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Ouro Preto
2023
FERNANDO CUSTÓDIO VALÉRIO
Ouro Preto
2023
SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMAÇÃO
CDU 792(815.1)
FOLHA DE APROVAÇÃO
Membros da banca
Dr. Paulo Marcos Cardoso Maciel - Orientador(a) (Universidade Federal de Ouro Preto)
Dr. Alberto Ferreira da Rocha Júnior - (Universidade Federal de São João del Rei)
Dr. Clóvis Domingos dos Santos - (Horizonte da cena)
Paulo Marcos Cardoso Maciel, orientador do trabalho, aprovou a versão final e autorizou seu depósito no Repositório Institucional da UFOP
em 22/01/2024
Documento assinado eletronicamente por Paulo Marcos Cardoso Maciel, PROFESSOR DE MAGISTERIO SUPERIOR, em
22/01/2024, às 12:58, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de
outubro de 2015.
Referência: Caso responda este documento, indicar expressamente o Processo nº 23109.000602/2024-30 SEI nº 0655678
Dedico o trabalho aos meus ancestrais que vieram antes de mim no empenho
de pesquisar o Teatro Negro e suas interfaces: Darcileia da Silva, Leda Maria
Martins, Evani Tavares de Lima, Fernanda Julia, Soraya Martins, Clovis
Domingos, Geovani Oliveira e tantos outros… que se encontram nas mesmas
encruzilhadas de nossas epistemologias.
AGRADECIMENTOS
Minha família, que sempre acreditou nos meus devaneios infantis em ser
MESTRE e mesmo sem formação acadêmica, soube me incentivar. Sem o apoio
de vocês não estaria aqui hoje! Obrigado Dona Cida, Senhor Nelsão, Felipe,
Guilherme, Tia Dadá, Tia Cunha, Tio Zé, Tio Jair, Tia Angela, Tia Margarida, Tio
Celso e todos os meus outros queridos familiares.
Swahili Vidal, você foi o cara que fez com que a minha pesquisa teórica
ganhasse a prática por conta de “CABINDA”, obrigado por me provocar,
diariamente, durante esse processo e ter feito da minha pesquisa um momento
menos solitário.
E, por fim, não menos importante, pelo contrário, meu orientador Paulo Marcos
Cardoso Maciel (ou Paulinho) por não ter me deixado desistir do mestrado no
momento mais delicado da minha vida. TE AMO!
Sá rainha me chamou,
Caminhando devagar.
Maurício Tizumba
Resumo:
Quadro 1 – PRÓLOGO
...................................................................................................47
Quadro 2- A DESPEDIDA DE JESUS E A VIRGEM ......................................................50
Quadro 3- JESUS E SAMARITANA ...............................................................................51
Quadro 4 - JESUS E MARIA MADALENA .....................................................................52
Quadro 5 - O LAMENTO DE JESUS PARA JERUSALÉM ............................................52
Quadro 6 - CAIFÁS E OS FARISEUS ............................................................................53
Quadro 7 - SANTA CEIA ................................................................................................54
Quadro 8 - A CONDENAÇÃO PARA MORTE DE CRUZ ..............................................56
Quadro 9 - VIA CRUCIS ............................................................................................ ....57
Quadro 10 - A RESSURREIÇÃO ...................................................................................60
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1:
O CONGADO EM FOLIA E A FOLIA NO CONGADO - MOTRIZES CRIADORAS
PARA A CENA TEATRAL MINEIRA DE A RUA DA AMARGURA ......................21
CAPÍTULO 2:
A NEGRURA E A RUA DA AMARGURA ............................................................ 41
CAPÍTULO 3:
MOTRIZES GERADORAS DE NEGRURA NA CENA DE
A RUA DA AMARGURA ...................................................................................... 70
REFERÊNCIAS ....................................................................................................91
INTRODUÇÃO OU O PREPARAR DA FESTA
Por sua vez, uma maneira renovada de olhar a questão seria considerar a
festa como um instante de passagem entre vida cotidiana e arte, tal como
proposta por de Aby Warburg (2010), de modo que se aproxime das noções
poéticas de “campo expandido”, Hans-Thies Lehmann (2007), “liminaridade”,
Victor Turner (2008), e de “tempo espiralar”, Leda Maria Martins (2021). E para
pensar a experiência “espiralar” do tempo na cena teatral contemporânea
mineira é preciso levar em conta, por outro lado, os agentes envolvidos nos três
universos: as artes cênicas, as festas e os ritos; sobretudo, quando nos
lembramos de que negros e pardos eram os agentes mediadores entre as três
instâncias na chamada América Portuguesa:
1.1 O Congado
De acordo com Ramos (2022), “o acontecer da festa, que tem início no sábado
da festa e segue até o final da tarde de domingo e que congrega toda a tessitura
composta por levantamento de mastro; instalação de reinados; cortejos; missa solene;
almoço comunitário; procissão e benção final” (2022, p.303). Podemos perceber que a
festa é organizada partindo de um programa compreendendo cortejo, missa, almoço,
procissão e benção, cujas raízes remontam aos programas festivos que encontramos
na colônia. O congado segue um roteiro estruturado em torno das partes
informadas acima que, uma vez reunidas, situam o ritual num contexto
afrodiaspórico, conforme a descrição dada ao fenômeno por José Pereira de
Souza Junior:
A Folia de Reis ou Reisado procura contar a jornada dos reis Magos até
o encontro com o Deus-menino na lapinha. Fazendo parte, pois, do ciclo
natalino, o cortejo de foliões desfilam, cantando no campo ou pelas ruas das
cidades:
4
- Antônio Gabriel Santana Villela (Carmo do Rio Claro, 1958) é um diretor de teatro, cenógrafo e
figurinista brasileiro. Dirigiu mais de 40 espetáculos entre adultos e infantis. Formou-se no curso
de formação de diretores da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA-USP). Enciclopédia Itaú Cultural. [s.n], 2021.
Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa359371/gabriel-villela. Acesso em: 02
de set. 2022.
E assim foi feito, Gabriel Vilela recebeu a missão de erguer “A Rua da
Amargura - 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus”, nome escolhido para a
montagem e que, em parte, iluminava o processo de soerguimento do grupo.
Tendo em vista as circunstâncias do luto, “A Rua da Amargura” gira em torno da
vida, da morte e da ressurreição de Cristo e, então, surge como uma
apropriação dessa trajetória, símbolo do sofrimento, da morte e do renascimento
do grupo:
7
- Hallelujah é uma música do cantor e compositor canadense Leonard Cohen. Foi gravada
originalmente para o álbum Various Positions (1984). Cultura Genial .[s.n],Carolina Marcello,
s.d.Disponível: <https://www.culturagenial.com/musica-hallelujah-leonard-
cohen/#:~:text=Hallelujah%20%C3% A9%20uma%20m%C3%BAsica%20 composta,em%20
diversos%20 filmes%20 e%20 comerciais. Acesso em 02 set 2022.
8
- ROMÃ, ROMÃ – Antônio José Madureira - Ronaldo C. de Brito e F. Assis de Souza Lima.
Grupo Galpão - 1993. Criatura de sebo, 2020. Disponível em:
http://criaturadesebo.blogspot.com/2012/10/grupo-galpao-1993-trilha-sonora-dos.html>. Acesso
em: 02 set 2022.
9
- Na chegada desta praça - Folclore da região de Carmo do Rio Claro Grupo Galpão - 1993.
Criatura de sebo, 2020. Disponível< http://criaturadesebo.blogspot.com/2012/10/grupo-
galpao-1993-trilha-sonora-dos.html>. Acesso em: 02 set 2022.
10
- A canção Jingle Bells talvez seja a mais conhecida entre as músicas natalinas. Ela foi
composta por Pierre Pierpont, em 1850, em Boston. Conheça a história de algumas canções de
natal. Revista Seleções.[s.n], 2018. Disponivel <https://www.selecoes.com.br/inspiracao/3-
cancoes-de-natal-que-voce-provavelmente-ja-canto u/>. Acesso em 02 set 2022.
a essa abertura. Após o prólogo, o público é convidado ao segundo momento da
encenação dentro do teatro. Com essa entrada, o grupo afirma sua expertise em
trazer o erudito ao campo do que é regional, conforme observou Alves:
A escolha das canções seguiu as seguintes etapas: primeiramente, a
busca da beleza sonora e do lirismo, produtores do efeito emocional que
Grupo pretendia causar no espectador; e, em segundo lugar, a mixagem
das qualidades eruditas com as populares, que auspiciosamente
agradaria, ao mesmo tempo, aos críticos e ao público. (ALVES, 2006,
p.116).
11
- Eduardo Garrido foi um dramaturgo, poeta, compositor, tradutor e teatrólogo português, que
obteve grande sucesso nos teatros lisbonenses e fluminenses, em finais do século XIX e início do
século XX (CARÁ PINHÉ, 2011, s/p.)
o encontro com a boa samaritana, o adeus da virgem, a defesa de Maria
Madalena, a traição de Judas, o lamento de Jesus para Jerusalém, a última
ceia, as estações da cruz, a morte e a ressurreição do Messias. Pela estrutura,
podemos observar que o texto combina a forma épica, em quadros, com a
divisão romântica do drama ou melodrama em 5 atos; além disso incorpora a
dança e a música como elementos intercalados à ação.
Para que melhor possamos visualizar como é o desenrolar da
dramaturgia e a própria encenação, selecionei fotografias do espetáculo que
alternam do ano de 1994 e 2001 do fotógrafo oficial do grupo Guto Muniz, e que
estão disponíveis em seu site Foco in cena. Essas imagens são da estreia do
espetáculo, em 1994, e da última temporada, em 2001, as quais vão nos auxiliar
para apresentar o espetáculo quadro a quadro e, assim, eleger quais são os
quadros objetos de comparação com as demais cenas eleitas das
manifestações.
QUADRO 1 - PRÓLOGO
Figura 22 A crucificação.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.
Figura 23- Jesus morto e Magdalena.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023
QUADRO 10 - A RESSURREIÇÃO
O corpo é nosso meio geral de ser no mundo. Ora ele se limita aos
gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em
torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros
gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele
manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos
hábitos motores da dança. Ora, enfim a significação visada não pode
ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele
construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo
cultural (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203)
12
- Ver as figuras 1, 5 e 16
objetivo, mas sua pujança de tempo em movimento”. Em África, assim como nas
Américas, “o bom dançarino é o que conversa com a música que claramente
ouve e sente as batidas e é capaz de usar diferentes partes do corpo para criar
a visualização dos ritmos”. (MARTINS, 2021 p.20).
O gesto desdobra o movimento no tempo em função de seu diálogo com
a música e a dança. A música que reclama o gesto, a presença do corpo,
pertence ao universo instrumental negro. Neste sentido, o grupo Galpão utilizou
no espetáculo à mesma instrumentação que é utilizada nas folias de Reis e nos
congados, as zabumbas, chocalhos, tambores entre outros, configurando os três
elementos batucar, cantar e dançar que, segundo Zeca Ligiéro, coexistem nas
expressões culturais e artísticas negras e africanas em terras americanas,
conforme podemos observar na animação e ou armação dos três cortejos13.
Podemos observar, nesses cortejos, que além dos três elementos que
Ligiéro assinalou em seus estudos, os demais elementos como, por exemplo, os
adornos (fitas, retalhos, dentre outros elementos cenográficos da indumentária)
não são somente acessórios, pois constituem a visualidade de sua negrura
marcando a textura do traje que se movimenta, expandindo o alcance da
expressão corporal em espaço público. As imagens referenciadas nos permitem
discriminar as três formas de estruturação do cortejo de rua. Em "A Rua da
Amargura”, o cortejo faz parte da primeira parte do espetáculo que acontece
antes da encenação assumir o palco italiano, já que a encenação é dividida em
dois momentos. O primeiro movimento do cortejo, no espaço aberto, que encena
a natividade do menino Deus, aborda o anúncio da vinda do messias, a visita
dos reis magos e a fuga da sagrada família para o Egito por conta do algoz
Herodes. O segundo momento do espetáculo, que acontece no palco, apresenta
a vida adulta do protagonista, os milagres realizados como a multiplicação dos
pães, o sermão de Jesus, a Santa Ceia, o encontro com Madalena, entre outros
quadros, até a encenação se fixar nas estações da via crucis (ou calvário) que
localiza a amargura vivida pelo protagonista.
Como dito, anteriormente, é na primeira parte da encenação que
encontramos, mais claramente presente, elementos da manifestação negra da
folia de reis, que, como toda manifestação negra de rua, organiza-se enquanto o
cortejo do corpo coletivo em ação e agente construtor de gestualidade.
13
- Ver figuras 02,04 e 25
A prática dos cortejos em diversas culturas é registrada por meio de
descobertas arqueológicas, nas quais se configuram celebrações
pintadas em vasos, jarros, monumentos, templos, tumbas, pilastras e
uma diversidade de artefatos. Ao longo dos anos, que se seguiram na
Antiguidade, o ser humano não deixou de festejar, surgindo diversas
formas de celebração por razões variadas, realizadas nas ruas e
praças das cidades ou vilarejos. (LABORDA, 2013 p. 179-180).
Martins (1995) parece sugerir que para se falar em teatro negro não
basta considerar apenas o fenótipo do espetáculo, sendo preciso observar ainda
o sistema de signos que o inscreve como outro no mundo colonizado dos
brancos. Ou seja, antes de pôr em cena as personagens, é preciso constituir o
território semiótico em comum de sua presença revelada pela relação entre
música, canto e dança, que são complementados pelos figurinos e adereços,
elementos que informam os valores expressivos combinados e impulsionam o
movimento corporal na cena. Nelas os foliões entoam músicas que mesclam
diferentes ritmos musicais: “Hallelujah”G,F, Handel, adaptação de Ernani
Maletta, Romã Romã de Antônio Madureira, Ronaldo de Brito e F.A de Souza
Lima , Canção de apresentação da Folia de Reis, Companhia do menino Jesus
de Carmo do Rio Claro.
Essa combinação de ritmos, associados às músicas erudita e popular,
acaba alterando ambos os universos dos registros que são postos em circulação
e convertidos, por meio da síntese dos elementos díspares europeus e não
europeus, em signos renovados, como vemos, por exemplo, na busca pela
atualização do traje da Folia de Reis para figurino de teatro. Na imagem acima,
os trajes das manifestações espetaculares negras estão ligados às forças
motrizes, servem ao ritmo do cortejo e parecem criados para a função do
movimento e de sua expressão máxima em espaço aberto, devido às suas
cores, formas e adornos, marcadamente simbólicos. Elementos que geram uma
gestualidade enraizada na cultura negra. Segundo Merlo (2016):
14
- Lembrando que a noção de reminiscência aqui é tomada de empréstimo de Walter Benjamin e
situada no contexto performativo do tempo espiralar.
(Figura 11) e quadro 10 - A ressurreição (figura 24). São quadros, dentre outros
vários nos quais percebo a diáspora dos elementos que investigo.
O quadro 4 retrata o momento que Magdalena encontra com Jesus e se
livra do apedrejamento. Na figura 11, podemos identificar a súplica expressa no
pedido de clemência ao salvador para que não seja apedrejada. Essa mesma
gestualidade pode ser recortada nas duas manifestações espetaculares negras
deste estudo. No Congado, o quadro da súplica de Maria Madalena permite
comparação ao dos negros vendo a santa saindo das águas. Neste quadro, os
negros se valem do mesmo gesto dirigido à santa para que atenda aos seus
pedidos; ressalta-se que a cena é acompanhada pelas batidas do tambor que
anuncia a emersão. Por outro lado, na Folia de Reis temos a cena do encontro
do cortejo com o menino Deus, no interior da casa que visitam, mediado pelo
gesto de clemência.
Sendo assim, o valor expressivo da clemência da súplica se repete, no
teatro e nos dois ritos, mas com importantes diferenças; sobretudo; no que diz
respeito à natureza dos três coletivos que agenciam as narrativas em função de
seus respectivos propósitos. Guardadas as devidas particularidades do gesto
nos três casos, podemos pensar que, no gesto da atriz, encontramos uma motriz
cultural oriunda da diáspora que, em seu contorno mais geral, inscreve no “gesto
cristão” a forma mais negra da súplica. O signo de negrura surge alterando o
sentido cristão da clemência no quadro de Magdalena e Jesus. O
comportamento restaurado pelo espetáculo do Congado e da Folia de Reis o
inscreve no interior de um outro coletivo delimitado pelas fronteiras do teatro de
grupo no Brasil. Essa inscrição criativa informa a pluralidade das manifestações
afrodiaspóricas e de sua contribuição, deslocada, à formação dos valores
expressivos da vida em movimento, desde a Colônia, especialmente, em Minas
Gerais:
BRANDÃO, C.A.L. Grupo Galpão: Uma história de risco e rito. 2.ed. Belo
Horizonte: O Grupo. 2002.
________. A análise dos espetáculos. Trad.: Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
VIANA, F. Para vestir a cena contemporânea. São Paulo: Estação das Letras e
Cores, 2015.
SITES CONSULTADOS
Folha de São Paulo. Nelson de Sá, 'Rua da Amargura' traz a festa e as trevas.
1994. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/14/ilustrada/10.html Acesso em: 13 de
abr. 2021.