não significa uma ofensa, mas parte
de sua condição. Sendo assim, Louis Tomlinson é uma testemunha não confiável e tudo o que ele
diz é descartável e sem relevância.

Ele observa os rostos embasbacados dos jovens, os braços caindo lentamente de volta aos seus
colos. Não era o que esperavam.

— Então, passamos todo esse tempo ouvindo mentiras? — Connie indagou.

— Mentiras, eu não diria isso. Diria que vocês ouviram um ponto de vista, não o mais correto,
afinal, vocês podem notar o quão tendencioso Louis era em diversos momentos. Sua necessidade
de reafirmar o quanto amava a família e queria fazer a coisa certa, mas estando ao seu lado, ele não
era assim tão abnegado, ele era manipulador e egoísta a maior parte do tempo. Muitas partes serão
eternas incógnitas para nós, Harry não está mais aqui para dizer se sofria de TDI, se Allicent,
Sugar, Cody, Aimee, Andrômeda, Kyle, Hunter ou Alex eram reais ou pura ficção. Pesquisadores e
curiosos olham com fascínio há quase uma década para o caso Andrômeda e já o retrataram de
inúmeras formas. — Seu assistente volta a trabalhar, exibindo imagens de filmes, livros e
documentários realizados sobre o caso ao longo dos anos — Alguns abraçam totalmente a história e
colocam Harry como a mente maligna por detrás de tudo isso, um homem atormentado por alters
controladores e sanguinários, outros vão na direção oposta com Louis e Gemma sendo a dupla
maquiavélica que matava por despeito e foram capturados e uma grande parte tem se tornado
adepta da narrativa em que... — Uma nova foto surge no telão, Niall olha de relance — ambos
eram parte do mesmo. Um esquizofrênico e um TDI jamais descoberto que inconscientemente
eram parceiros, aliados não só na vida, como em sua jornada criminosa. Uma combinação nociva
que destruiu ambos e todos em seu entorno.

— E em qual devemos acreditar, senhor? — Um rapaz que se mantinha calado até então
perguntou.

— Como Louis me disse certa vez, a verdade é só uma questão de ponto de vista. Naturalmente,
damos relevância ao que foi reconhecido por lei, mas vocês estão livres para acreditar naquilo que
quiserem, cada um terá um olhar diferente sobre esse caso e nada é dado como certo ou errado.
Meu propósito ao trazer esse caso não era uma nova resolução ou acusar alguém, eu só queria que
vocês soubessem que isso não é um simples trabalho, não é possível separar uma coisa da outra,
nem sempre você vai ter a certeza de que é o mocinho e na maioria das vezes, não vai poder
confiar em ninguém, nem em que você ama e na pior das hipóteses, nem em si mesmo. Eu libertei
um condenado perigoso e por isso três pessoas morreram. O meu descuido arruinou vidas. O
descuido de Louis foi dez vezes mais grave do que isso. O meu propósito é deixar claro, para todos
vocês, que se optarem por isso, estejam cientes, de que estão colocando tudo o que vocês tem e são,
em jogo. Então, pensem bem.

Ouviu-se o silêncio e grandes olhos paralisados sobre ele. Niall correu os dedos pelos cabelos até
relaxar um pouco a postura.
— Perguntas?

E lá estavam os bracinhos ansiosos chacoalhando no ar.

Ele escolheu um.

— E Luke Hemmings? Ele não testemunhou?

— Tudo o que Hemmings disse foi que dormiu com Harry como um ato de vingança, mas não
sabia nada sobre o caso em si, além do que foi registrado pelo FBI, culpabilizando Louis
Tomlinson.

Outro perguntou.

— E a pesquisa do Ashton e do Louis?

— Se um dia elas existiram, foram completamente destruídas.

— E os gêmeos?

— Ambos estão bem, seguros, saudáveis e se tornaram ótimos rapazinhos, por motivos óbvios o
paradeiro e identidades deles permanecem sigilosas.

— Harry realmente sequestrou a Mia?

— Sim e a manteve dopada, foi alegado que ele fez isso movido pelo luto após a perda da bebê que
estava esperando. Ele tinha uma tendência a surtos, mas nenhum diagnóstico foi apresentado.

— Os animaizinhos ficaram bem?

Niall sorriu com a pergunta.

— Sim, infelizmente o Sonny perdeu a patinha, mas viveu bem sem ela, ele faleceu ano passado e
Mona e Shae seguem bem sob os cuidados da antiga vizinha deles, a Srta. Rexha. Mais alguma
pergunta?

Gwen pareceu hesitante ao erguer a mão.

— Sim?

— Tomlinson disse que o senhor estava de luto. É por causa da...? — Ela não terminou, porém
Niall havia entendido perfeitamente.

Gwen seria uma boa detetive, era bastante sensível e observadora.

— Sim, é por causa dela. — Assentiu tristemente — Ontem, a essa hora, foi realizada a execução
da pena de morte de Gemma Styles, ela morreu por injeção letal após anos no corredor da morte e
eu posso ser demitido por isso, mas a única certeza que tenho em tudo isso era a de que ela era
inocente e não merecia um final tão injusto. Porém, justiça, é um luxo do qual poucos podem
desfrutar. — Ele sabia que estava falando demais e em breve teria uma conversa daquelas com o
diretor Basset, não que ele pudesse afundar Niall ainda mais no burocrático.

A palestra se encerrou pouco depois, estavam todos exaustos. Ele não imaginou que fosse ser tão
longa, deveria ter lembrado do quão detalhista Louis costumava ser. Mesmo assim, recebeu muitos
elogios e cumprimentos e se sentia um pouco orgulhoso de não ter feito uma propaganda pastelona
e mentirosa.
Seu pobre assistente estave mal se aguentando em pé, então dispensou o coitado mais cedo e se pôs
a organizar tudo sozinho.

Ouviu um pigarreio às suas costas.

— Direto do departamento de "loucas pelo detetive Horan", trouxe cartinhas das suas admiradoras.
— A garota se aproximou, exibindo um punhado de papéis coloridos.

Com o cenho franzido, ele se voltou para ela, ela estava bem em seu uniforme similar ao dele, os
cabelos pretos e longos presos em um firme rabo de cavalo e os olhos azuis espertos atrás dos
óculos de lentes redondas. Ela não mudou nada.

— Não enche, Miranda.

— Nossa, quanta agressividade, chefe. Eu só estou prestando um serviço a comunidade.

— Minha noiva vai adorar saber disso. — Disse, ocupado em enrolar cabos e mais cabos. Mia
deixou as cartas de lado, colocando as mãos nos quadris e mudando o peso de um pé para o outro,
ansiosa — Sei que você quer falar alguma coisa.

— Eu não sabia que planejava trazer ele para a palestra de hoje.

— Não era nada certo, estava esperando o aval do diretor.

— Ainda assim, nunca imaginei que fosse trazer ele.

— O que há? Pensei que ficaria feliz em ver o seu papai depois de tanto tempo. — Horan
provocou, deixando tudo em seu devido lugar.

— Sabe bem que eu não o vejo com bons olhos, assim como o Zayn. Eu não quero que os atos
deles me definam, se soubesse que faria isso nem teria vindo.

— Ninguém sabe sobre eles. E nada muda o fato de que você é uma ótima agente, Mia.

Relutante, ela assentiu.

— Mais sortudos que eu quando o quesito são pais desequilibrados são o Blake e o Spencer.

Niall balançou a cabeça, fingindo desinteresse, ele sabia bem a onde ela queria chegar.

— Eles estão bem?

— Estão ótimos! — Disse, batendo as mãos umas nas outras e vestindo sua jaqueta — Spencer
evoluiu muito no violoncelo e Blake é o capitão do time de futebol.

— Eu adoraria vê-los.

— Sabe que isso não é possível. É perigoso.

— Mas eu sou a irmã deles! E sou maior, a guarda deles deveria ser dada a mim e não aqueles
agentes que fingem ser pais deles. Vocês dizem que eles estão a salvo, quando os mantém como
ratos de laboratório, esperando pelo momento que eles surtem e possam dizer que eles são como os
pais deles.

— Não é bem assim. Miranda, você é só uma criança e acredite, esse é o melhor para os garotos.
— É o melhor pra ela também?

Niall congelou ao caminho de pegar sua bolsa, letárgico passou a alça sobre o ombro.

— Do que está falando?

— Eu estava revirando algumas coisas do meu pai esses dias e vi que... Vi que ele fez uma
transferência para você, uma transferência no valor de cem mil dólares e eu não entendi o porquê
de um agente do FBI tão bem financeiramente como você estaria precisando de tanto dinheiro e
justamente de um gângster. Foi quando comecei a juntar as peças, você salvou a minha vida e ele
tinha uma dívida com você e a pagou, e se você precisava de tanto dinheiro não podia ser por um
motivo nobre, então eu rastreei suas contas e encontrei uma coisa...

— Você não tinha o direi-

— Por que você paga uma pequena fortuna na mensalidade de um internato?

O queixo de Horan caiu.

— E por que tem uma garota com o sobrenome Horan estudando lá se até onde eu sei você não
tem filhos e se tivesse, por que escolheria logo Leslie como primeiro nome. Leslie Horan é a
mesma Leslie Tomlinson que está enterrada ao lado do pai, da irmã e dos avós?

Por um momento, Miranda acreditou que pudesse ter cometido um engano e ele a faria se retratar,
mas quando viu seu superior simplesmente dando de ombros, ela soube que havia descoberto um
segredo.

— Estamos no FBI, se quiser me denunciar por sequestro, vá em frente.

— Eu não quero te denunciar. — Murmurou, sentindo-se culpada por ele considerar que ela fosse
capaz disso — Só quero entender como isso aconteceu.

Niall parecia exausto, soltando o corpo em uma das cadeiras de veludo do auditório.

— Foi simples, eu não confiava nos pais dela, não confiava no Harry e não confiava no Louis, sabe
bem o que eu acho sobre Andrômeda. — A garota assentiu, ciente de que Horan tinha a crença de
que o casal dividia o alter ego de assassino. Ela era uma das iludidas que gostava de pensar em
Louis como uma vítima — Seu pai tinha uma dívida comigo e enquanto estava diante daquele
berçário, olhando aquele minúsculo bebê prematuro, a ideia surgiu e eu arrisquei tudo e felizmente
deu certo, então é isso, eu sequestrei um bebê de seus pais e ocultei esse fato todos esses anos. E
um dos motivos para querer ele aqui hoje foi justamente para ouvir todo esse absurdo pela
milésima vez e concluir que tanto ele, quanto o Harry eram dois malucos que não tinham a menor
condição de ficarem com aquela criança e eu fiz a escolha certa ao roubá-la. Agora me diga, o que
pretende fazer sobre isso?

— Eu posso conhecê-la?

O pedido pegou Horan de surpresa, estava preparado para quaisquer ataques e ameaças, mas nunca
um pedido como aquele.

Ele não teve outra escolha a não ser concordar, no dia seguinte, quando o sol ainda estava
escondido pegou Miranda no estacionamento de seu apartamento, ela roía as unhas no banco do
carona, Niall ergueu os óculos na cabeça e pensou em algum assunto.

— E o Zayn? Como ele está? — Revirou os olhos por detrás da lente. Onde falar sobre Zayn
tornaria as coisas mais leves?

— Bem, a polícia não pegou ele ainda, da última vez que nos falamos ele estava em Istambul. —
Respondeu aérea, passando para as unhas da outra mão.

— Parece divertido. — Suspirou, sabendo que não teria como tranquilizava, de certa forma a
entendia.

Mia tinha dois pais bastante únicos e não podia manter sua vida e estar perto deles, assim como
não tinha ideia de onde seus irmãos estavam, Leslie era a única coisa que lhe restava semelhante a
uma família e Niall sabia que Mia também era a última pessoa de seu sangue acessível desde
Gemma. De certa forma, uma era o que restava da família da outra.

Parando no sinal seu coração apertou ao se lembrar de Gemma e do repentino laço que construíram
mesmo com ela atrás das grades. Se fechasse os olhos poderia reviver o dia em que adentrou ao
presídio com seus passos incertos, se deixando conduzir até a sala de visitas onde Gemma mal
sabia quem ele era, eles se conheciam tão pouco, mas ele precisava compartilhar aquilo com
alguém. Ele só tinha vinte e poucos e sabia que tinha cometido uma loucura.

Ele havia se tornado um ladrão e precisava que alguém o absolvesse da culpa.

Apenas quando empurrou a fotografia sobre a mesa e disse quem era o bebê nela, os olhos de
Gemma brilharam em entendimento.

— Eu sinto muito... — Se lamentou envergonhado.

— Não sinta, você fez bem. Fez muito bem.

E ali estava a sua absolvição. Depois disso suas visitas se tornaram frequentes, até que Leslie
estivesse acompanhando-o também. Ele teria de fazer aquela visita de qualquer forma e dizer a
garotinha o porquê não haveriam mais visitas a tia Gemma.

A vida depois de Louis Tomlinson fez dele um homem duro, áspero e desconfiado e se abrir com
alguém havia se tornado uma tarefa mais complicada do que ele podia imaginar, mesmo assim, fez
o seu melhor para contar de sua trajetória com Gemma e um pouco sobre Leslie.

— Ela tem sete anos e é uma criança fantástica. Quando era menor ela morava com a minha avó no
campo, mas depois de maior achei que o melhor seria um internato, estar com outras crianças e
tudo mais. Ela é muito imaginativa e adora trabalhos manuais, ela adora bonecas e principalmente
construí-las do zero.

— Nossa, ela parece ser bem mais legal do que eu. — Mia disse, soltando um risinho depois de ter
passado o caminho todo em uma bolha de tensão.

Eles chegaram até a escola, os olhos de Mia crescendo, ela já estudou em internatos, mas aquele
parecia particularmente intimidador quando sabia que estava prestes a encontrar alguém que
acreditava estar morta pelos últimos sete anos.

Sua irmã.

Ela tinha uma irmã, era tão surreal que ela precisou se beliscar quando Niall não estava olhando.

E por falar nele, todos o conheciam e pareciam se alegrar com sua chegada. A vice-diretora em
pessoa os recebeu e lhes serviu xícaras de chá enquanto ia buscar por Leslie.
— Você é bem querido por aqui.

— Os privilégios de ser um pai solteiro. — Sorriu sob a borda da xícara, deixando-a de lado
quando a porta se abriu e uma criatura pequena de longos cabelos castanhos pulou sobre ele.

Mia observava a cena com estranhamento. Ela nunca teve permissão para se jogar sobre seu pai.

— Ei, Lili! — Horan levantou a girando no ar e a garota gargalhou, se agarrando com mais afinco
em seu pescoço, o rostinho achatado no ombro do homem enxergou a jovem sentada no sofá e
franziu as sobrancelhas.

— Quem é ela, papai?

Niall voltou a atenção para Mia, trazendo Leslie para se sentar entre eles. Ela vestia o uniforme da
instituição, a saia escura tocando o começo de suas meias brancas, o suéter azul parecia
aconchegante e estava folgado na gola do pescoço onde colares de contas despontavam, os cabelos
eram mais claros que os seus, Miranda notou. Eram no mesmo tom dos gêmeos, talvez um pouco
mais escuros como os de Harry, mas seu rosto era inegavelmente idêntico aos dos outros dois, os
mesmos olhos incrivelmente azuis e sardas castanhas descendo por seu nariz e bochechas, ela era
uma linda menina e estava sorrindo quando ela encarou seu rosto.

— Meu nome é Leslie e o seu? — Perguntou, estendendo a mão para a mais velha.

Mia demorou um pouco para reagir.

— Miranda, Mia, na maior parte do tempo. — Respondeu, apertando a pequena mão.

— Mia? Sério? Que legal! Minhas amigas dizem que eu tenho nome de velha. — Ela franzia o
nariz ao falar e Mia sorriu para isso, ela estava animada para conhecer cada detalhezinho de sua
irmã caçula — Você é amiga do meu pai, Mia?

Um novo delay para se lembrar de que o pai ao qual ela se referia era Niall, que a olhava com um
sorriso encorajador.

— Sim, nós somos colegas de trabalho.

— Você é detetive também?

— Sim.

— Que demais! Eu já quis ser detetive também, mas essa é a minha verdadeira vocação. —
Animada, exibiu uma boneca de pano descabelada — Ela ainda está em processo de produção, mas
sei que ela vai ser a melhor.

— E ela tem nome?

— Eu chamo ela de Ally.

— Querida, eu preciso te dizer uma coisa. — Niall tocou seu ombro, Leslie se virou para ele — A
Mia não é só minha amiga de trabalho, lembra que eu te disse que você tem outros papais?

— Uhum, aqueles que já são anjinhos. — Ela assentiu, os grandes olhos atentos.

— Exatamente, a Mia é filha de um deles também, o que faz dela a sua meia-irmã.

— Ela é minha irmã?


Niall afaga seu cabelo com delicadeza.

— Ela é.

A menina olhou sobre o ombro, receosa.

— Eu não sei como é ter uma irmã.

Mia, que arranhava a gravura da xícara em um ato de ansiedade, se sentiu relaxar ao ouvir aquilo.

— Eu também não. Podemos descobrir juntas, o que acha?

O receio foi se afastando para dar lugar a um sorriso doce e comprimido em seus lábios rosados
acompanhados das covinhas marcando suas bochechas sardentas.

Niall também se sentia esperançoso. Tudo ficaria bem, afinal.

Depois da visita inicial, Mia fez do internato sua parada constante, mesmo que por vinte minutos
ela se comprometia em visitar a irmã, fosse para assisti-la em alguma atividade ou lancharem
juntas e elas sempre ocupavam todo esse tempo conversando ininterruptamente.

Era uma tarde ensolarada e Leslie não teria mais aulas no dia, Niall deu a permissão para que ela
pudesse sair com Mia e elas tiveram a ideia de um piquenique no parque, Leslie não sabia andar de
bicicleta e ela achou que essa poderia ser a sua primeira missão como irmã mais velha. Ela
idealizou muito disso naquela única noite que esteve com Spencer e Blake, ela não podia estar com
eles, então faria o máximo para compensar todas as experiências perdidas com Leslie que parecia
sempre tão animada para aprender.

Ela nunca experimentou tamanha felicidade quando viu a garota pedalando em sua direção,
devagar e pendendo para a direita, mas nada sobrepujava seu orgulho.

— Da próxima vamos sem rodinhas. — Declarou se sentando na toalha e puxando Ally para o
colo.

— Não precisa ser tão apressada, temos muito tempo. — Mia disse, sentando em posição de lótus,
jogando a cabeça para trás, sentindo o sol beijar sua pele.

— Você conheceu meus outros pais né? O Louis e o Harry.

As folhas das árvores ao redor refletiam na iris de Leslie, o azul havia dado lugar a um tom
esverdeado e a forma como ela olhava, as sobrancelhas retas e a vermelhidão abaixo dos olhos lhe
causando arrepios ao trazer memórias esquecidas do passado. Ela não se lembrava de nada a
respeito de seu sequestro, estava tão dopada que levou mais de um dia para acordar e quando o fez
se recusou a forçar por lembranças, mas os olhos dele sempre estiveram em sua memória. Olhos
malvados, foi o que registrou na época.

Não parecia certo que Leslie tivesse o mesmo olhar, ela não tinha nada a ver com Harry ou Louis.
Ela era diferente, era melhor.

— Sim. Mas muito pouco. — Disse rapidamente — Então, o verão está chegando, onde vai passar
as férias?

Um vinco se formou entre as sobrancelhas de Leslie.

— Com a vovó, eu acho.


— Que tal irmos à praia?

— Praia?

— Isso! Você quer?

— Claro que quero. — Leslie saltou, dando pulinhos animados.

Após bastante insistência, uma vez que Niall era do tipo super protetor e não estava preparado para
abrir mão do controle absoluto dos cuidados com a filha, Mia conseguiu dois dias para viajar até a
praia com Leslie.

— Tem tudo o que precisa? — Horan indagou, tentando abrir a mochila de Leslie e checar.

— Pai. — A menina gemeu sem paciência, apertando a mochila contra o peito.

— Okay, okay, desculpe. — Pediu, ajoelhando para ficar na mesma altura que ela e segurar seus
ombros — Obedeça a Mia, se comporte e claro, se divirta bastante, meu amor.

— Pode deixar. — Ela sorriu o abraçando apertado — Até logo, papai, te amo.

— Também te amo, Lili.

Ele a deixou livre para andar até o carro e entrar no banco da frente.

— Sabe que está infringindo uma lei, não sabe? — Disse para Mia.

— Qual é? Eu vou ficar parecendo a motorista da baixinha aqui. — Leslie colocou a cabeça para
fora da janela rindo do apelido.

— Certo, cinto de segurança, dirija com cuidado.

— Pode deixar, chefe. — Mia bateu continência, entrando no carro. As duas acenaram e o carro
começou a andar.

Niall as assistiu se afastarem ansioso, porém contente que elas tivessem se aproximado e se dado
tão bem. Isso era bom, era ótimo. Com um suspiro resolveu dar uma última olhada no quarto da
filha, no caminho dos dormitórios encontrou cartazes espalhados pelas paredes. Uma garotinha
tinha desaparecido. Ele não se lembrava de ter sido notificado sobre isso, preocupação queimou em
seu peito com a possibilidade desse lugar não ser suficientemente seguro para Leslie.

O quarto estava silencioso e revirado, algumas roupas caídas no chão na pressa de Leslie em fazer
as malas. Ele reorganizou tudo e se sentou na cama, os olhos caindo sobre a cômoda ao lado da
cama da colega de Leslie, havia um porta retrato e a mesma imagem que estampava os cartazes,
estava emoldurada.

Foi a coleguinha dela quem desapareceu.

Por que ela não disse nada... Por quê? Sua respiração ficou suspensa quando sentiu na ponta dos
dedos algo pegajoso, o cheiro que ele não tinha se atentado até respirar fundo, ele puxou para o
colo e a pilha de bonecas começou a despencar, ele sempre notou algo estranho nelas, mas essas
em especial que ficavam mais ao fundo eram morbidamente únicas. Afinal, ele nunca viu uma
boneca com pele, tocou novamente as costas da boneca, sentindo a maciez que só uma pele
humana teria.

Ela foi costurada no pano e era morena como a da garotinha nas fotos.
Sentiu seu estômago revirar na hora, mas se forçou a seguir adiante, pegando outras bonecas e
examinando-as. Ele não via nada tão grotesco desde que adentrou ao quarto de Nick Grimshaw e o
encontrou sem o rosto. Isso era pior porque parecia não ter fim, haviam remendos de pele sobre
panos, costurados com agulha, dentes infantis grudados em rostos sorridentes, uma das bonecas
tinha olhos e a maioria era pesada porque dentro de seus corpos, entre o tecido e algodão estavam
órgãos.

Niall teve que correr até o banheiro e vomitar. Ele deu descarga e enquanto estava de joelhos
conseguiu ver por debaixo da cama da filha, aquilo era... Aquilo era a garotinha desaparecida. Ou o
que restava dela.

Ele gritou, socou a porta e chorou, tão fortemente quando fez quando prendeu aquele que tinha
como seu melhor amigo.

A sua filha. A sua princesinha, a sua doce Lili era um monstro.

Ela era como eles.

Apertou os olhos e foi como se o fantasma de Louis Tomlinson repetisse em seu ouvido aquilo que
disse no hospital:

" — Tem certeza que pegou todos os monstros desta vez? Sabe o que dizem, os filhos tendem a ser
piores do que os pais. "

Ele nunca pôde esquecer disso, por isso mantinha uma vigia rigorosa sobre os meninos. Ele sempre
pensou que se houvesse alguém para se mostrar um herdeiro de Andrômeda seria um dos dois,
particularmente suas desconfianças sempre estiveram sobre Spencer. Niall nunca conseguiu olhar
nos olhos do garoto por isso, ao tempo que dedicava sua vida em adorar Leslie.

Ele salvou um demônio.

Apesar do golpe violento precisava reagir, não havia tempo para lamúrias. Se levantou e pegou o
telefone, tentando contactar Mia, só chamava. Ele foi direto para o número do FBI.

— Preciso que fechem a estrada principal e localizem Miranda Malik, imediatamente. Ela está em
perigo, tem uma assassina com ela. Mandem helicópteros, toda a frota, só cheguem até ela, agora.

Desligou e voltou a tentar ligar, rezando a todos os deuses para que Leslie tivesse sido acometida
por um surto, que ela não fosse uma assassina compulsiva, que ela não estivesse planejando ferir a
irmã. Niall não queria imaginar colocar o FBI para caçar uma criança, ainda mais uma criança sob
a mira violenta de Zayn Malik.

Ele ligou de novo.

Leslie olhava a tela do celular brilhando, ele tremia no banco de trás. Ela puxou o casaco e jogou a
blusa sobre o celular, fingindo casualidade.

Era um dia claro e ensolarado e Mia falava sem parar. Exigia muito dela não revirar os olhos e
mandar aquela idiota calar a boca, ela queria arrancar a língua daquela vaca. Ela odiou Mia no
momento em que a viu.

Ela não podia evitar, sempre foi ciumenta e não gostava da ideia de não ser única. Ter irmãos era
ofensivo, ela sabia sobre os outros dois, infelizmente não sabia a onde estavam, mas torcia para
que algo bem ruim acontecesse aos gêmeos.
Na maior parte do tempo torcia para que coisas ruins acontecessem com qualquer um.

Desde que conseguia se lembrar, ela era assim e não entendia, até que perambulando tarde da noite
pelo internato encontrou sua professora dormindo na sala de descanso com um livro no colo, por
curiosidade ela o pegou e quando virou a capa viu dois homens, os rostos dividos, ela não sabia
quem eles eram, mas leu a história mesmo assim e quando terminou algo estranho começou a
acontecer, ela começou a vê-los, por toda a parte, quando ela dormia e quando acordava, eles
estavam lá. Quando seu pai disse o nome dos seus pais biológicos foi simples fazer a relação.

Eles estavam lá para garantir que ela continuasse o legado da família. Mas antes precisava eliminar
os fracos.

— Podemos aprender a surfar, o que acha? Eu tentei uma vez, mas isso tem muito tempo.

— Pode ser. — Disse sem entusiasmo, tirando sua boneca da bolsa.

Mia olhou de canto de olho.

— Oh, ela está terminada?

— Sim. Ela está linda. — Exibiu a boneca, porém ainda sem cabelos.

— Você esqueceu de colocar o cabelo?

— Não, eu quero o seu. — Disse simplesmente, enfiando a mão na abertura das costas da boneca
de pano.

Mia franziu as sobrancelhas, tendo dificuldade para se concentrar na direção e no que a menina
dizia, ainda tinha o rádio ligado atrapalhando tudo.

— O que você quer meu? — Perguntou mais alto.

— A sua vida. — Leslie respondeu, e num movimento rápido se inclinou sobre o painel, a pequena
mão empunhando uma faca e perfurando repetidamente a garganta da mais velha que mal pode ver
os golpes vindo, suas mãos se atrapalharam sobre o volante, Leslie puxou a lâmina para cima,
cortando parte do cabelo junto e aproveitando para virar o volante completamente, jogando o carro
no canto da estrada onde sinalizadores indicavam uma obra sendo feita. Excelente.

Ela destravou a porta e saltou para fora, rolando pela estrada e caindo de costas, os cotovelos
apoiados no asfalto quente quando o carro atravessou os cones e rampas, se chocando com a
retroescavadeira. Foi um espetáculo explosivo, faíscas subiram e os gemidos das chamas não foram
capazes de soar mais altos do que as gargalhadas da menina que assistia a tudo com um sorriso
largo. Ela poderia rir para sempre, estava nas nuvens por se livrar daquela insuportável, nada
poderia estragar seu humor. Enfiou os cabelos dentro da bolsa, reclamando dos joelhos ralados –
fazia parte do ofício – , olhou atentamente pela estrada, encontrando sua fiel amiga jogada no meio
fio, pegou a boneca suja e a ergueu em direção ao sol.

— Desculpe, Allicent, espero que não tenha se machucado. — A beijou e a apertou contra o corpo,
contornando as chamas e correndo pela estrada, ritmadamente com seu passo, o sorriso e a
expressão de satisfação foi se modificando, como um boneco de cera na chama de uma vela, os
lábios foram caindo, as pálpebras se fechando e o brilho dos olhos se tornando opacos e fundos.
Quando avistou o caminhão surgindo de uma encruzilhada, ela estava chorando e soluçando, como
uma criança perdida qualquer. O homem estacionou, ele tinha um aspecto grosseiro e a olhou com
pouco caso.
— O que faz no meio do nada, pirralha?

— E-eu me perdi, pode me ajudar, senhor?

Ele abriu a porta, mas não a ajudou a subir. Não é como se ela precisasse de adultos.

— Para onde?

— Sanatório W. Lincoln, Atlanta, Geórgia. — Respondeu com naturalidade.

— O quê? Sanatório? Que porra...? — Ele congelou ao perceber que os olhos dela estavam sobre
sua tatuagem no pulso, as correntes trançadas.

— Você sabe do que estou falando. — Ela afastou as pulseiras do braço, exibindo não uma
tatuagem, mas o desenho das mesmas correntes, só que feitos diretamente na pele sob a lâmina
afiada. O homem engoliu em seco — Agora dirija.

— Sim, sim. — Atendeu prontamente a ordem — Indo ver alguém em especial? — Ele sabia bem
quem estava no tal sanatório.

— Meu pai. Ele tem lindos olhos azuis, eu os quero para a minha boneca. — Leslie pega o
estremecimento nas mãos do homem sobre o volante — Sabe, nem sempre o protagonista dá nome
a história. Os melhores ficam nas sombras.

— O que é isso? Você é protagonista de alguma história?

— Não, mas estou trabalhando nisso. — Ela se estica para ajeitar o retrovisor — Tenho um legado
para superar. — E sorri, se acomodando no assento, voltando a olhar para o retrovisor no momento
em que capta olhos azuis e verdes a encarando de volta.

Seu sorriso cresce e ela tem certeza de que sente Allicent vibrando de empolgação em seu colo.

"Se você olhar para a face do mal... O mal estará olhando de volta." - AHS

FIM.

Chapter End Notes

Quem me ouviu até o final?

N/A: Primeiro de tudo, talvez vocês tenham ficado confusos quanto a parte final do
Louis, o caso é que ele fica revisitando a noite antes do primeiro capítulo, se vocês
relerem vão perceber que esse trecho continua a primeira cena do primeiro capítulo. É
um estado de looping, então na cabecinha dele tinha sim um Harry no salão e crianças
na creche. Tcharam!!!

E eu não matei nenhum dos gêmeos, não sei da onde tiraram isso, eu nunca sequer
considerei e a pestinha estava vivíssima! E é uma praga.

E a jornada se encerrou, eu queria ter concluído essa história há muito tempo, mas fico
feliz de não ter feito antes, porque esse parece ser o momento ideal. Ela me fez tão
bem esse ano e sei que causou o mesmo em muita gente. Não sei se preciso reafirmar,
mas é sempre bom, essa história é uma ficção e não reflete ou dita que alguém com
determinados transtornos ou problemas mentais será ou não um serial killer. Sempre
bom lembrar.

E talvez vocês se perguntem, mas e aí? Não vai dizer quem é Andrômeda? Então,
assim como o Louis, pra mim tanto faz. Eu gosto de dar as possibilidades para ser um,
outro, ou os dois, sei lá. Eu queria que essa história tivesse nuances e pontos de vista
diversos, o problema era o conjunto da obra e não um único só, como vocês puderem
ver, até às cria veio defeituosa, espero que não fiquem frustrados, mas se acontecer, eu
tentei muito não deixar pontas soltas.

E não me julguem, eu amo um final em aberto.

Por fim, agradeço, agradeço a cada leitura, mesmo aqueles que não prosseguiram, o
simples ato de abrir essa história me deixa muito feliz, obrigada pelos votos, pelos
comentários, pelas mensagens, aqui, no twitter, no Instagram, whatsapp, obrigada
pelas artes, pelos edits, por seus tweets surtando loucamente, pelo bot, por seu carinho
para comigo e com está história, por ler mesmo quando era difícil para você, mesmo
quando estava com medo, obrigada por se dedicar em espalhar Andrômeda pelo
mundo, obrigada por teorizar, obrigada por me chamarem de gênia mesmo que eu não
me ache tudo isso, obrigada por nunca desconsiderar nenhuma linha do que eu escrevi,
obrigada por não dizerem que iriam imaginar diferente, obrigada por pegarem a
história que mais me causou insegurança e medo em toda a minha vida e tornarem ela
uma das coisas mais preciosas e estimadas que tive o prazer de criar, obrigada por me
devolverem o amor por andrômeda e ser capaz de concluir ela, para mim e para vocês.
Obrigada ❤️

Com amor, Dannie aka Morango, até qualquer dia.

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