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A verdade em Nietzsche e no brincar de uma criança

Verónica Aravena Cortes

Acompanhar uma criança em seus primeiros anos pode ser uma experiência
surpreendente para o adulto. Um ser frágil, despreparado e despreocupado, inconsciente
e irreverente, para o qual nada impede o pum na sala, a risada no meio da missa, a meia
na mão, o livro de chapéu… Tudo para ela é novo, vale pela experiência; sair correndo
pelada pela casa, espalhar todo o feijão, fazer nuvem de sabão, misturar todas as cores da
massinha, derrubar água no chão, enfim mil coisas. Certamente algumas experiências
podem ser perigosas, mas hoje me detenho em um debate filosófico: a questão da verdade.
Observar os pequenos possibilita vislumbrar o mundo ainda sem as classificações, sem
esquemas e sem fronteiras; sem o lado certo, nem o lugar correto, sem o ordenamento já
estabelecido. Este pensamento me conduziu a Nietzsche, um dos mais geniais filósofos
do século XIX, mais precisamente a seu texto Verdade e Mentira em sentido extra-
moral, no qual ele se ocupa do “impulso a verdade” entre os humanos. Como filólogo de
formação, detinha-se na investigação da genealogia das ideias e conceitos, no caso, sobre
a verdade, “acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve
e flores e, no entanto, não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de
nenhum modo correspondem às entidades de origem”, escreve o autor.
Mais do que a verdade, o homem não quer as consequências negativas do engano, aponta
Nietzsche, por isso odiamos a mentira e criamos conceitos que igualam não iguais, a
verdade ocorre quando estipulamos “uma designação uniformemente válida e
obrigatória das coisas”. Se uma criança diz sou um milionário, fica no registro do faz-
de-conta, contudo se um adulto faz esta afirmação, espera-se que o sujeito esteja fazendo
o uso correto da linguagem e dizendo a verdade.
Na criança, vemos uma combinação de elementos, esquemas e hierarquias de acordo com
a sua vontade, despreocupada da lógica e das convenções milenares, estrelas com pijamas,
dentes com cabelos, cenouras com sorrisos, enfim, de preferência, sem um adulto chato
a lhe corrigir:
– A fita não é colar do sapo, é para o seu cabelo!
– Lama não é comida!
– Cisne não voa!
– Esse é o teto de sua casa, não o chão do navio!
A criança desconhece a normatização do mundo, totalmente arbitrária segundo Nietzsche,
como o já famoso “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, mas há inúmeras outras,
como a direção da escrita e a mão nas ruas. Um arbitrário vinculado ao poder, pois trata-
se de um poder ditar os padrões e as regras na vida social, estabelecer o uso correto da
linguagem, seja na gramática, nas cores ou nas vestimentas, entre outros, como o gênero
e o casamento.
Classificações e normatizações são úteis para organizar o caos, Nietzsche diria, para a
própria sobrevivência, porque o homem, “ao mesmo tempo por necessidade e por tédio,
quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz”, acordo que fixa
a verdade. A vida cotidiana precisa de acordos para o seu funcionamento, para que
possamos caminhar pelas ruas sem sermos atropelados, ligar um aparelho na tomada e
ele não queimar, só que esquecemos que são pactos para se viver em grupo, não dizem
respeito a uma verdade intrínseca às próprias coisas.
O convívio com as crianças com sua salutar desordem, nos permite voltar ao tempo em
que este acordo ainda não fora estabelecido, em que o mundo se apresenta como um
universo de possibilidades e todas muito interessantes.
O adulto já esquecido de sua meninice, cego pelas verdades construídas, não percebe que
sua fala tão firme e indefectível ao dizer coisas como “é vermelho” , “é folha”, “é
montanha”, “é pássaro”, “é música”, “é capim” manifesta “um batalhão móvel de
metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que
foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso,
parecem a um povo sólidas, canônicas, e obrigatórias”.
O adulto que conserva um pouco de sua intuição ou uma certa desconfiança de tanta regra,
esquema e certeza no mundo pode resgatar esta valiosa filosofia ao espiar uma criança.
Nietzsche. Verdade e Mentira em sentido extra-moral, Obras incompletas. São Paulo:
Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).
_____ Além do bem e do mal. São Paulo, Cia das Letras, 1998

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