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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTE E CULTURA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

TÁBATTA IORI THIAGO

ENCRUZILHADA: PERSPECTIVAS CIRCENSES E A VIVÊNCIA IUNA DE


CAPOEIRA ANGOLA

OURO PRETO
2023
TÁBATTA IORI THIAGO

ENCRUZILHADA: PERSPECTIVAS CIRCENSES E A VIVÊNCIA IUNA DE


CAPOEIRA ANGOLA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Artes Cênicas do Instituto de Filosofia, Arte e Cultura
da Universidade Federal de Ouro Preto para obtenção do
grau de Mestre em Artes Cênicas.

Linha de pesquisa: Estética, crítica e história das Artes


Cênicas.
Área de concentração: Educação e teatro.

Professoras orientadoras: Profa. Dra. Neide das Graças


de Souza Bortolini e Profa. Dra. Luciana Crivellari Dulci.

OURO PRETO
2023
SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMAÇÃO

T422e Thiago, Tabatta Iori.


ThiEncruzilhada [manuscrito]: perspectivas circenses e a vivência Iuna de
Capoeira Angola. / Tabatta Iori Thiago. - 2023.
Thi160 f.: il.: color., gráf., tab..

ThiOrientadora: Profa. Dra. Neide das Graças de Souza Bortolini.


ThiCoorientadora: Profa. Dra. Luciana Crivellari Dulci.
ThiDissertação (Mestrado Acadêmico). Universidade Federal de Ouro
Preto. Departamento de Artes Cenicas. Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas.
ThiÁrea de Concentração: Artes Cênicas.

Thi1. Circo Social. 2. Capoeira Angola. 3. Decolonialidade. 4.


Encruzilhada. I. Bortolini, Neide das Graças de Souza. II. Dulci, Luciana
Crivellari. III. Universidade Federal de Ouro Preto. IV. Título.

CDU 792.01

Bibliotecário(a) Responsável: Luciana De Oliveira - SIAPE: 1.937.800


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
REITORIA
INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA
PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM ARTES CENICAS

FOLHA DE APROVAÇÃO

Tábatta Iori Thiago

Encruzilhada: Perspectivas Circenses e A


Vivência Iuna de Capoeira Angola

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal


de Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas

Aprovada em 26 de maio de 2023

Membros da Banca
Profa. Dra. Neide das Graças de Souza Bortolini - Orientador(a) - Universidade Federal de Ouro Preto
Profa. Dra. Luciana Crivellari Dulci - Coorientador(a) - Universidade Federal de Ouro Preto
Profa. Dra. Alda Fátima de Souza - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Prof. Dr. Edson Moreira da Silva - Universidade Federal de Minas Gerais/Grupo Iuna Capoeira Angola
Prof. Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante (UFOP) - Universidade Federal de Ouro Preto

A Profa. Dra. Neide das Graças de Souza Bortolini , orientador(a) do trabalho, aprovou a versão final e autorizou seu
depósito no Repositório Institucional da UFOP em 26/05/2023

Documento assinado eletronicamente por Neide das Gracas de Souza Bortolini, PROFESSOR DE
MAGISTERIO SUPERIOR, em 18/06/2023, às 18:43, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento
no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

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R. Diogo de Vasconcelos, 122, - Bairro Pilar Ouro Preto/MG, CEP 35402-163


Telefone: (31)3559-1732 - www.ufop.br
Dedico estes escritos à memória de Lucas
Augusto dos Santos Araújo, acrobata voador,
grande inspiração, que foi fazer circo ao lado
de Olorum.

À todas as crianças e jovens que necessitam ou


que tiveram a arte como uma flecha apontada
para um futuro melhor.
AGRADECIMENTOS

À Kitempo, senhor do Tempo e patrono da Nação Angola que tem sua bandeira branca
hasteada no terreiro, por apoiar sua mão em meu orí e me ajudar a colocar em palavras, essa
história vivida inteiramente pelo corpo.
Agradeço à minha mãe, Elda Iori, por ter sido a primeira a acreditar em meus desejos
de ser artista, pela escuta e disposição em ter dedicado tantos dias de sua vida para eu estar em
companhia da arte. Dedico esse trabalho a você mãe.
Agradeço ao meu pai, Leonel Marcos Thiago, maior exemplo de força e resiliência, pela
disposição de ser meu melhor amigo.
Agradeço às minhas orientadoras Neide e Luciana por toda paciência e afeto. Sem a
escuta atenta, a confiança e o carinho de vocês eu não teria conseguido. Ganhei amigas para
uma vida inteira!
Agradeço a Mestre Primo, por sua dedicação e carinho na preservação de tantos
preciosos saberes.
Agradeço à Lenny do Carmo por todo amor e leveza entregues, por ser uma grande
inspiração de beleza e força na ginga e na vida.
Agradeço à Cássia, por me ensinar tanto e pela disposição no cuidado de tantas vidas
que frequentam o Grupo Iuna. Como você é necessária ao mundo!
Agradeço a Gabriel Cafuzo por me apresentar a Capoeira Angola e tantas histórias
bonitas que guardamos na memória.
Agradeço a meu avô Luigino Iori (em memória). Maior exemplo de força nas travessias
da vida. É através de sua linhagem cigana que sigo os caminhos nômades.
Aos meus familiares: tia Vana, madrinha Sônia, primo Vaney, tio Gino, vó Maria, vó
Maura e vô Joaquim (em memória), por todo apoio e carinho sempre.
Aos meus irmãos e irmãs de coração: Suttane Hoffman, Hayslan Rodrigues, Guilherme
Maciel, Bruna Meneses, Liz Monteiro, Zaca Reis, Adriana Martins, Fernando Augusto,
Jaqueline Zaidan, Bruno Cangussu e Gisele Martins. Vocês fazem parte dessa história.
Á Guto Martins, meu querido amigo, que extrapola o território da presença, mesmo
estando do outro lado do oceano, por acreditar nessa pesquisa e me dar o pontapé inicial.
Á Lu Coelho, por me mostrar outros caminhos possíveis dentro das artes circenses, por
apoiar e contribuir com a pesquisa.
A meu pai de santo Sessy Kidange por sua preciosa atenção com meu processo. A minha
mãe de criação Nsuendan, meu filho Kavuandê Leci e toda comunidade da Roça Poço N´Dan,
por me acolherem com todo amor e me ensinarem sobre o mistério que mora na preservação de
nossa ancestralidade afro-brasileira.
Agradeço a todos os professores e professoras do PPGAC da UFOP, em especial Prof.
Dr. Alex Beigui.
Agradeço a Profa. Dra. Alda Fátima de Souza, pela disposição e as preciosas
contribuições para este trabalho.
Também agradeço Pricila Aline e às professoras Eneli e Carla, que se dispuseram à
revisão deste trabalho e por me acolherem com tanto carinho em uma nova etapa da minha vida.
Á todos os(as) colegas de Mestrado.
Á todas as pessoas que essa pesquisa se fez de encontro.
RESUMO

Esta pesquisa investiga o cruzamento entre as práticas pedagógicas decoloniais advindas de


projetos sociais da Capoeira Angola de Mestre Primo (Grupo Iuna - BH/MG) e as práxis de
Circo Social. A partir de um diálogo com artistas circenses através de um Mapeamento online,
foi realizado um mapeamento em torno de vidas circenses nas perspectivas de colonialidade,
ou ainda difundidos nas artes circenses, ou decolonialidade, com um recorte para o
aprofundamento dos possíveis riscos diversos que permeiam o universo do circo. Junto a esses
estudos se contextualizam as origens e trajetória das artes circenses e do Circo Social, com o
objetivo de entender o quanto os fundamentos decoloniais e antirracistas da Capoeira Angola,
difundida por Mestre Primo e pelo Grupo Iuna, são potentes inspirações para as práticas
libertárias do ensino no contexto do Circo Social. É registrada a origem e o trabalho do Grupo
Iuna na periferia do Bairro Saudade em Belo Horizonte. Em suma, essa pesquisa dedica-se à
reflexão acerca da encruzilhada de saberes que pode auxiliar no enfrentamento do risco social
que a maioria das crianças e jovens dos projetos de Circo Social enfrentam.

Palavras-chave: Circo Social; Capoeira Angola; Decolonialidade; Encruzilhada.


ABSTRACT

This research seeks to investigate the intersection between decolonial pedagogical practices
arising from social projects of Capoeira Angola by Mestre Primo (Grupo Iuna - BH/MG) and
the practices of Circo Social. Based on a dialogue with circus artists through an online Mapping,
an attempt was made to map paradigms based on patterns of coloniality still widespread in
circus arts, with a focus on deepening the possible diverse risks that permeate the universe of
the circus. Together with these clippings, the origins and trajectory of the circus arts and the
Social Circus are contextualized. With the aim of understanding how much the decolonial and
anti-racist foundations of Capoeira Angola spread by Mestre Primo and Grupo Iuna are
powerful inspirations for the pedagogical practices of teaching in the context of Circo Social, it
tells about the origin and work of Grupo Iuna on the outskirts of Bairro Saudade in Belo
Horizonte. It is dedicated to reflecting on how this crossroads can help in facing social risk and
in reducing damage and marks generated by the poor, violent and unequal daily life that most
children and young people who attend Social Circus projects face.

Keywords: Social Circus; Capoeira Angola; Decoloniality; Crossroads.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13
O CIRCO E O RISCO 18
SOBRE A ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS DA DISSERTAÇÃO 24
1 ESCUTA DE VOZES CIRCENSES 26
1.1 MAPEAMENTO: DECOLONIZAÇÃO E SAÚDE DO ARTISTA CIRCENSE 26
1.1.1 Brasis circenses: coleta e análise de dados 28
1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE COLONIALIDADE 42
1.2.1 Colonialidade e decolonialidade nas artes circenses 50
1.2.2 Sobre o Circo Social no Brasil 69
2 CAPOEIRA ANGOLA 77
2.1 CAPOEIRA ANGOLA: UM BREVE HISTÓRICO 77
2.1.1 Raízes da capoeira no Brasil 84
2.2 CAPOEIRA ANGOLA DE MESTRE PRIMO E SUA COSMOVISÃO 91
2.2.1 Primórdios 92
2.2.2 Primeiros Mestres e as rodas de rua em Belo Horizonte 96
2.2.3 Criação do Grupo Iuna 98
2.2.4 Formação em Salvador e retorno à Belo Horizonte 98
2.2.5 Consolidação do Grupo Iuna e 1º Encontro Nacional de Capoeira Angola 100
da cidade de Belo Horizonte
2.2.6 A construção da sede própria do Grupo Iuna 105
2.2.7 Sobrevivência, sustentabilidade e administração do Iuna 107
2.3 CAPOEIRA ANGOLA COMO EPISTEMOLOGIA AFRO-BRASILEIRA E 111
PEDAGOGIA DECOLONIAL
2.3.1 Sobre o Tempo espiralar nos cruzos da Capoeira Angola 113
2.3.2 Os movimentos corporais da Capoeira Angola 117
2.3.3 Estrutura do ensino aprendizagem no Iuna e decolonialidade 120
3 ENCRUZILHADA: CIRCO E CAPOEIRA - PERSPECTIVAS CIRCENSES 124
E A VIVÊNCIA IUNA DE CAPOEIRA ANGOLA
3.1 CRUZO DE SABERES: CAPOEIRA ANGOLA E CIRCO 124
3.1.1 Do culto às ancestralidades ou de como se pode contar sobre as origens 127
3.1.2 Deslocamentos do entendimento sobre o corpo 132
3.1.3 Revelação lenta do segredo como ação de autocuidado 135
3.2 OS FUNDAMENTOS DA CAPOEIRA ANGOLA INSERIDOS NA 138
METODOLOGIA DE ENSINO DO CIRCO SOCIAL
3.3 OS RISCOS EM DIÁLOGO 143
CONSIDERAÇÕES FINAIS 151
REFERÊNCIAS 156
APÊNDICES 162
Nasci na perifa
cresci na Cohab
com graça,
fui parar na pública universidade,
mas foi antes dela
que aprendi a pintar
o nariz de vermelho
e a produzir um mundinho todo pequeno
do teatro em miniatura…

cheguei a fazer
teatro de rua,
quis até alugar um terreno na lua
e subi de altura
apoiada em uma perna de pau
que foi boa companhia
quando me apontei,
pelos caminhos, feito cigana
e me abriguei no colo da minha mochila

morei de ousadia em ousadia


e minha maior alegria
era ver o raiar do dia
em algum lugar que eu
ainda não conhecia

quando ainda o mundo em pandemia


inventei de fazer um tal de mestrado…
mas ao invés de ler aquele tal autor citado
eu queria mesmo…
era fazer poesia!

e nos versos mal escritos e bagunçados


a gente acha a tal das epistemologias
mesmo com o prazo estourado
e o tempo apertado
imposto por aquela academia,
eu encontrava em algum bocado de tempo
algum lugar, algum invento
em que eu pudesse criar
e movimentar
o que a minha imaginação imaginaria

foi indo assim que eu entendi


aquela essência mais bonita
que morava dentro de mim
que é essa mania de poetizar
sobre a rua,
a lua, a estrada, e o dia
que pintada junto ao erudito e a poesia
mistura a elite e a periferia
cruzando todas essas teorias
com a arte de mais valia
que é o poder de enxergar grandeza
nos detalhes e nas miudezas
seja dentro da favela,
e desejando que ela mesma,
escreva sua história dentro da academia.

Tábatta Iori
INTRODUÇÃO

Para entender nós temos dois caminhos:


o da sensibilidade que é o entendimento do corpo;
e o da inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo.
Manuel de Barros

Esta pesquisa trata do registro e da reflexão sobre a vivência de um corpo feminino que
iniciou seus estudos do movimento em 1999, passando pela dança, pelo teatro, pela música e
pelo circo, dentro de projetos sociais na periferia de Osasco, estado de São Paulo. O balé
clássico me apontou a direção para o teatro, ainda criança, com sete anos de idade, no curso
livre ofertado pela Escola de Artes da Prefeitura de Osasco. O teatro, por sua vez, revelou-me
a importância da consciência musical para o trabalho de atriz e para a potencialidade das artes
circenses, junto aos estudos das artes cênicas. Iniciei meu processo de musicalização em 2009,
quando meus caminhos se cruzaram com um grupo de estudos de maracatu de baque virado1, o
Baque Estendal2, que promovia encontros na Casa de Angola, também em Osasco. Segui
praticando-o e me apresentando com o grupo, durante quatro anos, dos meus 17 aos 21 anos de
idade. Foi assim, junto ao Baque Estendal, estudando os passos de dança, os toques na alfaia 3,
no agbe4 e os cantos ancestrais do maracatu que desenvolvi uma consciência musical, corporal
e espiritual pautada na cosmovisão afro-brasileira.
A partir dessas vivências entendi que linguagens artísticas como o teatro, a dança e a
música não são tão distintas umas das outras, diferente do que a visão ocidental dispõe ao
separar os ensinos dessas linguagens. Dançando, tocando e cantando o maracatu, o samba de
coco, o samba de roda e a ciranda, compreendi que essas artes são integradas e estão inseridas
no cotidiano fazendo parte de cada situação da vida. Conforme fui vivenciando essas
experiências, fui me compreendendo enquanto pesquisadora e trabalhadora dessas artes
integradas, com uma subjetividade movida por conceitos filosóficos de vida, provenientes das
epistemologias afro-brasileira por mim experienciadas. Primeiro vivi tais experiências através

1
Maracatu de Baque Virado, também conhecido como Maracatu Nação, é uma manifestação de matriz africana,
que se apresenta em cortejos cênicos musicais com dança, canto e toques específicos. Representa a corte real
africana com luxuosas vestimentas, sendo que os reis e as rainhas são posições passadas de geração em geração.
A Nação de Maracatu mais antiga nasceu no estado de Pernambuco e tem mais de cem anos de existência.
2
Veja no Blog do Grupo Baque Estendal algumas fotos e registros de sua trajetória. Disponível em:
https://baqueestendal.wordpress.com/2009/10/. Acesso em 25/04/2022.
3
Alfaia é um instrumento percussivo que tem sua base de madeira (compensado ou macaíba) e é revestido por
couro de animal. O(a) tocador(a) bate na pele com duas baquetas, determinando o ritmo, a cadência e o volume do
som. É muito utilizado no maracatu, mas também no samba de coco e na ciranda.
4
Instrumento percussivo de origem africana feito de cabaça. Também é conhecido como xequerê. Tem sua parte
superior mais fina aberta para ecoar o som e é revestido por fios de conta (sementes ou miçangas).
13
do maracatu de baque virado, com o Baque Estendal, que tinha como Mestre George Costa
(percussionista nascido e crescido em Vertentes, no Agreste Pernambucano); depois com o
samba de coco e a ciranda, apreendidos, inicialmente, também com o Baque Estendal; o samba
de roda foi vivenciado com o Grupo N'golo Ia Muanda, de Capoeira Angola; a própria Capoeira
Angola (com os grupos N´golo Ia Muanda [SP], Oxalufã [MG] e Grupo Iuna [MG]); até chegar
ao Candomblé Angola, religião de matriz africana na qual fui iniciada como Makota Iamasse
Surê de Kaiaia (orixá Iemanjá), filha de Tateto Sessy Kidange de Angorô (orixá Oxumaré), na
Roça Poço N´Dan em Divinópolis/MG. Nesse universo amplo, ao estudar diferentes
perspectivas em espaços de formação de culturas negras e em cursos diversos, essas vivências
foram se integrando e preenchendo a minha prática artística de sentido, dando-me a
possibilidade de me expressar fora dos conceitos ocidentais que separam as artes e suas
linguagens.
O circo despertou minha curiosidade quando fiz o meu primeiro trabalho profissional,
no ano de 2009, com a Trupe da Fantasia, no espetáculo infanto-juvenil “Bullying não é
brincadeira”, dirigido por Polako Ferreira (em memória), que utilizava a linguagem da
palhaçaria para refletir sobre a temática do bullying em diferentes ambientes, como na escola,
na família, no trabalho etc. Assim aconteceu o meu encontro com o circo, partindo dos estudos
para a construção de minha palhaça, a Giramunda. Depois, minha palhaça começou a ser
experimentada em outros espetáculos infantis, como em produções na Zazarte Produções
Artísticas, companhia da cidade de Osasco/SP que utilizava a linguagem do teatro de bonecos
e da palhaçaria. A partir dessa experiência com a palhaçaria no teatro, que se desdobrou em
novos trabalhos com outros grupos em Osasco, fui em busca de aulas de circo no projeto social
Circo Escola, na Vila Leopoldina, em São Paulo, no ano de 2010.
No início, eu era um pouco tímida, porque meu corpo não tinha nenhuma preparação
física para desenvolver as dinâmicas propostas pelas artes circenses, mas havia um grande
desejo de adentrar aquela arte que daria espaço para todas as outras, mesmo carregando um
padrão limitado de expressão corporal. Nessa época, como eu já trabalhava profissionalmente
em grupos de teatro me apresentando em escolas, eu tinha a condição financeira de custear os
deslocamentos com transporte público da periferia onde eu morava até a grande São Paulo.
Depois, com pressa e uma forte vontade de me desenvolver nas artes circenses, matriculei-me
em uma academia indicada pelas professoras do Circo Escola, a Vibe Fun, também na Vila

14
Leopoldina, onde Carlos Sugawara5 lecionava. Essa academia possuía um espaço de formação
que mesclava o universo da musculação com o circo, portanto, estudei acrobacia aérea durante
seis meses, até me mudar para Minas Gerais, onde cursei o Bacharelado em Artes Cênicas pela
Universidade Federal de Ouro Preto.
Mesmo estudando em um contexto acadêmico que não abordava as artes circenses em
suas disciplinas curriculares, continuei trabalhando com a palhaçaria em espetáculos,
intervenções de rua e animações de festas. O circo não era o principal foco - já que eu estava
em uma graduação especificamente de teatro – mas segui sempre em volta desse universo
circense. Chegando em Minas Gerais, a palhaça Giramunda foi ocupando outros espaços. Entre
os anos de 2013 e 2015, passei a experienciar improvisações na rua, onde me apresentava com
uma mala recheada de surpresas: malabares, bexigas, brinquedos etc. A palhaça andava pelas
ruas de Ouro Preto, Mariana e distritos de Minas Gerais divulgando a programação do Festival
de Inverno de Ouro Preto e Mariana6. Em sua trajetória, Giramunda já animou festas infantis,
produziu espetáculos variados com diferentes palhaços e palhaças, apresentando-se em diversos
lugares, mostras, cabarés7 etc. Atualmente, com o intuito de dialogar com os universos do teatro
de bonecos e com a palhaçaria, Giramunda se transformou em uma boneca em miniatura,
ganhou um picadeiro inteiro para ela, e circula pelas ruas e praças com seu Giramunda Circo.8
Ao final da minha graduação, meus caminhos se cruzaram com os de Liz Monteiro9.
Durante três anos trocamos experiências, treinos e gerimos um projeto independente chamado
Casa das Palhaças10, em que abríamos o quintal de nossa casa, no Morro São Sebastião, em
Ouro Preto, uma vez ao mês, e promovíamos cortejos, apresentações e cabarés circenses junto
a artistas nacionais e internacionais.

5
Carlos Sugawara é artista, professor e pesquisador especialista em aéreos que atua em São Paulo. “Ganhador dos
prêmios Funarte Carequinha 2007 (pesquisa), Proac 2007 (Faixas de Rua), Funarte Dia do Circo 2008, Proac 2009
(Suspensão: chão, corda e ar) e Funarte Carequinha 2009 (pesquisa) e bolsa Funarte de Residência em Artes 2010.”
(STOPPEL, 2010, p. 13).
6
Veja algumas fotos dessas intervenções em:
https://www.flickr.com/photos/festivaldeinverno/albums/72157653417389404/with/19454632228/. Acesso em
27/08/2022.
7
Cabaré é um espetáculo de variedades que reúne uma gama de diversidade artística, integrando as principais
linguagens como a literatura, a dança, o circo, o teatro e a música. Teve sua origem no século XIX na França.
Saiba mais em: Repertório, T. & D. (2010). HISTÓRIAS DO AQUI E AGORA: CABARÉ E TEATRALIDADE
CIRCENSE [Erminia Silva]. Repertório, (15) 2010, 59–73.
8
Veja a cena na íntegra em: https://youtu.be/9gA1V3EBQiM. Acesso em 27/08/2022.
9
Liz Monteiro é natural da periferia de Belo Horizonte/MG, grande artista circense, malabarista e aramista que
naquela época também estava se graduando em Artes Cênicas pela UFOP.
10
Algumas memórias ficam guardadas na página de Facebook da Casa das Palhaças:
https://www.facebook.com/casadaspalhacas. Acesso em 18/08/2022.
15
Em 2011, um ano antes de chegar em Ouro Preto, conheci, ainda na cidade de Osasco,
a Capoeira Angola por meio do, então, aluno Gabriel Cafuzo11 e das práticas do Grupo N´golo
Ia Muanda (que vêm da linhagem do Mestre Ananias), além dos treinos do professor Japa e da
aluna Natália, ministrados na Casa de Angola (mesmo local onde aconteciam os encontros do
grupo de maracatu). Treinei e acompanhei as rodas de capoeira em Osasco durante poucos
meses, pois, me mudei, ao iniciar o Bacharelado em Artes Cênicas na Universidade Federal de
Ouro Preto. Continuei treinando a Capoeira Angola em aulas e encontros ministrados por
Gabriel Cafuzo, me tornando sua primeira aluna. De 2012 a 2014 permaneci treinando com
Gabriel e, depois, fui aluna de Mestre Damião do Grupo Oxalufã de Capoeira Angola de
Mariana, até deixar esse grupo no final do ano de 2015.
Em 2016 iniciei meus estudos com o professor Rafael José12 que, na época, ministrava
treinos de Capoeira Angola na Casa Ginga do Congo no bairro Antônio Dias em Ouro
Preto/MG. Rafael fazia parte do Grupo Iuna de Capoeira Angola e me apresentou ao Grupo e
ao Mestre Primo13, que tem 50 anos de experiência com a capoeira e é fundador do Grupo Iuna.
Depois de um ano treinando com Rafael e conhecendo a metodologia do Grupo Iuna e de Mestre
Primo, no início do ano de 2017, depois que finalizei a graduação no Departamento de Artes
Cênicas da UFOP, eu optei por residir no bairro Saudade, em Belo Horizonte, onde fica a sede
do Grupo Iuna e onde acontecem os treinos e as rodas de capoeira com o Mestre que viria a ser,
também nesta pesquisa, um de meus principais interlocutores.
Costumo dizer que tudo o que tenho foi a arte que me deu: os caminhos abertos, as
amizades, os amores, minha “estabilidade” financeira, a forma com que eu me coloco no mundo
e como eu reajo às situações do cotidiano. Minha subjetividade, meus campos de ação como
educadora e artista passam pela capoeira que veio preencher os vazios mais antigos. As
inseguranças longínquas que vêm das mulheres e dos homens da minha família foram reveladas
pela capoeira, que também apontou uma nova direção, um outro caminho por meio de forças
possíveis, outros campos para semear e colher frutos mais orgânicos e revolucionários.

11
Gabriel Cafuzo é artista, capoeirista e historiador, atuou como professor na educação básica da cidade de Osasco.
Atualmente, é treinel (título dado ao capoeirista que está pronto para ministrar aulas de capoeira) do Grupo Oxalufã
de Mestre Damião em Mariana/MG, professor de capoeira no projeto social CRIA também na cidade de Mariana
e mestre em artes cênicas pela UFOP/MG.
12
Rafael José, antes de chegar ao Grupo Iuna, foi aluno de Mestre João do grupo ACESA (Associação Cultural
Eu Sou Angoleiro) de Belo Horizonte. Em paralelo com as responsabilidades de treinel do Grupo Iuna, Rafael
também auxiliou, durante alguns anos, o Mestre Damião do Grupo Oxalufã de Mariana/MG, que foi onde tive meu
primeiro contato com ele, em um treino ministrado na escola de Mestre Damião no ano de 2012.
13
Edson Moreira da Silva (Mestre Primo) nasceu no dia 3 de março de 1963 no bairro Saudade/BH, onde ainda
reside e onde fica a sede do Grupo Iuna de Capoeira de Angola. Mestre Primo é militante da cultura negra e da
capoeira.
16
Reforço a importância dos projetos sociais em minha trajetória, que me oportunizaram
um caminho em direção à arte, que se transformou na minha profissão. Desde criança eu nunca
paguei por nenhum conhecimento obtido, nem o escolar, nem as formações artísticas. Toda a
minha formação sempre foi por conta de escolas no ensino público e de projetos sociais com
suporte de secretarias, prefeituras, ou entidades privadas e por isso não cobravam dos
estudantes. Também tive formação por conta de coletivos artísticos que se reuniam por desejo
próprio e divertimento, como no caso do Baque Estendal, descrito acima. Esse tipo de iniciativa
social se fez de extrema importância para a consolidação da profissional que sou hoje, sobretudo
se considerando que tive uma infância periférica, filha de pais trabalhadores de classe baixa e
que não tinham condições financeiras para arcar com o custo de uma educação privada.
É por conta dessa minha experiência que me identifico com projetos sociais, pois, depois
de adulta, ao ministrar aulas para as crianças e jovens que frequentam esses espaços, eles e elas
tornam-se um espelho para mim, sendo possível me enxergar neles(as) e mirar, para eles, um
futuro melhor, tendo como ferramenta o fazer artístico. Sendo assim, é também a partir disso a
minha identificação com o Grupo Iuna de Capoeira Angola, que é regularizada como uma ONG
e oferece, às crianças e jovens, cursos contínuos gratuitos, principalmente de Capoeira Angola,
mas também de línguas estrangeiras, como inglês e francês, de violão, de reforço escolar,
musicalização, e, inclusive, de iniciação ao circo – uma oficina de curta duração (maio a
setembro de 2019) na qual fui professora.
Na escola Iuna de Capoeira Angola, segui aprendendo diretamente da fonte com o
professor Mestre Primo durante quatro anos – 2017 a 2021 –, estando entregue ao movimento
“espiralar” (MARTINS, 2021) do meu corpo entre as cosmovisões negras. A espiral é uma
imagem e conceito muito utilizado nas cosmovisões africanas que representam o tempo que
integra o passado, o presente e o futuro. Segunda Leda Maria Martins podemos entender o
tempo espiralar como:

Essa percepção cósmica e filosófica entrelaça, no mesmo circuito de significância, o


tempo, a ancestralidade e a morte. A primazia do movimento ancestral, fonte de
inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos,
desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene
transformação. Nascimento, maturação e morte tornam-se, pois, contingências
naturais, necessários na dinâmica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais
e existências. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. (MARTINS, 1997, p. 73)

Nesse sentido permaneço refletindo sobre muitas discussões importantes e profundas


propostas durante os treinos, também sobre as conversas e os lanches coletivos que o Mestre

17
oferece em seu convívio ao lado de Cássia Silva14. Em paralelo a essa vivência Iuna de capoeira,
ainda residindo em Belo Horizonte, fui aluna no curso técnico de Artes Circenses do
CICALT/Plug Minas15, onde tive alguns professores preocupados em ministrar o ensino do
circo a partir de referenciais brasileiros e afro-ameríndios, apontando, assim, as discussões
decoloniais sobre as artes circenses.
Por meio de minha breve história, apresentada em síntese, enquanto filha/aluna de
projetos sociais e de coletivos de uma grande periferia, venho me tornando uma educadora e
artista que escolhe viver de arte todos os dias. Portanto, este projeto de pesquisa nasceu do
desejo de refletir sobre a proposta de encruzilhada entre o teatro, as artes circenses e a vivência
com a Capoeira Angola. A encruzilhada, nas palavras de Leda Martins, pode ser assim
entendida:

A noção de encruzilhada, utilizada como operador conceitual, oferece-nos a


possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos
processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem
sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios
filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. (MARTINS, 2002, p. 70)

A autora contribui com a legitimação e o entendimento das manifestações afro-


diaspóricas como verdadeiras epistemologias que, além da memória e ancestralidade de toda
uma cultura, trazem em suas performances (gestos, cosmovisões, cores, elementos, movimentos
etc.) importantes saberes e conhecimentos passíveis de inspirar profundas pesquisas e
investigações sobre mim mesma, nosso povo e as artes.

O CIRCO E O RISCO

O circo, segundo Caroline Hamanaka16, tem o risco e a resistência como pontos


determinantes dessa cultura que atravessa diversos tempos, gerações e culturas distintas. A
autora descreve diferentes tipos de riscos, a saber, físico, social e artístico:

14
Cássia Rita de Faria Silva, nascida em 06/07/1960 na cidade de Bambuí, região oeste de Minas Gerais, é
presidenta da Ong Iuna de Capoeira Angola. Há mais de vinte anos Cássia escreve e coordena os projetos do grupo
e gerencia todas as atividades da escola.
15
Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias que oferece cursos profissionalizantes de Arte,
Ensino Médio Regular, Integral e EJA. Disponível em: https://www.instagram.com/cicalt/. Acesso em 27/08/2022.
16
MANDELL, Carolina Hamanaka. Circo: risco, performatividade e resistência. Revista Sala Preta. V. 16, n. 1,
2016.
18
Destacamos então o risco físico, o risco social e o risco artístico. Em cada um dos
enfoques do termo o sentido se mantém – o de probabilidade de dano e exposição ao
perigo –, mas encerra implicações específicas. No primeiro caso implica na
integridade corporal, podendo comprometer mesmo a própria vida do artista (devir de
morte). O risco social diz respeito tanto às condições da produção artística em termos
mercadológicos quanto ao reconhecimento do artista e da obra como tais. O risco
artístico se relaciona com a transgressão dos limites entre obra de arte e vida, com a
possibilidade do comprometimento da obra de arte como tal, que se arrisca a
descaracterizar-se na medida em que se apagam as fronteiras entre real e artifício.
(MANDELL, 2016, p. 77-78)

Com essa reflexão, pode-se destacar outros tipos de riscos, como o risco do erro e do
fracasso, que prejudica a presença do artista no momento do espetáculo, e o próprio andamento
da performance (GALLO, 2015) e o estético, que é o risco utilizado propositalmente em cena,
onde “a espetacularização do risco é explorada ao máximo, pondo em tensão os limites entre o
real e o construído artisticamente” (MANDELL, 2016, p. 73). Sendo assim, entende-se que o
que diferencia as artes circenses das outras linguagens artísticas é sua relação intrínseca com o
risco, que se estampa em diversos campos e lugares de sua prática, permeando o universo tanto
do artista que trabalha diretamente nesta relação vida versus risco, quanto o espectador que se
coloca à disposição para vivenciar sensações e emoções que o risco, dentro do circo,
proporciona.
Sendo assim, o circo desenvolve poética e linguagem próprias a partir de sua relação
com o risco, criando uma cultura do risco, que constituirá os procedimentos de preparação e
desenvolvimento do estudante e profissional do circo (em relação aos riscos que as artes
circenses envolvem) ou preparando para lidar com os aparelhos, as metodologias e o próprio
corpo diante a prática circense (BORTOLETO apud GALLO, 2015). Será a partir dessa relação
entre o circo e o risco que as metodologias dos projetos de Circo Social serão pensadas e
desenvolvidas.
O Circo Social tem sua origem no Brasil, e começou a ser gestado e desenvolvido nos
anos 1990, tornando-se uma metodologia pedagógica que utiliza as artes circenses como
desenvolvimento e inclusão social de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social
(GALLO, 2015). Esses riscos que estão intrínsecos à arte circense, tornam-se eficazes
ferramentas de auxílio ao enfrentamento dos riscos cotidianos que essas crianças e jovens
periféricos sofrem, onde os aprendizados adquiridos dentro do picadeiro extrapolam o território
e são desenvolvidos na vida pessoal desses indivíduos. Entendendo que as modalidades
circenses estudadas, sejam as que lidam com o risco físico como as acrobacias de solo e aéreas,
o equilibrismo, o contorcionismo, entre outras, e também as que lidam com os riscos simbólicos
como o malabarismo e a palhaçaria, proporcionam o desenvolvimento da expressividade
19
corporal, a persistência e a superação de limites, fortalecendo no enfrentamento diante os
desafios, as marcas e os danos gerados pela realidade periférica e desigual que essas crianças e
jovens lidam.
A partir disso, entendendo que os projetos de Circo Social lidam com um risco a mais
que é a situação de risco social de seus participantes, por acolher crianças e jovens, na sua
maioria que convivem com fatores de vulnerabilidade social, esta dissertação propõe uma
reflexão acerca do encontro de saberes corporais e conceituais na encruzilhada de duas
performances: as circenses (estrangeiras e brasileiras) e a Capoeira Angola. Um dos objetivos
desta pesquisa é entender o quanto os fundamentos da Capoeira Angola, difundidos por Mestre
Primo, seriam potentes aliadas para a construção de uma educação contra colonial e antirracista
no Circo Social, pelas possibilidades de agregar e auxiliar, nas práticas circenses, ações e
reflexões sobre a cultura do risco.
A partir da minha experiência com as artes circenses, pensando tanto pelas escolas onde
fui aluna, quanto nos vários encontros que tive com outros artistas em eventos, festivais e
convenções de circo, percebo que os referenciais teóricos e práticos que as artes circenses
abordam ainda são maioritariamente eurocêntricos. Isso faz com que seus protagonistas
carreguem e difundam, em seu processo de ensino-aprendizagem, referenciais provenientes de
epistemologias europeias que são, tantas vezes, machistas e excludentes. Com tudo isso, é
válido questionar o quanto esses referenciais eurocêntricos, que vêm de uma cultura
diretamente ligada ao sistema colonizador, contribuem para a manutenção de certos riscos, e
influenciam no processo de marginalização de outras culturas circenses, ao diminuir ou atrasar
conquistas de direitos de seus trabalhadores que, por vezes, seguem marginalizados.
É possível pensar que quando o estudante e o artista circense não têm acesso aos
referenciais com os quais se identifiquem, que abordem e abracem a pluralidade dos corpos
brasileiros e afroameríndios, esse modo de fruição artística acaba reforçando um padrão de
biotipo corporal eurocentrado, ditando formas e subjetividades estrangeiras e excluindo a
diversidade de corpos e pessoas que vivem no Brasil e na América Latina, por exemplo.
Por outro lado, tomando como exemplo os princípios da Capoeira Angola, a partir das
reflexões colocadas por Mestre Primo, que discute a respeito da importância de se decolonizar
as referências, para que haja a manutenção saudável de nossos mecanismos psíquicos, físicos e
emocionais. Assim, a partir do ensino da Capoeira Angola, discutida e praticada por ele e pelo
Grupo Iuna, Mestre Primo difunde cosmovisões ancestrais e afro-brasileiras que revelam e
discutem acerca de uma história do povo africano e afro-brasileiro que não está expressa em

20
livros ou nas grandes mídias. Exalta-se, então, essa cultura transatlântica que veio grafada nos
corpos dos africanos e africanas que chegaram no Brasil, como uma sábia e profunda ciência,
capaz de ensinar sobre o tempo, o espaço, a história e a ancestralidade, apontando reflexões e
críticas referentes ao padrão de colonialidade vigente no atual sistema capitalista, que é fruto
do histórico contexto da época escravagista. Para que se possa alcançar a libertação de corpos
que permanecem sendo violentados e marginalizados pelo sistema vigente, são revelados
caminhos de desconstrução desses padrões de subjetividade impostos.
Boaventura de Sousa Santos (2009), em seu livro Epistemologias do Sul, questiona “o
impacto do colonialismo e do capitalismo modernos na construção das epistemologias
dominantes” (Ibid, p. 7), e descreve:

O colonialismo, para além de todas as dominações pelas quais é conhecido, foi


também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de
saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos
e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de
subalternidade. (SANTOS, 2009, p. 7)

No que diz respeito às práticas circenses não tem sido diferente, uma vez que é possível
perceber aspectos colonialistas ainda existentes nas teorias e nas práticas do circo. Sendo assim,
em fevereiro de 2021, coloquei-me à escuta por meio de um formulário online intitulado
“Mapeamento: decolonização e saúde do artista circense"17. Este questionário trouxe
importantes dados quantitativos e, especialmente, qualitativos, no que se refere às vivências
circenses – formação e prática –, apontando marcas colonialistas no ensino das artes circenses
e reflexões relativas às interseccionalidades. Participaram, livremente, setenta e quatro artistas
circenses que vivem em diferentes regiões do Brasil e que, em resposta ao formulário, falaram
acerca de suas formações, experiências, situações de trabalho e lesões sofridas ao longo da vida
profissional. As perguntas destacaram as pedagogias e/ou os processos de ensino-aprendizagem
que acompanharam suas formações circenses. Foram abordados, ainda, os acidentes letais
relativos às trajetórias circenses de pessoas vinculadas aos participantes.
A partir das respostas sobre as lesões e inclusive sobre o falecimento de artistas em
atividade de circo, observa-se a naturalização da fratura que está intrínseca nessa arte, sendo
que noventa por cento dos participantes do mapeamento já passaram pela experiência de
lesionarem seus próprios corpos. A cultura da espetacularização das performances se sobrepõe

17
Essa investigação inicial resultou em uma publicação nos anais da ABRACE, em 2021, nomeada “Escuta de
vozes circenses: mapeamentos sociais e saúde” de autoria de Tábatta Iori Thiago, da Profa. Dra. Neide das Graças
de Souza Bortolini e da Profa. Dra. Luciana Crivellari Dulci.
21
ao autocuidado, adoecendo os corpos física e psiquicamente, na medida em que a obsessão pela
superação dos limites provoca danos à saúde, muitas vezes permanentes, ou que levam até
mesmo à morte. Essa coleta de dados corrobora a hipótese desta dissertação que observa traços
colonialistas reproduzidos ou impregnados nas artes circenses – o eurocentrismo, o sexismo, o
racismo, a naturalização da lesão e a espetacularização da performance.
Em relação aos processos educativos, são apontadas a falta de democratização do ensino
do circo, a falta de apoio de políticas públicas de apoio ao circo associadas ao
adoecimento/lesões corporais, além de sequelas psicológicas desses artistas, de modo que essa
responsabilidade não seja apenas dos artistas-professores e de seus métodos de ensino. Apesar
do autocuidado e da questão da segurança e do risco no circo estarem diretamente ligados aos
procedimentos individuais, as práticas circenses remetem ao coletivo e à educação face a um
contexto histórico, social, cultural e político em que sempre houve descaso e poucos recursos
destinados às artes circenses. Esta pesquisa, portanto, busca auxiliar o entendimento dessas
lacunas existentes no processo de ensino-aprendizagem, refletindo sobre possíveis saídas e
estratégias de mudança no contexto do ensino e do trabalho no circo.

[...] reconhecer os riscos e os acidentes próprios das atividades circenses representa


um passo fundamental para a adoção de uma prática mais segura. Contudo, esses
saberes terão o impacto desejado quando integrarem parte do processo de
formação/capacitação dos artistas, montadores, professores e demais profissionais
circenses, passando, assim, de uma prática segura para um conjunto mais amplo, o
qual não se restringe ao ensino de ações, mas se abre a reflexões e novos estudos,
alcançando, dessa forma, uma cultura de segurança no Circo. Isso significa pensar a
segurança como um elemento central do processo pedagógico. (BORTOLETO;
FERREIRA; SILVA, 2015, p. 203)

Assim, a partir de dados obtidos no mapeamento, em uma interlocução com a classe


artística e trabalhadora circense, esta pesquisa entende a importância da criação de novas
metodologias e práticas para o circo que condizem com a pluralidade de corpos existentes no
Brasil e, por isso, coloca-se na encruzilhada entre saberes eurocêntricos e afro-brasileiros. A
pesquisa segue guiada, ainda, por um olhar acerca do saber-fazer discutido e praticado pela
Capoeira Angola do Mestre Primo18, como uma epistemologia africana que se baseia na
ancestralidade e na oralitura19. Esse conceito é assim descrito por Martins (2002):

18
Mestre Primo, desde 1983, mantém sua escola de Capoeira Angola construída na periferia do bairro Saudade,
na cidade de Belo Horizonte/MG.
19
MARTINS, Leda Maria. “Performances do tempo espiralar”. Performance, exílio e fronteiras: errâncias
territoriais e textuais. Graciela Ravetti e Márcia Arbex (organizadoras). Belo Horizonte: Departamento de Letras
Românicas, Faculdade de Letras/UFMG: Poslit, 2002, p. 87.
22
[...] a esses gestos, a essas inscrições, e palimpsestos performáticos, grafados pela voz
e pelo corpo, denominei oralitura, matizando na noção deste significante a singular
inscrição cultural que, como letra (littera) cliva a enunciação do sujeito e de sua
coletividade, sublinhando ainda no termo seu valor de litura, rasura da linguagem,
alteração significante, constitutiva da alteridade dos sujeitos, das culturas e de suas
representações simbólicas. (MARTINS, 2002, p. 87, grifos da autora)

A partir das reflexões de Martins (2002), pode-se pensar que a capoeira traz saberes
decorrentes de uma cultura antiga que dá importância a discussões como a memória, a
ancestralidade e os conhecimentos passados através da movimentação corporal que vem de uma
ciência de mais de mil anos. A partir do estudo dessa técnica antiga, que é a Capoeira Angola,
é possível provocar reflexões atuais sobre as raízes da opressão social, a importância de práticas
inclusivas, o autoconhecimento e a história dos povos africanos, que é pouco conhecida. Mestre
Primo se refere ao conhecimento advindo do povo ancestral pela via do corpo, enquanto
resistência às opressões vividas, ao afirmar que:

[...] a única coisa que o nosso povo teve foi o corpo. Ele não teve bacamarte, ele não
teve chicote, não teve nada. Ele “teve” o corpo e o que ele trouxe no corpo. E a
sabedoria. E a capoeira faz a gente voltar nesse lugar. Não nesse lugar que o mercado
criou. O lugar da mercadoria. Esse lugar para a gente não serve. É por isso que a gente
não trabalha a capoeira aqui enquanto mercadoria [não se cobra nada, nenhum
dinheiro, por nenhuma atividade do grupo], a gente trabalha ela enquanto ciência,
enquanto filosofia, que nos traz a noção da história, que nos coloca no mundo de outra
forma. E daí a gente começa a fazer uma leitura diferente sobre o processo de
opressão. A gente vai. Esses instrumentos todos viram uma arma e com essas armas
nós vamos nos organizando diante desse processo da opressão. A gente vai achando
um lugar para nos colocar melhor no processo, nos colocar melhor no mundo. (Mestre
Primo, 2019)20

A pesquisa que se propõe traz a seguinte problemática: em quais aspectos a educação


decolonial e antirracista da Capoeira Angola poderia auxiliar nos processos de ensino e
aprendizagem das artes circenses contemporâneas? Nesse sentido, seria possível compreender
a Capoeira Angola no ensino das artes circenses, como estratégia para fortalecimento da cultura
de segurança no circo, tendo em vista, também, o risco social vivenciado pelos participantes de
projetos de Circo Social. Refletir sobre essas questões pode contribuir na busca de melhores
condições de estudo e pesquisa para a Arte Circense contemporânea. Esta pesquisa se apresenta,
então, na linha de pesquisa 1, “Estética, crítica e história das Artes Cênicas”, do Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto, na área de intersecção

20
Fala de Mestre Primo transcrita em entrevista feita por Paula Gontijo, em 2019, na sede do Grupo Iuna de
Capoeira Angola em Belo Horizonte, gentilmente cedida a esta pesquisa.
23
entre performances teatrais e educação, em discussões que englobam as artes cênicas, suas
práticas e pedagogias.

SOBRE A ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS DA DISSERTAÇÃO

No primeiro capítulo são apresentados os dados e observações sobre o “Mapeamento:


decolonização e saúde do artista circense”, com reflexões em relação ao risco existente nessa
área de trabalho abordada. São conceitualizados termos como colonização, colonialidade,
inconsciente-colonial-capitalístico, decolonialidade e contra colonial, com base nos estudos de
diferentes autores e autoras e compartilhados os aspectos colonialistas que permeiam as artes
circenses, apontados pelas diversas vozes que participaram do mapeamento. Assim como um
breve apontamento sobre as origens das artes circenses, sua trajetória e o surgimento dos
projetos de Circo Social.
O segundo capítulo é dedicado à Capoeira Angola, apresentando o Mestre Primo e o
trabalho que o Grupo Iuna faz na periferia do bairro Saudade, em Belo Horizonte, trazendo a
contextualização e a cosmovisão dessa capoeira, e a importante contribuição de Mestre
Pastinha21. Também serão descritos os aspectos que fazem a Capoeira Angola tornar-se uma
epistemologia afro-brasileira e a educação decolonial colocada em prática por Mestre Primo e
o Grupo Iuna.
Ao complementar esses estudos, surgem as contribuições em diálogo com os
pensamentos do antropólogo Kimbwandende Kia Bunseki FuKiau, traduzidos por Tiganá
Santana (2019), em sua tese de doutorado intitulada “A cosmologia africana dos bantu-kongo
por Bunseki FuKiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil”. Com base nas
reflexões de Leda Maria Martins (2002 e 2021), ampliam-se em mais aspectos as poéticas
negras, legitimando as manifestações afro-brasileiras como profundas e sábias epistemologias.
Na obra dessa autora, a Capoeira Angola de Mestre Primo ocupa um lugar importante, abrindo
uma fresta dentro do sistema acadêmico e integrando um Mestre, guardião da cultura
tradicional22, a esta pesquisa acadêmica. A partir das entrevistas com Mestre Primo, ainda neste

21
Vicente Ferreira Pastinha (Mestre Pastinha) nasceu no ano de 1889 em Salvador/BA e faleceu em 1981. Foi o
primeiro mestre a se dedicar aos estudos e registros do ensino-aprendizagem da capoeira, no Brasil, sendo o grande
patrono da Capoeira de Angola e principal inspiração para o Mestre Primo.
22
Mestre Primo recentemente recebeu o título de Notório Saber - equivalente ao título de Doutor pela UFMG:
https://www.saberestradicionais.org/novos-mestres-dos-saberes-tradicionais-recebem-titulo-de-notorio-saber-
pela-ufmg/?fbclid=IwAR0iyytiKl2JjWgDhCK3N7m9vMhdvDEGhi38MLVMdNLQO6xwj45WrIOLrkM -
Acesso em 06/04/2022, às 21:00 horas.
24
capítulo são apresentados quais são os fundamentos e os desafios que a Capoeira Angola traz
na sua história e na atualidade, entendendo-a como uma performance afro-brasileira que busca
o processo contra colonial de seu povo, indo na contracorrente do sistema vigente.
O terceiro e último capítulo é dedicado à discussão acerca desses saberes na
encruzilhada das performances, dos processos educativos, entre tempos e espaços abertos numa
perspectiva decolonial. São discutidos, também, em quais âmbitos o Circo Social e a capoeira
podem se encontrar como processos educacionais e performances corporais complementares,
revelando os riscos em diálogo e como os fundamentos da educação contra colonial da Capoeira
Angola pode ser inserida na metodologia pedagógica do Circo Social, auxiliando no
enfrentamento dos riscos sociais que crianças e jovens atendidos por esses projetos lidam
diariamente.
A busca e a pesquisa por “pedagogia decolonial” vem da discussão sobre descolonizar
o conhecimento, proposto por Walter Mignolo (2010) e, também, pelo conceito de
decolonialidade discutido pela autora Catherine Walsh (2005), pelo próprio Walter Mignolo
(2010) e outros autores como Aníbal Quijano (2000), Boaventura de Souza Santos (2009) e
Edgardo Lander (2000), com o conceito de “colonialidade do saber”. Buscam refletir sobre a
importância de desenvolver e difundir práticas pedagógicas que desconstroem os paradigmas
opressores e excludentes permeados pelo padrão de colonialidade - que provêm do processo
histórico colonizador sofrido pela América Latina -, dando voz a outras culturas, saberes e
fazeres de povos que não sejam eurocêntricos.
Essas pedagogias libertárias23, nesta investigação, apontam para o caminho da formação
técnica do artista circense e para o processo do ensino-aprendizagem das artes circenses. Assim
afirma Bell Hooks (2013): “[...] há diferença entre a educação como prática da liberdade e a
educação que só trabalha para reforçar a dominação”24. Ao buscar uma prática circense que não
reforce vivências de opressão e ao adotar estratégias de valorização das diferenças e de corpos
mais libertos das amarras colonizadoras, podem surgir contribuições tanto para as artes cênicas
quanto para as artes circenses e suas pedagogias.

23
Termo ligado a Paulo Freire (1967), que acredita em uma educação proveniente de uma prática de liberdade
como ação política e na importância da formação de indivíduos com consciência crítica e transformadora.
24
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF, 2013,
p. 8.
25
1 ESCUTA DE VOZES CIRCENSES

1.1 MAPEAMENTO: DECOLONIZAÇÃO E SAÚDE DO ARTISTA CIRCENSE

Não é fácil dar nome à nossa dor, torná-la lugar de teorização.


Bell Hooks

Este estudo, iniciado em 2021, partiu de um projeto aprovado no edital de número 23


de Pesquisas Artísticos Culturais pela Lei Aldir Blanc Estadual de 2020, que teve como objetivo
conhecer as vicissitudes das pedagogias das artes circenses, explicitando algumas
problemáticas do contexto brasileiro, especialmente ligadas às práticas de risco de lesões ou até
mesmo de morte.
Este projeto nasceu da necessidade de dialogar com a classe artística circense,
principalmente, em relação à temática dos riscos de lesões e de morte dentro do contexto do
circo, depois que eu presenciei, em setembro de 2019, um amigo querido se acidentar
gravemente, dentro de uma aula de acrobacia, na tentativa de fazer um movimento de alto risco
na cama elástica, sem ter domínio técnico daquela movimentação. Infelizmente, dois dias
depois da lesão, esse amigo veio a falecer.
O formulário do Mapeamento foi criado de forma intuitiva, com pouca orientação
profissional25, partindo mais desses sentimentos de luto, da falta e dos questionamentos em
relação ao risco dentro das artes circenses. Sendo assim, depois que realizei a coleta de dados,
já estando aprovada no mestrado do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, fiz o
trabalho de tabulação e de análise, com orientação e acompanhamento. Percebi algumas falhas
no direcionamento das questões do Mapeamento, uma vez que algumas perguntas foram muito
amplas, então logo, tiveram respostas muito extensas. Alguns questionamentos ficaram
ausentes, e seriam importantes para uma análise ainda mais direta e profunda.
A partir da coleta de dados foram analisados os cruzamentos entre processos educativos
circenses, experiências profissionais, formação complementar em outras artes, consciência
corporal e técnicas de segurança, bem como a situação de vida associada ao autocuidado, à
saúde e à sobrevivência. Isso se deu por meio do formulário online intitulado “Mapeamento

25
Nessa perspectiva, como ainda eu não estava cursando o mestrado em Artes Cênicas, entretanto já havia
elaborado o projeto para participar da seleção. As questões e o texto de apresentação do Mapeamento tiveram o
olhar e a orientação técnica da artista e professora Luana Coelho Gomes, que é circense natural de Belo Horizonte,
arte educadora, graduanda em licenciatura em Dança pela UFMG e professora do curso técnico em Artes Circenses
do CICALT/Plug Minas em Belo Horizonte.
26
decolonização e saúde do artista circense". O questionário traz importantes dados quantitativos
e, especialmente, qualitativos no que diz respeito às vivências circenses – formação e prática –
apontando marcas colonialistas no ensino das artes circenses e reflexões relativas às
interseccionalidades26.
Participaram do questionário, livremente, setenta e quatro artistas circenses que vivem
em diferentes regiões do Brasil. As perguntas abordaram experiências, situações de trabalho e
lesões sofridas ao longo da vida profissional, investigando as pedagogias ou processos de
ensino-aprendizagem que acompanharam suas formações. Foram abordados, ainda, os
acidentes letais relativos às trajetórias circenses de pessoas vinculadas aos participantes.
A análise inicial dos dados sinaliza a necessidade de melhores condições de trabalho em
torno do autocuidado e aponta algumas mudanças em pedagogias relacionadas à educação
somática, à consciência corporal e ao uso adequado de técnicas circenses de acordo com normas
de segurança. Foram consideradas significativas as vozes circenses que apresentam interesse
em desconstruir paradigmas colonialistas27 e rever certas posições, tendo em vista as questões
de corporeidade, raça, gênero e desigualdade social que abrangem a vida e o trabalho no circo.
O mapeamento foi realizado no período da pandemia em que ainda não tínhamos acesso
à vacinação, portanto, foi utilizado a ferramenta virtual mais acessível naquele momento para
uma pesquisadora, as redes sociais da internet.28 Contudo, foi possível reconhecer pares não
apenas de forma geográfica, como também encontrar horizontes de escolhas, de formações,
experiências, bem como realizar a coleta de dados para a promoção de um estudo sobre lesões,
mortes e sobre educação nas artes circenses, criando, assim, um ponto de encontro e uma rede
de afetos.
Nesse sentido, foi se constituindo uma metodologia de pesquisa-participante29, sendo
explicitado, nas perguntas do mapeamento, um posicionamento artístico e político, como o
convite à participação nessa possível rede colaboradora entre artistas circenses para
participarem do processo.

26
Veja o significado dessa palavra a partir de uma entrevista feita pelo Portal Geledés com Carla Akotirene, autora
do livro “O que é interseccionalidade?”: https://www.geledes.org.br/o-que-e-
interseccionalidade/?gclid=CjwKCAjw5P2aBhAlEiwAAdY7dORc0wguzWGc_LNMKqcod2dQw-
MtRMdi2O3IXGPybr1DEFicrTRBaxoCu0IQAvD_BwE - Acesso em 31/10/2022.
27
Padrões de vida socialmente construídos no período colonial, que ainda permeiam o contexto atual.
28
A partir disso é importante ressaltar que essa é uma ferramenta falha, já que ela não consegue ter um alcance
amplo, sabendo que ainda há quase 30 milhões de brasileiros sem acesso à internet no país, segundo os dados
atualizados do IBGE.
29
CARVALHO, Ademar de Lima; MARIANI, Fábio. Pesquisa Participante: um recorte teórico acerca da
abordagem de pesquisa e suas influências epistemológicas. Revista da Faculdade de Educação. Ano VII no. 12
(Jul./Dez. 2009).
27
Em quase um mês, setenta e quatro vozes se incluíram a partir do convite online para a
participação do questionário “Mapeamento decolonização e saúde do artista circense”30. Assim,
por meio das vinte e três perguntas do formulário, foi possível perceber que havia muita gente
precisando dialogar e desabafar acerca de suas condições de trabalho circense. Diversas pessoas
passaram pelo trauma de perder alguém querido devido ao risco letal que existe no circo, ou
ainda tiveram a experiência de lesionarem seus corpos em suas práticas circenses. Havia artistas
questionando as atuais pedagogias de ensino-aprendizagem, assim como outras pessoas
descobrindo e reconhecendo conceitos e ideias novas. Artistas curioso(a)s e crítico(a)s,
espalhado(a)s por mais de quarenta cidades do Brasil, leram as questões e, assim, foram
reunidas experiências mediadas pelas redes sociais, o que presencialmente não seria possível
em tão pouco tempo. É importante ressaltar que, com o intuito de preservar a identidade dos
participantes que responderam ao formulário, nos textos e citações a seguir, foram indicadas
apenas a abreviação de seus nomes e suas idades.
A seguir, será apresentada a análise dos dados coletados. O trabalho consistiu em estar
à escuta, seja no processo de leitura, seja na tabulação e na compilação das respostas, entre
tantas partilhas e direções que foram sendo encontradas no processo de orientação e
coorientação no mestrado do PPGAC31. Fica expressa a gratidão a cada artista participante
desse mapeamento que abriu as possibilidades dessa investigação e que esta análise, escrita por
tantas vozes, seja uma contribuição para melhores condições de trabalho, de treino e
autocuidado no circo.

1.1.1 Brasis circenses: coleta e análise de dados

Ao ressaltar que as artes circenses são um universo muito amplo e não homogêneo, esta
pesquisa não tem a intenção de generalizar a pedagogia e a prática do circo, e muito menos
apontar o que é certo ou errado, mas analisar e refletir sobre os dados coletados, que são
parciais. Inclusive, é importante salientar a impossibilidade de generalizar as temáticas
apontadas a partir de dados coletados que envolvem o universo do circo, uma vez que a
amostragem do mapeamento foi apenas de setenta e quatro artistas circenses, entendendo que

30
Google Formulários criado em 4 de fevereiro de 2021.
31
Neste momento do tratamento dos dados, março de 2021, já estava cursando o mestrado no Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas, com a orientação da professora Dra. Neide das Graças de Souza Bortolini e
coorientação da professora Dra. Luciana Crivellari Dulci, tendo em vista de sua formação mais específica nas áreas
de Sociologia e Metodologia da Pesquisa Científica.
28
há mais de 290 escolas de circo32 e mais de 170 circos itinerantes33 espalhados pelo Brasil,
conforme a bibliografia específica. Isso que estão mapeados, sendo possível imaginar que ainda
há instituições e circos itinerantes que não se encontram nesses números. Portanto, as vozes
participantes do mapeamento foram de pessoas que acessaram as redes sociais naquele período
e, por acaso, tiveram acesso ao meu chamado no formulário, o que de certa forma já é um dado
acerca do(a)s artistas que participaram dessa sondagem inicial do tema.
Iniciamos o mapeamento no dia 4 de fevereiro de 2021 por meio das redes sociais
Instagram e Facebook, a partir do aceite e livre consentimento de artistas que se interessaram
em responder ao questionário. Ele foi encerrado no dia 6 de março de 2021, contando com a
partilha de setenta e quatro artistas circenses, com idades entre dezoito e cinquenta e quatro
anos. Sessenta e quatro dos participantes são oriundos do Brasil e nove de países da América
Latina, como mostrado na figura 1, mas todos residem atualmente no Brasil.

Figura 1 - Distribuição da origem dos participantes pelas regiões do Brasil e da América do


Sul.

Fonte: Elaborada pela autora (2022).

Ao se tratar sobre a residência atual dos respondentes, pode-se verificar na figura 2


abaixo que a região de maior incidência é o Sudeste, contando com vinte e quatro artistas que

32
BARRETO, Mônica Lua; BORTOLETO, Marco Antônio Coelho. Por um mapeamento das escolas de circo –
estudo preliminar. Campinas: Unicamp. Faculdade de Educação Física/Unicamp; p. 07.
https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/abrace/article/view/4455 - Acesso em 19/10/2022.
33
MENIQUELLI, Marcelo; SILVA, Ermínia https://www.circonteudo.com/circos-itinerantes/#1540322231410-
50692121-c5bc - Acesso em 20/10/2022.
29
residem na capital e no interior do estado de São Paulo; treze que moram na cidade do Rio de
Janeiro e no interior do estado; onze em Minas Gerais, entre Belo Horizonte e interior, dois no
Espírito Santo e um em Brasília. A região com incidência média é o Nordeste, e as outras
regiões do Brasil sinalizam poucos artistas residentes. Pode-se constatar que o Sudeste é o lugar
mais habitado por esses artistas por se tratar da região onde há mais escolas de formação em
circo, ou pelo fato de ser o local onde os artistas possuem maior acesso às redes sociais34.

Figura 2 – Distribuição da residência dos participantes pelas regiões do Brasil.

Fonte: Elaborada pela autora (2022).

A artista mais nova que respondeu ao formulário de mapeamento tem dezoito anos. O
mais velho tem cinquenta e quatro. Com pouco mais de 10% - um total de oito respostas -, a
idade mais frequente foi a de vinte e seis anos. Na sequência, há sete respostas de pessoas com
trinta anos e seis respostas de participantes com trinta e dois anos. Há quatro respostas de
pessoas com vinte e quatro e trinta e um anos, três respostas de artistas de vinte e oito, trinta e
quatro, trinta e sete e quarenta e um anos. Portanto, há uma maioria de jovens e adultos
compondo a amostragem de circenses que acessaram e responderam ao questionário.

Quadro 1 – Distribuição da idade dos participantes


Idade dos(as) artistas Quantidade de respondentes

18, 20, 21, 22, 24, 33, 34, 38, 45, 48, 50, 1 em cada idade
51, 54 anos

34
Outro fator relevante é que, como a divulgação do mapeamento foi feita por meio do impulsionamento do
Instagram, o Sudeste seria mesmo a região mais atingida, já que era a mesma região de residência da artista que
propôs a pesquisa.
30
22, 23, 25, 27, 36, 38, 46 anos 2 em cada idade

24 anos 4

26 anos 8

29, 35 e 44 anos 2 em cada idade

30 anos 7

31 anos 4

32 anos 6

28, 34, 37 e 41 anos 3 em cada idade


Fonte: Elaborado pela autora (2022).

O gênero que mais se apresenta é o feminino, com 51,4%, o que corresponde a trinta e
oito participantes. O gênero masculino é representado por 39,4% dos participantes. O campo
“outros” foi preenchido por 5,4% e 4,1% se reconhecem como “não bináries”35. A partir dessas
respostas é possível constatar o alto índice de mulheres na prática circense. Aparece no decorrer
dos depoimentos narrativas do incômodo e questionamentos sobre o machismo presente nas
artes circenses. Fica explícito que ainda existe sexismo e machismo, e que há a objetificação do
corpo feminino nessa profissão, uma vez que as performances femininas ainda são colocadas
em lugares extremamente sensuais e sexuais no circo. Há ainda uma diferenciação entre
modalidades circenses que sejam mais voltadas para mulheres e outras para homens, exemplo
disso é o fato de que o contorcionismo é mais associado às mulheres e a acrobacia de solo é
mais “masculinizada”.

35
O termo “bináries” está sendo amplamente usado para se referir a “não binário”, em uma alusão ao chamado
gênero neutro.
31
Figura 3 – Gráfico resumo da referência aos gêneros feminino, masculino, não-binário e
outros.

Fonte: Elaborada pela autora (2022).

Como sete das pessoas que participaram do questionário não se identificam com o
binarismo, é possível refletir acerca das novas perspectivas de desconstrução binária dos
gêneros que foram determinados histórica e socialmente pelo sistema colonizador. Sistema este
que traz padrões de comportamentos, ainda vigentes, refletidos na prática circense legitimando
modelos eurocêntricos que exaltam corpos magros, brancos e obedientes. Em relação à
legitimação desses corpos, é possível ampliar essa discussão no campo da arte circense para a
questão do risco inerente ao circo. A própria ideia de circo traz a perspectiva de criação de
corpos perfeitos, usando a imagem do risco para vender e acalentar a fragilização de corpos
humanos, como descrito por Marina Guzzo (2004):

E por falar em estética, a ciência trabalha para a construção de corpos perfeitos,


alinhados, músculo por músculo, esticados ruga por ruga e controlados quilo a quilo.
A tirania do body building (Soares, 1998) invade nossa alimentação, nossas escolhas
diárias, nosso metabolismo e até nossa sexualidade. As descobertas sobre o corpo são
acompanhadas por novas dúvidas a seu respeito; nos tornamos cada vez mais alertas
aos sinais emitidos pelo corpo, sensíveis a perceber seu funcionamento e as suas
transformações. Sexualidade, reprodução, doenças, emoções: nosso corpo não é mais
nosso, se transformou em imagens. Essas imagens nos colocam diante da valorização
do risco no esporte, no mercado financeiro, no trabalho, no espetáculo. Existe aí um
crescimento da nossa necessidade de proteção, em especial da saúde e da integridade
do corpo. Há um estímulo ao risco por meio da fragilização do corpo. Mais que nunca,
pensamos a realidade em termos de riscos. (GUZZO, 2004, p. 7-8)

32
Segundo a autora, a ciência trabalha para a produção de corpos perfeitos pautada no
binarismo entre ser homem ou ser mulher, impondo uma imagem ao corpo e afastando o corpo
da ideia de ação. Sendo assim, remete-se ao risco quando se pensa que um corpo fora do padrão
é um corpo fragilizado que deve ser modificado para se encaixar no sistema. Levar essa reflexão
para as artes circenses é pensar que a imagem do corpo dentro do circo deveria ser entendida a
partir da ação, ou seja, qualquer corpo se transforma a partir da prática de uma técnica e
linguagem. O corpo não deve ser pensado a partir de uma imagem imposta, que limita e deixa
de abrir espaço para corpos fora do padrão eurocêntrico e binário adentrarem e experimentarem
a prática circense.
Por hora, este texto fica com essa questão sobre a possibilidade de o risco afirmar esses
padrões eurocêntricos e colonialistas, quando pensado a partir dos objetivos do sistema
capitalista vigente. A conceitualização e reflexão sobre o risco e a segurança no circo é mais
aprofundada no terceiro capítulo desta dissertação.
Mais de 50% das respostas, sendo trinta e nove pessoas, reconhecem-se como brancas,
apenas uma se entende como indígena e duas como amarelas. Treze pessoas se veem como
pardas e nove como pretas. No campo “outros” também apareceram nove participantes, o que
é bastante admissível ao se pensar na diversidade de origens.

Figura 4 – Gráfico resumo das referências raciais.

Fonte: Elaborada pela autora (2022).

33
A maioria dos artistas que responderam a esta pesquisa tem um tempo mediano ou curto
de prática e de trabalho nas artes circenses. Oito dos participantes afirmam ter dez anos de
vivência no circo, sete dizem ter seis anos e quatro pessoas afirmam estar nesta área há vinte
anos. Quatro pessoas afirmam ter quinze anos de trabalho em circo e outras quatro responderam
que praticam as artes circenses há sete anos.

Figura 5 – Gráfico demonstrativo do índice de tempo de trabalho em atividades circenses.

Fonte: Elaborada pela autora (2022).

Pela ilustração abaixo, conforme os dados coletados, é possível observar que, dos
setenta e quatro participantes do mapeamento, sessenta e quatro passaram pela experiência de
sofrer lesões em seus corpos. Dentre as regiões lesionadas, as mais relatadas foram, em primeiro
lugar, os ombros, depois a coluna lombar e, na sequência, os joelhos. Trincamento do calcâneo
dos pés e dedos apareceram em quatro respostas cada. Há três indicações de lesões nos
tornozelos, duas nos pulsos e uma para cada parte do corpo mencionada a seguir: pescoço,
braço, costela, quadril, glúteos, coxa e nervo ciático. Além disso, foi possível coletar outras
manifestações de lesões tais como tendinites e distensões musculares provenientes de quedas,
além de rasgos nas mãos, furos e rompimento de ligamentos.

34
Figura 6 – Ilustração do número de pessoas e das partes do corpo mais lesionadas pelos
participantes.

Fonte: Elaborada pela autora (2022).

Quarenta e dois artistas afirmaram ter se lesionado fazendo aula, treinando e/ou
ensaiando. Sete pessoas contam que se lesionaram durante apresentações e dezesseis relatam
que já se lesionaram em ambas as situações. Três afirmam que passaram por essa experiência
também dando aulas. Dois participantes indicam que a lesão ocorreu devido ao desgaste
advindo de anos de prática e uma pessoa diz que se lesionou no momento da montagem do
picadeiro.
Foi questionado aos participantes se eles tiveram que interromper totalmente suas
práticas por causa das lesões. Em caso afirmativo, solicitou-se que informassem por quanto
tempo isso durou. Para algumas pessoas foram dias, para outras meses e, para uma delas, dois
anos. Quarenta artistas precisaram interromper o processo de recuperação e o período de pausa,
mesmo antes de estarem totalmente recuperados, para voltar ao trabalho. Vinte e dois
participantes relatam terem seguido suas atividades no trabalho normalmente, a despeito das
lesões, e dez afirmaram ter adaptado seus treinos para não forçar tanto a área lesionada. Três
pessoas esclareceram que não puderam parar, pois o trabalho circense era a principal fonte de
renda naquele momento. Três pessoas disseram que passaram a conviver com as dores.
Quando questionados se fizeram algum acompanhamento médico ou alguma prática de
fortalecimento ou regeneração da parte do corpo lesionada, trinta e cinco pessoas confirmaram
que sim. Trinta e um respondentes afirmaram que não. Oito fizeram acompanhamento médico
e duas delas com cobertura de plano de saúde particular. Outras duas relataram ter feito

35
tratamento pelo SUS, e uma terceira pessoa ainda se encontrava na fila de espera para o
tratamento no momento da resposta ao questionário. Doze pessoas se recuperaram por meio de
fisioterapia, quatro pela acupuntura e duas alegaram fazer alongamentos. Uma pessoa disse que
se recuperou através do repouso, duas com tratamento por massagem, e outras duas alegaram
praticar natação. Já outras três pessoas optaram pela prática de fortalecimento muscular. Uma
delas citou a musculação e quatro fizeram acompanhamento profissional ou personalizado.

Quadro 2 – Quadro resumo do tratamento das lesões.


Tratamentos Quantidade de respostas

Fisioterapia 12

Acompanhamento médico 8

Acupuntura 4

Acompanhamento técnico 4
personalizado

Fortalecimento muscular 3

Natação 2

Massagem 2

Alongamento 2

Repouso 1

Musculação 1
Fonte: Elaborado pela autora (2022).

No que se refere a uma perspectiva de melhora completa após as lesões, trinta e sete
pessoas afirmaram que conseguiram se curar totalmente, mas vinte e nove responderam que
isso não foi possível. Dentre essas respostas, cinco afirmaram que convivem com as dores e
três expressaram ter ficado com sequelas.
Após as questões sobre as experiências pessoais de lesão no mapeamento, as perguntas
se voltaram para o conhecimento que os participantes pudessem ter a respeito de alguém que
tivesse se lesionado ou que até chegado a vir a óbito praticando alguma atividade circense de
alto risco. Se quisessem e se sentissem à vontade, havia espaço para que relatassem a situação,
visto que entender melhor o contexto desses acontecimentos seria de extrema importância para
esta pesquisa. Mediante essa pergunta, quarenta e um artistas afirmaram ter presenciado

36
conhecidos, amigos ou colegas se fraturando. Vinte e um relataram que souberam ou
presenciaram situações, na prática circense, que levaram artistas a óbito. Segue a tabela com o
número de aparecimento de respostas, as modalidades ou as situações em que ocorreram os
fatos relacionados aos acidentes e óbitos:

Quadro 3 – Lesões a partir das modalidades circenses em exercício.


Modalidades / situações Números de respostas

Sem especificação 14

Monociclo girafa 3

Tecido 3

Acrobacia de solo 2

Cama elástica 2

Pirofagia 2

Trânsito / rua 2

Aéreo 1

Contorcionismo 1

Corda Bamba 1

Falta de segurança 1

Fonte: Elaborado pela autora (2022).


.
Quadro 4 - Relatos de óbitos a partir das modalidades circenses em exercício.
Modalidades / situações Números de respostas

Sem especificação 4

Tecido 3

Erro técnico 3

37
Falta de segurança 2

Queda 2

Báscula 1

Cama elástica 1

Falha em ancoragem ou aparelhos 1

Malabares com facão 1

Malabarista assassinado pela polícia 1

Monociclo girafa 1

Parada de mão 1

Fonte: Elaborado pela autora (2022).

A questão seguinte buscou aprofundar o entendimento a respeito das circunstâncias em


que foram ocasionadas as lesões relacionando-as com as aprendizagens circenses: “Você
acredita que a formação que você teve, nas artes circenses, foram suficientes para aprender a
executar, de forma segura, movimentos de alto risco?” As opiniões se dividem. Vinte e seis
pessoas afirmaram ter aprendido técnicas de segurança e se sentir aptas para as modalidades de
alto risco. Trinta e oito artistas expressaram não se sentir aptos e não ter aprendido, de forma
suficiente, técnicas de segurança em seus caminhos de formação em circo.
Cinco artistas afirmaram ser autodidatas e disseram que não se sentiam suficientemente
preparados para a execução de modalidades de alto risco. Oito escreveram que tiveram que
aprofundar e buscar conhecimentos sobre segurança fora da instituição de ensino da qual faziam
parte. Três artistas afirmaram não praticar modalidades de alto risco. A partir da pergunta
anterior, os participantes foram questionados quanto aos conhecimentos que são mais
importantes para que o artista circense tenha um bom preparo para executar atividades de alto
risco. Vinte e seis sinalizaram a importância da consciência e da boa preparação corporal e vinte
e dois acreditam que aprender noções de segurança é fundamental para um bom preparo técnico.
Segue abaixo uma tabela com outras sugestões de atividades consideradas pelos respondentes
do formulário como complementares às práticas circenses:

38
Quadro 5 - Atividades consideradas complementares às práticas circenses, citadas pelos
respondentes.
Atividades Quantidade de respostas

Consciência/preparação corporal 26

Noções de segurança 22

Montagem/instalação do aparelho 7

Consciência do risco 7

Anatomia 6

Alongamento 6

Cuidado/prudência consigo mesmo 5

Fisioterapia 4

Boa infraestrutura do espaço 3

Fisiologia 3

Aquecimento 3

Cinesiologia 2

Nr35 2

Preparação mental 2

respeito 2

Primeiros socorros 2

Fortalecimento corporal 1

Domínio da técnica 1

Dança 1

Capoeira 1

Pedagogia 1

Prevenção de lesões 1

Concentração 1

39
Ginástica laboral 1

Meditação 1

Química 1

Física 1

Didática 1

Psicologia 1

Axys syllabus system 1

Domar a ansiedade 1

Equilíbrio 1

Pilates 1

Deportólogo 1

Nutricionista 1
Fonte: Elaborado pela autora (2022).

A partir dessas respostas, fica expresso que os artistas circenses necessitam de amplo
conhecimento em diferentes áreas e, apesar de todas serem interligadas entre si, é importante a
presença de estudos e treinos aprofundados para que o risco de se lesionar o corpo diminua.
Ressalta-se que a questão da segurança no circo é um assunto muito amplo que precisa de
atenção e de um trabalho profundo de investigação dessa temática e dos diferentes riscos e
acidentes que envolvam os profissionais dessa área. No entanto, a partir das respostas sobre as
lesões e o falecimento de artistas na prática circense, fica expressada a naturalização da lesão
que está intrínseca a essa arte, sendo que mais da metade dos participantes do mapeamento já
passaram pela experiência de lesionar os próprios corpos.

Devemos considerar que a exposição deliberada dos artistas circenses às situações de


risco, como parte de sua proposta estética/artística, levou, ao longo dos tempos, a que
os acidentes fossem considerados casualidades, ou, popularmente, como uma
consequência “natural” desse ofício. Como é possível depreender do nosso discurso,
não concordamos com essa tese, e, exatamente, por isso, entendemos que o estudo
aprofundado dos acidentes nos permitirá encontrar novas soluções para a ampliação
da segurança da arte circense. Evidentemente não somos contrários à ideia de uma
estética do risco, que para muitos representa uma das consequências do Circo
(GOUDARD, 2010), mas essa condição não implica o descuido ou a subestimação
dos riscos reais implícitos nas atividades realizadas. Aliás, a não consideração da

40
segurança como uma prioridade nos parece uma enorme irresponsabilidade.
(BORTOLETO; FERREIRA; SILVA, 2015, p. 45)

De acordo com os autores e a autora citada, o risco é entendido como “uma condição de
incerteza” (BORTOLETO; FERREIRA; SILVA, 2015, p. 40), tornando-se um aspecto dentro
das artes circenses muito complexo e amplo e, inclusive por isso, nomeado de cultura do risco
(GALLO, 2015) que se torna um conjunto de procedimentos necessários para uma boa prática
e formação do artista e profissional do circo em relação ao entendimento desses riscos. Sendo
assim, é importante o estudo aprofundado sobre os riscos e acidentes no circo para a
“preservação da integridade corporal e artística dos profissionais, do público e dos demais
envolvidos com a arte do Circo” (Ibid).
Contudo, a partir desses dados coletados que colocam em diálogo vários campos como
a saúde, a educação, a prática, os direitos e a política em circo, surgem muitos questionamentos.
A amplitude dessa temática, que permeia a cultura de segurança do circo, possibilita os
seguintes questionamentos: por mais que atualmente é possível dizer que há poucos acidentes
dentro do âmbito das artes circenses e o desenvolvimento de tecnologias que auxiliam na
redução de danos dentro do circo (BORTOLETO apud GALLO, 2015), o que está sendo
difundido na metodologia circense que ainda adoece os corpos desses profissionais? É possível
reduzirmos esses danos? Será que a formação para educadores circenses não está sendo falha
nesse campo da atenção ao cuidado com a saúde e os limites do corpo? Será que o sentido de
espetacularização das performances circenses não está se sobrepondo ao autocuidado? Nesse
sentido, as lesões sofridas pelos profissionais de circo poderiam ser consideradas acidentes de
trabalho? E como isso poderia ser levado para o campo da defesa de direitos para esses artistas?

No centro do debate está o indivíduo, pois uma cultura de segurança não se resume ao
uso adequado de equipamentos de segurança individual (EPI) e à forma de
estruturação da segurança do espaço circense. Ela está especialmente vinculada ao
indivíduo e sua forma de pensar sobre a segurança e de preparar o seu corpo para tal
processo, tendo em vista os desafios que a vida e especialmente a profissão impõe.
(BORTOLETO; FERREIRA; SILVA, 2015, p. 21)

Essa responsabilidade não é apenas dos artistas-professores e de seus métodos de ensino,


pois, apesar do autocuidado e da questão da segurança e do risco no circo estarem diretamente
ligados ao individual, à classe circense como um todo e à pedagogia do circo, todos nós, artistas,
somos frutos de um contexto histórico, social, cultural e político em que sempre houve uma
marginalização e precarização de recursos para as artes circenses. O circo é fruto de uma longa
resistência no campo das políticas públicas, extremamente escassas para essa área artística. É
41
preciso pensar em estratégias para o fortalecimento e a criação de uma cultura de segurança do
circo36 que não seja apenas um elemento central nos processos educativos, mas que seja
ampliada para políticas maiores, que resguardem o artista e seu ofício, e que proporcione
melhores condições não só de trabalho e pesquisa, mas de saúde.

1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE COLONIALIDADE

A partir dos dados coletados no “Mapeamento: decolonização e saúde do artista


circense” explicitado no subitem anterior, discutiremos a seguir os aspectos colonialistas ainda
existentes nas artes circenses. Para isso, apresentaremos alguns conceitos como colonização,
colonialidade, inconsciente-colonial-capitalístico, decolonialidade e contra colonial, com base
nos estudos de diferentes autores e autoras.
É importante ressaltar que esta dissertação não tem o intuito de generalizar nenhuma
das temáticas aqui discutidas. As reflexões que se seguem abordam ideias e discussões a partir
de referenciais baseados na história vivida pelo Brasil e não têm o objetivo de julgar e/ou
condenar nenhum movimento religioso, político ou filosófico.
Há outros artistas e pesquisadores das artes circenses que buscam contribuir com o
processo de decolonização do circo e das artes cênicas, alguns deles estão inclusive inseridos
em espaços de manifestações de matriz africana e indígenas que convergem com esta
pesquisa37.
Entendo este trabalho como o reflexo do contexto histórico, político e cultural em que
me insiro. Atualmente, vivemos sob um sistema neocapitalista, fruto do processo de
colonização afro-pindorâmico38 que invadiu a terra chamada Brasil há cerca de quinhentos
anos. Atualmente, vivemos em uma época de controle social e de manutenção dos corpos dóceis

36
Ibid., p. 213.
37
Artistas como Nunes Odília, com o projeto “No meu terreiro tem arte”, que tem sua sede no sertão do Pajeú em
Pernambuco, e da artista Cibele Mateus que pesquisa e interpreta a figura de Mateus, que é o palhaço sagrado
dentro da manifestação/brincadeira do Cavalo Marinho. Assim como a Troupe Baião de Dois, de São Paulo, que
pesquisa acrobacia na perna de pau e outras linguagens circenses, buscando a desconstrução de referenciais apenas
eurocentrados.
38
Antônio Bispo dos Santos afirma que: “Pindorama (Terra das Palmeiras) é uma expressão tupi-guarani para
designar todas as regiões e territórios da hoje chamada América do Sul. Utilizarei alternativamente colonização
afro-pindorâmica para denominar a colonização das Américas, enquanto um exercício de descolonização da
linguagem e do pensamento”. SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significações.
Brasília. INCTI/UnB, 2015, p. 20
42
que já foram domesticados anos atrás39. O sistema vigente elabora, ordena e cria nossas
subjetividades.

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que
realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-
utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares
existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as
disciplinas se tornaram, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, fórmulas gerais de
dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de
apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa
e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. (FOUCAULT,
1987, p. 164)

Esse processo de disciplinarização dos corpos é, ao longo da vida, algo que ocorre de
forma sutil e que está implícito em todas as outras relações que compõem os indivíduos: no
âmbito familiar, nas escolas, nas relações sociais e de trabalho. Tudo o que se vivencia no
cotidiano tem aspectos das formações socialmente construídas e é reflexo de um passado
violento de opressão e imposição de uma cultura predominantemente europeia e hierárquica.
Logo, isso não seria diferente dentro das artes circenses. Assim, para compreender melhor esses
aspectos colonialistas ainda reproduzidos no circo, é importante entender o processo de
colonização e seus conceitos, o que faremos com uma breve contextualização.
Nêgo Bispo é um ativista quilombola, morador do Quilombo Saco-Curtume, localizado
no semiárido piauiense e, em sua obra Colonização, quilombos, modos e significações (2015),
explica o significado de colonização e contra colonização:

Vamos compreender por colonização todos os processos etnocêntricos de invasão,


expropriação, etnocídio, subjugação e até de substituição de uma cultura pela outra,
independentemente do território físico geográfico em que essa cultura se encontra. E
vamos compreender por contra colonização todos os processos de resistência e de luta
em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores, os símbolos, as
significações e os modos de vida praticados nesses territórios. (SANTOS, 2015, p.
47,48)

Esse mesmo autor explica que foi por meio da imposição da religião monoteísta dos
europeus, como estratégia de catequização dos povos afro-pindorâmicos, que foi imposto
também o processo de colonização e escravização com o intuito de anular, silenciar e atacar as
identidades individuais e as cosmovisões desses povos. A forma como se cultua um Deus, diz

39
Ver Michel Foucault em Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987.

43
muito sobre como aquela comunidade se organiza, enxerga e sente a vida, como explica Nêgo
Bispo:
O povo eurocristão monoteísta, por ter um Deus onipotente, onisciente e onipresente,
portanto único, inatingível, desterritorializado, acima de tudo e de todos, tende a se
organizar de maneira exclusivista, vertical e/ou linear. Isso pelo fato de ao tentarem
ver o seu Deus, olharem apenas em uma única direção. Por esse Deus ser masculino,
também tendem a desenvolver sociedades mais homogêneas e patriarcais. Como
acreditam em um Deus que não pode ser visto materialmente, se apegam muito em
monismos objetivos e abstratos. Quanto aos povos pagãos politeístas que cultuam
várias deusas e deuses pluripotentes, pluricientes e pluripresentes, materializados
através dos elementos da natureza que formam o universo, é dizer, por terem deusas
e deuses territorializados, tendem a se organizar de forma circular e/ou horizontal,
porque conseguem olhar para as suas deusas e deuses em todas as direções. Por terem
deusas e deuses tendem a construir comunidades heterogêneas, onde o matriarcado
e/ou patriarcado se desenvolvem de acordo com os contextos históricos. Por verem as
suas deusas e deuses nos elementos da natureza como, por exemplo, a água, a terra, o
fogo e outros elementos que formam o universo, apegam-se à pluralismos subjetivos
e concretos. (SANTOS, 2015, p. 38,39)

Esses deuses e deusas plurais, que habitam e são ao mesmo tempo os elementos da
natureza, levam à cosmovisão de um tempo circular, baseado na ancestralidade, na oralidade,
ou seja, no respeito pela experiência dos mais vividos, que têm aspectos em comum tanto entre
povos indígenas, quanto entre afro-brasileiros, que foram demonizados e oprimidos por esse
“único deus superior” advindo de países colonizadores, católicos ou protestantes, em sua
perspectiva monoteísta. Ao chegarem nas Américas foi imposto a esses povos um outro tempo
de vida, um outro conceito sobre morte, uma outra cosmopercepção e organização de sociedade,
diferente da que aqueles povos originários entendiam e cultuavam e que, atualmente, parece ser
uma concepção majoritária, dados os sucessivos processos de colonização. No entanto, não foi
tão simples assim. Tanto os indígenas que já habitavam em Pindorama, quanto os africanos que
foram arrancados de seus territórios e trazidos como mão de obra escrava, rebelaram-se contra
essas imposições e lutaram. Eles deixaram no Brasil heranças valiosas, passíveis de serem
resgatadas, vistas e vivenciadas nas manifestações e cultos afroameríndios, que guardam as
ciências e sabedorias da terra e os mistérios entre o mundo espiritual e físico.40

40
Seguindo no intuito de não generalização, importante ressaltar que no próprio movimento cristão insurgiram
forças que contestavam a hegemonia da religiosidade católica e assim surgiram alguns movimentos libertários que
se somam às vozes afro-brasileiras e indígenas contra o genocídio e o etnocídio. Vários movimentos políticos de
libertação das opressões historicamente impostas nasceram de movimentos verdadeiramente cristãos que se
opuseram à catequização opressora, a exemplo dos proponentes da chamada Teologia da Libertação, que é uma
diretriz para movimentos libertários nas próprias igrejas de denominação católica, evangélica, entre outras, que
englobam várias correntes de pensamento interpretando os ensinamentos de Jesus Cristo como libertadores de
injustas condições sociais, políticas e econômicas. Veja mais informações em
https://www.infoescola.com/religiao/teologia-da-libertacao/ - Acesso em 18.08.2022, às 20:00 horas.

44
A exploração de classe e a discriminação racial constituem as referências básicas da
luta comum de homens e mulheres pertencentes a um grupo étnico subordinado. A
experiência histórica da escravidão negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente
vivida por homens e mulheres, sejam crianças, adultos ou idosos. E foi dentro da
comunidade escrava que se desenvolveram formas político-culturais de resistência
que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular pela libertação. O mesmo
reflexo é válido para as comunidades indígenas. (GONZALEZ, 2020, p. 134)

Embora a escravidão tenha sido abolida com a promulgação da Lei Áurea, em 13 de


maio de 1888, grande parte da cultura e das manifestações desses povos afro-pindorâmicos
ainda continuou sendo criminalizada. Exemplo disso é a proibição da própria prática da
capoeira, perpetuando o silenciamento de suas crenças.

Um exemplo bastante ilustrativo da continuidade da perseguição aos Quilombos é o


Capítulo XIII — Dos Vadios e Capoeiras do Código Penal da República, instituído
pelo Decreto de No 847 de 11 de outubro de 1890, que proibiu e criminalizou a prática
da capoeira, ainda na fase de implantação da República, durante o governo provisório,
antes mesmo da promulgação da primeira constituição republicana e apenas dois anos
após a abolição da escravatura. Destaca-se que era considerada circunstância
agravante pertencer a capoeira a alguma banda ou malta, prevendo pena em dobro
caso fosse chefe ou cabeça do grupo, além de deportação após cumprimento da pena,
caso fosse estrangeiro (leia-se africano). (SANTOS, 2015, p. 26)

Ainda que o sistema escravagista tenha sido oficialmente abolido, as desigualdades


raciais advindas de poderes neoimperialistas se arrastam até os dias de hoje, podendo ser
nomeada como colonialidade que, segundo Torres, “emergiu como resultado do colonialismo
moderno” (TORRES, 2007, p. 131) e não é mais apenas uma relação de poder entre os povos:

[...] porém, em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre os povos ou
nações, melhor se refere a forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as
relações intersubjetivas se articulam entre si, através do mercado capitalista mundial
e da ideia de raça. (TORRES, 2007, p.131)

Logo, é possível pensar que colonialismo corresponde aos sucessivos eventos de caráter
histórico que estruturam a política e a economia, numa perspectiva imperialista que precede e
origina a colonialidade, e que, portanto, se refere à matriz de poder e dilema filosófico, como
aponta Walter Mignolo (2010, p.10), ao tratar dos aspectos constitutivos da modernidade e
desse sistema colonial. Sendo assim, vivemos o período pós-colonial, mas ainda dentro do
padrão de poder da colonialidade, reforçado por um sistema capitalista que mercantiliza as
relações e reforça a ideia de raça, alimentando hierarquias entre as pessoas e subalternizando as
crenças e os conhecimentos dos povos que não cultuam o mesmo deus monoteísta. Portanto,

45
assim como explicam Meneses e Santos, o que se arrasta até os dias atuais são as desigualdades
sociais que este sistema político gerou e a colonialidade que está intrínseca dentro dos sistemas
de poder e de saber:

De facto, o fim do colonialismo político, enquanto forma de dominação que envolve


a negação da independência política de povos e/ou nações subjugados, não significou
o fim das relações sociais extremamente desiguais que ele tinha gerado, (tanto
relações entre Estados como relações entre classes e grupos sociais no interior do
mesmo Estado). O colonialismo continuou sobre a forma de colonialidade de poder e
de saber, para usar a expressão de Anibal Quijano. (MENESES; SANTOS, 2009, p.
18)

Já para a pesquisadora Suely Rolnik (2018), a partir desse processo histórico colonial e
diante desse sistema vigente permeado pela colonialidade, todos os povos colonizados nascem
e convivem com um trauma, um mal-estar e um pavor diante da vida, em que a mercantilização,
expropriação e morte de nossas florestas refletem a expropriação, anulação e morte de nossas
subjetividades. Assim a autora se refere a esse problema estruturante de nossa sociedade:

Um mal-estar alastra-se por toda parte: são várias as sensações que nos lançam neste
estado. Uma perplexidade diante da tomada de poder mundial pelo regime capitalista
em sua nova dobra – financeirizada e neoliberal -, que leva seu projeto colonial às
últimas consequências, sua realização globalitária. (ROLNIK, 2018, p. 184)

Esse mal-estar faz parte do “inconsciente-colonial-capitalístico”, conceito que, segundo


Suely Rolnik (2018, p. 230), foi inspirado nos pensamentos de dois autores: Frantz Fanon e
Félix Guattari: “O primeiro cunhou o conceito de ‘inconsciente colonial’ nos anos 1950 e o
segundo o conceito de ‘inconsciente capitalístico’ no início dos anos de 1980” (ROLNIK, 2018,
p. 230).

Desviada pelo regime deste seu destino ético, a pulsão é canalizada para que construa
mundos segundo seus desígnios: a acumulação de capital econômico, político, cultural
e narcísico. O estupro da força vital produz um trauma que leva a subjetividade a
ensurdecer-se às demandas da pulsão. Isto deixa o desejo vulnerável à sua corrupção:
é quando deixa de agir guiado pelo impulso de preservar a vida e tende, inclusive, a
agir contra ela. (ROLNIK, 2018, p. 191)

Ou seja, esse inconsciente-colonial-capitalístico é o “regime de inconsciente próprio do


sistema capitalista-colonial” (ROLNIK, 2018, p. 229) que perpassa toda a vida social, a partir
dessa política e prática de extermínio, manipulando nossas subjetividades e nos afastando de
nossos reais desejos e pulsões. Logo, distancia-nos de tudo o que está diretamente ligado ao
corpo para que tenhamos uma vida apenas utilitária e funcional. Ao passo que tudo que é da

46
ordem da criação diz respeito à subjetividade termo cunhado pela psicanálise, problematizado
nas obras de Félix Guattari (1996) e Michel Foucault (1987), conforme aponta Rolnik. A
subjetividade discutida é a capacidade de resistir às capturas e adestramentos impostos, como
possibilidade de potência do desejo e de criação.
A subjetividade, em outra perspectiva pode ser construída a partir dos encontros e das
trocas de experiências, conforme apresenta Sônia Regina Vargas Mansano (2009): “Essa
produção de subjetividades, da qual o sujeito é um efeito provisório, mantêm-se em aberto uma
vez que cada um, ao mesmo tempo em que acolhe os componentes de subjetivação em
circulação, também os emite fazendo dessas trocas uma construção coletiva viva”
(MANSANO, 2009 p. 111).
Todas essas reflexões remetem aos processos de singularização, conceito reconstruído
por Félix Guattari e Suely Rolnik (1996):

O que chamo de processos de singularização é algo que frustra esses mecanismos de


interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação de
valores num registro particular, independentemente das escalas de valor que nos
cercam e espreitam por todos os lados. (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 47)41

É possível considerar a arte como um processo de singularização, a partir da ideia de


que ela seja uma via de autoconhecimento e transformação. O corpo, sendo o principal
mecanismo de fazeres artísticos, é capaz de despertar um olhar distanciado e crítico sobre o
mundo ao seu redor. Ao pensar que as artes cênicas e o circo são operadores de produção de
subjetividades, somos levados a fazer os seguintes questionamentos: quais processos de
subjetivação estão sendo usados nas pedagogias e nas práticas do circo para a formação do
artista circense? Será que esses processos reforçam a potência da vida, do corpo e do cuidado
de si?42 E mais, será que os processos de singularização pautados em pedagogias decoloniais,
embebidos dos ritos e manifestações de matriz afro-brasileiras e ameríndias não seriam eficazes
estratégias para a decolonização das artes circenses?
Por sua vez, o conceito de decolonização43 foi criado por teóricos da América do Sul
juntamente com estudiosos dos Estados Unidos e da Europa. Em resposta ao padrão imposto,
buscaram discutir o processo de colonização, colonialidade e criar ações não apenas para
“desarmar e desfazer o colonial” (ELIZALDE; FIGUEIRA; QUINTERO, 2019, p.04), mas para

41
Citação retirada do artigo “Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade” de Sônia
Regina Vargas Mansano publicado na Revista de Psicologia da UNESP, 8(2). 2009, página 112.
42
Conceito cunhado por Michel Foucault (2004).
43
Nesta dissertação utilizarei os conceitos “contra colonial” e “decolonização” variavelmente.
47
produzir novas epistemologias e pedagogias. De acordo com esses teóricos, o processo de
dominação da colonização, que resulta atualmente nos aspectos da colonialidade reforçados
pelo sistema capitalista, para além de todas as violências aqui já citadas, passa também pela via
dos poderes e dos saberes, deslegitimando epistemologias diferentes das europeias. Nesse
sentido epistemologia é assim compreendida:

Toda a experiência social produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe


uma ou várias epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou ideia, reflectida ou
não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do
conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e
inteligível. (MENESES; SANTOS, 2009, p. 9)

Segundo Mignolo (2010)44, desde meados dos anos de 1970 tem-se a ideia de que o
conhecimento é também um instrumento de colonização que passa pelos domínios da
linguagem, da memória e do espaço. Sendo assim, “se o conhecimento é um instrumento
imperial de colonização, uma das tarefas urgentes diante de nós é descolonizar o
conhecimento”45 (MIGNOLO, 2010, p. 9)

A ideia de que o conhecimento faz parte do processo de colonização já tem uma


história na América Latina de estudos e debates intelectuais. O “antropólogo”
brasileiro Darcy Ribeiro, no início dos anos 70, afirmou claramente que o império
marcha em direção às colônias com armas, livros, conceitos e pré-conceitos. [...] Ficou
claro então, que na política de escolarização, quando pensamos em descolonização,
não estávamos tentando tomar o poder do Estado, mas assaltar o conhecimento para
transferir o poder epistêmico. (MIGNOLO, 2010, p. 10)46

Assim, o processo de decolonização é uma desobediência política e epistêmica, sendo


que descolonizar o conhecimento é também contar outras histórias que não essa que há anos
permeia as mídias e os livros escolares, colocando os povos afroameríndios apenas como mão
de obra escrava, como seres ausentes de valores e “impermeáveis à ética” (FANON, 1961, p.
233).
O colono faz a história e sabe que a faz. E porque se refere constantemente à história
de sua metrópole, indica de modo claro que ele é aqui o prolongamento dessa
metrópole. A história que escreve não é, portanto, a história da região por ele

44
MIGNOLO, Walter. Desobediencia Epistémica: retórica de la 48raspassar48, lógica de la colonialidad, y
gramática de la descolonialidad. Buenos Aires: ediciones del signo, 2010.
45
Tradução livre de: “si el conocimiento es única instrumento imperial de colonizaciónúnicana de las tareas
urgentes que tenemos por delante es descolonizar el conocimiento” (MIGNOLO, 2010, p. 9).
46
Tradução livre de: “La idea de que el conocimiento es parte de48raspassacesos colonizadores ya túnicae una
húnicatoria en América Latina de becas y debates intelectuales. El “antropólogo” brasileiro
DarcúnicaRib48raspassalos primeros años setenta expresó claram48raspase el imperio marcha hacia
lúnicacolonias con armas, libros, conceptos y preconceptos. [...] Quedaba claroúnicantonces, que en la política de
escolarización, cuando pensamos de descolonización, no tratábamos de tomar el poder de48raspasso pero sí asaltar
el c48raspassarto para traspasar el poder epistémico” (MIGNOLO, 2010, p. 10).
48
saqueada, mas a história de sua nação no território explorado, violado e esfaimado. A
imobilidade a que está condenado o colonizado só pode ter fim se o colonizado se
dispuser a pôr termos a história da colonização, à história da pilhagem, para criar a
história da nação, a história da descolonização. (FANON, 1961, p. 38)

Além do autor citado acima, outra autora que discute sobre a colonização do
conhecimento é Chimamanda Ngozi Adichie, que nos conta sobre o “Perigo de uma história
única”, uma palestra que aconteceu em 2009 e que foi publicada em livro pela editora
Companhia das Letras47. Chimamanda ao falar sobre sua própria experiência de vida, afirma
que essa história única contada sobre a África que impõe no imaginário coletivo um lugar hostil,
negativo, pobre, cheio de doenças, e pessoas incapazes, veio da literatura ocidental. Sendo
assim, é o ocidente falando sobre a África e criando uma tradição negativa sobre esse
continente, e como escreve a autora “É assim que se cria uma história única: mostre um povo
como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna” (ADICHIE, 2009,
p. 12).
As artes circenses, que são esse conjunto de variadas linguagens e técnicas artísticas,
podem ser consideradas, em seu diversificado conjunto, uma cultura corporal48, ou seja, têm o
corpo como primeiro conhecimento, que vistos nos movimentos da sociedade, tornam-se ações
que podem ser transgressoras desse sistema permeado pela colonialidade e reforçado pelo
capitalismo que subalterniza tudo que provém do corpo. Isso no entendimento geral de que toda
ação corporal causa uma fissura no sistema atual que é extremamente pautado pela
racionalidade. Sendo assim, o corpo circense pode ser um corpo que resiste às capturas
institucionais, um corpo-anárquico, corpo-criminalizado, corpo-fissura, capaz de ir contra esse
padrão imposto do corpo controlado e disciplinado. No entanto, quando pensado dentro da
prática decolonial, porque é possível um corpo circense mesmo estando inserido nessa cultura
corporal que é o circo, estar pautado em padrões que se alimentam dos conceitos da
colonialidade e perpetuam, de alguma maneira, essa disciplina e rigidez que o sistema
capitalista atual difunde.
Podemos pensar então, que um corpo circense decolonial propõe, para além do
conhecimento de uma movimentação corporal extra cotidiana, uma corpografia e um estilo e

47
É possível acessar o material completo em https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-
humanos/enfrentamento-ao-racismo/obras_digitalizadas/chimamanda_ngozi_adichie_-_2019_-
_o_perigo_de_uma_his–oria_unica.pdf - Acesso em 21/06/2023.
48
Rocha, Gilmar. O circo no Brasil: est–do da arte. BIB - Revista Brasileira De Informação Bibliográfica Em
Ciências Sociais, 2010, p. 54.
49
conceito de vida que rompe com o esquema capitalista da rotina de um corpo utilitário e
funcional que serve ao capital.

1.2.1 Colonialidade e decolonialidade nas artes circenses

A partir da discussão feita é importante pensar o quanto há de corpos socialmente


reproduzidos pela lógica do capital, também no circo, uma vez que ainda há a reprodução de
referenciais majoritariamente eurocêntricos, contribuindo para a perpetuação de processos de
subjetivação pautados na colonialidade e, sem dúvida, que giram em torno dos ditames do
capitalismo e suas relações mercantilistas. Por lógica do capital influenciando padrões corporais
desejáveis como corretos entende-se por ditames de padrões de beleza eurocentrados, como
corpos brancos, magros, virtuosos e esbeltos. Além disso, reforçam parâmetros e conceitos da
política de adestramento e extermínio, que tem como missão anular qualquer outra identidade
ou epistemologia que não seja a europeia. Sendo assim, a partir dos dados coletados no
“Mapeamento: decolonização e saúde do artista circense”, entre as artes circenses, existem
aspectos que silenciam ou invisibilizam as identidades culturais amefricanas e ameríndias49,
permitindo a formação de artistas circenses distanciados de suas próprias raízes, sem
representatividade e, talvez, com dificuldade de identificar suas reais pulsões e desejos.
No referido Mapeamento foram apresentadas perguntas que expressam
posicionamentos assumidos em relação à colonialidade e à decolonialidade nas artes circenses.
As três questões do formulário que serão abordadas a seguir (números 18, 19 e 20) apresentam
aspectos mais qualitativos do trabalho acerca das vivências do circo, também nessa esfera.
Na questão de número 18 é perguntado o seguinte aos participantes: “Na sua percepção,
em quais aspectos a prática circense contemporânea se aproxima e se afasta de uma metodologia
decolonial?” O conceito de “metodologia decolonial” foi apresentado na pergunta com o
objetivo de provocar reflexões e futuros debates. Artistas que responderam a esse mapeamento
acolheram muito bem o debate proposto, mesmo desconhecendo o tema em profundidade, ou
tendo contato com esse conceito pela primeira vez. A maioria das pessoas opinaram sobre as
questões relativas aos processos de colonização e decolonialidade, ainda que vinte e três artistas

49
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 2020, p. 127.
50
tenham se sentido inseguros para se manifestar (essas respostas variaram entre “não sei” e “sem
resposta”).
Quantitativamente falando, trinta por cento dessa amostra afirma não se sentir confiante
para responder a essa questão, demonstrando assim que o conceito de pedagogia circense
associado à decolonialidade ainda é algo complexo no debate atual, inclusive para os que
acessam informações nas redes sociais da internet. É necessário, então, que haja novos
encontros, debates, pesquisas e reflexões sobre o tema, ao se pensar em ensino-aprendizagem
do circo. No entanto, apesar da complexidade do questionamento, os outros setenta por cento
conseguiram elaborar alguma reflexão, indicando a necessidade de construção de novas
perspectivas para a formação nas artes circenses.
Muitos artistas escreveram que o circo tem seu berço na tradição europeia e, por isso,
há marcas e padrões colonialistas apontados a partir de determinados elementos destacados: a
branquitude, o virtuosismo e o exibicionismo extremos, o padrão de biotipo corporal
valorizado, a disciplina rígida, o treinamento comparado ao de atletas, a competitividade, o
racismo, o sexismo e o machismo. Todos esses aspectos também foram bastante associados ao
circo de família e às tradições mais antigas de trabalho com animais, exemplo disso é a resposta
da participante O.P.50:

Pra mim o melhor do conceito de contemporâneo é parar de fazer questão do jeito


conservador de ensinar e compartilhar conhecimento das técnicas no circo.
Antigamente só nas famílias se compartilhava os "segredos", não tinha escolas pra
alguém fora das famílias aprender, se fazia uso de animais e de estruturas muito
complexas, até perigosas. (O.P., 26 anos)

Segundo os escritos de Rodrigo Mallet Duprat, “A arte circense tem suas origens na
Antiguidade, nas atividades do entretenimento, nos elementos das festividades sacras e
religiosas e nas apresentações públicas realizadas em praças, ruas, tablados e teatros populares.”
(DUPRAT, 2013, p. 24). Portanto, é preciso destacar que há uma diferença quando se fala de
circo e de artes circenses.
Ainda segundo os escritos da autora Alice Viveiros de Castro (2005), as artes circenses
remontam a tempos muito antigos, ligados ao sagrado e aos mais diversos povos e culturas,
como descrito por Rodrigo Mallet. Segundo a autora Alda Fátima de Souza, em sua tese de
doutorado (2021) foi Charles Hughes quem cunhou o termo circo, pela primeira vez, em seu
picadeiro chamado Royal Circus, fundado por volta de 1795 (SOUZA, 2021). Charles era

50
Optei por abreviar os nomes dos(as) participantes, como já explicitado anteriormente, colocando apenas as
iniciais de seus dois primeiros nomes, com o intuito de preservar suas identidades.
51
membro da trupe do inglês Philip Astley, que é um nome conhecido diante de variadas
bibliografias sobre a historiografia do circo. Essa história que referencia o circo moderno é uma
história recente e tem sua origem difundida em muitos livros. Viveiros de Castro questiona,
inclusive, sobre o conteúdo que se tem acesso nos livros de circo, ao escrever:

No caso da História do circo e dos palhaços nos deparamos com outro fator que
complica ainda mais as coisas: a predominância absoluta de pesquisadores e
historiadores franceses e ingleses, marcando a visão da Europa ocidental,
especialmente da França e Inglaterra, como o ponto de vista básico a partir do qual se
constrói a História do circo.
Sabemos muito sobre Philip Astley, seus cavalos e o picadeiro de 13 metros de
diâmetro, mas o papel dos ciganos, apenas para dar um exemplo incontestável, é quase
ignorado. Os livros de História do circo priorizam a criação da casa de espetáculos -
o espaço também chamado circo – e desprezam os milhares de anos de história das
artes circenses. Foi um inglês quem criou o espetáculo de variedades no picadeiro,
mas para estudar as artes circenses precisamos conhecer e reconhecer a maestria de
chineses, indianos, egípcios, russos, ucranianos, ciganos, astecas e tantos outros povos
considerados exóticos. (CASTRO, 2005, p. 65)

Com isso, é possível entender então que as artes circenses têm sua origem nas mais
variadas culturas expressadas pelos artistas nômades e de rua, denominados saltimbancos, que
se apresentavam nas feiras no final do século XVI (CASTRO, 2005). É impossível negar a
influência de povos diversos, como os que são explicitados na citação da autora, que remete a
povos ainda mais antigos. Mas, o circo que se conhece, mais recentemente, nasce quando se
fecham as apresentações nos picadeiros circulares e se cobram ingressos para adentrar aquele
universo. É através dessa origem, que é europeia, que legitimou o termo “circo moderno”.
A autora Eliene Benício, em seu livro “Saltimbancos urbanos: o circo e a renovação
teatral no Brasil 1980-2000” (2018) rememora as origens do circo desde a Idade Antiga,
começando pela China, passando pelo Egito, a Grécia e Roma, até chegar à Idade
Contemporânea. No início desse breve histórico a autora descreve:

O circo como é conhecido na atualidade deve seu estilo ao inglês Philip Astley,
sargento maior do Regimento dos Dragões que, em Londres, a partir de 1770, passou
a fazer várias exibições de arte equestre e, posteriormente, números com animais
selvagens. A origem do circo, entretanto, remonta aos espetáculos análogos de
animais selvagens, apresentados no Coliseu e nos anfiteatros da Roma antiga,
derivados das exibições de espécimes de animais exóticos, das corridas de carros do
Egito e da Grécia e das diversas formas populares do teatro grego, como o mimo e a
farsa flíaca, e do teatro romano, como as fábulas atelanas. Os chineses, por sua vez,
reivindicam para si a origem do circo como espetáculo completo, incluindo os
saltimbancos e acrobatas. (BENÍCIO, 2018, p. 25)

É a partir desses artistas itinerantes, nomeados saltimbancos, na Idade Média, em que a


história do circo irá se desenrolar, os tendo como inspiração na época do Circo Moderno. Ao
52
se considerar o movimento espiralar do tempo, recordando o conceito dado por Leda Martins
(1997), é através do conceito de nomadismo utilizado pelos saltimbancos, que a partir de 1825
os circos americanos inovaram criando as lonas, ou tendas itinerantes (DUPRAT, 2013):

A partir de 1825, os circos americanos se desenvolvem, em sua maioria, de forma


itinerante. Logo, para suprir necessidades básicas estruturais que a itinerância
pressupõe, desenvolveram muitas inovações, entre elas a lona, também denominada
tenda, que contribuiu para fazer do circo um espetáculo popular (JACOB; LAGE,
2005) e permitiu a formidável independência de se poder montar, desmontar,
transportar e remontar, num ritmo frenético, sempre em busca de uma nova vila ou
cidade, relembrando os saltimbancos e artistas de rua da idade média. (DUPRAT,
2013, p. 25)

Ainda segundo a pesquisa de Alda Fátima de Souza (2021), são os empresários norte-
americanos Phineas Taylor Barnum e James Anthony Bailey, criadores do Barnum & Bailey
Circus que “se atribui a este circo a difusão de uma estrutura circense montável e desmontável,
que no século XX ficará amplamente conhecida como “circo americano” (SOUZA, 2021, p.
31).
Com isso, o circo torna-se comercial e mercadológico, administrado por grandes
empresários, sendo que a partir dos séculos XIX e XX que “o circo se consolidou como gênero
artístico, criando verdadeiras dinastias de famílias circenses por todo o mundo” (DUPRAT,
2013, p. 26).

A quantidade de circos de lona aumentou consideravelmente ao longo do século XIX,


até metade do século XX. Esses circos apresentavam um modo singular de
organização do trabalho, consolidando uma forma de transmissão do saber que era
“familiar, coletiva e oral”. (SILVA; ABREU, 2009)

Essas características diferem a arte circense das demais linguagens artísticas, uma vez
que a formação do ator, do músico ou do dançarino se dava principalmente por meio
de estudos realizados em conservatórios e escolas especializadas. (DUPRAT, 2013,
p. 27)

A partir destas reflexões é necessário pensar então, que o circo, em seu formato mais
recente como é conhecido e difundido, tem sua origem na Europa, porém, as artes circenses,
que são esse conjunto de linguagens variadas apresentadas nas feiras e ruas, pelos artistas
saltimbancos, fazem parte da ancestralidade dos circenses modernos, tendo sua origem nas mais
variadas culturas e povos.
Sendo assim, entendendo as artes circenses como um fenômeno vivo, é importante
ressaltar que há uma dificuldade de precisar uma origem sobre o circo e sobre as artes circenses,
pois, durante anos, a história e seus acontecimentos se intercambiam e se retroalimentam. Logo,
53
buscamos e citamos algumas referências para poder nomear certos acontecimentos, mas
entendemos as artes circenses como um acontecimento milenar, não linear, permeado por
diversas origens e que continuará em constante mudança.
Já no Brasil, de acordo ainda com as pesquisas de Eliene Benício, os grupos de
saltimbancos percorriam os territórios nacionais desde o século XVIII. Porém, é em meados do
século XIX que “grandes companhias circenses do mundo visitaram também a América do Sul,
através de Buenos Aires e do Rio de Janeiro (...). Algumas dessas companhias permaneceram
no Brasil, constituindo aqui as famílias circenses que formariam o circo brasileiro” (BENÍCIO,
2018, p. 68). Em seus escritos, a mesma autora lista nomes de circenses e de famílias numerosas
que aqui chegaram, possível de percebermos a diversidade de artistas advindos do mundo todo,
de locais como: Portugal, Chile, Estados Unidos, Peru, Inglaterra, França, Argentina, Japão,
Itália e Iugoslávia (BENÍCIO, 2018). A historiadora Ermínia Silva também descreve:

Até o final do século XIX, cada circo era constituído por uma família, geralmente
estrangeira. A partir deste período, verifica-se o enraizamento destas famílias no
Brasil, o entrelaçamento de diversas famílias a partir de casamentos, sociedades,
contratações de famílias artistas. Assim como a resultante do enraizamento é uma
nova linguagem, o nascimento de filhos brasileiros com nomes brasileiros, a
interligação e a fixação das famílias resulta, também, em um processo de
socialização/formação/aprendizagem e em uma organização do trabalho, em que os
saberes, práticas e a tradição serão os balizadores da continuidade e manutenção do
circo. (SILVA, 1996 p. 13)

Sendo assim, é a partir desse entrelaçamento de culturas que se forma o circo brasileiro.
Uma história importante de ser investigada e contada, para que não permaneça no imaginário
coletivo apenas a origem europeia das artes circenses. Por isso a necessidade de cada vez mais
haver pesquisas que se dediquem à busca por essas origens diversas, para que haja mais
registros, escritos e livros que sirvam como referenciais para o ensino da historiografia das artes
circenses.
Por outro lado, muitos participantes do Mapeamento destacam aspectos do circo atual,
a partir de uma visão mais inclusiva, que se dá no Circo Social e no próprio circo de rua.
Paradoxalmente ao que fora citado, alguns participantes afirmam que, dentre todas as artes, o
circo sempre foi a de linguagem menos preconceituosa, sendo decolonial por si só: “A prática
circense unifica, promove a mistura de culturas e é universal. O circo traz valores para o
empoderamento das pessoas. Considero que todas as práticas circenses ajudam a quebrar
padrões” (I.N, 41 anos).

54
Ainda nessa linha de pensamento, C.J. também acredita que o circo se apresenta em
perspectivas contra coloniais, já que cada modalidade das artes circenses tem origem em uma
etnia diferente. Contudo, a desvalorização sofrida por essa arte ocorre, segundo ela, porque
vivemos em uma sociedade que não valoriza os saberes práticos:

Acredito que o circo, como prática corporal, carrega essa potência decolonial. Muitas
práticas circenses bebem de fontes das mais variadas etnias, como o chicote, por
exemplo, prática do povo cigano, a acrobacia e o contorcionismo que usam da yoga,
os malabares que têm origem nos povos amarelos e bastão que vem das artes marciais
e é historicamente usado pelos povos havaianos e africanos. O que a gente vive hoje,
muito atrelado ao neoliberalismo, é a colonização dos corpos pela ausência dos
movimentos e hiper valorização do intelecto. O entendimento de que o que/quem faz
trabalho braçal não serve pro trabalho intelectual/mental. Mas enfim, é um papo
longo. (C.J., 31 anos)

Por último, a participante D.A responde de forma semelhante à resposta acima, porém,
abrange as artes em geral: “Acho que a arte já traz um processo decolonial. Porque faz as
pessoas se abrirem a um interior e uma percepção sensório motora. Principalmente na dança,
sobretudo nas danças ancestrais da África e do mediterrâneo” (D.A., 32 anos).
Outros artistas destacam alguns aspectos que aproximariam as artes circenses a uma
metodologia decolonial, sugerindo, assim, propostas de mudanças e o desejo de construir novas
perspectivas, tais como a democratização de escolas de circo com profissionais capacitados
(W.K., 32 anos); apresentações gratuitas em comunidades periféricas (K.J., 23 anos); uma
metodologia de ensino que incorpore a multiplicidade de corpos, gêneros e credos (Y.L., 33
anos) e o reconhecimento das corporalidades populares enquanto potência e saber (L.C., 35
anos). “O ensino de técnicas de circo só se apega a fundamentos decoloniais na medida em que
aceita a multiplicidade de corpos, gêneros, aparências, credos religiosos e diversidade social”
(Y.L., 33 anos).
O participante M.E. recorda que, como as escolas de circo são recentes - já que o circo
advém do ensino pautado na oralidade e na prática passada de geração para geração dentro de
famílias tradicionais -, ainda falta uma profundidade didática em seu ensino-aprendizagem:
“Penso que o circo passou por um processo didático recente, que ainda estamos colhendo os
frutos. Antes os saberes circenses eram mantidos pelas famílias, hoje temos o circo em diversos
locais, mas sem uma profundidade didática” (M.E., 36 anos).
É importante destacar o aparecimento de respostas que dialogam diretamente com a
proposta desta investigação do mapeamento. G.C. afirma que no Brasil há muitas referências
pedagógicas, mas que elas não são exploradas. É possível acrescentar também que elas são

55
muito pouco visibilizadas e difundidas. “Oitenta por cento do que estudei teve base no circo
europeu… quando na verdade aqui no Brasil o que mais temos é referências não exploradas…
como os reisados, nosso terapeuta do riso hotxuá51 etc” (G.C., 38 anos).
A importância de se ter uma metodologia de artes circenses que abrace e valorize as
singularidades de cada pessoa é algo destacado pela artista L.C, que também expressa a
possibilidade de diálogo entre o circo e as práticas ancestrais indígenas e afro-brasileiras:

Acredito que o circo contemporâneo vem para desconstruir algumas técnicas, mas ao
mesmo tempo se baseia na técnica dita tradicional... Também acredito que uma prática
circense que valorize as qualidades de cada pessoa seja o melhor caminho para uma
criação artística genuína e sincera. Entretanto, um preparo físico e técnico específico
do circo é importante e vemos que esse conhecimento milenar vem de diversas partes
do globo. Mas, no Brasil, ele ainda vem muito da Europa, EUA e Rússia. Mas acredito
que temos muito a aprender com a ancestralidade indígena de nosso país e afro-
brasileira, na qual muitas práticas poderiam ser bases para o circo (L.C., 28 anos).

Destaca-se na citação que a participante do mapeamento está atenta para as


contribuições de matrizes afro-brasileiras e indígenas que podem colaborar na elaboração de
pedagogias anticolonialistas. As artes circenses são um conjunto de muitas linguagens e
modalidades artísticas, e trazem uma gama de possibilidades de diferentes investigações e
pesquisas, porém pouco exploradas e difundidas, quando se pensa fora do território europeu.
Pensar que ainda há a reprodução de modelos e formatos de ensino eurocêntricos, que são
moldes trazidos há anos e que, muitas vezes, não condizem com a pluralidade de corpos
existentes no Brasil, é entender a importância da criação de novas metodologias e pesquisas
científicas e/ou práticas para o circo. Tudo isso é importante sem deixar de reverenciar e olhar
para o que veio antes e o que temos em nossa diversidade histórica. É preciso pensar, por
exemplo, o quanto a rítmica e “a pisada do samba de coco nordestino” 52 não seriam ótimas
referências de ensino sobre musicalidade, consciência corporal, trabalho em grupo e identidade
afro-brasileira para os artistas circenses? Ou até mesmo a própria “ginga”, fluência,
direcionamento e jogo da Capoeira Angola não seriam estratégias de fortalecimento do corpo,

51
Sobre o Hotxuá há o primoroso trabalho desenvolvido pela pesquisadora Ana Carolina Fialho de Abreu em sua
tese de doutorado intitulada “HÔXWA E LLAMICHU: jogos cômico-críticos para o ensino de teatro e das
histórias e culturas indígenas” defendido na UFBA no ano de 2019. E o documentário Hotxuá, disponível na
plataforma YouTube, que fala sobre a arte do riso para o povo Krahô de Palmas no Tocantins, que tem a figura do
Hotxuá, um sacerdote do riso, encarregada de distribuir alegria na aldeia. O filme também propõe um lindo e
poético encontro entre esse palhaço sagrado e um palhaço da máscara branca, que tem sua origem na palhaçaria
europeia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LfNar7edeFE. Acesso em 10/07/2022.
52
Samba de Coco é uma manifestação de matrizes africanas e indígenas, muito praticada no nordeste brasileiro.
Há distintos sambas de coco, praticados em diferentes regiões do Brasil. Utiliza-se instrumentos percussivos como
pandeiro, triângulo, ganzá, tambores e há uma forte marcação com os pés em sua dança.
56
em composição na modalidade de acrobacia e de complemento para a investigação de uma
performance circense brasileira? O circo já é uma linguagem plural, no entanto, necessitam-se
de espaços, subsídios e financiamentos para desenvolver pesquisas e trabalhos que difundem as
tantas epistemologias brasileiras e afroameríndias.
No quadro seguinte é possível visualizar uma tabela com todos os elementos
(compilados) sugeridos ou descritos pelos(as) artistas que responderam ao Mapeamento. À
esquerda se destacam aspectos circenses, estéticos, educacionais e sociais, que poderiam ser
associados à colonialidade - versus - características ou tendências associadas à decolonialidade,
que se encontram na coluna da direita:

Quadro 6 - Tabela que apresenta as categorias destacadas como colonialidade versus


decolonialidade.
Colonialidade Decolonialidade

Eurocentrismo, circo tradicional, circo


de família Circo contemporâneo, circo social

Cursos formais, saberes acadêmicos, Circo de rua, saberes


rigidez técnica compartilhados pela experiência,
ocupações

Transmissão violenta do saber Liberdade criativa, autonomia,


autodescoberta, expressão corporal

Virtuosismo, exibicionismo, heroísmo Escolas de circo / ensino fora das


famílias tradicionais

Rigidez na técnica, atletismo, Pluralidade cultural, saberes de


competição vários países

Naturalização da dor Criticar as estruturas

Sexismo, mulheres como partners, Multiplicidade de corpos, gêneros e


machismo, padrão de biotipo credos; mulheres protagonistas

Branquitude, racismo, marginalização da


cultura afro-brasileira Valorização da cultura popular
e regional, cultura local

Falta de subsídio público, ingresso pago, Coletivos, inclusão, apresentação


prática elitista gratuita

Democratização de escolas de circo


Falta de democratização ensino do circo com profissionais capacitados e
e boa estrutura física p/ treinos certificados

57
Rede de apoio de artistas
independentes

Socialização e democratização
da performance

Reconhecimento das
corporalidades
populares enquanto potência e saber

Pesquisa /observação do mundo


Fonte: Elaborado pela autora (2022).

Na tabela pode ser observada a seguinte contraposição: de um lado aparecem o


eurocentrismo, o circo tradicional e o circo de família destacados pelos artistas participantes
como pertencentes à categoria de colonialidade; do outro, aparecem, enquanto categorias
decoloniais, o circo contemporâneo e o Circo Social.
De acordo com as características apresentadas acerca dos cursos formais e dos saberes
acadêmicos, em que a rigidez técnica aparece, estão assinaladas na coluna da esquerda as frases
que afirmam os pensamentos colonialistas. Como contraponto, aparece como decolonial o circo
de rua, os saberes compartilhados por meio das experiências empíricas e as ocupações artísticas.
Depois, como elemento da categoria de colonialidade, há a transmissão tradicional do saber,
que os participantes afirmam ser violenta, em contraponto à liberdade criativa, a autonomia, a
autodescoberta e a expressão corporal como elementos decoloniais.
Importante ressaltar que o quadro 06 foi criado a partir dos dados coletados pelos
respondentes do Mapeamento, onde a pesquisadora apenas compilou as opiniões desses artistas.
Não havendo a intenção de deslegitimar ou “demonizar”, por exemplo, a história e a luta dos
circos tradicionais de família, que são imprescindíveis para a continuidade, preservação e
evolução do circo no Brasil e no mundo. Até porque, essa pesquisa trata a ancestralidade como
um conceito fundamental para o ensino e aprendizado das artes, não teria porque fechar o circo
tradicional dentro de uma tabela, o legitimando apenas dentro do conceito de colonialidade.
De um lado há o virtuosismo, o exibicionismo, o heroísmo, a rigidez na técnica, o
atletismo e a competitividade como aspectos coloniais. Do outro, o ensino das artes circenses
fora das famílias tradicionais, com respaldo na pluralidade cultural e na difusão de saberes
provindos de diferentes países como aspectos decoloniais. Dentro da tabela dos aspectos
colonialistas, está a naturalização da dor, relativa aos processos de disciplinarização de corpos

58
incorporados nas artes circenses, aspecto também evidenciado na questão em que 90% dos
participantes afirmaram já terem se lesionado, como mencionado anteriormente. Em
contraposição, na tabela da direita, é expressa, como um aspecto decolonial, a importância do
olhar crítico do artista circense diante das estruturas impostas.
São elementos que reforçam as categorias de colonialidade no circo: o sexismo, as
mulheres ocupando espaços apenas como partners53, o machismo e o padrão de biotipo. Em
contrapartida, a multiplicidade de corpos, gêneros e credos nas artes circenses, assim como o
protagonismo de mulheres em suas performances são considerados importantes aspectos de
decolonialidade.
Na resposta abaixo é possível perceber alguns padrões de masculinidade tóxica que
ainda existem na prática circense, apesar de estarem em processo de mudança:

A prática circense ainda se apega a muitas tradições tóxicas, como o virtuosismo em


habilidades por exemplo, e que já vem carregado de mais tradição como a machista,
porque só é bom o malabarista, o homem branco. Mulheres ficam com atividades que
mostram seus corpos, e corpos padrões. Isso está em transformação, agora mais do
que nunca. Mas ainda existem aqueles e aquelas que prezam pela permanência da
tradição opressora. (S.M., 32 anos)

Esse importante debate sobre a mulher dentro das artes circenses poderia ocupar uma
outra pesquisa, considerando as muitas reflexões que emergem dessa questão. No entanto, uma
breve discussão é necessária ao acompanhar as tendências feministas contemporâneas
imprescindíveis. É importante observar que o universo circense é atravessado pela questão da
colonialidade inclusive no que diz respeito à questão dos gêneros. Afinal, esse sistema atual
vigente exerce um poder significante em relação a essa estrutura da sociedade capitalista e
patriarcal.

O que se opera no Brasil não é apenas uma discriminação efetiva; em termos de


representações sociais mentais que se reforçam e se reproduzem de diferentes
maneiras, o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes como
vítimas, a considerarem natural o fato de a mulher em geral, e a negra em particular,
desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população
economicamente ativa. No que se refere à discriminação da mulher, que se observem,
por exemplo, as diferenças salariais no exercício de uma função com relação ao
homem, e a aceitação de que “está tudo bem”. (GONZALEZ, 2020, p. 35)

53
No dicionário da língua portuguesa não consta esta palavra, mas sua tradução da língua inglesa seria parceiros
ou parceiras. No circo é muito utilizado o termo partner para nomear as mulheres que acompanham os homens
artistas circenses em seus números, entregando objetos, arrumando o espaço ou, até, integrando a cena, como nos
números antigos de arremessadores de faca.
59
Como apresentado por Gonzalez (2020), ainda há a naturalização desse lugar inferior da
mulher na hierarquia social. E no caso da arte circense, há mudanças em curso, porém, como
verificado nos dados do quadro 06, e conforme mencionado pelo(a)s participantes do
Mapeamento, ainda ocorre a naturalização de papéis associados à mulher, por vezes concebido
como mera acompanhante da cena em que o homem é o grande destaque. A mulher aparece
menos como protagonista, além de sofrer com o processo de imposição de um padrão corporal
perfeito, assumido como magro, branco.
Outro ponto de extrema importância, que não poderia ficar fora dessa reflexão, é o lugar
da mulher negra/preta nas artes circenses. Os próprios dados coletados no mapeamento
apresentam apenas cinco mulheres que se reconhecem como negras, dentro de trinta e oito
respostas de pessoas que se reconhecem no gênero feminino.
Falar da condição da mulher negra, dentro desse sistema permeado de colonialidade, é
entender que há uma superexploração que, muitas vezes, não é reconhecida nem nos
movimentos feministas, como aborda Gonzalez (2020):

É interessante observar, nos textos feministas que tratam da questão das relações de
dominação homem/mulher, da subordinação feminina, de suas tentativas de
conscientização etc., como existe uma espécie de discurso comum com relação às
mulheres das camadas pobres, do subproletariado, dos grupos oprimidos. Em termos
de escritos brasileiros sobre o tema, percebe-se que a mulher negra, as famílias negras
— que constituem a grande maioria dessas camadas — não são caracterizadas como
tais. As categorias utilizadas são exatamente aquelas que neutralizam a questão da
discriminação racial, do confinamento a que a comunidade negra está reduzida. Por
aí se vê o quanto as representações sociais manipuladas pelo racismo cultural também
são internalizadas por um setor, também discriminado, que não se apercebe de que,
no seu próprio discurso, estão presentes os velhos mecanismos do ideal de
branqueamento, do mito da democracia racial. Nesse sentido, o atraso político dos
movimentos feministas brasileiros é flagrante, na medida em que são liderados por
mulheres brancas de classe média. Também aqui se pode perceber a necessidade de
denegação do racismo. (GONZALEZ, 2020, p. 36)

A autora, que escreveu isso no ano de 1989 traz importantes reflexões em relação à
discussão sobre racismo, mas também em relação a gênero, indicando que ainda precisam ser
abertos caminhos a fim de alcançar mais direitos e espaços tanto para as pessoas pobres,
periféricas e negras, quanto para as mulheres e, principalmente, as mulheres negras. Depois
dela, vozes representantes do feminismo negro tem se destacado nacionalmente, como é o caso
de Djamila Ribeiro que discute, em especial, a questão do sexismo associado ao corpo feminino,
como em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?” publicado em 2018. A escritora
mineira Conceição Evaristo, que em seus escritos protagoniza mulheres como símbolo de

60
resistência contra a pobreza e a discriminação, e a própria Leda Maria Martins que recoloca a
mulher no centro da pesquisa.
Essa discussão merece ser destacada nesta dissertação, já que se trata de um estudo sobre
a decolonialidade e a Capoeira Angola. Essa condição de superexploração da mulher negra é
também “um processo de distorção, folclorização e comercialização da cultura negra brasileira”
(GONZALEZ, 2020, p. 37), ao se hiper sexualizar o corpo negro feminino e o transformar ou
em “produto de exportação”, como a figura da mulata, ou no corpo servil da empregada
doméstica. Djamila Ribeiro também traz à tona essa discussão, quando escreve um manifesto
sobre a personagem da Globeleza, que é uma mulher negra, dançando seminua, representando
o carnaval, na emissora Rede Globo. Publicado originalmente na Folha de São Paulo no ano de
2016, a autora escreve sobre a problemática em torno do termo mulata:

Para começar o debate em torno dessa personagem, precisamos identificar o problema


contido no termo “mulata”. Além de ser uma palavra naturalizada pela sociedade
brasileira, é presença cativa no vocabulário dos apresentadores, jornalistas e repórteres
da emissora global. A palavra de origem espanhola vem de “mula” ou “mulo”: aquilo
que é híbrido, originário do cruzamento entre espécies. Mulas são animais nascidos
da reprodução dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. Em outra
acepção, são resultado da cópula do animal considerado nobre (equus caballus) com
o animal tido de segunda classe (equus africanus asinus). Sendo assim, trata-se de uma
palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza, mistura imprópria que não
deveria existir. (RIBEIRO, 2018, p. 93)

Com isso, é possível observar através dos dados coletados e pontuados no quadro 6, que
a discussão sobre decolonialidade está rodeada dessas outras reflexões como o racismo, o
patriarcado e a desigualdade de gêneros, entendendo que cada campo de reflexão necessita de
aprofundamentos específicos porque têm demandas próprias de cada luta, mas, o processo de
decolonização não tem como acontecer se não for atravessado pela desconstrução desses
padrões de preconceitos e opressões.
Assim, continuando com os dados do quadro 6, na coluna da esquerda foram reunidos,
na categoria colonialidade, dizeres expressos pelos participantes que também reforçam a
presença da branquitude, do racismo e da marginalização da cultura afro-brasileira. Do outro
lado, acredita-se que a valorização da cultura popular, regional e local seja parte de uma
metodologia decolonial para o ensino do circo.
A falta de subsídio público, o ingresso pago e o ensino do circo ainda foram apontados
enquanto marcas elitistas da pouca democratização do acesso às escolas e às boas estruturas
para treinos. Tudo isso foi lembrado como elementos colonialistas da atualidade, contrapostos
aos coletivos independentes de artistas, a um ensino de circo mais inclusivo, às apresentações
61
gratuitas e à democratização de escolas de circo com profissionais capacitados, como
apontamentos de ações que abrangem a categoria decolonialidade.
O participante E.M., que se reconhece como negro, fala sobre uma grande dificuldade
que ainda existe em construir metodologias contra colonialistas nas artes circenses:

O circo é uma linguagem extremamente colonializada e as mobilizações que vejo


tentando se afastar disso são muito incipientes e muito poucas a ponto de dificilmente
conseguir criar uma linguagem própria. Mesmo as práticas que buscam fazer recorte
de raça ou gênero ainda se mantém criando um conteúdo colonizado e formas ou
metodologias eurocêntricas [...]. (E.M., 30 anos)

A resposta destacada descreve o quanto os livros e as pesquisas sobre as artes circenses


ainda são eurocêntricos e expressam o racismo estrutural impregnado e reproduzido nas
agências ou empresas contratantes que solicitam artistas circenses com o biotipo europeu:

Acredito no circo sempre contemporâneo à sua época. Vejo muitos materiais de


pesquisa e livros se baseando em uma história eurocêntrica do circo, não vejo como
única verdade, vejo o circo diverso, em minha pesquisa pessoal estudo o circo
brasileiro que bebe em diversas fontes da cultura popular que essa se formou com
influências de outros países da África e da América latina e de povos originários.
Ainda vejo pouco acessível a história da trajetória do circo no Brasil, conhecemos
pouco. Também faço uma problematização da pessoa negra no circo ou melhor a falta
dela em palcos e lugares de destaque onde possamos ver sua beleza, habilidades e
admiração. No mercado de trabalho agências, empresas que trabalham com eventos
muitas vezes solicitam perfil de pessoas brancas com corpos magros. Vejo isso como
um padrão colonial que é preciso quebrar as pessoas simplesmente não
problematizam, elas simplesmente continuam reproduzindo esse padrão racista. (L.O.,
28 anos)

Em conformidade com a resposta acima pontuo, mais uma vez, a importância das
pedagogias das artes circenses discutirem sobre o feminismo negro, por exemplo. De dar
destaque para referenciais teóricos de diversos territórios, que expressam a pluralidade de
contextos e lutas, no desejo de formar artistas e trabalhadores circenses que reconhecem a
imensidão e diversidade que o universo do circo carrega, onde, para além de se identificarem
com essas culturas diversas, possam produzir novos materiais teóricos, construir novas
agências, novas metodologias e processos do ensino-aprendizagem do circo.
Por outro lado, ao abordar a dimensão da interseccionalidade, nesse cruzamento de
questões raciais e sociais, B.A, em sua resposta, por sua vez, observa que o ensino das artes
circenses ainda é muito voltado para a classe média alta, já que existem poucos cursos
profissionalizantes acessíveis no Brasil. A artista também destaca a importância que a união
dos artistas autodidatas e independentes tem na difusão de algumas informações:

62
A arte circense contemporânea (fora das famílias tradicionais circenses) muitas vezes
é elitista, é muito difícil se profissionalizar enquanto artista circense, os cursos são
caros e existem em poucas regiões do Brasil. Que eu saiba o único curso reconhecido
pelo MEC é da escola nacional no RJ. Mas esse curso não dá conta da demanda de
artistas e a maioria de nós se torna autodidata, o que contribui pra marginalização
desses artistas. Ao mesmo tempo os artistas se tornam uma família, uma rede de apoio,
todos ensinam e aprendem juntos, fortalecendo o movimento e tornando mais possível
a difusão de algumas informações. (B.A., 22 anos)

A resposta destacada abaixo, da artista L.C, corrobora diretamente esta pesquisa,


pontuando a importância de uma metodologia contra colonial na formação nas artes circenses
e explicitando que o Circo Social já atua sob essa perspectiva nos lugares em que ele ocupa e
em relação ao público que ele atinge:

Acredito que o Circo Social seja uma abordagem pedagógica que propõe uma
metodologia decolonial enquanto perspectiva libertária e que atua no território,
principalmente nas periferias urbanas. Penso que quando reconhecermos as
corporalidades populares enquanto potência e saber, as estéticas circenses
contemporâneas terão como referência de consciência e preparação corporal matrizes
de movimento das danças populares e da capoeira. É importante que referenciais
decoloniais estejam presentes nos cursos de formação em Circo e também na
Educação Básica. É importante também a criação de um Curso de Licenciatura em
Artes Circenses. A formação continuada de professores circenses é fundamental. O
pensamento decolonial circense precisa cada vez mais estar no ambiente universitário.
(L.C., 35 anos)

Acredito que o pensamento decolonial como um todo necessita invadir os ambientes


universitários, principalmente dentro das universidades públicas, que tem uma política de cotas
recente, que se iniciou em 2012 (ano em que entrei na graduação na UFOP, consegui por conta
das cotas de família de baixa renda e por estudar em escola pública), e atualmente está dando
mais oportunidades para a população negra, indígena, pessoas com deficiência, e de baixa renda
ter acesso ao ensino público. Por termos uma estrutura e fomento de educação pública defasada
(eu como professora de escola pública enxerguei de perto), os estudantes dessas escolas sempre
tiveram menos chances de entrar nas universidades federais, transformando-as em locais
elitistas e com pensamentos e filosofias eurocentradas.
As artes circenses ainda têm pouco espaço dentro dos cursos universitários, como não
há um curso de graduação específico para essa área, o circo é inserido, mais ativamente, dentro
dos cursos de Educação Física e Artes Cênicas, mas também há produções científicas dentro
dos cursos de História, Dança, Antropologia, Sociologia, Psicologia, entre outros. Criar um
curso de graduação em artes circenses, gratuito, seria uma forma de preencher a lacuna de

63
defasagem de pesquisas científicas dentro das artes circenses e proporcionar a formação
continuada desses pesquisadores e trabalhadores do circo.
Algumas respostas destacam também a importância das ocupações artísticas e políticas
e a troca de experiências e saberes entre os artistas de rua como parte de uma decolonialidade
possível e que já acontece atualmente: “Eu sou artista de rua, então aprendi com outros artistas
de rua em ocupações por Argentina, Chile e Brasil... em si a passagem de conhecimento da
maneira que aprendi já é decolonial. Já que são espaços de questionamento do processo
colonizador eurocentrado” (A.K., 24 anos).
G.L. expressa a democratização da performance de rua como uma prática decolonial:

[...] acredito que a socialização e a democratização da performance artística já estejam


na contramão dos processos coloniais, que tanto prezam pelo acesso limitado da arte
às classes abastadas. Nesse sentido acredito que as manifestações de rua sejam um
bom caminho para se pensar práticas desgarradas dessa lógica imperialista e de
consumo. (G.L., 22 anos)

Por fim, o artista I.B. afirma que a experiência de ir para as ruas e para a estrada
democratizando a arte é um modelo metodológico decolonial, diferente dos moldes que impõem
padrões de qualidade aos trabalhos artísticos, criando a necessidade de que os artistas se
enquadrem para serem valorizados:

Sou da seguinte opinião, a arte circense, principalmente o malabarismo, ela se


aproxima desse modelo metodológico quando ela sai debaixo das lonas, de quatro
paredes e teatros e começa a ocupar a rua, a comunidade, a estrada, através do
experimento pessoal de cada artista e se afasta quando os modelos de apresentações
ditam se o artista é bom o suficiente para estar em um grande palco, acabando a
valorização de artistas que não se sujeitam a esse modelo (editais). (I.B., 24 anos)

Nesta questão aparece, principalmente, o ensino formal das artes circenses como algo
colonialista, por ainda não ser tão acessível e por reproduzir padrões tradicionais em seu ensino.
Já as manifestações e artes de rua aparecem como decoloniais. No entanto, mesmo o circo de
rua não está totalmente livre de alguns padrões que reforçam aspectos da colonialidade, como
descrito pela artista J.C. “Pra mim se afasta por eu ser autodidata. Se aproxima no machismo
que ainda é muito forte” (J.C., 32 anos). Segundo A.M., palhaça e artista de rua, a arte de rua
se aproxima de uma metodologia decolonial, mas não quando difunde referências eurocêntricas
e preconceituosas: “Se aproxima quando pensamos na arte de rua, por exemplo, que
democratiza o acesso, mas se afasta quando traz referências ainda muito europeias, machistas,
sexistas, racistas etc” (A.M., 32 anos). É possível observar que essas categorias destacadas pelos

64
participantes se cruzam e se transformam em um paradoxo, mostrando que há padrões
colonialistas tanto no circo tradicional de família, quanto no circo contemporâneo e de rua.
Estar em contato com artistas de rua, conviver dentro das ocupações artísticas, ocupar
as praças com treinos ou apresentações de circo promovendo o acesso a arte de forma gratuita
e ter a experiência de se apresentar nos semáforos, por exemplo, tudo isso, para mim, não
deixam de ser experiências de formação e que eu nomeio como “escolas”. A arte de rua é uma
grande escola! Acredito, inclusive, que essas experiências deveriam fazer parte das
metodologias do ensino de circo dentro das escolas formais, promovendo rodas de conversa
sobre arte de rua, sobre as políticas públicas ou falta delas para este tipo de arte, convidar artistas
itinerantes para compartilharem suas experiências, fazer visitas nas ocupações artísticas,
promover aulas em espaços abertos e praças públicas e produzir espetáculos e cenas para serem
apresentadas nas ruas explicitando a importância e ancestralidade que existe em passar o chapéu
no final das apresentações.
É importante entendermos que nenhuma forma de fazer e produzir circo anula a outra,
pelo contrário. Não podemos esquecer da origem das artes circenses, que nasceram nas ruas e
feiras, assim como não podemos negar a importância que tem as escolas de circo e as pesquisas
que estão inseridas, como forma de resistência, dentro dos cursos universitários. Eu como
professora da rede pública de ensino, assim como estudante de projeto de Circo Social e escola
técnica de circo e, também, como artista de rua, que sobrevivo da minha arte, entendo na pele,
a marginalização que o circo sofre no geral.
Ser artista de rua não é fácil. Viver da arte de rua é um desafio que necessita ser melhor
atendido pelas políticas públicas e que as escolas de circo poderiam auxiliar nesse processo.
Acredito que deveria haver editais e fomentos específicos, tanto para produções artísticas de
rua, quanto para formação dos artistas de rua, como uma forma de contribuição para melhor
qualidade de vida para esses artistas que tanto contribuem para a sociedade, percorrendo todos
os cantos do mundo, chegando a lugares que o próprio Estado não chega e democratizando o
acesso à arte.
Sendo assim, de fato, ser artista de rua e democratizar o acesso à arte pode ser um
processo de decolonização do circo e promove ações e reflexões que podem ser importantes
para o ensino das artes circenses dentro das escolas formais. Entender que há riscos que esses
artistas circenses de rua sofrem que são diferentes dos riscos que os artistas de lona ou palco
enfrentam, mas isso não quer dizer que seja pior ou melhor. Todos nós, artistas, sofremos com
a precarização da arte no Brasil e com os paradigmas da colonialidade que ainda estão inseridos

65
nesse sistema, e é neste risco que nos une que sigo refletindo o quanto esses padrões da
colonialidade, essa falta de fomento adequado prejudica nossa vida e saúde. Contudo, na
questão de número 19, a discussão proposta para a reflexão foi a seguinte:

Diante da minha experiência profissional e pessoal de buscar, na ancestralidade afro-


brasileira, uma base e um estar no mundo que fizesse mais sentido para o meu coração
e para o meu corpo - que tem como princípios o bem estar e a harmonização consigo,
com as outras pessoas e com a natureza - e, pensando que esse atual sistema capitalista
de consumo é fruto de um contexto histórico do sistema colonialista de escravização
de corpos humanos, fica claro, para mim, que a pedagogia de ensino das artes
circenses ainda reproduz conceitos que violentam os corpos de seus artistas e
praticantes. Assim, eu te pergunto: o quanto esses possíveis paradigmas colonialistas,
inseridos na pedagogia do circo, são prejudiciais para a vida e saúde do artista
circense, na sua percepção? (Elaborado pela autora, 2022)

Essa questão é uma das mais extensas e complexas de todo o formulário. Nela, as
respostas se dividem quantitativamente em: vinte participantes concordam com a colocação;
dezesseis artistas não responderam, deixando o campo sem preenchimento; duas pessoas
discordaram; três declararam que não sabiam o que responder; seis responderam parcialmente
à questão e outras vinte pessoas falaram de outros temas “fugindo” do assunto. De fato, a
pergunta ficou muito ampla, com pouca objetividade, dando margem para inúmeras respostas
e colocações que também demonstram as opiniões dos artistas.
A participante M.F. expressa, nessa questão, uma crença existente no circo muito ligada
ao formato de sociedade inserido no sistema capitalista de produção: “Muito. Pois muitos
acreditam que para ser um artista circense tem que ir além dos limites humanos, desafiar seu
ser. Ser um número humano. Forçar seu corpo ao extremo” (M.F., 30 anos). Resposta muito
parecida com a de T.O., abrangendo elementos de virtuosismo, rigidez e excelência pontuados
na questão anterior: “Podem ser bem prejudiciais, pois o artista circense também é pressionado
a dar conta do que faz de qualquer maneira, não pode falhar, tem que se mostrar perfeito” (T.O,
34 anos).
F.P. também escreve sobre a exigência de excelência no ofício circense e pontua que
isso não atinge apenas o físico, com a naturalização da lesão, mas também o psicológico:

Muito. Pois estamos sempre suscetíveis a isso, e em diversos lugares; e quando


questionado, é porque "somos moles" " não somos bons o suficiente", isso tudo
levando a questões psicológicas também, por uma normalização do lesionamento para
que nos adequarmos a um espaço. (F.P., 30 anos)

O artista C.A. discorre sobre alguns padrões ainda reproduzidos na palhaçaria que
precisam ser revistos e modificados:
66
[...] pensando sobre a palhaçaria... tem muita coisa preconceituosa que deve ser
revisada, números clássicos, normalmente trazer a mulher como um ser a ser
cobiçado, quando toma susto ou está com medo "imitam" oq eles acham que é o gay
ou o feminino. Já os negros são vistos como servos, e os brancos os espertos, bons.
Os negros sempre vêm caracterizados e muito exagerado, tendo as mulheres descritas
como a Nega maluca, seios fartos, bocão, cabelão, bundão. Todas essas questões de
preconceitos e mais outras devem ser revisadas, discutidas, transformadas ou banidas.
(C.A., 34 anos)

As duas próximas respostas destacadas abaixo, foram as que mais se aproximaram e


alcançaram o cerne da questão proposta. O artista G.A. apresenta sua visão acerca das
consequências geradas nos artistas circenses, em seus corpos e suas mentes, pelo contato com
os padrões colonialistas no ensino e nas práticas artísticas:

Acredito que seja prejudicial a um nível extremo de estresse, de baixa autoestima, de


desconexão com seu próprio corpo, ao ponto de desacreditar de si mesmo, gerando
um lugar de opressão muito grande. Essa pedagogia tradicional e colonialista, exclui
corpas54, gêneros, indivíduos e individualidades, reforça o corpo e a estética padrão,
eurocêntrica, muitas vezes gordofobia etc. Essa pedagogia voltada para as opressões
bloqueia a criatividade e a capacidade do artista superar suas próprias expectativas,
dentro do que ele acreditava impossível. Da forma como é empregado esse ensino,
antes mesmo do artista se superar ele já desistiu ou se lesionou ou acabou virando
professor, que é o meu caso que me afastei dos picadeiros, mas não abandonei minhas
práticas, estudos e pesquisas. (G.A., 32 anos)

A artista L.C., por sua vez, apresenta um possível primeiro passo para o
desenvolvimento de metodologias decoloniais:

São prejudiciais para a compreensão de uma corporeidade autoral. O pensamento


colonialista estabelece um treinamento físico que não respeita o aprendizado corporal,
padroniza e cria uma mentalidade de competição. É importante estabelecer espaços
de aprendizado onde a alteridade seja uma premissa. O Circo é diversidade e não
massificação e objetificação humanas. Se libertar de práticas utilitaristas é um
primeiro passo para desenvolvermos metodologias de ensino decoloniais. (L.C., 35
anos)

Contudo, podemos encontrar padrões de colonialidade no ensino e na prática do circo


quando a pedagogia segue um pensamento do corpo utilitário e servil, sem respeito com os
tempos e processos de aprendizagens necessários à saúde e vitalidade do corpo, pautados em
uma rigidez e competitividade que ultrapassa limites, e que mesmo a longo prazo, pode causar
lesões. Logo, uma educação decolonial seria aquela pensada em um processo crescente de
aprendizado, que entende a necessidade de partir de um princípio básico, com educativos

54
Este termo “corpas” está sendo usado, atualmente, para se referir às pessoas que se identificam com o gênero
feminino.
67
específicos, através de metodologias plurais que se adaptem e respeitem os variados corpos que
se encontram no universo das escolas de circo. Isso é pensar sobre a cultura de segurança no
circo, entender quais campos precisam ser ajustados, desde o ambiente seguro e equipado para
as práticas, até seu método de ensino, para que esse corpo circense esteja acolhido, em
segurança e sofra menos impactos em sua prática.
A última questão qualitativa55, a de número 20, foi a seguinte: “Você acha que é possível
desenvolver uma metodologia para a preparação técnica do artista circense que desconstrua
esses paradigmas colonialistas?”.
Como parte dos princípios de uma metodologia que não reforçam os padrões da
colonialidade, as pessoas afirmam que é preciso superar a tradição europeia focando nas
práticas de autocuidado. Mencionam também a importância de se estabelecer conexões na
prática circense com outras culturas originárias, com uma abordagem própria do Brasil e da
América Latina. Apontam ainda a importância da mudança desse paradigma colonialista. Além
disso, a artista L.C. fala da significância da união dos artistas circenses e do trabalho em rede
com práticas libertárias.
Apesar da maioria concordar com a importância da criação de uma metodologia
decolonial, também há pessoas que acreditam que é possível desenvolver uma metodologia
decolonial, porém, isso não seria o mais importante neste momento, e sim entender a dificuldade
que existe em difundir métodos que atravessam os paradigmas colonialistas, e que é necessário
lutar por melhores condições de trabalho, de espaço e de tecnologias para as artes circenses
(J.B., 30 anos).
Outras respostas que discordam da questão colocada afirmam que o circo está além de
qualquer preconceito (P.H., 46 anos), e que não precisa de movimentos raciais ou filosóficos
que polarizem os artistas (W.K., 32 anos). Por fim, a participante I.A. acredita que “tudo está
em constante movimento e colocar isso em uma metodologia só nos fecharia em outra caixa”
(I.A., 24 anos).
Acredito ser importante expor na pesquisa essas opiniões divergentes, mesmo não
concordando com tais colocações. Entender o processo de decolonização apenas como um
movimento racial ou filosófico, como colocado pelo participante acima, demonstra
desconhecimento sobre o assunto, até porque, o que essa pesquisa compreende é que
descolonizar as referências, para nós, brasileiros e latinos, é uma ação que nos aproxima e não

55
As outras três questões abertas são apenas para pedir o contato dos artistas e sugestões e críticas ao formulário.

68
nos afasta, e que cabe para todas as pessoas, independentemente da cor da pele, porque todos
sofremos com isso, em maior ou menor grau, como descrito ao longo deste texto.
Os dados coletados, no geral, demonstram a importância de se pensar e elaborar novas
perspectivas e pedagogias para o ensino das artes circenses que desconstruam conceitos e
fundamentos preconceituosos e limitantes. Muitos artistas que responderam ao Mapeamento
expressam e concordam que muitos dos aspectos colonialistas provêm do circo tradicional de
família. No entanto, é importante refletir que a maioria desses artistas acreditam que é porque
essa tradição provém de uma cultura europeia. E nas pesquisas feitas através das referências
bibliográficas foi possível perceber a pluralidade de lugares e origens que as artes circenses são
compostas, se transformando em uma grande rede de intercâmbio cultural. Com isso, percebe-
se o desconhecimento da maioria dos artistas que responsabilizam apenas o circo tradicional de
família pelos aspectos colonialistas ainda presentes.
As artes circenses como um fenômeno vivo se transformaram a cada dia, assim é
importante olharmos para trás com respeito e reconhecermos as tradições, para que, no presente,
possamos escolher os aspectos que ainda devem ser reproduzidos e utilizados como inspiração
para novos fazeres educacionais, ao abandonar conceitos e fundamentos que são contrários à
diversidade e que não cabem mais na educação circense contemporânea.

1.2.2 Sobre o Circo Social no Brasil

Neste subcapítulo é apresentado um curto relato sobre o surgimento do Circo Social no


Brasil e seus aspectos políticos e pedagógicos. Nos escritos acima, em diálogo com as respostas
dos participantes do Mapeamento, se contextualizou as diversas origens das artes circenses, o
surgimento do Circo Moderno, como a memória mais viva ainda ativa no imaginário coletivo,
e a origem do circo no Brasil com a formação das famílias tradicionais.
Parece, então, que o ensino dentro das famílias circenses, como processo formativo, era
algo muito aprofundado porque essa formação englobava todo um estilo de vida, e não apenas
disciplinas e conteúdos relacionados com as modalidades circenses, como é o acesso que se tem
atualmente nas escolas de circo. No entanto, esse ensino voltado para um público amplo, que
não são mais aquelas pessoas que conviviam diariamente no âmbito da relação familiar é algo
recente, iniciado entre os anos de 1970 e 1980. A partir da fala do participante M.E, no final da
página 51 desta dissertação, pode-se pensar, então, nas lacunas em relação ao processo

69
pedagógico de ensino, tão recente, ao se modificar o processo formativo que acontecia dentro
dos núcleos familiares para esse novo conceito de escola, que começa a abranger também as
artes circenses.

Ao longo dos séculos, a formação do artista circense se ancorou na transmissão oral


dos conhecimentos, ensinando de modo “total”, em alusão a Marcel Mauss (1974),
todos os afazeres de uma profissão, de um modo de produção artístico, e mais: de um
modo de vida. Ou seja, uma organização acolhida e protegida no interior da família
circense. Nesse sistema, a formação técnica, artística e profissional dos circenses
acontecia paralelamente a sua educação cidadã, muitas vezes de modo compartilhado
e com a participação de diferentes sujeitos, como melhor explica Silva e Abreu (2009).
Contudo, ao longo do século XX um novo movimento surge, modificando o processo
de ensino/aprendizagem do profissional circense. Embora paulatino, tal processo se
deu a partir da década de 1970, quando se observa uma maior abertura dos
conhecimentos e dos saberes circenses, até então um patrimônio construído ao longo
de séculos e destinado majoritariamente àqueles que viviam o circo diariamente.
(DUPRAT, 2013, p. 01)

Sendo assim, é nas décadas de 1970 e 1980 que acontece o advento das escolas de circo
no Brasil. Segundo a historiadora Ermínia Silva, entre 1940 e 1950 começa a haver uma ruptura
na transmissão desses saberes que eram passados de geração em geração dentro das famílias
circenses. Isso acontece “como consequência de atuação de elementos externos – e apenas
externos – desorganizadores do modo de ser do circo. Para a bibliografia, os meios de
comunicação de massa, em geral, “invadiram” e “destruíram” o circo. Entre os circenses, é
quase unânime a declaração de que é o surgimento da televisão um dos principais responsáveis
por este processo [...]” (SILVA, 1996, p. 146). A partir disso, os antigos circenses começaram
a querer, e fazer com que seus filhos(as) e familiares fixassem residência e estudassem nas
escolas regulares de ensino, seguindo outras profissões que não as de artistas de circo,
rompendo assim com suas tradições.
Segundo as pesquisas de Duprat, a primeira escola especializada de circo no mundo foi
fundada na Rússia, no ano de 1927, e seu modelo influenciou outras escolas como a de Berlim,
no ano de 1951, as escolas francesas e outras (DUPRAT, 2013). No Brasil, a Academia Piolin
de Artes Circenses é a primeira escola inaugurada e foi uma iniciativa dos próprios circenses
junto a Secretaria de Estado dos Negócios da Cultura, Ciência e Tecnologia da cidade de São
Paulo, no ano de 1978. Essa escola foi reconhecida como a primeira escola brasileira e latino-
americana destinada ao ensino das artes circenses (DUPRAT, 2013).
De acordo com o mapeamento mais recente realizado sobre a quantidade de escolas de
circo em funcionamento no Brasil, feito a partir da pesquisa da autora Mônica Lua Barreto e
publicada pela Revista Urdimento (v. 3, n. 42, dez. 2021), juntamente com os autores Rodrigo

70
Mallet Duprat e Marco Antônio Coelho Bortoleto, há um total de 293 espaços formativos ativos.
Divididos pelas regiões do Brasil, 168 desses espaços estão localizados na região Sudeste, 55
na região Sul, 32 na região Centro-Oeste, 24 no Nordeste e 14 na região Norte. A predominância
é de espaços formativos que ofertam cursos livres de artes circenses, que a partir deste último
mapeamento são o total de 70 espaços, seguidos por locais que oferecem atividades recreativas
em circo, sendo 45 no total, em terceiro lugar estão os projetos de Circo Social, com 41 espaços
formativos, seguido da formação continuada, com 25 espaços. Os autores ainda descrevem que
18 desses locais oferecem formação profissional e, por último, em uma categoria denominada
outros, um total de 24 espaços formativos.56
Apesar da Academia Piolin de Artes Circenses ter encerrado suas atividades no ano de
1983, por falta de interesse, amparo e aporte financeiro do governo, será a partir dela que
surgirão diversos artistas e companhias de circo e de teatro que terão um importante papel para
a continuidade da história das artes circenses. São esses artistas formados pela Academia Piolin
de Artes Circenses que irão seguir carreira e pesquisa em circo, e alguns de seus participantes
entrarão para a Escola Nacional de Circo (ENC), fundada no Rio de Janeiro no ano de 1982,
sendo a primeira escola de circo com suporte do Governo Federal e em funcionamento até hoje.
É a partir da Academia Piolin de Artes Circenses que nasce o grupo “Tapete Mágico”, em 1980,
na cidade de São Paulo, que futuramente, no ano de 1985, fundaram a Escola Picolino de Artes
Circenses na cidade de Salvador, no estado da Bahia (GALLO, 2009). E também, através da
formação da Academia Piolin e da Escola Nacional de Circo que nasce a Intrépida Trupe, no
Rio de Janeiro (DUPRAT, 2013), que serão importantes instituições para o desenvolvimento
do Circo Social no Brasil.
Segundo as pesquisas de Fábio Dal Gallo (2009), a Escola Picolino de Artes Circenses
foi uma das precursoras do Circo Social, pois, no ano de 1989, começaram algumas parcerias
com o juizado de menores da cidade de Salvador e iniciaram oficinas de artes circenses para
crianças e adolescentes que estavam em liberdade vigiada ou que já tinham sido presos. Foi a
partir destas primeiras parcerias que a Escola Picolino começou a desenvolver projetos sociais
que ofereciam cursos de técnicas circenses junto a outras atividades complementares, como
descreve Fábio Dal Gallo:

56
Importante ressaltar que o texto publicado salienta: “o questionário disponibilizou seis opções de resposta, a
saber: Formação profissional; Circo social; Curso livre; Atividade recreativa; Formação continuada; e outros. Os
respondentes puderam escolher mais de uma alternativa, considerando que cada espaço formativo
(estabelecimento) pode oferecer diferentes cursos. O formulário não ofereceu nenhum tipo de conceituação ou
explicação a respeito do que seria considerado uma ou outra categoria, portanto, as respostas refletem o que cada
instituição considera como o objetivo de sua formação” (BARRETO; BORTOLETO; DUPRAT, 2021, p. 16).

71
Essas atividades complementares comportaram cursos em outras áreas, tais como
dança, teatro, música, sendo exploradas, principalmente, as técnicas ligadas às
matrizes culturais que estavam relacionadas ao contexto dos alunos, como dança afro,
capoeira, percussão, sendo posteriormente desenvolvidas as seguintes atividades:
carpintaria, construção de instrumentos circenses e atividades pedagógicas, tais como
oficinas de leituras compartilhadas ou individuais por meio de livros, além de jogos,
brincadeiras e práticas de esportes, a realização de estudos sobre a história do circo no
mundo e no Brasil e a organização de cursos de produção artística, edição de material
de vídeo, fotografia, até cursos de inglês, espanhol, inclusão digital e cursos de
construção de brinquedos com materiais recicláveis. (GALLO, 2009, p. 74)

Sendo assim, a partir dos anos de 1990 a Escola Picolino começa a sistematizar o
trabalho com o atendimento social e criar projetos de longa duração, como o Projeto Axé. Com
o sucesso do projeto, no ano de 1997 a Escola Picolino funda a Associação Picolino de Artes
do Circo, que “Trata-se de uma Instituição de assistência social, educacional e cultural com
personalidade jurídica de direito privado, sob a forma de sociedade civil, sem fins lucrativos,
que se dedica a um trabalho para o desenvolvimento infantil e juvenil através da arte-educação”
(GALLO, 2009, p. 76). Transformando-se em uma das principais instituições fundadoras do
conceito de Circo Social, assim como a Intrépida Trupe.
Segundo a autora Eliene Benício (2018), a Intrépida Trupe57 começou suas atividades
em junho do ano de 1986 quando doze alunos da Escola Nacional de Circo são convidados para
participarem de um evento realizado pelo Circo Voador, em paralelo com a Copa do Mundo de
Futebol que aconteceu no México. “Os doze alunos escolhidos formaram o núcleo inicial do
grupo Intrépida Trupe, que desde essa época desenvolve pesquisas em arte circense, mesclando
técnicas teatrais e de danças” (BENÍCIO, 2018, p. 266). Após mais de 30 anos de existência, o
coletivo se mantém ativo ministrando aulas e produzindo eventos culturais sediados na
Fundição Progresso, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro. É importante mencionar
a origem da Intrépida Trupe pois fazem parte do surgimento do Circo Social no Brasil que será
descrito a seguir.
No começo dos anos 1990 surgem no Brasil diversas Organizações não governamentais
(ONGS) e Associações Sem Fins Lucrativos (FASFILs) dedicadas à promoção de projetos
sociais que atendam crianças e jovens moradores de rua e em situação de risco social. O autor
Fábio Dal Gallo (2009), em sua tese de doutorado, descreve:

Essas associações começaram a atuar direcionando-se principalmente para crianças e


adolescentes que moravam na rua, buscando desenvolver atividades lúdicas,

57
Saiba mais em https://www.fundicaoprogresso.com.br/Multicultural/Intrepida e também na página do Instagram
https://www.instagram.com/intrepidatrupe/ - Acesso em 29/04/2023.

72
esportivas e, principalmente, artísticas, como um instrumento para consolidar práticas
pedagógicas, com o objetivo de educá-los e incentivá-los à procura de alternativas de
vida. Seguindo essa perspectiva, em 1991, foi fundada na Cidade do Rio de Janeiro a
“Se Essa Rua Fosse Minha” (Ser), uma associação que, propondo uma ação direta,
visou à sensibilização da sociedade e do poder público sobre a situação das crianças
de rua. Esse projeto, que se concretizou por meio de uma ação de organizações não-
governamentais, propôs, em 1992, atividades a serem desenvolvidas na rua através de
um Núcleo de Abordagem na Rua (NAR). Na busca de elementos que fizessem parte
do cotidiano dos atendidos e pudessem interessá-los, estimulando-os a frequentar as
unidades de atendimentos, a serem instituídas, foram organizadas diversas oficinas,
dando amplo espaço às várias linguagens artísticas. (GALLO, 2009, p. 22)

Com o surgimento da associação Ser como descrito pelo autor acima, e com o intuito de
proporcionar oficinas de artes circenses para essas crianças e jovens atendidas pelo projeto,
convidou-se a Intrépida Trupe, que já era uma companhia de referência do circo
contemporâneo, para ministrar essas oficinas (GALLO, 2009). Sendo assim,

A profunda ligação constituída entre os sujeitos atendidos pelo Ser e o mundo do


circo, e os resultados obtidos com as oficinas circenses efetuadas pela Intrépida Trupe,
levaram ao surgimento do termo “Circo Social”, utilizado para indicar o fenômeno no
qual são utilizadas as disciplinas circenses como instrumento de educação, formação
e ação social. (GALLO, 2009, p. 23)

A partir disso, ressalta-se que foi no Brasil que começou a ser pensado e desenvolvido
o Circo Social, que ainda se encontra em expansão no âmbito internacional, com “uma
divulgação global por meio do programa Cirque du Monde, desenvolvido pelo Cirque du Soleil,
sendo atualmente, no Brasil, a ‘Rede Circo do Mundo-Brasil’58 a máxima referência” (GALLO,
2009, p. 224). Ainda segundo Fábio Dal Gallo, é importante destacar: “Por Circo Social,
entende-se a prática na qual existe a utilização das artes circenses como meio de educação,
formação e inclusão social, sendo ele atualmente desenvolvido principalmente por associações
de utilidade social e organizações não-governamentais” (GALLO, 2009, p. 17).
A proposta pedagógica do Circo Social, segundo algumas autoras como Cristina Alves
Macedo (2011) e Inambê Sales Fontenele (2017) é pautada na pedagogia popular pensada pelo
teórico e educador pernambucano Paulo Freire, que escreve sobre o poder da educação em
pensar e agir em relação à liberdade da opressão e ao desenvolvimento de uma subjetividade
das pessoas oprimidas que fortaleça um pensamento crítico diante do sistema opressor,

58
A Rede Circo do Mundo Brasil, criada em outubro de 2000, nasce da confluência de diferentes intervenções
reunindo inicialmente seis organizações de quatro estado brasileiros que pactuavam os mesmos pressupostos:
Escola Pernambucana de Circo, Aricirco, Acende/Acess, Grupo Cultural Afro Reggae, Se Essa Rua Fosse Minha
e FASE, da relação de parceria já estabelecida entre estas organizações e uma organização não governamental
canadense do plano local e internacional, Jeunesse du Monde e da parceria com uma empresa artística do Québec,
o Cirque du Soleil. Fonte: http://www.redecircodomundo.org.br/ - Acesso em 29/04/2023.

73
devolvendo-lhes a própria autonomia. A autora Macedo descreve como o pensamento de Paulo
Freire é aplicado no Circo Social:

Freire (1987) ao se referir à liberdade da opressão indica a necessidade de uma


pedagogia que possa proporcionar situações que levem o sujeito a libertar-se de sua
condição de oprimido e que contribua para a sua emancipação. Mas, como sinalizado
pelo próprio Freire (1987), para poder libertar-se, o sujeito precisa querer lutar para
libertar-se e isso só acontece quando ele consegue compreender a sua indigência e
rebelar-se contra ela. Dito isto, é interessante evidenciar que os seres humanos, como
sujeitos sociais, precisam conhecer a si e ao seu próprio contexto para poder fazer uma
leitura consciente desse universo; assim, o Circo Social, utilizando a arte como
elemento mediador, busca inserir o sujeito na ação socioeducativa criando situações
que o levem a compreender a sua realidade e sirvam de estímulo para que este venha
a transformá-la. (MACEDO, 2011, p. 02)

A partir disso, pode-se pensar que o Circo Social desenvolve suas atividades com o
objetivo de não apenas fortalecer e aprimorar a expressividade corporal e ensinar as técnicas
provindas das artes circenses, mas, através do trabalho corporal, preocupar-se em ensinar o
educando sobre seus direitos como cidadão, preparando-os para se relacionar coletivamente e
desenvolver a subjetividade própria, dentro da liberdade de ser e estar no mundo (MACEDO,
2011).
Portanto, o ensino-aprendizagem do Circo Social preocupa-se em oportunizar, a essas
crianças e jovens atendidas, o afastamento das consequências e marcas geradas pela pobreza e
pela violência (CASSOLI; LOBO, 2006). Através desses aspectos e objetivos grafados, os
projetos do Circo Social difundem um pensamento crítico e contra colonial, na esperança de
formar cidadãos autônomos e despertos para a construção de uma subjetividade que não esteja
manipulada pelo sistema vigente disciplinador.
Diante das pesquisas realizadas com o intuito de encontrar algum diálogo ou proposta
pensada entre o Circo Social e a Capoeira Angola, encontra-se nos escritos tanto do autor Fábio
Dal Gallo, como já descrito acima, quando menciona a capoeira como umas das atividades
complementares que a Escola Picolino oferecia, e da autora Inambê Sales Fontenele (2017) uma
pista sobre a possibilidade de o Circo Social ter sido fundamentado com base nos saberes
ancestrais da capoeira. Fontenele nos revela isso a partir de uma entrevista feita por Trindade59
com César Marques (o educador responsável pela criação do projeto ‘Se Essa Rua Fosse Minha’
– SER) “quando viabilizou intervenções educacionais ao estabelecer parcerias, diálogos e

59
TRINDADE, Bóris Júnior. Circo Social no Brasil. Catálogo Nacional de incentivo da Funcultura. Rio de Janeiro,
2009.

74
atividades educacionais que fundamentaram e sistematizaram estas ações e reflexões
pedagógicas” (FONTENELE, 2017):

Desde o início do trabalho do SER, a ideia era desenvolver metodologias onde o


lúdico fosse um elemento aglutinador. A proposta pedagógica sempre esteve ancorada
em uma leitura que entende a criança e o adolescente na sua potência criadora,
cerceada pelas condições sociais às quais são expostas. [...]. Nesta perspectiva, os
sentidos circenses de educação popular, ou o que passamos a chamar de circo social,
começam a ser desenhados com base nos saberes corporais que estes meninos e
meninas aprenderam no universo ludocircense da capoeira e nos saberes ancestrais,
com os quais resgatavam nas rodas os valores de circularidades da expropriada
vivência de territorialidade africana. Esta abordagem circense mantinha o rigor
técnico e o encantamento que inspiraram muitas histórias de fugas atrás das caravanas,
mas se apresentava como um circo (círculo) de retornos, reencontros, e fortalecimento
do binômio corporeidade/identidades na perspectiva de reencantamento das ‘infâncias
perdidas’ nos desertos da cidade. (MARQUES, (trecho de entrevista) apud
TRINDADE, 2009, p. 19) (FONTENELE, 2017, p. 37)

Diante das outras referências encontradas sobre a pesquisa em Circo Social, não se
encontra mais nada sobre essa possível fundamentação do conceito de Circo Social mediante a
capoeira. No entanto, o que essa citação nos revela é que parece que o projeto SER já trabalhava
com a capoeira como atividade lúdica para as crianças e jovens atendidas pelo projeto e, quando
as atividades circenses foram inseridas no projeto, tiveram a capoeira e seus fundamentos como
suporte para a elaboração e o desenho da educação popular que fundamenta o nascimento do
Circo Social.
Portanto, através das bibliografias encontradas e citadas nesta dissertação, percebe-se
que o conceito pedagógico do Circo Social tem conformidades e aproximações com a prática
da capoeira e que caminha junto com outras práticas e atividades formativas em paralelo ao
trabalho com a pedagogia e a psicologia. Sabe-se que atualmente alguns locais de formação em
circo, principalmente os de curso livre e projetos de Circo Social também disponibilizam aulas
de capoeira60. Fazendo com que essas linguagens sejam trabalhadas e desenvolvidas em
paralelo.
No entanto, não foi encontrado nenhuma referência de local que trabalha os
fundamentos da Capoeira Angola inseridos dentro da metodologia de ensino das artes circenses,
onde as atividades circenses são elaboradas com base nos conceitos decoloniais provindos da

60
A título de citação de alguns projetos: Circo Os Kaco, sediado em Taquaruçu/TO, trabalham com aulas de circo
gratuitas para crianças e jovens da comunidade e também com aulas de Capoeira Angola -
https://www.oskaco.com.br/copia-o-circo - Acesso em 30/04/2023. Na própria região de Minas Gerais, na cidade
de Ouro Preto, até o ano de 2020 aconteciam aulas regulares de Capoeira Angola, pelo projeto Ginga Circense
promovidas pelo Grupo Iuna em parceria com a Universidade Federal de Ouro Preto e o projeto Circo da Gente,
da Organização Cultural Ambiental (OCA) - https://www.ocaouropreto.org.br/ - Acesso em 30/04/2023.

75
pedagogia contra colonial e antirracista da Capoeira Angola. Fazendo com que aconteça uma
encruzilhada de conceitos e filosofias entre a Capoeira Angola e o circo, que quando aplicado
no contexto do Circo Social, têm o objetivo de potencializar o âmbito social de redução de
danos das marcas deixadas pela violência e pobreza que as crianças e jovens de projetos sociais
enfrentam. Sobre essas proposições que seguem os escritos a seguir, relatando um breve
histórico sobre a origem da Capoeira Angola, sobre a trajetória de Mestre Primo e do Grupo
Iuna e a encruzilhada entre os fundamentos da Capoeira Angola e a pedagogia do Circo Social.

76
2 CAPOEIRA ANGOLA

2.1 CAPOEIRA ANGOLA: UM BREVE HISTÓRICO

O Capoeirista é um curioso, tem mentalidade para muita coisa,


sabendo aproveitar de tudo o que o ambiente lhe pode proporcionar.
E a Capoeira Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa.
O negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada um.
Mestre Pastinha

Neste capítulo é apresentado, de forma sucinta, a origem da Capoeira Angola, sua


trajetória e um breve relato sobre a vida e importância de Mestre Pastinha para a capoeira.
Apesar de ser uma tarefa desafiadora precisar a origem da capoeira, serão apontados alguns
referenciais e, para isso, é preciso rememorar aspectos cruciais da história do Brasil, mais
precisamente a época colonial escravagista, quando embarcaram nos navios negreiros de África
cerca de 11 milhões de africanos para serem escravizados no Novo Mundo (NETO, 2014). No
entanto, é um momento histórico difícil de saber precisamente sobre datas, locais, de onde
vieram os primeiros povos escravizados etc. Ocorreu que séculos depois, o Ministro da
Fazenda, o senhor Ruy Barbosa, em 1890, no governo do General Deodoro da Fonseca mandou
queimar toda documentação referente a escravidão no Brasil (REGO, 1968).
O etnólogo e historiador baiano Waldeloir Rego deixou uma importante pesquisa sobre
a capoeira intitulada “Capoeira Angola. Ensaio sócio-etnográfico” (1968) onde se mostram os
poucos registros e documentações que restaram desse período, e é feita uma compilação dos
pensamentos e escritos dos historiadores e pesquisadores desse tema. Segundo o autor há uma
hipótese de que os primeiros africanos e africanas vieram de Angola, por ter sido um grande
centro comercial de abastecimento e “devido a boa qualidade dos escravos” (REGO, 1968).

Um ponto de vista é quase uniforme entre os historiadores, no que concerne à hipótese


de terem vindo de Angola os primeiros escravos, assim como ser de lá a maior safra
de negros importados. Angola era o centro mais importante da época e atrás dela,
querendo tirar-lhe a hegemonia, estava Benguela. Angola foi para o Brasil o que o
oxigênio é para os seres vivos e segundo Taunay, em uma consulta de 23 de janeiro
de 1657, os conselheiros da rainha regente, viúva de D. João IV e membros do
Conselho da Fazenda diziam que Angola era o nervo das fábricas do Brasil. (REGO,
1968, p. 11)

Sendo assim, Angola era um importante ponto comercial, que vendia muitas coisas,
como pólvora, miçangas, aguardente, facas etc.; além de pessoas para o mercado escravagista.
(REGO, 1968). Assim como existe a dificuldade da precisão dessa história – o período
escravagista no Brasil – que foi negada e invisibilizada, é preciso ter cautela ao se falar sobre a
77
origem da capoeira (REGO, 1968). Entende-se a capoeira como uma manifestação “cuja
natureza complexa dificulta que seja classificada através de expressões tais como jogo, dança,
esporte, luta tradicional ou arte marcial” (ZONZON, 2011, p. 131). Por conta disso, João da
Mata que tem uma pesquisa sobre a capoeira angola e a somaterapia afirma que jogar capoeira
pode ser um termo que abrange todos seus múltiplos elementos:

A capoeira angola se afirma como expressão e manifestação artística de singular valor,


surgida no bojo da escravidão e com fortes influências da cultura africana. Ela
constitui-se a partir da mistura de elementos diversos como a dança, a luta, a música,
o teatro, o ritual e a mímica. São tantos aspectos juntos e em permanente
simultaneidade que seria errado categorizá-la dentro de uma única dessas
características. Em função disso, é comum afirmar que “se joga” capoeira e não que
se luta ou se dança capoeira, por exemplo, pois é através da noção de jogo que todos
esses elementos se conjugam. (NETO, 2014, p. 87)

A partir dos anos sessenta, os antropólogos reivindicam a origem da capoeira como


provinda do povo bantu, por causa de um ritual chamado de dança da zebra ou N´golo que
acontecia em Angola (ZONZON, 2011). N´golo ou também chamado engolo é a teoria mais
difundida sobre a origem da capoeira, no entanto, há poucas pesquisas que aprofundam e
documentam essa temática (OBI, 2008). O Dr. Maduka T. J. Desch Obi61 tem uma ampla
pesquisa sobre prática etnográfica, linguística histórica e diáspora africana, logo, em seu artigo
intitulado “Angola e o Jogo de Capoeira” (2008) há importantes referenciais sobre a luta do
engolo em África. Segundo o autor “engolo era uma arte de luta com os pés que prevalecia na
região cimbebasiana do sul de Angola, aproximadamente da seção sul do planalto até o norte
de Etosha Pan.” (OBI, 2008, p. 110). Os homens cimbebasianos dedicavam-se na condução de
rebanhos e proteção de gados, com isso, “desenvolveram um ethos mais marcial para dar conta
da realidade constante de incursão de captura de gado. Os cimbebasianos praticavam inúmeras
artes marciais, tais como: lançamento de pedras, luta de bastão, luta de cabeçadas, boxe de
bofetadas e a arte de luta com o pé do engolo (OBI, 2008, p. 111).
Entre 1994 e 1998, Obi esteve em Cimbebasia e escreveu que a prática do engolo estava
desaparecendo aos poucos, sendo executada apenas por homens mais velhos com idades acima
de quarenta anos. Em seu artigo o autor descreve em detalhes como era iniciado o jogo de
engolo.

61
Professor de História da África e Diáspora no Baruch College do City University of New York’s, Baruch
College.Fonte:https://ppgh.ufba.br/sites/ppgh.ufba.br/files/leitura_suplementar__desch_obi_angola_e_capoeira_
antropolitica_24_0.pdf - Acesso em 14/04/2023.

78
Os participantes e observadores costumavam formar um círculo (ontanga) e
começavam a bater palmas. Então uma pessoa começava a cantar uma canção de
engolo. Em muitas canções um “eh-heh” era entoado como uma resposta em refrão.
Logo que esse tipo de mantra estivesse totalmente estabelecido, um praticante entrava
no círculo dançando e gritando para acentuar as técnicas que ele demonstraria.
Quando um oponente se juntava ao desafiante, ambos oscilariam ao som da música e
começariam a jogar o engolo. (OBI, 2008, p. 111)

Segundo Obi esse jogo era feito de movimentações de ataque, como rasteiras, chutes e
movimentos circulares e de defesa, se valendo de algumas acrobacias e movimentos rítmicos
(OBI, 2008). Apesar do jogo de engolo ser muito utilizado como entretenimento, também tinha
uma via espiritual, onde os Mestres de engolo passavam por uma iniciação sagrada para
poderem executar tal vocação (OBI, 2008).
A relação com a zebra vem porque na região da Cimbabasia é um animal numeroso e
um símbolo de agilidade para os cimbebasianos, tornando-se uma inspiração para a
movimentação do jogo do engolo onde “o chute executado com as mãos no solo são imitações
diretas do coice da zebra” (OBI, 2008, p. 114). É sobre essa perspectiva que alguns grupos de
Capoeira Angola contemporâneos se debruçam, inclusive utilizando a imagem da zebra como
símbolo de suas escolas e eventos.
Outro ponto importante que Obi descreve é que apesar do imaginário popular voltar-se
para a origem da capoeira relacionada à Bahia, em suas pesquisas ele entende que os
cimbebasianos escravizados chegaram em grande número no Rio de Janeiro, tornando o Rio
um grande epicentro brasileiro da capoeiragem:

Embora os governantes do interior da bacia de Kunene fossem capazes de resistir à


dominação econômica militar europeia até depois do fim do comércio legal de
escravos, inúmeros cimbebasianos foram enviados ao mercado de escravos
transatlântico. Apenas uma década depois da fundação da cidade de Benguela em
1617, portugueses lideraram uma grande expedição militar em terras cimbebasianas e
levaram consigo mais de mil prisioneiros e seis mil cabeças de gado (DELGADO,
1970, p. 2, 125-126). [...] De acordo com os relatórios portugueses, em 1770
cimbebasianos foram parte importante do comércio de Benguela: “de lá vem
anualmente um grande número de escravos, e a maior parte do Marfim q’ daqui sai
para sua majestade” (SILVA, 1940, p. 184). Ao mesmo tempo, o mercado de
Benguela estava atingindo seu ápice. Entre 1770 e 1790, mais da metade dos 25.000
a 30.000 prisioneiros transferidos por ano a partir da África Central veio de Benguela.
Como os negociantes do Rio de Janeiro dominavam o tráfico de escravos vindos de
Benguela, esses prisioneiros foram enviados em grande número para esse local. Mais
de 80% dos escravos africanos no Rio de Janeiro vieram da África Central e a maior
parte deles veio de Benguela (KARASCH, 1987, p. 20; MILLER, 2002, p. 51). Os
escravizados cimbebasianos e seus vizinhos aparentemente levaram consigo para o
Brasil sua arte de lutar com os pés. (OBI, 2008, p. 117/118)

79
A partir dessas afirmações, o autor volta o olhar para a região do Rio de Janeiro e
corrobora com as pesquisas feitas recentemente que buscam evidenciar a história e a
importância que tem, por exemplo, o Cais do Valongo, que “As obras de urbanização do Porto
Maravilha, realizadas na Região Portuária do Rio de Janeiro, redescobriram o Cais do Valongo
em 2010, após 167 anos encoberto por sucessivas ondas civilizatórias que transformaram
radicalmente sua configuração original” (TEIXEIRA, 2015, p. 13). Cais do Valongo é
denominado como um complexo porque não abrange apenas o cais de desembarque, mas
também o nomeado cemitério dos Pretos Novos, onde milhares de africanos eram jogados
quando chegavam mortos, ou não resistiam ao processo de quarentena, quando desembarcavam
adoecidos e não se recuperavam pós travessia do Atlântico (ASSUNÇÃO, 2015). O mesmo
autor ainda escreve:

[...] é bom lembrar que o Rio de Janeiro foi não somente o maior porto de desembarque
de escravos nas Américas, mas também o segundo maior porto de origem dos navios
negreiros, depois de Liverpool, na Inglaterra. Ou seja, o Rio não era apenas o porto
de destino dos navios negreiros de negociantes portugueses, mas foi mesmo o segundo
mais importante porto de armação do infame comércio, perdendo apenas para
Liverpool. (ASSUNÇÃO, 2015, p. 08)

A partir disso e de outros importantes escritos o livro “Roda de Saberes do Cais do


Valongo” organizado por Carlos Alexandre Teixeira (2015) registra muitas histórias de fato
desconhecidas, contando desde a chegada desses africanos no Brasil, até quando houve a
abolição da escravatura, transformando o Cais do Valongo em numerosos cortiços e poderosos
redutos do samba, da capoeira e das manifestações de matriz africana, chamado, inclusive, de
Pequena África (ABREU, 2015, p. 22).
As pesquisas do Dr. Bunseki FuKiau trazem importantes pistas sobre a origem da
capoeira e sua ancestralidade. Segundo FuKiau o reino de Kongo-Angola era o reino mais
poderoso que existia no século XIII, desde esse período já existiam quatro universidades nesse
reino “Um deles foi conhecido como Instituto Lemba; o segundo conhecido como Instituto
Kimpassi; o terceiro conhecido como Instituto Kikumbi, e o quarto, Instituto Welo (ou Uelo).”
(FUKIAU, 1997, s/p.)62 Por conta, também, das riquezas que esse estado tinha como ouro,
marfim, borracha etc.; o Ocidente o invadiu e o dividiu, como afirma este autor:

62
Palestra dada pelo Dr. Bunseki FuKiau no ano de 1997 em Salvador, possível de acessar o texto completo em:
https://terreirodegrios.wordpress.com/tag/fu-kiau-2/ - blog escrito por Mo Maie, artista Marianense/MG, que se
dedica à pesquisa sobre Áfrika. Acesso em 09/04/2023.

80
O Ocidente descobriu a importância desse reino e não quis que este permanecesse
unido, então dividiram esse espaço em três poderes: o sul deste reino foi para Portugal,
conhecido hoje como Angola; o centro foi para a Bélgica, hoje conhecido como Zaire,
ou República do Kongo; o norte do reino foi dado para a França, e é conhecido
também como República do Kongo. (FUKIAU, 1997, s/p)
É a partir dessa desconhecida história que se pode entender como grandes Mestres e
jovens de 15 a 25 anos foram trazidos como escravizados, sendo que a maioria deles morreu na
travessia do Atlântico ou durante o trabalho escravo. É nesse sentido que os saberes e a luta
surgem como movimentos de resistência.

E como eles não tinham armas como os senhores, eles começaram a se organizar de
maneira secreta. Nessa medida eles começaram a entender os poderes que eles tinham
adquirido na África e a mesma capoeira nasceu na América do Sul e no Brasil. Esta
mesma prática existiu no norte da América, não conhecida pelo mesmo nome. O
ensinamento do que nós conhecemos como capoeira foi conhecido por outro nome,
mais conhecido pelos seus aspectos de igreja, e se chamava mong. Então são esses
dois nomes: capoeira e mong, o que era a capoeira no Kongo-Angola. Como eu disse
mais cedo, Kongo-Angola foi a terra da origem da capoeira, e então no caso o Brasil
ter conhecido a capoeira não foi errado, não foi mal-conduzido. Achou seu caminho.
Temos que entender as crenças e a visão de mundo destes povos. (FUKIAU, 1997,
s/p.)

Para o pesquisador Congolês, a capoeira tem sua origem no reino Kongo-Angola63 que
faz parte da tradição Bantu, e por isso a importância de se entender a cosmovisão e os
fundamentos de vida desses povos. Apesar da capoeira passar por muitas mudanças, através
dos escritos do Dr. Bunseki FuKiau é possível perceber alguns fundamentos dessa tradição
bantu que foram preservados, e em seus escritos o autor afirma a importância de se reconhecer
e valorizar a semente única dessas capoeiras diversas, que é sua origem africana: “É verdade
que a capoeira passou por muitas mudanças. Mas todas as capoeiras têm uma semente. E esta
semente tem que ser reconhecida. Porque sem ela, capoeira não é” (FUKIAU, 1997).
Em seu ensaio, Waldeloir Rego mostra mais de vinte significados semânticos para a
palavra capoeira, derivada do tronco linguístico tupi coó-puera que significa mata rasteira, ou
também encontrada na língua portuguesa denominada “cesto para guardar galinhas” (REGO,
1968, p. 15). Outros sentidos aparecem associados, como por exemplo, é o nome que designa

63
“Kongo” refere-se a um grupo cultural, linguístico e histórico de pessoas que descendem do grande grupo Bantu
que migrou do sul da região do Rio Benue (atualmente Nigéria) para a floresta equatorial do centro-oeste africano
e proximidades. Remontando ao segundo milênio A.C., lentamente aconteceram ondas migratórias de
comunidades Bantu em direção ao sul, processo que fez com que a maioria dos africanos que vivem na região ao
sul do equador viessem a falar uma ou mais das 400 línguas relacionadas ao Bantu. Poucos séculos depois, na
Idade do Ferro, assentamentos de Bantu foram estabelecidos através da região. Tradução do original NTANGU
TANDU KOLO, The Bantu-Kongo Concept of Time. Autor: FU-KIAU, B. K. K. Originalmente publicado em:
ADJAYE, J. K. (Org.). Time in the Black experience: Contributions in AfroAmerican and African studies. London,
1994. Traduzido para uso didático por Mo Maiê (2016). Disponível em:
https://terreirodegrios.wordpress.com/tag/fu-kiau-2/ - Acesso em 09/04/2023.

81
uma ave brasileira, ou então um local onde ficam as criações, ou a denominação de uma
carruagem velha, ou um indivíduo desordeiro, além de outras diferentes significações (REGO,
1968). Sendo assim, a partir de tantas variáveis, fica difícil designar uma única origem para a
capoeira.

Ora, tudo isso seria um pressuposto para se dizer que a capoeira veio de Angola,
trazida pelos negros de Angola. Mas, mesmo que se tivesse notícia concreta de tal
folguedo por aquelas bandas, ainda não era argumento suficiente. Está documentado,
e sabido por todos, que os africanos uma vez livres e os que retornaram às suas pátrias
levaram muita coisa do Brasil, coisas não só inventadas por eles aqui, como
assimiladas do índio e do português. Portanto, não se pode ser dogmático na gênese
das coisas em que é constatada a presença africana; pelo contrário, deve-se andar com
bastante cautela. (REGO, 1968, p. 18)

Ao estudar a história e a cronologia da capoeira, percebe-se que ela passou por diversas
transformações desde então: chegou nas Américas nos corpos e crenças dos povos africanos,
favoreceu a instauração dos Quilombos entre tantas formas de resistência e, por isso mesmo foi
sendo criminalizada, inclusive no Código Penal, após a abolição da escravatura. Por outro lado,
a capoeira também foi a grande filosofia e arma utilizada pelas Maltas cariocas64 na briga
política entre os monarquistas e republicanos, até ser liberada e reconhecida como esporte no
governo de Getúlio Vargas (DINIZ, 2011) e chegando nas academias de capoeira a partir dos
anos 30. A partir de 1812 há relatos de grupos de capoeiristas, chamados de Maltas, libertos e
marginalizados que se reuniam para demarcar territórios no Rio de Janeiro (DINIZ, 2011).
Segundo Obi (2008) apesar das Maltas serem rotuladas por pesquisadores acadêmicos como
gangues de rua, elas eram mais entendidas como “sociedades de iniciação” (OBI, 2008, p. 105),
onde homens livres trabalhavam para a proteção dos escravizados:

A primeira eram as sociedades de iniciação dos capoeiras chamadas de maltas,


badernas e ranchos ou simplesmente grupos de capoeira. Essas maltas frequentemente
se engajavam em brigas sangrentas de rua, umas contra as outras, e, por vezes, contra
a polícia e a Guarda Nacional, que batalhavam constantemente para ultrapassar essa
ameaça incessante à dominação simbólica da elite da cidade. Como eu exploro em
outros escritos, as maltas proveem um estilo de vida alternativo e senso de honra aos
africanos e seus descendentes. (OBI, 2008, p. 105)

Desse modo as maltas eram formadas “por três, vinte e até mesmo cem indivíduos” e
constituíam a “forma associativa de resistência mais comum entre escravos e homens livres

64
As Maltas foram grupos de capoeiristas politicamente organizados que se reuniam para demarcação de
territórios. Para saber mais sobre as Maltas veja em SOARES (2001) e NETO (2014).

82
pobres do Rio de Janeiro da segunda metade do século 19” (DOSSIÊ IPHAN 12, 2008, p. 26).
As Maltas mais famosas foram os Guaiamuns, conhecidos pela cor branca e os Nagôas,
reconhecidos pela cor vermelha, que reuniam desde intelectuais e prestigiosos políticos, até os
homens mais pobres e marginalizados. Nesses encontros, os mais velhos capoeiras ensinavam
golpes e movimentos para os mais novos, desde movimentação com a mão limpa, até a
utilização de armas como navalhas, barras de madeira e de ferro, conforme o dossiê do IPHAN
número 12 de 2008 que assim afirma:

Antes da Proclamação da República, em 1889, os escravos-capoeiras ganharam


prestígio devido a sua participação na Guerra do Paraguai, que ocorreu entre 1864 e
1870. Também ficaram famosos por sua atuação durante as eleições, quando
pressionavam eleitores para votar nos candidatos dos partidos que defendiam, fossem
conservadores ou liberais. Além disso, criaram uma milícia conhecida como Guarda
Negra, que era a favor da Monarquia e atacava republicanos. “Fundaram o Partido
Capoeira e, antes de serem definitivamente perseguidos, dividiram a cidade em
territórios de duas grandes maltas: Nagoas e Guaiamuns”. (Dossiê IPHAN 12, 2008,
p. 24)

Talvez seja por esse período das Maltas, em que a capoeira foi utilizada como luta, é
que diversos referenciais que tratam dessa temática, apresentam a capoeira associada à
violência, uma vez que os capoeiristas utilizavam dessa luta para evidenciar seus ideais e
partidos políticos. Isso mostra a extensa trajetória que esses fundamentos da capoeira já
percorreram e suas diversas manifestações com distintos ideais e objetivos.65 Todos esses temas
revelam a importância da busca da origem da capoeira, antes de sua manifestação no Brasil,
como uma estratégia, inclusive, do resgate da sua memória de luta, mas não, apenas, no contexto
da violência, e sim, como luta e resistência de diversos povos. Um fundamento importante de
ser preservado, atualmente, é o entendimento de que seus saberes estão salvaguardados na
técnica da movimentação corporal, onde a defesa é tão importante quanto o ataque, e que essas
movimentações terão suas belezas evidenciadas, quando o jogo dos(as) capoeiristas que
estiverem no centro da roda estiver em diálogo e em uma troca harmoniosa.
Conforme dito anteriormente, dois anos após a abolição da escravatura datada em 13 de
maio de 1888, a capoeira é oficialmente66 criminalizada no Código Penal Brasileiro, por meio
do Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890 que explicitava:

65
As maltas não constituem o tema principal nesta pesquisa, apenas são lembradas para que se compreenda a
complexidade da história da capoeira em sua diversa organização cronológica para o conhecimento dos leitores e
leitoras.
66
“A primeira codificação penal brasileira, intitulada de Código criminal do Império do Brasil, datada de 1830,
não fazia referência explícita aos praticantes da capoeira, mas os chefes de polícia os enquadravam no capítulo
que tratava dos vadios e mendigos” (Dossiê IPHAN 12, 2008, p. 26).

83
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal,
conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou
instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou
desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor ou algum mal.
Pena: de prisão celular de dois meses a seis meses. (Dossiê IPHAN 12, 2008, p. 26)

É com o Estado Novo, instaurado em 1937, que a capoeira começa a ser


descriminalizada e Mestre Bimba (1899 – 1974) é autorizado a manter o Centro de Cultura
Física e Capoeira Regional. O processo de desmarginalização da capoeira acontece em pleno
governo de Getúlio Vargas, quando o estado resolve nacionalizá-la e nomear a capoeira como
único esporte genuinamente brasileiro (Dossiê IPHAN 12, 2008). Um governo caracterizado
por práticas autoritárias e nacionalistas pode ter ambicionado, com a descriminalização da
capoeira, mais uma medida para ganhar popularidade do que propriamente o reconhecimento
de um símbolo genuíno da cultura brasileira.

2.1.1 Raízes da capoeira no Brasil

Olhar para a história da capoeira é compreender o quanto os capoeiristas, que eram


homens com ânsia de liberdade, lutaram e modificaram a história da escravidão e política do
Brasil com suas práticas de resistência, que como escreve João da Mata, “Ao dispor seu corpo
numa dança-luta brincadeira, o negro criava, através da capoeira, um poderoso instrumento de
ataque e defesa” (NETO, 2014, p. 58).

Mas, no século XIX, as constantes ações de negros fugidos e as maltas de capoeira,


como veremos mais adiante, criavam cada vez mais uma forte pressão sobre o regime
escravista. Diante da cultura da dominação, escravos, libertos e livres pobres
buscavam elaborar suas próprias estratégias que produziam microfissuras na política
de escravidão. Mais adiante, estas ações funcionaram como combustível na
formulação das leis abolicionistas. (NETO, 2014, p. 51)

Contudo, muito do que se sabe sobre a origem da capoeira é passado de forma oral pelos
mestres, professores e pesquisadores mais antigos e, também, é o que se expressa nos
movimentos corporais, nas letras das músicas, na maneira de se portar e de ver o mundo do(a)
capoeirista. Apesar dos mais antigos dizerem que a capoeira é uma só, as escolas
contemporâneas se dividem, basicamente, nas matrizes da Capoeira Angola e da Capoeira
Regional. Essa última tem Mestre Bimba (1899 – 1974) como grande destaque, chamado de

84
Manuel dos Reis Machado, nasceu em Salvador em 23 de novembro de 1899, consolidou a
Capoeira Regional nos anos 30, foi o primeiro a abrir academia de capoeira “em 1932, no
Engenho Velho de Botas, por sinal também o primeiro a conseguir registro oficial do governo,
para a sua academia chamada Centro de Cultura Física e Capoeira Regional, num período em
que o Brasil caminhava para o pleno regime de força que as leis penais consideravam os
capoeiristas como delinquentes perigosos” (REGO, 1968, p. 175).
Mestre Bimba foi o criador e propagador desse estilo de capoeira, que a partir da
capoeira antiga criou uma vertente da luta mais espetacular e acrobática, se inspirando em
golpes de lutas como o jiu-jitsu, o judô, a savate (boxe francês), a luta greco-romana, além do
maculêlê e outros folguedos (REGO, 1968).

Com o advento da capoeira regional, Mestre Bimba desenvolve um eficiente método


de estudo, padronizado e estruturado. Composto por estatuto, técnicas de ensino,
sequências e nomenclatura para os golpes, uniformes, horários, deveres e obrigações
dos alunos, etc., a capoeira entra no rol das práticas de ensino típicas da pedagogia
tradicional. Em seu Curso de Capoeira Regional, Mestre Bimba (s/d.) diz já na
introdução: ‘Este Regulamento foi elaborado para você praticar EDUCAÇÃO
FÍSICA e adquirir um preparo físico básico, mola mestra para a prática de qualquer
esporte’. (NETO, 2014, p. 82)

Segundo o mesmo autor (2014) é a partir da “esportivização” da capoeira por Mestre


Bimba que começa a se ter uma relação hierárquica entre Mestre e alunos, forma esta que na
capoeira antiga era feita de forma informal, porque tudo que um capoeirista aprendia era
observando os mais antigos nas rodas e em suas relações com os outros. Na capoeira antiga não
havia um local fechado em que aprendia os fundamentos da capoeira e nem professores, como
nas escolas e academias que terão seu advento no início do século XX (NETO, 2014).

Alvarez (2007) chama atenção a um importante elemento da tradição da capoeira


“antiga” que foi sendo apagada ou desvalorizada neste contexto institucional da
capoeira: a oitiva, uma forma de aprendizado baseado na observação dos movimentos
e na vadiação em rodas de capoeira com experientes capoeiras. Segundo o autor, antes
das academias e seus métodos de ensino, a capoeira praticada nas ruas era aprendida
especialmente olhando como aquilo se fazia. Não existindo o papel do educador ou
professor de capoeira, quem estivesse interessado em assimilar sua prática, precisava
observar outros jogadores, perguntar e buscar o conhecimento. A maioria dos mestres
de capoeira não ensinava através de uma técnica formal de transmissão de seus
conhecimentos, de modo que os alunos aprendiam observando e praticando o jogo.
(NETO, 2014, p. 81)

Sendo assim, antigamente, era a partir da observação e da relação com os mais velhos
de capoeira que se aprendia a luta. Atualmente ainda é possível perceber esse tipo de
fundamento, mesmo dentro da escola de capoeira, onde os treinos são pautados no processo de
85
imitação dos movimentos ensinados pelo(a) professor(a) ou mestre(a), e a importância que se
dá na participação dos alunos nas rodas de capoeira, tornando assim, a própria roda uma
extensão das aulas e dos conhecimentos passados. João da Mata ainda escreve que por conta
dessa “nova” relação estruturada que a capoeira regional propõe, alguns elementos da capoeira
antiga são perdidos:

No caso da capoeira regional, houve ainda uma espécie de esportização de sua prática,
ampliando o caráter de ensino de maneira planejada e estruturada, com o propósito de
melhorar ou manter o condicionamento físico. Isso propiciou uma perda de grande
parte das características e tradições da capoeira antiga, como a vadiagem, a
malandragem, a brincadeira entre outros elementos. (NETO, 2014, p. 84)

É importante lembrar as origens e diferenciações manifestas da capoeira, de forma que


há ganhos e perdas em cada uma de suas expressões. “Mesmo os supostos ‘danos’ trazidos pela
capoeira regional ao aproximar-se das lutas marciais e seu aspecto competitivo, trouxe também
importantes contribuições à difusão desta arte-luta pelo Brasil e pelo mundo”. (NETO, 2014, p.
84). Mestre Bimba torna-se responsável pela modernização da capoeira e difusão dessa arte em
outras instituições, como podemos ver no Dossiê organizado pelo IPHAN “Roda de Capoeira
e Ofício dos Mestres de Capoeira”:

O autor ainda destaca, nesse livro, episódios que possibilitam acompanhar o processo
histórico de legitimação e legalização do ensino da capoeira atribuído a Mestre Bimba.
De certa forma, Abreu reforça a contribuição pessoal do mestre para os destinos da
capoeira moderna. Ele ressalta suas iniciativas para a oficialização jurídica da
capoeira; seu ajustamento a um novo espaço (a academia); sua maior expansão para
outros segmentos sociais; e sua penetração em outras instituições (quartéis, palácios,
escolas, clubes esportivos etc.). Assim, com a inserção desses novos elementos, a
capoeira passava a ser exercida como ofício. A importância de Mestre Bimba nesse
momento tão fértil para a capoeira baiana é apontada por muitos outros estudos
produzidos sobre ele, alguns escritos por seus alunos. (Dossiê IPHAN 12, 2008, p. 50)

Ao se reconhecer a importância da presença de Mestre Bimba pelo processo de


modernização e legalização da capoeira, é necessário apresentar Mestre Pastinha nesse breve
relato sobre a história da capoeira. Vicente Ferreira Pastinha, grande patrono da Capoeira
Angola e principal referência para Mestre Primo. Mestre Pastinha nasceu em Salvador no ano
de 1889 e faleceu em 1981, foi o primeiro Mestre de Capoeira a dedicar-se aos escritos e ao
registro do ensino sobre a Capoeira Angola. Filho de um espanhol José Señor Pastinha e de
Raimunda dos Santos, uma mulher negra de Santo Amaro/BA. Segundo Rosângela Costa
Araújo (Mestra Janja), essa seria uma característica marcante dessa época no território baiano:
“como a grande maioria das crianças de sua época pertencente ao seu grupo socioeconômico,
86
não teve acesso aos estudos e aos 12 anos ingressou na Marinha, onde permaneceu até os 20.
Foi pintor, músico, pedreiro, engraxate e jornaleiro” (ARAÚJO, 2004, p. 122). Segundo
Decânio Filho, Mestre Pastinha pode ser assim compreendido: “foi o primeiro capoeirista
popular a analisar a capoeira como filosofia e a se preocupar com os aspectos éticos e
educacionais de sua prática” (FILHO, 1997, p. 5). Tendo aprendido capoeira ainda menino,
diretamente com um africano, tornando-se professor de capoeira em 191067 e se dedicando a
preservação dos fundamentos e valores africanos da Capoeira Angola.

Imagem 1 – Mestre Pastinha.

Fonte: Arquivo do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural / BA


(ARAÚJO, 2004, p. 116).

Sendo assim, há diferenças de pensamento acerca da capoeira entre Mestre Pastinha e


Mestre Bimba, uma vez que esse último atribuiu a origem da capoeira às manifestações
brasileiras, corroborando a ideia de que ela nasceu dentro das senzalas no Recôncavo Baiano.
Diferentemente, Mestre Pastinha disseminou que a capoeira tem sua origem em África
(ZONZON, 2011). Desse modo, Mestre Primo confirma essa concepção da origem africana.

67
Informação dada pelo próprio Mestre Pastinha, retirada do documentário “Mestre Pastinha. Rei da Capoeira”
dirigido por Carolina Canguçu. Acesse o documentário completo em
https://www.youtube.com/watch?v=Aiufa8mh9fs - Acesso em 18/01/2023.
87
Mestre Pastinha fala “capoeira veio da África, africano é que nos trouxe”, precisei
aprofundar e entender mais essa fala de Mestre Pastinha, pois, ela é libertadora e me
fez entender a ancestralidade trazida no corpo do africano que foram os movimentos
aprendidos por Mestre Pastinha com o negro alforriado de nome Benedito,
movimentos da técnica de ataque e defesa; como queda de rins, negativa, rolê… Essas
técnicas é a única memória da luta que o escravizado trouxe no seu corpo e foi negada
e mercantilizada pelo sistema e até ganhou o nome de capoeira. (Mestre Primo, 2020)

Em 1941, no Largo do Pelourinho, em Salvador/BA, Mestre Pastinha funda a primeira


escola de Capoeira Angola chamada Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA). Pastinha
registra os fundamentos e golpes da Capoeira Angola em seus manuscritos intitulados “Quando
as pernas fazem o miserêr: metafísica e prática da capoeira” (1960)68 e é a partir desse material
preservado pelos seus discípulos e, também, por alguns vídeos e áudios de Mestre Pastinha que
se tem acesso a esses fundamentos da Capoeira Angola.

Estudar o pensamento de Mestre Pastinha é penetrar no seio de uma elaborada visão


de mundo a fundamentar a criação de uma grande escola, a primeira escola de capoeira
angola da Bahia e mundo. Ao pressupor questões de ordem ética e moral como
cumprimento do dever, humildade e paciência como necessárias dentro do processo
de aprendizagem da capoeira, ele enxerga a capoeira angola não apenas como um
poderoso instrumento educativo, a trabalhar corpo e mente, mas um caminho para a
autorrealização e evolução espiritual. (FILHO, 2007, p. 07)

Por conta da ascensão da Capoeira Regional, como descrito acima, a Capoeira Angola,
por muitos anos caiu no esquecimento, tida meramente como folclore ou algo do passado,
entretanto teve seu ressurgimento na década de 1980. Segundo Peçanha (2021), a Capoeira
Angola reaparece nas cidades do Rio de Janeiro, na década de 1950, com o Mestre Joel
Lourenço, e depois em 1971 com Mestre Moraes69 (PEÇANHA, 2021). Em Salvador teve sua
retomada com Mestre João Pequeno70 e Mestre Moraes, como registrado nos escritos de João

68
“Quando as pernas fazem o misêrer” foi escrito por Mestre Pastinha nos anos 60 e digitalizado por Mestre
Decânio no ano de 2003. É possível acessar este material no link https://portalcapoeira.com/download/os-
manuscritos-do-mestre-pastinha/ - Acesso em 16/04/2023.
69
Mestre Moraes (Pedro Moraes Trindade) nasceu em 1950 na cidade de Salvador, foi aluno de Mestre João
Grande (João Oliveira dos Santos) e Mestre João Pequeno (João Pereira dos Santos) que foram discípulos direto
de Mestre Pastinha. Nos anos 80 funda o GCAP - Grupo de Capoeira Angola Pelourinho. É graduado em Letras,
Mestre em História Social e Doutor em Cultura pela UFBA.
70
Mestre João Pequeno (João Pereira dos Santos) nasceu no ano de 1917 na cidade de Araci, semiárido bahiano.
Discípulo direto de Mestre Pastinha, João Pequeno reabre o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA) no
Forte Santo Antônio Além do Carmo (1982), onde ainda resiste coordenado por Mestra Nani, neta de João
Pequeno. Mestre João Pequeno foi reconhecido com dois títulos de Doutor Honoris Causa, um pela Universidade
de Uberlândia e outro pela Universidade Federal da Bahia. Saiba mais através do Blog de Mestra Nani
https://mestrananidejoaopequeno.blogspot.com/ - Acesso em 16/04/2023.

88
da Mata (2014). Na cidade de São Paulo, com Mestre Pé de Chumbo71, ela é resgatada na década
de 1990 (NOGUEIRA, 2013). Atualmente a capoeira está espalhada em mais de 150 países
pelo mundo (NETO, 2014).
Em 2008 a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres foram reconhecidos como
“Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Livro de Registro das Formas de Expressão e no Livro de
Registro dos Saberes, volume primeiro, respectivamente, do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, em 21 de outubro de 2008, conforme decisão proferida na 57ª Reunião do
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada no dia 15 de julho de 2008” (Dossiê
IPHAN 12, 2008, p. 17) e em 2014 como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (CUSTÓDIO;
FOSTER; GUIMARÃES, 2022).
É possível ver a árvore genealógica da Capoeira Angola através da figura 7,
disponibilizada e grifada por Mestra Janja72 em sua tese de doutorado (2004). Nesta figura
vemos a descendência de Mestre Primo na Capoeira Angola que passou pelos ensinamentos de
Mestre Moraes e Mestre Rogério73 como será descrito no próximo capítulo:

71
Gidalto Pereira Dias (Mestre Pé de Chumbo), nasceu no ano de 1964, é discípulo do Mestre João Pequeno. Ele
foi um dos primeiros mestres de Capoeira Angola a levar o estilo para o sudeste do país, ministrando aulas em São
Carlos, Sorocaba e Bauru.
72
Rosângela Costa Araújo, nasceu em 04 de outubro de 1959, conhecida como Mestra Janja, é historiadora e
capoeirista brasileira.
73
Mestre Rogerio Soares Peixoto nasceu em 1954 em Duque de Caxias no Rio de Janeiro onde começou a jogar
capoeira em 1972. Em 1986 formou-se Mestre de Capoeira Angola recebendo o título das mãos de Mestre Moraes
(GCAP - Grupo de Capoeira Angola Pelourinho) e coordena o GCAP em Belo Horizonte de 1986 a 1991. Um dos
precursores da internacionalização da Capoeira Angola, em 1992 funda a Associação de Capoeira Angola Dobrada
(ACAD) na Alemanha, onde reside até hoje. (Revista Angoleiro é o que eu sou, 2009, p. 08)

89
Figura 7 – Árvore genealógica da Capoeira Angola

Fonte: ARAÚJO (2004, p. 09, grifos da autora).

Muito importante esse desenho da árvore genealógica da Capoeira Angola, destacando


os principais agentes que contribuíram e contribuem para essa história e legado. É possível
pensar de quantas lutas e resistências foi feita essa história e, a partir desta imagem,
compreender suas raízes e a presença de um mesmo objetivo que é a preservação e a
salvaguarda desses saberes e fazeres provindos dessa ciência antiga que é a Capoeira Angola.
No quadro destaca-se a presença de Mestre Primo como aluno de Mestre Rogério, vindo da
linhagem de Mestre Pastinha, passando pelos ensinamentos de Mestre Moraes.
Essa imagem foi retirada da pesquisa de Mestra Janja, que é a primeira referência
feminina de uma Mestra de capoeira pontuada nesta dissertação. Como é possível visualizar na
árvore genealógica, há pouquíssimas mulheres capoeiristas registradas na história, apesar disso
estar mudando atualmente, a capoeira ainda é uma luta extremamente masculinizada. A partir
do fluxograma acima, os nomes de mulheres que podemos identificar são a Mestra Janja e
Mestra Paulinha74.
Mestra Janja nasceu em Feira de Santana/BA, é historiadora e capoeirista brasileira; é
formada em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), possui mestrado e doutorado

74
Paula Cristina da Silva Barreto, socióloga, professora adjunta do departamento de Sociologia da Universidade
Federal da Bahia. Coordenadora do Instituto Nzinga de Capoeira Angola, ao lado de Mestra Janja.

90
em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). É docente do Departamento de Estudos
de Gênero e Feminismo na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal
da Bahia (FFCH/UFBA) e cofundadora do Instituto Nzinga75 de Estudos da Capoeira Angola e
Tradições Educativas Bantu no Brasil. Mestra Janja tem como referência os Mestres João
Grande76, Moraes e Cobra Mansa77, sendo possível visualizar suas posições no fluxograma
descrito por ela mesma em sua tese de doutorado (2004).

2.2 CAPOEIRA ANGOLA DE MESTRE PRIMO E SUA COSMOVISÃO

Menino quem foi seu mestre, oi iaiá


Meu mestre foi Salomão
Andava de pé pra cima, ai meu deus
Com a cabeça no chão
A ele devo respeito, saúde e obrigação
sou discípulo que aprendo
sou mestre que dá lição
o segredo de São Cosme
só quem sabe é São Damião, camará…78

Neste capítulo serão apresentadas a vivência em Capoeira Angola e a visão crítica e


reflexiva de Edson Moreira da Silva, conhecido como Mestre Primo, que estão associadas à
origem e história da criação e resistência do Grupo Iuna de Capoeira Angola. O Iuna é uma
ONG sediada na periferia do bairro Saudade em Belo Horizonte/MG, que se dedica a promover
ações socioculturais, principalmente com a missão de enfrentamento contra o racismo, a
violência e a opressão. Com 40 anos de história a escola Iuna de Capoeira Angola busca difundir
a pesquisa de Mestre Primo, que há 50 anos estuda a cosmovisão ancestral africana através da
movimentação e musicalidade da Capoeira Angola, extrapolando o território periférico em que

75
“O Grupo Nzinga de Capoeira Angola nasceu em 1995, quando Rosângela Araújo – hoje conhecida como Mestra
Janja – passou a residir em São Paulo, em função da elaboração de suas teses de mestrado e doutorado na Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo, na área temática de Filosofia e Educação. Ela vinha de 15 anos de
trajetória dentro do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho-GCAP, em Salvador, trabalho conduzido pelo Mestre
Moraes” saiba mais em http://nzinga.org.br/pt-br/grupo_nzinga - Acesso em 13/04/2023.
76
Mestre João Grande (João Oliveira dos Santos) nasceu em 15 de janeiro de 1933, foi aluno de Mestre Pastinha.
Atualmente, com seus 90 anos reside e leciona Capoeira Angola em Nova York.
77
Mestre Cobra Mansa (Cinézio Feliciano Peçanha) nasceu em 19 de maio de 1960 na cidade de Duque de
Caxias/RJ, foi aluno de Mestre Moraes. Graduado em Educação Física pela Universidade Católica do Salvador
(1993). Doutor pelo programa multidisciplinar em Difusão do Conhecimento da Universidade Federal da Bahia
(DMMDC/UFBA, 2019).
78
Ladainha de Capoeira Angola de domínio público.

91
a sede do Grupo está instalada, atualmente, e chegando até os interiores de Minas Gerais, na
cidade de Ouro Preto com a sede Ginga do Congo79 no bairro Pilar.

2.2.1 Primórdios

Mestre Primo é um homem negro, filho de Dona Maria Luiza da Silva (1920-2005),
uma mulher negra nascida em João Ribeiro/MG (cidade conhecida hoje como Entre Rios de
Minas), que herdou das mulheres de sua família a arte e ofício dos saberes tradicionais de
benzedeira e raizeira. De forma carinhosa, Mestre Primo conta sobre as lembranças que tem de
sua mãe e seu pai, que também foi um homem negro, o senhor José Moreira da Silva (1900-
1974) e que estava sempre junto de Dona Luiza. No salão principal da sede do Grupo Iuna é
possível ver a seguinte fotografia, emoldurada em um quadro, desses ancestrais que muito
contribuíram para o surgimento e permanência da escola:

Imagem 2 – Maria Luiza da Silva e José Moreira da Silva - Pai e mãe de Mestre Primo.

Fonte: Arquivo pessoal de Mestre Primo.

Ao mostrar a foto de seus pais no salão da escola, é possível ver ao lado um outro quadro
com a fotografia de Mestre Pastinha, de forma que Mestre Primo exprime com essas fotografias

79
Em Ouro Preto os treinos são guiados pelo treinel Márcio José de Souza, homem negro, ouropretano, e que está
no Grupo Iuna desde o ano de 2016. No ano de 2019, com o treinel Daniel Matos aconteceram treinos de Capoeira
Angola com o Projeto “A capoeira Angola no IFMG “– Campus Ouro Branco no Programa Institucional de
Extensão. O projeto parou por conta do momento crítico da pandemia e ainda não tem previsão de retorno.

92
quem são as pessoas que ele guarda na memória e reverencia, quais as principais inspirações
para ele mesmo e para a história do Grupo Iuna. O nome Iuna, segundo Mestre Primo, é um
termo tradicional utilizado na capoeira que vem do nome dado a um toque específico tocado no
berimbau e que ainda tem sua origem desconhecida (REGO, 1968, p. 109).
Ao subir a rampa da sala principal para chegar no salão onde acontecem os treinos e as
rodas de capoeira, se guarda uma bonita escultura80, representando uma bateria de capoeira com
alguns capoeiristas tocando e, abaixo, escrito: “Quilombo Dona Luiza”. Nessa singela
expressão artística é possível pensar e mensurar quem foi Dona Luiza e, ao perguntar para
Mestre Primo, quem é ela, se descobre que foi uma mulher dedicada a sua comunidade, uma
liderança comunitária que se propunha ao acolhimento, à escuta e à cura das pessoas que a
procuravam, através das rezas e plantas medicinais cultivadas em seu quintal.

As pessoas vinham aqui e sempre minha mãe tinha essa coisa comunitária. Tava
precisando de cura minha mãe curava. Tava precisando de remédio, se não era as
ervas, minha mãe ajudava a pessoa a ir buscar. Final do ano no Natal minha mãe
matava as criações e o povo vinha tudo comer aqui. Minha mãe dava carne para todo
mundo [...] minha mãe sempre atendeu todo mundo e não cobrava dinheiro algum –
aconselhava e cuidava... Sempre fazia reuniões no terreiro de casa, juntando as
pessoas da comunidade para saborear os alimentos que ela preparava. As pessoas
vinham, comiam, conversavam, socializavam. (Mestre Primo, 2020)81

Quilombos foram os territórios que os africanos estabeleceram para viver em liberdade


com seus pares, fugindo das estruturas escravocratas, buscando a proteção, a sobrevivência e a
resistência contra os colonizadores. Hoje sabe-se que os Quilombos acabaram sendo um lugar
de fuga não apenas para os povos africanos, mas para outros também, como é narrado no livro
“A incrível e fascinante história do Capitão Mouro” (1999) de Georges Bourdoukan, baseado
em fatos reais, que conta a história do muçulmano Saifudin, que auxiliou na construção das
fortificações do Quilombo dos Palmares, junto de Zumbi, e de figuras como o judeu Ben
Suleiman, Maria Paim, mulher branca, que foi uma das esposas de Zumbi, entre outras figuras
(BOURDOUKAN, 1999). A história é narrada a partir dos cenários como a Capitania de
Pernambuco, a Inquisição, a revolta dos escravos e a epidemia do mal-de-bicho.
Conceitualmente falando, Abdias do Nascimento ajuda a entender a dimensão de Quilombo:

80
Segundo Mestre Primo a escultura foi criada pelo senhor José Cássio Francisco, um morador da comunidade do
bairro Saudade, já falecido.
81
Fala retirada do Memorial de Notório Saber de Mestre Primo, escrito em 2020, sendo as pessoas responsáveis
pela redação: Edson Moreira da Silva (Mestre Primo), Rubens Alves da Silva e Luiz Carlos Quintino Cabral
Flecha. Responsáveis pela organização e seleção documental: Cassia Faria Silva e Madson Ronnie Siqueira.
Material gentilmente cedido por Mestre Primo e Cássia. O Memorial foi um material escrito para apresentar a vida
de Mestre Primo e a história do Grupo Iuna com intuito de atender aos requisitos exigidos para candidatura ao
título de Doutor de Notório Saber da Universidade Federal de Minas Gerais.
93
Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre,
solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade
quilombola representa uma etapa no progresso humano e sociopolítico em termos de
igualitarismo econômico. Os precedentes históricos conhecidos confirmam esta
colocação. Como sistema econômico, o quilombismo tem sido a adequação ao meio
brasileiro do comunitarismo e/ou ujamaaísmo da tradição africana. Em tal sistema as
relações de produção diferem basicamente daquelas prevalecentes na economia
espoliativa do trabalho, chamada capitalismo, fundada na razão do lucro a qualquer
custo. (NASCIMENTO, 2002, p. 272)

Sendo assim, Quilombo torna-se um símbolo importante de resistência e persistência da


cultura africana, e ganha outras dimensões e extrapola o significado apenas de lugar, enquanto
território, mas passa a ser compreendido como conceito político, como muito bem-posicionado
pelo militante Abdias do Nascimento a partir dos anos 20 do século XX. Lélia Gonzalez
também contribui para este debate sobre os quilombos em seus escritos:

No primeiro caso, transformou-se no símbolo de resistência e da luta por uma


sociedade alternativa, onde negros, índios e brancos fossem considerados a partir
daquilo que os torna iguais - sua humanidade - e organizados a partir dos critérios
democráticos com a justa distribuição dos frutos de seus trabalhos. E não há dúvida
de que Palmares foi a primeira tentativa de criação dessa sociedade igualitária, onde
existiu uma efetiva democracia racial. (GONZALEZ, 2020, p. 197)

A partir disso, entende-se a Escola Iuna pautada nesse entendimento de Quilombo, que
extrapola o território, mas tem como conceito político em suas ações e fundamentos, desde a
época de Dona Luiza. Ao entender a história e a importância que Dona Luiza tinha para a
comunidade, é possível compreender de onde nasce o pensamento decolonial trazido nas falas
e ações de Mestre Primo:

Ele observa que a mãe não detinha os saberes ancestrais da capoeira, mas possuía o
domínio dos saberes e formas de pensar as relações que sustentam a ação da prática
ancestral africana também encontrados na Capoeira Angola antiga, saberes estes ainda
hoje preservados nos hábitos, nos fazeres, nos ritos e festejos presentes nas
comunidades negras, onde a memória incorporada da ancestralidade africana é
restauradora das identidades individual e coletiva. [...] Atitudes e formas de
pensamentos descoloniais, uma educação comunitária, que ela transmitiu ao filho,
como uma relíquia a ser preservada e transmitida para e pelas gerações futuras.
(FLECHA; SILVA; SILVA. Memorial Notório Saber, 2020, p. 06)

No dia três de março de 1963 nascia, em Belo Horizonte, Edson Moreira da Silva, filho
caçula de dez irmãos do citado casal. Mais tarde seria conhecido como Mestre Primo, por causa
de sua militância nos movimentos negros da cidade de Belo Horizonte e sua dedicação à

94
pesquisa e difusão da Capoeira Angola. Mestre Primo desde muito cedo dedicou-se à pesquisa
e prática da capoeira, fazendo com que tornasse sua única profissão.
O primeiro contato de Mestre Primo com a capoeira foi aos 10 anos de idade em uma
Escola de Samba chamada Mocidade Unidos do Vera Cruz82 que tinha ao lado de sua casa
(mesma casa onde hoje é a sede do Grupo Iuna), no bairro Saudade, em Belo Horizonte, que
funcionava, de maneira informal, como uma espécie de centro cultural à época. Foi na Escola
de Samba que Primo aprendeu a tocar berimbau e deu seus primeiros passos na ginga com um
homem chamado Marinho83, que segundo o Mestre, foi um dos primeiros a ensinar capoeira no
bairro. Por sua vez, Marinho era aluno do Boca84 que dava aula em uma outra comunidade
próxima.

Mestre Boca e Mestre Marcio Alexandre foram dois grandes companheiros, parceiros
de capoeiragem do Mestre Dunga85 na década de 70 até a década de 80 que ajudaram
nesta época da ditadura militar, de grandes restrições policiais e repressão à cultura
negra. Hoje Mestre Boca escreve bastante sobre educação inclusiva, e sua experiência
como capoeirista aparece muito nessa produção. O grande papel dele foi fazer a ponte
entre a capoeira de rua e o meio estudantil nas décadas de 70 e 80. (BERTOLINO;
MAGALHÃES, 2006, p. 09)

Mestre Boca permanece bastante presente nas rodas e nos eventos produzidos pelo
Grupo Iuna ainda hoje. Dentre as primeiras referências de Mestre Primo, sua maior inspiração
foi seu primo Márcio Alexandre86 que era conhecido como Negão Zumba. Ele o conheceu
quando tinha entre 12 e 13 anos e o viu tocar, cantar e jogar capoeira na Escola de Samba,
tornando-se sua maior influência na infância.

82
A título de curiosidade a primeira Escola de Samba de Belo Horizonte foi fundada no ano de 1938, chamada
Pedraria Unida. (Rosângela Silva. Revista Angoleiro é o que eu Sou, 2007, p. 33)
83
Segundo Mestre Primo, Marinho era um morador da comunidade, capoeirista regional e lutador de Jiu-Jitsu.
Eles se encontravam na Escola de Samba e Marinho trocava um pouco de seus conhecimentos com as crianças da
comunidade.
84
Walter Ude, belorizontino, conhecido como Mestre Boca. Formado em Psicologia Clínica e Social, em 1977
fundou o Grupo Folclórico Meninos de Sinhá. Segundo Mestre Primo, Boca também era morador de uma
comunidade próxima ao bairro Saudade chamado Alto dos Minérios e foi aluno de capoeira do Mestre Márcio
Negão.
85
Mestre Dunga chama-se Amadeu Martins, baiano de Feira de Santana é fundador da Associação de Capoeira
Cordão de Ouro Eu Bahia A Senzala e é responsável por disseminar a capoeira nas ruas e favelas de Belo
Horizonte.
86
Mestre Márcio Alexandre (Negão Zumba), natural de Belo Horizonte, além de capoeirista era ator e dançarino
de dança afro. Experiências de restauração do corpo que enriqueceu a sua arte de ensinar capoeira. Não obstante a
perseguição policial, a discriminação racial e o preconceito sociocultural enfrentados, Mestre Márcio Alexandre
sempre manteve a cabeça erguida fazendo o que gostava e dava sentido para sua vida e, assim, contribuindo com
a divulgação da Capoeira (Dimas Antônio de Souza, Revista Angoleiro é o que eu sou, 2007, p.9).

95
2.2.2 Primeiros Mestres e as rodas de rua em Belo Horizonte

Para Mestre Primo, seu primo Márcio Negão foi uma figura marcante nas rodas de rua
e na história da capoeira em Belo Horizonte. É por isso, então, que Edson Moreira passou a ser
chamado de Mestre Primo, por ter tido seu primo Negão como primeiro Mestre, uma referência
importante da resistência negra e da Capoeira Angola em Belo Horizonte, conforme registra
Dimas Antônio de Souza, na Revista Angoleiro é o que eu sou.

Nas idas décadas de sessenta e setenta do último século, época em que era exigida do
negro a carteira de trabalho, pois o não porte da mesma podia ser considerado crime
por “vadiagem”, Márcio Negão resistiu e, ao encontrar a Capoeira, encontrou-se.
Abandonou o posto a ele reservado na ordem econômica e racial existente dedicando-
se integralmente à luta pela emancipação de seu povo, contribuindo com a divulgação
da Capoeira pelas vilas e favelas de Belo Horizonte e formando vários mestres dessa
arte. (SOUZA, 2007, p. 09)

Imagem 3 – Mestre Negão Zumba.

Fonte: Fotografia de Júnia Bertolino In Revista Angoleiro eu sei que eu sou (2007, p. 09).

Foi no final dos anos sessenta e no decorrer de 1970 que a capoeira começou a se efetivar
em Belo Horizonte. Júnia Bertolino e Paulo Magalhães afirmam que “As primeiras referências

96
da capoeira em BH vêm do final da década de 60, quando Toninho Cavalieri iniciou seus
trabalhos na capoeiragem e trouxe de São João Del Rei Amadeu Martins, o famoso Mestre
Dunga” (BERTOLINO; MAGALHÃES, 2006, p. 09). Assim, entre 1970 e 1980 as rodas de
rua que aconteciam na Praça da Liberdade (as atividades foram encerradas no final de 1970 por
conta das mudanças implementadas no projeto urbanístico da cidade) e na Praça Sete – que em
2020 completou 50 anos de existência – portanto, esses lugares tornaram-se grandes redutos da
capoeiragem, onde figuras importantes da capoeira antiga se encontravam. É nesse movimento
da capoeira na rua, e nesses encontros com outros capoeiristas e pesquisadores da cultura afro-
brasileira que Mestre Primo começa a despertar para as discussões que o Movimento Negro no
Brasil estava reivindicando.

[...] 1978/79, eu estava no movimento negro e eu já estava jogando capoeira na feira


Hippie e na Praça Sete[...] Na feira Hippie eram Mestre Negão, Chocolate, Boca,
Tigrê... Na Praça Sete era o Mestre Dunga. [...] A gente não conhecia Capoeira
Angola, não tinha em BH. BH era roda de rua, capoeira de rua e iniciava a capoeira
em academia. (Mestre Primo, 2020)

O movimento negro no Brasil corresponde a um conjunto de movimentos sociais,


políticos e culturais realizados pelos negros e negras brasileiros, lutando contra o racismo e por
direitos. Os autores Paulo Gustavo da Costa Santos e Cirlene Cristina de Sousa no artigo
Contribuições sócio-históricas do movimento negro: rasuras epistêmicas para uma pedagogia
antirracista afirmam que:

[...] compreendemos que a construção do movimento negro se dá pela resistência e


luta do povo negro, que vem contribuindo desde a chegada dos africanos/as
escravizados/as no Brasil com a construção dos saberes formado inicialmente pelos
coletivos e/ou quilombos, que tinham como objetivo visibilidade às injustiças e
desigualdades sociais que as pessoas negras e negros eram submetidos. (SANTOS;
SOUSA, 2022, p. 187)

97
Imagem 4 – Roda de rua: Mestre Primo à esquerda na roda da Praça da Liberdade.

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna

2.2.3 Criação do Grupo Iuna

Segundo Primo, a primeira vez que ouviu falar de Mestre Pastinha foi no Movimento
Negro e, para ele, a compreensão em relação à capoeira começa a mudar quando Mestre
Pastinha morre no ano de 1981. Sua curiosidade sobre a Capoeira Angola é despertada e em
1983, surge o Grupo Iuna, junto com Mestre Rogério. como um grupo de estudos práticos de
Capoeira Angola. Os primeiros encontros do Grupo Iuna aconteceram na Faculdade de Direito
da UFMG87 em um espaço cedido pelo Diretório Acadêmico do curso, que era onde alguns
capoeiristas interessados se reuniam e treinavam juntos, desenvolvendo a movimentação e a
musicalidade da Capoeira de Angola, iniciando os primeiros passos do Grupo Iuna de Capoeira
Angola.

2.2.4 Formação em Salvador e retorno à Belo Horizonte

A partir das discussões e ações com o MNU (Movimento Negro Unificado)88 e


Associação Casa Dandara89 em paralelo aos encontros do grupo Iuna, é que Mestre Primo

87
Localizada no endereço Av. João Pinheiro, 100 - Centro, Belo Horizonte - MG.
88
MNU - Movimento Negro Unificado iniciou suas ações em 1978 a partir de uma série de atos racistas ocorridos
na cidade de São Paulo. A partir disso houve muitas mobilizações e o MNU se espalhou por diversos outros estados
do Brasil.
89
Segundo Mestre Primo, a Associação Casa Dandara era uma instituição dedicada a ações e pesquisas a partir
das manifestações afro-brasileiras.

98
decidiu aprofundar seus estudos na Capoeira Angola na cidade de Salvador na Bahia, onde
estavam os discípulos e Mestres mais antigos da Capoeira Angola. Em relato, Mestre Primo diz
que na época, no ano de 1985, viajou apenas com o dinheiro da ida e que inicialmente era pra
ficar apenas um mês, mas, foi muito bem recebido e logo se identificou com o lugar e as pessoas,
fazendo-o permanecer por um ano, dedicando aos estudos e pesquisas com a Capoeira Angola.
Sendo assim, em 1985 Mestre Primo participa da primeira oficina de Capoeira Angola
promovida pelo Mestre Moraes do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP).

Por conta do processo da Capoeira Angola, para expandir, eu tive que ir em Salvador
para aprofundar nos conhecimentos. Em 1985 teve o primeiro evento de Capoeira
Angola em Salvador, a primeira oficina de Capoeira Angola […]. Então, está na minha
memória e eu nunca mais esqueço. Os véios estavam tudo lá, os antigos estavam tudo
lá. [...] Foi muito mágica porque, Salvador, imagina, lá é noventa por cento de negros,
então quando eu chego nesse lugar parece que todo mundo é meu primo, meu irmão,
então me familiarizei na semana, fiquei amigo de muita gente, já arrumei lugar pra
ficar ficando um ano estudando, pesquisando e aprofundando toda essa questão da
técnica e tal, hoje chego à conclusão de um monte de coisa por conta dessa trajetória
que isso tudo vai dar 40 anos agora. Começou em 83, hoje, em 2023, 40 anos nessa
pesquisa. (Entrevista com Mestre Primo, 2023)

Em seu retorno de Salvador no ano de 1986, Mestre Primo relata que não havia mais
ninguém fazendo Capoeira Angola em Belo Horizonte, pois Rogério, que era quem puxava as
aulas no Grupo Iuna, estava no Rio de Janeiro naquele ano. Primo resgata os estudos com o
grupo e começa a dar aulas na FUMEC90, que era uma faculdade localizada na avenida
Amazonas.

Aí eu retomei o trabalho de Capoeira, com a Capoeira Angola: eu e Tinoco na


FUMEC, uma escola que existia ali na Av. Amazonas; eu, Tinoco, Wagner, Soninha,
Silvinho (que hoje é Mestre na FICA, ele foi meu aluno), [...] o grupo começou a
fortalecer. Quando Rogério chegou já tinha um tanto de gente fazendo capoeira e ele
reassume as aulas. Na FUMEC o Tinoco era diretor do DA. Quando acabou o tempo
dele lá, perdemos o espaço. Aí, alguém falou do Mofuce91, aí fomos para o Mofuce.
E na 3 ª oficina de Capoeira Angola realizada por Moraes em 1987, vão 12 alunos do
Iuna para Salvador, que jogava e cantava, no retorno desta oficina estes alunos que
era o coletivo do Iuna voltam insatisfeitos e divididos, pois o Iuna passa a ser GCAP
e Rogério ganha uma camisa e torna-se Mestre de Capoeira Angola reconhecido por
Mestre Moraes. (Mestre Primo, 2020)

90
Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC) é uma pessoa jurídica de direito privado, criada sem fins
lucrativos pelo Governo do Estado de Minas Gerais. http://www.fumec.br/ - Acesso em 11/04/2023.
91
Movimento de Fundação da Casa do Estudante (MOFUCE) e hoje Associação Casa do Estudante de Minas
Gerais (ACEMG), que é uma moradia para estudantes de baixa renda vindos do interior.

99
2.2.5 Consolidação do Grupo Iuna e 1º Encontro Nacional de Capoeira Angola da cidade
de Belo Horizonte

Nesse retorno de Salvador, os integrantes do Grupo Iuna decidem deixar o grupo para
ingressarem no GCAP92, o que marca uma nova caminhada para Mestre Primo com o Grupo
Iuna. A partir dessa época de 1987 até os anos 2000 Mestre Primo enfrentou muitas dificuldades
para seguir com sua missão de difusão e pesquisa com a Capoeira Angola na cidade de Belo
Horizonte. Uma das questões mais difíceis era conseguir parcerias de espaços para ministrar
suas aulas, uma vez que a superexploração imobiliária, os preços altos dos aluguéis de espaços,
ou seja, a própria relação de mercantilização da capoeira que estava em ascensão na cidade,
além das consequências do racismo estrutural que interfere diariamente nos trabalhos.
Depois de um tempo levando seu trabalho sozinho à frente do Grupo Iuna, Primo
convida Mestre João Bosco93 para seguirem juntos na coordenação do Grupo. No início do ano
de 1993 decidiram encerrar a parceria, até como uma estratégia para a difusão da Capoeira
Angola na cidade. Dessa forma Mestre João funda a Associação Cultural Eu Sou Angoleiro94,
com sede localizada no Centro de Belo Horizonte e Mestre Primo segue com sua trajetória no
Grupo Iuna.

92
Grupo de Capoeira Angola Pelourinho que iniciou atividades em Belo Horizonte de 1986 a 1991 com Mestre
Rogério, que recebeu o título de Mestre de Mestre Moraes de Salvador.
93
João Bosco Alves da Silva, Mestre João Angoleiro, nasceu no ano de 1961 na cidade de Belo Horizonte. Aos
13 anos era passista de escola de samba e dançarino de soul-music e aos 14 anos foi iniciado na capoeira regional
pelo Mestre Dunga (BH). Em 1993 fundou o grupo de capoeira Eu Sou Angoleiro e a Companhia Primitiva de
Arte Negra, que em 2003 tornaram-se integrantes da ACESA – Associação Cultural Eu Sou Angoleiro.
94
A Associação Cultural Eu sou Angoleiro - ACESA foi fundada em 1993, por Mestre João. Possui sede hoje na
Rua da Bahia, n° 570, sala 1200, no Centro de Belo Horizonte.

100
Imagem 5 – Mestre Primo na Sede do Grupo Iuna.

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (1993).

Imagem 6 – Mestre Primo na Sede do Grupo Iuna.

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (1993).

Desde o ano de 1990 Mestre Primo fomenta rodas de diálogos e discussões em suas
aulas, eventos e, também, nas rodas de capoeira promovidas pelo Grupo Iuna. Assim ele
convida estudiosos e mestres antigos desses saberes, como uma estratégia didática pedagógica
do entendimento da importância de promover conversas reflexivas entre práticas corporais para
o amadurecimento das pautas que permeiam os saberes e fazeres da capoeira. Além da
promoção da restauração e resgate da história do povo negro, se instaura um processo de luta
101
contra a hegemonia dos colonizadores, e de resistência contra a subalternização desses povos
afrocentrados.

Imagem 7 – Mestre Primo e seus alunos.

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (1994).

Imagem 8 – Visita do Mestre João Pequeno (da esquerda para a direita: Alcione, André,
Mestre Primo, Márcio Maracatu, Mestre João Pequeno e aluno da escola na época).

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (1994).

Mestre Primo acredita que a formação do(a) capoeirista na Capoeira Angola deve passar
pelo estudo da técnica corporal e musical, mas também, pela pesquisa e discussão crítica sobre
a decolonização e o processo histórico colonial escravagista vivido pelos povos africanos. Em

102
sua metodologia será a partir dessa compreensão do que ele chama “ciência antiga”, intrínseca
aos movimentos de ataque e defesa na capoeira, é que as discussões reflexivas sobre
decolonização serão levantadas. Se promove uma simbiose entre os saberes práticos e corporais
com os ensinamentos orais, coletivos e em roda.

[...] pra mim decolonização não é uma coisa que pode estar só na linha da teoria ela
tem que estar na prática todo dia né, e para você ter isso na prática você tem que ter
uma motivação para poder fazer isso, no meu caso, a motivação para poder fazer isso
é o conhecimento ancestral africano que ele é que me motiva nesse processo em ter
uma ação decolonial. E essa minha ação decolonial ela não vem de um livro ela vem
dessa conexão que eu faço com a técnica, com o gesto e com o movimento que vai
trazendo essas informações, e essas informações estão exatamente na prática. Então o
processo pra mim decolonial ele acontece ali no dia a dia dos treinos. (Entrevista com
Mestre Primo, 2023)

Mestre Primo fala justamente desse conhecimento ancestral africano que resiste na
prática da Capoeira Angola e que só a partir dela é que é possível buscar a semente dessa
sabedoria. São nos gestos e movimentos preservados nos corpos dos(as) capoeiristas, há muitos
anos; é aí que mora a memória de uma história antiga. No pensamento de Leda Maria Martins
a memória corporal é escrita no tempo e espaço através das performances rituais dos
manifestantes dessas práticas corporais afro-brasileiras.

Toda a memória do conhecimento é instituída na e pela performance ritual por meio


de técnicas e procedimentos performáticos veiculados pelo corpo. No âmbito dos ritos
as performances, em seu aparato - cantos, danças, figurinos, adereços, objetos
cerimoniais, cenários, cortejos e festejos -, e em sua cosmopercepção filosófica e
religiosa, reorganizam-se os repertórios textuais, históricos, sensoriais, orgânicos e
conceituais da longínqua África, as partituras dos seus saberes e conhecimentos, o
corpo alterno das identidades recriadas, as lembranças e as reminiscências, o corpus,
enfim, da memória que cliva e atravessa os vazios e hiatos resultantes das diásporas.
(MARTINS, 2021, p. 48)

A partir dessa metodologia de Mestre Primo é que promovem a união dos


conhecimentos orais e práticos, portanto ele vai sendo convidado a ministrar palestras em
Fóruns Sociais, Conferências Municipais e a participar do FAN - Festival de Arte Negra da
cidade de Belo Horizonte95.

95
Exemplo da participação do Grupo Iuna no 1o. FAN - Festival de Arte Negra em 1995 com o Cortejo dos
Capoeiras. Também no 3o. FAN com o Coletivo de Entidades de Cultura de Raiz de Matriz Africana –Aldeia Sec.
21 e o 4o. FAN onde Mestre Primo foi um dos coordenadores do documentário "Memória da Capoeira Angola”.

103
Imagem 9 - 1º Festival de Arte Negra (FAN) - Cortejo dos Capoeiras (Mestre Primo é o
primeiro à esquerda tocando berimbau).

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (1995).

Em 1999 acontece o 1º Encontro Nacional de Capoeira Angola da cidade de Belo


Horizonte promovido pelo Grupo Iuna. Tal projeto teve sua segunda edição no ano de 2008, a
terceira em 2011, a quarta em 2014 e sua quinta edição, no ano de 2019. Esses projetos tiveram
como objetivo promover o diálogo da Capoeira Angola com diversos setores da sociedade. Os
Encontros Nacionais de Capoeira Angola tem a missão de trazer a conscientização e no esforço
de tecer e ampliar as redes de parcerias na luta antirracista e pelas igualdades sociais; a
preservação da memória e resgate da história africana; valorização dos Mestres antigos; a
disseminação dos saberes da Capoeira Angola; a organização política dos capoeiras; o
reconhecimento dos mestres precursores da capoeira em Belo Horizonte; a educação decolonial,
importância das políticas públicas culturais e salvaguarda da capoeira (FLECHA; SILVA;
SILVA. Memorial Notório Saber, 2020). Toda programação dos eventos é gratuita e aberta para
toda a comunidade de Belo Horizonte, acontecendo tanto em locais culturais da cidade, como
em praças públicas e na sede do Grupo Iuna no bairro Saudade.
Os projetos dos Encontros Nacionais de Capoeira Angola têm sido executados a partir
de leis de incentivo municipais e estaduais, escritos e coordenados por Cássia Rita de Faria
Silva96, presidenta da ONG Iuna, juntamente com Mestre Primo e todos os integrantes que
fazem parte do Grupo Iuna. Mestre Primo fala sobre a importância de aprender a acessar esses
mecanismos de políticas públicas, para fomentar o trabalho do grupo e a democratização dessas

96
Cássia nasceu no dia 06/07/1960, na zona rural da cidade de Bambuí/MG. Dedica-se ao Iuna desde o ano 2000,
na parte administrativa, contábil e de organização das ações e atividades.

104
discussões que permeiam o universo da Capoeira Angola e devolvem e resgatam no povo negro
e periférico o empoderamento de sua própria história e identidade.

Imagem 10 – 1º Encontro Nacional de Capoeira Angola (Mestre Primo e Mestre João


Pequeno).

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (1999).

2.2.6 A construção da sede própria do Grupo Iuna

A partir de toda experiência e das dificuldades enfrentadas para manter o curso contínuo
de formação em Capoeira Angola, principalmente, no que se refere a pagar o aluguel de salas
para as aulas, Mestre Primo percebe a importância de ter um espaço próprio e começa a buscar
estratégias para essa realização. Em uma conversa com sua mãe, Dona Luiza, no ano de 2000,
ela ofereceu a laje da casa da família para ele construir e seguir com sua luta. Em parte, os
recursos para a construção da sede do Iuna no bairro Saudade foram conseguidos a partir de um
projeto escrito para a SMACOM97 - Secretaria para a Comunidade Negra e com a ajuda
financeira de Cássia Silva, atualmente presidenta da ONG Iuna. No entanto, tendo faltado
dinheiro para a continuidade da obra, Dona Luíza interveio e doou 30 sacos de cimento.

97
Secretaria criada no ano de 1998 intitulada SMACOM - Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade
Negra, Lei n. 7.535.

105
Imagens 11 e 12 – Sede própria do Grupo Iuna na laje da casa de Dona Luiza.

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (2000).

Ter um espaço próprio trouxe condições necessárias para Mestre Primo seguir no
aprofundamento do estudo do corpo na Capoeira Angola e mais segurança para o Grupo Iuna.
Isso foi fundamental para promover ações de inclusão social e construção de redes de parcerias
para o enfrentamento de problemas sociais não resolvidos na história do povo negro no Brasil.
Sendo assim, a partir do ano 2000, o Grupo Iuna, inicia a realização de ações de fomento,
preservação e divulgação da Capoeira Angola em sua sede própria, sempre acompanhando os
mais antigos, discípulos de Mestre Pastinha e mestres de Capoeira Angola da Bahia e do
Recôncavo Baiano.

Imagem 13 – Sede do Grupo Iuna no ano de 2006.

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (2006).

106
Imagem 14 – Sede do Grupo Iuna no ano de 2022

Fonte: Arquivo institucional do Grupo Iuna (2022).

Tendo como principal inspiração Dona Luiza, a partir da força dessa mulher em acolher
sua comunidade e promover bem-estar e saúde às pessoas, Mestre Primo se dedica ao
importante trabalho junto a sua comunidade, transformando sua casa na sede de um espaço
cultural e educativo, antirracista e contra colonial, promovendo ações e atividades gratuitas para
o povo periférico que mora nas margens e sofre com a subalternização provocada pelo atual
sistema capitalista (FLECHA; SILVA; SILVA. Memorial Notório Saber, 2020).
Com apoio da captação de recursos através da inscrição de projetos em editais públicos
e estabelecimento de parcerias com organizações internacionais do terceiro setor98, o Grupo
Iuna além de oferecer cursos contínuos de capoeira angola no período da manhã e da noite,
também já ofereceu (alguns ainda oferece) aulas de violão, inglês, reforço escolar, flauta,
percussão, iniciação ao circo, produção de alimentos, escrita de projetos culturais, construção
de pandeiros, orquestra de berimbaus, entre outros, além da geração de renda a partir da
economia solidária.

2.2.7 Sobrevivência, sustentabilidade e administração do Iuna

Importante ressaltar a importância da dedicação de Cássia Silva para organizar e manter


as atividades do Grupo Iuna. Cássia Rita de Faria Silva, nasceu no dia 06 de julho de 1960, na
zona rural da cidade de Bambuí, Oeste de Minas Gerais. Filha de Maria Elídia da Silva, que era
professora, e Antônio Fernandes da Silva, que trabalhava como taxista. Cássia é formada com

98
Editais públicos como Lei Estadual e Municipal de Incentivo à Cultura e outros direcionados para projetos que
são Pontos de Cultura. No terceiro setor está o apoio da Instituição ONLUS Solidária Sant’Ângelo, que é uma
ONG sediada em Milão na Itália, e que tem como responsável, no Brasil, Luisella Ancis. Essa ONG auxilia na
manutenção do espaço desde o ano de 2003, mas no período da pandemia e pós pandemia encerraram a
contribuição, retornando neste ano com redução de 50%. Por isso, a Escola Iuna está com poucas atividades no
momento.
107
habilitação em Magistério, também em Técnico em Contabilidade (Escola Belmiro Alves
Pereira/Bambuí/MG) e Técnico em Nutrição (Colégio PIO XII/Belo Horizonte/MG). Quando
Cássia Silva chegou em Belo Horizonte ela trabalhou em uma firma de mineração e depois na
Secretaria do Estado da Fazenda, onde adquiriu experiência em licitações. Ela conheceu Mestre
Primo na década de 90 frequentando a Feira Hippie e pelas rodas de capoeira. No ano de 1999
eles começaram a namorar e estão juntos até hoje.

Meu trabalho no Iuna é administrativo e contábil. Vai desde elaboração e execução de


editais a prestação de contas, lanches e manutenção da limpeza física do espaço da
OSC99. A principal ação sempre foi a Capoeira Angola, além de aulas de violão, e
ensino de línguas, inglês e francês. Após a pandemia diminuímos nossas ações devido
à dificuldade de financiamento para elas. Começo no Iúna no ano de 2000 com a
construção da sede. Minha dedicação ao Iuna é integral, chegando a trabalhar 12 horas
por dia, às vezes até nos finais de semana. Mas faço com gosto. (Entrevista com Cássia
Silva, 2023)

Cássia apesar de não se entender como capoeirista, porque não pratica a capoeira
corporalmente, acredita nos fundamentos da Capoeira Angola e auxilia na difusão e prática das
ações decoloniais do Grupo Iuna. A companheira de Mestre Primo torna-se uma figura
fundamental dentro da Escola Iuna, pois, além de escrever os projetos, fazer a produção
executiva e a prestação de contas dos mesmos, Cássia é a figura feminina que acolhe, gerencia
e auxilia no processo de educação das crianças que frequentam o espaço. Desde o ano 2000,
Cássia segue resistindo, ao lado de Mestre Primo, acreditando na potência transformadora que
a Capoeira Angola e seus fundamentos são capazes de fazer:

O Grupo Iuna é exemplo de resistência, persistência e missão. O que ganhamos


investimos para a OSC, é missão do Mestre Primo a qual eu decidi caminhar junto
com ele, fácil não é, estou aqui desde o ano de 2000, nem eu nem primo tiramos férias
nestes anos, não temos carteira assinada e nenhuma garantia trabalhista. (Depoimento
de Cássia Silva, 2023)

É a partir de todo esse trabalho sensível dedicado aos direitos humanos que o Grupo
Iuna é reconhecido em Belo Horizonte, e também fora da cidade, recebendo alguns títulos como
a certificação por excelência pelo Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial –
COMPIR- BH (2006)100, o deferimento nos Conselho Municipal da Criança e Adolescente

99
As Organizações da Sociedade Civil (OSCs) são entidades privadas, sem fins lucrativos, e com personalidade
jurídica própria, constituídas na forma de associações ou fundações.
100
O Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR) foi criado em 2010 pela Lei Municipal
9.934 e configura-se, desde então, como órgão estimulador da participação da sociedade civil na definição da
Política Municipal de Promoção da Igualdade Racial em Belo Horizonte.

108
(2006) e no Conselho Municipal da Assistência Social de BH (2007)101, como entidade de
defesa e garantia de direitos, passando assim a integrar a rede da proteção social básica na
capital mineira, com atuação no serviço de fortalecimento de vínculo familiar e comunitário.
Na área da política de cultura, a instituição também tem o reconhecimento como Ponto
de Cultura, importante título que confere lugar de referência nas ações culturais em Belo
Horizonte e no Brasil (FLECHA.; SILVA; SILVA. Memorial Notório Saber, 2020). Além da
última grande conquista de Mestre Primo que foi reconhecido com o título de Doutor de Notório
Saber pela Universidade Federal de Minas Gerais em dezembro de 2021.
O Grupo Iuna é como o jardim de Dona Luiza, uma terra fértil que planta sementes
crioulas com ânsia de transformação. Atualmente os ensinamentos de Mestre Primo e sua
pedagogia ganharam novos espaços e são disseminados em cidades do interior de Minas Gerais
por seus alunos e treinéis como em Ouro Preto/MG na Casa Ginga do Congo102 com treinel
Márcio José de Souza103 e outros alunos, e em parceria com a UFOP - Programa de extensão
Circus: Circo Social, Artes Cênicas e Capoeira Angola, coordenado pelo professor e capoeirista
integrante do Iuna, Rodrigo Pastor104 e Atylana Fernandes105 (Organização Cultural
Ambiental)106.
Neste ano de 2023, no dia três de março, Mestre Primo celebrou 60 anos de idade, 50
deles dedicados à capoeira, e o Grupo Iuna de Capoeira Angola comemorou 40 anos de
existência com uma festa bonita em sua sede no bairro Saudade/BH reunindo muitos angoleiros
e angoleiras da cidade de Belo Horizonte e região em uma grande roda de capoeira. É em um
evento como esse, que reuniu aproximadamente 100 pessoas, que fica nítido a importância do
trabalho desenvolvido por Mestre Primo, Cássia Silva e o coletivo do Grupo Iuna durante todos
esses anos.

101
O Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente. Criado pela Lei Municipal nº 6.263, de 20 de
novembro de 1992, atualizada pela Lei Municipal nº 8.502, de 6 de março de 2003, o CMDCA/BH é órgão
deliberativo e articulador das ações e políticas relacionadas à população de 0 a 18 anos.
102
Atualmente localizada no Espaço GLTA, no bairro Pilar em Ouro Preto.
103
Márcio José de Souza é nascido em Ouro Preto e contribui com o Grupo Iuna de Capoeira Angola desde o ano
de 2016.
104
Rodrigo Pastor Alves Pereira. Possui graduação em medicina pela Faculdade de Medicina da UFMG (2000).
Especialista em Medicina de Família e Comunidade. Mestre em Saúde Pública pela UFMG. Doutorado (em
andamento) em Ciências Sociais na UFJF. Professor Adjunto da Escola de Medicina da Universidade Federal de
Ouro Preto (UFOP). Pesquisador nas áreas de: formação profissional em saúde, educação à distância, políticas de
saúde (ênfase em Atenção Primária à Saúde) e cannabis medicinal. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4892750823601830 - Acesso em 17/04/2023.
105
Atylana Fernandes é Marianense/MG e faz parte do Conselho Diretor da Organização Cultural Ambiental
(OCA) atuando como Assistente Social da associação. Também é angoleira do Grupo Iuna de Capoeira Angola.
106
Organização Cultural Ambiental (OCA) é uma associação civil de direito privado sem fins lucrativos sediada
em Ouro Preto, MG, fundada em 2003. Saiba mais em https://www.ocaouropreto.org.br/home - Acesso em
17/04/2023.

109
Imagem 15 – Registro da comemoração dos 60 anos de Mestre Primo e 40 anos do Grupo
Iuna.

Fonte: Arquivo do Grupo Iuna (03/03/2023).

Imagem 16 – Roda comemorativa dos 60 anos de Mestre Primo e 40 anos do Grupo Iuna.

Fonte: Arquivo do Grupo Iuna (03/03/2023).

110
2.3 CAPOEIRA ANGOLA COMO EPISTEMOLOGIA AFRO-BRASILEIRA E
PEDAGOGIA DECOLONIAL

Como descrito acima, a Capoeira Angola é uma prática corporal que, por conta de sua
história, carrega um potencial libertário e que, se apontada por um ensino-aprendizagem que
preserve sua ancestralidade, dotada de sua memória de resistência, pode ser também uma ação
política e transformadora. Quando essa mesma prática corporal não se atenta às discussões
históricas e políticas, para além de um lugar da história do povo negro escravizado, nas senzalas,
já no território brasileiro (muitas vezes como os livros didáticos mostram), sem entender a
importância de buscar sua origem em África, essa cosmovisão e prática de luta, a capoeira pode
continuar difundindo a vaga ideia de que o povo africano foi apenas um povo escravizado. Que
essa arte é apenas uma luta corporal, um esporte, com movimentos apenas de ataque, se
transformando assim, em mais uma prática esportiva incorporada ao sistema capitalista que
mercantiliza tudo, inclusive a história e a crença do povo negro.

[...] esse conhecimento ele fortalece a nossa ação quando eu falo desses dois
momentos que eu acho importante: do gesto que traz a imagem, da técnica que traz a
memória e aí é isso, é essa memória que a gente precisa, essa memória de luta, que o
africano trouxe foi a luta, não trouxe o espetáculo. Por isso é importante a gente
entender a origem. Pastinha ainda fala que ele aprendeu com o africano uma técnica
[...] esse é o desafio, desconstruir todo esse desenvolvimento folclorizado,
mercantilizado pelo sistema e tentar retornar a um processo original onde começou
tudo. Onde nós vamos achar a fala do Mestre Pastinha, capoeira veio da África,
africano é que trouxe e dali pra lá a gente tem a pesquisa por nossa conta [...] porque
esse sistema, essa ideologia colonial escravagista, ela exala na atmosfera um ar que
vai contaminando seus poros107, que vai engessando sua mente, entendeu? então a
técnica ajuda também na desconstrução desse processo. É uma coisa quase que você
não consegue ver, mas ela, essa ideologia escravagista exala no ar esse clima do
processo da escravidão. A gente vai vendo essas coisas através da internet, das
músicas, a poluição sonora, tudo isso vai formando uma couraça que vai impedir você
de ser você mesmo. Então essa técnica ancestral africana que tem mais de 4 mil anos,
40 mil anos pra mim é isso, ela vem desconstruindo porque ela vem em um outro lugar
porque ela traz essa memória da luta, e essa memória da luta ela vai incorporando na
prática. (Entrevista com Mestre Primo, 2023)

No estudo da Capoeira Angola, quando acontece a simbiose entre o movimento


corporal e a oralidade, que busca discutir filosoficamente o processo de decolonização e
entender que a semente não está apenas nos movimentos de ataque, mas também de defesa, e
que são nesses movimentos que guardam a memória dessa ciência antiga, há um processo de
libertação de padrões colonialistas impostos pelo sistema atual e que vem sendo projetado no

107
Essa frase de Mestre Primo me fez recordar do escrito de Maldonado Torres: “[...] respiramos a colonialidade
na modernidade cotidianamente” (TORRES, 2007, p. 131).
111
cotidiano de todos, principalmente do povo pobre, periférico e negro, durante anos, desde o
tempo colonial escravagista. E é nesse sentido que o culto à ancestralidade, tão presente na
visão de mundo e na forma de agir no presente pelas manifestações afroameríndias, se faz tão
importante, pois é um elemento fundamental para a preservação da vida e da memória desses
povos em diáspora, como descrito por Luiz Rufino:

A ancestralidade é a vida enquanto possibilidade, de modo que ser vivo é estar em


condição de encante, de pujança, de reivindicação da presença como algo credível.
[...] A ancestralidade como sabedoria pluriversal ressemantizada por essas populações
em diáspora emerge como um dos principais elementos que substanciam a invenção
e a defesa da vida. (RUFINO, 2017, págs. 38/39)

Ancestralidade como “defesa da vida” (RUFINO, 2017) é entendida, a partir dos


fundamentos da Capoeira Angola, que serão melhores descritos abaixo, como algo que habita
no corpo, já que é ele que guarda a memória de luta e a história da capoeira. Sendo assim,
ancestralidade não é apenas um conceito, e sim uma prática diária, que como afirma Mestre
Primo, a ancestralidade mora na técnica e é através dela que irá encontrar a raiz:

Hoje para mim eu vejo que isso tem que estar bem colocado né porque tradição é uma
coisa que traz uma ação que tem raiz né, não pode ser uma tradição que você não
consiga fazer uma conexão com a raiz e nesse caso a técnica traz todo esse
entendimento maior do processo de tradição, que quando eu tô desenvolvendo ali,
rolê, negativa, queda de rins, eu tô trazendo essa ação para a prática né, então a
tradição ela tem um efeito na própria prática. Então você vai a prática ajuda a vivenciar
a tradição, então ela tá ali dentro do processo e a questão para mim ancestral também
é a mesma coisa a ancestralidade ela está na técnica. (Entrevista com Mestre Primo,
2023)

Mestre Primo, em suas aulas, ressalta a importância dos movimentos de defesa, ele diz
que o movimento do ataque mora dentro da defesa, que quando nosso corpo defende, ele respira
e abre o olhar para o espaço e a percepção de onde encaixar o próximo movimento para
surpreender o(a) outro(a) jogador(a). A Capoeira Angola, para Mestre Primo, é um jogo de
ganhar o espaço do outro, em um diálogo corporal inteligente e orgânico, onde um corpo
pergunta e o outro responde. E é nesse calmo aprendizado sobre a defesa, que o capoeirista,
através do tempo de prática, será capaz de ampliar seu olhar não só para a roda da capoeira,
mas para a roda da vida, refletindo no equilíbrio e aperfeiçoamento de seus mecanismos
corporais, emocionais, psicológicos e espirituais.

112
2.3.1 Sobre o Tempo espiralar nos cruzos da Capoeira Angola

“Eu estou indo-e-voltando-sendo em torno do centro das forças vitais.


Eu sou porque fui e re-fui antes, de tal modo que eu serei e re-serei novamente.”
Bunseki Fu Kiau

Nos educativos da Capoeira Angola percebe-se o tempo pautado nas cosmovisões


africanas que vai na contramão do conceito de Chronos, que como escreve Leda Maria Martins,
vem da mitologia ocidental, mais precisamente da grega e se descreve como “A noção de um
tempo que se expressa pela sucessividade, pela substituição, por uma direção cujo horizonte é
o futuro marca as teorias ocidentais sobre o tempo e a própria ideia de progresso e de razão da
modernidade” (MARTINS, 2021, p. 25). Na cultura africana o culto à ancestralidade entende o
sentir e o fazer dentro de um tempo espiralar, com a percepção de que a vida é um eterno ir e
vir e da importância de se conhecer o passado para apontar o futuro.

Espiralar é o que, no meu entendimento, melhor ilustra essa percepção, concepção e


experiência. As composições que se seguem visam contribuir para a ideia de que o
tempo pode ser ontologicamente experimentado como movimentos de reversibilidade,
dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e descontração,
simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro, como experiências
ontológica e cosmológica que têm como princípio básico do corpo não o repouso,
como em Aristóteles, mas sim, o movimento. Nas temporalidades curvas, tempo e
memória são imagens que se refletem. (MARTINS, 2021, p. 23)

Segundo o Dr. Bunseki Fu-Kiau, antropólogo congolês dedicado às traduções e escritas


sobre as cosmovisões dos povos bantu kongo de África, em seu livro “Cosmologia africana dos
bantu-kongo” traduzido por Tiganá Santana em sua tese de doutorado (2019), aponta algumas
sentenças em linguagem proverbial africana que expressam os princípios de pensamento desses
povos, e uma dessas sentenças diz: “A comunidade renova constantemente seus membros e
seus princípios, de acordo com os seus [fu] sistemas, conforme as leis naturais, as de nascimento
e morte; a teoria de makwènda-makwîza, o que vai, voltará; o eterno processo de mudança
através do dingo-dingo; o constante fluxo do atrás e adiante da [ngolo zanzîngila] energia viva”
(SANTOS, 2019, p. 78). A partir dos ensinamentos do Dr. Bunseki Fukiau entende-se que para
o povo bantu Kongo-Angola,o tempo é algo cíclico, sem um começo e nem um fim.108
A partir disso é possível compreender que o tempo de aprendizagem da Capoeira
Angola torna-se mais “lento”, quando comparado ao tempo que a sociedade produtiva

108
Para saber mais profundamente sobre o conceito de Tempo para o povo bantu acesse os escritos e traduções de
Mo Maie em seu blog: https://terreirodegrios.wordpress.com/tag/fu-kiau-2/ - Acesso em 09/04/2023.

113
capitalista impõe, que é pautada no lucro advindo da produção em massa, no progresso, em
calendários e a partir do conceito ocidental de Chronos.

Em Salvador eu ia no Mestre João Pequeno e em Moraes. No João Pequeno eu aprendi


a calma, a ciência na negativa de frente109 [...]aquilo que Pastinha sinalizava. [...] Ele
foi discípulo de Mestre Pastinha, deu aula na escola de Pastinha mas também
aprendeu a capoeira com tantos outros mestres antigos que alcançou [...]Com Moraes
aprendia a fazer sequência de bananeira110, queda de rins111… rolê112 [...] João
Pequeno ele acalmava as coisas […] Ele falava muito que a fruta dava na hora certa,
não adianta você querer comer a fruta antes dela amadurecer; tem que esperar
amadurecer e que tinha na capoeira coisa que a gente só ia aprender quando chegasse
o tempo certo [...] ao longo da vida [...] fazendo e fazendo. E hoje eu entendo isso, as
técnicas da Capoeira Angola, deixada pelo africano a Pastinha, através da minha
prática do dia a dia de cada movimento… [...] O tempo foi me trazendo a compreensão
do saber da Capoeira Angola, a partir dos meus estudos e vivências, rodas, encontros,
idas a Salvador […]. (Entrevista inédita, Mestre Primo, 2023)

Mestre Pastinha dizia que a Capoeira Angola é “'Mandinga de escravo em ânsia de


liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”113,
entendendo que a capoeira é uma ciência infinita, sem essa dimensão cronológica que traz um
fim a seu aprendizado e prática, assim, até o mais sábio capoeirista nunca saberá de tudo,
tornando-se, eternamente, um aprendiz. Sendo assim, a Capoeira Angola torna-se um segredo,
que vai sendo revelado com calma, respeitando o processo de aprendizado individual de cada
praticante e dentro da relação íntima que se cria entre o(a) Mestre(a) e seu(sua) aluno(a).
Segredo que Luis Vitor Castro Júnior descreve como:

A relação hierarquia está pautada na sabedoria adquirida de seus ancestrais, rica em


relações de alteridades corporais vivenciadas e reveladas na exibição do segredo. A
revelação do segredo é um processo de rigorosidade na dinâmica cultural entre
mestres e aprendiz. O tempo de revelação não é padronizado para todos os aprendizes;
cada um tem o seu próprio momento. Cabe ao mestre, na sua sutileza, iniciar o
aprendiz nos ensinamentos mais secretos. São formas legítimas oriundas da tradição
africano-brasileira que não obedecem à lógica formalista da racionalidade do mundo
eurocêntrico. O segredo na capoeira aparece enquanto uma essência das formas mais
primitivas. Ele é revelado a partir de um conjunto de elementos estéticos na
corporalidade do capoeirista. Desse modo, o aprendiz iniciado na capoeira captura e
revela um significado de constante busca dos saberes ancestrais. Ele quer “beber água
na fonte”, ou seja, existe a incessante necessidade de buscar suas raízes, suas tradições
e suas ritualizações. (JÚNIOR, 2004, p. 151)

109
Movimento de defesa em que o capoeirista próximo ao outro desce lateralmente apoiando suas mãos no chão
com uma perna esticada à frente cruzando seu corpo.
110
Movimento de invertida onde o capoeirista apoia todo seu corpo sobre suas mãos elevando as pernas para cima.
111
Movimento parecido com a negativa lateral, onde recolhe-se os joelhos, apoia-se em um dos cotovelos
apontando os pés para cima.
112
“Movimento em que o capoeirista, sentado sobre um calcanhar, coloca as mãos alternadas no solo e faz um giro
horizontal com o corpo. Também com apenas uma perna estendida, coloca uma das mãos no chão e com um
pequeno salto troca de perna, invertendo a direção do mesmo” (ARAÚJO, 2014, p. 196).
113
Retirado da fala de Mestre Pastinha no álbum “Mestre Pastinha e sua Academia”, de 1969. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=iOuxaIr1uN4&t=88s - Acesso em 13/02/2023.
114
Como o segredo mora na corporalidade, nessa infinita ciência que é a Capoeira Angola,
o tempo é revelado de outra forma porque sua epistemologia habita no corpo, na musicalidade,
na performance e em sua oralitura, que como escrito por Leda Martins “Conceitual e
metodologicamente, oralitura designa a complexa textura das performances orais e corporais,
seu funcionamento, os processos, procedimentos, meios e sistemas de inscrição dos saberes
fundados e fundantes das epistemes corporais, destacando neles o trânsito da memória, da
história, das cosmovisões que pelas corporeidades se processam” (MARTINS, 2021, p. 41). O
segredo só pode ser revelado através do tempo de prática que o(a) capoeirista se dedica à
pesquisa, fazendo com que o ensino-aprendizagem da Capoeira Angola abra uma fissura no
imediatismo colocado pelo sistema atual, transformando o impacto que a velocidade das
informações no cotidiano causam e aliviando os mecanismos psico-físicos-emocionais de seus
praticantes, sendo uma ferramenta de antiestresse, de autocuidado, que diminui a ansiedade e
desperta a humildade, levando o entendimento de que todo processo é lento, e que para não
haver lesões, é preciso fazer um pouco por dia, sem ultrapassar os próprios limites corporais.

O bom capoeirista espera, o ambicioso agita-se e precipita-se, o famoso o povo lhe


diz… O bom capoeirista nunca se exalta, procura sempre estar calmo para poder
refletir com precisão e acerto; não discute com seus camaradas ou alunos, não toma
jogo sem ser sua vez, para não aborrecer os companheiros e daí surgir uma rixa;
ensinar aos alunos sem procurar fazer exibição de modo agressivo, e nem se
apresentar de modo descortês sem amor a nossa causa que é a causa da moralização
e aperfeiçoamento desta luta tão bela quanto útil à nossa educação. (Mestre Pastinha,
2007, p. 07)

Essa questão do tempo ritmo também serve para a musicalidade na Capoeira Angola,
que inicia seu ritual na roda com um andamento da bateria114 de forma mais lenta, e vai
acelerando até chegar numa velocidade rápida, mas sem perder a cadência rítmica. Mestre
Primo em suas aulas enfatiza a importância de tocar todos os instrumentos de forma suave, sem
necessitar bater com força para extrair o som percussivo. Primo explica que na bateria da
Capoeira Angola nenhum instrumento deve sobrepor o outro, e no conjunto da bateria como
um todo, a altura do som não deve ser estridente para que o cantador ou a cantadora não precise
forçar demais suas cordas vocais para que seu canto ressoe, desenvolvendo assim uma harmonia
sonora que logo, irá influenciar na harmonia do jogo dos angoleiros e angoleiras que estão
jogando no centro da roda.

114
Bateria é o nome designado ao conjunto musical executado na roda de capoeira. Na Capoeira Angola os
instrumentos percussivos utilizados são: três berimbaus (gunga, médio e viola), dois pandeiros, um reco-reco, um
agôgô e um atabaque.

115
A importância do ritmo mais lento privilegia a percepção corporal, o equilíbrio e o
domínio do movimento. Não se busca a velocidade por meio apenas da explosão, do
impulso e da força com que se executa um golpe. Também não há um corpo ideal para
se jogar capoeira, pois sempre é possível adaptar tamanho, peso e características
individuais ao jogo. O jeito de alguém alto, magro, de braços e pernas compridas fazer
um “aú” (movimento parecido à estrela da ginástica olímpica, com as pernas
dobradas), por exemplo, tem apoios e bases diferentes de uma pessoa de estatura mais
baixa e pernas curtas. (NETO, 2014, p. 95)

Para além da importância de uma bateria harmonizada na roda de capoeira que irá
influenciar no jogo dos capoeiristas que estão no centro, é importante ressaltar o valor que a
cultura africana dá para a música. Na cultura bantu Kongo-Angola, segundo o Dr. Bunseki
Fukiau o coração é como se fosse uma percussão, e a vida se faz toda baseada na música:

Para os bantu, a morte não é o fim, porque a morte é um processo como qualquer outro
processo, e porque é um processo eles veem como música. Nós nascemos sob música
e morremos sob música, porque dentro de nós temos uma percussão que é o coração.
Então os instrumentos que fazemos fora de nós são iguais, e é por isso que é
importante para qualquer pessoa envolvida com capoeira. Para entender o conceito da
música dentro da capoeira, esse candidato tem que entender que a música é o seu
coração biológico. (FUKIAU, 1997 s/p.)

Ou seja, na ciência da Capoeira Angola o tempo é como o grande harmonizador da


musicalidade, gestualidade e troca entre seus jogadores, respeitando a individualidade de cada
corpo, logo, seu tempo e processo de aprendizagem. Assim como aponta Leda Martins, em
algumas culturas africanas o tempo fica grafado na pele, na voz, na performance e no
entendimento de mundo:

Em última instância, proponho como possibilidade epistemológica a ideia de que o


tempo, em determinadas culturas, é local de inscrição de um conhecimento que se
grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos
ritmos e timbres da vocalidade, conhecimentos esses emoldurados por uma certa
cosmopercepção e filosofia. (MARTINS, 2021, p. 22)

É a partir desse entendimento de tempo que os fundamentos da Capoeira Angola se


baseiam. Logo, o entendimento sobre o corpo, o movimento, a musicalidade e a oralidade, que
serão apresentados a seguir, serão atravessados por essa premissa.

116
2.3.2 Os movimentos corporais da Capoeira Angola

Ou seja, as performances são e constroem epistemologias.


Leda Maria Martins

O movimento para a cultura africana, ainda falando a partir dos fundamentos trazidos
pelo congolês Bunseki Fukiau, está diretamente ligado à vida, assim como à música. Fukiau diz
“Para os bantu, especialmente os Kongo, viver é um processo emocional, de movimento. Viver
é movimentar, e movimentar é aprender” (1997, s/p.). A partir das pesquisas trazidas pelo
mesmo autor, e a partir da pesquisa prática com a Capoeira Angola, é possível perceber o quanto
alguns conceitos e fundamentos da visão de mundo do povo bantu ainda se mantêm preservados
na Capoeira Angola.
Na capoeira em geral existem movimentos corporais codificados que necessitam de
treinamento para seu desenvolvimento e de tempo para que o corpo assimile e naturalize aquela
movimentação. Especificamente na Capoeira Angola essa movimentação é feita num plano
mais baixo, utilizando tanto os pés quanto as mãos para que o chão se torne o melhor apoio
onde os golpes de ataque e de defesa serão revelados. Todo movimento corporal na Capoeira
Angola tem um significado. A partir dos escritos de Obi, que revela que o jogo do engolo tem
como base a espiritualidade, o autor descreve sobre a movimentação do chão “Esse constante
movimento de abaixar, tanto no ataque como na defesa, explica como o termo para tal arte pode
ter sido gerado a partir de um significado ancestral, “curvar-se para baixo ou torcer [como uma
articulação]” (OBI, 2008, p. 117).
Segundo Mestre Primo o ataque não existe sem a defesa e é preciso que o angoleiro ou
a angoleira aprenda a se defender primeiro para poder atacar depois, inclusive, em suas aulas,
Primo utiliza desse ensinamento como uma alusão à própria vida e à luta e resistência contra o
sistema capitalista opressor. Para Mestre Primo quando os dois capoeiristas só atacam acontece
um jogo travado, sem diálogo, mais preocupado com o espetáculo em si, do que com a troca
fluida, o que podemos observar, também, nos escritos de João da Mata:

Um jogo com pouco diálogo corporal, no qual os jogadores se chocam e se esbarram


muito, pode ser fruto de “ruídos”, desatenção e lentidão de resposta a estímulos
externos, ou então da incapacidade de se perceber o outro e propor interações de
acordo com esta percepção. Não se deve “gastar energia” soltando golpes sem sentido
ou sem sintonia com o outro. O angoleiro deve estar atento aos limites da roda, ao
toque e música que estão sendo executados, mas sobretudo ao outro, que neste caso,
está ali mais como complemento de seu próprio jogo do que seu oponente. O outro,
neste caso, serve como um espelho, auxiliando e refletindo a atitude do eu. (NETO,
2014, p. 92)

117
É no jogo de dentro que os jogadores na roda de Capoeira Angola irão negociar através
de seus corpos e de suas movimentações, quando um ataca, o outro defende, e vice-versa,
criando um diálogo onde um pergunta e o outro responde, dando espaço para que ambos se
expressem. Na Capoeira Angola se nomeia de jogo de dentro a movimentação feita mais no
chão, fechada, com o ataque e a defesa um dentro do outro. E jogo de fora os movimentos feitos
em pé, mais abertos e acrobáticos. O jogo de dentro faz com que aconteça um diálogo maior
entre os(as) angoleiros(as) e é onde mora a maioria dos movimentos de defesa. Para se defender
no jogo de dentro é preciso se aproximar da terra, se acocorar115 ou se esquivar116, abaixando e
fechando a movimentação corporal, fazendo com que o próprio movimento se torne um escudo
para o corpo. No importante estudo e pesquisa de campo feito pelo Dr. Manduka Obi sobre a
luta do engolo, a questão da importância da defesa corrobora com os ensinamentos de Mestre
Primo. O autor descreve:

Embora no início tenha sido utilizado para entretenimento e desenvolvimento de


habilidades pessoais de autodefesa, o engolo também era uma entre as várias práticas
que ajudavam a promover a evasão defensiva. Cimbebasianos, como a maioria dos de
língua Njila, não usavam escudos em guerra, mas confiavam no poder físico para
evitar ataques de inimigos e mísseis. Na África-Central, espalhou-se um tipo de
batalha que ocorreria em duas fases que testavam as habilidades de cada soldado de
esquivar-se e entre eles no combate corpo a corpo, respectivamente (THORNTON,
1988, p. 363-364). Pero Rodrigues, um missionário do final do século XVI, descreveu
esse tipo de evasão no norte de Angola: “Armas defensivas nenhuma tem, toda sua
defensa põe em sangrar, que é dar saltos de uma parte para outra com mil trejeitos, e
tanto ligeireza que possam escapar de flecha e pilouro que aponta neles”
(RODRIGUES, 1954, p. 563). Também na Cimbebasia, esquivar era um conceito-
chave tanto em pequenas incursões surpresas sobre o gado, como em guerras de
grande escala. (OBI, 2008, p. 117)

A partir disso, o fundamento da importância da defesa e do jogo de dentro se evidencia,


entendendo que quando o(a) capoeirista compreende e aplica esses saberes acontece uma
conversa equilibrada no jogo da Capoeira Angola, e com isso, interrompe-se o processo de
competitividade e utiliza-se da brincadeira, da malícia e dissimulação para mostrar ao outro o

115
Acocorar o corpo é abaixar-se, dobrando os joelhos e apoiando o quadril no meio do corpo. A cocorinha é um
movimento muito utilizado também pelos povos originários indígenas, que facilita o contato com a terra, além de
trazer diversos benefícios medicinais como a regulação intestinal e o fortalecimento dos joelhos. Além de como
descrito nas pesquisas de Manduka Obi, os movimentos mais baixos, referentes ao jogo do engolo que deu origem
à capoeira, tem um significado relacionado à ancestralidade (2008).
116
Esquiva é um movimento de defesa que pode ser feito tanto no plano médio como no plano baixo, onde o(a)
capoeirista utiliza da extensão dos braços e lateralidade das costas para defender-se de um movimento de ataque.

118
risco que ele poderia correr quando se marca um golpe que poderia ter acertado, mas na
brincadeira de Angola, somos todos camaradinhas117 e não há a intenção de ferir ninguém.
Essa dissimulação e brincadeira no jogo da Capoeira Angola é um fundamento utilizado
para surpreender o outro jogador, é o faz de conta, é o movimento que vai, mas no mesmo
momento volta, não termina, e usa da malícia e da encenação para pegar o outro jogador de
forma inesperada. Segundo Neto, esse fundamento é algo que está sendo perdido na capoeira
atual, pois vai contra o conceito de rivalidade e de força:

Este é um dos fundamentos da capoeira angola mais difíceis de serem encontrados na


capoeira atual. Para ser esporte e luta marcial, a capoeira teve de minimizar a
dissimulação, em troca de uma objetividade competitiva. Por isso, a ênfase nas
academias e escolas está na velocidade, na explosão muscular, na força. Valoriza-se
o mais rápido, o mais acrobático, o mais forte, e esquece-se da estratégia que a
capoeira angola encontra na malícia como capacidade de surpreender o outro. Neste
caso, a força é substituída para esperteza de dissimular o outro para depois atacá-lo.
(NETO, 2014, p. 91)

Quando o jogo de Capoeira Angola está pautado nessa técnica corporal de pergunta
(ataque) e resposta (defesa), no diálogo com o outro, dentro do jogo de dentro e, as vezes, de
fora, harmonizado com uma bateria musical equilibrada, em que os(as) angoleiros(as) brincam
e se divertem, não há violência no jogo, porque elimina-se a competição, fazendo que o sentido
de luta fique ancorado pela memória ancestral africana que habita em sua origem, e não no
embate corporal esportivizado que o sistema capitalista se apoderou e vende como legítima arte
marcial brasileira.

Porque a técnica traz história, arqueologia, filosofia, ela traz ciência e esses elementos
eles vão interagindo com o ser humano, com a gente que vai para a prática desenvolver
todo esse processo. A ancestralidade para mim tá nesse movimento que traz esse
contexto todo que pra mim isso tem consistência, não é uma tradição que é inventada
pelo sistema. Porque o sistema inventou uma tradição e uma ancestralidade que virou
mercadoria, que não tem uma consistência, que não tem uma raiz. (Entrevista com
Mestre Primo, 2023)

E a partir disso a beleza no jogo de Angola aparece naturalmente, não se tornando algo
pautado apenas na espetacularidade dos movimentos, principalmente os acrobáticos. Mestre
Primo costuma dizer que a bananeira, por exemplo, que é um movimento de invertida, onde
apoia-se o corpo inteiro apenas pelas mãos, erguendo os pés para cima, não deve ser feito apenas
pela sua virtuose espetacular provindo do ego de um exibido jogador, mas sim, deve ser usado

117
Menção muito utilizada entre os(as) capoeiristas para referirem-se uns aos outros e, também, utilizado nas letras
das ladainhas ou corridos de capoeira.

119
como saída para um golpe de ataque ou para a contínua fluidez do jogo. Ao ser executada apenas
como exibição de uma bonita acrobacia corporal, o jogador pode perder a escuta e o olhar atento
com o espaço e o jogo com o outro, podendo ocorrer um acidente e/ou uma lesão.

A estética na capoeira angola está diretamente vinculada aos princípios de


complementação e de malícia, ou seja, decorre do próprio jogo, respeitando as
movimentações singulares que o caracterizam (cada jogo é um jogo), e não padrões
como os das artes marciais orientais ou da ginástica olímpica, por exemplo. Este
conceito funcional da beleza da capoeira angola se estabelece, portanto, não na busca
de um referencial único ou exclusivo, mas no exercício da diferença que se dá em
cada encontro e seus infinitos arranjos. A beleza no jogo da capoeira angola nasce do
prazer da criação e não de modelos estéticos convencionados socialmente. Portanto,
não tem sentido a ideia de uma coreografia rígida da angola, pois o valor estético que
surge de um jogo, além de ser fruto espontâneo daquele encontro, não visa agradar a
quem assiste a partir de um referencial pré-determinado. (NETO, 2014, p. 94)

Essa colocação de Neto e do saber propagado por Mestre Primo também é expresso por
Manduka Obi, quando ele escreve que a movimentação acrobática e de inversão tanto no jogo
do engolo dos Cimbebasianos, quanto para outros povos africanos, tinha uma conotação
pautada nos ancestrais, como descrito abaixo:

Considerando essa perspectiva, o combate estético dos chutes invertidos do engolo


pode ser entendido como uma manipulação estilística de poderes ancestrais [...]
Kongoleses também entendiam que invertendo o corpo e apoiando-se sobre as mãos
era como se “andassem em um outro mundo” (THOMPSON, 1988, p. 135-40). Na
África Centro-Oeste, a inversão corporal estava relacionada ao poder espiritual, pela
imitação física dos ancestrais. Logo, para os de língua do protocimbebasiana que
desenvolveram o engolo, talvez o chute circular tenha sido inspirado em um mapa
corporal cognitivo que, associado à parte inferior do corpo e ao uso dos poderes dos
ancestrais, era usado para defesa ou proteção (MACGAFFEY, 2000, p. 81-2;
STROTHER, 1997, p. 94; VANHEE, 2000, p. 97). Chutes com o corpo invertido, em
que frequentemente sustentavam seus pesos em suas mãos e chutavam enquanto
estavam de cabeça para baixo, talvez tenham sido vistos como cópia dos seus
ancestrais, como a crença em um mundo de poder espiritual invertido, e nos ancestrais
que andavam com os pés para cima e a cabeça para baixo. O resultado estético dessas
valorizadas inversões acrobáticas frequentemente determinava que as mãos deveriam
suportar o peso do corpo enquanto chutavam, escapavam ou mergulhavam muito
baixo e rapidamente durante o ataque. (OBI, 2008, p. 116-117)

Entendendo que a Capoeira Angola parte desses fundamentos e técnicas descritos


acima, podemos dizer, então, que ela traz um ritual que vem sendo preservado nos corpos e na
oralidade dos capoeiristas. Ritual não no sentido religioso, pois, apesar da capoeira ter
elementos tanto em sua corporalidade, quanto na musicalidade, que bebem e dialogam com as
manifestações afro-brasileiras como o candomblé e a umbanda, ela não é uma religião, mas
inspirado e pautado em um diálogo com a espiritualidade, como descrito pelo autor citado
acima. Essa ritualística apesar de carregar esses códigos e padrões preservados durante todos
120
esses anos, quando apontada para essa discussão de decolonização, busca ser apresentada dentro
da liberdade da individualidade de cada corpo, reconhecendo as diferenças e afirmando um
objetivo de que a capoeira é tanto pra homem, menino ou mulher, dando referência a um corrido
de capoeira de domínio público cantado assim: “Salomé, Salomé, capoeira é pra homem,
menino e mulher”, independente da raça, classe social ou gênero.

2.3.3 Estrutura do ensino aprendizagem no Iuna e decolonialidade

Segundo Mestre Primo o maior desafio com a Capoeira Angola é encontrar sua origem,
e depois, o risco está em permanecer buscando esse conhecimento em paralelo com o contexto
capitalista que reproduz a colonialidade (2023). Duas grandes ações decoloniais que o Grupo
Iuna difunde, para Mestre Primo, é primeiro fazer com que qualquer aula na sede do Grupo
Iuna seja ofertada de forma gratuita, principalmente de Capoeira Angola, porque esse
conhecimento, segundo Primo, não pode ser vendido pois não é mercadoria, e sim de direito de
todos, e segundo, que a escola Iuna não tem um uniforme padrão, como na maioria dos grupos
de capoeira, pois Mestre Primo acredita que uniforme é uma forma de doutrinação e
padronização desse conhecimento.

Uma das coisas é que aqui no grupo as pessoas não pagam. Porque nós não tratamos
esse conhecimento enquanto mercadoria, esse já é o primeiro passo, o segundo passo
é que a gente não usa uniforme, porque o uniforme na minha compreensão é uma
forma de doutrinação, que é uma reprodução do sistema também no processo colonial.
Então são esses processos e outros que nós vamos usando aqui para poder evidenciar
o conhecimento, pois é o conhecimento que vai trazer a disciplina, não é te dar o seu
uniforme, e sim você compreender o valor desse conhecimento. Esse valor ele vai
condicionar você a uma disciplina porque você vai entender que para você poder ter
mais profundamente esse valor e conhecimento você vai ter que ter prática, você vai
ter que ter disciplina, a disciplina vai vir de dentro para fora não é de fora pra dentro.
Essa coisa da uniformização então é uma coisa que vem de fora para dentro que às
vezes não condiz muito com uma coisa que está de dentro para fora então entra em
contradição de todo esse processo que te deixa preso ali na doutrinação que você
também não consegue questionar por conta de uma tradição que sustenta toda essa
doutrinação. Então quando eu não uso uniforme aqui eu desconstruo toda essa
discussão porque eu busco uma disciplina. Falo para as pessoas que a disciplina tá no
útero que ele vai ser acionada com todo esse processo ancestral africano porque a
prática vai fazer isso né para mexer na sua essência. (Entrevista inédita com Mestre
Primo, 2023)

Importante ressaltar nessa discussão que no Grupo Iuna quem pratica as aulas não paga,
no entanto, os educadores, assim como Mestre Primo são pagos para ministrarem suas aulas,
muitas vezes, com financiamentos advindos de editais públicos como as Leis de Incentivo

121
Municipal e Estadual, e com o auxílio anual que a instituição Sant’Angelo, da Itália, contribui.
Entendendo assim que, os trabalhadores da cultura devem ser pagos pelos seus serviços
prestados à comunidade, e acessar os mecanismos públicos para isso, já que deveria ser dever
do Estado ofertar cultura e educação gratuitos à sociedade. Mestre Primo conta que uma
estratégia de reparação histórica é acessar esse dinheiro público – como nesses poucos fomentos
que o município e o estado disponibilizam – para devolver à comunidade, gratuitamente, o
conhecimento e a sabedoria provindos da cultura. E no caso da ONG Iuna, quem faz esse
serviço burocrático, acessa os editais e os patrocinadores, é Cássia, tornando-se uma
profissional essencial para a continuidade do trabalho do Grupo Iuna.
Portanto, quem convive e estuda na escola Iuna de Capoeira Angola, acessa múltiplos
conhecimentos, desde saberes e fazeres ancestrais africanos, até a prática de geração de renda
acessando mecanismos de financiamento cultural e educacional públicos e privados. Revelando
ensinamentos de resistência, sobrevivência e outros caminhos possíveis para, não apenas viver
promovendo arte de forma digna e responsável, mas entendendo quais mecanismos de busca de
direitos dos trabalhadores da cultura e da educação consegue-se acessar dentro de um Estado
que fomenta o consumo desenfreados e a dominação e disciplina de nossas subjetividades.
A partir disso, pode-se pensar, então, que a metodologia utilizada pela Escola Iuna
provém da discussão sobre decolonialidade, e, logo, quando unida com os fundamentos da
Capoeira Angola descritos acima, podemos dizer que a Escola Iuna é uma escola que pensa e
desenvolve a educação decolonial. Quando perguntado à Cássia (presidenta da ONG Iuna) o
que ela entendia sobre processo de decolonização/anticolonização, ela respondeu:

Não entendo, somos... aqui praticamos a decolonização, nossas ações sempre foram
decoloniais [...]somos uma escola com sede própria, que acredita numa nova forma
de viver neste mundo, não vendemos e nem compramos nada, não tratamos a cultura
da capoeira como mercadoria, pensamos e acreditamos num mundo onde o caminho
é resistir e desconstruir padrões impostos ao nosso povo, criticamos a modernidade
atual e o capitalismo que não empodera e sim escraviza a população principalmente a
periférica. (Cássia Silva, 2023)

A partir desse pensamento decolonial colocado no movimento corporal e transformado


em educação decolonial e antirracista, o próximo capítulo é dedicado à reflexão e ao desenho
dessa encruzilhada entre o circo e a capoeira. Entendendo a potência que é ter como base
metodológica os fundamentos da Capoeira Angola, difundidos pelo Grupo Iuna e por Mestre
Primo, em cruzo com o ensino aprendizagem das artes circenses, como potência para o

122
fortalecimento da identidade e liberdade de ser, principalmente das crianças e jovens
participantes de projetos de Circo Social.

123
3 ENCRUZILHADA: CIRCO E CAPOEIRA - PERSPECTIVAS CIRCENSES E A
VIVÊNCIA IUNA DE CAPOEIRA ANGOLA

3.1 CRUZO DE SABERES: CAPOEIRA ANGOLA E CIRCO

Neste capítulo é desenhada a encruzilhada entre saberes que envolvem as pedagogias


circenses e os fundamentos afro-referenciados da Capoeira Angola. Encruzilhada que busca
enxergar diversas possibilidades de mundos e saberes de diferentes perspectivas com
fundamentos e conhecimentos de uma outra cultura que não a eurocentrada. Ocorre, ainda, no
sistema vigente capitalista, a invisibilização e, por vezes, a demonização de visões que
divergem das eurocêntricas. Portanto, é na encruzilhada que se posiciona a colorida percepção,
corpo e coração de uma aluna, professora e pesquisadora, apaixonada pela capoeira, pelo circo
e pela arte-educação que vem, desde o ano de 2016, ocupando diferentes ambientes escolares
(formais e não formais) e lecionando para diferentes faixas etárias (dos 06 até os 70 anos), entre
os altos e baixos de minha busca por uma educação crítica. É assim que vai se deixando para
trás caminhos de dominação e disciplinação das subjetividades alheias como, por vezes, a
educação básica escolar apresenta, para se propor visões integradas ao movimento e à própria
vida errante. Nas palavras de Luiz Rufino a encruzilhada é assim entendida:

A noção de encruzilhada emerge como disponibilidade para novos rumos, gramática


poética, campo de possibilidades, prática de invenção e afirmação da vida, perspectiva
transgressiva à escassez, ao desencantamento e à monologização do mundo, a encruza
emerge como a potência que nos possibilita a prática de estripulias. Nesse sentido,
miremos a decolonialidade. (RUFINO, 2017, p. 35)

Mirando a decolonialidade essa encruzilhada inventiva aqui descrita almeja pensar os


fundamentos da Capoeira Angola como um campo de possibilidade para propostas
metodológicas de ensino-aprendizagem dentro das práticas do Circo Social, como uma
ferramenta de auxílio para a redução de danos e marcas deixadas pela desigualdade social,
pobreza e violência sofridos pelas crianças e jovens atendidas por esses projetos sociais.
Com toda licença, principalmente a todos os pesquisadores e as pesquisadoras que
vieram antes de mim, para assim pensar e riscar esses cruzos, com todo o respeito e a reverência
que essas linguagens aqui pesquisadas merecem, o objetivo desta dissertação não é apenas
apontar os aspectos de colonialidade presentes ou difundidos nas artes circenses, mas
compreender como o próprio Circo Social coloca essa pedagogia na encruzilhada quando se
preocupa em difundir ações pedagógicas que extrapolam o território do picadeiro e são
124
aplicados na vida cotidiana desses jovens, desenvolvendo conteúdos que ensinam sobre
direitos, cidadania e inclusão social. A Capoeira Angola também já se apresenta na confluência
dos saberes da capoeira, e ao entre cruzá-la com o circo, a partir de caminhos pessoais e
profissionais, a ideia é mapear esses padrões e aspectos no ensino e na prática do circo, ao
observá-los e discuti-los, para pensar formas e estratégias de mudanças e de combate ao que
prejudica a vida e a saúde dos artistas circenses. As práticas decoloniais e antirracistas da Escola
Iuna apontam outras direções e trazem inspirações para potencializar novos pensamentos e
ações dentro da pedagogia das artes circenses.
Sendo assim, a encruzilhada entre a Capoeira Angola e as artes circenses supera a
pretensa hierarquização de saberes e fazeres, propõe a decolonialidade, entre diferentes visões
de poderes e de saberes, em seus diálogos cruzados, na tentativa de um ato político junto ao
ensino das artes circenses, como já se apresentam nas propostas de Circo Social, que vêm
integrando diferentes artes: dança, teatro, brincadeira, música e a capoeira. Essa mudança de
perspectivas torna-se um ato político, como escreve Luiz Rufino, como ação para preservação
da vida:

Uma virada epistemológica como parte de um processo decolonial implica uma


política de preservação da vida em sua integralidade e imanência. A diversidade de
saberes possíveis no combate ao desencantamento do mundo exige a emergência de
outras ontologias, poéticas e seus respectivos cruzos. Não à toa, a colonialidade ‒ a
que prefiro chamar de carrego colonial ‒ se vitaliza trançando-se nas dimensões do
ser, do saber e do poder. (RUFINO, 2017, p. 33)

Nesse sentido, pensar como os fundamentos e práticas da Capoeira Angola difundida


pela Escola Iuna podem ser desenvolvidos junto ao ensino-aprendizagem das artes circenses no
âmbito do Circo Social, pode ser eficaz, ao trazer estratégias de uma formação para artistas
circenses que vai contra a racionalidade dominante no pensamento ocidental. Buscar a
decolonialidade, não apenas como conceito, mas como prática, é um ato de amor,
responsabilidade e transgressão, tornando-se um ato revolucionário (RUFINO, 2017).
O corpo é a intersecção entre essas duas linguagens em que se instauram tais
cruzamentos. Corpo enquanto primeira teoria e poética, que se coloca em ação na transformação
não apenas da forma física, mas também psíquica, emocional e espiritual. Corpo que está na
linha de frente de diversos combates decorrentes dos problemas estruturais das sociedades
mercantilistas, machistas e desiguais. Corpo enquanto resistência aos ditames capitalistas que
impõem a racionalidade como imperatriz, ou, corpos duramente disciplinados que funcionem e

125
sirvam às estéticas definidas pelo poder capital ou pelos que fazem o jogo econômico que incide
na determinação de corpos dóceis ou servis.
O corpo circense e o corpo do(a) capoeirista, se não engajados em saberes e fazeres
educacionais que discutam e pratiquem o corpo como resistência e o processo de reparação
contra a violência histórica e atual, podem ser corpos que apenas reproduzem o discurso do
mercado e assim continuam contando uma história a partir da estética e de padrões dominantes
que alimentam discursos de exclusão e de injustiça social. A linha entre essas duas
possibilidades é bem tênue. O sistema capitalista, que transforma tudo em produto, se apropriou
das discussões do movimento negro, dos discursos indígenas e das questões de gênero, entre
outros temas, ao vender estereótipos e histórias superficiais que retroalimentam o próprio
sistema e seus valores. Se não houver uma atenciosa vigilância e senso crítico, bons e sinceros
militantes e trabalhadores da arte e da cultura, em busca por transformações sociais podem, por
vezes, reproduzir narrativas dadas pelo mercado colonialista e folclorizado.
A partir de todas as colocações nos capítulos anteriores, tendo sido apontadas as
referências acerca dos conceitos de colonialidade e decolonialidade, discutiu-se,
historicamente, como o processo de escravização se apresenta como parte da origem da
capoeira. Entende-se, portanto, que a luta contra os aspectos da colonialidade que ainda habitam
no ensino e nas práticas do circo, têm como premissa a questão da injustiça racial, como
apontado por Luiz Rufino:

Parto do princípio de que não existe enfrentamento ao colonialismo e suas formas de


violência sem que se mire primeiramente o substantivo racial. O que afirmo já foi dito
por muitos outros que vieram antes de mim, de Fanon a Mbembe, de Segnhor a
Césarie: raça e racismo são a ortopedia desse sistema de dominação que nos
desmantelou enquanto seres e nos remontou enquanto colonizados. O que nos resta,
então, é intensificarmos, em todas as frentes de luta, a nossa capacidade de resiliência
e transgressão, do político ao poético, dos campos de batalha aos de mandinga.
(RUFINO, 2017, p. 13/14)

É nesse sentido que a pedagogia decolonial e a educação engajada e antirracista pode ser
uma lente de aumento das entrelinhas que habitam os discursos pedagógicos, e onde se coloca
o corpo como primeira epistemologia, em uma educação que irá cruzar o ensino-aprendizagem
com a experiência de vida do(a) estudante (hooks, 2017). Portanto, os apontamentos desta
pesquisa abordam, de forma ampla, as sugestões e metodologias pedagógicas para o ensino das
artes circenses, sem necessariamente fazer um recorte específico de alguma disciplina ou
alguma escola de circo, mas daqueles que podem ser inseridos, sobretudo, no universo do Circo
Social. É bom que se entenda, ainda, que esses cruzos poderiam ser inspiração para qualquer

126
professor(a) ou profissional das artes circenses que tiver interesse nessas discussões e assim
poderão, de forma autônoma e autêntica, desenvolver essas pedagogias nas aulas de artes,
inclusive no contexto educacional escolar ou extra escolar.
Será a partir da escuta das diversas vozes circenses que se dispuseram a contribuir com
as discussões colocados no Mapeamento, em diálogo com os fundamentos e práticas difundidos
pela Escola Iuna, que será traçada essa encruzilhada proposta entre a educação circense e a
Capoeira Angola. Ao serem revelados os aspectos de colonialidade em contraponto aos de
decolonialidade, apontados pelos respondentes do Mapeamento118, demonstrando reflexões e
alternativas diante os padrões impostos.

3.1.1 Do culto às ancestralidades ou de como se pode contar sobre as origens

Um fator em comum entre a história das artes circenses e da capoeira é a dificuldade de


encontrar documentação, registros e referências sobre as suas origens, fazendo com que, ambas
as linguagens guardem suas memórias, saberes e fazeres nos corpos e, em especial, pela
oralidade, sendo escritas e grafadas em suas práticas e performances, ou para se usar o termo
definido por Leda Martins119, pelas oralituras. Enfim, para se tratar dessas linguagens é preciso
colocar o corpo em ação, em movimento, e estar presente em ambientes, projetos ou escolas em
que esses saberes estão sendo disseminados e preservados coletivamente.
As manifestações de matriz afrobrasileiras veem o mundo e agem no presente a partir
do culto às ancestralidades, conforme já mencionado anteriormente120. Compreender práticas
ancestrais é respeitar aspectos da história que já foi vivida e escrita pelas pessoas que vieram
antes de nós. É olhar para trás na reverência aos saberes antirracistas que já foram traçados, ao
entender a ancestralidade como uma prática de saber (RUFINO, 2017). E assim, ainda como
apontado por Rufino (2017), além de uma estratégia para se contar as origens das histórias, a
ancestralidade também se torna uma prática que aponta novos horizontes:

Torna-se necessário, dessa forma, invocarmos as sabedorias ancestrais, porque, ao


emergirem, ao serem manifestadas como práticas de saber, elas trazem as presenças
daqueles que compõem junto conosco os giros dessa canjira espiralada que é a vida.
A invocação da ancestralidade como um princípio ontológico, epistemológico e
semiótico é, logo, uma prática em encruzilhadas. Afinal, a própria noção de

118
Ver o quadro 06 no capítulo 01 na página 53 e 54 desta dissertação.
119
Ver como esse termo foi apresentado no capítulo 02, página 108.
120
O conceito de ancestralidade está descrito no capítulo 02 na página 107.

127
encruzilhada é um saber praticado ancestralmente que aqui é lançado como
disponibilidade para novos horizontes que reivindicam a sofisticação de um mundo
plural, pujante e vigoroso, contrário e combativo ao desencanto e à escassez do
mundo. (RUFINO, 2017, p. 40)

Sendo assim, nas disciplinas ou discussões sobre a historiografia do circo, tendo como
inspiração o culto à ancestralidade, uma possibilidade de aprofundamento dessa história é
buscar registros acerca dos artistas mambembes que se apresentavam nas feiras e ruas e que
têm suas origens nas mais diversas culturas. Como discutido por DUPRAT (2013) e CASTRO
(2005), a história do circo mais acessível ficou condicionada à visão da Europa Ocidental121,
entendendo assim que a história que foi mais contada sobre a sua origem é apenas a partir do
circo moderno (por volta de 1770), com a criação do Astley's Amphitheater (do inglês Philip
Astley). Entretanto, é preciso lembrar a diversidade de histórias atreladas e inspiradas nas artes
circenses antigas, difundidas por esses artistas itinerantes que (como mais bem mencionado no
subcapítulo 1.2.1 desta dissertação) eram de diversas partes do mundo, como da China e do
Egito. Logo, é preciso buscar outras sementes da história do circo, para além dessa inglesa de
1770, que permitam abranger a pluralidade e a imensidão de saberes e fazeres das artes
circenses.
Outras referências que podem agregar no ensino da historiografia do circo
descentralizada, da Europa, são os escritos da autora Eliene Benício que, em seu livro
“Saltimbancos Urbanos: o circo e a renovação teatral no Brasil 1980-2000 (2018)” cita algumas
especialidades das artes circenses que remontam outros lugares como por exemplo a China, que
tem a arte acrobática, o malabarismo com pratos, o funambulismo e dançarinos que andam
sobre a corda bamba, como especialidades. Assim como a arte de domar animais selvagens
provindos do Egito.
Há também as reflexões acerca dos palhaços sagrados indígenas, que a autora Ana
Carolina Fialho de Abreu descreve em sua tese de doutorado intitulada “HÔXWA E
LLAMICHU: jogos cômico-críticos para o ensino de teatro e das histórias e culturas
indígenas”122 e defendido na UFBA, no ano de 2019. Ana Carolina se dedicou ao importante
registro das figuras dos ihken e hôxwa que são os homens responsáveis por fazerem rir, na
comunidade indígena dos Krahô, localizada no estado do Tocantins, “que têm o privilégio de
transgredir e ridicularizar o mundo no cotidiano da comunidade [...] inventando artimanhas,

121
Esse aspecto foi trabalhado no subcapítulo 1.2.1.
122
Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/handle/ri/31845#:~:text=Conclui%2Dse%20que%20o%20corpo,hist%C3%B3rias%2
C%20lutas%20e%20culturas%20ind%C3%ADgenas. Acesso em 01/05/2023.

128
contando histórias engraçadas, fazendo piadas, caçoando dos outros, alegrando, incentivando,
chamando atenção daqueles que não cumprem com os costumes, denunciando os problemas
que vivem os Krahô” (ABREU, 2019, p. 72). Entre registros e descrições de jogos cômicos,
que podem servir de repertório e inspiração para os(as) professores(as) propositores(as), a
autora também escreve sobre os llamichu, que são cômicos andinos, situados em Puquio, uma
cidade localizada na cordilheira andina peruana. Essa pesquisa de Ana Carolina Fialho de Abreu
torna-se um aprofundado catálogo de diferentes manifestações do riso e comicidade espalhados
pelo mundo, onde a autora faz o recorte mais específico com os indígenas Krahô e de Puquio.
Cita ainda várias figuras cômicas, festas, rituais e celebrações de povos originários e
tradicionais de diferentes partes do mundo como Chile, México, Bolívia, Canadá, Peru e Brasil
(estados do Maranhão, Mato Grosso, Pará, Tocantins e Amazônia), apontando diferentes
direções de pesquisas que podem ser exploradas e ampliando o olhar para outras culturas e
comicidades que não apenas a figura do palhaço europeu da máscara branca e nariz vermelho.
Outro importante referencial são as pesquisas da historiadora Ermínia Silva, que escreve
sobre o palhaço negro Benjamin de Oliveira123, nascido em Minas Gerais e que fez importantes
contribuições para a história do circo e do teatro no Brasil. Além dessa preciosa pesquisa,
Ermínia segue publicando e compartilhando seus conhecimentos124 em eventos, congressos,
fóruns etc., tornando-se uma importante referência sobre a historiografia descentralizada do
circo.
Além dessas sugestões, instigar a pesquisa por referenciais diversos sobre o circo no
mundo é uma estratégia de descentralização do conhecimento. Outro exemplo é o Povo Dogon,
que vive na região do Mali na África Ocidental, que são um povo muito antigo, que preserva
uma língua própria secreta e promove um ritual muito colorido com máscaras em couro e búzios
(algumas de até 6 metros de comprimento) e andam em perna de pau.
O Povo Dogon é conhecido como o povo das estrelas, pois preserva um conhecimento
ancestral sobre astronomia e sobre a Estrela Sirius125, antes mesmo dela ser descoberta pelos

123
Disponível em https://www.circonteudo.com/trabalho-academico/as-multiplas-linguagens-na-teatralidade-
circense-benjamim-de-oliveira-e-o-circo-teatro-no-final-do-seculo-xix-e-inicio-do-xx-download-disponivel/ -
Acesso em 01/05/2023.
124
O site Circonteúdo foi criado por ela e tornou-se uma biblioteca recheada de referenciais em pesquisas em circo.
Acessado em https://www.circonteudo.com/ - Acesso em 01/05/2023.
125
Este vídeo documentário relata mais profundamente sobre a relação do Povo Dogon com a Estrela Sirius:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=213&v=qASI_bHKEfo&embeds_euri=https%3A%2F%2Fww
w.google.com%2Fsearch%3Fq%3Dpovo%2Bdogon%2B-%2Bestrla%2Bsirius%2B-
%2Bantes%2Bda%2BFran%25C3%25A7a%26source%3Dhp%26ei%3D4MRPZMEg3MzWxA-
Kg4fgBg%26iflsig%3DAOE&source_ve_path=MzY4NDIsMjM4NTE&feature=emb_title - Acesso em
01/05/2023.

129
alemães no ano de 1844. Carrega uma cosmovisão pautada nos elementos da natureza, na
espiritualidade, no mistério e na preservação de saberes e fazeres ancestrais.126 Instigar a
curiosidade dos estudantes na busca por esses referenciais é ampliar o olhar sobre as origens
das artes circenses e o pensamento de como o circo pode estar inserido em diversos contextos
e diferentes culturas e lugares.
Ancestralidade como prática de saber (RUFINO, 2017) é ter a curiosidade em buscar
referências nas histórias mais longínquas. E essa busca é pautada não apenas nos escritos e
livros, mas também nas corporalidades, símbolos e manifestações que ainda nos restam e que
sobreviveram com o passar do tempo apesar da violenta história de apagamento de nossas
próprias raízes ancestrais. Ancestralidade como prática é colocar-se em ação para a busca de
conhecimentos, é permanecer e se relacionar com espaços e pessoas que irão auxiliar na
revelação dos conhecimentos.

Imagem 17 - Ritual do Povo Dogon

Fonte: http://www.afreaka.com.br/notas/pais-dogon-a-danca-das-mascaras-em-fotos/ Acesso em 01/05/2023.

Compreender a ancestralidade como princípio inspirador nas metodologias, no ensino-


aprendizagem das artes circenses é uma ação de transformação de mundos e novas perspectivas
para estudantes que adentram nesse universo circense. É preciso haver caminhos que apontem
para outras direções que não apenas o Norte, representado pela Europa ou pelos Estados Unidos,

126
Há um artigo que descreve sobre o pensamento dos Dogons, escrito por Elcimar Simão Martins, Alexandrino
Moreira Lopes, Ianes Augusto Cá e Jorge Andrade, acesse em ttps://abpnrevista.org.br/site/article/view/774/743 -
Acesso em 01/05/2023.

130
de forma a valorizar, por exemplo, os conhecimentos amefricanos, como proposto por Lélia
Gonzalez (1989) ou afro-pindorâmicos e contra coloniais como proposto por Nêgo Bispo
(2015). É nesse sentido, que a Capoeira Angola contribui, com sua forma de entender os corpos,
a partir de uma memória de luta, que vem sendo difundida por Mestre Primo127, em processos
de resistência reverenciados entre seus ancestres, na busca de se escrever novas e potentes
histórias de aprendizagens corpóreas, que tem o potencial para se somar às pedagogias
circenses.
Mestre Primo, em entrevista realizada para esta dissertação (2023), diz que enxergar a
capoeira, em sua origem, apenas como brasileira, é uma negação do sistema, permeado pelo
padrão de colonialidade, que leva à invisibilização da história, ou seja, da importância que os
diferentes povos africanos têm para a construção do Brasil. Levando a refletir, por outro lado,
ao se pensar a origem do circo apenas na Europa Ocidental, como única e universal, nega-se a
imensa diversidade das artes circenses e de suas variadas origens diante povos que são tidos
como exóticos (CASTRO, 2005). Pode-se pensar então, que ao se tomar a ancestralidade afro-
brasileira apresentada pela perspectiva da Capoeira Angola como premissa pedagógica e buscar
a origem das artes circenses entendendo-as como plurais, em suas diferentes origens, provindas
de muitas partes do mundo, é criar estratégias anticoloniais.
Aprofundar o entendimento sobre as origens plurais das artes circenses e desmistificar
o discurso de sua única origem eurocêntrica, a exemplo do que foi descrito acima, pode
despertar a curiosidade nos estudantes, assim como o desejo de pesquisar. Apresentar a
perspectiva e a importância do respeito à ancestralidade nas pedagogias de ensino, não apenas
nas salas de aulas, mas em seminários, congressos, eventos, oficinas, entre outros dispositivos,
poderia ser um passo inicial para o processo de decolonização das artes circenses. Assim,
estudantes e profissionais do circo podem se engajar nessa temática para escreverem – tanto em
seus corpos quanto em suas palavras – e difundirem pesquisas históricas, auxiliando no
preenchimento das lacunas existentes, como a falta desses referenciais no campo dos estudos
das artes da cena e da educação.

127
Mestre Primo, a Capoeira Angola e o grupo Iuna são apresentados no capítulo 02, a partir da página 87.

131
3.1.2 Deslocamentos do entendimento sobre o corpo

Como melhor descrito no capítulo 1, mais especificamente no subcapítulo 1.2 que


contextualiza o conceito de colonialidade, através das escritas de Foucault (1997), entende-se
que a partir dos séculos XVII e XVIII se intensifica o controle e a disciplinarização dos corpos,
com o objetivo de domesticação, para que se tornem mão de obra servil e funcional para manter
a gigante engrenagem do sistema capitalista. Como o sistema é baseado nas premissas da
colonialidade, mantêm-se assim, o padrão de imagem eurocentrada de corpo ideal como magro,
branco e atlético. Na visão tradicional estruturada na sociedade foram invisibilizados ou
descredibilizados corpos divergentes do padrão, pessoas com deficiência, negras, indígenas,
LGBTQIA+128, gordas e idosas.
A própria Capoeira Angola quando praticada fora dos grandes centros, como no caso
do Grupo Iuna, que promove aulas gratuitas em sua sede localizada na periferia da cidade de
Belo Horizonte (Bairro Saudade), ou os projetos de Circo Social, que normalmente atuam em
territórios periféricos, incluem corpos ditos como minorias, só por estarem atuando nessas
localidades. Entendendo que nos bairros, vilas e periferias mais afastadas dos centros residem
pessoas que, em sua maioria, são afrodescendentes e enfrentam fatores de vulnerabilidade
social. Essas afirmações são confirmadas pela coleta de dados feita pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
descritos no “Atlas das Periferias no Brasil: aspectos raciais de infraestrutura nos aglomerados
subnormais”129 publicado no ano de 2021:

A composição racial nos aglomerados subnormais apresenta uma concentração de


pessoas negras morando nas periferias, com uma sobrerrepresentação de pretos e
pardos. Ao todo, 68,3% eram negros; 30,6%, brancos; e 0,2%, indígenas. Quando
observado o percentual de residentes em áreas regulares, os negros eram 49,6%,
enquanto a soma de brancos (48 8%) e de indígenas (0,4%) se aproximava do total de
pretos e de pardos. (GOES; LUNELLI; OLIVEIRA; REIS; VIEIRA, 2021, p. 21)

Nesse sentido, o público atendido por esses projetos, são majoritariamente pessoas que
lidam com a falta de estrutura urbana, a pobreza e a violência. E não são enxergados, diante o

128
Essa é a sigla atualmente mais utilizada, porém, há algumas correntes que complementam com outras siglas
como: LGBTQQICAAPF2K+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Questionando, Intersexuais,
Curioso, Assexuais, Aliados, Pansexuais, Polissexuais, Familiares, 2 two spirits e Kink).
129
Autoria de Fernanda Lira Goes, Maria Gabriella Figueiredo Vieira, Talita Rocha Reis, Flávia Adriane Pestana
de Oliveira e Isabella Cristina Lunelli. Disponível em https://ipea.gov.br/portal/publicacao-item?id=e1768f8d-
eae3-4484-aa41-a3522632dc92&highlight=WyJhdGxhcyIsIidhdGxhcyIsInBlcmlmZXJpYXMiLDIwMjFd -
Acesso em 01/05/2023.

132
sistema vigente capitalista, como corpos que respondem aos padrões modernos, de corpos
brancos, magros, e diante uma estética eurocentrada. Logo, além de habitar as periferias dos
grandes centros, são pessoas colocadas à margem das estruturas de poder, e com pouco, ou
quase nenhum acesso à qualidade de vida130.
Como mencionado pelos artistas respondentes ao Mapeamento131, no circo profissional,
muitas vezes, por serem disseminadas técnicas de forma rigorosa ou rígida, inspirada no
atletismo e no universo da musculação, pode haver um entendimento de corpo impregnado do
paradigma da colonialidade. Importante ressaltar que se entende que o treinamento circense é
o modo de existência do artista de circo e a importância dos exercícios de força e resistência
para o fortalecimento e desenvolvimento do corpo desse profissional, e que existe até como
medida preventiva contra lesões. No entanto, quando se ultrapassa essa compreensão e o
treinamento torna-se excessivo, utilizada dentro de um pensamento estético e exclusivo,
exacerbadas as vaidades, já não se está mais no campo da saúde e, sim, se potencializam a
competitividade e o dever de padronização de um ideal de corpo, podendo fazer com que
estudantes e artistas circenses percam a escuta de seus próprios corpos e se limitem
corporalmente, além de excluir os corpos diversos que não se enquadram nesses paradigmas.
Trazer a compreensão do corpo como memória de luta, baseado no culto à
ancestralidade afrobrasileira, também como premissa pedagógica, amplia a discussão sobre o
corpo e ilumina a compreensão do corpo como arquivo vivo e crítico (FOUCAULT, 2004)
capaz de ressignificar e trazer circularidade sobre o passado e sua história, na contramão das
violências que vêm sendo propagadas nos discursos da colonialidade. As artes cênicas, por
serem eminentemente corpóreas, têm o corpo como primeira teoria, e o tornam o próprio
documento de registro, ainda que efêmero. Deslocando o entendimento de um corpo servil e
domesticado, para um corpo pensante, protagonista de discursos e de processos criativos.
Por isso a importância do deslocamento do conceito de corpo difundido pela
colonialidade, entendendo que não se trata apenas de um objeto comunicador relacional, mas
de um potente lugar de discursos, capaz de quebrar paradigmas e expressar outras
subjetividades diferentes daquelas disseminadas pelo sistema dos corpos perfeitos. É nesse giro
que se percebe o corpo a partir de memórias de lutas como um corpo coletivo, rasurando o
discurso do sistema capitalista que difunde, cada vez mais, o individualismo. Entender o corpo

130
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, qualidade de vida é “a percepção do indivíduo de sua inserção
na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos,
expectativas, padrões e preocupações”. Fonte: https://bvsms.saude.gov.br/qualidade-de-vida-em-cinco-passos/ -
Acesso em 05/05/2023.
131
Capítulo 1, páginas 53 e 54.
133
como resistência, como coletivo e memória de luta, é chegar à compreensão de que o corpo, em
sua autenticidade, pode reescrever a história atual e ressignificar uma dolorosa tradição. E as
artes circenses, tendo como principal campo de estudos o corpo como pesquisa e comunicação,
deve estar atenta aos discursos, aos conceitos sobre corpos para confrontar os paradigmas que
ainda seguem padrões coloniais. Trata-se de dar ênfase ao protagonismo para essas verdadeiras
histórias que precisam ser contadas, embebidas das ancestralidades ao serem ressignificadas a
partir dos corpos desses novos(a) escritores.
Ao se pensar em metodologias e ações práticas dentro do ensino do circo
contemporâneo, que utiliza de outras ferramentas artísticas como a dança e o teatro em seu
ensino, uma sugestão é explorar, nas aulas de criação de cenas, de improvisação cênica ou até
mesmo, de criação de partituras corporais a partir do estudo de algum aparelho ou objeto
circense, histórias pessoais ou de familiares, incidindo no(a)s estudantes um desejo pela busca
por saberes de suas próprias raízes. É possível, por exemplo, provocar uma busca pela origem
de seus nomes e sobrenomes; trazer a lembrança e encenarem alguma memória afetiva da
infância. Trazer recordações de músicas, gestos, palavras, rituais que algum parente deixou
marcado em sua lembrança; ou ainda compartilhar fotografias de sua família; bem como
perguntar a seus parentes mais velhos acerca de histórias curiosas e interessantes que tenham
vivido no passado de forma a se transformar, tudo isso, em repertório criativo e/ou ações
cênicas.
Buscar a própria história e a de seus ancestrais, para o artista circense, é a oportunidade
de se aprofundar no autoconhecimento, tomar para si o próprio conceito de corpo, ao reconhecer
e aceitar os próprios limites e do processo de aprendizagem. Escrever sobre si e ressignificar,
no corpo e na memória, histórias ditas e vividas, em oportunidades de se colocar em
experimentação e em cena, com sua própria subjetividade e, assim, transgredir a ideia de
universalismo imposta pela colonialidade. Desse modo se está a exercitar a decolonização, por
entender que o pensamento é construído a partir de uma localidade, diante de um indivíduo
único, que carrega a história de um lugar, de seus ancestrais e de seu contexto atual
(MIGNOLO, 2020).
A partir de sugestões educacionais advindas de fundamentos e processos anticoloniais,
as artes circenses tornam-se um espaço potente no processo de singularização, como discutido
por Guattari e Suely Rolnik (1996)132, onde fortifica-se uma subjetividade capaz de resistir às
capturas e adestramentos impostos, através das próprias experiências de vida e da exploração e

132
Ver descrito no subcapítulo 1.2 desta dissertação na página 43.
134
potencialidade da autenticidade. Sendo assim, a partir das experiências educacionais e artísticas
da pesquisadora e a hipótese que essa pesquisa revela é que as metodologias decoloniais
resgatam no(a)s estudantes os sensos de autonomia e liberdade de ser, transformando-se em
poéticas da diferença, e potentes ferramentas que irão auxiliar na redução de danos e marcas da
desigualdade social, da pobreza e da violência que, principalmente as crianças e jovens em
situação de vulnerabilidade social sofrem. Quando sugeridos referenciais afrocentrados ou
relacionados às ancestralidades indígenas, por exemplo, esses jovens atendidos pelos projetos
de Circo Social, que em sua maioria são periféricos, de descendência africana ou indígena, têm
a oportunidade de se identificar com a história contada, capazes de explorar e revelar símbolos
de luta e resistência. E a partir de exercícios, jogos e dinâmicas metodológicas que irão instigar
a busca pela própria origem e histórias dessas crianças e jovens, abre-se espaço para o
fortalecimento da autoestima e criação de narrativas que podem revelar desde as (belas)
perspectivas da vida desses sujeitos, até as dificuldades e limites enfrentados no cotidiano
periférico e violento.

3.1.3 Revelação lenta do segredo como ação de autocuidado

Pode-se levar o entendimento de uma técnica ancestral como revelação lenta de um


segredo, a partir da vivência integrada de ensinamentos, também para o ensino aprendizagem
das artes circenses. A partir de tudo que já foi sugerido e discutido nos capítulos anteriores, se
o(a) professor(a) propositor(a) de suas aulas de circo tratar o ensino de suas técnicas como um
segredo, que como descrito no subcapítulo II.1 sobre o tempo espiralar nos cruzos com a
Capoeira Angola (p. 108), no sentido de ser uma forma de passagem de conhecimento intrínseca
das tradições afrobrasileiras onde “O segredo na capoeira aparece enquanto uma essência das
formas mais primitivas. Ele é revelado a partir de um conjunto de elementos estéticos na
corporalidade do capoeirista. Desse modo, o aprendiz iniciado na capoeira captura e revela um
significado de constante busca dos saberes ancestrais” (JUNIOR, 2004, p.11). Nesse sentido,
valorizará o saber, e junto com o entendimento de ancestralidade, evidenciará a importância
que tem aquela técnica a partir de sua própria história ou da história antiga, aquela que foi sendo
passada de geração em geração, através de manifestantes que tiveram acesso àquele
conhecimento. A partir disso torna-se o(a) estudante também responsável por aquele saber, e

135
pertencente à história que está sendo escrita pelo viés da linguagem artística que se pratica, no
exercício mesmo das práticas corporais circenses.
O segredo é revelado através de um processo que envolve tranquilidade e exercícios
contínuos em cooperação, que além de ir contra esse conceito de colonialidade – que emprega
a ideia de tempo imediatista baseado na necessidade de produção e competitividade – é também
um ato de preservação da vida, ainda mais dentro das artes circenses que lidam com os riscos
diversos em várias de suas técnicas, principalmente o risco físico. Compreender a importância
do aprendizado estar pautado na tranquilidade e na observação do tempo pessoal de cada
estudante, é levar para o entendimento do corpo aquele outro sentido de tempo, como é próprio
da concepção de tempo espiralar133 revelando que cada corpo, de acordo com suas próprias
histórias, têm um processo e um tempo de aprendizado diferentes. Além disso, todo corpo em
aprendizagem necessita de atenção, cuidado, dedicação e tempo para assimilar com qualidade
e segurança aquela técnica que está sendo ensinada. Essa aprendizagem vinda das rodas de
Capoeira Angola serve para os processos corporais circenses.
Difundir que o aprendizado é um processo lento e que nem todos os dias estudantes irão
alcançar as expectativas que eles(as) mesmos(as) criaram, mas que, fazer um pouco a cada dia
é um ato transgressor de ensino corporal, uma vez que foge à lógica de competitividade. Nessa
perspectiva a perseverança, e persistência, através de exercícios educativos sérios e inteligentes,
facilitará a cultura de segurança no circo. Não querer alcançar resultados imediatamente é
ensinar o valor e a importância de se aproveitar o processo e o caminho de construção.
Aprendendo sobre um outro tempo, que não o vivido diante do relógio capitalista e, assim como
na capoeira, fazer com que esses fundamentos se insiram na vida pessoal e cotidiana,
transformando a visão sobre o mundo e sobre o cuidado de si. Como nos explica a autora
Betania Vicensi Bolsoni, a partir do pensamento de Michel Foucault, “O cuidado de si pode ser
entendido como o conhecimento de si, que exige um certo número de regras de conduta e
princípios que precisam ser conhecidos. Assim, o sujeito encontra sua singularidade através da
valorização de si próprio e do conhecimento de si realizado através do cuidado de si mesmo”
(BOLSONI, 2012, p. 08).
O cuidado de si revela caminhos para o autocuidado e preservação da vida, podendo
aflorar no estudante um sentido de humildade para compreender que o aprendizado é infinito e
que o corpo necessita de tempo para absorvê-lo. Entendendo que esse é um conceito que está
inserido no fundamento da capoeira, quando Mestre Pastinha diz que os(as) capoeiristas

133
Essa concepção foi explicitada na página 108, capítulo 02.
136
tornam-se eternos aprendizes, porque a própria capoeira não tem fim (Filho, 1997). Quando
esse fundamento é inserido no ensino aprendizado das técnicas circenses, desperta no
profissional do circo, o sentido da humildade em se perceber, sempre, no processo de
aprendizagem e revela a potencialidade do próprio corpo em ação, valorizando todo caminho
percorrido e tudo que já se aprendeu. Sendo assim, quando se acredita na infinidade dos saberes
e fazeres, sabe-se que sempre haverá o que aprender tornando o processo e o caminho mais
prazerosos que o resultado.
Essa busca por um certo desvendar secreto das artes circenses, pode ser uma estratégia
contra o virtuosismo extremo, contra a rigidez nas técnicas que não proporcionam a escuta
frente o medo, os limites do corpo e da saúde, o que acaba trazendo ao corpo um sentido de
instrumentalização, distante da própria liberdade e subjetividade. E como explica Betania
Vicensi Bolsoni, ainda a partir do pensamento de Michel Foucault, quando o corpo é
instrumentalizado, isso é fruto da disciplinarização e domesticação dos corpos que o sistema
impõe e que foge do cuidado de si, causando um desequilíbrio:

Foucault também ressalta que na atualidade o cuidado com o corpo aumenta


significativamente e o conhecimento do corpo segue em um progresso cada vez maior,
deixando a impressão que o cuidado demasiado em outras épocas dispensado à alma,
agora vigora sobre o corpo. Tal cuidado coloca o caráter do sujeito em uma condição
vulnerável, pois se for dado demasiado cuidado de um sobre o outro a constituição do
sujeito fica debilitada. Desta forma, a visão sobre o corpo é de um olhar instrumental,
em que tanto o cuidado exagerado quanto o conhecimento ilimitado do corpo podem
produzir a sua instrumentalização. Se o cuidado demasiado o coloca em situação de
evidência e o instrumentaliza, o conhecimento sobre o corpo se concretiza sob sua
instrumentalização, pois a maior proporção desse conhecimento estabeleceu-se nas
relações de poder exercidas sobre ele, na disciplina imposta aos corpos. Portanto, as
dificuldades enfrentadas hoje estão vinculadas ao poder enraizado sobre o corpo.
(BOLSONI, 2012, p. 12)

Sendo assim, é preciso entender a importância sobre o autocuidado dentro do lugar da


saúde e não apenas da imagem, para o artista circense, é um aprendizado sobre os limites do
risco, do próprio corpo e que gera um pensamento menos competitivo, amenizando as sequelas
adquiridas por conta de um sistema de domesticação e disciplinarização dos corpos.
A título de exemplos de como o virtuosismo extremo pode ser fator de adoecimento e
morte, pode-se pensar quando o estudante ou profissional do circo tem anseio em desenvolver
certa acrobacia, mas ainda não tem o preparo técnico completo e se arrisca na movimentação e
acontece uma fratura em seu corpo, ou até um acidente fatal, por não ter o domínio daquele
movimento. Isso ocorre por uma certa ansiedade, fazendo com que o estudante avance uma
etapa do aprendizado, talvez pulando algum educativo que seria importante para seu corpo

137
compreender e absorver o movimento. Esse exemplo foi presenciado por mim em uma aula de
acrobacia, em que um dos estudantes da turma se arrisca em fazer um mortal duplo na cama
elástica, tendo feito apenas uma aula, com poucos educativos e sem pedir auxílio para o
professor (nem estar suspenso por algum cinto de segurança), se arriscando no movimento e
caindo com o peso de seu corpo em cima do pescoço, o levando a óbito depois de dois dias de
hospitalização. Em um caso como esse, não foi falha no aparelho circense, nem culpa do
professor ou de qualquer outro fator que possa envolver acidentes no âmbito circense, mas sim
uma falta de responsabilidade e atenção do próprio estudante, que se arrisca sem ter o domínio
do movimento e a dimensão do risco que estava correndo. O que faz pensar que talvez uma
amplitude maior sobre a discussão dos riscos e da segurança no circo, e uma metodologia de
ensino que reforce mais esses fatores do autocuidado, de educativos que revelam as
modalidades como segredos, dentro de um tempo mais tranquilo de aprendizado, pautados na
discussão da decolonialidade para acontecer o deslocamento de pensamento sobre o corpo e a
saúde, poderiam, talvez, acolher mais essas personalidades ansiosas e ousadas, como no caso
deste estudante dado como exemplo, ponderando seus rompantes e ações que os colocam em
risco de vida.

3.2 OS FUNDAMENTOS DA CAPOEIRA ANGOLA INSERIDOS NA METODOLOGIA


DE ENSINO DO CIRCO SOCIAL

Os fundamentos da Capoeira Angola e as metodologias decoloniais que se revelam em


pedagogias antirracistas difundidas por Mestre Primo e pela Escola Iuna são inspirações para o
ensino das artes circenses. Esses princípios podem deslocar os padrões colonialistas de
pensamento que ainda são reproduzidos nessas linguagens artísticas. A Capoeira Angola como
uma manifestação de matriz afro-brasileira provoca nos educadores propositores e, logo, em
seus (suas) alunos(as) o despertar para uma nova elaboração sobre o corpo, sobre a diversidade,
a igualdade, a luta dos povos africanos e originários, a valorização de outras culturas diferentes
das europeias, e a busca por outras referências de saberes e fazeres.

O que podemos dizer é que estes profissionais da educação devem estar atentos
quando se diz a respeito das relações raciais, estamos comprometidos na formação
de crianças, negras e não-negras, precisamos compreender que para a elaboração de
uma educação antirracista, precisamos ser contra hegemônicos, e atentar-nos às
atividades propostas, matérias de consulta e escolha dos livros. (SANTOS, SOUZA,
2022, p. 192)
138
Como visto anteriormente, a capoeira e o circo trazem aspectos corporais comuns e
podem se complementar, podendo encontrar afinidades em seus princípios pedagógicos.
Abaixo será apresentado um quadro com as sugestões de atividades pautadas nos fundamentos
da Capoeira Angola para o ensino das artes circenses. Algumas propostas já foram sugeridas
nos escritos acima e outras novas serão descritas:

1. Ter como premissa educacional a ancestralidade afro-brasileira e sugerir


referenciais sobre a historiografia do circo que revelam suas origens diversas, e
não apenas na Europa. Como sugerido acima: as pesquisas em torno das
comicidades indígenas; a história de Benjamin de Oliveira; o imagético ritual
africano nas pernas de pau do Povo Dogon etc.

2. Instigar os estudantes na busca por suas próprias histórias e de seus familiares, por
exemplo: descobrir a origem de seus nomes e sobrenomes; compartilhar
lembranças e encenar alguma memória afetiva da infância; levar para as aulas
recordações de músicas, gestos, palavras, rituais que algum parente deixou
marcado em sua lembrança; ou ainda, compartilhar fotografias de sua família; bem
como perguntar a seus parentes mais velhos acerca de histórias curiosas e
interessantes que tenham vivido no passado de forma a se transformar, tudo isso,
em repertório criativo e/ou ações cênicas.

3. O(a) educador(a) social compreender as técnicas e o ensino das atividades


circenses como se fosse a revelação lenta de um segredo, valorizando aquele saber
e responsabilizando também o estudante aprendiz por aquele conhecimento.
Exemplificando dinâmicas: ter tranquilidade e calma para planejar o ensino das
modalidades, com atenção para não pular etapas e educativos importantes para o
processo de aprendizagem; falar sempre sobre a importância da paciência com o
processo do corpo em absorver aquele conhecimento e na valorização do tempo
como uma ação de autocuidado; rodas de conversa sobre a diversidade dos corpos
no tempo de aprendizado e da importância do respeito com cada estudante que tem
um tempo próprio e diferente um do outro, além da importância da valorização do
caminho/processo de aprendizagem do que o resultado final.

4. A utilização dos próprios movimentos corporais da Capoeira Angola como


aquecimento para o início das aulas. Exemplo das movimentações básicas de
ataque e defesa, a princípio feitas de forma individual, como a negativa lateral e
de frente, o rolê, a meia lua de frente e de costas, a chapa de frente e de costas, o
aú, o aú de cabeça, a bananeira etc. Assim como podem ser executadas
movimentações em duplas, para proporcionar interação e integração da turma,
como: negativa e rabo de arraia, tesoura e aú, rasteira e bananeira etc.

5. Para as crianças menores utilizar movimentos mais lúdicos da Capoeira Angola,


e alguns serem integrados com nomes de animais e de elementos da natureza

139
como: o sapinho134, a aranha135, o caranguejo136, a bananeira, e outros
movimentos como a própria negativa lateral e o rolê, onde as crianças podem
sugerir os nomes baseados nesse universo lúdico da natureza.

6. A utilização da musicalidade da Capoeira Angola integrando dinâmicas em rodas


onde as crianças e jovens irão cantar juntos e responder ao coro, ou, utilizar
algumas músicas de início e fechamento das aulas: a exemplo de utilizar os
corridos de “adeus” nas rodas de capoeira para se despedir dos estudantes “adeus
povo bom adeus, adeus que eu já vou embora, pelas águas do mar eu vim, pelas
águas do mar vou embora”.

7. Integrar alguns instrumentos percussivos nas aulas, exemplo da utilização do


pandeiro para iniciar e finalizar as aulas cantando, ou também o uso do atabaque
em jogos como: o atabaque marca um ritmo simples do ijexá (que é a batida
utilizada nas rodas de capoeira), as crianças e jovens caminham de acordo com a
cadência rítmica que o (a) tocador (a) estiver batendo, quando o ritmo acelerar os
participantes andam mais rápido, e quando diminuir, desacelera o passo. Outro
exemplo: determina-se quatro movimentos já trabalhados como o sapinho, a
aranha, a bananeira e o rolê, e cada movimento será equivalente a um número de
batida no instrumento (pode ser o pandeiro ou 140gogô ou o atabaque). A dinâmica
inicia com todos caminhando por todo espaço, quando der uma batida, todos param
e fazem a movimentação do sapinho; e depois voltam a caminhar. Quando o
instrumento marcar duas batidas eles e elas tem de fazer outra movimentação como
a aranha, quando der três a bananeira e quando der quatro fazem o rolê. Essa
dinâmica requer escuta e atenção dos participantes para perceberem o número de
batidas e saberem qual movimento corresponde.

8. Utilizar a própria dinâmica de ensino das acrobacias partindo da Capoeira Angola


como por exemplo: o movimento da bananeira na fluidez do movimento, onde o
participante apoia primeiro uma mão no chão, depois a outra e levanta os pés para
o alto, olhando para os próprios pés, ao descer ele dá um passo à frente e faz
novamente, percorrendo o espaço delimitado pelo professor. É uma movimentação
contínua, diferente do ensino comum da parada de mãos dentro das artes circenses,
que normalmente são ensinadas em uma postura estática. Assim como o
movimento de aú de cabeça, que no circo é chamada de parada de três apoios, ou
parada de cabeça. No ensino da Capoeira Angola esse movimento é feito dinâmico
também, onde o aprendiz apoia suas mãos no chão, depois apoia o topo da cabeça,
tira um pé primeiro do chão, depois o outro, e volta a apoiar um pé de cada vez,
voltando ao plano alto, em pé, e repete essa mesma sequência dando um passo à
frente.

9. Também é possível utilizar a ginga, a rítmica e a movimentação da Capoeira


Angola para o ensino do malabarismo, por exemplo. Depois de já ter sido
apresentado a ginga e algumas movimentações corporais da Capoeira Angola para

134
O sapinho é um movimento que consiste em estar ajoelhado, como o movimento da cocorinha, e fazer pequenos
saltos, estirando o corpo na posição de pé e retornando, flexionando os joelhos.
135
A aranha é o movimento em que se olha para baixo e apoia-se as mãos no chão mantendo o quadril para cima,
como em quatro apoios.
136
O caranguejo é o movimento invertido da aranha, em que se apoia as mãos no chão olhando para cima e mantém
os quadris erguidos.
140
os estudantes, a dinâmica pode iniciar com apenas um objeto de manipulação
(bolinha, clave, aro etc.), e depois ir adicionando mais objetos. O jogo é simples,
primeiro em um diálogo com a ginga, o participante irá jogar o objeto de uma mão
para outra, fazendo com que todas as vezes em que o objeto for para o alto, é
quando os pés ficam em paralelo, no meio, e quando objeto descer e ser pego com
uma das mãos, é quando uma das pernas vai para trás, fazendo o triângulo comum
à ginga. Essa dinâmica auxilia no desenvolvimento da coordenação motora e
sugere um ritmo para a manipulação do objeto. Essa mesma dinâmica pode ser
feita andando pelo espaço, e de forma livre, explorando outros movimentos como
a negativa, o rolê, o sapinho etc., jogando e interagindo com o objeto de
manipulação.

10. A prática de musicalização desses estudantes ser feita através dos instrumentos, do
ritmo, cantos e da formação da bateria utilizada na Capoeira Angola.

11. Utilizar os instrumentos, a musicalidade e os cantos da Capoeira Angola em


cortejos cênicos e integrados às apresentações de números circenses.

Esses exemplos e sugestões escritos no quadro, são baseados em minhas leituras,


reflexões e experiência própria como docente, tanto em escolas de ensino regular estadual e
fundamental, para citar alguns exemplos, como os Projetos de Escola Integrada que trabalhei
na periferia do bairro Saudade em Belo Horizonte137 e na cidade de Mariana/MG138, assim como
em projetos de ensino não formal, como no Grupo Iuna, no ano de 2019. Entre setembro de
2022 e julho de 2023 atuei como educadora social de iniciação às artes circenses na ONG O
Caminho139 localizada na cidade de Vilhena no estado de Rondônia. Neste projeto tenho a
oportunidade de colocar em prática muitas das reflexões aqui dissertadas, na experiência de
planejar as metodologias pedagógicas das práticas circenses, baseadas nos referenciais e
fundamentos decoloniais e antirracistas da Capoeira Angola.
Sendo assim, o quadro acima sugere algumas atividades, dinâmicas e metodologias que
podem ser inseridas no ensino aprendizagem das artes circenses contemporâneas, que mescla
as técnicas circenses com outras linguagens artísticas, como o teatro, a dança e a capoeira,
dentro dos projetos de Circo Social. Essas iniciativas agregam e complementam as aulas de
circo, e não apenas as práticas de Capoeira Angola em paralelo às aulas de artes circenses, o
que já acontece em alguns cursos e projetos. Essas dinâmicas fortalecem e auxiliam no processo

137
Nos anos de 2017 a 2019 trabalhei na Escola Estadual Coração Eucarístico, com disciplinas de artes circenses
e dança para os jovens do Ensino Médio.
138
Em Mariana/MG no ano de 2021, até maio de 2022 trabalhei em escolas como a Escola Municipal Dom Luciano
e Wilson Pimenta, localizadas em áreas periféricas da cidade, e na Escola Municipal Sinhô Machado, no distrito
de Santa Rita Durão, área rural da cidade, com disciplinas de artes circenses e teatro.
139
A Ong O Caminho fica no bairro periférico Marcos Freire, na cidade de Vilhena/RO. Iniciei meu trabalho na
ONG em setembro de 2022, atendendo um total de 65 crianças, domiciliadas em áreas periféricas da cidade.

141
de enfrentamento dos riscos sociais que essas crianças e jovens periféricos enfrentam, porque
são pautadas na premissa da ancestralidade como prática de saber e nos fundamentos da
cosmovisão afrocentrada e decolonial da Capoeira Angola.
Assim, as aprendizagens da Capoeira Angola e as circenses trabalham com o corpo
enquanto primeiro lugar de pesquisa, por serem linguagens ancestrais pautadas na oralidade
enquanto biblioteca viva; também por trazerem uma história de resistência, enquanto culturas
populares e carregarem as próprias memórias nos corpos e performances de seus manifestantes;
por guardarem segredos que são revelados na ação corporal de quem se coloca à escuta de um
outro corpo/voz para fazer parte e continuar escrevendo, na contemporaneidade, sobre esses
campos de pesquisa corporal e cultural.
A Escola Iuna serve como referência educacional para um ensino mais inclusivo dentro
das artes circenses uma vez que suas ações corporais visam a decolonialidade. Sem deixar de
valorizar e potencializar a própria história e resistência do Circo Social que já se preocupa em
auxiliar crianças e jovens pobres no enfrentamento de um contexto violento e de pouco acesso
à educação, trabalho e cultura de qualidade. É importante ressaltar que cada linguagem, tanto a
Capoeira Angola quanto o Circo Social, carregam conceitos e fundamentos diferentes entre si,
mas que nessa encruzilhada de saberes, sem deslegitimar nenhum deles, considerando que há
complementaridades nessas práticas libertárias do ensino a serem melhor desenvolvidas.
Entendendo a encruzilhada como um lugar vivo e potente, de transgressão e manutenção, como
descrito por Luiz Rufino:

Assim, o conceito de encruzilhada como perspectiva para outras leituras de mundo


nos possibilita a transgressão dos regimes de verdade historicamente mantidos pelo
colonialismo. A manutenção desses regimes balizados na ordenação de um mundo
dividido em dois contribui para a perpetuação das injustiças cognitivas praticadas a
todos aqueles desviados existencialmente, uma vez que existir plenamente é ser
credível e ter a vida enquanto possibilidade de fartura e encantamento. Em sentido
contrário, as injustiças operadas na destituição ontológica dos seres atacam
diretamente a diversidade que compõe o mundo. O universalismo pregado como mote
de um modelo de consciência e razão totalitária, produtor do desvio
existencial/coisificação dos seres, é também o elemento propulsor dos epistemicídios
(Santos, 2002; Carneiro, 2005) praticados durante séculos. (RUFINO, 2017, p. 43)

Nesse cruzo, entende-se que além de todas essas complementaridades que essas
linguagens trazem e que professores, propositores, podem sugerir, há também os riscos, tanto
nas artes circenses, quanto na Capoeira Angola, que se colocam em diálogo. A partir dessas
discussões e entendimentos, o quanto a educação decolonial da Capoeira Angola poderia

142
contribuir para o enfrentamento dos riscos sociais com os quais lidam os estudantes de projetos
de Circo Social?

3.3 OS RISCOS EM DIÁLOGO

Como já descrito, a capoeira foi constituída pela luta dos povos africanos para
sobreviverem a um regime violento e escravocrata e que, mesmo depois da abolição foi
perseguida e criminalizada. Ou seja, é sobre a história da vida e resistência de pessoas que
viviam, a cada momento, em risco. Como descrito no subcapítulo 1.2 que aponta sobre o
conceito de colonialidade, mesmo com a abolição desse regime colonial escravocrata, que
ocorreu tardiamente, o padrão de poder opressivo e violento se perpetuou, transformando-se em
estratégias do fundamento capitalista para se manter o racismo estrutural, que ainda deixa suas
marcas sociais em seus descendentes afro-brasileiros. Diante disso, é sabido, documentado e
descrito acima que a população negra e periférica, no Brasil, é de pessoas que mais convivem
com situações de vulnerabilidades sociais, e crescem em situação de riscos, cotidianamente.
Como descrito pelo Dr. FuKiau, no texto com tradução de Makota Valdina, explicita-se que a
abolição do tráfico não libertou o povo africano:

A abolição do tráfico de escravos e descolonização não libertou completamente o


povo africano em todas as partes onde eles são encontrados. Cadeias, prisões e
projetos de alojamentos incrementados com grande rapidez são feitos não somente
para controlar seus movimentos, mas para mantê-los fora das bibliotecas naturais,
escolas e empregos. Tudo isso acontece no período que prepara para a entrada da zona
criativa - lubata wa mvângila, o período de aprendizagem. Agora armas de fogo e
drogas estão sendo despejados em toda parte do continente para desestabilizar o
processo de aprendizagem que deveria estar tomando o lugar nas comunidades
Africanas. Conceitos de valor e sacralidade de vida e mundo estão se deteriorando.
(FUKIAU, s/ano, p. 07)140

Sendo assim, por conta desse racismo histórico e estrutural muitas pessoas descendentes
dos povos africanos ainda sofrem diante vulnerabilidades sociais, onde a maioria delas ainda
vivem em vilas e periferias, com pouco acesso à educação de qualidade, a boas condições e
oportunidades de trabalho e à democratização de arte e cultura. É a partir da origem da capoeira
e da história dos povos africanos que se entende melhor esse contexto social atual.

140
Texto completo em: https://estahorareall.files.wordpress.com/2015/07/dr-bunseki-fu-kiau-a-visc3a3o-bantu-
kongo-da-sacralidade-do-mundo-natural.pdf - Acesso em 09/04/2023.

143
Logo, manifestações culturais populares e de matrizes afro-brasileiras vivem em risco,
pois, ainda são pouco valorizadas social e culturalmente, ao serem colocadas em um campo da
folclorização, sendo difundidas e discutidas apenas em datas comemorativas e, ainda, sob o véu
do discurso racista e capitalista. É neste sentido que conhecer os fundamentos e conceitos da
Capoeira Angola como uma metodologia decolonial e antirrascista, nas linguagens artísticas,
pode ser uma estratégia de reparação e transformação desse discurso folclorizado e diminutivo
acerca das manifestações culturais de raiz afro brasileiras, gerando discussões e reflexões
durante todo o ano letivo e despertando a curiosidade dos estudantes sobre a temática.
Nesse entendimento, faz sentido desenvolver fundamentos decoloniais e antirracistas no
ensino-aprendizagem em projetos que trabalham com Circo Social, já que utilizam da educação
para promover a inclusão social. É a partir do enfrentamento à situação de risco social que esses
participantes de projetos de Circo Social sofrem, que haverá uma identificação com os discursos
e conceitos que os fundamentos da Capoeira Angola difundem, levando para esse(a)s aluno(a)s
uma outra perspectiva sobre sua ancestralidade, e uma outra maneira de valorizar e contar a sua
própria história e a de seus familiares ancestrais. Caberá ao Educador Social buscar essas
referências ao desenvolver suas metodologias pedagógicas que revelem novas formas desses
participantes se relacionar com a sociedade:

O circo social é uma metodologia pedagógica de ação social vinda de uma fusão
inovadora entre as artes circenses e a ação social. O circo social visa o
desenvolvimento integral e a inclusão cidadã das pessoas das classes populares, mais
especificamente dos jovens. Justamente por dar lugar à liberdade e à criatividade,
exigindo sempre coragem, perseverança e disciplina, o circo social permite aos
participantes se desenvolver, se expressar e criar, com a ajuda de sua diferença, novos
tipos de relações com uma sociedade que frequentemente os excluiu. (BOUCHARD;
LAFORTUNE, 2011, p.14)

Outro risco em comum entre essas artes são as relações que elas trazem com as questões
de identidade, com a oralidade, enquanto premissa para a construção dos saberes e fazeres. Nas
artes circenses, mesmo nas escolas de circo contemporâneas, isso ainda é algo muito presente,
como descrito por Diego Ferreira, Marco Antônio Bortoleto e Ermínia Silva:

Na tradição oral inerente às práticas circenses, as gerações mais velhas foram


repassando para as mais novas a arte do Circo, geralmente de parente para parente e
agregados que se incorporavam à profissão.
Contudo, a questão da transmissão oral não se deu apenas naquele modo de
organização do trabalho cujos saberes eram transmitidos de geração a geração. A
oralidade também está presente nos bancos escolares em geral e, em particular, na
maioria das escolas de Circo existentes no Brasil, com maior frequência, mas também
em várias escolas de distintos países. (BORTOLETO, M.A.C.; FERREIRA, D.;
SILVA, E., 2015, p. 19)
144
Sendo assim, a oralidade se refere a uma característica intrínseca a esses modos de
saberes, como as artes circenses e a Capoeira Angola. No entanto, percebe-se que esses saberes
e fazeres preservados oralmente, são colocados em risco, por um sistema vigente, permeado
pelo padrão de colonialidade, que não dá valor ao culto à ancestralidade e à preservação de
nossas memórias enquanto povo. Isso é afirmado quando olhamos para a história e registra-se
que a escrita alfabética era algo que ditava hierarquia sob os povos, desvalorizando os saberes
orais, como descrito por Mignolo:

No século 16, missionários espanhóis julgavam e hierarquizavam a inteligência e


civilização dos povos tomando como critério o fato de dominarem ou não a escrita
alfabética. Esse foi um primeiro momento para a configuração da diferença colonial
e para a construção do imaginário atlântico, que irá constituir o imaginário do mundo
colonial/moderno. (MIGNOLO, 2020, p. 23)

Atualmente ainda é difundido esse imaginário quando percebemos que não há um


esforço do Estado em preservar as línguas de nossos povos originários e ancestrais e nem de
ensiná-las na educação básica, tendo como disciplina obrigatória o ensino da língua inglesa, ao
invés, até mesmo, do espanhol, que são nossos vizinhos mais próximos. Isso tudo tem a ver
com a colonialidade dos saberes, onde o ensino da língua dos colonizadores torna-se uma
imposição cultural, que dita socialmente padrões de vida e de poder.
No ensino das artes circenses e, também, da Capoeira Angola, essa oralidade é colocada
na prática da ação corporal, quando o praticante dispõe de seu corpo e sua movimentação para
o aprendizado daquela técnica. O corpo torna-se assim, a principal via de absorção daquele
conhecimento, e, também, a principal via de passagem daquele saber adquirido. Entendendo
que o sistema vigente descredibiliza o corpo enquanto epistemologia e evidencia o saber
racional ocidental, é colocado em risco tanto o saber oral, quanto o saber corporal dessas
ciências antigas que são as artes circenses e a Capoeira Angola.
A partir disso e como mencionado por Mestre Primo, em entrevista exclusiva para esta
dissertação (2023), permanecer na busca por esses conhecimentos pautados no corpo e na
oralidade, é colocar-se em risco, porque é viver em paralelo com esse sistema que vai na
contramão desses fundamentos e perspectivas afros referenciados, e é dispor desta força e
investimento pessoal, necessários, para continuar na busca. É colocar-se à disposição para
acontecer, primeiro, uma desconstrução desses padrões de subjetividade impostos desde que
nascemos, para então ocorrer uma autotransformação.

145
Ter acesso a uma educação decolonial e antirrascista é um passo para a transformação
de si, pois essa metodologia pautada nas manifestações de matrizes afroameríndias que irão
discutir e revelar outros conceitos diferentes dos eurocentrados, fortalecendo as identidades
brasileiras e mostrando caminhos de redescoberta de subjetividades próprias. Ou seja, os
caminhos para os processos libertários e antirracistas, tais como os que se dão no Circo Social
e na Capoeira Angola, inseridos na educação são estratégias sobre saúde e qualidade de vida
para o nosso povo.
O risco que está intrínseco às artes circenses, é o que nomeia e diferencia de todas as
outras linguagens artísticas. A título de contextualização, tratamos o risco como sinônimo de
incerteza (BORTOLETO; FERREIRA; SILVA, 2015), relacionado ao perigo. Os autores Diego
Ferreira, Antônio Coelho Bortoleto e Ermínia Silva, no livro “Segurança no circo: questão de
prioridade” (2015), contextualizam o termo da seguinte forma:

Por outro lado, segundo Spink (2008), o primeiro registro da palavra risco data do
século XIV, no idioma castelhano, riesgo, mas ainda sem ter a conotação de perigo
relacionado ao acidente. Nesse período, o termo risco remetia ao sentido de dano,
perda e de ganho. Contudo, parece ser que na modernidade o termo consolidou-se no
campo da navegação, da prática mercantil e das ações militares, e desde então
representa uma ambiguidade entre os sentidos do possível e do provável, do positivo
(ganhar) e do negativo (perder). (BORTOLETO; FERREIRA; SILVA, 2015, p. 29)

A partir deste entendimento de risco como sinônimo de incerteza e perigo, entende-se


que as artes circenses lidam com riscos diversos, que não apenas o risco físico, que trata do
perigo em machucar o corpo ou até do risco de morte relacionado a algumas modalidades
circenses. Há também o risco simbólico, como pontuado pelos autores Maria Teodoro de Leles
e Robson Corrêa de Camargo (2022) sobre a pesquisa de Philippe Goudard (2009):

Para Philippe Goudard (2009, p. 25), embora o risco que corre na cena seja, em grande
parte, real, existe também o risco simbólico, que pode ser exemplificado com “[...] a
queda da bola do malabarista ou ainda o comportamento desequilibrado do clown”.
Para esse autor, o trabalho e a aprendizagem circense se fundamentam na dialética
equilíbrio-desequilíbrio, ou seja, no aprendizado do risco, e se encontra no domínio
do desequilíbrio. O artista treina para dominar o risco e se coloca constantemente em
desequilíbrio a partir do momento em que começa a dominá-lo. (CAMARGO;
LELES, 2022, p. 14)

A partir deste entendimento sobre a importância do artista circense treinar para dominar
o risco, há também o risco estético, que é o risco provocado de propósito na performance, onde
o artista utiliza artisticamente a incerteza do risco para causar tensão e expectativa no público
(MANDELL, 2016). Diante disso, como pontuado por Antônio Coelho Bortoleto, na pesquisa
desenvolvida por Fábio Dal Gallo (2015), no circo há a cultura do risco, que são procedimentos
146
de preparação e desenvolvimento daquele estudante e profissional do circo em relação aos
riscos que as artes circenses envolvem, o preparando para lidar com os aparelhos, as
metodologias e o próprio corpo diante a prática circense.
Há também um risco nomeado de risco social “O risco social diz respeito tanto às
condições da produção artística em termos mercadológicos quanto ao reconhecimento do artista
e da obra como tais” (MADELL, 2016, p. 76). Ou seja, pode-se pensar o risco social tanto em
relação à produção artística quanto ao artista. No contexto do Circo Social, o risco social maior
fica atrelado aos estudantes que são atendidos pelo projeto, que em sua maioria, são crianças e
jovens periféricos que enfrentam fatores de vulnerabilidade social.
Todos esses diversos riscos intrínsecos à arte circense, e que também podem ser
vivenciados na prática da Capoeira Angola, levam o estudante e o profissional do circo a
desenvolver uma amplitude de seus mecanismos sensoriais corporais, como descrito por Leles
e Camargo (2022, p. 15): “Dessa forma, para além de aprender a técnica e o domínio do risco,
o artista deve também aprender a usar o risco de forma intencional, controlada e simulada,
sempre atento para que ele não deixe de ser simulado (isto é, passe a ser real com uma possível
fatalidade), o que exige do performer uma alta coesão sensorial.” Na pesquisa desses autores
que têm como base os escritos de Luiz Guilherme Veiga de Almeida (2008), entende-se o
profissional circense como capaz de desenvolver um aguçamento dos sentidos sensoriais do
corpo e se submeterem a normalização da dor, a partir de atividades extra cotidianas.
Aprender a enfrentar fatores de risco, como o físico, o simbólico, e desenvolver
mecanismos para dominar o risco estético, por exemplo, que são atravessados pelo aguçar dos
sentidos sensoriais corporais e mesmo diante o sentimento de dor, auxiliam no enfrentamento
das marcas e danos gerados pelo fator do risco social com os quais lidam as crianças e jovens
de projetos sociais. Entendendo que aprender a lidar com o perigo constante das atividades
circenses, fortalece a autoestima do estudante, ensina sobre cooperação, persistência, paciência,
concentração, autocuidado e limites pessoais. Ultrapassando o espaço circense e repercutindo
na vida desses indivíduos, ensinando a lidar com os riscos e as dores diárias, ao viver em um
contexto violento de desigualdade social. E como escreve Leles e Camargo: “Assim, a dor,
quando integrada em ações carregadas de afetividade, pode adquirir conotações diversas, para
além de um sofrimento do qual é necessário se afastar” (CAMARGO, LELES, 2022, p. 5).
Nesse sentido, a pedagogia do Circo Social é uma “metodologia pedagógica de ação
que prioriza o crescimento pessoal e social dos participantes. Ela favorece o desenvolvimento
da autoestima, a aquisição de competências sociais, a expressão artística e a inserção

147
profissional (BOUCHARD; LAFORTUNE, 2011, p. 14), tornando-se uma eficaz ferramenta
para crianças e jovens que vivem em vulnerabilidade social, ensinando, através do próprio risco,
a como lidar melhor com os riscos diários que eles e elas sofrem. Como mais bem explicado
por Marco Antônio Bortoleto em entrevista com Fábio Dal Gallo:

A questão é: essas crianças que já vivem acostumadas ao risco, elas vivem na rua, elas
fazem atividades que por si só já têm risco, quando elas entram num circo, elas vão
entender, e é preciso entender que o circo trabalha com outro risco. Trata-se de um
risco controlado, uma cultura do risco. [...] O que significa uma cultura do risco?
Aprender procedimentos, tomar cuidados com o próprio corpo, com o material, ter
disciplina para saber quando fazer e quando não fazer, quando eu posso fazer e tenho
capacidade e quando não tenho. Essa cultura faz com que, no final das contas, as
crianças ressignifiquem o que elas entendem por risco e apliquem essa cultura, não só
dentro do circo, dentro da lona, mas na vida. (BORTOLETO apud GALLO, 2015, p.
304/305)

Sendo assim, pode-se pensar que é através da vivência com essa cultura do risco que os
praticantes das artes circenses aprendem a se cuidar e a se defender. Assim como na Capoeira
Angola que lida com o risco diante dos golpes da luta, ensinando a defesa e o ataque dentro da
técnica da capoeira, isso também se reflete na roda da vida do praticante.
A partir dessas reflexões é possível se pensar que a encruzilhada entre a Capoeira
Angola inserida no ensino que se coaduna com o Circo Social, torna-se uma metodologia
complementar essencial para o ensino e a vivência dentro da cultura de riscos, e que levará uma
série de posturas e discussões sobre processos contra coloniais e críticos em relação ao sistema
que, historicamente, alimenta as desigualdades sociais.
Por haver a cultura do risco, como descrito por Bortoleto, há também a cultura de
segurança no circo, que são “um conjunto mais amplo, o qual não se restringe ao ensino de
ações, mas se abre a reflexões e novos estudos, alcançando, dessa forma, uma cultura de
segurança no Circo. Isso significa pensar a segurança como um elemento central do processo
pedagógico” (BORTOLETO, M.A.C.; FERREIRA, D.; SILVA, E., 2015, p. 213). É nesse
sentido, se aponta a educação decolonial e antirracista da Capoeira Angola ao fortalecer os
processos corporais, as discussões, as reflexões dessa cultura de segurança no Circo Social.
Entendendo que a Capoeira Angola, difundida pela Escola Iuna e por Mestre Primo, é uma
prática pautada na premissa pedagógica da ancestralidade, na busca da reconstrução de uma
história que foi invisibilizada pelo sistema e que revela para seus praticantes novas visões de
mundo que podem trazer mais condições de resistência, em processos de luta, saúde e segurança
em seu cotidiano, na descoberta e potencialidade de suas próprias subjetividades.

148
Essa temática sobre a segurança na atividade circense, como descrito pelos autores
citados anteriormente, ainda é tratada como secundária no universo do circo, havendo poucos
referenciais e uma escassez de materiais sobre o tema: “Não obstante, a investigação sobre os
aspectos de segurança - isto é, sobre o conjunto amplo de fatores que compõe a complexa
relação entre os riscos, os acidentes e os procedimentos de segurança - ainda é escassa.” (idem,
p. 23). Por isso a importância de se discutir novas metodologias de ensino que ampliem essa
reflexão sobre o risco e a segurança, que partirá da prática da atividade artística, mas que
atravessará a vida do estudante.
O risco sendo inerente à vida e intrínseco às práticas do circo e da Capoeira Angola,
pode ser uma potente ferramenta de pesquisa, discussão e de transformação, que se pauta em
metodologias decoloniais e antirracistas, ao revelar novas ações e conceitos em prol da
preservação da vida e da saúde das pessoas, diante um cotidiano permeado de padrões de
poderes opressivos. Desenvolver os fundamentos da Capoeira Angola no ensino aprendizagem
do Circo Social pode ser uma forma de repensar, refazer e refletir sobre conceitos e padrões
difundidos, ainda falhos, em relação à segurança e à saúde de estudantes e artistas circenses,
como afirmado por Diego Ferreira, Marco Antônio Bortoleto e Ermínia Silva:

De modo geral, parece-nos ser necessário repensar os modos de se fazer Circo


realizados tanto pelos denominados tradicionais quanto por aqueles que se formaram
em escolas de Circo, autodidatas, Circo social, festivais etc., ou seja, por todos os
profissionais e amadores relacionados à arte do Circo, com o intuito de manter
procedimentos, técnicas e tradições que são positivas e engrandecem essa arte, além
de modificar as que dificultam o desenvolvimento da segurança e de outros aspectos
no âmbito circense, estabelecendo um diálogo entre o que se herdou e as inovações
tecnológicas contemporâneas. (BORTOLETO, M.A.C.; FERREIRA, D.; SILVA, E.,
2015, p. 215)

Diante disso, vê-se no ensino da Capoeira Angola uma inspiração para auxiliar no
enfrentamento do risco social sofrido pelos estudantes de projetos de Circo Social, entendendo
que, em alguma medida, esses riscos sociais podem afetar o físico e a saúde desse estudante.
Como as discussões acerca do cuidado de si, que passa pelo entendimento do deslocamento de
corpo imposto pelo sistema disciplinador e o entendimento do tempo espiralar na prática
corporal, que irá revelar um outro tempo de aprendizado, que não o do imediatismo,
preservando assim a saúde e o físico desses estudantes.
O que esses estudos buscaram apresentar, através de dados amplos coletados pelo
Mapeamento, foi que, por mais que sejam dados parciais, diante o grande universo de artistas
de circo, em suas variadas modalidades e técnicas, são dados que ampliam discussões

149
importantes e revelam brechas e falhas que precisam ser revistas, ou que já estão sendo
colocadas em pautas, apesar da escassez de referenciais. E a partir dos conceitos sobre
colonialidade, decolonialidade, contra colonial, que busca entender o processo histórico, o que
faz pensar sobre o sistema vigente capitalista, que se critique o padrão de poder da colonialidade
e o quanto esse padrão afeta a saúde, quando cria e ordena subjetividades estrangeiras.
Ao se descrever a origem do respeito aos ancestrais no sistema da Capoeira Angola
buscou-se entender a importância de se buscar a semente vinda de África como suporte para a
recuperação de subjetividades afrobrasileiras, e que esses fundamentos geram uma pedagogia
decolonial e antirracista que pode ser uma estratégia importante para o enfrentamento do risco
social, enfrentados por muitas crianças e jovens inseridos no contexto do Circo Social.

150
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Adeus povo bom, adeus


adeus que eu já vou embora
pelas águas do mar eu vim
pelas águas do mar vou-me embora.141

Nas espirais do tempo, tudo vem e vai, assim o faço, considerar aspectos importantes
da pesquisa que não podem ser entendidas como finais. Diante da escuta dos saberes afro
referenciados, percebi-me uma pesquisadora que precisa escrever com o corpo e gingar com as
palavras, logo, firma-se o ponto de que não há pontos finais. Há encruzilhadas, curvas feitas de
um infinito tempo, que hora ou outra, retornam em memórias e em perspectivas já vividas, mas
nunca pelo mesmo caminho.
Nessas giras percorridas, cheias de marés altas e baixas, a encruzilhada encontrada não
é apenas entre os saberes e fazeres afrobrasileiros e eurocentrados. Em um diálogo entre a
Capoeira Angola e o Circo, inclusive o Circo Social, diversos cruzos permeiam minha realidade
em vivências: dei-me de frente com minha criança, ao escrever sobre as artes circenses no
âmbito social. Percebo que as crianças e os jovens que encontro hoje, como educadora social
de circo, uma vez que ministro oficinas de atividades circenses nas escolas de ensino regular e
não-formal, tornam-se preciosos espelhos e me devolvem as memórias de minha origem
periférica, mergulhada na espiral que não enxerga o passado e o futuro como coisas distintas,
mas que se seguem nesses vais e vens. Essas crianças e jovens, de certo modo, são meus mestres
e mestras, que não me deixam esquecer a minha origem e alimentam meu desejo de ser uma
profissional, capoeirista e artista cada vez melhor.
Sentimentos tais como a falta, a saudade, a falha e a perda que se tornaram trampolins
para o impulso dessa escrita. Foi quando eu, como aluna de um curso técnico de circo, deparei-
me com a grandiosidade real que é o risco dentro das artes circenses, em uma experiência
dolorosa de luto, mas que trouxe tantos questionamentos. Por isso, precisei criar diálogos com
outros artistas, mesmo diante de uma situação crítica de isolamento social, que foi o ano de
2020, por conta da pandemia do COVID-19. A partir daí que nasceu o mapeamento
“Decolonização e saúde do artista circense”, de onde nascem as reflexões dialógicas possíveis
naquele momento e que resultam no primeiro capítulo desta dissertação. Através da análise de
tantos dados coletados, é possível entender e aprofundar riscos diversos que rodeiam o universo

141
Corrido de capoeira de domínio público.

151
das artes circenses, decorrentes dos problemáticos padrões de colonialidade ainda presentes, e
como podem interferir na saúde e na segurança dos artistas circenses. A experiência do
mapeamento validou muitas dúvidas e anseios que apareceram de forma crítica, ainda com
perspectivas de aprofundamento. Ao se abrir espaços de escuta, foi possível nomear aspectos
dessa vivência em artes, bem como cristalizar os sentimentos enquanto aluna, professora e
artista circense, dando existência a uma proposição da pesquisa de Mestrado.
Ainda no primeiro capítulo, foi necessário contextualizar e conceituar colonização,
decolonialidade, contra colonial, colonialidade e inconsciente-colonial-capitalístico, no intuito
de trazer as espirais do tempo, para entender onde iniciam os padrões de colonialidade ainda
presentes e como se incorporam em nosso cotidiano, ditando e criando subjetividades e
socializações diversas, com tantas marcas das opressões históricas. A partir de respostas sobre
padrões opressivos, ainda difundidos nas práticas circenses, busquei apresentar as origens das
artes circenses e do Circo Moderno, no entendimento de aflorar as discussões sobre o quanto,
majoritariamente, no ensino profissional do circo, os referenciais apresentados ainda são
eurocentrados. Destaca-se que o breve relato sobre a origem e trajetória do Circo Social é uma
metodologia pedagógica desenvolvida primeiramente no Brasil e, ainda, em expansão
internacional, tal relato realça uma perspectiva política dessa encruzilhada de saberes. Dessa
forma, o Circo Social é uma prática legitimamente brasileira, ao revés, ou contracolonial, o que
se apresenta no terceiro capítulo.
Outra questão importante ressaltada foi entender a criação do Circo Social como o
começo da vivência do circo na perspectiva socioeducacional libertária. Sendo assim, no
desenvolvimento das artes circenses, a partir do âmbito educacional e pedagógico, outras
premissas estéticas, artísticas e educacionais se cruzam, como a própria capoeira, a música e o
teatro. Por isso, foram apresentados o histórico e a defesa da Capoeira Angola enquanto uma
potente aliada para a construção de uma educação contracolonial e antirracista no Circo Social.
O segundo capítulo foi dedicado na apresentação sobre a origem e percursos da Capoeira
Angola, desde aspectos pontuais advindos da África aos aspectos que são desenvolvidos no
Brasil, pela perspectiva da presença e trajetória de Mestre Primo e do Grupo Iuna de Capoeira
Angola. Nessas espirais do tempo, em ações decoloniais, a prática e o ensino da Capoeira
Angola ocorrem na periferia do bairro Saudade em Belo Horizonte/MG, atualizando princípios
ancestrais. Desse modo, foram apresentados fundamentos e pensamentos difundidos por Mestre
Primo no ensino de uma prática contra colonial baseada em uma ancestralidade africana, que
está resguardada na performance corporal e musical da Capoeira Angola.

152
Mestre Primo é um guardião dessa cultura ancestral e popular que é a Capoeira Angola,
tendo se dedicado ao longo da vida na salvaguarda de uma semente antiga, que veio de África
e floresceu no solo brasileiro. Nessa encruzilhada, não se pode perder os caminhos de origens
africanas, ou seja, que os(as) africano(a)s trouxeram a capoeira, pela travessia do Atlântico,
quando pelos processos de escravização, defenderam-se e difundiram-se formas de resistência,
criando outras dimensões afro-brasileiras de vida, sociabilidade e resiliência. Oriundos do
aquilombamento de Dona Luiza, Mestre Primo e Cássia Rita abrem, diariamente, a sede do
Grupo Iuna para receber a comunidade, com atividades educacionais gratuitas, num processo
de decolonização que não passa apenas pelos saberes, mas sim pelos fazeres. Desse modo, ao
serem questionados sobre qual o entendimento sobre o conceito de decolonização, eles
respondem que no Iuna não se entende, mas, sim, pratica-se todos os dias, o que se configura
com uma via, nessa encruzilhada de saberes.
O Grupo Iuna realiza em suas vivências o conceito de contra-colonialidade em suas
ações, processos educativos, inclusive, bastante distintos de outros grupos de capoeira
conhecidos, os quais já participei, ou que conheci em eventos e em rodas pelo Brasil. Primeiro
é o constante sentimento de liberdade no âmbito da possibilidade de ir e vir do espaço do Grupo
Iuna. Mestre Primo fala, ainda, da importância e da possibilidade de angoleiras e angoleiros
visitarem, e, inclusive, treinarem em outros grupos de capoeira, com outros Mestres e Mestras.
Nesse entendimento do convívio com outros espaços de capoeira e com distintos formatos de
ensino-aprendizagem, realçam-se as premissas e particularidades do Grupo Iuna.
Diferentemente, Mestre Primo, em sua atitude inovadora, traz a experiência de visitar outros
espaços de capoeira, ao fazer questão de conversar sobre nossas experiências, gerando
discussões sobre as diferenças, igualdades e complementaridades entre os fundamentos da
capoeira e a de outros grupos. Um desses elementos, é a ausência da necessidade de
uniformização das pessoas do grupo. O Grupo Iuna usa camisetas nos eventos realizados e, não,
como forma de uma identificação única dos(as) capoeiristas do grupo. No entendimento
contrário à doutrinação, há a própria liberdade da vivência Iuna, que a disciplina e a prática da
Capoeira Angola irão despertar em praticantes diversos.
Sob o mesmo viés, tem-se o fato de todas as atividades do Grupo Iuna serem gratuitas,
levando em consideração o pensamento e a filosofia de que o conhecimento não é mercadoria
para ser vendida, pelo direito ao acesso à educação e a cultura, se traz a própria origem, ou
aspectos da ancestralidade. Em tudo isso, além das relações harmoniosas e afetuosas que geram
o sentimento de pertencimento a uma família, são desenvolvidas no Grupo, sem distinção de

153
gênero, raça e classe social, uma pedagogia libertária dos padrões capitalistas. Essas
perspectivas contra coloniais são inseridas em um âmbito de ensino coletivo, com a missão de
preservar um conhecimento ancestral prático, ausente nos canais das grandes mídias, imbuídos
de práticas de inclusão social e de redução das desigualdades sociais, na contramão da pobreza
e da violência, a descortinar diferentes caminhos.
A partir desses aspectos e dos fundamentos da Capoeira Angola difundidos pela prática
decolonial e antirrascista da metodologia de Mestre Primo e do Grupo Iuna, a encruzilhada foi
encontrada, no terceiro e último capítulo, entre esses saberes e fazeres no âmbito do Circo
Social. Assim, uma pesquisa que se iniciou no anseio de compreender e aprofundar sobre os
riscos diversos, mas, principalmente, sobre a experiência vivida com o risco físico letal dentro
das artes circenses, encaminhou-se para a percepção do quanto a Capoeira Angola traz
importantes discussões e práticas, que fortalecem e auxiliam o enfrentamento do risco social.
Dessa forma, em alguma medida, esses fundamentos afro referenciados auxiliam no
enfrentamento do risco social que essas crianças e jovens periféricos (participantes de projetos
de Circo Social) lidam; além de contribuir na redução de danos dos riscos físicos, refletidos nas
cosmovisões afrobrasileiras que reeditam conceitos como o tempo e o corpo na contramão do
sistema vigente opressor.
A Capoeira Angola é uma luta que trabalha, também a partir do risco, e prioriza a
importância da defesa e do ataque, amparados pelo culto de saberes ancestrais, o que pode ser
uma metodologia imprescindível para o Circo Social. A prática da capoeira baseada nos
fundamentos apresentados nesta dissertação – o culto à ancestralidade; a revelação lenta do
segredo; o entendimento do corpo como memória de luta, a noção de tempo espiralar, que vai
na contramão do imediatismo do sistema capitalista – devolve aos praticantes o domínio do
próprio corpo, além de um pensamento crítico mediante a contemporaneidade e a liberdade de
ser.
A partir das análises, percebe-se que para falar de decolonização e de transformação
social é preciso entender que o racismo estrutural, tão engendrado e delimitado no Brasil, atinge
e perpassa todos os campos, especialmente os educacionais e culturais que são extremamente
marginalizados pela política atual e histórica. Portanto, é preciso reconhecer os artistas afro-
ameríndios-brasileiros e suas epistemologias a partir da encruzilhada. Dessa forma, os
caminhos apontados podem suprir a falta de referências ou de epistemologias antirracistas, de
forma a gerar transformações educacionais e culturais necessárias.

154
Sendo assim, construir metodologias decoloniais e antirrascistas, no ensino das artes
circenses e no âmbito de projetos de Circo Social, é contribuir com a luta do movimento negro
ao fortalecer a Lei 10.639/03. Tal lei repercute em ações transformadoras na Educação Básica,
a partir da obrigatoriedade do ensino sobre as Relações Étnico-raciais e do Ensino da História
e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígena: uma verdadeira encruzilhada de saberes. A partir
de todo o exposto, é possível contribuir para a mudança epistemológica e de paradigma em
relação aos povos africanos e originários, valorizando suas culturas e potencializando nossa
própria identidade enquanto povo brasileiro. Essa luta a ser empreendida em todas as escolas,
seja as de ensino livre, básico, técnico ou as de ensino superior, já encontram respaldos
epistêmicos nos projetos de Circo Social.
Considero, assim, que tanto as linguagens das artes circenses quanto da capoeira, há
facetas que difundem padrões de colonialidade quando não amparadas por reflexões e ações
que desenvolvam os aspectos decoloniais. A contribuição desta dissertação está no
levantamento e construção de possibilidades de epistemes na contramão das práticas de controle
e dominação impostas cotidianamente pelos sistemas políticos autoritários. O meu desejo com
o cruzamento de circo e Capoeira Angola é de contribuir para a construção de novas
perspectivas educacionais imediatas para crianças, adolescentes e jovens que diariamente
sofrem mediante uma realidade pobre, desigual e violenta.
Que as proposições pedagógicas decoloniais e antirracistas, amparadas pela cosmovisão
afro-brasileira, inseridas no movimento e prática da Capoeira Angola e no Circo Social,
contribuam para a formação de pessoas, artistas e profissionais crítico(a)s engajado(a)s na
construção de novas epistemologias artísticas apoiadas e inspiradas pelas performances e
símbolos afroameríndios referenciados.
IÊ!

155
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del capitalismo global / com piladores Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel. – Bogotá:
Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales
Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.
160
WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, sociedad: luchas (de) coloniales de nuestra
época. Quito: UASB / Abya-Yala, 2009.
________________. Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas.
Quito: Ediciones Abya-yala, 2005.

ZONZON, Christine Nicole. A roda da Capoeira Angola. Os sentidos em jogo. Salvador, 2007

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APÊNDICES

1) Perguntas do Mapeamento “Decolonização e saúde do artista circense”:

01. Identificação (pode ser seu nome completo, nome social ou artístico)
02. Idade
03. Lugar de origem
04. Residência atual
05. Qual o gênero que você se reconhece?
06. Qual raça que você se reconhece?
07. Há quanto tempo você pratica o circo?
08. Durante esse tempo de treinamento você já lesionou alguma parte do seu corpo?
09. Se sim, isso foi fazendo aula/treinando ou no momento da apresentação?
10. Você teve que parar sua prática por conta dessa lesão? se sim, por quanto tempo ficou
parado/a?
11. Você fez algum acompanhamento médico, ou alguma prática de
regeneração/fortalecimento da parte do corpo lesionada?
12. Você conseguiu curar-se totalmente dessa lesão?
13. Você já teve algum (a) professor (a) seu de circo, ou alguma escola de circo em que
você estudou, que tinha em sua grade curricular um acompanhamento mais voltado para a
educação somática e saúde do corpo circense? como por exemplo um acompanhamento
fisioterápico, ou exercícios de pilates que visam a regeneração, compensação e fortalecimento
do corpo? se sim, onde e com quem?
14. Você já teve algum (a) professor (a) seu de circo, ou alguma escola de circo em que
você estudou, que tinha em sua grade curricular práticas corporais que beberam de danças ou
manifestações de matriz afrobrasileiras? como a capoeira, o maracatu, o coco, o samba de roda
etc.? se sim, onde e com quem?
15. Você conhece alguém que lesionou o próprio corpo, ou até, infelizmente, veio a falecer,
por que se colocou em um movimento de alto risco no circo sem um domínio técnico? Fique à
vontade para falar um pouco mais sobre, para essa pesquisa, é de extrema importância entender
o contexto.
16. Você acha que a formação que você teve nas artes circenses foi o suficiente para
aprender a executar, de forma segura, as atividades de alto risco?

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17. Quais conhecimentos você acha mais importante para que o artista circense tenha um
bom preparo para executar essas atividades de alto risco?
18. Sinto que a pedagogia de ensino-aprendizagem das artes circenses ainda é movida por
alguns padrões e conceitos de vida-arte-vida carregados de aspectos colonialistas que foram
inseridos durante todos esses anos de reinvenções da arte circense. para você, em quais aspectos
a prática circense contemporânea se aproxima e se afasta de uma metodologia decolonial*?
(*metodologia decolonial provêm do conceito de pedagogia decolonial da autora Catherine
Walsh, que acredita na importância de se desenvolver e difundir práticas pedagógicas
decoloniais que busquem desconstruir os paradigmas e padrões opressores e excludentes do
sistema capitalista, fruto do processo histórico colonizador em que a américa latina sofreu,
dando voz a outras culturas, saberes e fazeres de povos que não sejam eurocêntricos.)
19. Diante da minha experiência profissional e pessoal de buscar, na ancestralidade afro-
brasileira, uma base e um estar no mundo que fizesse mais sentido pro meu coração e pro meu
corpo - que tem como princípios o bem estar e a harmonização consigo, com x outrx e com a
natureza -, e pensando que esse atual sistema capitalista de consumo em que estamos inseridxs,
é fruto de um contexto histórico do sistema colonialista de escravização de corpos humanos,
fica claro, para mim, que a pedagogia de ensino das artes circenses ainda reproduz conceitos
que violentam os corpos de seus artistas e praticantes, e te pergunto: o quanto esses possíveis
paradigmas colonialistas inseridos na pedagogia do circo são prejudiciais para a vida e saúde
do artista circense?
20. Você acha que é possível desenvolver uma metodologia para a preparação técnica do artista
circense que desconstrua esses paradigmas colonialistas? para mim, quando a pedagogia não
desenvolve junto ao seu ensino o fortalecimento de nossa identidade brasileira e afro brasileira
(é visível enxergar isso quando percebemos o quanto, tanto, a prática corporal ainda é baseada
em padrões de corpos eurocêntricos, como a maioria das bibliografias que temos acesso são
exportadas de outras culturas, principalmente a europeia), ficando na formação técnica desse
artista circense, apenas um ensino raso, que difunde a espetacularização do corpo do artista,
alimentando certos lugares de competição, e não de integração e troca de experiências.
21. Quer deixar algum contato seu conosco? pode colocar suas redes sociais, site, ou telefone,
vamos adorar inserir em nossa lista integrativa dos artistas circenses espalhados por esse brasil!
22. Este espaço abaixo é caso você sinta o desejo de colocar alguma sugestão, dica, reclamação
ou qualquer mensagem sobre essa pesquisa e esse mapeamento. fique à vontade!

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2) QUESTIONÁRIO ENTREVISTA - MESTRE PRIMO - Grupo Iuna de Capoeira
Angola

1. Mestre Primo, qual o seu nome completo? E a sua data de nascimento? Me conta um
pouco sobre o lugar em que o senhor nasceu e mais alguma informação que julgue importante,
sobre a sua origem. Nome do seu pai e nome da sua mãe.
2. Quando o senhor começou e como foi o seu interesse pela capoeira?
3. Quem foi o seu primeiro mestre na capoeira? Tiveram outros mestres? Poderia contar
sobre outras influências importantes em sua vida?
4. O senhor poderia falar um pouco da diferença entre tradição e ancestralidade?
5. Para o senhor, quais são os maiores benefícios em praticar capoeira?
6. Existem desafios e/ou riscos para quem pratica capoeira?
7. Quando e como o senhor fundou o Grupo Iuna de Capoeira de Angola?
8. O que você entende por “processo de decolonização” ou de anticolonização?
9. Como você construiu a sua metodologia para ensinar capoeira? Quais aspectos você
acredita serem importantes para a pedagogia da capoeira de angola?
10. A Ong Iuna de Capoeira de Angola contribui para o processo de conscientização da
decolonização junto de seus participantes? Em quais aspectos/ações? Poderia falar um pouco
sobre isso?

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