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19/09/2023, 19:23 Dehonianos | Congregação SCJ - Nordeste

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

O episódio da Transfiguração do Senhor, neste segundo Domingo da Quaresma, está intimamente relacionado com a narração das
tentações de Jesus que meditamos sete dias atrás; pois dois elementos fundamentais estão presentes em ambas as situações. Por
um lado, a afirmação de que Jesus é o Filho de Deus, mas ao mesmo tempo a tentação (Diabo e Pedro) de impedi-lo de cumprir
com coerência e fidelidade a sua missão de Servo Sofredor.
A versão da Transfiguração que encontramos no lecionário dominical, por questão de adaptação à leitura litúrgica, substitui: “E
seis dias depois” (grego: Kai meth’ hemeras hex) por “Naquele tempo”. Porém, a expressão original nos dá uma chave de
leitura importantíssima para captarmos bem o significado teológico da Transfiguração tanto no contexto do evangelho de Mateus
quanto à luz do Antigo Testamento. Em primeiro lugar, os vários elementos que aparecem na cena da transfiguração fazem
referência a Êxodo 24,13-16, quando a expressão “seis dias” indica o tempo no qual Moisés permaneceu na montanha de Deus,
sob a nuvem, a fim de receber as tábuas da Lei; no 7º dia, Deus chamou Moisés do meio da nuvem e manifestou-lhe a sua glória,
como um fogo consumidor. Ademais, encontramos também uma referência ao profeta Elias que, por sua vez, também na
montanha de Deus, fez a experiência do encontro com o Senhor (1Rs 19,8-18), cujas manifestações que antecederam a sua
presença levaram o profeta a cobrir o seu rosto com o manto.
No evangelho, quando lemos a expressão “Seis dias depois”, naturalmente nos vem a pergunta: “De quê?” (O que aconteceu
antes?). Portanto, é bom ter presentes estes últimos episódios: a confissão de Pedro (Mt 16,13-20), o anúncio da paixão e a
tentação de Pedro (Mt 16,21-23), as condições para seguir Jesus (Mt 16,24-26) e, por fim, o próprio anúncio da Transfiguração:
“Em verdade vos digo que alguns dos que aqui estão não provarão a morte até que vejam o Filho do Homem vindo
em seu Reino” (Mt 16,28). Por isso, daqueles que ali estavam presentes, “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João”. Serão
eles as testemunhas de que o Reino chegou com Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, aquele que vai morrer e, ao terceiro dia,
ressurgirá.
Tanto no centro do relato dos acontecimentos anteriormente mencionados quanto na narração da Transfiguração, encontramos a
tentação de Pedro, que procura impedir Jesus de cumprir sua missão: “Pedro começou a repreendê-lo: Deus não te permita,
Senhor” (Mt 16,22), “Senhor, é bom estarmos aqui” (Mt 17,4); em outras palavras, Pedro estava querendo dissuadir Jesus
para que permanecesse no monte da Glória, sob a proteção de uma tenda e, assim, não teria que descer de lá para subir o monte
da Cruz. Em ambos os casos, Pedro tenta Jesus para que abandone o caminho do sofrimento, da cruz, assim como fez o Satanás
no deserto, quando sugeriu que Jesus matasse a sua fome com um toque mágico, exigisse a proteção de Deus sem obediência e
alcançasse o poder e a riqueza renegando a sua filiação divina.
Assim como Satanás propôs a Jesus três proteções ilusórias (material: o pão; divina: os anjos; humana: o poder e a riqueza),
Pedro quer erguer três tendas para proteger os três personagens importantes da cena. Contudo, essa aparente benevolência de
Pedro acarretaria um grande dano: impedir que as Escrituras, representadas em Moisés e Elias, se realizassem plenamente com a

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morte e ressurreição de Jesus; é mais uma tentativa de afastar Jesus da cruz. O objetivo é claro: ao construir uma tenda para
cada um, Pedro isolará os três e impedirá o diálogo (Lucas explicita que a conversa era sobre a morte de Jesus em Jerusalém: Lc
9,30-31) entre Moisés (Lei), Elias (Profecia) e Jesus (Palavra Encarnada), que já tinha afirmado: “Não vim para revogar a Lei e os
Profetas, mas para dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Jesus é aquele que realiza o autêntico diálogo entre o Antigo
Testamento (Moisés e Elias) e o Novo Testamento (Pedro, Tiago e João). É o próprio Pai, cuja palavra se faz ouvir nas Escrituras,
que declara ser o seu Filho amado, o único intérprete fiel da Lei e dos Profetas.
Assim como no deserto, Jesus venceu as tentações do diabo com a proclamação da palavra do seu Pai (“Não só de pão viverá o
homem...”, “Não tentarás o Senhor teu Deus”, “Ao Senhor teu Deus adorarás...”), agora diante das tentações de Pedro (e dos
discípulos) é a Palavra do Pai mais uma vez que se faz ouvir: “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo, ouvi-o”.
Assim como as tentações foram vencidas pela obediência de Jesus à Palavra de Deus, agora os discípulos são instruídos para que
também aprendam a vencê-las. Satanás, vencido, recuou (“O diabo o deixou”), os discípulos, por sua vez, ouvindo a voz do céu:
“Muito assustados, caíram com o rosto no chão”, portanto, foram derrotados nas suas tentações, mas Jesus os ergue,
fazendo-os participar antecipadamente da sua ressurreição pois dirige-lhes as palavras próprias do ressuscitado: “Não tenhais
medo” (Mt 28,10).
Quaresma é tempo de renovar o nosso compromisso de seguir os passos de Jesus que exige de nós a coragem de desamarmos as
nossas tendas (comodismo, egoísmo, descompromisso etc.). Armar a tenda no monte da transfiguração pode ser prazeroso, mas
nos impede de prosseguir o caminho que leva à verdadeira vitória, que não se alcança senão subindo o monte da cruz. Mais uma
vez é a Palavra de Deus a nos guiar e fortalecer na luta contra as tentações das inúmeras tendas, que ao longo do caminho
encontramos.

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ


Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

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