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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS


PPGAC

FERNANDO CUSTÓDIO VALÉRIO

MATRIZES/MOTRIZES DIASPÓRICAS DA VIDA EM MOVIMENTO EM A RUA DA


AMARGURA.

Ouro Preto
2023
FERNANDO CUSTÓDIO VALÉRIO

MATRIZES/MOTRIZES DIASPÓRICAS DA VIDA EM MOVIMENTO


EM A RUA DA AMARGURA.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós


Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), da Universidade
Federal de Ouro Preto, como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em Artes Cênicas.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Marcos Cardoso Maciel.

Ouro Preto

2023
SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMAÇÃO

V164m Valério, Fernando Custódio.


ValMatrizes/Motrizes diaspóricas da vida em movimento em a rua da
amargura. [manuscrito] / Fernando Custódio Valério. - 2023.
Val95 f.

ValOrientador: Prof. Dr. Paulo Marcos Cardoso Maciel.


ValDissertação (Mestrado Acadêmico). Universidade Federal de Ouro
Preto. Departamento de Artes Cenicas. Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas.
ValÁrea de Concentração: Artes Cênicas.

Val1. Grupo Galpão. 2. Teatro - Minas Gerais. 3. Teatro brasileiro. 4.


Congadas. 5. Folia de Reis. I. Maciel, Paulo Marcos Cardoso. II.
Universidade Federal de Ouro Preto. III. Título.

CDU 792(815.1)

Bibliotecário(a) Responsável: Paulo Vitor Oliveira - CRB6/2551


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
REITORIA
INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA
DEPARTAMENTO DE ARTES

FOLHA DE APROVAÇÃO

Fernando Custódio Valério

Matrizes/Motrizes diaspóricas da vida em movimento em A rua da amargura

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal


de Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de mestre

Aprovada em 28 de agosto de 2023

Membros da banca

Dr. Paulo Marcos Cardoso Maciel - Orientador(a) (Universidade Federal de Ouro Preto)
Dr. Alberto Ferreira da Rocha Júnior - (Universidade Federal de São João del Rei)
Dr. Clóvis Domingos dos Santos - (Horizonte da cena)

Paulo Marcos Cardoso Maciel, orientador do trabalho, aprovou a versão final e autorizou seu depósito no Repositório Institucional da UFOP
em 22/01/2024

Documento assinado eletronicamente por Paulo Marcos Cardoso Maciel, PROFESSOR DE MAGISTERIO SUPERIOR, em
22/01/2024, às 12:58, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de
outubro de 2015.

A autenticidade deste documento pode ser conferida no site http://sei.ufop.br/sei/controlador_externo.php?


acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_externo=0 , informando o código verificador 0655678 e o código CRC
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Referência: Caso responda este documento, indicar expressamente o Processo nº 23109.000602/2024-30 SEI nº 0655678

R. Diogo de Vasconcelos, 122, - Bairro Pilar Ouro Preto/MG, CEP 35402-163


Telefone: 3135591731 - www.ufop.br
DEDICATÓRIA

Dedico o trabalho aos meus ancestrais que vieram antes de mim no empenho
de pesquisar o Teatro Negro e suas interfaces: Darcileia da Silva, Leda Maria
Martins, Evani Tavares de Lima, Fernanda Julia, Soraya Martins, Clovis
Domingos, Geovani Oliveira e tantos outros… que se encontram nas mesmas
encruzilhadas de nossas epistemologias.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à FAPEMIG, agência de fomento, que por meio de


suas ações de financiamento, permitiu que esta pesquisa apresentada ao
PPGAC da UFOP fosse realizada.

Minha família, que sempre acreditou nos meus devaneios infantis em ser
MESTRE e mesmo sem formação acadêmica, soube me incentivar. Sem o apoio
de vocês não estaria aqui hoje! Obrigado Dona Cida, Senhor Nelsão, Felipe,
Guilherme, Tia Dadá, Tia Cunha, Tio Zé, Tio Jair, Tia Angela, Tia Margarida, Tio
Celso e todos os meus outros queridos familiares.

Meus amigos carnais e espirituais que permaneceram comigo na jornada


académica: Casa de Caridade Pai Guiné, Amigos do Gente em Primeiro Lugar,
Amigos do Teatro. Vocês são meus amigos de vida e de jornada, GRATIDÃO.

Felipe Moratori, pelo incentivo para que eu escrevesse o projeto e iniciasse o


mestrado.

Swahili Vidal, você foi o cara que fez com que a minha pesquisa teórica
ganhasse a prática por conta de “CABINDA”, obrigado por me provocar,
diariamente, durante esse processo e ter feito da minha pesquisa um momento
menos solitário.

E, por fim, não menos importante, pelo contrário, meu orientador Paulo Marcos
Cardoso Maciel (ou Paulinho) por não ter me deixado desistir do mestrado no
momento mais delicado da minha vida. TE AMO!
Sá rainha me chamou,

Me chamou pra curiá.

Mas eu já vou Sá rainha

Caminhando devagar.

Maurício Tizumba
Resumo:

A presente dissertação tem por objetivo investigar a presença afrodiaspórica


como memória em A Rua da Amargura, partindo, neste sentido, da
identificação da negrura como um conjunto de valores expressivos da vida em
movimento incorporados pelo congado e pela folia de reis e presentes na
linguagem do espetáculo do Grupo Galpão (1994), dirigido por Gabriel Vilella.
Trata-se de um estudo de caso que visa, de forma mais ampla, pensar de que
modo os signos cênicos da negrura têm sido transmitidos, agenciados e
reorganizados, ao longo do tempo, no interior da/na cena mineira. Além disso,
visa discutir as ideias de negrura (1995) e de performance do tempo espiralar
(2021), elaboradas, originalmente, por Leda Maria Martins, partindo da sua
interface com a noção de valores expressivos da vida em movimento, pensada,
aqui, segundo o conceito de pathosformel desenvolvido por Aby Warburg
(2010), em diálogo com as “motrizes culturais” de Zeca Ligiéro (1993).

Palavras chave: negrura, congado, Rua da Amargura, Grupo Galpão, Gabriel


Vilella, cena contemporânea mineira, motrizes culturais, valores expressivos.
Abstract:

This dissertation aims to investigate the Afrodiasporic presence as memory in A


Rua da Amargura, starting, in this sense, from the identification of negrura as a
set of expressive values of life in motion incorporated by congado and folia de
reis and present in the language of the show of Grupo Galpão (1994) directed
by Gabriel Vilella. This is a case study that aims, more broadly, to think about
how the scenic signs of blackness have been transmitted, agencied and
reorganized over time, within the mining scene. In addition, it aims to discuss
the ideas of negrura (1995) and spiral time performance (2021), originally
elaborated by Leda Maria Martins, starting from their interface with the notion of
expressive values of life in motion, thought here according to the concept of
pathosformel developed by Aby Warburg (2010), in dialogue with the "cultural
motives" of Zeca Ligiéro (1993).

Keywords: negrura, congado, Rua da Amargura, Grupo Galpão, Gabriel


Vilella, contemporary mining scene, cultural drivers, expressive values.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Participante do Congado de Uberlândia em apresentação ….......................31


Figura 2 – O Cortejo do Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito na festa de São Benedito em 2016 .........................................32
Figura 03- Congadeiros ajoelhados na porta da igreja louvando
a passagem da Santa do Rosário ................................................................33
Figura 04 – Cortejo da folia de Reis de Guaranésia/MG ................................................37
Figura 05 – Palhaços ou bastiões em performance .......................................................38
Figura 06 – Palhaços em frente à imagem do menino Deus ..........................................39
Figura 07 - O prólogo ......................................................................................................47
Figura 08 - O menino Deus
.............................................................................................49
Figura 09 - Jesus e Maria ...............................................................................................50
Figura 10 - Jesus e a Samaritana ...................................................................................51
Figura 11 - Jesus e Magdalena ......................................................................................52
Figura 12 e 13 - O lamento de Jesus .............................................................................53

Figura 14- Caifás e os fariseus ......................................................................................54

Figura 15- A santa ceia ..................................................................................................55

Figura 16 - Judas e o coro .............................................................................................55


Figura 17 - Jesus e Herodes ..........................................................................................56

Figura 18- Jesus e a Cruz ..............................................................................................57

Figura 19 - Jesus e Maria ...............................................................................................58

Figura 20- A Rua da Amargura .......................................................................................58


Figura 21 – Jesus ...........................................................................................................59
Figura 22- A crucificação ................................................................................................59

Figura 23 - Jesus morto e Magdalena ............................................................................6


Figura 24 - A ressurreição ..............................................................................................61
Figura 25 – Cortejo de abertura do espetáculo em Ouro Preto .....................................68
Figura 26 – Foliões e o menino Jesus ............................................................................83
Figura 27 – Foliões e a instrumentação..........................................................................84
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – PRÓLOGO
...................................................................................................47
Quadro 2- A DESPEDIDA DE JESUS E A VIRGEM ......................................................50
Quadro 3- JESUS E SAMARITANA ...............................................................................51
Quadro 4 - JESUS E MARIA MADALENA .....................................................................52
Quadro 5 - O LAMENTO DE JESUS PARA JERUSALÉM ............................................52
Quadro 6 - CAIFÁS E OS FARISEUS ............................................................................53
Quadro 7 - SANTA CEIA ................................................................................................54
Quadro 8 - A CONDENAÇÃO PARA MORTE DE CRUZ ..............................................56
Quadro 9 - VIA CRUCIS ............................................................................................ ....57
Quadro 10 - A RESSURREIÇÃO ...................................................................................60
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO OU O PREPARAR DA FESTA .................................................. 09

CAPÍTULO 1:
O CONGADO EM FOLIA E A FOLIA NO CONGADO - MOTRIZES CRIADORAS
PARA A CENA TEATRAL MINEIRA DE A RUA DA AMARGURA ......................21

1.1 O congado .................................................................................................................21


1.2 O congado: performance, rito e festa ........................................................................25
1.3 A gestualidade expressiva do esquema corporal no congado ..................................29
1.4 A Folia de Reis ..........................................................................................................34
1.5 A gestualidade do esquema corporal na Folia de Reis .............................................36

CAPÍTULO 2:
A NEGRURA E A RUA DA AMARGURA ............................................................ 41

2.1 O grupo e a montagem ..............................................................................................41


2.2 Matrizes interculturais da negrura na folia d’A Rua da Amargura .............................61
2.3 O elenco e as personagens .......................................................................................64
2.4 A gestualidade d’A Rua da Amargura .......................................................................66

CAPÍTULO 3:
MOTRIZES GERADORAS DE NEGRURA NA CENA DE
A RUA DA AMARGURA ...................................................................................... 70

3.1 A semiótica teatral na encruzilhada – notas .............................................................71


3.2 Do Congado e da Folia de Reis: a negrura em diálogo com o espetáculo ...............72
3.3 Motrizes culturais presentes em A Rua da Amargura do grupo Galpão ...................79

CONSIDERAÇÕES FINAIS POR ENQUANTO ..................................................89

REFERÊNCIAS ....................................................................................................91
INTRODUÇÃO OU O PREPARAR DA FESTA

A noção de “valores expressivos da vida em movimento” é aqui desdobrada


do conceito de pathosformel, desenvolvido por Aby Warburg em seus estudos
sobre a renovação da antiguidade pagã no Renascimento italiano, a qual nos
parece ser uma ferramenta capaz de evidenciar a função mnemônica presente nas
artes cênicas em sua relação com os cortejos afrodiaspóricos. A pathosformel
compreende a pré-cunhagem das fórmulas superlativas da linguagem gestual que
gravita entre os extremos da serenidade e do orgiástico e, por sua vez, transmite,
através do tempo, a experiência vivida, segundo salientou Warburg. Com isso,
vamos buscar correlacionar o conceito do historiador de arte com o de motrizes,
desenvolvido por Zeca Ligièro para abarcar as especificidades das performances
negras, ou seja, vamos buscar ressignificar a pathosformel.
Warburg partiu da imagem renascentista para investigar a sua constituição,
segundo o processo de desdemonização da antiguidade. Naquele contexto,
procurou-se perceber não apenas de um ponto de vista formal, a atualização de
determinadas fórmulas expressivas do movimento que, em seu argumento, seriam
provenientes de distintos e variados territórios de cunhagem e circulação do
patético greco-romano, remontando, em sua trajetória de análise, aos cortejos
públicos antigos; sobretudo, os de caráter cívico-religioso. Desse modo, buscou-se
assinalar a função ritual ou prática das imagens relacionadas ao culto à Dionísio,
na Grécia, e ao Triunfo em Roma. Conforme salientou o autor:

Na região da agitação orgiástica de massas há que buscar o caráter


cunhado que introduz na memória das formas de expressar o
estremecimento interior máximo, na medida em que este pode
expressar-se na linguagem dos gestos, com tal força que tais engramas
de experiência passional sobrevivem como patrimônio conservado na
memória e determinam qual modelos os contornos que a mão do artista
traça quando se propõe fazer ressaltar, sob a luz da criação, os valores
máximos da linguagem gestual (WARBURG, 2010, p. 3).

Não se trata da transmissão dos valores expressivos da vida em movimento,


entendida apenas em termos formais, mas da experiência passional que sobrevive
nelas e com elas, enquanto “engramas” do patrimônio conservado da memória,
aqui, o da diáspora.
Os valores expressivos da vida em movimento estão relacionados ao
universo mais amplo da “pré-cunhagem” das fórmulas patéticas, na medida em
que, segundo Warburg, elas são transportadas através do tempo nas imagens que,
assim, carregam consigo sua presença ritual antiga que visava a vida prática.
Nesse sentido, a presença da antiguidade no renascimento italiano pode ser vista
para além de seu aspecto formal ou meramente artístico, além de nos permitir
questionar a tese clássica da serenidade de sua realidade, pois serviram outrora à
simbolização de relações de força entre comunidades ou coletividades e as
potências naturais e cósmicas; logo, sua instituição varia, conforme o regime de
sua existência histórica.
O acervo visual, assim, torna-se parte da história religiosa, cultural, dentre
outras, na medida em que as imagens não atendem apenas à arte, stricto sensu,
nem se limitam num campo específico do saber, pois, são como dínamos que
restituem o movimento da vida póstuma no instante ou no agora. Aby Warburg
cunhou o termo pathosformel para tratar das fórmulas superlativas da linguagem
gestual ou dos valores expressivos máximos da vida em movimento que, conforme
supracitado, determinam o universo dos contornos expressivos da criação
individual. Um dos terrenos ou sítios da pré- cunhagem das imagens, ou seja, das
formulações patéticas antigas da vida, comentadas pelo autor, são os cortejos
públicos, sobretudo os de caráter religioso associados ao ritual coletivo.
Guardadas as devidas particularidades dos estudos, acredito ser possível
deslocar seu arcabouço analítico para compreender a função mnemônica dos
valores expressivos da vida em movimento, tendo como objeto de análise, nesta
dissertação: os cortejos públicos originados em diáspora africana na América.
Desse modo, a proposta insere-se no âmbito mais amplo das abordagens
“liminares” das artes cênicas que têm buscado compreender, no campo das
epistemologias, a contribuição das manifestações culturais e ou festivas negras
para o fazer teatral brasileiro.
Nos últimos tempos, surgiram importantes estudos sobre a presença
múltipla e complexa da negritude, da negrura e ou do negro no teatro brasileiro,
cuja trajetória remonta aos estudos de Leda Maria Martins. Nessa perspectiva, , o
trabalho de análise, aqui proposto, procura contribuir com o universo dos estudos
do teatro negro e sua presença na história do chamado teatro brasileiro, ao mesmo
tempo, em que resgata seu diálogo com as festas na América Portuguesa, de
modo a entrelaçar as duas pontas enunciadas por Leda em Cena em sombras
(1995) e, mais recentemente, nas Performances do tempo espiralar (2021).
A temporalidade espiralar das performances negras, assinaladas por Leda,
vem ao encontro a nossa preocupação com o funcionamento dos valores
expressivos da vida em movimento que, segundo busco mostrar ao longo do
trabalho, sobrevivem ao seu tempo e são transmitidos, com diferença, por meio de
diversos mecanismos espetaculares associados às festividades, aos cortejos e ou
aos ritos públicos da vida coletiva. Com relação ao triunfo romano, como uma das
fórmulas antigas da vida em movimento, Warburg assinalou:

No âmbito contrastante da condição humana, que percorre do triunfo da


vida até o lamento fúnebre, vemos intervir diretamente no mundo das
formas os elementos expressivos pré-cunhados: a arte do círculo do
triunfador romano, vale dizer, os arcos, as colunas, as moedas, fornecem
as formulações daqueles que aceitam a vida, enquanto, por outro lado, os
sarcófagos, onde é representada a linguagem gestual desesperada,
trazidas do mito e das tragédias gregas, imprimem ao pathos padecedor
do lamento fúnebre da época o seu estilo perturbador e envolvente
(WARBURG, 2018, p. 214).

Os elementos expressivos pré-cunhados, moldes dos modos possíveis de


comunicação da experiência vivida dos corpos em movimento, podem ser
identificados também no âmbito das performances negras que, aqui, serão
aproximadas do conceito de pathosformel de Aby Warburg (2018, p. 93). Assim,
poderemos observar de que forma, por meio dos folguedos, deu-se a interiorização
das formulações expressivas patéticas vivenciadas pelos negros e negras da
diáspora na América, invertendo, por sua vez, o vetor pulsional das manifestações
eurocentradas e católicas. Nessa direção, a gestualidade se torna símbolo da
circulação e da migração, possibilitando perfazer os caminhos da escravidão, dos
encontros entre elementos distintos, na consideração da “encruzilhada” como o
terreno próprio dessa história e do embate em torno do sentido de valores
expressivos reterritorializados.
A diáspora é uma experiência em comum, vivida por distintos povos e
nações africanos que, uma vez deslocados de seu berço de origem, foram
obrigados a reconstruir seu território de vida. Nessa direção, a diáspora contribuiu
para a formação de uma identidade coletiva chamada de negritude (DOMINGUES,
2005) que, uma vez delimitada, enquanto sociabilidade na luta contra o racismo
nascido outrora da colonização, do tráfico e da escravidão, servia de território de
experiência comum aos negros e negras em seu movimento pelo atlântico. Dessa
maneira, disseminaram, ao longo do novo território ocupado como escravizado e/ou
escravizada, as distintas formas de manifestação negra da vida em movimento,
geralmente, acompanhada pelo tripé rítmico discutido, aqui.
Inúmeros são, portanto, os estudos que partem dessas performances, a fim
de estabelecer diálogos entre festa, cena teatral e matrizes estéticas para a
construção de seus espetáculos. A presente dissertação se insere no campo de
investigação das matrizes negras afrodiaspóricas e de sua contribuição à história
das artes cênicas, no Brasil, especialmente, abordando a presença do congado e
da folia de reis na configuração de valores expressivos do movimento que, num
segundo momento, retornam e se atualizam, enquanto elementos conformadores
das escolhas feitas pelo espetáculo teatral. Vale lembrar que as fórmulas patéticas,
cunhadas através do tempo, delimitam o terreno criativo da experimentação do
artista.
Sob essa ótica, a relação entre os folguedos e o espetáculo teatral aqui
sugerida pretende ir além de sua contribuição à cena, enquanto fontes
aproveitadas na criação do processo artístico, pois procura evidenciar sua
presença como uma forma de atualização das formulações afrodiaspóricas. Por
essa razão, permite perceber a negrura como “engrama” de um construto semiótico
e patético partilhado através das performances rituais e teatrais, cuja diferenciação
a ser reconstituída compreende a transmissão e circulação no tempo do gesto
vivido que se torna reminiscente1. Assim, a negrura assume a configuração cênica
do pathos renascido no instante ou momento de sua enunciação na diáspora. O ato
ritual possibilitaria, na diáspora, a emergência de um espaço de pensamento
próprio de negros e negras nas Américas, na medida em que opera a
reconstituição de um mundo em comum, segundo seus respectivos pontos de vista.
Por esse motivo, acredito ser a congada e a folia de reis pontos de vista
privilegiados para o estudo da presença negra na cena contemporânea mineira,
especialmente, em A Rua da Amargura, cuja linguagem de rua se associa à
pesquisa e ao diálogo com os valores expressivos do movimento cunhado pelas
1
- A noção de reminiscência aqui é tomada de empréstimo às Teses sobre a história de Walter
Benjamin. De acordo com o autor, articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como
ele de fato foi”, mas, “apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um
perigo”. Esse momento de perigo refaz aquele outrora experimentado pelos vencidos diante do
cortejo triunfal do progresso, “em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão
prostrados no chão” (BENJAMIN, 1987, pp. 222-232). Por outro lado, buscamos situar a
reminiscência no contexto das performances do tempo espiralar, segundo a reflexão de Leda Maria
Martins (2002, 2003, 2021)
matrizes afrodiaspóricas. Dessa forma, a variação conceitual informada revela as
distintas angulações adotadas pela bibliografia mais recente para classificar e
compreender o território das artes cênicas em “campo expandido”:

A migração do teatro para além dos paradigmas tradicionais é uma


constante na cena contemporânea, em que proliferam experiências
híbridas, descentradas, cujo traço dominante é furtar-se a padrões de
criação e leitura convencionais. Seja quando se expande para além dos
limites do que se considera uma manifestação teatral, seja quando invade
a vida e dela se apropria por mecanismos de anexação do real, parece
evidente que o campo de ação do teatro de hoje é amplo e informe.
(FERNANDES, ISAACSSON, 2016 p.1).

Trata-se de explorar o campo amplo e informar da migração do teatro em


função de sua pretérita relação com a festa, desde a colônia, conforme revelam
inúmeros estudos (MAGALDI, 1997). A bibliografia, ao se debruçar sobre teatro na
colônia, salientou que sua ocorrência e dinâmica dependiam de um contexto mais
amplo festivo. Logo, interroga-se: em que medida esse contexto informou, ao longo
do tempo, as modalidades da vida em movimento figuradas na linguagem
cênico-dramática do teatro, uma questão que sugere ser a festa um instante de
passagem entre a vida cotidiana e a arte?
Portanto, pensar as artes cênicas em campo expandido compreende,
também, aqui, questionar as fronteiras que as separam da vida prática, uma vez
que os folguedos, ritos e ou festividades atendiam e atendem a determinadas
necessidades da vida cotidiana e coletiva (religiosa, social, política etc.). Estou
querendo sugerir que as formas tradicionais de expressão da vida em movimento
foram sendo constituídas pela transmissão das fórmulas patéticas cunhadas pelos
cortejos públicos. Sendo assim, forjaram um repertório coletivo dos valores
significativos do movimento, conforme as diferentes configurações, funções e
potências dos gestos, frente ao qual o ato criador individual e/ou grupal acaba
tendo que se posicionar.
Os valores expressivos do movimento cunhados pelas formas tradicionais,
rituais e/ou festivas, da vida coletiva funcionam como fórmulas transmissoras do
vivido no mundo. No caso da congada e da folia, por exemplo, tais relações se
pautam na perspectiva da negritude ou da afro-brasilidade, observando-as, é claro,
segundo o que consideramos o traço singular de sua experiência, ou seja, a
ancestralidade das suas práticas espetaculares, performances e ou práticas extra
cotidianas. Ancestralidade que se presentifica no congado e na folia de reis,
remontando uma história de longa duração, desde a sua reminiscente travessia
atlântica entre África, Portugal e Brasil. Levando em conta as diferentes maneiras
de compreender a congada e a folia de reis, enquanto manifestação cênica ou
performática, ato ritual ou manifestação cultural, pode-se, assim, tomá-las como
dispositivos de análise para estudar a negrura de A Rua da Amargura (1994) e, de
forma geral, investigar a partir desse horizonte os valores expressivos do
movimento cunhados pelos cortejos públicos e transmitidos, por meio de seu
retorno, à cena teatral mineira contemporânea.
A escolha do espetáculo informado nos ajuda a aprofundar a reflexão sobre
as relações entre espetáculo teatral e festividades classificadas como cultura
popular, partindo, nessa direção, de um dos exemplares da cena de rua mais
recente que, segundo a bibliografia e a documentação consultada, reclama para
sua construção às matrizes populares em sua linguagem. Por outro lado, o trabalho
selecionado nos permite descortinar as mudanças ocorridas na transposição da
congada e da folia de reis de seu tempo-espaço particular para sua redefinição
criativa pela cena do presente.
Portanto, partindo da questão formulada acima, procurei orientar a pesquisa,
realizada de forma bibliográfica e documental. Vale salientar que o meu período
neste PPGAC coincidiu com a pandemia da Covid 19 e, devido a situação sanitária
do país, não tive a oportunidade de fazer a pesquisa em campo. Isso me levou a
levantar as fontes documentais, necessárias à reconstrução dos cortejos e de sua
gestualidade, por meio de um corpus variado - fotografias, filmagens, bibliografia
especializada - disponível remotamente para que, após uma seleção, pudesse
apresentar e discutir as fórmulas patéticas da negrura incorporadas na
gestualidade da diáspora.
Assim, esta pesquisa escolheu como caminho procurar evidenciar os nexos
possíveis entre a cena teatral mineira contemporânea com um espaço-tempo da
memória cultural articuladora do presente vivido. Tratou-se de identificar as
transformações da negrura na cena teatral mineira, tendendo a desvendar os
signos de sua presença e, uma vez delimitado um terreno de investigação do
problema, compreender como tais indicadores explicitam sinais dos valores
expressivos da vida, enquanto marcadores estéticos e epistêmicos oriundos do
congado e da folia de reis. Entendendo a “negrura” conforme a reflexão
desenvolvida por Leda Maria Martins em Cena em sombras: “[...] a negrura não é
um ‘topos’' detentor de um sentido metafísico. Ela não é apreendida, afinal, como
uma essência, mas, antes, como um conceito semiótico, definido por uma rede de
relações” (MARTINS, 1995, p.26). Interessa-nos, pois, descortinar os valores
expressivos da vida em movimento que informam e são informados pela negrura no
entrelaçamento entre as práticas cênico-dramatúrgicas e as manifestações
culturais de matriz africana.
Para tanto, parto da negrura enquanto um construto semiótico e um agente
coletivo formulador de um pathos que é circunscrito aqui por meio da congada e da
Folia de Reis observando, em um segundo momento, suas relações com a
linguagem cênico-dramatúrgica de A Rua da Amargura. O cerne desta investigação
consiste em: quais são os signos da negrura de A Rua da Amargura? De que modo
o espetáculo dialoga com a memória afrodiaspórica? Quais os valores expressivos
da vida em movimento que informam e são informados pela congada e pela folia de
reis aparecem outra vez na cena teatral do Galpão? Trata-se de ampliar o escopo
da análise do espetáculo para além da folia de reis, informada pelo próprio diretor
como uma das fontes da criação do trabalho, pois, acredito que é possível
reconhecer no congado outra matriz criativa. Nesse percurso, busco discutir,
também, os processos de reconfiguração das negruras quando se tornam signos
da cultura popular brasileira.
Baseado nisso é possível afirmar que o espetáculo teatral em seu
acontecimento evoca imagens, gestos e comportamentos expressivos da vida em
movimento que foram sendo forjados, ao longo do tempo, sobretudo, via as
tradições populares presentes em nosso país. Tradições que delimitam o campo de
emergência da performance do tempo espiralar, associada à restauração do
comportamento por Richard Schechner: “não há nenhuma ação humana que possa
ser classificada como um comportamento exercido uma única vez” (SCHECHNER,
2003, p. 27). Uma vez que nenhuma ação humana se exerce uma única vez, então,
estamos sempre diante de uma ação que se repete ou se revive transmitida por
fórmulas do corpo em movimento.
Nesse sentido, as festas são tomadas aqui como uma das instâncias
geradoras e transmissoras de valores expressivos da vida em movimento, ou seja,
como matrizes-motrizes que, ao longo do tempo, sedimentaram determinados
comportamentos significativos. Desse ponto de vista, podemos mencionar as
performances como o congado, a folia de reis, o bumba meu boi, dentre outras
formas culturais, e até mesmo práticas narrativas, transmitem, até hoje, a
cunhagem da negrura.
Portanto, a presente dissertação procura identificar e discutir a presença
dessas manifestações afrodiaspóricas na cena teatral contemporânea mineira,
partindo de seu repertório de signos entre outros elementos. O que se coloca como
problema, nesta pesquisa, é a própria temporalidade da cena contemporânea para
além de seu presente imediato, sendo necessário perceber, na sua duração mais
larga, a constituição de determinados vetores que retornam sempre diferenciados.
A partir do século XIX, as festas e os ritos passaram a ser classificados e
estudados como folclore e, posteriormente, enquanto manifestações típicas da
cultura popular brasileira. Por outro lado, nesse mesmo século, o teatro e a dança
se tornaram manifestações típicas do campo da arte que se articula em moldes
eurocêntricos, no país, e, uma vez circunscritos aos espaços-tempos próprios da
sua ocorrência, surgem desligados daquele contexto mais amplo e ambientados,
sobretudo, nas salas de espetáculo. Mas essa mudança não significou um
abandono completo da comunicação ou da interface entre os três setores, arte,
festa e vida, mas alterou sobremaneira sua configuração. Desse ponto de vista, é
possível pensar na presença da festa e do rito na cena teatral contemporânea,
enquanto modelos para a estrutura organizada da linguagem cênico-dramatúrgica,
conforme manifestadas em suas diferentes vertentes de teatro de rua, por exemplo.
Essa interface ou intertextualidade não se limitou ao movimento de teatro de grupo
nascido nos anos de 1970. Os estudos acerca do teatro brasileiro já apontam para
os atravessamentos das festas populares e das manifestações culturais com a
prática teatral no início da colonização.
Vale ressaltar que penso a festa como um ato ritual coletivo que busca, por
meio de suas fórmulas patéticas, expressar as formas de viver, sentir e pensar de
seus participantes, especialmente, naquilo que compreende as relações vividas
entre as coletividades e as forças naturais, cósmicas e históricas, manifestando, em
seu movimento, os seus elos de pertencimento ao passado que lhes pertence
como característico da coletividade do rito. Como se pode observar na organização
das duas festividades analisadas. No entanto, é preciso ressaltar a polissemia e a
diversidade da noção de festa para que tenhamos condições de situar nossa
perspectiva perante a sua pluralidade e ou multiplicidade de sentidos:
Há várias alternativas à disposição na bibliografia: ato coletivo
ritualizado, de caráter essencialmente sagrado, próprio das chamadas
sociedades primitivas e que decairia com a laicização e o
individualismo próprios da sociedade contemporânea; interrupção
programada da vida cotidiana, ou mesmo sua inversão completa, como
forma de descarregar energias e tensões reprimidas; instauração do
caos da natureza, negação da ordem social, subversão; manifestação
coletiva especificamente popular, caracterizada pelo riso, pela alegria
transbordante, pelo grotesco, etc. Tais definições são, a rigor,
incorretas. São, no entanto, incompletas, imperfeitas, na medida em
que assumem festas particulares, ou características específicas de
determinadas festas, como parâmetro para julgar o que é, ou não, uma
festa. Isso tem efeitos sérios: impede as teorias correntes sobre a festa
de escapar das aporias impostas pelo senso comum e torna impossível
o diálogo entre os próprios cientistas. (GUARINELLO, In: JANCSÓ; In:
KANTOR, 2001, p. 970.)

As festas aqui ocorridas durante a colônia, em sua maioria, eram


momentos de sociabilidade coletiva que, por sua vez, eram mediadas pela
teatralidade dos festejos públicos e, além disso, marcadas pela
interculturalidade, segundo observou Zeca Ligiéro:

Nossos historiadores brasileiros, muitos deles seguindo as trilhas de


estudiosos do velho mundo, concluíram que o teatro brasileiro teve
início quando o Padre José de Anchieta encenou seus primeiros atos
para os índios brasileiros, não percebendo as performances existentes
no Brasil, seja nativa ou trazida por milhões de africanos logo nos
primeiros séculos da colonização (LIGIÉRO, 2011, p.61).

Por sua vez, uma maneira renovada de olhar a questão seria considerar a
festa como um instante de passagem entre vida cotidiana e arte, tal como
proposta por de Aby Warburg (2010), de modo que se aproxime das noções
poéticas de “campo expandido”, Hans-Thies Lehmann (2007), “liminaridade”,
Victor Turner (2008), e de “tempo espiralar”, Leda Maria Martins (2021). E para
pensar a experiência “espiralar” do tempo na cena teatral contemporânea
mineira é preciso levar em conta, por outro lado, os agentes envolvidos nos três
universos: as artes cênicas, as festas e os ritos; sobretudo, quando nos
lembramos de que negros e pardos eram os agentes mediadores entre as três
instâncias na chamada América Portuguesa:

Com relação aos actores e demais artistas que formavam os elencos


dos teatros realizados em palcos efémeros durante as festas públicas,
concluímos que, dentro de uma mesma festa, as distintas
representações dramáticas poderiam ser realizadas por companhias
diferentes, incluindo profissionais –geralmente músicos e actores
pardos já com alguma experiência na arte dramática e contratados pelo
sistema de arrematações–, “crioulos” ou escravos forros pagos pelas
representações, estudantes ou homens “principais da cidade”
denominados “curiosos”, que subiram à cena em honra do Rei ou de
uma autoridade colonial em sinal de gratidão e dedicação. De modo
geral, as companhias não se misturavam, obedecendo a devida
hierarquia com respeito à classe social e ao grau de limpeza de sangue
de seus componentes; muito embora as companhias de origens
diferentes pudessem integrar o programa de uma mesma festividade,
na qual distintas óperas e comédias eram atribuídas a distintos grupos
de actores, que representavam para um mesmo público em
comemoração de uma mesma efeméride. (BRESCIA, 2000, p. 35)

Ao sinalizar a presença de negros, nas festas e na cena teatral da


colônia, podemos reorientar a história do teatro, no Brasil, afastando a visão
eurocêntrica como titular dessa construção, tensionando o próprio termo
América portuguesa. Dessa maneira, estou seguindo o caminho já trilhado por
pesquisadores e pesquisadoras das manifestações afrodiaspóricas, enquanto
formadoras da tessitura cênica repleta de signos de negrura em seu
acontecimento e a sua inestimável contribuição para as artes cênicas, conforme
disse Evani Tavares Lima:

entendo que a proposição de processos criativos e poéticas dessa


natureza, fundados nas culturas negras descendentes, além do
contundente apelo afirmativo, constitui-se como uma inestimável
contribuição para as práticas e concepções das Artes Cênicas no Brasil
(LIMA, 2010, p.117).

Para compreender essa “inestimável contribuição”, torna-se importante


perceber as malhas de sua temporalidade, de que modo os valores expressivos
da vida em movimento surgiram das manifestações espetaculares negras,
transitando das festas e dos ritos para o campo das artes cênicas que Evani
trata, ou seja, buscar-se-á reconhecer as práticas que se perpetuam através da
transmissão no espaço-tempo de seus conjuntos de imagens, gestualidades,
coreografias, sons, trajes, cores, narrativas entre outros elementos
cênicos-dramatúrgicos.
Para um pesquisador das Artes Cênicas, preto, mineiro e espectador de
teatro e de manifestações populares negras, investigar a memória afrodiaspórica
significa entender quais são os valores que me movem na direção do espetáculo
“A Rua da Amargura”, ou melhor, de seu sistema de signos que, segundo minha
aposta, manifesta a presença do Congado e da Folia de Reis como
matrizes-motrizes da negrura no espetáculo.
Sob essa perspectiva, não só estou buscando estabelecer algumas
coordenadas de inscrição crítica da memória como índice da performance
negra, na cena teatral mineira, mas também, procurando caminhar para o
reconhecimento das fórmulas patéticas que habitam as imagens e as
corporeidades da vida em movimento, nascidas na diáspora, e que, em razão do
descentramento forçado, soube recriar um imaginário criativo-afetivo próprio nas
Américas.
Para tanto, a dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro, o
objetivo é discutir as manifestações afrodiaspóricas, fortemente difundidas, em
Minas Gerais: o Congado e a Folia de Reis. Nelas, vou procurar circunscrever
aproximações no que tange à estruturação de ambas as performances em
acontecimentos tais como: a organização dramatúrgica, gestualidade e
similaridades que geram signos constituintes da negrura em movimento. No
segundo capítulo, busco reconstituir o espetáculo, por meio de pesquisa
documental relacionada à montagem, assim como, identificar, em sua
constituição, as possíveis reminiscências negras presentes em sua
espetacularidade. Trata-se de identificar, em sua semiose, os elementos das
manifestações apresentadas, partindo da literatura especializada sobre a cena
contemporânea mineira e o espaço, nela, ocupado pelo espetáculo. O terceiro
capítulo é destinado a investigação das relações Inter semióticas entre o
Congado, a Folia de Reis e o espetáculo teatral A Rua da Amargura (1994),
dirigido por Gabriel Vilella, junto ao Grupo Galpão, de Belo Horizonte. Estou
interessado em compreender, por meio do estudo de caso, de que modo a
memória se inscreve na cena teatral mineira contemporânea e como ela é
agenciada no espetáculo. Trata-se de perseguir os processos
cênicos-dramatúrgicos que informam sobre a historicidade mais ampla do teatro
em Minas Gerais.
Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos,
puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza
quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não
sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu
que os cobre e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a
película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os
apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme
pulsar do coração. Agora o céu está mais perto e mudou
de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das
aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido
brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície
das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da
memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a
proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que as aves
digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas
folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo
adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais
circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos. Depois saberei tudo.
(As Pequenas Memórias, 2006, José Saramago)

Essa pesquisa, assim como o poema de Saramago, coloca-nos diante


do tempo, como um novelo emaranhado de fios que confundem o outrora com
o agora, presente-futuro. Dessa maneira, trata-se de um estudo sobre os
agenciamentos do tempo, transmitido pelas distintas performances da vida em
movimento, acontecendo entre as mais variadas matrizes estéticas na
composição do fazer teatral brasileiro.
Capítulo 1 - O Congado em folia e a folia no congado – motrizes criadoras
para a cena teatral mineira de A Rua da Amargura

Conforme dito na introdução, busquei por meio de um estudo


bibliográfico e documental identificar nas matrizes culturais do Congado e da
Folia de Reis as semelhanças que existem na estruturação de ambas as
performances. Mesmo sabendo que ambos os folguedos apresentam
especificidades locais e/ou regionais, aqui vou procurar isolar os elementos
estruturais, a fim de reconstituir seus respectivos procedimentos cênicos-
dramatúrgicos. Trata-se de delimitar um terreno de investigação que,
posteriormente, permita comparar seus resultados com os alcançados através
da análise do espetáculo.

1.1 O Congado

De acordo com Martins (1997), o congado é uma manifestação resultante


das interações socioculturais promovidas pela colonização portuguesa na África
e, posteriormente, na América. Podemos afirmar, então, que o congado, aqui,
surgiu do encontro entre as culturas africanas, luso-espanholas e indígenas, e
se configurou, em solos brasileiros, como uma das mais significativas
performances Bantu no Brasil.

Os Bantus, como primeiros negros vindos da África para o Brasil, há


mais de 400 anos, trouxeram consigo uma tradição cultural e religiosa
muito forte têm um papel significativo na formação cultural brasileira e
na identidade nacional, seja pelo legado linguístico, pela cultura
popular como as artes manuais e culinária, nas práticas agrícolas ou
na origem de ritmos e expressões musicais como o samba, o
maracatu, a congada, o jongo e a capoeira (JUNIOR , 2019, p.1).

Nesse sentido, Leda Maria Martins, em Afrografias da Memória (1997),


compreendeu as culturas negras nas Américas como lugares de encruzilhadas,
pois, se constituíram no cruzamento das tradições e memórias orais africanas
com outros códigos e sistemas simbólicos e, sendo assim, passaram a significar,
justamente, o jogo das relações tecidas na diáspora com o outro colonizador
europeu e com os demais colonizados: “Como baobá africano, as culturas
negras nas Américas constituíram-se como lugares de encruzilhadas,
interseções, inscrições e disjunções, funções e transformações, confluências e
desvios, rupturas e relações, divergências, multiplicidade, origens e
disseminações” (MARTINS, 1997, p.25). Por outro lado, a autora enfatizou, em
seu estudo, que as culturas negras que matizaram os territórios americanos
podem ser vistas tecendo a identidade afro-brasileira como uma textura.

Martins (2002) aborda a cultura negra como uma cultura da encruzilhada


e, deste modo, leva-nos a entender que as diásporas fizeram com que cultura
africana fosse desterritorializada e, ao mesmo tempo, reelaborada frente a esse
processo de trânsito: “[...] a noção de encruzilhada, utilizada como operador
conceitual oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e
epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se
confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas
performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos,
saberes diversos, enfim”. (MARTINS, 2002, p. 73)
A encruzilhada entendida por Leda Maria Martins, como um operador
conceitual, permite-nos perceber como o Congado, na chamada América
Portuguesa, foi atravessado, reelaborado e territorializado, uma vez que
sabemos que a tradição de coroação de reis negros, como simbologia da
realeza ancestral, tem seus primeiros vestígios ainda em solos africanos no
antigo Reino do Kôngo, entendido como Congo, Angola e em suas mediações,
conforme se verificar na leitura de Souza (2002), em seu estudo Reis negros no
Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo.
De acordo com Souza (2002), o congado deita suas raízes nos cortejos
reais que tomaram forma na África centro-ocidental em virtude de seus contatos
com os portugueses desde o século XIV, mas, lembrando que os empréstimos
feitos, ao modelo português da vida de corte, dependiam da possível tradução
ou codificação em função da prática local:

Wyatt MacGaffeye John Thornton, o primeiro, antropólogo, dedicado ao


conhecimento da cultura bakongo; o segundo historiador, especialista
em reino do Congo dos séculos XVI ao XVIII, defendem que durante os
primeiros 200 anos de contato entre congoleses e europeus houve o
desenvolvimento de um catolicismo africano, no qual os missionários
cristãos viam sua religião, e as populações congolesas a sua forma
tradicional de reverenciar os Deus e se relacionar-se com o além.
Diálogo de surdos ou reinterpretação de mitologias a partir de códigos
culturais próprios[...]. (SOUZA, 2002, p.63)

Um catolicismo africano que surge como manifestação da


interculturalidade assinalada acima vista a partir da negrura com base nos
códigos culturais próprios. Isto é, a incorporação de novos símbolos e de novas
maneiras de organização do cortejo real se deu a partir do ponto de vista
africano, gerando, por fim, uma sobreposição tensa entre os dois universos.
Nesse sentido, quando a cerimônia real já combinada se transladou à América
portuguesa, carregava consigo um intenso terreno de negociação, conforme
revelado pelo termo cristianismo negro (FALOLA, 2020). Em torno das
aquisições feitas, a manifestação se organizou na diáspora com base nos
grupos chamados de sete irmãos do congado: congo, moçambique, marujada,
catopês, caboclinhos, vilão e cavalhada. De acordo com CEDEFES (2008), os
congos e moçambiques simbolizam os negros que resgataram a imagem do
mar, os marujos fazem referência à travessia da imagem pelo oceano atlântico,
realizada pelos negros e portugueses e os catopês representam os índios
(CEDEFES, 2008. p.68). Por outro lado, Martins complementa que os catopés
representam o índio africano, que se diferencia do indígena brasileiro
representado pelos caboclos; os vilões e as cavalhadas representam os
guerreiros, sendo que suas funções, no conjunto, são decorativas (MARTINS,
1997, p.34).
Essa complexa rede de trocas na diáspora dizia respeito ao tráfico que
dispersava os elos familiares e comunitários, exigindo, por seu turno, dos
africanos e das africanas refazer, em outro sítio, seus respectivos
pertencimentos cindidos pela escravidão. Portanto, tais manifestações passam a
pôr em contato diferentes povos e nações que, em função do deslocamento
forçado, encontram nelas um espaço-tempo comum de vivência. É preciso ter
em mente que tais cruzamentos eram efetivados num contexto cultural particular
que reunia práticas festivas, rituais e artísticas, segundo um complexo
calendário cívico-religioso que ordenava à vida em geral.
A territorialidade de origem das cerimônias públicas se torna, desde o
princípio, um problema que compreende uma heterogeneidade de elementos
que se encontram reunidos no “terreno” cristianizado, o qual, também, diz
respeito ao legado ancestral que se atualiza e, deste modo, reposiciona as
práticas africanizadas no interior de um quadro racial conflituoso acerca da
reconstituição dos pertencimentos como vemos, por exemplo, os novos arranjos
proporcionados pelas irmandades de homens negros. De acordo com a
bibliografia consultada (SOUZA, 2000), o surgimento das primeiras irmandades
de homens pretos remete ao ano de 1552 com a criação da primeira irmandade
de Nossa Senhora do Rosário, em Pernambuco. Mais tarde, somou-se a essa
primeira experiência de organização outras irmandades que se distribuíram pelo
território colonial. Um dado interessante é que essas irmandades tinham como
santos católicos de devoção “santos pretos”. Nesse sentido, podem ser
encaradas como uma estratégia de cristianização dos negros, incidindo,
sobretudo, no século XVIII, em torno do culto ao Santíssimo Sacramento, Almas
e Nossa Senhora do Rosário:

O congado é uma manifestação de cultura popular criada no âmago da


diáspora africana, em louvor de santos negros e homenagens a reis e
rainhas congo [...]. Ou seja, o congado é uma forma de representar a
convivência das diferentes etnias africanas reunidas pela dependência
de um reino, através do louvor a Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito, Santa Efigênia e outras santidades (GABARRA 2009, p.3-4).

Dessa maneira, o congado se tornou uma manifestação da “cultura


popular” e ou uma expressão da brasilidade investida de um território comum
entre povos de distintas origens africanas, porém, esse processo de contato
intercultural já existia no próprio continente africano, logo, mais do que a
conversão o que se pretendia era a manutenção da relação que aceitou o
catolicismo. Por outro lado, os negros convertiam os santos em imagens ou
representações de sua própria religiosidade, levando a elaboração de um duplo
enunciado, na medida em que sua manifestação oculta um outro diverso àquela
figura que surge à primeira vista.
Conforme Souza (2002), as irmandades foram elementos fundamentais
no exercício de uma religiosidade colonial e barroca, caracterizada pelos cultos
aos seus santos de devoção. A encruzilhada do congado conduz à outra
caraterística que Martins (1995) atribuiu ao teatro negro: o duplo enunciado. Ou
seja, por meio do culto aos santos católicos se tornou possível atualizar seus
vínculos com suas religiões de origem. Vale destacar que essas irmandades
tinham um compromisso assinado com a coroa que estipulava suas obrigações
com funerais, oferta de cuidados médicos, vida e convívio religioso, enquanto
associação. Uma das obrigações estabelecidas pela autoridade real dizia
respeito à organização das festas dos santos padroeiros.
Portanto, além de toda essa atuação na esfera social e religiosa, na ótica
da coroa, as irmandades funcionavam como um fator de equilíbrio social e um
importante instrumento de inserção de negros e mestiços no processo de
interação social, formulado pela colonização e pela escravização:

No plano religioso, elas espelhavam a ideia de que se a todos era


permitida a formação de um ou mais sodalícios, havia igualdade de
oportunidades. [...] Na óptica do Estado absolutista, a ideologização
das confrarias permitira-lhe perceber e, por decorrência, canalizar a
seu favor ou neutralizar com maior facilidade as manifestações sociais
que lhe eram adversas (BOSCHI, 2019, p. 215).

Na medida em que o Estado absolutista buscava incluir os negros (as) e


pardos (as) à ordem colonial vigente via sua organização em irmandades e
confrarias, por sua vez, elas possibilitavam uma forma de solidariedade baseada
na reconstituição dos laços comuns aos africanos. Entendendo o trânsito
multifacetado das culturas negras, como culturas das encruzilhadas, o congado
nos apresenta variados caminhos de entendimento capazes de evidenciar sua
negociação territorial.
Nessa direção, segundo Martins (1997), o universo do congado esculpe
um saber Bantu que se expressa nos elementos de crença e, em sua
concepção, busca por meio da sua prática rememorar as culturas negras
transplantadas para as Américas, além de representar, simbolicamente, nos
rituais o elo com a ancestralidade africana. Levando em consideração tais
particularidades, vamos encontrar no congado uma manifestação Bantu definida
por simbologias, ritualísticas e performatividade que, conforme ressaltou Souza
(2018), acaba por ser um espaço de sociabilidade, um território metafísico,
espiritual e seguro para que os africanos exercitem sua
religiosidade/espiritualidade e dramatizam suas relações conflituosas
construídas no novo mundo pela diáspora africana.

1.2 O congado: performance, rito e festa

De acordo com Ramos (2022), “o acontecer da festa, que tem início no sábado
da festa e segue até o final da tarde de domingo e que congrega toda a tessitura
composta por levantamento de mastro; instalação de reinados; cortejos; missa solene;
almoço comunitário; procissão e benção final” (2022, p.303). Podemos perceber que a
festa é organizada partindo de um programa compreendendo cortejo, missa, almoço,
procissão e benção, cujas raízes remontam aos programas festivos que encontramos
na colônia. O congado segue um roteiro estruturado em torno das partes
informadas acima que, uma vez reunidas, situam o ritual num contexto
afrodiaspórico, conforme a descrição dada ao fenômeno por José Pereira de
Souza Junior:

A festa de Nossa Senhora do Rosário iniciava-se com a missa


celebrada pelo pároco, onde ocorria à coroação do Rei e da Rainha,
após a missa e a coroação saia-se em procissão e cortejo, ao longo do
trajeto dançava-se, bebia-se, batucava-se em louvor à santa e ao Rei e
Rainha recém-empossado. A festa terminava na praça pública em
frente à igreja, onde se continuava às comemorações (JUNIOR, 2009,
p.5)

Como vemos no relato, a festividade é organizada de acordo com um


conjunto de ações que, uma vez reunidas, ressaltam a dimensão cênica do
ritual, conforme observou Martins:
Perfomados por meio de uma estrutura simbólica e litúrgica complexa,
os ritos incluem a participação de grupos distintos, denominados
guardas, e a instalação de um Império negro, no contexto do qual os
autos e danças dramáticas, coroação de reis e rainhas, embaixadas,
atos litúrgicos, cerimoniais e cênicos, criam uma performance
mitopoética que reinterpreta as travessias dos negros da África ás
Américas (MARTINS, 2003, p. 71-72).

Autos, danças dramáticas, coroação, embaixadas, atos litúrgicos,


cerimônias, formam a estrutura simbólica do rito e de sua complexa rede
semiótica. Assim, pode-se constatar que a performance mitopoética do Congado
se apresenta como um rito coletivo de expressiva linguagem cênica que lhe
permite introduzir no roteiro de ações sua existência intercultural. Vamos nos
atentar ao conceito de ritual e tecer, por sua vez, a dimensão cênica dele. Na
perspectiva de Sodré (2005), o ritual se define por conjunto de procedimentos
(verbais e não verbais) destinados a fazer aparecerem os princípios simbólicos
do grupo. O conceito de ritual é agenciado para reflexão proposta, pois, a
bibliografia especializada destacou que o Congado é repleto de procedimentos
verbais (narrativas, cantopoemas, coro e resposta) e não verbais (coreografias,
ritmo, adereços e vestimentas), ambos os procedimentos de construção
narrativa trazem o caráter cênico do ritual e dos indivíduos em “cena” ou
espectadores. Nesse sentido, cria-se uma estrutura comunicativa entre os
mesmos e suscita-se a experiência coletiva, partindo da palavra oral e da
repetição.
A repetição do rito propicia a palavra oral como guia do acontecimento,
fazendo com que o ritual-cênico seja recriado e reiterado. Para Sodré (2005),
essa reiteração aponta para a singularidade (logo, o real) do momento vivido
pelo grupo. Partindo dessa observação, podemos avançar no reconhecimento
do congado como rito coletivo e analisar, assim, em conjunto, sua dimensão
cênica. Dessa maneira, o ritual congadeiro faz com que compreendamos as
experiências coletivas desses grupos, tais como suas cosmovisões.
Duas dimensões do rito são fundamentais para entendermos a dinâmica
do congado: a primeira é a ideia de ancestralidade como filosofia dos grupos
participantes. Os ritos africanizados são capazes de confirmar uma
particularidade entre os seus participantes e as divindades, estabelecendo um
circuito fenomenológico que incorpora um cosmos assentado na ancestralidade,
conforme discutiu Martins (2003, p.78): “concepção ancestral africana inclui, no
mesmo circuito fenomenológico, as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a
flora, os elementos físicos, ou mortos ou vivos em contínuo processo de
formação e de devir”.
A segunda é a da memória que desenha toda a cena do ritual no
congado. Na inscrição da memória, os congadeiros com seus corpos organizam
e gerenciam semioticamente o repertório de textos, sensações, cantos, histórias,
partituras, recriando-os a partir das lembranças da memória ancestral e
permitindo, por sua vez, uma ligação entre os vivos e os mortos, o agora e o
outrora na dimensão religiosa. E é por meio das cenas que suscita a memória
ancestral em que acontece a reprodução e a manutenção destes saberes
produzidos.
Por meio da presença do corpo e da voz na feitura do ritual e seus
entrelaçamentos entre canto, dança, gesto e ritualização, temos uma
ancestralidade sendo recriada e reescrita pelos seus praticantes, a que Martins
(1997) chama de “afrografia da memória”. Logo, o acontecimento da
performance congadeira faz com que os elementos corpo, gesto e voz
reescrevam as heranças africanas, através da performance, ou melhor, da
memória grafada por meio do corpo. Ou seja, uma “grafia”, um inscrito escrito
corpóreo, circunscrito por meio da atualização e reelaboração da ancestralidade
(memória) com o corpo presente no ritual. A festa do congado, assim, torna-se
participação e partilha da herança e do legado da matriz expressiva da vida
africana na diáspora em movimento.
Nessa perspectiva, o ritual congadeiro reatualiza, recria e, sobretudo,
presentifica a ancestralidade africana viva e pulsante em cada gesto, batida,
coreografia. No que tange à dimensão da memória, o congado agencia meios
para sobrevivência da africanidade que durante séculos resistiu à repressão
social e cultural nas colônias americanas. No congado, ela se dá por meio da
performatividade festiva da coroação de reis e rainhas e da gestualidade que
ativa e reatualiza a memória da festa, do rito e dos antepassados. Essa
atualização acontece por meio de seus participantes e de seus repertórios
gestuais em tempo de festividade. Taylor (2002), ao dissertar sobre a noção de
repertório, sinaliza sobre a capacidade que o corpo tem de registrar e
presentificar o passado por meio das experiências corpóreas: “o repertório, por
outro lado, preserva a memória do corpo – performances, gestos, oratura,
movimentos, dança, canto...ou seja, todos os atos que normalmente são
concebidos como conhecimento efêmero, não-reproduzível (...). No repertório a
coisa nunca permanece a mesma (...)” (TAYLOR, 2002, p.16- 17).
Essa noção de repertório que estamos tratando para designar, não só a
lembrança do que era feito pelos antepassados, mas também, a forma de
estruturação da memória da cena por meio dos valores expressivos socialmente
partilhados que são reproduzidos no ritual realizado pelos congadeiros. Na
concepção de Taylor (2002), o repertório se distingue do arquivo e este se
baseia na escrita, na imagem e na sua capacidade de guarda da memória.
Entretanto, conforme sua reflexão, a relação entre as duas instâncias não é de
exclusão, pois, muitas vezes, temos acesso ao repertório por meio do arquivo
que carrega consigo os rastros do “corpo” ausente.
Para avançarmos nas relações do congado com o teatro não podemos
esquecer dos estudos de Evani Tavares Lima que, em sua tese de doutorado
sobre o teatro negro no Brasil, discriminou a sua prática aqui em três grandes
categorias:

A primeira delas sendo a categoria das performances negras, entre as


quais encontramos os folguedos populares (bumba meu boi, maracatu,
congada, congo, tambor de mina, samba rural, entre outros), e as
formas expressivas como a capoeira e o samba. Além das expressões
religiosas como a festa da Boa Morte e alguns aspectos da religião dos
orixás (partes do ritual, abertas à audiência em geral) (LIMA , 2010,
p.44).

O congado aparece entre os folguedos populares como uma das


manifestações do teatro negro, no Brasil, embaralhando, assim, as fronteiras
usuais que o distinguem das práticas festivas. Práticas que, na sua concepção,
podem ser descritas como para-teatrais, na medida em que acontecem sem a
necessidade de espectadores, incluindo, portanto, “todo um universo de
experiência e história negra no novo mundo (no caso, o Brasil), com
configurações, formas, conteúdos e personagens negros e brancos; todos esses
representativos da herança cultural negro-brasileira e mestiça, miscigenada ao
cotidiano vivido” (LIMA, 2010, p.44).
A autora complementa, observando que as produções dessa natureza
nem sempre caminham para uma reflexão crítica sobre o contexto social e a
problematização das questões negras na sociedade. Desse modo, nem todas as
manifestações que a autora entende por teatro negro estão vinculadas à
discussão dos problemas vivenciados pelo grupo, mesmo assim, a própria
constituição de sua existência, aqui, assinala o caráter de encruzilhada da
espetacularidade africana transplantada para as Américas. A marca
característica das atividades africanas centradas no eixo
“batucar-cantar-dançar”, traço constitutivo da performance na África negra. De
acordo com o filósofo do Congo Bunseki Fu-Kiaua, essa performance:
Batucar-cantar-dançar permite que o círculo social quebrado seja
religado (religare), de forma a fazer a energia fluir novamente entre os
vivos e mortos. Dessa forma, podemos entender que a clássica
separação entre religião e entretenimento também não se aplica no
caso das performances africanas, que são formas complementares.
Dentro do mesmo ritual” (Fu-Kiaua, apud LIGIÉRO, 2011, p.3.).

Ao observarmos o ritual congadeiro, vamos identificar a constante


relação entre dança, canto, música e teatro, o que faz com que o complexo
expressivo informado acima funcione em terras brasileiras. Não se trata de um
hibridismo cultural, mas sim da reelaboração da cultura africana negociada em
solos americanos. Tendo em mente a discussão inicial, acerca do fenômeno
cultural do congado e de sua qualidade de performance, podemos identificá-lo
como ritual-cênico-religioso que traz em seu cerne: as dramatizações,
reencenação mítica e uma construção identitária afro-brasileira, baseada nos
cruzamentos étnicos, sociais e culturais causados pela diáspora, tal como
Martins (1995) trata encruzilhada: “operadora de linguagens e de discursos, a
encruzilhada, como lugar de terceiro, é geratriz de produção, as noções de
sujeito híbrido, mestiço, liminar, articulado pela crítica pós-colonial, podem ser
pensadas como indicativas de efeitos de processos e cruzamentos discursivos
diversos, intertextuais e interculturais” (MARTINS, 1997, p.28). Assim, o
Congado em terras brasileiras é fruto dos cruzamentos étnicos que a própria
colonização propiciou, o que faz com que o folguedo se torne locus de valores
expressivos da vida social entre os participantes e funcione como território de
restauração da vida coletiva.

1.3 A gestualidade expressiva do esquema corporal no congado

O congado, assim como outras performances negras, é estruturado no


tripé “dançar, cantar e batucar”, conforme salientou Bunseki Fu-Kiaua (apud
LIGIERO, 2011). O Autor diz que a performance africana e a performance
afro-brasileira se comunicam por meio desse tripé que, por sua vez, define os
termos das coreografias e dos gestuais ritmados pelos toques dos instrumentos
que compõem a guarda no roteiro cênico do folguedo. Roteiro ordenado de
acordo com células narrativas como, por exemplo, o caminhar da santa pelas
águas, a luta do bem contra o mal, a chegada à igreja, entre outros momentos
(cenas) que atrelam o presente ao passado do acontecimento, convertendo os
corpos em veículos da memória. Esse momento é apontado por Alexandre
(2012), quem destaca a relevância do corpo do congadeiro enquanto veículo da
memória que é, ao mesmo tempo, ancestral e atual.
Aqui vale se apropriar, ainda, do conceito de performance de Schechner
(2003), quando define performance no âmbito social pela marca de ações que
ocorrem em comportamentos restaurados em diversas instâncias e tipos. A
exemplo disso, o mestre do Congado, em cena, não apenas se coloca como
membro representativo da sociedade nesta festividade congadeira, mas também
como uma persona que restaura a memória significativa do referido mestre.

A performance deve ser construída como um “amplo espectro” ou


“gama” de ações humanas que englobam: rituais, jogos, esportes,
manifestações populares, entretenimentos às artes do espetáculo
(teatro, dança, música), e performances da vida quotidiana para a
promulgação de papeis sociais, profissionais, sexuais, raciais e de
classes, bem como sobre a cura (do xamanismo à cirurgia), os meios
de comunicação e a internet. (ALEXANDRE, 2012, p.104 -114).

Na performance congadeira, o corpo é fonte de resistência e de


propagação da cultura que reitera um “comportamento”, em que a gestualidade
expressiva do esquema corporal encarrega-se no congado de restabelecer e
presentificar narrativas. Tratam-se de: “Performances - de arte, de ritual ou da
vida diária - são feitas de ‘comportamentos duplamente realizados’ ”.
(SCHECHENER, 2003, p. 22).
Em relação à performance como comportamento restaurado, Schechner
(2003) aponta “que as performances são feitas de pedaços de comportamento
restaurado, cada performance é diferente das demais”. Diferença que se formula
pelos modos de recombinar os pedaços em variações infinitas; portanto, em sua
reflexão, nenhum evento pode copiar exatamente o outro, não há original nem
cópia, uma vez que a obra de arte performática está em devir mesmo “quando
filmada ou digitalizada, permaneça a mesma a cada exibição, o contexto de
cada recepção diferencia as várias instâncias. Embora a coisa permaneça a
mesma, os eventos de que esta coisa participa são diferentes entre si”.
(SCHECHNER, 2003, p. 28).
Importante frisar que, embora a o ato possa permanecer o mesmo, os
eventos diferenciam sua instauração, em nosso caso, a passagem do congado
como rito ou folguedo para o terreno do espetáculo teatral também tende a essa
diferenciação. O comportamento restaurado dos congadeiros consiste na
plenitude performática, que é um ato involuntário conforme os estudos de
Richard Schechner (apud GLUSBERG, 2011), ao afirmar que “o processo ritual
é a performance”. No Congado, o corpo e o gesto são canais de comunicação
da fé e restauração do rito africano, transplantado em América. Pavis em seu
dicionário de teatro sobre gestualidade assinala que: “[...] A gestualidade se
opõe, por outro lado, ao gesto individualizado: ela constitui um sistema mais ou
menos coerente de maneiras de ser corporais, ao passo que o gesto se refere a
uma ação corporal singular” (PAVIS, 2003, p.186).
A gestualidade, enquanto um “sistema mais ou menos coerente de
maneiras de ser corporais”, pode ser delimitada em função dos valores
expressivos da vida em movimento cunhados pelas procissões e pelos desfiles
presentes no modo de vida dos reis festeiros. A festa, enquanto acontecimento
ritual, tinha um papel central na organização da vida político-social, embaixadas,
danças guerreiras como, por exemplo, a da Rainha de Angola, defensora da
autonomia de seu reinado contra os portugueses. Ela, ao colocar o corpo
coletivo do reino em movimento, incorpora e interpreta os signos do bailado
negro, promovendo a dança e seus significados e “os signos produzidos por
esses corpos, no caso específico da dança de Congado, surgem a partir de
comandos corporais expedidos pelo capitão.” (RODRIGUES, 1997, p.27).
Vale observar que Rodrigues salienta que o referido corpo se encontra à
margem da sociedade brasileira, mesmo assim, assume a tarefa de ser
transmissor de uma tradição que se funda na sacralidade de sua manifestação:
“este corpo capta o sagrado que se faz presente em meio às contingências do
profano. A sua manifestação, fruto de interações, aprofunda o significado do que
seja a dança”. (RODRIGUES, 1997, p.27). Do mesmo modo, os cantos poemas
e a gestualidade congadeira são repletos de signos cênicos, como podemos
perceber na imagem abaixo:
Figura 1 – Participante do Congado de Uberlândia em
apresentação.
Fonte: Henrique Costa Pereira/ Arquivo pessoal. Disponível em:
<https://g1.globo.com/minas-
gerais/triangulo-mineiro/noticia/2012/10/festa-do-congado-completa-13
6-anos-de-realizacao- em-uberlandia-mg.html> Acesso em: 02 set
2022.

Na figura 1 vemos um congadeiro de Uberlândia/MG se apresentando


em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Observamos que as
pernas flexionadas são devidas à articulação chamada pelas guardas de congo
como dobraduras que colaboram para os saltos e rodopios das coreografias no
cortejo e, ainda, na imagem vemos o movimento de tronco sendo o responsável
por colocar todo o restante do corpo em movimento, seguindo os passos
marcados pelos pés. Tal como descreveu Genilson Antônio Ferreira e Adilson
Roberto Siqueira:

Ao chegar à sede do Congado, o capitão se ajoelha diante da porta,


seus joelhos ficam flexionados, a cabeça vai ao encontro do tórax, os
olhos permanecem fechados, o braço esquerdo fica em sentido
horizontal com as mãos sobre a coxa esquerda, o braço direito
permanece estendido para cima formando um ângulo de 90° graus,
nas mãos um apito que é levado à boca. Um som fino reverbera no ar,
um silêncio ecoa no espaço, todos os membros da guarda ficam em
silêncio. Após esse momento, o capitão começa a se levantar. De pé,
começa a realizar um pequeno movimento no quadril da direita para
esquerda que vai reverberando para a coluna vertebral. Os pés vão da
direita para esquerda com um leve movimento circular. Um canto é
entoado pelo capital com uma voz bem aguda pedindo proteção e
abertura da porta da sede. Diante do altar de Nossa Senhora do
Rosário, entoa um cântico. (FERREIRA; SIQUEIRA, 2022 p. 62)

Figura 2 – O Cortejo do Terno de Catopês de Nossa Senhora do


Rosário e São Benedito na festa de São Benedito em 2016.
Fonte: Coleta em pesquisa de campo por Jarbas Siqueira Ramos.
Disponível
em:<https://www.scielo.br/j/rbep/a/xYVBX7th5ML5yXQTVVJ9n8N/#>
Acesso em 02 set 2022.

A figura 2 abarca a chegança do grupo ao local da apresentação


combinando a visualidade do cortejo com a espacialidade de sua realização e,
sendo assim, transfigurando o espaço físico em espaço cultural-metafísico,
conforme os termos do congado e obedecendo à distinção do mundo das
imagens estabelecida por Santaella:

O mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro é o


domínio das imagens como representações visuais: desenhos,
pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas,
televisivas, holo e infográficas pertencem a esse domínio. Imagens,
nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso
meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das imagens na
nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões,
fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como
representações mentais (SANTAELLA; NOTH, 2010, p.15).

Figura 03- Congadeiros ajoelhados na porta da igreja louvando a


passagem da Santa do Rosário.
Fonte: Divulgação/ Prefeitura de Uberlândia. Disponível em:
<https://blog.tudogostoso.com.br/estilo-de-vida/festas-da-congada-des
cubra-tudo-
sobre-os-ritmos-do-congado-que-contam-a-historia-de-um-povo/>
Acesso em 09 mar de 2023.

Os dois domínios das imagens apontam para uma primeira dimensão


que podemos definir como representacional, ao abarcar apenas a forma da
figura, e, por sua vez, à segunda dimensão, quando sugere a encarnação do
sagrado e a de comunicação entre as esferas do corpo e do espírito. A figura 03
compreende a gestualidade de louvação a Nossa Senhora do Rosário, ao sair
das águas, ou seja, representa o milagre da santa de andar pelas águas.
Conforme a narrativa dramatúrgica, ao executar esse gesto de ajoelhar e adorar
e/ou louvar a santa, podemos perceber nesta gestualidade que a dimensão do
ritual ganha outro status que é o da personificação do sagrado em ação e
acontecimento. Faz-se, pois, a ligação do mundo corporal com o mundo
espiritual, e a performance encarna a dimensão ancestral que Leda Maria
Martins considera em seus estudos:

Para os congadeiros, essa linhagem da palavra vernacular dos antigos


sábios das nações do congado, reis, rainhas, capitães, permanece
como signos de referência nos atos rituais, evocados como instância
da sabedoria que fecunda a comunidade e que ressoa nos cantares
que os presentificam. A veneração dos ancestrais funda a visão de
mundo banto e se constitui num dos elementos fundamentais de
inserção de códigos culturais africanos no tecido da cosmovisão cristã,
reformatando-a africanamente. (MARTINS, 2021. p. 186).

O movimento corporal ou o gesto operam os deslocamentos entre o


passado e sua presença no agora do folguedo, fazendo com que, assim, o corpo
do congadeiro tenha grafado a encruzilhada do tempo em seu movimento. O
congado torna-se, portanto, uma performance do tempo, aqui e agora, ancorada
na ancestralidade e ressignificada na gestualidade que ao ser repetida nos
conta sobre côrtes africanas em américa. Nossa Senhora, ao ser resgatada
pelos escravizados, devolve à sua comunidade o poder das águas, tomado,
traumaticamente, pelas mãos “conquistadoras” dos europeus.

1.4 A Folia de Reis

A Folia de Reis ou Reisado procura contar a jornada dos reis Magos até
o encontro com o Deus-menino na lapinha. Fazendo parte, pois, do ciclo
natalino, o cortejo de foliões desfilam, cantando no campo ou pelas ruas das
cidades:

Todos os anos, no período de festejos natalinos, homens, mulheres,


jovens e idosos de diversas regiões do território brasileiro se engajam
em peregrinações religiosas que se caracterizam por visitas rituais às
casas de devotos. Durante este tempo, estes foliões de reis estreitam
de forma notável seus laços sociais, bem como suas relações
cosmológicas com os antepassados e certas divindades. Ao visitarem
as casas de vizinhos, parentes e amigos, as folias de reis procuram
performar a viagem mítica à cidade de Belém, que os Reis Magos –
Gaspar, Melquior e Baltasar – teriam feito para adorar e presentear o
Menino Jesus com ouro, incenso e mirra, segundo a tradição cristã,
recriada no imaginário popular (SOUZA, 2002. p.1).

Conforme Souza, podemos observar que o cortejo tem como eixo


central da narrativa o nascimento de Cristo e a peregrinação dos reis magos em
busca do paradeiro do menino Deus, mas, a performance da folia de reis,
abarca também as duas dimensões que Martins (1997) identifica na
performance do Congado: a dimensão da ancestralidade e da memória, o que
faz com que estas e outras performances se tornam afro-brasileiras em território
americano.
Os ritos de ascendência africana, sejam eles religiosos ou seculares,
foram capazes de confirmar no território brasileiro uma cosmovisão particular
fundamentada na relação de ancestralidade entre os sujeitos e suas divindades
(RAMOS, 2017. p.10). No que tange ao lugar da temporalidade, na folia de reis,
este festejo circunscreve no corpo, por meio da dança do bastião (palhaço), nas
batidas ritmadas do cortejo e nos cantos entoados; e, ao longo da peregrinação,
a memória de uma comunidade se ancora na devoção a Reis. Dessa maneira,
sua ancestralidade se afirma na tríade que Ligeiro nos aponta como sendo a
estrutura base para as manifestações afrodiaspóricas em Américas: cantar,
dançar e batucar. A festividade da folia de reis, portanto, baseia sua narrativa no
gesto, no canto e na palavra poética, fazendo com que esta mesma suscite a
temporalidade no acontecimento da performance. A folia de reis é realizada
pelos fieis de santos reis que, por promessas ou esperança de bons fluidos,
mantém a tradição e reatualizam o acontecimento. Em suma, a folia só existe,
porque os fieis existem, pois, o acontecimento se funda na restauração do
comportamento daquele grupo de fieis e foliões. Segundo a literatura
especializada, a tradição da Folia teria chegado ao Brasil por intermédio dos
portugueses, no período da colonização, “uma vez que, essa manifestação
cultural era realizada por toda a Península Ibérica sendo comum a doação e
recebimento de presentes a partir da entoação de cantos e danças nas
residências” (PERGO, 2011, p.1). Tendo em mente o fato de que teria surgido,
no Brasil, no século XVI, próximo ao ano de 1534, por meio dos Jesuítas, como
crença divina para catequizar os índios e posteriormente os negros escravos; a
manifestação acabou sendo “composta pelas manifestações culturais de
diversas etnias e povos, com variações regionais, seja quanto ao estilo, ao ritmo
e ao som; entretanto, mantendo a mesma crença e devoção ao Menino Jesus, a
São José, à Virgem Maria e aos Reis Magos” (PERGO, 2011. p.2)
Desse modo, a folia, enquanto encruzilhada de distintas culturas e
tradições religiosas, contribui para compreender a tradução negra da folia de
reis que se estrutura, aqui, por meio da devoção aos santos reis, comemorados
no calendário litúrgico católico, no dia seis de janeiro. Porém, o cortejo da folia
de reis começa no dia 24 de dezembro. Durante esses dias, foliões e palhaços
restauram o cortejo dos três reis magos que peregrinaram até encontrar Jesus
e, assim, reatualizam a tradição no tempo presente da performance. A narrativa
do cortejo constitui-se dos personagens que auxiliam na narrativa desta
peregrinação, a qual é formada pelo mestre, os três reis, os palhaços, o festeiro,
o coro e o alferes da bandeira, cada qual tendo uma função. O festeiro, pessoa
que promove a folia; os três reis magos, Baltasar, Belchior e Gaspar; os
palhaços, animadores da festa a fazerem piruetas, danças, brincadeiras; o
mestre ou embaixador, quem se propõe a organizar a folia; o coro, composto
por seis pessoas que tocam instrumentos e cantam músicas, relacionadas à
religião católica; o alferes da bandeira, o porta-bandeira da folia.
Podemos observar, pelo conjunto dos papeis distribuídos aos fieis,
conforme as funções que desempenham no cortejo, que se trata de uma nova
contextualização da peregrinação dos três reis magos que, ao se deslocar, fora
investida de novos valores associados às respectivas figuras encarnadas e ao
seu trajeto singular pelas danças, brincadeiras, cantos, músicas e performances
diaspóricas.

1.5 A gestualidade do esquema corporal na Folia de Reis

A folia de reis, assim como o congado, pauta sua performance no tripé


das manifestações negras africanas: “dançar, cantar e batucar”, conforme já
salientado. A narrativa se estrutura na articulação do gesto, do canto e da
palavra poética, e essa estruturação é comum ao congado já que ambas as
manifestações apresentam traços similares: o cortejo, a devoção católica, a
musicalidade, a ancestralidade sendo ativada, e a memória sendo atualizada a
cada momento do acontecimento. O cortejo é disposto na seguinte ordem: o
guardião da bandeira vem a frente do grupo, os bastiões ou palhaços ficam
incumbidos da performance cênica da folia de reis e os músicos da folia.
O cortejo é formado de diversos elementos cênicos como, por exemplo,
as máscaras dos palhaços, os figurinos dos músicos, a bandeira da folia, a
dança, a palavra poética, a música, entre outros, que auxiliam na sua
movimentação . Diante desse cenário, ao analisarmos a performance da folia de
reis, veremos o engendramento de múltiplos signos visuais, sonoros, plásticos e
motores articulados em prol da narrativa a ser contada; porém, interessa-nos,
neste recorte, a gestualidade que guarda o manejo dos diferentes signos pelos
participantes foliões; ela que nos possibilita estabelecer pontes entre as duas
motrizes que julgo entrelaçadas pelo espetáculo “A Rua da Amargura”.
Ressalta-se, ainda, que a noção de motrizes que interpretamos está apropriada
do conceito levantado por Ligiéro (2011), uma vez que orienta no entendimento
das aproximações das manifestações africanas em terrenos americanos.
A folia de reis, como dito, é um cortejo natalino que, durante o período
de 24 de dezembro até 06 de janeiro, percorre as ruas das cidades e dos
campos que se tornam palco principal de uma performance movida pela fé na
ritualização do elo entre a memória, a ancestralidade e a cena:

Ao longo desses deslocamentos rituais, os foliões atravessam


espaços, territórios, frequentemente hierarquizados e enfrentam uma
sucessão de dificuldades em sua mobilidade. Por outro lado, esses
deslocamentos revelam uma verdadeira cartografia social, por meio da
qual pode-se perceber como se constituem e fortalecem relações de
parentesco, amizade e vizinhança. Através de seus percursos por
regiões “liminares”, os foliões de reis dão curso a uma importante
missão sagrada: levar bênçãos aos devotos, permitir que cumpram
suas promessas e dar continuidade a uma tradição religiosa. (SOUZA,
2002. p.20)

As regiões por onde passa o cortejo se tornam uma espécie de local


intersticial, pois são santificadas pelo cortejo como podemos observar na
imagem abaixo.

Figura 04 – Cortejo da folia de Reis de Guaranésia/MG.


Fonte: Luís Leite. Disponível
em:<https://www.conhecaminas.com/2019/11/a-historia-e-origem-
da-folia-de-reis.html> Acesso em 09 mar de 2023.

A figura 04 mostra a chegada do cortejo da folia de reis em território de


performance. Território este que, no momento da chegada dos foliões, torna-se
lugar de recepção da performance e do festejo. Podemos observar, ainda, que é
o movimento do cortejo que define o espaço a ser ocupado, assim como
acontece com as demais manifestações afrodiaspóricas em seus primeiros
movimentos de chegada. Além disso, podemos constatar elementos repletos de
teatralidade que contribuem para a movimentação do corpo coletivo na rua,
destacada pela iconicidade do corpo e do gesto. Assim, vemos a rua sendo
ocupada pelo festejo e se transformando em coparticipante do acontecimento.
Grande parte da gestualidade ritual-cênica, presente na folia de reis, tem
como responsável o palhaço, figura mascarada e fardada com roupas coloridas
que, na maioria das tradições de folia de reis, representam os soldados que
seguirão os reis magos, a fim de descobrir o paradeiro do menino Deus. Esses
palhaços são os responsáveis pela palavra poética no âmbito da performance
que, por meio das rimas e da dança, encenam cada acolhida da bandeira por
um morador visitado. Portanto, abrir a porta para a bandeira representa a
hospitalidade aos visitantes.

Figura 05 – Palhaços ou bastiões em performance.


Fonte: Divulgação. Disponível em:
<https://braganca.sp.gov.br/projeto-gira-da-folia-de-reis-do-
nhozinho-e-contemplado-no-tradicao-sp-2022> Acesso em: 09 mar de
2023.

Os palhaços, também chamados de “bastião”, dentro da Folia de Reis,


representam os soldados de Herodes que, na narrativa, seguem os reis magos
para descobrirem o paradeiro do menino Deus. Vemos surgir o antagonista da
peregrinação que, segundo conta a narrativa, segue às ordens de Herodes,
inconformado com o nascimento do messias, desejando, pois, sua morte.
Porém, conta a história que um dos soldados, ao chegar no paradeiro do
menino, prostrou-se, adorou o menino Deus e começou a dançar para o mesmo,
em seguida, passou a se disfarçar para que não fosse reconhecido como sendo
aquele que não matou o menino e traiu o rei Herodes.
A comemoração ganha a forma da chula, transferindo o cortejo ao
contexto novo da performance. A chula se compõe de dois elementos
primordiais: a dança e os versos. Como podemos observar na imagem, os
passos da dança indicam sua ligação com a terra, elemento fulcral nas danças
de matrizes africanas. Para além disso, essa mesma gestualidade aproxima os
mascarados do reino de Oku (camarões) e não só pela sua partitura
coreográfica, mas também pela indumentária e máscaras. Entretanto, o aspecto
mais marcante da dança dos palhaços está na capacidade de mesclar
elementos distintos que vão do sapateado a acrobacias da capoeira o que
levanta o problema da função mnemônica dos seus valores expressivos.
A gestualidade na folia suscita de forma bem explícita as motrizes
negras geradoras da dança, assim como os cruzamentos étnico-culturais que
acontecem em diáspora. Vale salientar que, assim como no congado, temos a
presença do sagrado incorporado, mas, no caso da festividade da folia, está
presente na narrativa de forma bem acentuada: na figura do menino Deus que é
o eixo central da festa, assim como na figura dos reis magos relembrados no
cortejo. Essa dimensão sinaliza para a sacralização dos participantes da festa
que lhes permite agenciar ritualmente a memória dos magos tidos como santos
pelo catolicismo.

Figura 06 – Palhaços em frente à imagem do menino Deus.


Fonte: Divulgação. Disponível em:
https://santaterezatem.com.br/2013/12/22/santa-
tereza-prepara-a-folia-de-reis/ Acesso em 09 mar de 2023.
A imagem acima registra o momento em que os foliões encontram o
menino Deus, os palhaços se curvam diante da imagem do menino, enquanto os
demais foliões cantam louvores e declamam poesias. A louvação é algo muito
constante nas manifestações que de certa maneira carregam consigo o sagrado
como motivação de festejo. Quando o palhaço mascarado se curva diante da
imagem, personifica a atitude dos soldados de Herodes que se prostram diante
do sagrado. Nessa direção, é importante observar a forte presença da
gestualidade e do corpo nas manifestações afrodiaspóricas, conforme comentou
Leda Maria Martins:

Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as africanas e


as indígenas, por exemplo, o corpo é por excelência, o lugar da
memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como
tal, esse corpo/corpus não apenas repete um hábito, mas também
institui, interpreta e revisa o ato reencenado. Daí a importância de
ressaltarmos nessas tradições performáticas sua natureza meta-
constituitiva, nas quais o fazer não o ato de reflexão; o conteúdo
imbrica-se na forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra,
transmite e modifica dinamicamente. O corpo nessas tradições, não é,
portanto, apenas a extensão ilustrativa do conhecimento
dramaticamente representado e simbolicamente reapresentado por
convenções e paradigmas seculares. Ele é, sim, local de um saber em
contínuo movimento de recriação, remissão e transformações perenes
do corpus cultural. (MARTINS, 2002, p. 88 e 89)

O gesto é uma forma de grafia que registra e transmite o saber-fazer por


meios dos valores expressivos incorporados que, desse modo, em cada
performance são atualizados, revistos, citados, comentados, reiterados e
revividos, atualizando narrativas e transmitindo tradicionais culturas. E é por
entender o lugar do corpo como veículo primordial de memória das tradições
negras, que busco por meio da gestualidade entender o agenciamento destas
performances na organização espetacular, a fim de buscar indícios de sua
presença na cena teatral mineira.
Neste capítulo, busquei evidenciar os valores expressivos da
gestualidade diaspórica que, como sistema de signos verbais e não verbais,
estruturam as formas cênico-dramatúrgicas das manifestações do congado e da
folia de reis. Elementos tomados como chaves de leitura para que se possa
cruzar seus dados com o espetáculo teatral, observando, no percurso de
análise, os processos de trânsito dos signos de negrura em A Rua da Amargura.
Trata-se de descortinar como os cortejos expressam, através do movimento,
outros sistemas de organização da prática espetacular. Aqui, quero entender
como as manifestações espetaculares negras são agenciadas e dialogam com a
cena teatral.
Capítulo 2- A negrura e A Rua da Amargura

Neste capítulo, procuro descrever e analisar o espetáculo A Rua da


Amargura, objetivando, identificar as matrizes culturais presentes nas cenas.
Num segundo momento, no âmbito do teatro mineiro, pretendo circunscrever os
elos que unem, e os contextos que separam as diferentes funções dos valores
expressivos da vida em movimento em seu constante deslocamento entre ritual
e teatro de rua, folguedo e sua elaboração cênico-dramatúrgica.

2.1 O grupo e a montagem

O grupo Galpão foi fundado pelos atores e atrizes Eduardo Moreira,


Teuda Bara, Antônio Edson e Wanda Fernandes, no ano de 1982, em Belo
Horizonte, após uma oficina que aconteceu no Festival de Inverno da UFMG, em
Diamantina. A trupe se encontrou nas oficinas de teatro dos alemães Kurt
Bildstein e George Froscher, do Teatro Livre de Munique, que trabalhavam com
o teatro de rua. A oficina resultou em A Alma Boa de Setsuan 1982, de Bertolt
Brecht. Após essa montagem, o grupo resolveu iniciar seus trabalhos e
montaram várias peças: E a Noiva Não Quer Casar 1982; De Olhos Fechados
1983; Ó Procê Vê na Ponta do Pé 1984; Arlequim, Servidor de Tantos Amores
1985; A Comédia da Esposa Muda 1986; Triunfo de um Delírio Barroco 1986;
Foi por Amor 1987; Corra Enquanto é Tempo 1988; Álbum de Família 1990;
entre outras. Cacá Brandão salienta que: “dos alemães, os fundadores do
Galpão herdaram as influências do dramaturgo Bertolt Brecht, que tem sua obra
reconhecida como politizada e contestadora. Além disso, o Grupo também
herdou de seus mentores a tradição do teatro de rua, o trabalho circense e a
sacralidade do teatro, como atividade digna de entrega e seriedade”.
(BRANDÃO, 2002, p.27)
Ao combinar a tradição do teatro de rua, o trabalho circense e a
sacralidade do teatro, o coletivo, logo, aproxima-se das culturas populares,
enquanto fontes criativas da linguagem de seus espetáculos. O reconhecimento
do Galpão veio em 1992, quando o grupo encenou Romeu e Julieta, de William
Shakespeare, com uma montagem típica de teatro de rua com a direção de
Gabriel Villela. Receberam os prêmios do júri popular do Festival Nacional de
Teatro de Curitiba e Shell especial, em 1993, assim, o grupo com Romeu e
Julieta fez várias temporadas nacionais e internacionais. Em 2000, torna-se o
primeiro grupo brasileiro a se apresentar no Globe Theatre de Londres,
reconhecido local, onde se encenam apenas peças de Shakespeare, com sua
versão mineira de "Romeu e Julieta".
Wanda Fernandes, uma das fundadoras do Grupo Galpão, mineira de
Brumadinho, faleceu em 1994, em decorrência de um inesperado e trágico
acidente de carro que sofreu, retornando de Ouro Preto, após receber a
Medalha da Inconfidência Mineira daquele ano. Esse acontecimento marcou a
trajetória do coletivo e se tornou importante para a próxima montagem. Em
1994, após o acidente que ocasionou a morte de Wanda Fernandes (Wandinha),
o grupo se desarticula, uma vez que ainda colhiam os frutos da montagem de
sucesso Romeu e Julieta, cuja produção fora protagonizada por Wanda, uma
força motriz criativa no grupo, conforme relata Brandão (2002, p.122). Nessa
ocasião o grupo se preparava para a próxima montagem, mas, sem rumo certo,
o diretor Gabriel Villela resolveu paralisar as atividades, mantendo apenas a
pesquisa de materiais a serem utilizados na próxima montagem: “a nova
montagem, ameaçada por claudicante processo de ensaios, é interrompida e
adiada pelo diretor, o qual solicita apenas uma pesquisa sobre materiais a serem
utilizados na cenografia no futuro espetáculo, como palhas, buchas e sementes”
(BRANDÃO, 2002, p.122).
Podemos perceber que a pesquisa, ponto de partida adotado pelo
diretor, voltou-se para materiais com forte relação com as culturas originárias e
as de matriz africana. Entretanto, a relação originária dos materiais era
redefinida na direção do imaginário nacional, caminho perseguido por muitos
grupos nacionais no período da redemocratização do país na década de 70 e
80. Conforme salientou a crítica: “O grupo Galpão - uma companhia de teatro de
palco e rua, com sede em Belo Horizonte - tornou-se um agente notável no
processo de formação de um senso sincrético de brasilidade, seguindo a linha
contemporânea da retomada de posições, a da inter-e intratextualidade para a
recriação dramática” (ALVES, 2006 p.19). A contribuição de Alves coloca-nos a
par de caminhos estéticos e artísticos em busca do imaginário nacional que o
grupo perseguia na sua génese, assim, como outros oriundos do mesmo
período histórico. Desponta-se, pois, a verticalização do processo criativo,
fazendo com que os materiais escolhidos, como ponto de partida, mesmo que
tivessem ascendência originárias e negras, fossem lidos sob a ótica do nacional.
Após a trágica morte de Wanda, o ator Eduardo Moreira, marido de
Wanda, passou um mês na Espanha tentando se refazer para retomar os
trabalhos com o grupo. Nessa oportunidade, o grupo já havia decidido não
apresentar mais Romeu e Julieta, uma vez que eram os dois que interpretavam
o casal shakespeariano. Após esse mês, Eduardo retornou, ao Brasil, e se
deparou com um grupo em cacos; todavia, existia o desafio de colocar a
próxima montagem de pé, em apenas dois meses, por ser o primeiro espetáculo
patrocinado pelo Banco do Brasil por intermédio da Lei de Incentivo à Cultura.
Havia prazos estipulados pelo projeto, e os trabalhos não podiam parar. Essa
experiência foi inédita para o grupo que desenvolvia suas criações cênicas em
processos colaborativos, com atores ativos na construção das cenas, assim
como nas escolhas estéticas dos espetáculos; sobretudo por conta da “falta de
tempo e da desarticulação geral em que encontramos por causa da perda de
Wanda” (MOREIRA, 2003, p 15).

Assim, o processo de criação acabou sendo verticalizado, centrado na


condução dada pela direção do espetáculo, o que gerou tensões relacionais,
além de um espetáculo forjado esteticamente, em sua maior parte, pelas
pesquisas realizadas pelo diretor Gabriel Villela. O grupo tinha como ideia inicial
fazer uma adaptação do teatro religioso de Anchieta, entretanto, acabou
encontrando o que buscava, no texto de Eduardo Garrido, intitulado “O mártir do
calvário”2. Vale observar que a estrutura cênico-dramatúrgica, em ambos os
casos, é a do cortejo em movimento, desenhando um conjunto de estações que
combinam dança, canto, diálogo e performance, tanto no caso dos autos de
Anchieta quanto na herança festiva do corpus christi que incide na escolha do
texto de Garrido Com a situação trágica e com o afastamento de seu
dramaturgo Cacá Brandão, que ficará dois anos na Itália, desenvolvendo sua
tese de doutorado. O grupo decide montar uma adaptação do texto de Eduardo
Garrido, feita por Arildo Barros3, além de apostarem na condução criativa de
Gabriel Vilela4. Nas palavras de Eduardo Moreira: “a consequência natural de
todo esse contexto que vivemos é que provavelmente teremos um processo de
criação mais vertical, conduzido pela mão forte de Vilela” (MOREIRA, 2003,
p.16).
2
- O texto “O Mártir do Calvário”, do dramaturgo português Eduardo Garrido, escrito em 1902, foi
representado à exaustão por todas as companhias de circo-teatro que perambulavam pelo Brasil
nas cinco primeiras décadas do século XX (Zecarlos de Andrade, 2010, p.335).
3
- Arildo Barros é ator do Grupo Galpão, desde 1994, quando atuou em “A Rua da Amargura”.
Natural de Paraisópolis, interior de Minas, Arildo formou-se na Faculdade de Direito da UFMG,
em 1966, mas é ao teatro que tem se dedicado desde então, tendo participado de incontáveis
produções. Cultura. Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Disponível:
<https://filarmonica.art.br/concertos/concertos-comentados/ser-ou-nao-ser>. Acesso em: 02 set
2022.

4
- Antônio Gabriel Santana Villela (Carmo do Rio Claro, 1958) é um diretor de teatro, cenógrafo e
figurinista brasileiro. Dirigiu mais de 40 espetáculos entre adultos e infantis. Formou-se no curso
de formação de diretores da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA-USP). Enciclopédia Itaú Cultural. [s.n], 2021.
Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa359371/gabriel-villela. Acesso em: 02
de set. 2022.
E assim foi feito, Gabriel Vilela recebeu a missão de erguer “A Rua da
Amargura - 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus”, nome escolhido para a
montagem e que, em parte, iluminava o processo de soerguimento do grupo.
Tendo em vista as circunstâncias do luto, “A Rua da Amargura” gira em torno da
vida, da morte e da ressurreição de Cristo e, então, surge como uma
apropriação dessa trajetória, símbolo do sofrimento, da morte e do renascimento
do grupo:

O vocábulo amargura pode significar sabor amargo, azedume,


sofrimento, aflição, angústia. Na obra, a "Rua da Amargura" se
converte em algo muito mais forte que o sofrimento e a dor moral de
Jesus rumo ao seu martírio. De uma certa forma, esse nome funciona
como um antecipador na mente daqueles que vão assistir ao
espetáculo. O espectador se sente muito próximo dos fatos históricos
que estão sendo encenados, sendo capaz de associar a amargura de
Jesus com a de milhares de pessoas do nosso meio social
(ALEXANDRE, 1998, p.106).

Os acontecimentos reais impulsionaram tornar exemplar o martírio,


transformando-o em um fato grupal e coletivo. O encenador combinou diferentes
procedimentos de criação emprestados da cultura popular, do universo barroco
da cultura mineira e do melodrama do circo-teatro. Não era novidade a
aproximação do grupo deste entrelaçamento entre a cultura popular e uma
imersão no universo interpretativo do melodrama teatral. Além de se basear,
segundo declarou, na Folia de Reis5 - manifestação espetacular negra6 - de sua
cidade natal, Carmo do Rio Claro para a montagem (BRANDÃO, 2002, p.112).
Com essas escolhas, a montagem proposta, que partiria do auto religioso
de Anchieta, assumiu contornos populares em função da adaptação do texto de
Eduardo Garrido realizado por Arildo Barros. Era preciso “coragem” uma vez
que oito semanas separavam o grupo da estreia, assim, ao longo desse curto
período, o grupo procurou mesclar catolicismo, mineiridade, elementos
circenses, teatro de rua e a musicalidade na cena. É sobre este elemento que
me debruço neste momento. Tais elementos, os signos verbais e não verbais,
empregados na construção do espetáculo, servem à movimentação do corpo na
rua em cortejo, impulsionam e ritmam seu percurso, formando uma textura
dinâmica cênico-dramatúrgica, da qual se destaca a função mnemônica dos
5
- A Folia de Reis, também chamada de Reisado ou Festa de Santos Reis, é uma festa popular
e tradicional brasileira. O Reisado possui um caráter cultural e religioso, e ocorre no período de
24 de dezembro a 6 de janeiro. A Folia de Reis. Daniela Diana. s.d Disponível:
<https://www.todamateria.com.br/folia-de-reis/> Acesso em: 02.set.2022.
6
- Na primeira categoria, performance negra, incluiremos os folguedos populares (bumba meu
boi, maracatu, congada, congo, tambor de mina, samba rural, entre outros), formas expressivas
como a capoeira e o samba; expressões religiosas como a festa da Boa Morte e alguns aspectos
da religião dos orixás (partes do ritual, abertas à audiência em geral) (LIMA, 2010, p.2).
valores expressivos incorporada pela gestualidade na encruzilhada entre
diferentes formas artísticas e matrizes socioculturais da vida em movimento.
A montagem traz em sua trilha sonora composições folclóricas, litúrgicas e
cantos gregorianos. A musicalidade oriunda da cidade natal do encenador serve
como alavanca para a adaptação do texto de Garrido, especialmente, de seu
prólogo que aborda a natividade. Na encenação, o prólogo é em verso cantado
por um grupo de foliões (nome dado, aos participantes da folia de reis), em
procissão festiva, quando adentram no primeiro momento do espetáculo em
espaço aberto proposto por Vilela.
Os atores e atrizes cantam “Hallelujah”7, e os versos do prólogo são
ditos ao som das canções populares “Romã, romã”8, “Na chegada desta praça”9.
Após o “nascimento” do protagonista Jesus, novamente entoam uma música
clássica “Os sinos de Belém”10 e, assim, o prólogo se desenvolve como uma
brincadeira que mescla o erudito e o popular. Os doze celebrantes apresentam
por meio do canto “à moda dos indígenas nas festas jesuítas”, com violão e
percussão, se convertendo num coro "à moda das doze pastorinhas”, conforme
sintetizou Nelson de Sá:

A Rua da Amargura abre com o que é, mais propriamente, a festa.


Doze celebradores mostram os primeiros momentos da vida de Jesus
Cristo, menos como atores, mais como cantores, como instrumentistas
populares, à moda dos indígenas nas festas jesuítas, com violão,
percussão; mais como coro, à moda das doze "pastorinhas" de "Auto
da Paixão". Tocam músicas populares, algumas delas religiosas, outras
até comerciais, as mais recentes (Folha de São Paulo, 1994 , s.p)

O prólogo antecede à ação propriamente dita e serve como um chamado à


audiência em coro à moda dos indígenas nas peças de Anchieta e, também, nas
distintas formas de folguedo e festas gestadas na América Portuguesa. Ambas as
canções da abertura são apropriadas ao tom de epifania que o encenador propõe

7
- Hallelujah é uma música do cantor e compositor canadense Leonard Cohen. Foi gravada
originalmente para o álbum Various Positions (1984). Cultura Genial .[s.n],Carolina Marcello,
s.d.Disponível: <https://www.culturagenial.com/musica-hallelujah-leonard-
cohen/#:~:text=Hallelujah%20%C3% A9%20uma%20m%C3%BAsica%20 composta,em%20
diversos%20 filmes%20 e%20 comerciais. Acesso em 02 set 2022.
8
- ROMÃ, ROMÃ – Antônio José Madureira - Ronaldo C. de Brito e F. Assis de Souza Lima.
Grupo Galpão - 1993. Criatura de sebo, 2020. Disponível em:
http://criaturadesebo.blogspot.com/2012/10/grupo-galpao-1993-trilha-sonora-dos.html>. Acesso
em: 02 set 2022.
9
- Na chegada desta praça - Folclore da região de Carmo do Rio Claro Grupo Galpão - 1993.
Criatura de sebo, 2020. Disponível< http://criaturadesebo.blogspot.com/2012/10/grupo-
galpao-1993-trilha-sonora-dos.html>. Acesso em: 02 set 2022.
10
- A canção Jingle Bells talvez seja a mais conhecida entre as músicas natalinas. Ela foi
composta por Pierre Pierpont, em 1850, em Boston. Conheça a história de algumas canções de
natal. Revista Seleções.[s.n], 2018. Disponivel <https://www.selecoes.com.br/inspiracao/3-
cancoes-de-natal-que-voce-provavelmente-ja-canto u/>. Acesso em 02 set 2022.
a essa abertura. Após o prólogo, o público é convidado ao segundo momento da
encenação dentro do teatro. Com essa entrada, o grupo afirma sua expertise em
trazer o erudito ao campo do que é regional, conforme observou Alves:
A escolha das canções seguiu as seguintes etapas: primeiramente, a
busca da beleza sonora e do lirismo, produtores do efeito emocional que
Grupo pretendia causar no espectador; e, em segundo lugar, a mixagem
das qualidades eruditas com as populares, que auspiciosamente
agradaria, ao mesmo tempo, aos críticos e ao público. (ALVES, 2006,
p.116).

A mescla do erudito com o popular visava, por outro lado, atender ao


propósito de uma encenação brasileira do ponto de vista mineiro e
contemporâneo, reunindo, por meio do repertório adotado, diferentes tipos de
mixagem. Os espectadores que viram a montagem concordaram com as críticas
especializadas direcionadas ao espetáculo e, para muitos deles, foi considerado
um dos melhores trabalhos do grupo. O espetáculo obteve mais de vinte
prêmios em diversas categorias. Foi eleito o melhor trabalho teatral exibido em
1994, no Rio de Janeiro, e recebeu os troféus Sharp, Molière, Shell e
Mambembe de “melhor espetáculo”. Sua carreira ultrapassou as duzentas e
vinte apresentações, em vinte cidades de oito estados brasileiros e em mais
sete países – Portugal, Espanha, Canadá, Costa Rica, Venezuela, Colômbia e
Uruguai. Sendo assim, esse sucesso acontece pela união harmoniosa entre o
erudito e popular, e vale dizer que essa harmonia está associada às canções e
arranjos, caprichosamente, pensados por Fernando Muzzi e Ernani Maletta. De
acordo com a bibliografia:

O mártir do calvário ou a Paixão de Cristo de Eduardo Garrido11 foi


escrita em 1901 é uma peça por excelência de circo-teatro e, ao
mesmo tempo, por uma tradição de festejos relacionados ao Corpus
Christi na sociedade brasileira que remonta à colônia. O hábito de
encenar a paixão de Cristo na semana santa foi absolvido foi mais
tarde pelo circo tornando O mártir do calvário uma peça paradigmática
dessa trajetória e, consequentemente, uma das mais encenadas do
teatro brasileiro (CARÁ PINHÉ, 2011, s/p.).

Estamos tratando de um texto complexo, pois é uma dramaturgia em


versos intercalados por cantigas que, neste caso, forjam os quadros de
encenação da via crucis. “A Rua da Amargura” se divide em cinco atos,
dezesseis quadros (subdivisões dos atos), e cada quadro contém algumas
cenas. Esses quadros contam momentos da vida de Cristo como, por exemplo,

11
- Eduardo Garrido foi um dramaturgo, poeta, compositor, tradutor e teatrólogo português, que
obteve grande sucesso nos teatros lisbonenses e fluminenses, em finais do século XIX e início do
século XX (CARÁ PINHÉ, 2011, s/p.)
o encontro com a boa samaritana, o adeus da virgem, a defesa de Maria
Madalena, a traição de Judas, o lamento de Jesus para Jerusalém, a última
ceia, as estações da cruz, a morte e a ressurreição do Messias. Pela estrutura,
podemos observar que o texto combina a forma épica, em quadros, com a
divisão romântica do drama ou melodrama em 5 atos; além disso incorpora a
dança e a música como elementos intercalados à ação.
Para que melhor possamos visualizar como é o desenrolar da
dramaturgia e a própria encenação, selecionei fotografias do espetáculo que
alternam do ano de 1994 e 2001 do fotógrafo oficial do grupo Guto Muniz, e que
estão disponíveis em seu site Foco in cena. Essas imagens são da estreia do
espetáculo, em 1994, e da última temporada, em 2001, as quais vão nos auxiliar
para apresentar o espetáculo quadro a quadro e, assim, eleger quais são os
quadros objetos de comparação com as demais cenas eleitas das
manifestações.

QUADRO 1 - PRÓLOGO

Uma das adaptações feitas no texto original, para a encenação do


Grupo Galpão, foi o acréscimo do prólogo da natividade. Nesse prólogo, os
atores fazem referências às folias de reis de Carmo do Rio Claro, conforme já
dito anteriormente. A cena se abre com os atores em semicírculo, tocando
chocalhos e, após um tempo, começam a cantar canções do folclore brasileiro,
aguardando a aparição do menino Jesus que se dá por meio de um descerrar de
um saco de tecido. Quando esse saco cai, o que vemos é a imagem do menino
Jesus.
Figura 07 - O prólogo
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br > Acesso
em: 09 mar de 2023.

Após o “nascimento”, estes mesmos foliões cantam como um grupo de


folias de reis, a visita das pastorinhas, o anúncio do decreto de Herodes, a visita
dos reis magos e a fuga para o Egito. Todo esse prólogo, na apresentação que
foi gravada em Patos de Minas/MG, acontece na rua. Vale salientar que o
prólogo da folia de reis informa elementos estéticos bem demarcados pelos
figurinos e pela musicalidade, baseada no folclore mineiro das folias de Reis.
Reitera-se que o encenador do espetáculo busca na matriz da festa da folia de
Reis uma referência para construir as marcas e o gestual dos atores. Na cena,
aqui, retratada vemos a imagem que remete ao presépio cristão, mas, se
observarmos o gestual dos atores, temos uma aproximação do gestual festivo
de louvação da folia de Reis e do congado.
Neste caso, como em vários outros momentos da montagem, identifico as
festas negras como motrizes do acontecimento. No prólogo, sob a noção do
conceito de signo de negrura, esta dissertação lê o menino Deus de Antonio
Edson pelas seus traços étnicos característicos indígenas e afro-brasileiros.
Mesmo que não colocado pela encenação e ou pelo encenador, o discurso da
negrura se mostra, tal como pensado pela égide de Leda Maria Martins (1995)
quando disserta sobre a negrura como construção semótica.
Figura 08 - O menino Deus.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.
QUADRO 2- A DESPEDIDA DE JESUS E A VIRGEM

Após o prólogo, o público é convidado a adentrar no teatro para


acompanhar a segunda parte do espetáculo. Essa segunda parte é aberta com
Jesus na fase adulta se despedindo da mãe, pois vai começar sua missão. Este
quadro é aberto com uma canção religiosa fortemente difundida nos festejos da
semana santa católica e, após esse momento, Jesus se despede de sua mãe e
vai seguir sua peregrinação até a “Rua da Amargura". Amargura marcada pela
interpretação melodramática que o encenador imprimiu no conjunto de atores.

Figura 09 - Jesus e Maria.


Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.
QUADRO 3- JESUS E SAMARITANA

O terceiro quadro restaura uma das passagens mais ouvidas da vida de


Cristo: o encontro de Jesus com a Samaritana. Nesta cena, a samaritana é uma
dançarina que carrega a moringa de água na cabeça, gesto típico de batuques.
Nela, assistimos ao diálogo entre os dois que são interrompidos por um grupo de
atores que fazem gestos obscenos. Terminada essa ação, vemos jogada no chão
Maria Madalena que é o próximo quadro da encenação.

Figura 10 - Jesus e a Samaritana.


Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

QUADRO 4 - JESUS E MARIA MADALENA

O quadro a seguir conta a passagem de Madalena, mulher que seria


apedrejada por homens e que Jesus a defende frente a estes algozes. Este
quadro acontece em tom melodramático, gestualidade exagerada e de súplica,
como marca principal do quadro.
Figura 11- Jesus e Magdalena.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

QUADRO 5 - O LAMENTO DE JESUS PARA JERUSALÉM

Após o quadro de Maria Madalena, o palco fica vazio. Vemos Jesus


sentado, e a mala que carrega, ao longo da narrativa dos quadros anteriores,
aberta. Nela, vemos uma miniatura de Jerusalém e com esta miniatura a
mostra do público acontece, exibindo um dos poucos monólogos do
espetáculo. Neste monólogo, acontece o lamento de Jesus para Jerusalém.
Figura 12 e 13 - O lamento de Jesus.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

QUADRO 6 - CAIFÁS E OS FARISEUS

Logo após uma cena intimista ambientada, numa atmosfera mais


silenciosa, ouve-se uma música de caráter circense aumentar de volume e, em
luz aberta, vemos Caifás e os fariseus. Um signo interessante, nesta cena, é o
guarda sol que Caifás carrega nas mãos no ato de sua confabulação contra
Jesus. Este guarda sol é confeccionado com chitão, tecido muito utilizado na
indumentária das manifestações tidas como populares; além de outros
elementos tais como: buchas, sementes, palhas utilizados para a definir a
estética do espetáculo.
Figura 14- Caifás e os fariseus.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

Encerrado o quadro, Judas caminha até os doutores e fariseus e resolve


vender Jesus. A cena ainda fica sob a égide do tom circense da encenação e,
após esse quadro, o próximo é o da santa ceia.

QUADRO 7 - SANTA CEIA

A cena da santa ceia tem um tom dançante e fortemente musical. Um


ponto interessante, nesta cena, é o discurso de regionalização da encenação
nas mãos dos atores; conforme observamos, na disposição mineira da
eucaristia, uma vez que é um vinho produzido em Minas e o tradicional pão de
queijo. Para além da comicidade, presente na escolha dos acessórios da
encenação que, muitas vezes, servem para expandir o movimento do cortejo,
dos gestos e das cenas, há tambémsignos que sugerem a busca pelo grupo e
pelo diretor de traduzir os passos do martírio do ponto de vista de sua
localização.
Seguindo a dramaturgia de Garrido e a proposta da encenação, na
sequência da santa ceia, assistimos a uma claudicante coreografia realizada
como uma espécie de prólogo da via crucis, mote principal da dramaturgia.
Temos as cenas da traição de Judas a Jesus, da entrega de Jesus aos fariseus
e do julgamento frente a Pôncio Pilatos.
Figura 15 - A santa ceia.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

Figura 16 - Judas e o coro.


Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

QUADRO 8 - A CONDENAÇÃO PARA MORTE DE CRUZ


Figura 17 - Jesus e Herodes.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

A partir da cena da condenação à morte na cruz, a encenação ganha


contornos mais precisos, se atentarmos para as imagens sacras católicas das
igrejas mineiras, fonte de pesquisa também anunciada pelo encenador como uma
entre as outras matrizes para a criação. Os quadros apresentados a seguir
seguem a dramaturgia da via crucis que, nas igrejas católicas, são retratados no
interior dos templos: o encontro com as mulheres; a primeira, segunda e terceira
queda; encontro com verônica; a ajuda de Simão de cirene até a crucificação,
sintetizando elementos heterogêneos. Tais elementos, na perspectiva da direção,
convergiam numa fórmula brasileira de encenar a vida em movimento: “Em 1992
o diretor afirmou, em entrevista, que o “o circo, a Igreja Católica e o imaginário
mineiro guiam a energia estética das minhas montagens”, atribuindo, ainda, a
formação religiosa seu discernimento e o seu amor pelo rito, notáveis em suas
produções” (MAGIOLI, 1992, p.1 apud ALVES, NOE, 2006, p. 119). Além disso,
devemos considerar que a tradição mineira tem uma forte influência negra no
construto de sua arte, arquitetura e estética. Nessa perspectiva, mais uma vez
vemos o signo de negrura que mesmo não anunciado ou lido está presente.

QUADRO 9 - VIA CRUCIS


Figura 18- Jesus e a cruz.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.
Figura 19 - Jesus e Maria
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

Figura 20- A Rua da Amargura.


Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.
Figura 21 - Jesus.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.

Figura 22 A crucificação.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023.
Figura 23- Jesus morto e Magdalena.
Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023

QUADRO 10 - A RESSURREIÇÃO

O último quadro do espetáculo é a ressurreição. Para compor este


quadro, a direção do espetáculo resolveu dividi-lo em duas partes. Na primeira
delas, o que vemos é a presença dos foliões celebrando e, em diálogo com os
santos, emergem na segunda parte, mas mudados pela influência sacra, na
construção estética da cena.

Figura 24- A ressurreição.


Fonte: Foco in cena. Disponível em:< www.focoincena.com.br >
Acesso em: 09 mar de 2023

Feita essa exposição quadro a quadro, sigo na análise dos demais


elementos da encenação que direcionam respostas para as hipóteses
colocadas ao longo deste estudo. Analisarei, agora, as matrizes interculturais
que guiam a estética do espetáculo, o elenco e as personagens, para destacar a
gestualidade imbricada na cena, partindo dos quadros selecionados.

2.2 – Matrizes interculturais da negrura na folia d’A Rua da Amargura


O diretor Gabriel Villela é natural da cidade de Carmo do Rio Claro, uma
região marcada pela fé e que mantém algumas tradições como os tapetes de
Corpus Christi, Folias de Reis e a Cia. de menino Jesus. Nesse âmbito de
manifestações, a folia de reis inspirou Gabriel Villela a compor o espetáculo,
partindo da estrutura cênico-dramatúrgica do rito concebido como representativo
da chamada cultura popular brasileira. A folia de reis, enquanto folguedo,
apresenta um caráter profano-religioso e faz parte do ciclo natalino que vai de
24 de dezembro a 6 de janeiro, comemorando o nascimento de Jesus por meio
de festividades. Essa festividade teria chegado com os portugueses, juntamente
com a colonização, conforme observou Pergo (2011) em seu estudo Os rituais
na folia de Reis: uma das festas populares brasileiras.
Uma das características marcantes da Folia de Reis é a forte
religiosidade de seus participantes demonstrada na forma de relação com as
personagens da natividade do Messias. Para Burton (2010), em A África, essa
tradição folclórica teria uma origem negra decorrente da diáspora no período
colonial, em Minas Gerais:
um grupo de homens negros, após um desfile pelo povoado, chegava à
casa-grande. Vestia-se, como ingenuamente imaginava, segundo estilo
da casa – água rosada, descendente do grande Manicongo e segundo
o estilo de senhores do Congo. Mas a vestimenta, de cores e de cetins
resplandecentes, era produto do imaginário (BURTON, 2010, p.132).

Produto do imaginário africano na encruzilhada do Atlântico, outro


componente da folia é o coro constituído, geralmente, por seis pessoas que são
cantores e instrumentistas. Porém, o número varia de região para região. Cada
membro do coro tem sua função, no entanto, o mestre é o principal personagem
da folia, ou ainda, chefe da folia, pois ele organiza o trajeto, o horário e os
instrumentos para sair com o grupo. Em alguns lugares, também é chamado de
“embaixador”, uma vez que é o responsável por improvisar os versos cantados
nas residências. O vestuário desenhado por Maria Castilho e Wanda Sgarbi,
com a supervisão de Villela, é fruto da pesquisa de um ano do encenador sobre
as tradições folclóricas de Minas Gerais, em específico a Folia de Reis.
A combinação considerada barroca de diferentes matrizes culturais e
artísticas, na criação do espetáculo, mostra-se presente mais uma vez na
dramaturgia sonora. Como já dito, o encenador se vale da sonoridade para
aproximar e amalgamar os elementos dos universos musicais clássicos e
populares na encenação. Para que os elementos sonoros funcionassem
harmoniosamente, Fernando Muzzi e Ernani Malleta buscam uma harmonia
entre arranjos, vozes e instrumentos utilizados no primeiro momento da
encenação, sobretudo, aqueles introduzidos na música brasileira pela diáspora
africana: os chocalhos nos pés denominados “o patagume”.
Assim, podemos observar músicas clássicas sendo arranjadas por
instrumentos como: pandeiro, zabumba, tambor, entre outros utilizados pelos
grupos de folias de reis e na congada, manifestação guia de alguns elementos
estéticos da peça e da outra manifestação pesquisada nesta. O que vemos na
encenação são músicas clássicas, ganhando sonoridade de uma música negra
marcada pelos seus instrumentos; essa sonoridade se torna uma intervenção
minuciosa e transformadora como podemos notar, por exemplo, em algumas
canções do prólogo “Romã, Romã” e “Na chegada desta praça”, sendo, essa
última, canção da folia de reis, segundo comentou Alexandre:

A música é um signo marcante no primeiro ato e no trabalho teatral do


grupo. O público acompanha o enredo da peça através de hinos
religiosos (próprios da época de Natal) ou de outras cantigas (similares
às de roda, típicas da cultura mineira), que são cantados pelos
atores/personagens durante a encenação. A peça procura que o
espectador reviva o ritual; como os católicos revivem através do ato da
celebração da eucaristia, o nascimento de Jesus. O público começa a
se envolver com as letras das músicas, que lhe traz recordações
íntimas dos momentos de festividades religiosas (ALEXANDRE, 1998,
p.109).

Observa-se, portanto, qua a música propicia reviver o ritual que, através


da função mnemônica de seus valores expressivos, possibilitaria encontrar essa
harmonia entre canto e instrumentação. Dessa forma, Ernani Malleta ficou
responsável por executar um trabalho com o grupo de canto coral, segundo
testemunha:
Aproximei-me do Galpão em 1994, como arranjador vocal e maestro de
coro, por ocasião da montagem de A Rua da Amargura, dirigida por
Gabriel Villela, em função do seu interesse em valorizar a polifonia
vocal por meio de canções sacras e eruditas tradicionalmente cantadas
a várias vozes. O objetivo principal era o de levar o grupo a cantar com
a sonoridade característica dos corais (MALLETA, 2011, p.399).

A coralização do espetáculo-cortejo exigia encontrar uma determinada


partilha harmoniosa entre as vozes, destacando, do conjunto, as
particularidades de cada integrante. Como podemos observar, a musicalidade
na montagem é um elemento importante na estruturação cênica do espetáculo,
o grupo galpão por meio de suas pesquisas e processos criativos se tornou
também um grupo de músicos. Porém, chamo a atenção, aqui, para o que Zeca
Ligiéro nomeia de tríade existente nas manifestações afro-brasileiras, no Brasil:
“tocar, dançar e cantar” e, partindo dessa perspectiva, acredito que, ao escolher
os gestos, as letras e os instrumentos musicais pertencentes ao universo da
folia de reis e da congada, o encenador e toda a equipe criativa entram em
contato com a negrura, ainda que sem assumir essa aproximação na construção
do espetáculo. Assim, o conceito de negrura como um construto semiótico,
proposto por Leda Maria Martins, expande a noção para além da cor e ou da
presença de negros na cena. A musicalidade aparece ligada à gestualidade, na
forma como os atores desenvolvem suas ações corporais dentro da cena. Não
se trata de tocar apenas os instrumentos, mas de coreografar seus movimentos
em torno da ação apresentada. Para isso, tratarei do elenco e da gestualidade
como sendo grande condutora da negrura presente na obra.

2.3 – O elenco e as personagens

O encenador resolveu escalar, para o personagem de menino Jesus, o


ator Antônio Edson, baixo e com traços étnicos que sugerem a fusão de etnias
indígena, africana e europeia, afirmando, assim, o projeto do grupo e do
encenador de trazer a identidade brasileira para a montagem. Sua adaptação do
texto foi na direção da criação de um menino Jesus “multicultural”, desse modo,
o encenador e o grupo propõem que o público reflita sobre seus estereótipos
sagrados euro-centrados por meio do sincretismo nacional e de suas etnias
fundantes. Não percebo que o encenador faz essa escolha buscando uma
consciencia étnica, e aponto, com base em inúmeras entrevistas sobre o
trabalho, a ausência declarada desse compromisso com a questão étnica no
espetáculo. Todavia, interpelo que, ao colocar um corpo lido como negro, pelo o
espectador e, aqui no caso, pelo pesquisador, a encenação suscinta esse corpo
negro como signo relevante em A Rua da Amargura, em que “Cristo” é a figura
central, assim como na folia e no congado.
Um cristo negro não é novidade, mas, aqui, sua presença enuncia um
signo maior da encenação em geral. O espetáculo, em 2001, recebeu uma
adaptação televisiva na rede Globo, assinada por Gabriel Villela e Geraldo
Carneiro e com direção de Cininha de Paula e Rogério Gomes. Na ocasião, o
cenário escolhido para as filmagens foram às ruas e igrejas de Ouro Preto. Na
montagem televisiva, “A paixão de Cristo, segundo Ouro Preto”, o ator que
interpreta o menino Deus é substituído por uma criança loira, como preconiza a
tradição católica euro-centrada. Essa troca fragiliza o caráter brasileiro do
trabalho, conforme ressaltou Junia Alves: “Embora a obra teatral e o trabalho
televisivo registrem semelhantes em seus aspectos miméticos, por serem artes
irmãs, cada qual apresenta objetivo e papéis específicos e, na maioria das
vezes, endereça-se a um público” (ALVES, 2006, p.124).
Por outro lado, devemos considerar que, conforme a fortuna crítica, existe
uma tentativa de uma brasilidade a ser criada pelo trabalho, ou seja, de que
modo os elementos heterogêneos reunidos dialogam entre si no interior de sua
estrutura, pois não se trata apenas de aproveitamento ou de apropriação das
matrizes, mas perceber que tipo de interação (ou de história) surge projetada na
cena de rua. Nesse sentido, o deslocamento operado pelo espetáculo de
determinadas formações culturais não é uma garantia de seu caráter “brasileiro”,
uma vez que a interculturalidade compreende relações de poder, inclusive,
quando se transporta para os meios de comunicação de massa. Como era de se
esperar, o grupo teve pouca autonomia na gravação do espetáculo para o
especial, desfazendo o diálogo organizado entre as fontes e matrizes culturais
do trabalho. Os dezesseis quadros da peça foram resumidos em cinco e, ao
todo, só oito dos dezessete números musicais da peça foram retomados na
versão em um misto de cantos gregorianos, hinos católicos e música popular
brasileira. Nesses cortes “globais” houve uma exclusão das composições
folclóricas mineiras.
Alguns acertos precisam ser apontados nessa versão televisiva com
relação aos figurinos e a maquiagem que permaneceram sendo o fator principal.
A escolha de Ouro Preto para ser o cenário da filmagem se aproximou do
cenário natural do espetáculo, recuperando, parcialmente, o cenário natural da
montagem. Ouro Preto é uma cidade onde a religiosidade se confunde com a
sua própria história, construída em um pilar de fé e devoção, é o berço da
religiosidade mineira, onde os belíssimos ritos litúrgicos e as festas religiosas
populares expressam a devoção do povo.
A tradição religiosa de Ouro Preto se mantém viva ao longo do tempo e a
peça “A Rua da Amargura - 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus” busca,
em seu percurso, refazer os passos da mineiridade do grupo Galpão em
território propício, especialmente, tirando proveito do cenário natural da cidade
que entrelaça o profano e o sagrado, o popular e o erudito, o presente e o
passado, enquanto um gesto de inscrição do espetáculo na história mais ampla
do coletivo (ALVES; NOE. 2006).
Vale observar que a cidade tem uma forte tradição congadeira que
remonta a minas colonial. Nessa direção, o espetáculo levanta questões acerca
da fronteira que separa o teatro do rito, pois, conforme salientou Alexandre, a
trama do espetáculo: “expressão cênica, vestuário, fala entonação,
movimentação dos atores no palco, permite-nos adentrar na trama do
espetáculo e entender a importância que é dada à religião como expressão
marcante da cultura mineira e brasileira” (ALEXANDRE, 1998, p 116). Podemos
observar nessa afirmação de Alexandre que a religiosidade é algo presente na
montagem, mas aqui não estamos falando de uma religiosidade que ocupa as
ruas como a das folias de reis anunciada pelo encenador no processo de
criação. É preciso observar em que medida essa religiosidade, ao se
transformar em signo do popular-nacional, reconfigura o tronco negro religioso
do catolicismo, convertendo-o em cultura já que ambas motrizes do espetáculo
partem do duplo enunciado característico da presença negra na diáspora:

A cultura negra nas Américas é de dupla face, de dupla expressa nos


seus modos constitutivos fundacionais, a disjunção entre o que o
sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e fazer e o
que, por inúmeras práticas, realmente diziam e faziam. Nessa
operação de equilíbrio assimétrico, o deslocamento, a metamorfose e o
recobrimento são alguns dos princípios e táticas [...] de formação
cultural afro-americana [...]. (MARTINS, 2002, p. 71)

A disjunção ressaltada por Leda pode ser trabalhada de diferentes


maneiras, pode ser negada, afirmada, tensionada, harmonizada, conforme as
diferentes formas de aparar arestas. Vemos no espetáculo uma nova
reconfiguração dos elementos que, por meio do cortejo ritual, são combinados a
partir da brasilidade. No caso de “A Rua da Amargura” vemos figuras, músicas,
personagens e elementos do catolicismo combinados com os de matriz negra
que, uma vez reunidos em sua elaboração cênico-dramatúrgica, a direção
procurou harmonizá-los em torno de uma certa ideia do país.

2.4 A gestualidade d’A Rua da Amargura

A gestualidade em “A Rua da Amargura” é um sistema de signos


importante pois, por meio dele, estrutura-se a narrativa viso-motora. Dessa
maneira, devemos observar o modo de seu funcionamento nas diferentes
montagens do espetáculo. Uma vez delineado seu sistema de funcionamento,
podemos comparar com o sistema presente nos dois folguedos e, assim,
observar de que forma se elaboram suas respectivas relações com as memórias
afrodiaspóricas. É preciso lembrar que, segundo o relato do diretor, a folia de
reis serviu como uma das matrizes estéticas pesquisadas durante o processo de
construção do espetáculo, em particular a de Carmo do Rio Claro, cidade natal
do encenador. Cidade conhecida por ter a folia de reis como um dos principais
festejos do município.
É notável que a gestualidade dos atores e das atrizes seja construída
em razão da fonte festiva no decorrer de toda encenação. Nesse sentido, o
espetáculo evoca a memória dos valores expressivos da vida em movimento,
por meio de sua ativação incorporada que, por seu turno, abarca a
ancestralidade que transita no aqui e agora do acontecimento. A função
pulsional do movimento, aqui, aproxima-se da noção de afrografia, conceito
cunhado por Martins (2001) em seu estudo do congado ou reisado. Desse ponto
de vista, as imagens recriadas pelos eventos carregam consigo uma carga
mnésica ligada à experiência da diáspora atlântica, pois é marcada nos corpos
de modo diverso.

Trata-se de uma escrita cênico-dramatúrgica, elaborada por meio da


coreografia festiva dos atores dançantes em cortejo pela cidade ou pelo campo,
que se transmite pela gestualidade dos praticantes e daqueles que guardam em
seus próprios corpos essa lembrança. Lembrança que o espetáculo busca
projetar na relação entre os atores, as atrizes e o público. A dança, o canto, a
música, a poesia e a dramatização, uma vez conjugados, grafam os valores
expressivos da diáspora negra que se transforma, através do tempo, em
fórmulas de um sistema operador negro do pathos.
Por meio dos folguedos se deu a interiorização das formulações
expressivas patéticas africanas na América, invertendo, por sua vez, o valor
pulsional das manifestações eurocêntricas e católicas. Nessa direção, a
gestualidade se torna símbolo da circulação, da migração, possibiitando perfazer
os caminhos da escravidão, dos encontros entre elementos distintos,
considerando a “encruzilhada” como o terreno próprio dessa história, do embate
vivido entre a forma e a força dos valores reterritorializados.
Guardadas as especificidades dos dois cortejos, acredito que um olhar
mais detido para o espetáculo pode nos ajudar a perceber como ambas as
matrizes festivas ou rituais da vida em movimento se cruzam na sua construção.
Voltarei nessa discussão no terceiro capítulo, porém, se atentarmos para a
figura-16, identificamos um padrão gestual em comum nas três manifestações
observadas ao longo deste. A imagem já colocada, anteriormente, é da cena em
que o personagem Judas está caminhando em direção ao templo dos fariseus
para entregar a Cristo.
Vemos no desenho da cena os atores que caminham com os joelhos
flexionados e outros aos saltos. A coreografia de Paola Rettore foi desenvolvida
a partir da pesquisa e da observação das festividades mineiras religiosas. Para
as manifestações espetaculares e festivas negras, o joelho flexionado está
diretamente ligado à conexão do negro com o seu sagrado e ou ancestralidade,
aqui, no caso, da cena ela está ligada ao climax que antecede o calvário de
Jesus. O joelho flexionado na dança do congado e da folia nos indica o
aterramento como a mola propulsora para afirmação da sacralidade dos devotos
do congado e da folia de Reis. No caso da coreografia do espetáculo, os joelhos
flexionados impulsionam o movimento na direção do clímax da cena em
questão, sem que a gente precise presenciar o momento.
Figura 25 – Cortejo de abertura do espetáculo em Ouro Preto.
Fonte: Disponível em : <
https://www.ouropreto.com.br/video/139/a-paixao-segundo-ouro-
preto-grupo-galpao-com-paulo-jose >
Acesso em: 09 mar de 2023.

O espetáculo “A Rua da Amargura” é dividido e encenado em dois atos.


O primeiro ato é encenado na rua, local de origem da manifestação geradora da
estética do espetáculo: a folia de Reis. Irei me atentar na formação do cortejo e
como ele organiza a imagem da vida em movimento, já que é no cortejo que
negros fabulam suas trajetorias em diaspora negra. Podemos observar que o
cortejo de abertura da cena se organiza da seguinte maneira: um ator a frente
de todos como o guia do cortejo. Para esses cortejos negros, os mestres que
vêm a frente do cortejo são os mais velhos daquela comunidade, são os que
detém a sabedoria e que transmitem a memoria da festividade. Esse local é
posto para recordar e reverenciar os que vieram antes e que guardam os
fundamentos daquela comunidade.
No caso do cortejo de “A Rua da Amargura”, o ator que vive o
protagonista é o guia do cortejo, isto é, o protagonista, a partir do qual o restante
da história vai se desenvolver em torno dele. Mudando assim o significante, mas
não a estrutura organizacional do ato em si. Os cortejos fazem com que o
espaço ocupado se transforme no ambiente ou território do evento, sendo
assim, reconfigurando o seu aspecto físico entre o artístico e o não artístico.
Entretanto, enquanto o cortejo do Congado e da Folia de Reis transfigura o
deslocamento em função da narrativa religiosa, visando, assim, sua santificação;
no cortejo teatral, o deslocamento do coletivo assume uma função figurativa
diversa, pois, nesse caso, oscila entre o que acontece na performance e o que
ela conta:

O ambiente da urbe tem suas leis que pertencem ao cotidiano. Todos


as reconhecemos e sabemos operar por elas, ou contra elas,
circunstancialmente. Ao invadir a cidade, o teatro cria breves fissuras
nestas operações cotidianas e deforma o ambiente, propiciando a
articulação de uma nova ambiência. Nisso apostamos, ao tomar o
espaço da cidade: a possibilidade de que a gestão coletiva de um novo
ambiente modifique as percepções sobre a cidade e abra espaços
múltiplos para as operações da ficção. A interferência teatral na rede
de construções simbólicas que se articulam no ambiente urbano trata
de produzir ressignificações com o fim de construir condições para um
tipo de recepção que se projeta em direção à ideia de uma cerimônia,
ou seja, de um evento social que transforme o estar na rua. (...) Assim,
seria possível vislumbrar aquilo que Schechner chama de trânsito entre
o espetáculo e o evento social, ainda que mais não seja como
exercício que trata de superar o espetáculo enquanto uma mera
representação.(CARREIRA, 2013.p.8)

O trânsito entre espetáculo e evento social se configura distintamente,


conforme o contexto do cerimonial, tal como procurei assinalar neste segundo
capítulo. No terceiro capítulo, e nas conclusões desta dissertação, estarei me
utilizando do conceito de motrizes, desenvolvido por Zeca Ligiéro (2011) para, a
partir de seu horizonte de conhecimento, alinhavar a tessitura textual e
imagética de todas as cenas observadas, ao longo deste trabalho.
Capítulo 3 – MOTRIZES GERADORAS DE NEGRURA NA CENA DE “A RUA
DA AMARGURA”

No terceiro capítulo, analiso comparativamente o sistema de imagens


em operação nas três performances investigadas anteriormente, o Congado, a
Folia de Reis e A Rua da Amargura. Busco entender, por meio da comparação,
os valores expressivos da vida negra em movimento que constituem o corpus
da negrura de A Rua da Amargura e identificar possíveis pistas das matrizes
diaspóricas que suscitam o saber-fazer mineiro contemporâneo teatral.
Segundo Lima (2010), as culturas negras descendentes deram inestimável
contribuição para as práticas e concepções das artes cênicas no Brasil,
entendimento que aproprio como pressuposto para leitura dos cortejos rituais e
ou festivos. Nesse sentido, o capítulo comparativo pretende identificar e
discutir os deslocamentos e transferências dos signos entre os três universos
cênicos. Num primeiro momento, procurei circunscrever, por meio da literatura
especializada, o terreno da semiótica teatral, tendo como arcabouço teórico a
coletânea intitulada Semiologia do Teatro (2006) e o livro A análise dos
espetáculos, de Patrice Pavis (2003). Partindo dos dois estudos, compreendo a
semiótica teatral na interseção com seu contexto de elocução. A semiose negra
compreende não apenas os signos, mas o contexto de sua inscrição, isto é, o
modo como estrutura as relações intersubjetivas.
Uma vez configurado o terreno conceitual, pretende-se investigar no
segundo subtítulo o funcionamento de ambos os sistemas semióticos para
perceber de que modo a negrura, oriunda do congado e da folia de reis, dialoga
com a do espetáculo. Por meio desse enfoque comparativo, pensarei sobre as
passagens entre ritual, festa, arte teatral e vida cotidiana nos contextos
enunciativos. Para poder avançar no (re) conhecimento da memória
afrodiaspórica de A Rua da Amargura, retomo o conceito de motrizes culturais
do professor Ligeiro (1993). O conceito foi desenvolvido pelo autor para definir
algumas características em comum das manifestações e performances
afrodiaspóricas no Brasil. A noção de motrizes se aproxima, aqui, do universo
analítico dos valores expressivos máximos do movimento, e, dessa forma,
permite acompanhar os processos de transmissão das práticas incorporadas
que, ao longo do tempo, são responsáveis pela continuidade e atualização de
alguns gestos-signos de negrura na cena contemporânea mineira.
3.1 A semiótica teatral na encruzilhada – notas

A semiótica teatral vem, ao longo dos anos, investigando os signos em


funcionamento numa encenação teatral. Não se trata de uma investigação
ampla dos signos em geral, presentes nas três manifestações, mas sim
daqueles que informam a concepção da negrura como um construto semiótico,
segundo elaborou Leda Maria Martins em “Cena em sombras” (1995), isto é: “a
negrura enquanto um conceito semiótico, definido por uma rede de relações”
(MARTINS, 1995, p.26). Essa rede de relações compreende a musicalidade, a
visualidade, a gestualidade, ou seja, os signos de um modo geral do evento ou
espetáculo e o seu contexto de existência.
Cabe à semiótica teatral tentar responder por meio de estudos as
indagações que surgem sempre: o que significa? O que é isso? E o sentido
disso? Quando estamos frente a uma obra cênica e seus signos:
O teatro é um universo de signos (particularmente verdadeiro é o fato
de que “a representação é um ato semântico extremamente denso,
R.Barthes) que utiliza, como meios de comunicação significantes que
desembocam quase sistematicamente na conotação (conatadores);
neste sentido, o teatro é uma arte do código, da convenção, mais do
que todas as outras, arte que depende de uma codificação muito forte
(mesmo quando procura escapar dessa codificação em proveito da
mimese: caso do naturalismo). Este, na verdade, seu dado maior
(DEMARCY, 2006, p.25).

A recepção dos signos e a busca de seus respectivos significados na


cena teatral, talvez seja a grande chave de leitura para os estudos da semiótica
teatral. Nesse sentido, Demarcy (2006) diz que, a unidade significante pode não
ser apenas um elemento significante único, mas, sim, um conjunto de elementos
combinados de modo a produzir um sentido. Vemos nessa proposição a mesma
linha de pensamento de Leda Maria Martins ao entender a negrura como um
conjunto de códigos em relação.
Os elementos sonoros, visuais, gestuais, em combinação, formam uma
rede estruturada de valores que possibilitam a apreensão e/ou a elaboração do
sentido para determinada encenação ou poética teatral, sobretudo no que tange
a sua imagética. É sabido pela teoria da semiótica teatral que o gesto é um
grande gerador de signos, sentidos, e, sendo assim, interessa-nos compreender,
a partir da análise das imagens-fontes de estudo, a gestualidade de “A Rua da
Amargura” na sua relação com os códigos da folia de reis e do congado,
procurando, desse modo, os signos de negrura em cena:
A análise de expressões do teatro negro me leva a subliminar que
sua distinção e singularidade não se prendem, necessariamente, à
cor, fenótipo ou etnia do dramaturgo, ator, diretor, ou do sujeito que se
encena, mas se ancora nessa cor e fenótipo, na experiência, memória
e lugar desse sujeito, erigidos esses elementos como signos que o
projetam e representam. (MARTINS, 1995, p. 26)

Da perspectiva de Martins (1995), a cor e o fenótipo, a experiência e a


memória, são “erigidos” em “signos” que projetam e representam a negrura,
ampliando, com seu raciocínio, o alcance da noção de “teatro negro” para além
de marcos mais delimitados e, por outro lado, permitindo acompanhar de que
modo tais signos são retomados e resignificados, culturalmente, em cena.
Considerado-se essa chave de leitura, é possível entender os trânsitos
geo-históricos entre manifestações cênicas distintas através dos signos em
rotação da negrura articulados pelo folguedo, pelo ritual e pelo espetáculo
teatral. Nesse caso, estaremos nos utilizando da contribuição crítica da
semiótica teatral para analisar os signos de negrura presentes no trabalho
analisado.

3.2 Do Congado e da Folia de Reis: a negrura em diálogo com o espetáculo

O congado e a folia de reis são manifestações religiosas e/ou culturais


de caráter performático, na medida em que suas respectivas práticas
incorporadas operam um sistema semiótico marcado pelas gestualidades
africanas na América. Pensando ambas as performances rituais, enquanto
práticas socioculturais relacionadas à restauração do comportamento na
diáspora, o corpo se torna um meio de ligação entre nós e os nossos universos
culturais:

O corpo é nosso meio geral de ser no mundo. Ora ele se limita aos
gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em
torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros
gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele
manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos
hábitos motores da dança. Ora, enfim a significação visada não pode
ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele
construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo
cultural (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203)

Quando pensamos na corporeidade, é preciso salientar que estamos


falando de duas performances negras, nas quais, o corpo é o veículo de ligação
entre o que é cotidiano e extracotidiano, o passado e o presente, levando em
consideração o saber-fazer das culturas orais e gestuais, conforme salientou
Leda Maria Martins:
Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as africanas
e as indígenas, por exemplo, o corpo é por excelência, o lugar da
memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como
tal, esse corpo/corpus não apenas repete um hábito, mas também
institui, interpreta e revisa o ato reencenado. Daí a importância de
ressaltarmos nessas tradições performáticas sua natureza meta-
constituitiva, nas quais o fazer não elide o conteúdo imbrica-se na
forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra, transmite e
modifica dinamicamente. O corpo nessas tradições, não é, portanto,
apenas a extensão ilustrativa do conhecimento dramaticamente
representado e simbolicamente representado por convenções e
paradigmas seculares. Ele é, sim, local de um saber em contínuo
movimento de recriação, remissão e transformações perenes do
corpus cultural. (MARTINS, 2002, p. 88, 89)

Um corpo-corpus, segundo Martins (2002), institui, interpreta e revisa o


ato reencenado, o que revelaria a natureza meta-constitutiva da memória
grafada pelas tradições na diáspora. Tradições incorporadas que se recriam
através da transmissão e da modificação dinâmica do corpo em movimento que,
desse modo, torna-se local de conhecimento das relações entre o rito, os fiéis e
o cosmo, cuja temporalidade complexa se ancora nos gestos retomados e
atualizados simbólica e reflexivamente na performance. Ainda, de acordo com
Schechner a encenação relaciona-se ou tende a relacionar-se com os processos
sociais:

Comportamento restaurado é simbólico e reflexivo. Seus significados


têm que ser decodificados por aqueles que possuem conhecimento
para tanto (...). Tornar-se consciente do conhecimento restaurado é
reconhecer o processo pelo qual processos sociais, em todas as suas
formas, são transformados em teatro, fora do sentido limitado da
encenação de dramas sobre um palco (SCHECHNER, 2003, p. 35).

Portanto, os significados do comportamento restaurado dependem da


decodificação, isto é, do saber implicado na leitura e/ou na interpretação dos
signos por parte dos participantes e dos que constituem a sua assistência.
O teatro passaria a ser concebido “fora do sentido limitado da
encenação de dramas sobre um palco”, ponto de vista teórico presente nos
estudos de Martins (1995 e 2021). A análise de Martins (2021) mostra que é
possível conceber o teatro em função de sua performance para além de sua
origem euro centrada, afinal de contas a origem de um fenômeno não determina
seu sentido para sempre, podendo, ao longo do tempo, ser reconfigurado por
outros horizontes cognitivos. Nas manifestações rituais e/ou festivas de Minas,
podemos identificar os rastros dispersos da negrura em movimento no congado
e na folia de reis que, por sua vez, são retomados e recombinados com outras
matrizes culturais, enquanto constituem, juntos, os passos lacrimosos de “A Rua
da Amargura”. Nenhum dos dois folguedos costumam ser planejados, visando
ao mesmo contexto do espetáculo teatral, nem seus agentes compreendem o
mesmo universo étnico-racial do grupo Galpão, modificações que transformam
os signos da negrura na ausência de seus portadores tradicionais. Aproximando
a reflexão, aqui proposta, da visão de Martins (1995) sobre as reelaborações da
negrura:

Esse sentido mimético e lúdico, ancorados em vários signos teatrais e


na estratégia da duplicidade daí derivada, embasa a estrutura cênica
dramática de muitas formas de asserção da cultura negra. Em suas
expressões, fundem-se os limites da representação e da
dramaticidade de um teatro popular, urdido pela via da simbolização
coletiva, que reatualiza a herança africana em seu diálogo com o
universo ocidental, cruzando ambos sob os signos do ritual e do jogo
(MARTINS, 1995 p.60).

Tratam-se, portanto, de manifestações que reatualizam a herança


africana nos limites da sua representação posto que, deslocadas de seu berço e
origem, o catolicismo surge aqui como expressão máxima de um teatro popular,
desde os autos de Anchieta e, antes, quando percorreu as performances
indígenas implicadas na dramaturgia jesuítica. As duas manifestações são
repletas de signos de negrura, reelaborados em função da diáspora forçada pelo
tráfico negreiro e pela escravidão e/ou voluntária em razão das trocas efetuadas
entre Brasil, Portugal e África. Logo, carregam em suas tessituras elementos e
princípios oriundos desse processo histórico mais amplo que caracterizou a
colonização europeia no chamado Novo Mundo. São códigos forjados, ao largo
das travessias pelo atlântico negro, que diante da multiplicidade dos
pertencimentos, faz surgir a identificação coletiva surge como resultado dessa
experiência em comum.
Tais signos reatualizados na encenação de “A Rua da Amargura” é,
assim, alvo de nossa verificação sobre a qual se atenta para a gestualidade
cênica do espetáculo em comparação com a das festividades eleitas. Atentar
para os códigos gestuais a fim de perceber como determinados valores
expressivos do movimento negro se alteram, na dinâmica operada pela análise
das imagens escolhidas, torna-se fontes de pesquisa e estudo. Estarei a partir
desse momento apresentando algumas imagens do espetáculo como fontes do
estudo da rede de relações dos signos da negrura, agenciados na cena
contemporânea mineira pelo grupo Galpão. Nas figuras 03, 06 e 08, podemos
observar a repetição de uma fórmula da vida em movimento que expressa o
renascer do pathos que anima o corpo na direção do sagrado. Nela, o coro de
foliões glorifica o nascimento do menino Deus interpretado por Antônio Edson.
Vale lembrar que esse modo de expressão gestual de aliança com o sagrado
estrutura o esquema corporal coletivo em sua função devocional.
A mesma fórmula de adoração se repete com pequenas variações de
acordo com os diferentes contextos de sua enunciação. Na Folia de reis, esse
movimento expressivo emerge na ocasião em que os foliões adentram à casa
visitada pelo cortejo, e os bastiões ficam do lado de fora em forma de respeito e
reverência ao sagrado, pois, os foliões encontram, no interior da casa, a imagem
do menino Deus. Enquanto, no congado, a adoração se dirige como apelo à
nossa senhora do Rosário.
Portanto, o mesmo gesto de adoração expressa enunciados diversos
quando se desloca e varia de significação, especialmente em função de sua
conexão com a cosmologia africana, com a cultura afro-brasileira, matrizes das
quais retiraram suas energias criadoras e motrizes vitais. Os corpos em cena
apresentariam a expressão da subjetividade, mas também apontavam para um
ser coletivo, que existe e representa (JESUS, 2016).
A figura do Cristo negro se converte numa representação de um corpo
coletivo. No caso do congado e da folia, o esquema corporal retratado que
organiza a cena da adoração do sagrado se dirige ao menino Deus e à Nossa
Senhora do Rosário, sendo elemento essencial das duas maneiras narrativas
que, por sua vez, emanam de um território e de um tempo específicos,
consagrados pelo rito coletivo que reúne as subjetividades em torno de um ser
comum. Na cena de em “A Rua da Amargura”, o quadro da adoração se torna
expressivo, dramaturgicamente, enquanto eixo metafórico do nascimento do
Cristo “mestiço”, símbolo de apreço do povo e/ou da cultura local.
Ao compararmos as três cenas da adoração, é possível perceber de que
modo os gestos expressivos são restaurados, sofrendo, ao longo do processo,
mudanças em sua significação que, nem sempre, foram acompanhadas de
comentários críticos acerca da conversão de elementos das culturas diaspóricas
em plataformas construtivas das culturas nacionais, nas quais a negrura é
incorporada por outro corpo coletivo. Corpo coletivo que, nos dois ritos, é
formado originariamente pelos membros que constituem as comunidades do
folguedo, enquanto, no espetáculo, assume outro valor em função da companhia
que passa a operar os signos.
Fizemos, assim, a comparação de um ponto de vista mais geral da fórmula
gestual de adoração que se repete com diferença. Nesse momento, passamos a
aprofundar essa relação, observando a disposição corporal do dançante e o
aterramento, enquanto dispositivo e geração da expressividade gestual da
transcendência impulsionada pela relação com o solo e/ou a terra12.

As flexões das pernas dos brincantes, nas duas primeiras imagens,


mostram uma técnica particular encontrada nas manifestações populares
relacionada a tensão produtiva do movimento de ascensão cujo impulso nasce
de uma direção contrária ao seu fim voltado ao devoto céu. Desse ponto de
vista, a gestualidade do brincante assinala o princípio imanente da divindade
que desce à terra e toma corpo na festa. O aterramento impulsiona o salto ao
céu que, assim, conecta o cortejo coletivo ao cosmo mais amplo
coreograficamente. Por outro lado, no espetáculo, o mesmo aterramento ganha
um contorno artístico que, no contexto do palco, torna-se signo da atuação do
grupo, de sua performance popular de teatro de rua e da sacralidade investida
na encenação de referência.
As danças negras, desde tempos remotos, desempenham várias funções
na diáspora, dentre elas, reviver sua relação com a terra que fora alterada pelo
exílio do tráfico e, assim, refazer os elos ancestrais que nutrem e sustentam os
corpos na contemporaneidade (DIAS, 2021). Nesse caso, as danças, os cantos
e a música diaspóricas não esgotam seu contexto e seu sistema de signos no
universo ocidental moderno da arte. Na medida em que a encenação está
ligada à vida prática da comunidade e/ou da coletividade, renovam-se os seus
laços de pertencimento ao cosmo na contemporaneidade, por meio de seus ritos
e festas. Atualização via performances que Martins (2021) designou como sendo
instâncias do tempo espiralar. Espiral que se enrosca e se desdobra na cena de
“A Rua da Amargura” conforme revelam as flexões das pernas dos
atores-cantores-músicos-dançantes para o alto.
A coreógrafa do trabalho, assim como, os demais agentes criativos do
espetáculo utilizaram da matriz da folia de Reis. Matriz da disposição de pernas,
tronco e braços, nas ações executadas de salto, caminhada, rodopio, que
podem ser lidas, segundo o movimento que os bastiões usam para executar a
sua dança, mas também está presente nos corpos dos congadeiros. Motriz
dançante, cantante, atuante negra que estrutura a linguagem de ambas
manifestações. Portanto, ao enxergar a presença das danças negras na
coreografia do espetáculo, podemos avançar no reconhecimento da atualização
dinâmica da motriz geradora do movimento: “O gesto esculpe no espaço, as
feições da memória, não seu traço mnemônico de cópia especular do real

12
- Ver as figuras 1, 5 e 16
objetivo, mas sua pujança de tempo em movimento”. Em África, assim como nas
Américas, “o bom dançarino é o que conversa com a música que claramente
ouve e sente as batidas e é capaz de usar diferentes partes do corpo para criar
a visualização dos ritmos”. (MARTINS, 2021 p.20).
O gesto desdobra o movimento no tempo em função de seu diálogo com
a música e a dança. A música que reclama o gesto, a presença do corpo,
pertence ao universo instrumental negro. Neste sentido, o grupo Galpão utilizou
no espetáculo à mesma instrumentação que é utilizada nas folias de Reis e nos
congados, as zabumbas, chocalhos, tambores entre outros, configurando os três
elementos batucar, cantar e dançar que, segundo Zeca Ligiéro, coexistem nas
expressões culturais e artísticas negras e africanas em terras americanas,
conforme podemos observar na animação e ou armação dos três cortejos13.
Podemos observar, nesses cortejos, que além dos três elementos que
Ligiéro assinalou em seus estudos, os demais elementos como, por exemplo, os
adornos (fitas, retalhos, dentre outros elementos cenográficos da indumentária)
não são somente acessórios, pois constituem a visualidade de sua negrura
marcando a textura do traje que se movimenta, expandindo o alcance da
expressão corporal em espaço público. As imagens referenciadas nos permitem
discriminar as três formas de estruturação do cortejo de rua. Em "A Rua da
Amargura”, o cortejo faz parte da primeira parte do espetáculo que acontece
antes da encenação assumir o palco italiano, já que a encenação é dividida em
dois momentos. O primeiro movimento do cortejo, no espaço aberto, que encena
a natividade do menino Deus, aborda o anúncio da vinda do messias, a visita
dos reis magos e a fuga da sagrada família para o Egito por conta do algoz
Herodes. O segundo momento do espetáculo, que acontece no palco, apresenta
a vida adulta do protagonista, os milagres realizados como a multiplicação dos
pães, o sermão de Jesus, a Santa Ceia, o encontro com Madalena, entre outros
quadros, até a encenação se fixar nas estações da via crucis (ou calvário) que
localiza a amargura vivida pelo protagonista.
Como dito, anteriormente, é na primeira parte da encenação que
encontramos, mais claramente presente, elementos da manifestação negra da
folia de reis, que, como toda manifestação negra de rua, organiza-se enquanto o
cortejo do corpo coletivo em ação e agente construtor de gestualidade.

13
- Ver figuras 02,04 e 25
A prática dos cortejos em diversas culturas é registrada por meio de
descobertas arqueológicas, nas quais se configuram celebrações
pintadas em vasos, jarros, monumentos, templos, tumbas, pilastras e
uma diversidade de artefatos. Ao longo dos anos, que se seguiram na
Antiguidade, o ser humano não deixou de festejar, surgindo diversas
formas de celebração por razões variadas, realizadas nas ruas e
praças das cidades ou vilarejos. (LABORDA, 2013 p. 179-180).

A prática dos cortejos, cujo registro reporta às civilizações mais afastadas,


demarca as diferentes formas encontradas pelas coletividades para
contextualizar sua relação com seu entorno, natureza e ou o cosmo,
configurando, ao longo do tempo, um conjunto de valores associados ao corpo
coletivo ou à comunidade. Ambos os cortejos, aqui retratados, têm elementos
em comuns referentes à disposição dos atores participantes, sempre um à frente
e os demais formando duas ou mais filas. Podemos perceber como a forma da
vida em movimento, ordenada pelo cortejo, determina os lugares ocupados, as
funções desempenhadas. Ela influi nas posturas dos e das participantes, na
medida em que seus corpos avançam e delimitam o tempo-espaço próprio do
acontecimento, físico e metafísico, cotidiano e artístico, cujo balanço faz o tronco
se mover em torno de seu eixo, assim, o giro remete ao começo que retorna,
impulsionado à continuidade do gesto gerador de vida.
Em sua maioria, os cortejos públicos de caráter civil-religioso eram
organizados na colônia pelas irmandades católicas, inclusive os de homens
negros livres; junto delas existiam manifestações diversas que uniam,
coletivamente, elementos dispares europeus, africanos e americanos. Nesse
sentido, com o passar do tempo, tais expressões da vida em movimento se
converteram em espaços-tempos da resistência e da memória praticada pelos
negros e negras em suas performances diaspóricas.
À vista disso, “A Rua da Amargura” carrega consigo uma série de
elementos culturais da negrura em movimento na Folia de reis e no Congado,
em sua musicalidade condutora da ação e da dança, em sua instrumentação
baseada numa rítmica africana, assim como, no que concerne à ordenação e à
função das distintas figuras. No cortejo “A Rua da Amargura”, o ator Eduardo
Moreira vem à frente do cortejo-espetáculo, cumprindo a mesma função
cênico-narrativa do Bandeirista, na Folia de Reis, e do mestre congadeiro, no
Congado, pois, ele é quem dita o ritmo, ao puxar os cantos.
Vale recordar que o cortejo para folia de Reis repete a peregrinação de
outrora feita pelos reis magos ao lugar de nascimento de Jesus. Mais que uma
representação, a folia repete, atualizando, a ação passada, pois refaz o
percurso, visitando as casas do local em busca de acolhida e, na oportunidade,
recebem donativos. Por outro lado, no congado, o cortejo caminha na direção da
santa, andando sob as águas, após ouvir o tambor, que ecoa o clamor dos
negros. Atendendo ao chamado, ela sai em cortejo com os negros para mostrar
aos brancos que atendeu aos pedidos dos escravizados. Por sua vez, esses
cortejos ganham significado sobre a trajetória do negro na sua diáspora negra
até as américas; enquanto, em a “A Rua da Amargura”, o cortejo tem por alvo as
matrizes festivas mineiras, gerando, assim, de imediato, um reconhecimento do
público acerca do corpo em desfile das Minas Gerais, repleta de cortejos,
procissões e tradições festivas. O cortejo anuncia a presença do corpo coletivo
em ação que, ao se deslocar, demarca o corpus dos valores expressivos da
comunidade, proporcionando, dessa forma, a emergência de vetores de
identificação subjetivos com as motrizes culturais em comum.
Uma vez delimitado alguns dos processos de empréstimo, diferenciação e
partilha dos elementos constitutivos dos folguedos e do espetáculo teatral,
vamos voltar a atenção ao conceito de motrizes culturais, desenvolvido por Zeca
Ligiero em seus estudos sobre as performances afro-indígenas (1993) para, a
partir delas, qualificar melhor o debate proposto até agora sobre a negrura na
contemporaneidade.

3.3- Motrizes culturais presentes em “A Rua da Amargura” do grupo Galpão.

Do ponto de vista da negrura, os valores expressivos da vida em


movimento estão associados ao referido trio: “Dançar, Cantar e Batucar”, a partir
do qual Ligiéro constrói, em suas pesquisas, o conceito de motrizes culturais
para entender quais são os conjuntos de dinâmicas culturais que recuperam
comportamentos ancestrais africanos na diáspora:

O conceito de Motrizes Culturais será empregado para definir um


conjunto de dinâmicas culturais utilizados na diáspora africana para
recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto
chamamos de práticas performativas e se refere à combinação de
elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre
outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas
manifestações do mundo Afro-Brasileiro. (LIGIÉRO, 2011 p. 130).

O conceito de motrizes culturais nos permite uma leitura renovada da


pathoformel de Aby Warburg (2010) ao insinuar, pela via de suas formulações
patéticas, outras figuras da vida em movimento e de sua relação com o cosmo.
Podemos perceber que o conceito compreende um conjunto de práticas
performativas cujos elementos, segundo o autor, são agrupados na diáspora
africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos como
observamos, por exemplo, no Congado. As motrizes do movimento estão
relacionadas à importância da oralidade e da gestualidade nas culturas africanas
que, com o tempo, transformaram-se em formas incorporadas que transmitem
os comportamentos ancestrais atualizados nas performances, celebrações e
cortejos que animam o corpo coletivo da negrura.
Desse modo, o conceito não limita os signos incorporados somente ao
fenótipo ou cor, assinalando que é na sua combinação de música, canto e dança
que reside a negritude das performances da Folia de reis e do Congado. Frente
a essa percepção, voltada para o espetáculo “A Rua da Amargura”, pergunta-se:
quais são as motrizes culturais que podemos identificar no que diz respeito ao
espetáculo, como forças geradoras de negrura na cena? Registra-se, ainda, que
essa questão fora motivada pelas provocações advindas das leituras de Martins
(1995).
A ideia de motrizes parece ir ao encontro da noção da negrura elaborada
por Martins (1995) em seus estudos como, também, a sua concepção de
performance do tempo espiralar (2021). Em virtude da diáspora, os signos de
negrura se fundam em uma estrutura de dupla fala e de significado mascarado,
ou seja, as suas manifestações se situam numa encruzilhada de significantes
que manifesta, dramaticamente, o mesmo processo de jogo que já assinalei
(MARTINS, 2002). O jogo que Martins (2002) considera é o do duplo enunciado
que, muitas vezes, manipula os códigos linguísticos para a sobrevivência da
negrura em diáspora e, aqui, destacaria, inclusive, do modo como esse jogo
temporaliza a relação dos negros e/ou negras com os signos nesse contexto
diverso:

Assim, a dupla fala é característica da teatralidade negra diaspórica.


Um dos elementos que nos permite reconhecê-la e relacioná-la com a
experiência do negro no ocidente, dentro da diversidade geográfica e
temporal das manifestações, é justamente a tecnologia do negro para
a recuperação da sua imagem e reatualização da sua cultura.
(CHAVES, 2020, s.p)

O cortejo se tornou uma das tecnologias empregadas por negros e


negras na reconstituição de um terreno em comum fora da África, assumindo, ao
longo do tempo, papel de elaboração de determinadas formulas patéticas
expressivas da vida em movimento no novo continente. O cristianismo ou
catolicismo negro que se depreende dos estudos acerca do congado merece ser
visto pela ótica que o torna distinto daquele outro cultuado na Europa, ou
melhor, na Península Ibérica. Na medida em que o cortejo faz da negrura uma
rede de relações entre os signos partilhados pelos escravizados e ou
escravizadas, a transmissão de seus valores e as lutas de resistência que não
se separam da religiosidade, da ancestralidade e da sacralidade, dos corpos
negros giram livremente pelo mundo dos brancos.
Buscando avançar na discussão da negrura, como signo em rotação,
percebe-se em cada quadro de que modo se apresenta a estrutura cênico-
dramatúrgica de A Rua da Amargura. Para tanto, temos como fontes para essa
reconstrução do espetáculo: as fotos do espetáculo registradas por Guto Muniz
em 1994, a gravação de uma apresentação do espetáculo na cidade de Passos,
em 1996. A gravação foi gentilmente cedida pela atriz do grupo Galpão Inês
Peixoto. O vídeo, aqui, serviu como uma das vias elencadas pela pesquisa para
a recuperação do acontecimento teatral.
Importante salientar que o espetáculo surgiu da adaptação de Arildo
Barros, partindo do texto de Garrido. Conforme já apontado, o espetáculo foi
concebido em duas partes que, reunidas, apresentam alguns quadros sobre a
vida de Jesus. A primeira parte pode ser vista como uma espécie de prólogo que
foi acrescentado pelo grupo para ilustrar o nascimento do menino Deus, as
visitas das pastoras, dos Reis magos e a fuga para o Egito. Já a segunda parte
é dedicada à fase adulta de Jesus e à sua morte.
Ao todo temos em torno de 17 quadros, mas, aqui selecionamos aqueles
que consideramos chaves para compreender os signos da negrura que, na
proposição desta dissertação, aparecem enquanto motrizes diaspóricas
operadas na sua constituição do cortejo. Na primeira parte do espetáculo, no
quadro da natividade, podemos destacar alguns signos que remetem à mescla
entre o erudito e popular, enquanto uma marca, inclusive, do espetáculo e do
encenador. Essa mescla, segundo o argumento criativo do espetáculo, emerge
da busca por uma linguagem associada à brasilidade no trabalho,uma busca do
encenador para a construção estética do espetáculo, mas que nesta pesquisa
vem sendo classificada como uma linguagem com signos de negrura da folia de
reis e do congado em rotação por meio das motrizes diaspóricas negras
utilizadas e reelaboradas na encenação. Nesse sentido, temos um conjunto de
canções eruditas e clássicas somadas às oriundas da folia de reis e da cultura
popular; além disso, os figurinos dos atores são confeccionados de materiais
rústicos e coloridos, aproximando-se, dessa maneira, da paleta de cores da folia
de reis e, também, do congado.

É preciso observar que o figurino é complementado por acessórios como


fitas e outros apetrechos que contribuem para a expressão do movimento do
corpo coletivo em espaço aberto, na medida em que expande no espaço da
evolução o tempo de sua execução. Os atores e atrizes surgem em cena como
se fossem um grupo de foliões que celebram o nascimento do menino Deus; tal
qual encontramos nas folias que, contam, ainda, com uma instrumentação
aproximada àquela presente na manifestação festiva e religiosa. Elementos
esses que, uma vez agrupados na constituição dos quadros, são redefinidos em
função do contexto teatral o qual, por sua vez, transporta-os para uma dimensão
renovada: a negrura como constituinte do universo renovado do
nacional-popular.
A cena de abertura mostra como os valores expressivos da vida em
movimento, elaborados pelos festejos diaspóricos negros, são atualizados pelo
teatro de rua mineiro buscando, por meio deles, estabelecer uma linguagem
cênico- dramatúrgica capaz de comunicar a brasilidade da sua cultura e ou de
seu povo. O gesto “modernista” da encenação (barroca) se completa quando, na
sua apresentação em Ouro Preto, contava com o cenário arquitetônico e natural
da cidade e, ainda, com o ator Antônio Edson que interpreta o menino Jesus, um
homem com traços de fenótipos negros. Desse modo, essa escolha contribuía
para a “brasilidade” da “natividade”, distanciando o gênero de sua imagem
eurocentrada: “A companhia gravou sua marca no prólogo da natividade, de
formas diversas. O menino Jesus é representado por um adulto pequeno e
baixo, que, fisicamente, sugere a fusão das etnias indígenas, africanas e
europeias inerentes à identidade brasileira” (ALVES; NOE. 2006 p.116).
A escolha do ator para interpretar o menino Deus é uma maneira de
traduzir a busca pela nacionalidade baseada na investigação e na elaboração de
uma linguagem artística ligada às matrizes linguísticas e culturais populares.
Trata-se, portanto, de uma estratégia basilar para o encenador na construção
do discurso sígnico da encenação. Porém, se observamos na imagem abaixo,
veremos que a sua presença no espetáculo era uma exceção na companhia:
Figura 26 – Foliões e o menino Jesus.
Fonte: Foco in cena – Guto Muniz (1994) Disponível em:
<www.focoincena.com.br>
Acesso em: 09 Mar de 2023.

Martins (1995) parece sugerir que para se falar em teatro negro não
basta considerar apenas o fenótipo do espetáculo, sendo preciso observar ainda
o sistema de signos que o inscreve como outro no mundo colonizado dos
brancos. Ou seja, antes de pôr em cena as personagens, é preciso constituir o
território semiótico em comum de sua presença revelada pela relação entre
música, canto e dança, que são complementados pelos figurinos e adereços,
elementos que informam os valores expressivos combinados e impulsionam o
movimento corporal na cena. Nelas os foliões entoam músicas que mesclam
diferentes ritmos musicais: “Hallelujah”G,F, Handel, adaptação de Ernani
Maletta, Romã Romã de Antônio Madureira, Ronaldo de Brito e F.A de Souza
Lima , Canção de apresentação da Folia de Reis, Companhia do menino Jesus
de Carmo do Rio Claro.
Essa combinação de ritmos, associados às músicas erudita e popular,
acaba alterando ambos os universos dos registros que são postos em circulação
e convertidos, por meio da síntese dos elementos díspares europeus e não
europeus, em signos renovados, como vemos, por exemplo, na busca pela
atualização do traje da Folia de Reis para figurino de teatro. Na imagem acima,
os trajes das manifestações espetaculares negras estão ligados às forças
motrizes, servem ao ritmo do cortejo e parecem criados para a função do
movimento e de sua expressão máxima em espaço aberto, devido às suas
cores, formas e adornos, marcadamente simbólicos. Elementos que geram uma
gestualidade enraizada na cultura negra. Segundo Merlo (2016):

Os trajes são pensados, portanto, como meios de se posicionar em


uma sociedade abrangente e desigual. E também como elementos da
atualidade que se inserem na tradição, sobretudo ao refletirem modos
de ser, pensar, sentir, fazer. Ou, ainda, podemos entender como os
trajes populares, dentro de manifestações que recriam identidades de
grupos minoritários, assimilam novos elementos desde a sua
composição até suas constantes reinvenções. (MERLO, 2016, p. 60)

Nesse sentido, o figurino do espetáculo pensado por Maria Castilho e


Wanda Sgarbi traz em seu enunciado muitos signos da negrura que são lidos
em função de sua atuação na cena. Por meio de seu emprego, percebemos a
intenção da encenação de localizar o espetáculo mineiro. O figurino ligado à
música traz para a gestualidade empenhada, em cena, a ampliação desta por
meio dos movimentos dos adornos que compõem o figurino. Temos na estética
do figurino elementos que remetem à ideia de mineiridade da encenação, uma
vez que foi pensada a partir das festividades da cidade natal do diretor, Carmo
do Rio Claro. Nesse caso, a folia, propriamente dita, ganha outra vida na
coreografia em associação com os diferentes ritmos que compõem o repertório
cultural do espetáculo.

Figura 27 – Foliões e a instrumentação.


Fonte: Foco in cena – Guto Muniz (1994) Disponível em:
<www.focoincena.com.br>
Acesso em: 09 Mar de 2023.

Não podemos deixar de lembrar que a música de matriz africana não se


apara da dança e do canto, estando, muitas vezes, ligada ao universo do
trabalho, da sexualidade e da vida comunitária. Assim, os sons materiais são
importantes na construção de uma linguagem teatral, assentada na relação das
manifestações espetaculares afrodiaspóricas religiosas com as outras matrizes
que, reunidas, informam a miscigenada musicalidade de cena.

Dessa forma, as motrizes afro-brasileiras são capazes de reconstruir


na diáspora um espaço-tempo em comum nas Américas
reconfigurando, aqui, os elementos étnicos originários de diferentes
países da África inscritos em rituais e festividades oriundos daquele
continente, mas, reprocessados e recriados dentro do contexto
opressivo colonial português ou espanhol. Muitas vezes, esse processo
de tradução foi tutelado pela igreja e sob o guarda-chuva de um santo
protetor, em que o ritual africano é restaurado dentro de uma nova
moldura cristã, como foi o caso da congada ou da folia de reis.
(LIGIÉRO, 2017, n.p.)

“Dentro de uma nova moldura cristã” não significa necessariamente


ausência de resistência do signo de negrura diante desse novo contexto
colonizado, mas uma negociação que, por meio do duplo enunciado, afirma a
diferença irredutível no interior da síntese nascida da “brasilidade” do repertório,
que, no palco, distinguia-se pela beleza sonora e visual do espetáculo forjada,
em grande parte, “pela harmonia das músicas pela perfeição do canto [...]”
(ALVES; NOÉ. 2006 p.117).
O ponto alto e forte do grupo Galpão é o fato de ser formado por atores-
dançarinos-músicos que, por sua vez, agenciam esse conjunto de signos em
função da performance nascida das narrativas incorporadas. No espetáculo, o
grupo contou com os arranjos de Fernando Muzzi e Ernani Maletta. Arranjos que
tiraram partido de uma combinação musical em diálogo com ritmos distintos, em
seus timbres e pertencimentos, orquestrados em função da negrura da folia de
reis e do congado. Podemos constatar o agenciamento dos signos de negrura
pela instrumentação tocada pelo elenco, majoritariamente, branco, auxiliando
em suas respectivas performances a ressignificação das próprias canções que
geram aproximações e reminiscências afrodiaspóricas14.
Resgatando o conceito de motrizes, vemos na figura 27 – Foliões e a
instrumentação, que os atores portam a instrumentação típica de batuques e
cortejos negros na configuração do trio ancestral das reminiscências negras nas
manifestações culturais: o batuque. O batuque está ligado ao rito e ao culto
religioso e, nesse contexto, conduz seu andamento e as mudanças na sua
evolução; por outro lado, serve como comunicação entre os seus membros, os
ancestrais e os orixás, articulando as diferentes fontes de enunciação e suas
respectivas temporalidades incorporadas na performance que, pela via da
música, da dança e do canto se enovela no terreiro do mundo.

Tais motrizes animam a segunda parte do espetáculo que relata a vida


adulta do protagonista e os passos lacrimosos do martírio. Nessa parte, os
quadros “vivos” buscam sintetizar a vida de Jesus e os momentos importantes
de sua trajetória até a morte na cruz, mote central da dramaturgia, para a qual
alguns quadros foram criados a partir da pesquisa das imagens sacras mineiras.
Partindo delas, as cenas foram coreografadas, segundo um repertório gestual
formado do acervo visual sacro-barroco mineiro, caminho de trabalho justificado
pelo diretor.
Os quadros são muitos e por se tratar de uma investigação em torno das
motrizes culturais, selecionei dois deles: quadro 4 - Jesus e Maria Magdalena

14
- Lembrando que a noção de reminiscência aqui é tomada de empréstimo de Walter Benjamin e
situada no contexto performativo do tempo espiralar.
(Figura 11) e quadro 10 - A ressurreição (figura 24). São quadros, dentre outros
vários nos quais percebo a diáspora dos elementos que investigo.
O quadro 4 retrata o momento que Magdalena encontra com Jesus e se
livra do apedrejamento. Na figura 11, podemos identificar a súplica expressa no
pedido de clemência ao salvador para que não seja apedrejada. Essa mesma
gestualidade pode ser recortada nas duas manifestações espetaculares negras
deste estudo. No Congado, o quadro da súplica de Maria Madalena permite
comparação ao dos negros vendo a santa saindo das águas. Neste quadro, os
negros se valem do mesmo gesto dirigido à santa para que atenda aos seus
pedidos; ressalta-se que a cena é acompanhada pelas batidas do tambor que
anuncia a emersão. Por outro lado, na Folia de Reis temos a cena do encontro
do cortejo com o menino Deus, no interior da casa que visitam, mediado pelo
gesto de clemência.
Sendo assim, o valor expressivo da clemência da súplica se repete, no
teatro e nos dois ritos, mas com importantes diferenças; sobretudo; no que diz
respeito à natureza dos três coletivos que agenciam as narrativas em função de
seus respectivos propósitos. Guardadas as devidas particularidades do gesto
nos três casos, podemos pensar que, no gesto da atriz, encontramos uma motriz
cultural oriunda da diáspora que, em seu contorno mais geral, inscreve no “gesto
cristão” a forma mais negra da súplica. O signo de negrura surge alterando o
sentido cristão da clemência no quadro de Magdalena e Jesus. O
comportamento restaurado pelo espetáculo do Congado e da Folia de Reis o
inscreve no interior de um outro coletivo delimitado pelas fronteiras do teatro de
grupo no Brasil. Essa inscrição criativa informa a pluralidade das manifestações
afrodiaspóricas e de sua contribuição, deslocada, à formação dos valores
expressivos da vida em movimento, desde a Colônia, especialmente, em Minas
Gerais:

A pluralidade das culturas trazidas da África negra apresenta um


paralelo com a multiplicidade das culturas nativas das Américas. Para
melhor entender o paralelismo de suas performances culturais torna-
se importante pensar tanto os respectivos contextos sociais, étnicos e
históricos, bem como suas concepções filosóficas e crenças
condensadas nos elementos comuns, que as compõem, submetidos a
processos que tenho definido como “motrizes culturais”, empregados
no restauro/reiteração de comportamentos ancestrais tanto no âmbito
do ritual como em arenas do divertimento contemporâneo. (LIGIÉRO,
2017, n.p.)

A restauração dos comportamentos ancestrais, nesta análise, segue o


rastro dos valores expressivos da vida em movimento, elaborados, ao longo do
tempo, pelos cortejos da Folia de Reis e do Congado; logo, traduzem-se como
signos culturais da negrura na diáspora e em paralelismo com a dinâmica motriz
geradora em comum.
O signo de negrura retorna na cena do quadro 10 (Figura 24). Nela temos
os signos da negrura inscritos no catolicismo branco e, por sua vez,
transformados em signos do imaginário popular mineiro. Leda Maria Martins e
Zeca Ligiéro já entendiam dos trânsitos étnicos e culturais como constituintes da
vida e da arte na diáspora. Vida e arte que, segundo Leda Martins, demarcam
as encruzilhadas:

A encruzilhada, locus tangencial, é aqui assinalada como instância


simbólica e metonímica, da qual se processam via diversas de
elaborações discursivas, motivadas pelos próprios discursos que a
coabitam. Da esfera do rito e, portanto, da performance, é o lugar radial
de centramento e descentramento, interseções, influências e
divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergências,
unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de
linguagens e de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é
geratriz de produção, as noções de sujeito híbrido, mestiço e liminar,
articulado pela crítica pós-colonial, podem ser pensadas como
indicativas de efeitos de processos e cruzamentos discursivos
diversos, intertextuais e interculturais. (MARTINS, 1997, p. 28)

Gabriel Villela, em entrevista, afirmou que a igreja católica e o imaginário


cultural mineiro guiam sua estética na montagem. A figura 27: Foliões e a
instrumentação é da cena do retorno dos foliões da primeira parte para o
encerramento do espetáculo, retorno que pode ser visto, tendo em mente as
palavras do diretor, como do imaginário cultural mineiro, à cena contemporânea,
mas, também à sua motriz negra.

Ao longo da pesquisa, busquei reconstruir, por meio da fortuna crítica e


das fontes pesquisadas, os elos de ligação entre as práticas teatrais e as
manifestações culturais negras em Minas Gerais de um ponto de vista mais
recente, visando, antes de tudo, circunscrever e compreender a gestualidade
como um modo de comunicação e transmissão de saberes cênicos, fortemente,
difundidos na região através do Congado e da Folia de Reis. Entender tais
manifestações como motrizes quer dizer, também, vê-las como contextos
criadores e disseminadores de valores expressivos da vida em movimento que,
no caso, estariam associados à negrura e suas relações com o mundo e a vida,
tal qual com o cosmo, num sentido mais amplo, quando desfila em cortejo, como
procurei mostrar ao longo da discussão.
O gesto interpretativo, aqui, ensaiado de reconversão da noção de
pathosformel, enquanto fórmula da vida ativa, segundo cunhada pela
antiguidade pagã européia, ao universo motriz das práticas cênicas negras nas
Américas, particularmente em Minas Gerais, pretendeu reconhecer a
contribuição dos cortejos públicos para a história das artes cênicas. Desde a
colônia, as artes cênicas transmitiram seus significantes esquemas corporais,
conforme foram e são inscritos em diversos contextos semióticos, elaborados a
partir e em torno da linguagem cunhada pelos festejos coletivos originários da
presença múltipla africana no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS POR ENQUANTO...

A pesquisa não pretendeu esgotar um assunto tão amplo e complexo


como o da negrura na cena mais recente mineira. No entanto, buscou sugerir
alguns passos nessa direção, por meio da investigação dos valores expressivos
da vida em movimento constituídos, ao longo do tempo, pelos cortejos. Conforme
visto, eles estão ligados às manifestações culturais diaspóricas em suas matrizes
e motrizes, uma vez que ambas recuperam a temporalidade dessas
manifestações e se deslocam e se reelaboram, na contemporaneidade.
As manifestações foram entendidas como territórios mnemônicos, pois
guardam um acervo comum de expressões singulares da negrura, inclusive,
daquela que procurei destacar em “A Rua da Amargura”. Transmissão
assegurada pelos esquemas corporais significantes que se alteram em função de
seus diferentes contextos de experiência. Assim, procurei pensar, no gesto em
movimento, nas manifestações e no espetáculo, para além do ponto de vista de
sua espacialidade, abarcando seu giro em suspenso, o tempo que se repete uma
segunda vez com diferença. Diferente da Folia de Reis, matriz de pesquisa e
construção do espetáculo informada pelo diretor, o Congado surge, neste estudo,
enquanto um segundo elemento da presença mais geral das matrizes diaspóricas
no espetáculo, especialmente, em sua performance teatral criada no encontro da
música com a dança. Por esse motivo, focalizei mais nas semelhanças que nas
diferenças que as constituem, começando pelo contexto, pelos praticantes e
pelas formas de relação que tecem entre o universo particular dos três eventos e
a vida em geral.
A fronteira entre ritual e teatro é aqui explorada procurando desfazer,
justamente, a perspectiva dominante que os toma como entidades isoladas na
vida coletiva. Por outro lado, ela depende da matriz de conhecimento que
articula a inteligibilidade dessa relação e discrimina o campo da arte do da
religião na vida cotidiana. No caso do espetáculo em discussão, a questão da
ressignificação dos signos do movimento passa por sua inscrição no universo
das motrizes diaspóricas transformadas, ao longo do tempo, em expressões da
cultura popular e brasileira por uma questão de apagamento das reais motrizes
e matrizes geradoras de espetacularidade. Sob esse olhar, as motrizes negras
festivas são oriundas na vida em movimento diaspórica negra e presentes nos
cortejos e na vida coletiva cultural dessa parcela da sociedade.
O gesto da encenação de combinar elementos eruditos e populares,
europeus, indígenas e africanos, segundo alguns testemunhos, compreendia a
própria linguagem que se desejava “mineira” e “barroca”. Porém, lembrando do
duplo enunciado presente no teatro negro e nas manifestações diaspóricas,
enquanto estratégia de resistência e de existência, conforme assinalado por
Leda Maria Martins. Desse modo, busquei ressaltar da síntese elaborada no
espetáculo, os termos mais evidentes da negrura. Mesmo que o corpo coletivo
do grupo Galpão seja diferente daquele responsável pela performance na Folia
de Reis e no Congado, a negrura como construto semiótico marca a cena em
sombras.
Olhar a relação entre as duas manifestações e o espetáculo do ponto da
diáspora é, ao mesmo tempo, tomar a encruzilhada como lugar de pensamento
das artes cênicas; logo, das relações de força e de troca que constituíram,
historicamente, às formas expressivas heterogêneas e dinâmicas da vida em
movimento. Sob essa perspectiva, elas se tornaram campos de luta e de
resistência dos negros e das negras escravizados e/ou deslocados de suas
terras de origem para as Américas.
Minha busca foi a de compreender de que maneira as manifestações
espetaculares negras e festivas retornam em alguns espetáculos teatrais e,
como nesse movimento e seus signos operam semelhanças e diferenças,
conforme seu deslocamento ou sua dinâmica. A partir desse trânsito entre rito e
teatro, observei o comportamento da negrura posta na cena contemporânea de
Minas Gerais.
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