Você está na página 1de 146

Título original: Alter Ego.

Copyright © 2023 L.S Englantine.


Texto de acordo com as novas regras ortográficas da Língua Portuguesa. 2ª edição 2023.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer
maneira ou por qualquer meio, eletrônico ou físico, inclusive fotocópias, gravações, ou sistema de
armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, com exceção de citações curtas
utilizadas em resenhas críticas, artigos ou divulgação em mídias sociais. Esta é uma obra de ficção.
Todos os personagens, localidades e acontecimentos históricos e/ou atuais retratados neste romance
são produtos da imaginação da autora e utilizados de modo fictício, sem qualquer referência à
realidade. Direito de imagem à Plataforma Digital Canva.

Arte de Capa: Vee Art (@c.vitoriart)


Tipografia: Alycia Carvalho
Revisão: Raianne Viana
Leitura Sensível: Marcela Fontes
Diagramação: Lara Silva.
Ilustração: Ana Paula Arte (anaparte)
para protagonistas de
suas próprias histórias.
os meus e os seus.
e aqueles que ainda virão
(e para as novas versões de velhas obras)
“Minha mãe sempre disse
que rico é rico, pobre é pobre,
mas sempre que eu via ela, eu esquecia”
– Filme Era Uma Vez…
notas & avisos:

Saudações para aqueles que deram a oportunidade para o meu livro


ser escolhido ao meio de tantos. Este livro é ambientado e feito como uma
novela, então, ele é para ser apreciado como uma novela.
Esta é uma obra de ficção.
Eu escrevi a primeira versão deste livro em 2018, no Wattpad. Se
passava na Inglaterra e sempre foi uma história xodó. Por este motivo,
quando decidi colocá-lo na Amazon, percebi que vários conceitos da obra
tinham congelado no tempo, ficado em 2018, e que eu nunca consegui
consertar.
Hoje, posso orgulhosamente admirar esta nova versão! Ainda é um
pouco afastada do que gosto de escrever atualmente, mas é maravilhoso
poder trazer um frescor digno, jovial e atualizado da obra.
Decidi retrazer uma história tão querida por mim e por alguns
leitores.
Antigamente, Alter Ego trazia personagens parecidos com estes,
mas ainda assim, diferentes. A minha insatisfação verdadeira começou
quando percebi que, nem de longe, poderia mostrar para vocês quem
aquelas pessoas realmente eram. E não pude falar abertamente sobre o
medo de tempestades que me afligiu por tanto tempo.
Em suma, o Zeke continua existindo. Como poderia não existir? Ele
vive como um personagem diferente, assim como a Mallery. E assim como
Mariana e Noah são personagens novos.
Esta reescrita cabe com o que quero mostrar na escrita e o que
quero repassar voltando para as minhas raízes. Espero que gostem!
Em suma,
Boa leitura!
Mariana & Noah:
Parte I: sexta-feira

“Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com


frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar.”
— WILLIAM SHAKESPEARE.
Um: mariana

eu não lembro de onde veio o real pavor. quando vi, estava alastrando-
se pelo meu corpo como se me conhecesse há anos. ele, o pavor, me
cumprimentou como um bom amigo, acariciou a minha pele, retirou o
cabelo do meu rosto e ficou. ficou comigo e ainda está aqui.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

São Palomane, Estado de São Paulo, Brasil

Mariana Lange estava acostumada com o fracasso.


Era ele que tomava a maior parte de suas sórdidas decisões, e foi
ele que a fez sair de casa naquela tarde.
A garoa tímida invadiu o gorro que deveria protegê-la do frio. Seus
dedos dançaram nas cordinhas finas do agasalho para puxar o elástico que
envolvia sua cabeça e, assim, mantê-la como mais uma desconhecida no
fluxo acirrado de pedestres ao seu lado.
De cabeça baixa, ombros retraídos, corpo curvado, a garota
avançava pelas ruas de São Palomane com agilidade. Mariana desejava
comer tiras de frango frito, mas, com certeza, estaria interferindo no
protótipo de política de “boa” alimentação que tentava seguir para agradar
sua tia, Rúbi. Mariana andara lendo sobre sua relação com a comida, aliás.
Entendeu que as restrições alimentícias poderiam gerar um excesso
de compulsão. Proibir, restringir ou cortar um determinado alimento
acabava-se tornando tão maléfico quanto queriam fazer acreditar que um
pedaço de frango frito faria.
Na calçada, decidida a seguir caminho para um de seus restaurantes
fast-foods favoritos, tentou focar em algo de diferente — que não estivesse
envolvido em dramas familiares e pedidos inevitáveis de casamentos.
Mariana soltou todo o ar da boca quando um homem de meia-idade
lhe encarou no fundo dos olhos ao tentar atravessar a rua. Por sorte, ele
não a reconheceu. Uma pequena caminhada na avenida seria um sacrifício
caso fosse notada.
Sem precisar apertar o passo, pôde respirar aliviada, subindo os
últimos degraus do quiosque à beira da avenida.
O Senhor Frango não servia uns dos melhores banquetes quando o
assunto era frango frito, mas poderia ser o alvo ideal para matar sua fome.
— Ah. Oi! — Uma garota de sorriso doce atendeu Mariana,
observando-a retirar o capuz, logo na entrada. — Mariana, não é? —
questionou, sorrindo de nervoso. Ana, apelido de Mariana e como gostava
de ser chamada, assentiu, apoiando-se no balcão com o antebraço. — O de
sempre? Tiras de frango caipira meio-a-meio e apimentadas? Com molho
quatro queijos?
Divino, o sabor dos Deuses, pensou Mariana.
Ana deu uma boa espiada por entre o estabelecimento; era um dos
pontos escondidos na avenida que as demais pessoas não olhavam mais
do que duas vezes. Normalmente havia pombos perto da fachada e poucos
clientes aglomerados nas mesas de uma cor-amarelo-ovo que fazia sua
testa latejar.
— Não. — Negou com o dedo indicador, varrendo os olhos pelas
variedades de molhos que combinariam com as tiras de frango frito à
mostra na prateleira como exemplos. — Vou tentar algo novo hoje... quem
sabe... molho agridoce?! E, claro, é pra viagem!
— Ótima pedida! — A garota do balcão devolveu alegremente,
digitando no computador ao lado. — Quinze reais, então.
Ana sorriu.
Sempre gastava pouco para comer bem. Não importava que o
Senhor Frango parecesse duvidoso na maior parte do tempo, o frango fazia
tudo valer a pena. Remexendo no bolso do moletom, retirou as notas
coloridas, passando para o balcão.
— Gostaria de ajudar a caridade? — Catarina, Mariana leu pelo
crachá, sugeriu, erguendo um pequeno painel ao lado do computador.
A atendente apontou para um pequeno cofre feito de plástico de
segunda mão, com um furo retangular na superfície.
Catarina era fiel em sempre reconhecer Mariana e nunca abrir a
boca para dar um pio Não eram, necessariamente, amigas. Mas se
pudesse ficar mais tempo naquele restaurante, talvez tentasse conhecer
Catarina de verdade.
Talvez.
— Claro.
Deixando seus últimos trocados, Mariana colocou algumas
moedinhas no cofre decorado a mão. Refletiu seriamente que gostaria de
fazer mais do que apenas oferecer moedinhas a um cofre artesanal, mas
mentalizou que, um dia, o rumo de sua vida seria diferente.
Esperou alguns minutos até seu pedido ficar pronto: saco de papel-
pardo, um pouco gorduroso na base pela fritura.
Recuperando seu novo lanche, se despediu de Catarina com um
acenar de cabeça e um sorriso prático — ato que aprendeu com a tia: ser
educada, sem demonstrar seus reais sentimentos.
Recolocou o capuz e parou no primeiro lance da pequena escadaria.
Avaliou se andaria pela ciclofaixa; provavelmente seria atropelada por um
ciclista.
Também analisou se a chuva tipicamente paulistana deixaria de ser
uma simples garoa para algo carregado de tormenta. Ainda que estivesse
com tempo, Mariana não queria pagar para ver.
E embora pudesse seguir para a casa a pé, decidiu que cooperaria
um pouco com seu espião. Sorrindo de lado, abaixou ainda mais a cabeça
e marchou em direção ao outro lado da rua.
Ainda com o trânsito caótico, Ana não sabia responder como um
carro havia conseguido estacionar tão perfeitamente perto de uma banca de
jornal. Ainda mais naquela avenida.
Perto do veículo, puxou a porta do Sedã vermelho e aninhou-se no
banco de trás.
— Sua tia não vai gostar de saber que você tá comendo antes do
jantar — Copel, o motorista de seus tios, disse. Aproveitou para fechar o
jornal que estava lendo, apoiado sobre o volante.
Mariana não estava surpresa. Desde que começou a andar sozinha
pela cidade — sem hora para voltar — , seus tios enviavam Copel para
segui-la. Em dias comuns, era um porre. Em dias nebulosos como aquele,
era uma verdadeira salvação.
— E ela não gostará de saber que você está a chamando de "tia" —
rebateu ela, na mesma entonação prepotente.
Copel ajeitou o retrovisor para enxergar a garota no banco de trás.
Identificou o sorriso travesso de Mariana e apertou os lábios finos.
O homem ruivo e meio calvo respirou fundo.
— Estamos quites, então? — Por fim, perguntou. — Eu não conto, e
a senhorita não conta?
— Esse é o plano, Copel! — Mariana bateu uma pequena
continência.
Copel revirou os olhos verdes e deu partida.
Aos poucos, observou pela janela todo aquele movimento
característico da avenida desaparecendo, dando lugar à calmaria irritante
de seu bairro.
Mariana sabia perfeitamente que sua tia fazia um ótimo trabalho em
cuidar dela, assim como fizera nos últimos vinte e cinco anos. Rúbi, no
entanto, odiava o cargo de "tia". A matriarca acreditava ser jovem demais
para se rebaixar a uma figura que encantava, como as Fadas Madrinhas da
“Bela Adormecida”.
Então, mais do que tudo, preferia que todos a chamassem pelo
primeiro nome, dado em homenagem a uma joia rara e bela.
— Tem planos para hoje à noite? — Copel perguntou quando
pararam em um semáforo qualquer.
— Nem pensar. — Mariana, que já começara a comer as tiras de
frango frito, lambeu o dedo anelar, saboreando a escolha do molho
agridoce. — Por que sairia?
Copel fez uma careta pelo retrovisor.
— Sei lá, talvez porque você seja jovem.
— Péssimo argumento, Copel. Péssimo argumento.
Os dois soltaram pequenos risos.
Se perguntassem, Ana não conseguiria se lembrar de sua vida sem
Copel, ou sem o primo, ou sem os tios.
Com o tempo, a imagem de seus pais não invadia mais sua mente. E
mesmo que não gostasse de admitir, a cada dia um pouco da lembrança
paternal evaporava.
Em alguns episódios, sentia-se culpada por não conseguir se
lembrar ao menos do sorriso da mãe ou dos olhos do pai. Possuía inúmeras
fotografias, mas não eram páreas para a falha memória. Colecionava
gravações caseiras e presentes deixados por eles. Mas as lembranças, as
árduas e passageiras lembranças, não ficavam intactas como gostaria e,
com o tempo, perdiam-se.
Entretanto, seguiu em frente: falava sobre a morte dos pais sem
gaguejar ou engasgar.
Tinha apenas dez anos quando Marta e Sérgio Lange morreram em
um acidente de avião, ocasionado por uma tempestade grotesca que
atingiu os alpes da França. Mariana amaldiçoava-se por ser algo tão clichê,
mas não se via como a mocinha de um filme tão piegas assim.
Porém, não tinha como mudar, ainda que desejasse.
Em suma, nunca a deixaram sem um alento.
A Herdeira Lange, como era conhecida pela mídia, tornou-se uma
figura curiosa de se assistir com o passar dos anos.
Com uma rede bem empenhada de hotéis em seu nome, Mariana
teria que encarar o futuro em breve. Se não o fizesse, alguém o faria por
ela.
Sobre a fortuna dos pais, Mariana só receberia o dinheiro integral
quando se casasse. E não fazia questão que a "profecia" se realizasse.
Vivia muito bem com os tios, tinha uma boa vida e rotina.
Não queria ser a herdeira de uma rede de hotéis, mas era. Não
queria ser resumida por um belo rostinho e nem se preocupar com o
matrimônio precoce. Era besteira demais.
Nem todo o dinheiro do mundo poderia comprar sua felicidade.
— Entregue. — Copel estacionou de frente para a casa da Família
Lange. Mariana levou um breve susto, tão distraída entre seus
pensamentos que não havia reparado que já estava em casa. Não notou
quando passaram pelos muros e portões da propriedade privada, nem
quando passaram reto pela portaria. — Tem certeza que não vai sair hoje?
Posso te levar a qualquer lugar, Mariana. É só me pedir.
A sucessora dos Lange desconfiou, por um breve instante, que
Copel sabia o que tinha acontecido ontem à noite. Beber, dançar e se
divertir com desconhecidos seria uma boa pedida para esquecer tudo.
— Vai chover — ela avisou, indicando o céu da cidade com os olhos
castanhos e escuros. — Não quero estar na rua... sabe?
— Sei. — Copel sorriu tristemente. — Qualquer coisa, é só me
avisar. Tá bom?
— Sim, sim. Obrigada, Copel!
Na mesma velocidade em que entrou, Mariana deixou o carro que
abrigava Copel, pensando em todas as vezes em que desejou aceitar a
oferta.
Talvez pudesse abrir uma exceção sobre bom comportamento
naquele momento.
Dois: mariana

sempre me fiz caber em lugares apertados. lugares que nunca coube


e sequer se adaptavam para mim. sempre me fiz ser outra pessoa, alguém
que não condiz comigo e nem quem eu sou. às vezes, quando me olho no
espelho, deparo-me com uma estranha.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

A chuva tinha apertado um pouco, obrigando-a correr e pular os


degraus para chegar ao topo da entrada principal da casa. Equilibrando o
saco vazio que ainda cheirava a frango, abriu a porta com um leve
empurrão e fechou assim que passou.
Arrancou o capuz da cabeça, deixando que os cabelos, agora
divididos em tranças twist, despencassem pelos ombros.
Mariana sorriu para si mesma no reflexo do espelho do hall. Curiosa
e vacilante, seus olhos escaparam para a pintura a óleo da mãe, ao lado do
espelho. Seu sorriso esticou-se; estava cada dia mais parecida com Marta.
Com a mesma pele negra-escura — não retinta e nem muito clara —
, as mesmas pálpebras levemente fechadas, o nariz achatado e
arredondado na ponta. A mesma boca grande e cheia e a mesma altura
glamorosa, de célebres um metro e setenta e oito.
— Você chegou!
Um susto sobressaltou seus ombros.
Mariana respirou pela boca, observando a tia Rúbi descer as
escadas com os braços erguidos e abertos, alegre. Com agilidade, jogou os
vestígios do saco de frango no lixo mais próximo e sorriu para a parente.
Rúbi trajava elegantes vestes de festa, um vestido dourado e brincos
de pérolas.
— Passou muito tempo com as Irmãs Ferreiras? — questionou a tia,
terminando de descer as escadas.
Apesar de parecer, as Irmãs Ferreiras não eram nenhuma
comunidade religiosa de freiras, pelo contrário; se tratava de grandes
amigas da família que adoravam Mariana.
No entanto, Mariana passou a maior parte do tempo andando de
metrô, sem rumo e comendo em barraquinhas de rua. Definitivamente, não
tinha nada a ver com socialites receptivas.
— Sim — mentiu.
— Fico feliz que sim. — Rúbi retirou duas peças de tranças do rosto
de Mariana. Gostava de se ver no rosto da sobrinha. — Ultimamente você
anda tão... recolhida.
A sucessora ergueu as sobrancelhas; a tia estava sendo modesta.
Rúbi era irmã direta de sua mãe, Marta. E se parecia com a falecida
integrante Lange tanto quanto Mariana. De estrutura baixa, Rúbi possuía
fios alisados quimicamente e sempre tinha um sorriso esbelto no rosto.
Apreciava comentários passivos-agressivos também.
Rúbi amava Mariana como se fosse sua filha.
— Enfim, como não vai responder, preciso dizer que um jornal da
cidade ligou aqui hoje mais cedo — disse Rúbi, aproximando-se do espelho
e limpando o batom da borda dos lábios. Mariana sabia o que viria a seguir.
— Eles querem fazer uma matéria com você, meu amor. Algo sobre jovens
muito bem-sucedidos com pouca idade. Aquelas matérias de sempre sobre
estrelas antes dos trinta anos que serão ainda maiores aos quarenta.
— Interessante, mas não sou uma Kylie ou Kendall Jenner, ti... —
Tentou Mariana. Rúbi mediu seus olhos severamente na garota. — Rúbi —
corrigiu-se. Satisfeita, ela voltou a se analisar no espelho. — Não sou bem-
sucedida.
— Mas é herdeira. A nossa sucessora.
— Não acho que seja a mesma coisa! — Mariana apoiou-se em uma
mesa de vidro, acompanhando o raciocínio. — E o dinheiro todo só cairá na
conta quando eu me casar, então...
— Porém, é uma boa ideia. — Rúbi trouxera Mariana para mais
perto, segurando o queixo da sobrinha entre os dedos. — Você é
excepcionalmente linda, meu amor. Inteligente e talentosa. Temia que
ninguém descobrisse isso, mas estão percebendo aos poucos. Uma
matéria ali, outra aqui. De repente, poderá fazer campanhas. Revistas. Por
que não?
Mariana não tinha redes sociais abertas, nem perfis falsos ou contas
reservas. Nada. Seu silêncio virtual sempre fora uma incógnita para a
imprensa e para os jornalistas mais curiosos que ainda insistiam em
conhecê-la.
Há duas semanas, no entanto, Mariana estreou no cinema. Fizera
uma participação especial em um filme de comédia romântica, de uma
diretora brasileira que estava começando a crescer no exterior. Sua
recepção pela crítica foi péssima. Turbulenta. Horrorosa. Intragável.
Assistindo a si mesma na telona de um cinema, Mariana perguntou-
se por que aceitou participar de algo tão importante, visto que se
encontrava tão despreparada. Ser atriz nunca fora um desejo ou um sonho.
Jamais tinha estudado teatro e, mesmo assim, aquela oportunidade havia
caído em seu colo feito uma maçã direto do galho.
Que sentido fazia?
As críticas negativas salpicaram os jornais e as manchetes por dias.
E Mariana, enfim, aprendeu a lição.
Ficar longe de visibilidade sempre.
— Porque a fama veio de uma forma errada, Rúbi. — Suspirou. —
Nem meus pais eram tão conhecidos... só querem me conhecer... porque
eles morreram. Consegue me entender? — argumentou calmamente,
embora a garganta estivesse ameaçando fechar. — Se eu não fosse... filha
deles... o que me restaria?
— Ainda seria você! — Rúbi sorriu docemente. — A fama não
precisa, necessariamente, ser algo ruim, Mariana. Você pode ser uma
porta-voz. Sei de todos os movimentos sociais que você apoia. Com a fama
não seria mais fácil? Não acha que as pessoas merecem um pouco mais de
você, e menos do que vemos nessas revistas sem sal?
Naquela sua tia havia lhe pegado.
Ela não sabia como responder diretamente que Rúbi tinha certa
razão. Ou pior, que talvez pudesse pensar no caso de responder algumas
perguntas sem pretensões para o jornal.
Mas Mariana Lange sabia que não era de agora que as pessoas
queriam sua atenção. Só não entendia como e porquê. Não gostava do que
o dinheiro lhe trouxera: pessoas obcecadas por ela, amigos falsos,
namorados oportunistas, aparições destacadas em jornais e sites na
internet.
Definitivamente, Mariana não nascera para estar em foco.
E se pudesse continuar fugindo da atenção generalizada,
continuaria.
Pensando em responder, não conseguiu seguir adiante com o
diálogo, pois seus olhos vacilaram novamente para a escadaria principal da
casona. Seu tio, William, vinha descendo as escadas, alinhando as
abotoaduras. Bem bonito em vestes importadas e satisfeito com seu bigode
reluzente.
William acenou, abrindo o sorriso. Estava mais do que elegante.
— Tá bonito! — Mariana cantarolou para o tio, recebendo um sorriso
cordial em resposta.
— Sei que estou! — William sorriu, convencido.
Rúbi estalou os dedos da outra mão, para chamar a atenção de Ana
de volta.
— Ok, então. — Soltou delicadamente o queixo da sobrinha,
erguendo os braços. — Não vou te forçar a nada. Só pense a respeito, ok?
— sugeriu, e Mariana pôde assentir. — Enfim, só para você saber, seu tio e
eu vamos sair hoje à noite. O hotel fará um jantar especial a uma família
que nos ajudou desde o começo. Quer vir? Você pode trazer o Caique, faz
tempo que não temos notícias dele.
Bruscamente, Mariana sentiu os ombros estancarem.
— Ele tá ótimo! — Forçou um sorriso. — E não, muito obrigada. Vou
ficar em casa... hum... sozinha — disse por fim. — Simas vai?
— Claro que não — William resmungou, ajeitando-se no espelho ao
lado da esposa. Mariana adorava suspirar pelo casamento dos tios. —
Vocês dois são iguais, odeiam qualquer coisa relacionada a eventos ou
aparições estratégicas.
— Ou, quem sabe, odiamos o tédio colossal desses lugares.
— Tanto faz, Ana — William, sem argumentos, vociferou. — De
qualquer forma, o Simas tá com o namorado, o Thiago — explicou
gentilmente.
— Mais um motivo pra eu ficar em casa! — Sorriu. — Sem Simas
nada feito!
— Chame o Caique — sugeriu a tia.
— Sem Caique — rebateu de pronto, odiando-se em seguida por
oferecer uma resposta tão vaga.
De abrupto, sentiu que a tia a avaliava de perto.
— Entendi — mediou, desconfiada. — Mas tá tudo bem com você e
o Caique?
Não.
— Sim.
A garota voltou a esticar o sorriso forçado. De todo modo, não estava
mentindo; com certeza, estava tudo a mil maravilhas com Caique, esse era
o problema. Na noite anterior, Caique havia lhe pedido em casamento. Um
sonho fantástico para qualquer pessoa que mantivesse um relacionamento
tão longo. E um pesadelo para quem não aguentava mais comprometer-se
com um cara apenas pelas aparências.
Alguém, na realidade, como ela.
E, para piorar, Mariana havia ficado em silêncio. Um pedido heroico,
com um anel escandaloso de caro, um cara perfeito com as convicções
perfeitas e, ainda assim, não estava feliz. Não tinha aceitado e nem
recusado, o que só tinha piorado a situação. Desde então, a sucessora
seguiu o caminho mais difícil; evitar o namorado.
— Sim — voltou a dizer. Queria convencer a tia e a si mesma do que
estava falando. — Só... não acho que ele queira ir.
— Certo... Vamos marcar um jantar qualquer dia desses. Adoraria
vê-lo novamente... — Rúbi decretou. — E convide suas amigas, por favor.
Faz tempo que não as vejo.
Mariana concordou com o polegar.
Era claro que Rúbi adorava Caique e suas amigas. Todos de famílias
muito bem respeitadas e populares. O que destruía a possibilidade daquele
hipotético jantar, era que Mariana não gostaria de ver Caique tão cedo — e
que deixara de falar com as amigas semanas antes do ocorrido.
Mariana não sabia explicar, mas havia se irritado inteiramente com
Caroline e Bruna. Não sabia descrever como uma amizade tão vaga quanto
a delas estava lhe consumindo. Afinal, as três nem ao menos se gostavam
tanto assim.
E sendo franca consigo mesma, não sentia falta delas.
— Eles iriam adorar — mentiu outra vez.
Em seu interior, desejava mesmo que Caique fosse flagrado
transando com Caroline ou Bruna, assim seria mais fácil terminar com tudo.
— Tem certeza que não quer ir conosco, Mel? — Seu tio parou à sua
frente, segurando uma das tranças novas e fazendo graça. — Assim
poderia mostrar seu novo visual. Tá linda!
— Obrigada, tio William, mas...
— Já entendi... — Sorriu. — Não quer ser vista com os velhos!
Não, não, não era isso! Mas deixou que pensassem que sim — ou
qualquer desculpa esfarrapada. Seria melhor assim. Não queria estragar o
dia de ninguém.
Enquanto analisava os tios se preparando para ir, um trovão fez tudo
tremer. Mariana crispou os lábios, sentindo o coração acelerar.
Odiava como a chuva se alastrava em São Palomane: gritante,
espalhafatosa, cruel e devastadora. O vento batia desesperado nas janelas
mais próximas e alguns galhos de árvores se arrastavam, arranhando o
vidro.
O coração continuava no ritmo descompensado, e um calafrio na
espinha lhe despertou para o pior.
Não conseguia entender como Rúbi ou tio William, ou todos a sua
volta, ficavam tão tranquilos quando uma tempestade se aproximava.
— Vou subir — anunciou às pressas. — Você tá linda, Rúbi. E, por
favor, tio William, traga aquelas sobras deliciosas de brigadeiro! — Rápida,
beijou a bochecha macia da tia e do tio, e se despediu com um acenar
desengonçado de mão.
— Não se esqueça! — gritou William. — Tem frango na geladeira e
arroz indiano congelado.
Ouviu as recomendações com praticidade: não estava com fome.
Subindo as escadas, correu até seu espaço favorito na casa.
Invadindo seu próprio quarto, um tanto quanto ofegante, Mariana
tinha certeza que ficar reclusa era a melhor pedida para aquela noite de
sexta-feira.
Três: noah

há o que fazer com a dureza das próprias palavras?


há pior inimigo contra mim do que eu?
espero ver o suficiente da vida, do meu mundo, de onde vim e para
onde vou. espero que a estadia neste plano astral não seja só isso que vejo
todos os dias.
seria deprimente.
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

Noah Dias esperou, respirou com força e analisou com muita


atenção o rosto de sua melhor amiga, Débora.
Reparou na face corada e no cabelo vermelho tingido, no piercing
cintilante acima da sobrancelha direita reluzindo contra a luz da lanchonete
onde Noah trabalhava seis dias por semana.
Continuou sua avaliação minuciosa, ainda que soubesse que Débora
esperava ansiosa por uma resposta digna sobre seu convite. De alguma
forma, queria adentrar em alguma festa alternativa em trilhos de trens ou na
Rua Augusta. Dois lugares onde Noah, definitivamente, não queria pôr seus
pés.
Débora não se importava com o mundo caindo lá fora. A chuva era
apenas um adicional para sua sexta-feira. A garota desejava arrastar Noah
para mais uns de seus pubs favoritos no centro de São Palomane e não
aceitaria “não” como resposta. Aliás, Noah pensou, Debs nunca aceitaria
não como resposta. Nunca mesmo.
Ela tinha o poder de persuasão para convencer quem é que fosse à
sua volta, incluindo ele.
— Vamos? — Debs formou um biquinho, segurando o copo de
refrigerante entre as mãos. Noah passou para trás do balcão, prendendo os
cabelos que caíam em seus olhos. — Noah, qual é, tô te chamando! É só
topar e rachar um Uber comigo!
— Não, obrigado. — Ele sorriu falsamente. — Debs, não me
interessa se esse é um novo pub ou o mesmo de sempre. A resposta é não.
— Corajoso, Noah espalmou as mãos no balcão, apoiando-se. — Da última
vez que saí com você, no meio dessas festas que você inventa de última
hora, acordei em uma banheira, sem meus documentos, com o corpo
pintado com tinta neon e abraçado às minhas roupas molhadas. — E sorriu,
sem exalar humor algum. — Isso parece normal para você?
Debs deu de ombros, nada impressionada.
— Se não estou abraçada às minhas próprias roupas depois de uma
noite de bebedeira, não é uma festa válida — retrucou, sólida. Noah riu pelo
nariz, sem humor e totalmente desacreditado. — Mas... prometo que dessa
vez será diferente.
Prático, Dias voltou a negar.
Conhecia Débora perfeitamente bem para saber que não, nada iria
mudar. Se decidisse preencher sua noite com a companhia da melhor
amiga, não se divertiria com nada.
Seriam os mesmos amigos de Débora, que ela havia conhecido em
uma das escolas técnicas em que reprovara no decorrer da vida
acadêmica. Certamente, no fim da noite, um dos amigos dela conseguiria
sair de fininho e Noah, como sempre, pagaria a conta do grupo todo. E isso
acontecia com frequência.
Não tantas vezes, mas já haviam sido duas ocasiões parecidas. E,
para alguém como ele, já eram situações demais.
— Por favor — implorou Débora, manhosa.
— Nem pensar!
Débora Sobral era apenas dois anos mais velha do que Noah, mas o
suficiente para ter largado a escola na metade do terceiro ano, não
querendo completar o último e nem ao menos se interessado por outra
tarefa que preenchesse seu tempo livre. Gostava de passar o final de
semana em festas, não pensando no futuro. Mas Debs tinha um emprego
medianamente normal como recepcionista de um estúdio de tatuagem.
Noah e Débora cresceram juntos, em um campo de futebol velho e
abandonado que fora reocupado por algumas famílias, há vintes anos. Há
quase uma década, no entanto, foram recolocadas em casas populares de
baixo orçamento. Só que, ainda assim, eram vizinhos.
— Anda, Noah — insistiu. — Eu te pago uma cerveja!
— Tenho que estudar, o próximo vestibular tá batendo na porta —
mentiu, pendurando o pano de prato sujo e úmido no ombro. Debs revirou
os olhos, detectando a mentira. Noah tinha inúmeros defeitos, mas atrasado
e desleixado com o estudo do cursinho particular não era um deles. — E,
além do mais, tenho que consertar uns dos pneus da minha moto. Sabe
quanto isso vai me custar?
— Não.
— É claro que não sabe — bradou, aos risos. — Você tem
amendoim no lugar do cérebro! — Ele tocou a testa de Debs e sorriu. —
Apesar de adorar gastar todo meu dinheiro pagando a conta dos seus
amigos fracassados em pubs por aí, ainda preciso economizar se quero um
bom financiamento para a faculdade. Ou conseguir bancar um quarto de
uma república.
Debs odiava e admirava a ambição de Noah na mesma proporção.
Gostava de saber que o amigo não suportava e nem queria se contentar
com a vida que julgava ser medíocre. Mas, ao mesmo tempo, sentia inveja
de Noah possuir planos, quando ela nem ao menos sabia por onde
começar.
— Você é um rabugento de merda! — Decidiu despejar, fingindo
revolta. — Ok, então. Passe a sua sexta sozinho, limpando pratos e
dormindo cedo! — Debs retirou as notas amassadas da carteira, jogando
por cima do balcão. — Mas você me deve uma saída, Noalin.
— Sem essa de Noalin — alertou-a com o dedo erguido, ao passo
que Débora sorriu, venenosa. — Tudo bem, não me importo de ficar em
casa — acrescentou — E sim, estou te devendo uma saída, mas só eu e
você — advertiu. — Não quero ter que interagir com seus amigos. Como é
mesmo o nome daquele...?
— Daquele qual?
— O mais otário que tem — respondeu. — Alface?
— Cenoura!
— Debs, você sai com um cara chamado Cenoura, como isso é
atrativo para se fazer em uma sexta à noite? — Noah franziu o cenho.
— Eu saio com você, Noah — Débora defendeu-se, tentando não rir.
Ela, por fim, suspirou, pegando a maquiagem da bolsa. — Eu tenho que ir.
— Passou rapidamente mais uma camada de batom vermelho-escarlate
nos lábios e completou: — Te vejo por aí?
Mais aliviado, Noah Dias assentiu, silencioso.
— De novo esse papo?
Uma voz estridente e fina cortou a fala dos dois.
Lucélia, a chefe de Noah, vinha se aproximando da cozinha, nos
fundos da lanchonete. Estava com os braços magricelas cruzados acima do
busto. O cabelo louro-mel já estava desbotado da última vez que retocara a
cor, e o típico batom vermelho-vinho encontrava-se um pouco borrado por
entre os lábios trêmulos da idade.
— Noah, meu bem — disse. — Acho mesmo que você tem que se
divertir. Deve ser a terceira vez, só nessa semana, que eu vejo essa pobre
coitada suplicando pela sua atenção.
Debs não sabia se sentia-se agradecida ou ofendida.
— Sem chance, Lucélia! — Noah afastou-se das duas, procurando
algo com o que se ocupar. — Não dá. Tô trabalhando aqui.
— Sim, eu sei, mas está quase na hora do fim do seu turno. O que
custa sair um pouco? Vai acabar criando raízes nessa lanchonete! — Dona
Lucélia pestanejou. — Anda logo!
Paciente, apenas forçou um sorriso.
— Minha resposta ainda é não!
Um trovão, mais furioso do que qualquer outro, interrompeu sua fala.
A noite estava totalmente posta em São Palomane e mais uma tempestade
finalizava seu dia, tremendo as janelas de segunda mão da lanchonete
comum de bairro.
Não tinha o que Noah pudesse fazer, afinal.
Sabia que dormiria assim que visse sua cama. Tinha sido um dia
longo e exaustivo. E ainda estava chovendo. Certamente pegaria chuva e
um resfriado. Não tinha o luxo e nem o poder de pedir um táxi. Ou um Uber.
Teria que enfrentar a chuva à moda antiga.
Sabendo que não conseguiria mais nada ali, Débora desistiu, saltou
do banco em que estava e acenou para os dois, despedindo-se ainda
irritada com o amigo. Não pediu um táxi pois sabia que o valor dobraria,
apenas foi corajosa. Desapareceu atrás de um guarda-chuva enorme azul-
turquesa e sequer olhou para trás.
— Resolvido — provocou Noah. — Sem Débora, sem saída.
Lucélia não respondeu, apesar de não concordar com a decisão do
funcionário.
Mas Noah pôde voltar a limpar o balcão em paz. Retirou o copo de
refrigerante, que antes era de Debs, do mezanino, e lavou o recipiente na
pia mais próxima.
O emprego era de meio-período com um salário que não lhe
mantinha em pé, mas não poderia reclamar. A mãe trabalhava em um salão
de beleza e o pai consertava móveis e eletrodomésticos para os vizinhos —
algo que não faturava muito, mas tinha lá seus trocados.
Era um pouco pior na época de escola. Ter sido aluno do Colégio
Maria Santana, um colégio de alto renome e bilíngue no centro da cidade,
foi o único bem material que Noah orgulhava-se em ter tido — depois de
sua moto.
A bolsa integral lhe garantiu um sopro de esperança. De quê, não
sabia dizer ao certo. Apenas esperança. E era o suficiente.
Mas havia se formado há anos e ainda não tinha ingressado na
universidade. Em nenhuma. Fazia pouco mais de cinco meses que tinha
conseguido pagar um cursinho pré-vestibular, e revisar as matérias que
antes estava começando a esquecer era a parte favorita de seu dia.
Ainda esperava o resultado da segunda chamada de uma
universidade. Esperava, mesmo não tendo esperança.
Poucas felicidades que poderia colecionar sem sentir-se com a
responsabilidade do mundo nas costas.
Quatro: noah

você sabe que cresceu quando percebe que existir já não é mais o
suficiente. você sabe que cresceu quando os problemas de seus pais
passam a ser os seus. você sabe que cresceu quando a tarefa de salvar a
si mesmo e a eles torna-se sua.
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

O turno de Noah acabou às nove e meia em ponto.


A chuva intensificou-se sem avisos e ainda se destacou com
violentos raios e trovões.
Rapidamente, o garçom se despediu de sua chefe, enfiou-se no
vestiário masculino, abriu seu armário de metal e pegou suas roupas.
Vestiu-se com pressa, soltando o cabelo longo que caía na altura dos
ombros, e catou as chaves da moto, estacionada em um beco próximo à
lanchonete. Deixou que a chuva tomasse conta de seu corpo assim que
saiu, apreciando as gotículas frias em contato com sua pele e roupas
quentes.
Não se importava em molhar-se. Principalmente quando pilotava.
Subiu na moto e tomou distância do emprego, sentindo-se feliz em
poder finalizar seu dia. Noah precisava chegar o quanto antes do outro lado
da cidade. Encontrava-se na área da Praça da Sé e não suportava o centro.
Não como antigamente.
O que gostava, na realidade, era do poder que sua moto, uma
Shadow velha dos anos 70, lhe trazia.
Um poder surreal de capacidade, uma chama eloquente sobre ser
invencível, uma vontade eminente de desvendar o restante do país, e quem
sabe, do mundo.
Embora estivesse de capacete, sentia que não estava enxergando
muito bem. A água embaçava o pequeno vidro de proteção e deixava o
asfalto liso e escorregadio. Após desviar, às pressas, de um ônibus, Noah
praguejou um palavrão alto, que não seria ouvido no meio de buzinas e
lampejos de carros ao redor.
Desistindo de cortar caminho pelos bairros, teve que trocar de
trajeto.
Durante alguns minutos, Noah pensou em parar e esperar a chuva
passar. O risco de acidente aumentava consideravelmente naquelas
situações — e, bem, ele morava em São Palomane, um pingo de chuva era
o suficiente para fazer o trânsito estagnar.
Deu-se por convencido quando um raio cortou o céu, lhe envolvendo
em um calafrio. Noah não soube decifrar de imediato se era pelo medo
repentino ou o frio que lhe atingiu feito um manto.
Ainda na metade do caminho para casa, entendeu que precisava ser
prático. Ou ousado.
Saiu da avenida principal, pegando o outro sentido para os bairros
mais ordenados. Reconheceu o bairro refinado se projetando à sua volta,
conforme as gotas tornavam-se mais precisas.
Noah entrou em qualquer rua que encontrou pela frente, e
reconheceu alguns prédios pequenos ao ganharem cor. Por mais dez
minutos, na rua extensa e vazia, virou na outra esquina, notando que
estava entrando cada vez mais no bairro chique.
Lembrou, de abrupto, que já esteve em uma daquelas casas ou um
daqueles prédios, mas não pôde pensar direito no assunto. Não quando um
baque lhe fez parar a moto bruscamente: sentiu-se afundar aos poucos e
quis morrer de uma dor ardente ao notar que o pneu traseiro de sua moto
havia furado.
— Merda! — gritou ao estacioná-la de frente para o portão enorme
de uma das casas gigantescas. Desceu da motocicleta apenas para conferir
o que já sabia. — Droga! — Chutou a lataria, raivoso.
Retirou o capacete para, quem sabe, enxergar melhor e ter um pingo
de sorte para aguentar chegar em casa.
Mas quanto mais Noah tentava consertar a situação, mais piorava.
Tinha convicção que o ar estava se esvaindo e não voltaria com um
passe de mágica, nem se pedisse a uma estrela cadente. Não quando a
chuva o fazia enxergar um palmo de distância. Sabia diferenciar as luzes
das janelas e dos prédios, mas não conseguia ser imbatível. Não naquela
noite.
Ainda com raiva, deixou o capacete no asfalto gélido e molhado. Não
tinha um celular bom para sobreviver à água que caía do céu, muito menos
uma solução. Ficar plantado no meio-fio não era uma opção, ainda mais em
um bairro tão elegante e reservado. As pessoas estranhariam, e ele não
queria dar explicações que São Palomane ainda era uma cidade pública.
Noah analisou a situação como podia; poderia pedir ajuda a algum
vizinho caridoso.
Tentou mentalizar a casa da única pessoa que conhecia por aquela
região. Seria ridículo procurá-la, visto que fazia anos desde a formatura.
Mas, um dia, antes do ensino médio acabar, Noah esteve em uma daquelas
festas que os ricaços insistiam para que ele fosse.
Não ficou mais do que uma hora, mas guardou o endereço na mente.
Nunca esqueceria como Mariana fora gentil com ele. Perguntou seu nome
— apesar de saber que esqueceria antes da noite terminar — e o fez se
sentir à vontade — da maneira que pôde encontrar, é claro.
Se ao menos pudesse lembrar-se do número da residência...
Ele saberia reconhecer a mansão se estivesse cara a cara com a
construção. Aliás, poderia ser parecida, justamente, com a qual sua moto
havia acabado de estacionar.
Embora a ideia fosse tola, decidiu tocar no interfone da primeira casa
que vira, do outro lado da rua.
Nada.
Apenas toques.
Correu para o outro lado, de volta ao lado de sua moto. Outro raio
cortou o céu. Noah apressou-se em tocar outro interfone.
Teria que servir.
Uma, duas, três vezes.
Outro raio.
Desferindo ainda mais palavrões, a chuva ganhou uma ventania fora
de época. Não enxergando nada a quase dois palmos de distância, Noah
insistiu na residência reservada em cores pastéis à sua frente.
Em sua memória, parecia muito com a casa de Mariana...
Quando achou que poderia desistir de buscar ajuda, uma voz
sonolenta e desconfiada ecoou do pequeno aparelho grudado à parede, ao
lado do portão devidamente fechado.
— Alô?
Noah engoliu em seco. Seu plano poderia dar certo ou terrivelmente
errado.
— Oi.... oi... tá me ouvindo? — berrou.
— Oi...? — A voz falhou.
— Oi?! Tem alguém aí?
— Quem gostaria? — A voz da garota se tornou ainda mais
sonolenta.
Ele respirou fundo, aliviado e assustado. Tudo ao mesmo tempo,
mesclando-se em um show de emoções confusas.
— Ah, meu Deus! Eu... hum... bom, a minha moto quebrou de frente
para sua casa... eu... — Noah fechou os olhos, sentindo-se derrotado. Que
explicação daria? Que gostaria de entrar para esperar a chuva passar? Que
gostaria de um step novo? O que ele esperava que acontecesse? Uma
ajuda? De uma desconhecida? — Resumindo, minha moto quebrou. Eu só
preciso de um lugar para esperar a chuva passar ou... sério, é só isso. Tá
chovendo demais. Eu me chamo Noah Dias, se isso for servir de algo. Por
favor! Posso ficar no quintal ou no jardim. Por favor. Não vou incomodar
mais do que duas horas ou menos!
Um trovão interceptou a voz da garota, a resposta que poderia
arruinar ou salvar seu corpo de um resfriado. Noah sabia que a dona da
casa tinha respondido algo, mas não fazia ideia do quê.
Dentre poucos segundos, dos quais foram os mais angustiantes de
sua semana, Dias assistiu o portão de metal da construção abrir-se aos
poucos. Realizado, agradeceu mentalmente aos céus — e à garota — ,
arrastando a moto e o capacete consigo para dentro do terreno de gramado
impecável. Os portões fecharam-se assim que Noah passou e pôde
cumprimentar, ao longe, os seguranças de uma portaria vinte e quatro
horas da casona.
De repente, sentiu-se traído. Se aqueles caras o tinham visto antes,
por que não fizeram nada?
Bom, não importava mais.
Uma pessoa havia depositado um ponto de confiança nele, e
precisava agradecer pessoalmente.
Determinado, Noah seguiu seu caminho, guiando a moto pelos
guidões. Deixou-a abaixo de um toldo qualquer ao lado da casa, que
certamente não serviria mais como garagem.
Ainda procurando um jeito de agradecer a dona da casa, notou que a
luz da sala estava acesa.
Ele deveria ir até lá? Ser cordial e gratificar pessoalmente a dona da
bondade e caridade em deixar um desconhecido entrar?
Encharcado dos pés à cabeça, Noah decidiu agarrar a segunda
opção. Deixou suas coisas organizadas no toldo e marchou rente à entrada.
Subiu os últimos degraus da longa escadaria, tocou a campainha —
mesmo que fosse um ato indiferente — e aguardou pacientemente ser
atendido.
Um feixe de luz foi revelado em seguida, e Mariana Lange projetou-
se à sua frente. Reconheceu de imediato assim que seus olhos
acastanhados confusos focalizaram nela. Na imagem dela. Bem ali, diante
dele. Com roupas casuais, cabelo confeccionado em tranças muito bem
feitas e estilosas.
E pela maneira dócil, mas levemente curiosa de Mariana, também
havia reconhecido Noah.
Merda, pensou ele.
Poderia ser qualquer pessoa bem feitora da cidade, qualquer uma,
mesmo. Ainda que tivesse simpatia por Mariana, por aquela festa que havia
acontecido há anos, ainda assim, sentiu-se indefeso. Estar perto dela o
fazia lembrar dos anos sombrios de um colégio particular de alunos
detestáveis.
E, ao certo, talvez tivesse sido guiado, sem querer, para aquele
lugar.
Realmente é uma merda, voltou a refrescar a memória. Não sabia se
deveria sorrir para a garota ou não. Se deveria fingir que nada aconteceu
ou não. Todavia, fugir e voltar para o toldo estava fora de cogitação.
— Oi?! — cumprimentou ela, ainda não o compreendendo. — Ah,
meu Deus! — Ela acordou do choque em vê-lo. — Entra aí, por favor. Deve
estar congelando aí fora!
— Ah, não precisa. — Noah negou com a mão. — Só vim agradecer
por me deixar ficar...
— É melhor entrar. — Mariana insistiu ao prender a respiração
quando um relâmpago cortou o céu escuro. — Tá muito frio. Aquele toldo
pode voar a qualquer momento com esse vento, sabia?
Pensou em responder que seria improvável que saísse dando
piruetas pelo ar, mas não protestou. Sem jeito, Noah deu um passo longo à
frente.
Molhou o carpete e o tapete do hall principal. De relance, sentiu que
Mariana estava quente e aconchegante e desejou sentir o mesmo. Com as
roupas coladas à pele e o cabelo escorrido na face, era fácil desejar um
ambiente tão receptivo para se aninhar.
Mariana fechou a porta atrás dele, ainda simpática.
— Eu te conheço, não?!
Falaram ao mesmo tempo.
Noah afastou os cabelos da testa, estava tremendo. Percebeu que
os olhos de Mariana não só estavam inchados de sono, como cansados de
liberarem lágrimas. Reconhecia o semblante choroso de alguém de longe.
— Manuela, não é? — Noah tentou parecer indiferente.
Claro que é Mariana, otário, resmungou para si.
Tentaria ao máximo não deixar explícito que a mera existência de
Mariana Lange no Colégio Maria Santana foi importante.
A casa, contudo, ainda continuava a mesma coisa do qual se
lembrava. Grande. Maior do que todas as outras que um dia já visitou.
Ampla. Espaçosa. Confortável o bastante para agrupar dezenas de pessoas
e ainda sobraria espaço. De certo, ainda era intimidador estar lá.
— É Mariana, na verdade. Quase acertou — Meneou a cabeça ao rir.
— E você é o Noalin, né? Da escola? Acho que fizemos o ensino médio
juntos ou algo parecido — falou. — Quando se apresentou no interfone,
reconheci logo de cara!
Dias sentiu os ombros se retraírem. Ele entrou no Colégio Maria
Santana no ensino fundamental dois, no sétimo ano. Passou muito tempo
perto de Mariana.
— É Noah... — rebateu. — Eu prefiro só Noah. — Ele estendeu a
mão, ato que julgou ser tosco demais ao levar em conta que estava
molhado dos pés à cabeça.
E que, normalmente, as pessoas não se apresentavam assim.
No entanto, Mariana não pareceu se importar quando pegou sua
mão e o cumprimentou eletricamente, para cima e para baixo, como se
fossem amigos desde aquela época. Com o sorriso dela, Dias esqueceu por
alguns instantes que estava estremecendo pela temperatura corporal.
E gostou daquilo.
Cinco: mariana

ninguém nunca me contou sobre as maravilhas que conseguimos ao


ficarmos sozinhos. de vez em quando, é exatamente o que precisamos. só
assim saberemos lidar com inestimáveis partidas. inclusive a nossa.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

Mariana podia ouvir com maestria a voz da tia, Rúbi, ecoando na


mente como um tambor.
"Nada de falar com estranhos."
Mas, tecnicamente, Noah Dias não era um estranho tão estranho
assim. Ele foi de sua escola, e o Colégio Maria Santana era uma ótima
escola, por assim dizer.
Certo, ok, Mariana nunca tinha trocado uma única palavra com
Noalin, exceto na noite em que decidiu oferecer uma festa antes da
formatura do último ano. Na verdade, ela não tinha decidido nada. Apenas
cedeu às investidas da tia. Manter-se no topo significava ser vista, e Rúbi
surtaria se Mariana fosse esquecida pelos colegas de turma.
Fez a sobrinha convidar todos do terceiro ano — todos, sem
exceção. Ofereceu uma festa dignamente hollywoodiana e ficou encantada
com as conexões que Ana poderia fazer caso quisesse. Já a própria “dona
da festa” mal se divertiu na pista de dança. Eventos grandiosos lhe davam
calafrios, e nunca foi amiga de verdade de nenhuma daqueles estudantes.
Quanto a Noalin, Ana conseguiu lembrar que conversaram muito, muito
pouco na ocasião. Nem saberia dizer seus gostos em comum. E ainda que
a breve interação tenha se perdido no passado, o reconheceu de pronto
quando o ex-colega de turma se apresentou no interfone. Além do mais,
nunca deixaria alguém à mercê de uma tempestade.
— Enfim... O que aconteceu?
Mariana perguntou meia hora depois, quando Noah já estava
vestindo roupas quentes, secas e limpas, pós-banho. Ana havia pegado
uma porção de combinações aleatórias nas gavetas de Simas, e Noah
escolheu as mais simples. Não queria incomodar.
Ali, sozinhos, estavam sentados frente a frente na ilha da cozinha,
onde Mariana fizera um pouco de café para ajudá-lo a se esquentar mais.
— Digo, tá um tempo horrível lá fora, o que aconteceu?
Com a pergunta, Noah deu um grande gole na bebida, quase
queimando a língua. Soltou um palavrão alto, atitude que fez Mariana juntar
as sobrancelhas no centro da testa lisa.
— O pneu da minha moto furou, logo à frente de sua casa —
explicou Noah. — Não tive outra escolha, senão pedir ajuda. Desculpa se...
— Avaliou as palavras. — Te acordei ou...
— Não estava dormindo, eu estava... bom, definitivamente não
estava dormindo. — Mariana acalmou-o. — Hum... — Ela desceu o olhar
para sua própria xícara. — Acho que meu tio tem alguns pneus de moto no
depósito. Precisa saber que são pneus antigos, devem te ajudar chegar até
em casa... porque eram da época que meu tio tentou ser descolado, sabe?
— zombou, graciosa. Noah riu fraco. Mariana, por alguma razão, se
orgulhou do feito. — Se quiser olhar, fique à vontade.
— Seria ótimo — admitiu. — É melhor eu fazer isso o quanto antes,
porque... — Sua fala fora interrompida por um raio e um relâmpago e, em
seguida, por um trovão. São Palomane, com certeza, não facilitava em
nada. Mariana mordeu os lábios, contendo um pequeno sorrisinho. —
Certo. Vou ter que ficar aqui mais um pouco.
— Sem problema — definiu.
Tirando os seguranças da portaria, Mariana estava sozinha. Ignorou
mensagens e ligações de Caique e evitou contatar Simas a todo o custo.
Não queria estragar a noite de ninguém.
O silêncio reinou por mais algum tempo, até que Lange decidiu puxar
um pouco mais de assunto. Ter um estranho e conhecido em sua cozinha
era intrigante, ao passo que tornava-se agoniante.
— Nós éramos da mesma sala? — Mariana perguntou de repente.
Mariana jamais recordaria-se de todos os rostos que conheceu no
colégio, mas quando concentrava-se melhor, lembrava de Noalin.
Sabia que tinha muitos amigos e que era reservado ao ponto de falar
apenas quando lhe dirigiam a palavra. Com certeza lembrava de suas
amigas comentando dele no intervalo; sobre o cabelo na altura dos ombros,
ondulados e pretos; sobre a pele branca-bronzeada de Noah que, assim
como o cabelo, ainda era a mesma.
O rosto dele, reparou Mariana, já estava mais maduro. Com vestígios
de barba crescendo e decorando a mandíbula saliente, havia um único
brinco em forma de cruz na orelha direita também. Os olhos já não traziam
o brilho adolescente, e o corpo mudara para melhor. Em um breve resumo,
Noah continuava tão bonito e atraente quanto se recordava.
Dias subiu o olhar até o dela.
— Acho que sim. — Deu de ombros, desinteressado. — O Colégio
Maria Santana não era lá muito grande. Não lembro bem, desculpa. Sei que
eu era da sala do seu... namorado... o Caio, né?
— Caique — Mariana corrigiu, sem se importar se Noah deveria
saber ou não o nome de Caique.
Se fosse há algum tempo, a breve menção de alguém não saber o
nome de Caique lhe deixaria irritada. Ali, depois de muito tempo
sustentando um relacionamento que parecia agradar apenas às pessoas ao
redor, lhe causava apenas alívio. Era bom pensar que existiam pessoas que
pensavam nela antes de associá-la a Caique.
Noah também não disse mais nada; também não dava a mínima
para o real nome do cara.
— Quer um? — Tentada a mudar logo de assunto, Mariana Lange
ofereceu a ele, ao pegar um pote de biscoitinhos caseiros de manteiga e
nozes. Noah assentiu de imediato, devia estar morrendo de fome. — São
ótimos com cafés e chás.
— Não vou discordar.
Mais uma leva de silêncio, apenas de bocas mastigando e o som da
chuva do lado de fora.
Ao experimentar um daqueles biscoitos, Noah conteve um gemido;
estava realmente delicioso. De repente, se amaldiçoou por nunca ter
aprendido a cozinhar quando teve a chance. Sabia arriscar algumas
receitas ali e aqui, algo que garantisse que não morresse de fome
quando estava sozinho, mas não era nada comparado àqueles biscoitos.
Talvez porque seja coisa de rico, pensou, mastigando e refletindo se
Mariana Lange se importaria se ele furtasse aqueles biscoitos para sempre.
— Obrigado — disse. Ana arqueou as sobrancelhas, interessada. —
Sobre ter me atendido e ter me deixado entrar, acho que vou ficar
agradecendo isso pelo resto da noite, entende? Eu acho que não atenderia
a porta para um desconhecido.
— Você com certeza faleceria lá fora. — A garota riu com o
argumento. Analisou com cuidado um sorriso cálido brotar sob os lábios de
Noah e, então, pôde perguntar: — E por que não abriria?
— Não teria nada a oferecer a ele, o desconhecido — simplesmente
respondeu. — Nem roupas. Muito menos biscoitos. Então, fingiria que não
estava em casa.
— Nem um pouco de abrigo para a chuva?
— Acho que não. Essa cidade é perigosa, qualquer pessoa pode ser...
Ana puxou o ar.
— Você não é necessariamente um desconhecido, é?
— Você não sabia que frequentamos a mesma escola quando abriu
o portão. — Curvou-se um pouco diante da mesa. — Reconheceu aos
poucos. Eu poderia ser qualquer Noah Dias perdido por aí.
Bingo!
Ana apreciou o olhar semicerrado que seu inesperado convidado lhe
direcionou.
— Bem... — Tomou fôlego, sabendo que estava sendo observada. —
Ao contrário de você, gosto de ajudar as pessoas, Noalin — respondeu,
arrebitando o nariz. Em outras circunstâncias, Noah odiaria ouvir o nome
verdadeiro, mas deixou que Mariana, ao menos naquela noite, o chamasse
como quisesse. — E se estudávamos na mesma escola, é ainda melhor.
Quer dizer que sei seus passos ou quem você é ou foi. É como se
tivéssemos participado de um clube, um time... ou até mesmo feito um
pacto de sangue!
Ele recuou um pouco.
— Tá comparando ajudar pessoas com pacto de sangue? —
repassou o argumento. A garota riu ao assentir. — Acho que tenho que ir
embora. — Empurrou o pote de biscoitos e a caneca para longe, de forma
teatral. — Nem quero descobrir o que você assemelha dar uma xícara de
café a alguém.
— Estudar na mesma escola é pacto de sangue. Oferecer um pouco
de café é nitidamente um pedido claro e aceito sobre doar um rim a alguém!
— Mariana assistiu de camarote quando Noah, fazendo graça, afastou-se
da xícara de café em definitivo. Acalmando os ânimos ao rirem, sentiu-se
mais confortável perto dele. — E na escola você fazia o quê? Acho que
lembro... era do grupo de teatro?
— Grupo de teatro! — Noah confirmou com uma piscadela. — Você
era do grupo... — Estalou os dedos várias vezes, fingindo pensar. — Da
turma dos riquinhos sem cérebro?
— Riquinhos sem cérebro! — Mariana ergueu a palma da mão,
confirmando a tese dele. — Mas não por muito tempo...
Noah soltou um estampido ácido.
— Deixa eu adivinhar... — Ele enfiou o punho no pote de biscoitos
outra vez, pescando um. — Você é a garota que tem tudo. Literalmente
tudo. As pessoas te amam, já que é gentil, legal ou... sei lá, divertida? Tem
um namorado de longa data e é possível que se case com ele, mas... —
Arqueou um dos dedos da mão vaga. — É uma pessoa
impressionantemente infeliz. Então, um dia, decidiu que os amigos vazios
não são mais tão legais e que o namorado é um pé no saco?
Mariana semicerrou os olhos: a questão parecia verdadeira, mas, em
sua concepção, toda a encenação havia durado horas, pois retraiu-se.
Odiou de primeira instância o modo como Noah Dias estava certo, a
confiança e a prepotência berrando na face.
Mas o que faria para negar?
Ele estava redondamente certo.
Não tinha motivos graduais para considerar sua vida um tédio, mas era.
Odiava ser conhecida apenas como sucessora, odiava ser subestimada
pelas "amigas" e odiava o atual relacionamento com Caique, que só
mantivera para fazer as famílias de ambos felizes.
Mariana estava vivendo no modo automático por eles. Seguindo
suas regras e tradições. Não conseguia lembrar-se da última vez em que
fizera algo não pensando nos outros.
— Boa jogada — definiu, sem concordar ou discordar. — Minha vez,
então. Deixa eu adivinhar — Mariana se recompôs. Noah ainda lhe lançava
um olhar confiante e atrevido, inabalável. — Você é o garoto rebelde. Talvez
tenha uma vida difícil. É culto, o que faz as pessoas se sentirem intimidadas
por você na maior parte do tempo. Tem uma moto, o cúmulo do clichê para
alguém revoltado, e diz não se importar com a vida. Mas você estudou na
mesma escola que eu. Então, sim, você realmente se importa com sua vida.
Só quer que as pessoas achem que é malvado o suficiente para fazer
garotinhas chorarem. Ou pior. — Aproximou-se dele, como se pudesse lhe
contar um segredo. — Fazer uma garota riquinha chorar.
Noah não abandonou o sorriso satisfeito do rosto, nem por um
segundo sequer. Embora Mariana tenha pisado em sua ferida exposta e
nada concreta, ele não daria aquele gostinho a ela. Não mesmo. Nem
pensar.
Contudo, ela tinha razão, infelizmente. Noah odiava admitir que outra
pessoa além dele tinha razão. Assim, preferiu dar mais um gole no café a
responder.
— Mais alguma coisa a acrescentar? — Ela provocou, cínica. — Já
que sou tão transparente assim.
— Sim, eu tenho — decidiu, abrindo ainda mais o sorriso.
Sem avisos, escaneou o rosto de Mariana, mirando em seu busto e
tronco, as únicas partes do corpo expostas que a ilha da cozinha não
escondia.
— Manda a ver.
— Certo. — Noah terminou a inspeção e juntou as mãos na mesa,
fixando muito bem o olhar. — Onde fica sua tatuagem?
Lange desmanchou o sorriso aos poucos.
— Como é?
— Você se sente presa. Deve ter feito alguma tatuagem clandestina
para se sentir, ao menos, livre — Noah respondeu, convicto.
Mariana relaxou os ombros.
— Bom... Não vou falar onde é. — Sentiu-se quente. Irritantemente
quente.
— Virilha? — opinou Noah, sugestivo. Ana revirou os olhos. —
Ombro? — Voltou a tentar. — Já sei. Costelas? — sugeriu. Mariana
encarou as unhas. — Não, não. Acho que é na nuca, ou ... não! É nas
costas, bem pequeno, que qualquer maquiagem possa esconder. Acertei?
— Sinto que saí de uma série adolescente — Mariana confessou,
derrotada.
— E o que é?
— Sem chance, não vou falar. — Mariana jogou o cabelo em tranças
twist para o lado. — Já é humilhação demais.
— São asas? — zombou. — Ou borboletas?
Mais decidida, Ana negou.
— Sua vez — Noah disse. — Sua vez de tentar me ler.
Com a perspectiva, a garota semicerrou os olhos, arrastou os lábios
desenhados ao mordê-los — cena essa que Noah tentou não acompanhar
com os olhos.
— Eu acho que você é fechado. Pensa que qualquer pessoa que se
aproximar de você é totalmente falsa ou quer algo em troca. É o tipo de
pessoa que sofre antes de acontecer e que tem medo de ser traído quando
menos esperar.
— Hum, boa tentativa, mas esperava que perguntasse se tenho
tatuagens ou não — debochou.
— Duas — Mariana respondeu com convicção.
— Uma.
— Uma cruz no antebraço.
— Uma tatuagem sentimental nas costelas.
Trocaram um sorriso: ergueram a mão e bateram na palma um do
outro.
— Mas, se fosse uma disputa, você teria ganhado — confessou
Lange. — Gostaria de ser outra pessoa.
— Todos gostariam. — Noah esticou na cadeira, bem mais
desenvolto na conversa. — Por exemplo, hoje eu aceitaria ser parecido com
o Mick Jagger. Incluindo a fama e o dinheiro.
Foi a vez de Mariana rir. E a de Noah ficar um pouco orgulhoso por
fazê-la ter aquela reação.
— Mick Jagger atualmente ou jovem?
— Mick Jagger jovem — definiu, ainda meramente encantado com o
sorriso de Mariana. Ele não se lembrava que era tão bonito assim. — Mais
especificamente na entrevista com a Glória Maria.
— Mais do que justo — concordou. — Uma vez li em um livro que
somos duas pessoas! — Ela formou os dedos em V ao dizer: — A versão
que somos na superfície, e a versão de nós mesmos.
— Que tipo de livros você lê?
— Muitos. Você ficaria surpreso!
Noah juntou as sobrancelhas, petulante. Se debruçou sobre a ilha da
cozinha, dando um sorriso motivador a Mariana. Adorava ser desafiado,
ainda mais, subestimado.
— Eu também — defendeu-se. — Pelo o que me lembre, você não
lia muitos livros na escola, não. Nunca te vi segurando um.
— Então reparava em mim? — Mariana colocou a mão sobre o peito. —
Ora, bom saber! — cantarolou.
Noah umedeceu os lábios.
— Reparava — admitiu. — Não tinha como não reparar.
— E notou tanto que nunca percebeu que fui uma das oradoras nos
sarais do colégio?
— Estamos falando de livros ou sarais?
— Tanto faz — pestanejou. — Só que...
— Fui apenas em um — contou, um pouco mais sério. — Não
gostava dos eventos da escola. Fui em poucos, mas... no que eu fui, você
recitou uma fala de “Francis”, a obra de Josefa Prado.
— Você lembra de muitas coisas! — surpreendeu-se. — E acho que
sim... eu a lia muito no meu tempo livre.
— E lembra-se qual foi a fala?
Ana olhou para o teto da cozinha, pensando. Não lia por lazer há
meses e fazia ainda mais tempo que não comprava um livro novo de
Josefa.
— É uma competição? — sugeriu, maliciosa. — Se eu sei recitá-la?
— Exatamente. Sabe?
— Acho que era... Caro bom senhor, se és de bela e pura alma, que
venha purificar o mundo, se...
Noah recostou-se na cadeira.
— ... se és da mais feia alma, espero que caia ao padecer. Nunca
desejarei o dom da cura a ninguém, apenas o de pensamento —
completou, baixo o suficiente para ter sido considerado um sussurro.
Com a força da troca de olhares, Mariana engoliu um seco. Odiava
perder, qualquer que fosse a competição interna ou invisível em que
estivesse.
Adorava recitar trechos de seus livros favoritos para provocar seu primo,
Simas, ou fugir de discussões que não levariam a nada com Caique. As
falas tiradas de contexto eram sua fuga de debates acalorados e enalteciam
sua ironia.
Embora estivesse surpresa, uma parte de Mariana odiou ter perdido
seu hobby tão fácil assim.
— Certo, ok, estou convencida que reparava em mim e que lia tanto
quanto eu — assumiu. — Nunca vou duvidar do senhor — acrescentou,
provocativa. Noah fez uma pequena reverência, convencido. Mariana
analisou se era uma boa hora para falar o que estava pensando e, ainda
que não concordasse com as ideias intrusas, decidiu continuar: — Aqui tem
uma biblioteca. Os títulos são ótimos e alguns bem novos... se quiser
podemos ir até lá. A chuva ainda vai demorar para acabar...
Não tinha nem sinal de que Noah chegaria em casa antes do
amanhecer, então tratou de ocupar seu tempo, pelo menos, com algo que
gostasse.
— Vamos lá — soltou o ar ao responder.
Seis: noah

o ser suficiente quase nunca se trata de mim. é como posso preencher a


vida daquela pessoa, até que não queira mais ninguém. nem ir, nem ficar
por obrigação, nem me odiar.
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

Se seu pescoço pudesse continuar com torcicolo, Noah estaria


arruinado.
Seus olhos não só varreram o local com admiração, as íris queriam
fotografar mentalmente todos os detalhes da biblioteca de Mariana Lange.
Almejou que a garota soubesse o tamanho da sorte de ter uma biblioteca
apenas para ela. Com títulos de capas duras e bem limpas, nada
comparado com as capas moles, rasgadas e empoeiradas das livrarias que
costumava frequentar, ou até mesmo com os poucos que tinha em casa.
Ler on-line não fazia o gênero dos dois. Queriam abrir o livro, sentir a
textura da página, o cheiro de novo, ou saudar a história do velho.
Noah não queria admitir, mas estava de frente para uma nova versão
de Mariana.
— Quer algum livro emprestado? — perguntou com os braços
cruzados, observando a chuva encobrir a janela.
Entre uma seção de clássicos e outra, Noah sorriu, surpreso.
— Eu posso?
— Por que não poderia?
Além do fato de não sermos amigos, é claro, pensou Mariana logo
após a pergunta.
— Meus tios estão em um jantar, vão demorar horas para voltar.
Acho até que passarão a noite fora. Você pode pegar qualquer um. Nunca
iriam dar falta, quero dizer. — Mariana parou ao lado de Noah, que
namorava a seção de clássicos estrangeiros. — Seria um grande favor, na
verdade. Poderá ler algo daqui e conversar comigo depois.
— Você não deve ter muitos amigos — Noah rebateu, apoiando as
mãos na cintura e se contendo em desvendar o local. — Seria uma honra
ler qualquer coisa daqui, mas não sinto que é o certo. Vou pegar o pneu do
seu tio, estou usando as roupas do seu primo, comendo da comida da sua
tia... sei que vocês, ricos, não sentem falta de muita coisa, mas...
— Nós, ricos, não sentimos falta de nada — retrucou. — Afinal,
somos ricos. E chatos. E subordinados. E...
— Mesquinhos.
— E metidos.
— E irritantes.
— E sabe-tudo.
— E otários.
— E babacas.
— E acham que podem comprar tudo com um talão de cheque.
— Exatamente. Nós podemos comprar tudo com um talão de cheque
— Mariana ressaltou ironicamente. Sentiu-se ainda melhor quando Noah
entendeu a piada. Com Caique, ou quaisquer outras pessoas, suas piadas
sarcásticas eram sempre mal interpretadas. — E é um saco não ter alguém
para conversar, pelo menos podemos fazer um clube do livro.
— De duas pessoas?
— Sim.
— Olha, com as pessoas que você anda, consigo entender o que tá
dizendo.
— Consegue?
Noah não respondeu; não precisava. Mariana queria que seu silêncio
fosse detectado por Noah, como tudo o que ele tinha feito naquela curta
convivência. Se perguntou mentalmente onde ele esteve em todos esses
anos. A breve conversa que tiveram na festa, há anos, não serviu de nada.
A formatura os separou, ao que parecia, para sempre.
— Você mora muito longe daqui? — Mariana cortou o silêncio
novamente.
Noah não queria contar nada de sua vida a ela. Nada, aliás, que se
arrependesse de revelar.
Era apenas uma noite com a princesa do Colégio Maria Santana e
nada mais. A princesa destronada que não queria reino algum, que fazia
meses que estava isolada das melhores amigas e era pouco vista com o
namorado boa pinta. Mas sabia com todas as letras que não importava o
que aconteceria naquela noite; no sábado de manhã, tudo voltaria ao
normal e Mariana Lange não seria sua amiga.
Ele era o tipo de pessoa que Mariana brincaria para irritar a família e,
com sorte, descartaria.
— Perto — desconversou. — A uns vinte minutos daqui, é isso.
Noah girou pelos calcanhares, decidido a se afastar, mas acabou
recuando ao dar um encontrão com uma estante velha e solta. Com o
baque, derrubou alguns títulos.
— Você é desastrado! — Mariana sorriu ao soltar o ar e flagrar Noah
se sentindo envergonhado pela primeira vez na noite. Ajudou-o a recolher
os livros e empurrou outro em sua direção. — Leva esse. É ótimo!
Noah baixou a capa até si, verificando. Assoviou debochadamente
quando identificou “Os Óculos Daquele ao Lado”. Já ouvira falar do clássico
galês, mas ainda não tinha botado seus olhos nele.
— Sou expert em recomendar livros — Mariana zombou. — Alguns
são meus favoritos, acho que você vai adorar e...
— Ainda acho que é melhor não. — Noah devolveu para o lugar a
contragosto. Aquele lugar, a bondade de Mariana, os pertences que não
eram seus, tudo o incomodava muito. Nada fazia sentido. Era só mais um
momento para lembrar, e não para se levar adiante. — Acho que a chuva
parou. Vou dar uma olhada na moto.
Mariana assentiu com a cabeça, sem retrucar.
Decidiu dar os primeiros passos em direção à saída da biblioteca, para
Noalin a seguir. Desceram alguns degraus depois de percorrerem a cozinha
mal iluminada e os corredores amplos. Da janela da sala de estar,
comprovou que um chuvisco inofensivo anunciava que a terrível
tempestade estava começando a se dissipar.
Juntos, seguiram até os fundos da casa, perto do depósito. Mariana
deixou que Noah aproveitasse os recursos do depósito de seu tio, William,
como bem entendesse. Noah selecionou o único pneu que pareceu
compatível com a moto. Carregou sozinho até o toldo principal, onde
Mariana já estava procurando as ferramentas.
Noah deixou a caixa de utensílios cair assim que botou as mãos
nela. Pôde ouvir Mariana discorrer "Desastrado" novamente.
Noalin sempre odiou sua facilidade em destruir coisas. Tanto
figuradamente, quanto literalmente. Desastrado poderia ser seu segundo
nome.
Em completo silêncio, Mariana o assistiu trocar o pneu da moto.
— Quer ajuda? — ofereceu, enrugando a testa quando ouviu-o
praguejar inúmeros palavrões. Noah passou o pulso sobre a testa, limpando
a graxa ali.
— Não, pode deixar... — Sorriu. — Mas se quiser ajudar...
— Posso ficar só olhando também. — Ana ergueu os ombros,
sorridente.
A atitude faiscou dentro de Noah.
— Sim — decidiu. — Pode sim.
O caminho de vinte minutos — como Noah disse estar prestes a
percorrer — , poderia ser longo e intenso. Ainda mais com o temporal que
atingiu a cidade há pouco tempo, então Mariana queria garantir que ele
fizesse um bom trabalho substituindo o pneu furado por um relativamente
novo.
Assistiu os primeiros minutos da troca, tentando entender as
conexões das ferragens, mas não ficou por muito tempo. Embora Noah
precisasse da ajuda de alguém que entendesse de moto, Ana afastou-se do
toldo sem que ele percebesse, de fato. Caminhou até a casa, subiu as
escadas rapidamente e adentrou a biblioteca sem fazer barulho. Sozinha,
naquele lado da casa, facilmente estaria dentro de um cenário de um filme
de terror.
Ana retornou para perto da seção de clássicos e retirou o exemplar
de “O Óculos Daquele ao Lado” da estante e, antes de ir, pescou seu último
livro favorito. Um lançamento contemporâneo sobre um romance
espetacular entre um marinheiro e uma pescadora. E ainda era se tratava
de uma obra nacional.
Provável que Noalin gostasse.
Retornou para baixo, abraçada aos dois livros, e entrou no toldo
antes que Noah partisse sem se despedir — como que certamente faria.
— Tudo certo? — perguntou, um pouco ofegante.
Desconfiado ao ver os livros nas mãos de Mariana, Noah não
demorou a olhá-la. Precisava ir embora o quanto antes.
— Já vou indo — foi sua resposta. — O pneu vai durar uma semana
ou menos, mas consigo ir pra casa.
— Não precisa devolver nem nada do tipo.
— De boa — simplificou. Noah limpou as mãos de óleo em um dos
panos disponíveis nas mesas empoeiradas e apontou, com o queixo, para a
mão de Lange. — E esses livros?
Mariana não respondeu, apenas fez um aceno com a cabeça para
que Noah esquecesse de fazer perguntas óbvias ou terminalmente lógicas.
Pronto para ir, Dias montou na moto, testando o motor e a disposição
do pneu. Estava faminto — ainda que tivesse comido biscoitos caseiros —
e não via a hora de dormir. Seus pais deveriam estar preocupados.
— É isso — definiu. — Tô indo — avisou, mesmo que não
precisasse.
— Leva — pediu Mariana, estendendo os livros até ele. — Nem
pergunta ou fala nada. Só leva.
— É emprestado? — Noah, fazendo charme, pegou apenas o
primeiro deles. — Ou tá me dando?
— Não sei. — Ela deu de ombros, desviando o olhar. — Se for
emprestado, é um motivo para nos vermos de novo.
Porra, Noah não queria aceitar que fosse um presente. Se ficasse
com a última opção, nunca mais veria Mariana — e ela não teria os livros
de volta — , mas queria ler, desbravar todas aquelas páginas e encontrá-la.
Encontrá-la para falar sobre os cenários, os personagens. Tudo.
Que mal tinha em fazer uma amiga?
Com cuidado, Noah guardou os dois títulos na mala de apoio da
motocicleta, sem titubear ou hesitar. Não faria diferença. Ana conseguiria
que ele mudasse de ideia.
— Não sou uma boa pessoa para ser amigo.
— Sem julgamentos. — Ana tocou a mão no ombro de Noah,
sorrindo de maneira gentil.
Deu um passo para trás e o liberou.
Leve assim, Noah soube que poderia retornar para ela, mas com a
cintilante condição de que voltasse para a casa.
De uma forma ou de outra.
Sete: noah

o fato de não ter nada não deveria ser assustador? ao menos todos nós
levaremos a mesma quantidade de bens materiais quando não estivermos
mais aqui. encorajador, eu diria.
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

A lama não era melhor amiga de rodas e pneus.


Noah tinha descoberto o fato da pior forma possível. Odiava como a
grama ficava lamacenta sempre que chovia, e a dificuldade em atingir o
mais alto alpe da rua mais próxima.
O rapaz achou que teria um breve descanso, mas assim que atingiu
as imediações do prédio, teve que abandonar a moto. A chuva não existia
mais, o céu estava aberto, exibindo as estrelas que preenchiam aquele
manto luminoso, e a lua brilhava como se nada tivesse acontecido.
Deixou a moto estacionada assim que se aproximou do prédio em
que morava. Nenhuma daquelas construções tinha mais do que três
andares, e abrigavam dezenas de famílias por um quarteirão inteiro. No
auge da madrugada, a vizinhança encontrava-se silenciosa e sossegada.
No último andar, Noah andou, exausto, até a terceira porta do
corredor. Retirou a chave do bolso e abriu a porta, fazendo o menor tipo de
barulho possível.
Acendeu a luz com um baque na parede.
— Ah, porra — soltou assim que notou a presença da mãe abaixo de
um velho abajur. A pequena sala ao lado da cozinha não poderia escondê-
la por mais muito tempo. — Não sabia que ainda estava acordada!
— Sempre estou acordada, ainda mais sem você aqui — simplificou.
— Não podia dormir sem saber se você estava bem.
Noah sorriu a contragosto.
Admirava como sua mãe exagerava apenas por exagerar. Conseguia
entender a preocupação, visto que não tinha avisado nada, mas ainda
achava levemente engraçado.
Ele tinha demorado apenas algumas horas. Não tinha acontecido
nada. Mas na mente de Ivone Dias, qualquer motivo era bom o suficiente
para se preocupar extremamente com Noah.
— Claro que estava acordada — brincou, fechando e trancando a
porta — Mas a chuva me pegou desprevenido... — Noah andou até a
pequena e espremida cozinha. Encontrou sopa de feijão e peixe cozido na
geladeira. — Acabei ficando na lanchonete. Sabe? — mentiu.
— Odeio quando chove muito — sua mãe comentou, preocupada. —
Fico pensando se a avenida aqui perto vai inundar. É sempre um
acontecimento.
— Não quero pensar sobre isso. — Noah colocou a sopa para
esquentar no antigo micro-ondas. Seu estômago roncou. — Tá tudo bem
com você? Ou com o pai?
Ivone sorriu. Sentia-se radiante quando tinha um pouco da atenção
de Noah quando o filho voltava do trabalho.
Ivone teve uma criação difícil e cansativa, e a vida ainda não havia
sido generosa financeiramente para Ivone e Mauro, mas a saúde dos filhos
era um de seus maiores tesouros.
— Está, sim — afirmou. Deu uma boa olhada no caçula; achava
Noah cada dia mais bonito e robusto. — Dormiu assim que chegou. Sam tá
no quarto também. Teve um dia difícil!
— Imagino que sim.
O irmão, Samuel, tinha um bom emprego, mas passava a maior
parte do tempo trabalhando ou descansando. Era raro vê-lo.
— Mas também fiquei acordada porque queria lhe dar uma coisa!
Noah meneou a cabeça, derrotado.
Ele sempre chegava do trabalho ou do cursinho carregado de mau
humor, ainda muito emburrado e cansado. E ainda que tivesse enfrentado
um dilúvio, a mãe era de uma gentileza invejável, que poucos poderiam
ficar com raiva ou tratá-la mal.
Ninguém tinha coragem. Talvez Samuel tivesse, quando era pego
desprevenido com algum cliente no trabalho e acabava levando
sentimentos mal resolvidos para casa, mas trancava-se no quarto até obter
calma necessária para pedir desculpas a Ivone.
A família Dias tinha apenas dois e pequenos quartos na casa. E
Noah não se importou em ficar com um colchão na sala/cozinha, era muito
melhor do que aturar a carga negativa de Sam ou conviver com seu fedor.
— Mesmo que eu não saiba o que você quer me dar, mãe, não
precisava!
— Não é todo dia que se completa vinte e cinco anos!! — Ivone
exclamou. Dentro de um armário avulso na sala de estar, retirou uma
pequena caixa amassada, vermelha. — Sei que seu aniversário foi há uma
semana e que jovens da sua idade têm festas e...
— Não me importo com isso. Com as festas, no caso. — Noah
sorriu, observando as mãos da mãe esticarem o presente até ele. — Este
presente já basta! — Ele entrelaçou seus dedos nos da mãe.
Ivone beijou longamente a bochecha do filho, sorrindo alegremente
ao vê-lo desembrulhar o presente. Noah rasgou o papel com afinco,
tentando parecer animado com o novo adereço. Desde criança amava
ganhar presentes e a expectativa de abri-los. Foi com o passar dos anos
que aquela expectativa foi sumindo, mas sempre era hora de relembrar-se
daquelas emoções tão puras.
No entanto, seu sorriso foi desmanchado de leve ao ver o que
continha na caixa.
— Mãe? — repreendeu Noah de forma educada. — Pelo amor de...
— Nem me olhe deste jeito, Noalin! — Ivone alertou.
— Mãe... — Tentou novamente. — Um celular novo é um luxo que
não posso ter, não. — Noah balançou o pequeno aparelho de outra
geração, muito mais avançado que o seu antigo, no ar. Gratidão e
indignação iam se misturando aos poucos. — Temos que devolver. Não
temos dinheiro...
— Noalin! — Ela voltou a bradar seriamente. Noah parou no lugar,
tentando respirar e não deixar seu cérebro em alerta atrapalhar o momento.
— Eu consegui um dinheirinho extra. Fiz o cabelo da Maria e ainda fechei
negócio com a filha dela, a Ana Paula, que vai se casar em breve. É um
ótimo negócio. Seu pai me ajudou com a entrada por algumas economias
que tínhamos... — Ivone ergueu o dedo antes que Noah a interrompesse.
— Economias que tínhamos, justamente, para presenteá-lo pelo vigésimo
quinto aniversário. Não foi um sacrifício tão grande e você merece um
celular novo.
Mesmo que Ivone tentasse acalmá-lo, não funcionou.
Ele sabia quanto custava um celular daqueles. Passava alguns dias
no shopping para fazer entregas de fast-food e conferia os preços sempre
que possível. As coisas andavam caras nos últimos tempos, aquilo era
demais.
Ainda desgostoso, Noah permitiu-se sorrir, avaliando o aparelho
prata mesclado ao cinza fosco que tanto namorou por vitrines há semanas.
Todo o salário era direcionado para as contas da casa, e quando algo
restava, concentrava em alguma melhoria para a moto. Nada mais e nada
menos.
— Obrigado, então. — Derreteu-se. — Vou cuidar muito bem dele!
Ivone o puxou para um abraço.
— Não tem de quê. Você é meu amor. Sabe o que significa isso?
— Que sou preferido? — Noah perguntou ao fazer graça.
Ivone não respondeu, apenas fez um sinal com a boca e os dedos
para que o filho calasse a boca.
— Vá dormir — decretou ele — Eu arrumo a cozinha assim que
terminar de comer e prometo que vou dormir!
Ivone sorriu.
— E o que vai fazer amanhã?
— Trabalhar — definiu. — É o que eu faço! — Deixando o celular, o
embrulho e a caixa em cima da mesa, Noah serviu-se de sopa. Não queria
parecer um garotinho contente pelo presente, mas no fundo estava. — Uma
garota da escola, do Colégio Maria Santana, lembra? — perguntou, ao
passo que a mãe concordou. — A Susana fechou negócio comigo. Já
trabalhei algumas vezes para a família dela, então topei a proposta. Ela vai
dar uma festa de aniversário em tema de Carnaval, e pediu para eu ser um
dos garçons. Duzentos reais a hora.
— Me parece bom, Noah. — Ivone beijou a testa do filho, antes que
outro bocejo lhe atingisse. — Tenha uma boa noite, então. E durma o
suficiente para conseguir aguentar uma festa inteira de Carnaval perto
daquelas pessoas.
Ele assentiu, contente.
— Pode deixar, dona Ivone. Tô ligado que preciso de energia!
Antes de ir, Ivone ainda o observou por cima dos ombros, feliz por tê-
lo e aliviada que Noah já estava em casa. Apenas quando os olhos
pesaram de novo devido à sonolência, desapareceu atrás da pequena porta
de madeira improvisada, que indicava seu quarto.
Sozinho, Noah suspirou, sentando-se à mesa de dois lugares
extremamente pequena e estreita.
Deu a primeira colherada na sopa e tentou tirar seus pensamentos
de Mariana Lange. Não sabia dizer por que estava tão incomodado com a
breve menção de participar da vida de Mariana. Ela nunca se acostumaria
com sua vida simples. E ele jamais entenderia como as pessoas podem ter
tanto em se tratando de dinheiro.
Não que tivesse vergonha dos pais ou do bairro. Eram seu lar.
Mas era diferente. Sentia que não podia cumprir com expectativas
exultantes. Com ou sem amizade, Mariana nunca o entenderia. Era uma
outra história com Débora, afinal.
Eles cresceram juntos. Debs morava no prédio da frente, com a avó.
Cresceram jogando futebol, andando de bicicleta no mesmo bairro.
Conseguiram a bolsa no Colégio Maria Santana juntos e sempre foram
bons e inseparáveis amigos. Desde sempre. Ela estava acostumada com
perrengues e desafios.
Não que devesse excluir Mariana de sua rede de amigos por estes
motivos, mas era um dos fatos que o fazia esquentar de desconforto.
Conhecia histórias de dondocas que se divertiam às custas de caras
comuns como ele — nunca acabava bem.
Nunca.
Entretido, Noah pegou o novo celular, configurando-o em minutos
que se arrastaram até duas horas da manhã — e sua sopa esfriou.
Curioso, digitou rapidamente no Google: Mariana Lange. Os
resultados pipocaram na tela em poucos segundos. Com palavras chaves
entre sucessora, atriz, aluna exemplar, discreta na mídia, Hotel Lange,
iniciou-se sua pesquisa. Parecia bom ao seu ver.
Ela saía em poucas fotos nos tabloides, e não havia entrevistas com
Mariana em nenhuma revista que servisse de amparo, embora os jornais
sempre a almejassem por perto.
Um dos primeiros resultados, contudo, foi o filme mais recente que
Mariana havia participado. Frames retirados da produção já estavam
preenchendo a aba de imagens e, ainda que estivesse maravilhosa naquele
papel, a crítica havia detestado sua performance. Noah não era muito rígido
quanto ao cinema e percebeu que daria nota 10 a Ana apenas por seu
esforço.
Continuando a busca, apagou o nome dela e voltou a digitar, dessa
vez, buscando por Caique Massa.
Mais resultados preencheram a tela, sendo bastante enfáticos sobre
quem eram.
Caique e Mariana eram o casal das principais notícias ou imagens
das páginas on-line. Um jovem casal que São Palomane poderia orgulhar-
se ao jogá-los à sociedade brasileira. Noah lembrava de Caique. Era
simpático e jogava bola muito bem durante o intervalo. Fizeram um trabalho
juntos uma vez e Caique fora muito prestativo.
Teria sido fácil odiar Caique caso não cooperasse, mas sabia que o
cara era legal de verdade.
O namorado de longa data de Mariana era filho de uma bem-
sucedida e importante família empreendedora de produtos farmacêuticos. E
a família de Mariana era responsável por uma franquia de hotéis de luxo
espalhadas pelo país.
E, ao seu ver, eles não combinavam em nada, mas ninguém se
importava com a sua opinião.
Que diferença faria?
Cansado, Noah levou o prato até a pia, guardou o celular muito bem
em um dos armários e, por um instante, pensou em pegar um daqueles
livros que Mariana tinha emprestado, dado, enfim, tanto faz. Mas desistiu,
despencou de cara no sofá, ouvindo os ouvidos zumbirem.
A cabeça martelava em mil pensamentos que não soube organizar.
Então, deixou que os olhos pesassem e adormeceu ali.
Sozinho.
Parte II: sábado

“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas
tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o
escuro da noite.”
— CLARICE LISPECTOR.
Oito: mariana

gostaria de dar uma voltinha na mente de outras pessoas por aí. é


possível que sejam mais silenciosas do que a minha.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

— Você lembra da Susana?


— Não.
Ao compreender a réplica, Mariana tentou desviar do olhar severo da
tia, mas sabia que teria que vasculhar a mente até o fundo de seu arquivo
de memória para saber a qual pessoa Rúbi estava se referindo.
A mesa farta de café da manhã era o cenário perfeito para aquela
conversa, Ana sabia que sim.
Os tios tinham chegado pela madrugada, e Simas já estava acoplado
ao seu lado, deliciando-se com seu pão integral favorito. Era de se esperar
que os tios fossem falar sobre o agradável jantar que tiveram na noite
anterior, porém não imaginou que teria que comparecer em outro evento
também — de novo.
Mariana não mencionara algo sobre Noah em nenhum momento.
Não seria apropriado falar que botou um desconhecido dentro de casa,
ainda mais porque ele tinha levado um pneu de tio William e roupas velhas
de Simas para casa — além de dois exemplares da biblioteca, enfim.
Os tios eram caridosos e entenderiam a situação caso explicasse,
mas até que conseguisse formular a verdade, ficaria nervosa e ansiosa. E
não queria que Rúbi oferecesse alguma opinião dispensável. Mariana não
queria receber sermões. Preferiu ocultar a verdade.
— Susana? — reformulou o humor. — Que Susana?
— Susana Lima e Paiva. — Rúbi sorriu, paciente. — Ela estudou
com você, lembra?
Ana quase despencou os ombros: ultimamente muitas pessoas de
seu passado estavam voltando.
Mas sim, se lembrava da doce, tímida e adorável Susana Lima e
Paiva.
— O que tem a Susana? — Mariana ainda não se lembrava do rosto,
mas queria que a conversa ganhasse início. E recordava-se do nome, já era
um progresso.
— Encontrei os pais dela ontem, no jantar. Ela dará uma festa hoje.
De Carnaval. Você foi convidada! — Rúbi espalhou a geleia de morango na
torrada diet e deu uma mordida generosa. — Legal, né?
— Fui convidada ontem?
— Não, não! — Rúbi fez uma careta. — Faz muito tempo, mas os
pais dela fizeram o favor de me relembrar!
Ana hesitou. Não tinha nenhuma fantasia para usar de pronto, porém
não disse nada. O conceito de Carnaval mudava quando o assunto se
tratava de eventos como aquele. Entendia que ricaços nunca gostariam de
parecer com a definição usual da festa — e a versão mais divertida
também. Era apenas mais um pretexto para ostentar e separá-los entre si.
— E como fiquei sabendo disso só agora?
— Porque você esquece as coisas com extrema facilidade quando
não são do seu interesse, amor — Rúbi alfinetou delicadamente. — Os pais
de Susana vieram falar comigo ontem. Relembraram sobre o convite e
ficariam contentes se você fosse. Muito contentes, aliás.
Ok, precisava se concentrar melhor.
Susana Lima e Paiva, Susana Lima e Paiva, Susana Lima e Paiva,
Susana Lima e Paiva, Susana Lima e Paiva.
Ah, certo.
Mariana se lembrava dela agora.
A garota com quem, por muito tempo, Mariana acabou se
identificando.
Nunca tinha trocado uma palavra com Susana, assim como fizera
com Noah. Susana tinha o rosto oval e grandes bochechas coradas, que se
queimavam em grande contato com o sol. Cabelos curtos até os ombros e
cacheados. Susana aparentava ser uma garota legal e inteligente, mas
Mariana nunca tinha falado com ela a pedido de Caroline.
No colégio, um drama sempre será maior do que a situação em si.
Provavelmente havia um cara na jogada, porém Mariana não soube dizer
quem.
— Seria ótimo! — disse por fim, mentindo como de praxe.
Simas, ao seu lado, deixou que a colher caísse no prato, fazendo um
enorme barulho. Rúbi girou a cabeça imediatamente na direção de Mariana
e tio William engasgou com o cheesecake de amoras que comia.
— Pode repetir, por favor? — Simas perguntou extasiado.
— O que foi?
— Você vai?! — Rúbi e Simas perguntaram ao mesmo tempo.
— Vou — resumiu. — É uma festa de Carnaval, não tem como ser
ruim, né? — Mariana olhou da tia para o primo. — Né?
— Estamos surpresos porque você disse que vai — Simas falou.
— Sem discutir, sem bater o pé? — Rúbi repassou as atitudes que
seriam a cara de Mariana. Ao final, ela sempre fazia o que a tia lhe pedia,
mas envolvia uma enorme burocracia antes. — Você quer algo em troca?
— Não! — Mariana caiu na gargalhada, mastigando um pãozinho de
açúcar com mel. — Susana deve ser legal. Eu... ainda não conversei com
ela, não... nunca interagíamos quando éramos da escola. Faz muito tempo,
sei lá. Enfim, mas... — Sorriu confiante. — Acho que vou gostar da festa
dela.
— Ótimo! — Rúbi deu pequenas batidinhas em sua mão. — Caique
vai com você?
Não!, quis berrar.
— Acho que sim — preferiu dizer. De esguelha, encarou Simas. —
Você vai comigo? Chega de ir pra casa do Thiago, faz muito tempo que não
saímos.
— Sou obrigado a ir? — Simas abaixou o queixo, indisposto. Mariana
assentiu na hora. Adorava a companhia do primo, em todos os sentidos.
Simas era seu único amigo, a única pessoa que sabia seus segredos e a
deixava com a vontade de ser uma pessoa melhor todos os dias. — Ok,
então eu vou. Thiago pode ir?
— Encontro de casais! — Tio William cantou, interrompendo a fala de
Mariana.
Ele tinha esse tique, Ana repassou.
Desde o ano anterior, quando Simas revelou, com vinte e quatro
anos, que era gay, William sempre quis deixar claro que não havia
problema nenhum com isso. Que não era como as pessoas gostariam que
ele fosse; ignorante e violento. Ainda que se informasse por meio de
estereótipos de divas pop e fóruns de música, William sempre queria
pontuar que apoiava o filho.
Inclusive envolvendo Simas em um encontro de casais que,
definitivamente, Mariana não queria participar.
— Acho que o interfone tá tocando — Ana mudou de assunto.
Rúbi assentiu, erguendo-se da cadeira e correndo para atender.
— Se eu for à festa, você precisa ir com suas botas laranjas.
— Simas, já disse que comprei aquilo em um brechó.
— Claro que foi, porque ela é horrível, Mariana. Você gasta seu
dinheiro muito mal! — sussurrou.
William riu; ele concordava, afinal. As botas laranjas eram
detestáveis.
Mas o diálogo morreu ali, pois os gritinhos abafados de Rúbi
preenchiam o ambiente por inteiro. Eram altos e estalados, o que queria
dizer que alguém muito querido havia chegado.
Quando retornou, Rúbi estava sozinha.
— Quem é? — William perguntou despretensioso.
— Caique! — A tia vibrou com um sorriso enorme. Mariana não
queria que o pânico se instalasse em seus olhos, mas não pôde conter o
choque em ouvir o nome do namorado. — O que foi, amor?
— Nada! — Mariana disse, rápido, enfiando suco de laranja goela
abaixo. — Achei que só nos veríamos à noite.
— Caique é um ótimo menino. — Rúbi deu de ombros. — E sente
sua falta. Ele sempre quer te ver!
— Sempre — Simas sussurrou antes de dar outra colherada em seu
cereal.
— Vou lá... receber ele.
Mariana limpou a boca com o guardanapo de pano, largando-o em
cima da mesa e liberando seu melhor sorriso de "Sim, estou empolgada que
meu namorado perfeito apareceu sem ser chamado, provavelmente
esperando uma resposta adequada para seu pedido de casamento."
Ansiosa — de um jeito amplamente ruim — , correu até o hall
principal. Caique já estava se livrando do casaco de frio, com gotículas de
água na camada impermeável, resultado de uma manhã tímida e chuvosa,
pronto para pendurá-lo nos cabides disponíveis.
Mariana sorriu, acenando de longe e aproximando-se, retraída.
Caique era um pouco mais baixo do que ela, nada que pudessem
reparar de pronto. Nunca foi um problema. Na época de ouro do casal,
Lange gostava de apoiar seu pulso no ombro dele. Ficavam ótimos em
fotos.
O rosto de Caique parecia o de um bebê crescido, com bochechas
fofas, sobrancelhas ralas e olhos brilhantes. Pele branca pálida e cabelo
cheio. Mas tinha músculos aparentes por qualquer camiseta, e uma
pequena barba que se recusa a tirar.
— Oi. — Caique sorriu, dando-lhe um selinho ao se aproximar. — Tô
atrapalhando?
Sim, pensou.
— Nunca. — Mariana voltou a sorrir. Caique ergueu uma
sobrancelha, malicioso. Puxou-a pela cintura e beijou o pescoço de
Mariana, afoito para beijá-la na boca. — O que veio fazer aqui? —
questionou. Ao menos soube disfarçar o tom rude ao se afastar.
— Só vim ver minha namorada. É um crime federal? — Ele recuou
um pouco, sem soltá-la. Mariana negou, embora soubesse que era uma
pergunta retórica. Então, Caique gargalhou como sempre fizera quando não
a entendia, achando que a namorada era dona de um humor peculiar e
único. — Pensei em passar o dia com você. Sairmos, sei lá. Da última vez
em que nos vimos, as coisas não terminaram como eu queria... —
provocou, sendo um pouco petulante. — O que vai fazer hoje?
— Tenho uma festa para ir — vibrou. — Da Susana.
Caique franziu o cenho, reconhecendo o nome logo de cara.
— Achei que a Caroline e a Bruna odiassem a Susana.
— Você sabe que faz décadas que não converso com nenhuma das
duas! — Mariana se afastou delicadamente, aproveitando para dar mais
alguns passos para trás. Sabia que Caique queria levá-la para sair, apenas
os dois, já que fazia semanas que não transavam. — Enfim, pelo o que eu
sei, a Susana é legal. — disse sinceramente, a primeira frase honesta do
dia. — E eu vou. Hum... nós vamos!
— Por mim tá bom! — Caique abraçou-a de lado. — Contanto que
tenhamos tempo um para o outro depois. — E dispersou uma mecha de
trança twist de Mariana para trás da cabeça dela. — O que acha de um
after? Na minha casa?
Nunca em vida, pensou, querendo fugir.
— Seria ótimo! — A garota estava cada dia melhor em esconder o
que realmente sentia. Com o tempo, se acostumou a não saber o que
queria de verdade. — Vem cá! — disse alto, puxando Caique Massa pelo
pulso. — Minha tia tá morrendo de saudade de você!
— Digo o mesmo. — Caique sorriu, dando ênfase na bela bochecha
macia e alva.
Mariana e ele entraram ao mesmo tempo na sala de jantar onde o
café da manhã estava sendo servido. Rúbi levantou-se da cadeira quase
imediatamente ao ver o sorriso imenso de Caique.
Ela adorava ser uma boa anfitriã, ainda mais de pessoas tão boas
quanto Caique ou Thiago. Já William não gostava muito de Caique. Nada
relacionado a ser uma grande figura paterna na vida de Mariana, só não
gostava. Mas o tio, admitiu a garota, respeitava todas suas escolhas,
embora não concordasse com a maioria.
— Olá, garoto — William cumprimentou com apenas um acenar de
cabeça. Simas agradeceu, naquele momento, que o pai adorava Thiago. —
Tá com fome? Chegou cedo! Sente-se.
— Ah, tomei café em casa, seu William, mas quero um chá. Tem?
— Não tem chá. Apenas suco e café — William respondeu, ajeitando
o bigode acima da boca.
Mariana comprimiu os lábios para não rir.
— Podemos fazer chá. — Rúbi resolveu a questão, encarando o
marido de esguelha, friamente.
— Não quero incomodar, Rúbi. Vim apenas para garantir que
Mariana ainda fale comigo — esclareceu o convidado. William resmungou
algo incompreensível, mas a sobrinha sabia que tinha algo a ver com “Se
não falasse, não seria problema”. — Aceito um pouco de suco, então.
Caique ocupou o assento ao lado de Mariana, cumprimentou
animadamente Simas e iniciou uma conversa agradável com Rúbi. A garota
não conseguia entender quando tinha deixado de achar Caique
interessante.
Ele realmente o foi algum dia?
Em silêncio, observando-o conversar com a tia, lembrou-se de uma
noite específica, há anos, em que estava sozinha ao telefone com Caroline.
A amiga tinha mencionado que Caique era um dos caras mais desejáveis
do Colégio Maria Santana.
Horas depois, a tia voltou de outro jantar no hotel, ironicamente, ao
lado da família dele. Rúbi veio falando sobre os Massa, sobre como eram
gentis e simpáticos e, ainda por cima, tinham um filho que estudava com
Mariana. Não demorou para Mariana tentar identificar Caique na multidão
escolar e perceber que ele era uma graça.
Naquela mesma semana, Caique a convidou para uma festa e Rúbi
aconselhou Mariana a aceitar — daquele jeito passivo-agressivo que Simas
e ela estavam acostumados.
Então, simples como respirar, aconteceu.
Estavam juntos.
Namorando seriamente, aliás, com ambas as famílias em perfeita
sincronia nos negócios e no amor. Talvez tudo o que Mariana vivesse
fossem os sonhos reprimidos da tia. Ou de alguém que não fosse ela.
— Mel?
A garota subiu o olhar rapidamente do prato que tinha decorado com
croissants de frango desfiado e pão doce. Mariana nunca deixava o apetite
ir embora.
— Você me ouviu? — Caique perguntou, com os olhos indo da
namorada até o prato.
— Ãn. — Ela engoliu os resíduos do pão e negou. — Desculpa. O
que disse?
— Adorei as tranças do seu cabelo. É um ótimo novo visual! — E
beijou rapidamente a bochecha dela.
Mariana sorriu, agradecida. Caique realmente era doce e emotivo.
Então por que, de repente, não era mais tão certo ficar com ele?
Que mal tinha em aceitar casar-se com ele?
Estavam juntos há mais de sete anos!
Seria apenas algo inevitável de se acontecer. O justo, o básico. Suas
famílias esperavam por isso.
E por que ela não?
Nove: mariana

não ser quem as pessoas querem que eu seja me magoa mais do que
quando tento sustentar a farsa. tentar está à mercê de falhar. e a falha é
inevitável quando se refere a mim.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

Simas abriu a porta do quarto de Mariana sem pedir licença,


encontrou a melhor amiga e prima aninhada na cama de casal, ao lado de
algumas embalagens de chocolate — e pôde ver uma cestinha do delivery
do Senhor Frango também. A primeira frase que disse a ela seria perspicaz
se não fosse tão cruel. Ao menos, Mariana achava cruel.
— Por que ele tem que ser tão perfeitamente chato? — Simas
questionou, sério. — Às vezes, acho que posso morrer a cada coisa que o
Caique fala.
Mariana riu fracamente. Caique e Simas foram melhores amigos
durante muito tempo. Talvez a aversão do primo a ele fosse,
exclusivamente, pelo fim mal resolvido de uma amizade da infância.
Lange entendia que as pessoas poderiam ser cruéis quando
rejeitadas sem maiores explicações.
— Ele não é tão ruim assim, Simas — Mariana disse calmamente,
dando pequenas batidas na cama para o primo se aconchegar ao seu lado.
— Mas, se você não se importar, não quero falar sobre o Caique, não.
O primo deixou as sobrancelhas arquearem-se.
— Não?
Incluindo Simas, ninguém sabia sobre o fracassado pedido de
casamento, e se Mariana soubesse como terminar o relacionamento, jamais
teriam ciência da oferta.
— Não! Prefiro te contar o que fiz ontem à noite.
Simas sentou-se ao seu lado, deitando-se na cama de casal.
— O que você fez ontem à noite?
— Preciso te falar uma coisa...
— Você tá tendo um caso extraconjugal?
— Não, para isso eu preciso ser casada — reforçou. — E ter um
caso.
— Seria interessante se tivesse. Imagina, você tendo uma aventura
por aí, sem hora para voltar? — Com a pergunta retórica, Simas abriu um
pequeno sorriso. — Enfim, foi mal, o Thiago tá me ensinando dramaturgia
por causa dos trabalhos de literatura. Desde então, me sinto um pouco mais
dramático — emendou. Mariana revirou os olhos, encarando Simas. —
Enfim, o que é?
— Uma pessoa veio aqui ontem...
— Quem? O Caique?
— Não, não. — Sorriu sem jeito. — Foi um cara que estudou comigo.
A moto dele quebrou em frente de casa, no meio daquela chuva horrenda.
Deixei que ele entrasse. Estava todo molhado, podia ter pego um
resfriado... então emprestei umas roupas suas a ele. Espero que não se
importe!
Simas encarou a prima como sempre encarava quando lhe contava
algo: os olhos brilhando e a boca dobrada ao meio por achá-la fofa.
— Sim. E daí? O que tem de mais nisso?
— Como assim "e daí"? — Ana franziu o cenho.
— Se fosse, sei lá, um cara qualquer, você teria me contado assim
que cheguei. Mas tá contando enquanto estamos sozinhos. — Simas
ajeitou-se na cama, intrigado. — Quer me dizer algo?
Mariana usou da dúvida para fazer uma pausa na conversa; gostava
de como partilhava da mesma mania que o primo. As sobrancelhas grossas
rapidamente se juntavam no centro da testa e a boca, grande e cheia,
erguia-se alguns centímetros, mostrando insatisfação.
Se quisesse, poderia passar-se como irmã de Simas. Os olhos, as
sobrancelhas, a altura, os ombros largos eram os mesmos. A maior
diferença, no entanto, era que Simas possuía uma pele negra-retinta, igual
à da mãe, Rúbi. E os cabelos, em fios crespos bonitos e simétricos,
herdados de William.
— Bom, quero dizer que eu desejo evitar um clima pesado entre
Rúbi e eu. E como ela tem essa política tola de tomar cuidado com quem
faço amizade e essas coisas. Não quero drama, porque... ela tem aquela
conversinha de sempre.
— De alguém se aproximar de você e vender suas fotos para
jornais? — Simas completou automaticamente. Mariana assentiu. — Não
passamos desta fase? — perguntou, ao ver Mariana negar. — E esse cara,
ele parecia um otário? Um otário do tipo que venderia fotos suas para
jornais?
— De primeira aparência, não — Mariana disse honestamente. —
Mas depois... ele ficou quieto de repente. Ficou pensativo, não parava de
encarar o chão. E outra coisa, tenho certeza que ele não tirou foto alguma
minha. Eu estava lá o tempo todo.
Simas sorriu, de lado.
— Certo. — O primo olhou para o teto. — Ele realmente não te
conhece. Porque a pessoa mais sem graça do mundo é você. Não tem
porque vender fotos suas distraída. O que conseguiria? — argumentou.
Mariana semicerrou os olhos. — Não é uma ofensa. Eu, no seu lugar, daria
uma festa com um desconhecido. Viveria a minha vida como bem
entendesse, sabe?
Mariana ficou em total silêncio.
Fazia e não fazia sentido. Ainda que fosse uma conversa tranquila, a
sucessora sentia que Simas Lange estava a manipulando para lhe dizer o
que bem quisesse. Era normal não dar ouvidos a ele, visto que Simas
quase sempre tinha razão, e admitir aquilo já era terrível o suficiente.
E Ana não sabia reconhecer um ponto de mudança na vida. Seria
mais fácil alguém pegá-la pela mão e lhe dizer passo a passo o que fazer
— e, certo, alguém que não fosse Simas, claro.
— Ana, vamos lá, começaremos por partes... Qual foi a última vez
que você fez algo para você? — perguntou. Ela apontou para as tranças
twist que decoravam seu cabelo. — Tirando detalhes que não possam te
deixar tão deslumbrante quanto antes. — Ele revirou os olhos. Mariana deu
de ombros. — Exato. Daqui a pouco você não vai ceder às investidas da
minha mãe sobre os jornais, vai?! Aceitou o papel naquele filme por causa
dela e se deu mal!
— Não sei, eu...
— Mariana, eu te apoio em tudo o que você quer fazer. Desde que
seja a sua vontade! — Simas afundou-se ainda mais em sua cama, estava
extremamente confortável. — Comece a pensar que a vida da minha mãe
tá feita e pronto. A sua é que precisa de foco. Não precisa agradar os meus
pais, sabe? Não é teu dever.
— Eu sei. Tenho plena convicção disso. Só... — Mariana suspirou. —
Só me sinto... culpada é a palavra certa? Não sei como me definir. Mas
meus tios, seus pais, são pessoas incríveis, que lutaram por mim desde
sempre. Simas, eles são meus pais, praticamente me criaram! Por que eu...
sei lá, não poderia fazer o que eles me pedem? Não seria um sacrifício!
— Tudo o que você faz por Rúbi é incrível. Você ter paciência em
acompanhá-la naqueles chás e jantares entediantes é impressionante. Mas
se continuar com essa ideia primitiva de ter que agradecê-los por lhe dar
amor, você nunca irá viver, Mariana.
Ela não sabia ao certo o que “viver” significava. Certamente envolvia
coragem. Muita, muita coragem. Se pudesse, pegaria o primeiro voo para
outro país sem olhar para trás e voltaria anos depois, após ter feito milhares
de cursos.
Bem, Mariana sempre soube que podia, só não tinha a ousadia
necessária.
Mas até quando?
— Você tem razão, Simas — disse, finalmente, apoiando-se no
ombro do primo.
— Eu sei que tenho. — Convencido, pôde sorrir. — E esse cara? Vai
voltar a vê-lo?
— Difícil dizer... só... vem comigo na festa da Susana? Seria legal ter
você lá.
Simas até que poderia ter aceitado na frente da mãe, mas, no fundo,
acabaria fugindo para a casa do namorado, Thiago, quando ninguém
estivesse olhando.
Mas era Ana, sua prima querida, que tinha vindo morar com ele e
sua família após a morte repentina e trágica dos pais; Ana, que sempre
tinha algo bom a lhe dizer e que sorria com mais facilidade do que uma
Miss Universo.
— Claro, vou sim — prometeu. — Só se me responder o que lhe
perguntei — reforçou. — Acha que vai ver ele de novo?
Aquilo era uma resposta que Mariana não tinha, apesar de estar tão
curiosa quanto Simas. No entanto, tinha disposição para esperar, o que
tornava tudo bem mais excitante.
Dez: noah

o impasse de querer viver e não conseguir.


e o de sufocar-se por não viver.
ou estudo e trabalho, ou respiro. os três, em sumo acordo, não dá
para administrar.
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

Noah foi uns dos primeiros garçons a chegar nas acomodações da


Família Lima e Paiva naquela tarde, no bairro do Jardins.
Levava todo e qualquer trabalho a sério, e não queria dar motivos —
mesmo pequenos — para não receber todo o dinheiro que havia combinado
com a aniversariante. Duzentos reais a hora, era isso o que esperava
receber na contagem final.
De pronto, sabia reconhecer que Susana e ele não eram amigos,
mas quando Susana decidiu fazer uma festa de quinze anos, há muito
tempo, Noah ofereceu-se para ser um dos garçons. Fazer uns bicos aos
finais de semana sempre foi sua fonte de dinheiro extra.
Desde então, ela sempre o convidava para fazer parte da equipe de
manobristas, garçons ou bartenders nas festas de sua família.
Diferentemente do que esperava, Susana não tinha a soberba
comum do restante dos alunos do Colégio Maria Santana, e Noah
agradeceu internamente por ter sido escolhido para participar do evento.
Uma festa de Carnaval daquela magnitude pagaria muito bem. Só
precisava se concentrar, lembrar de sempre sorrir e acenar com a cabeça, e
assim não teria problema algum com nenhum daqueles babacas de terno e
gravata.
Fora que não teria que se importar em conhecê-los ou reconhecê-
los. Por ser contratado para servi-los, Noah Dias ouvia muitas fofocas
quentinhas que poderiam estragar uma família inteira. Porém, era nobre
demais para usá-las a seu favor — ou ousado de menos.
Por alguns instantes, enquanto analisava a construção exuberante
da família de Susana, Dias refletiu se Mariana Lange apareceria por lá.
— Noah, oi! — Ouviu alguém gritar. — Que bom que chegou!
Era Susana, que descia as escadas do salão de festas da mansão.
No centro do ambiente, Noah conseguiu reparar no enorme lustre de
cristais no topo da pista de dança e nas mesas prontas para receber o jogo
de louças de porcelana circense.
— Sério, Noalin, valeu por aceitar. Espero que eu não tenha te
atrapalhado todo!
Susana era um doce e Noah gostava de como seu sorriso era bonito
e simpático. Ao terminar de descer as escadas, a dona da festa colocou-se
à frente dele.
— Me chame de Noah — pediu, escondendo as mãos atrás do corpo
automaticamente. Ainda usava roupas antigas, logo colocaria o uniforme
disponibilizado e amarraria o cabelo em um rabo de cavalo baixo. — Não,
você nunca me atrapalha, Susana. Eu que agradeço por ter lembrado de
mim. Depois que derrubei uma taça de suco no seu avô, pensei que nunca
mais veria a cor do dinheiro da sua família.
— Nós bem que ficamos pensativos. — Riu ela. — Mas ninguém
aqui gosta direito do meu avô, então... bem feito para ele!
Mais tranquilo, Noah riu educadamente. Ainda que gostasse de
conversar com Susana, estava ali com apenas uma tarefa. Ser o garçom da
festa e esbanjar profissionalismo.
— Você é da casa, é a mesma coisa de sempre. Seis horas de festa,
ficará no salão principal e na área externa. Receberá pelas horas extras
também. — Susana acrescentou. E sorriu para si mesma ao avaliar a
decoração chique e carnavalesca do lugar.
Ouvir aquilo, embora fosse óbvio, era um tremendo alívio. Era mais
do que uma garantia que Susana Lima e Paiva era uma pessoa boa, e que
não só pensava nela ou em seus interesses. Dias já trabalhara em dezenas
de casas em que as condições trabalhistas eram horrendas, além de serem
absurdas.
No entanto, no pouco que conhecia Susana, Noah perguntou-se por
que a colega estava oferecendo uma festa para pessoas que odiava.
Ninguém nunca fora justo, legal ou educado com Susana na escola;
pouquíssimas pessoas destacavam-se naquela leva de alunos que a
tratavam com hostilidade.
Então, por que convidá-los?
— Feliz aniversário. — Noah disse, um pouco desconfortável pelo
silêncio repentino.
— Foi semana passada, mas obrigada — esclareceu, voltando a
olhá-lo. A aniversariante vestia um longo roupão comportado, escondendo
as pernas em calças legging roxas. — Quando você faz aniversário? Não é
perto do meu? Lembro que sim...
Noah sorriu.
— Foi semana passada.
— Mesmo? — Susana ergueu as sobrancelhas. — Que di...
— Susana, aí está você, meu amor! — Uma voz trovejou por todo o
salão, retumbando pelo ambiente vazio.
Noah pôde jurar que percebeu o lustre de cristais tremendo e
balançando, prestes a cair. Disfarçadamente, Susana revirou os olhos,
cruzando os braços de leve.
Do alto da escadaria, uma mulher extremamente parecida com a
garota descia os degraus, batendo os pés raivosamente pelo carpete
vermelho que se assemelhava a um longo tapete chique por onde
celebridades passavam em premiações.
— Você tem que subir! Agora! — A mulher voltou a esbravejar. —
Temos cabelo para fazer, maquiagem para escolher... Deus! Temos muita
coisa para ver. E esse salão! — gritou, abrindo os braços. — Nem está na
metade da decoração! — Os olhos da senhora Cândida Lima e Paiva
pousaram ardentemente em Noah. Se o rapaz fosse palha, estaria
queimando. — E quem é você? O que tá fazendo aqui? Volte ao trabalho!
As bochechas de Cândida, reparou Noah, já estavam mais
vermelhas de estresse do que o próprio tapete.
— Mãe! — Susana bradou, envergonhada. — Para com isso. Tá
tudo bem, já vou subir — a acalmou, sem sucesso. — Este é o meu amigo
da escola, lembra? O Noah. Ele vai ajudar na festa hoje...
Cândida encarou-lhe em dúvida; por alguns instantes, a menção de
um colega antigo de Susana pareceu boa. Dependendo do sobrenome
dele, poderia ser de uma grande família da sociedade. Entretanto, o Dias
não lhe remeteu a nada esclarecedor ou com uma característica boa o
suficiente para diminuir o tom de voz com Noah.
Ela eriçou ainda mais as costas, mantendo-se na postura.
— Dias, não é? — Quis refrescar a memória. — É... sua família é
nova na cidade?
— Não que eu saiba. Meus familiares vivem aqui em São Palomane
há mais de quarenta anos, dona Cândida.
— E onde você mora?
— Não muito longe, é perto do campo de futebol abandonado, na
região leste da cidade. — Noah sorriu categórico e observou o rosto
falsamente calmo de Cândida Lima e Paiva se transformar em horror.
Susana comprimiu os lábios para não rir. — Mais alguma dúvida em que
serei útil?
— Não — respondeu, atordoada. — Pode... hum... pode continuar
com seu trabalho. — Gesticulou com as mãos pelo ar. — E Susana? —
acrescentou, afiada. — Preciso de você lá em cima dentro de cinco
minutos. Fui clara?
— Cristalina.
— Ótimo!
Dando uma última olhada em Noah, Cândida deu as costas aos dois,
passando rapidamente entre os outros garçons e subindo a escadaria com
pressa.
— Ela é sempre um doce assim? — Noah debochou, arrastando
uma cadeira qualquer para a mesa mais próxima.
— De vez em quando entra nos nervos. Este foi o jeito educado dela
dizer “olá”. — Susana riu um pouco. — Mas agora tenho que ir mesmo,
senão vamos vê-la na pior versão. Obrigada de novo em aparecer, Noah.
Com um menear de cabeça simples, Susana entendeu que poderia ir
embora.
Refez o mesmo caminho de onde veio e deixou Noah entender-se
com os demais funcionários.
Repassando a conversa de segundos atrás, Noah não tinha motivos
para sentir remorso ou vergonha de onde vinha.
Esconder-se novamente estava fora de seus planos.
Onze: mariana

sentir-se intrusa em um lugar é desejar sair depressa o mais rápido


possível. e assim, tornar-se deslocada em outro. a mesma pessoa, nos
mesmos lugares errados de sempre.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

Mariana demorou mais que o habitual no banho.


De acordo consigo mesma, a água quente e o vapor aconchegante
purificavam todos os males de um dia comum.
Passou o dia todo pensando naquilo que Simas havia lhe dito pela
manhã. Sobre sentir-se obrigada a retribuir tudo aquilo que lhe davam. Ser
compassiva, e até mesmo maleável, sempre fez parte da sua rotina.
Sabia que os tios haviam lhe criado com todo o amor do mundo e
que, em si, nunca fora um problema para eles. Tampouco um estorvo. Que
mal teria fazer o que a tia sugeriria de vez em quando?
Ter aceitado o papel naquele filme, em sua linguagem, era uma das
provas de amor.
Se os pais estivessem vivos, perguntou-se Mariana, teria aceitado
guardar suas opiniões por tanto tempo? O medo de ser odiada ou renegada
falava mais alto no fim.
Para tentar mudar um pouco sua própria imagem e começar a
praticar o que ouvira do primo, Mariana decidiu começar com pequenos
passos. Sem correr ou acabar tropeçando. Em suma, pequenos passos no
sentido figurado.
O primeiro deles foi ignorar a roupa que Rúbi separou para ela, com
a intenção que usasse no aniversário de Susana Lima e Paiva, algo que
tornou-se costumeiro com o passar dos anos.
Mas Mariana hesitou, já que se tratava de um vestido justo, longo e
rodado. Não era para tanto, era apenas uma festa de Carnaval. Porém, se
fossem em outras situações, o colocaria sem protestar. O corte lhe
agradava e a cor também, só queria tentar algo diferente.
Justo, não?
Ana passou direto para o closet, selecionando outro vestido, um
azul-marinho de veludo quase inato e corte simples. Sem decote, sem
apertar o corpo e as curvas.
Absolutamente simples e elegante.
Ajustou as tranças twist em um coque alto e volumoso e suspirou de
frente para o espelho. Ótimo, estava bom.
De onde estava, espiou o presente que a tia havia comprado para
Susana, prostrado em cima da cama: um vale-presente especial de uma
loja de grife. Mariana revirou os olhos e aproximou-se, leu as letrinhas
douradas na etiqueta e jogou o “presente” para debaixo da cama.
Não conhecia Susana, mas o pouco que observara das redes sociais
é que a garota nem de longe se interessava por aquela marca. Mariana
também não achava aquilo atrativo, era um presente impensado e
preguiçoso. Preferia aparecer sem nada e arranjar uma desculpa qualquer
para presenteá-la mais tarde, quando pudesse.
Quem sabe passasse o domingo todo pensando em algo.
Sim, ok, combinou consigo mesma o plano. E já tinha feito bem mais
do que um dia pôde configurar. Escolheu a própria roupa e evitou seguir em
frente com o vale-presente.
O sentimento era bem mais do que bom, e Mariana jurou que
poderia acostumar-se com aquilo.

Caique chegou minutos depois, às sete.


Mariana esperava ir até a festa com Copel, mas lembrou-se, tarde
demais, que namorava com Caique. Precisou repetir a informação quando
pegou o casaco e enfiou Simas e Thiago no carro estilo Bentley de Caique.
Os quatro foram o caminho todo conversando sem parar. Caique tinha a
mão direita pousada no joelho de Mariana, atento à cada palavra que a
namorada dizia. Ato que um dia já tinha achado de extremo carinho para
Ana, naquela noite não passava de um mero detalhe.
— Você tá linda, Ana!
Caique sorriu de esguelha, sutil. Aquele mesmo sorriso de lado que
já fez meu coração palpitar, pensou Lange.
Será que, com as mudanças que estava planejando fazer, Caique a
deixaria?
Ou ela o deixaria primeiro?
Qual era o mais justo?
A pergunta lhe fez interromper o sorriso prático, que abriu em forma
de agradecimento.
— Obrigada! — Ela se debruçou para beijar sua bochecha. — Você
também!
Tímida, voltou para o lugar em silêncio.
Não estava mentindo, na realidade. Caique usava uma elegante e
refinada camisa social Ralph Lauren cinza, que caía perfeitamente bem
com a calça social preta, um cinto de couro Armani e sapatos incríveis de
couro sintético — bom, era o que Caique dizia.
Ele estava magnífico, como sempre.
Quando chegaram perto da casa de Susana, Mariana sentiu o corpo
ficar um tanto trêmulo por saber que a imprensa estava faminta por
encontrá-la.
Se pudesse mudar algo drasticamente, começaria por aquilo, pensou
ao morder os lábios.
Saiu do carro assim que Caique estacionou, sem esperar que o
namorado abrisse a porta. Thiago e Simas seguiram mais à frente,
entrosados. Ambos combinaram nas vestes; Thiago usava um terno preto
com gravata vermelha e um arco com chifres de diabo. Simas preferiu um
terno branco, com asas de anjos e uma auréola dourada.
Ao ver os dois, Mariana sentiu-se sozinha. Daria tudo o que pudesse
para voltar a gostar de Caique daquela maneira.
Tudo.
Um tanto cansada da própria mente — desejou um pouco de
sossego de si mesma — , Ana entrelaçou os dedos nos de Caique e,
juntos, caminharam pelas pedrinhas cinzentas dos fundos da mansão, rumo
ao salão de festas.
Alguns paparazzis se espremiam atrás das grades dos portões,
chamando pelos dois.
Caique acenou ao sorrir, obrigando indiretamente Mariana a fazer o
mesmo.
As câmeras adoravam Caique, e vice-versa.
Satisfeitos, o casal entrou pela entrada principal, onde um enorme
tapete vermelho fora posto, como decoração extra para a imprensa
convidada.
Mais alguns fotógrafos acamparam ali, com seus cliques atentos e
flashes fervorosos. Simas também era bom com as câmeras, Mariana o
invejava. Tiraram algumas fotos oficiais e finalmente puderam entrar.
Mas, antes, Mariana prendeu uma máscara de papel no rosto, feita
com plumas e glitter para, ao menos, conseguir sentir-se dentro do tema do
aniversário.
Caique a conduziu pelo salão imenso, animado. Ana procurou pelo
primo, mas entendeu que a ocasião poderia servir como um breve encontro
de Simas e Thiago, então decidiu não os incomodar.
Os garçons passavam de um lado para o outro, servindo canapés de
arroz doce e risotos de batatas com agrião. A decoração mantinha-se em
ares circenses, com belos artistas espalhados pela área, ora atuando, ora
entretendo os convidados com truques de mágica e apresentações em
cortinas presas ao teto.
Noah estava entre esses garçons. Havia ficado encarregado de não
deixar nenhum bom magnata sem uma taça generosa de champanhe ou
outros drinques para molhar a garganta.
Sorria sempre que possível, ainda mais ao saber que a mãe de
Susana, Cândida, estava com os olhos bem pregados nele.
Enquanto inspecionava o ambiente, suas orbes passaram pelo local:
qualquer pessoa com copos vazios era sinal para aparecer.
Paralisou em poucos instantes ao identificar Mariana Lange não
muito ao longe, quieta e levemente retraída. Noah sempre a considerou
divina, bonita em parâmetros que nunca soube descrever com prática.
Aliás, Mariana era muito bonita. De lábios carnudos, olhos castanho-
escuros que escondiam sempre um mistério — era assim que ele via — ,
alta e robusta.
Mas, contudo, dentro daquele vestido longo, tentando esconder-se
atrás de uma máscara singela, Noah pôde jurar que tinha perdido o fôlego
por minutos incontáveis. Mergulhado de cabeça em um mar turbulento, sem
forças para voltar à superfície.
Era assim que Noah a via.
Voltou a vida quando percebeu Mariana ao lado de Caique. Não
estava sozinha, mesmo se quisesse.
É claro, resmungou, ela nunca estaria aqui sem ele, e retornou a
servir as pessoas.
Se Noalin pudesse passar despercebido, o faria.
Isso não queria dizer que Caique Massa não queria beber um pouco,
pois quando, infelizmente seus olhos cruzaram-se, Caique fez um sinal para
que Noah viesse para perto.
Dias aproximou-se assim que notou a mão erguida de Caique, com
um sorriso educado e prático. Levou a bandeja levemente trêmula consigo.
Quanto mais se aproximava-se, mais torcia para que Ana não o
olhasse, pouparia conversas desconexas. Na verdade, o pouparia de uma
interação péssima.
Porém, Lange o viu e suas costas retesaram. Lange ficou tensa, de
ombros vacilantes. Sentiu como se estivesse traindo mentalmente Caique,
e não estava. Nem deveria pensar numa coisa daquelas.
Noah vestia um uniforme padrão dos garçons e, naquele instante,
com o cabelo amarrado, pôde enxergar seus olhos quentes e intimidadores
com muito mais facilidade do que na noite passada. E, ainda assim,
continuavam lindos.
— Obrigado, rapaz — Caique agradeceu, pegando uma das taças de
espumante. — Quer um pouco, Ana?
— Não, obrigada. — Ela recusou com um acenar de mão.
Noalin não sabia a razão, mas continuou parado lá, à frente dela,
esperando por algo. O quê? Não sabia dizer. Um sorriso? Um
cumprimento? Um “Vai embora, Noah, não estou mais entediada”?
— Oi, Noah — preferiu dizer. — Não sabia que estaria aqui.
Ele quase soltou o ar do corpo, aliviado.
— Costumo aparecer nas festas de Susana para dar uma forcinha.
Sem querer, Ana achou aquilo interessante. Nunca esteve presente
nos eventos de Susana, mas, talvez, começasse a aparecer.
— Sobre ontem — Noah disse, se direcionando a Mariana. Seus
ombros ficaram ainda mais tensos. — Não sou daquele jeito... meio
estranho ou caladão, juro que sou bem mais legal. — Noah sabia que não
era a melhor hora, mas não teria outra para se explicar. Seria pior. — Ainda
assim, tenho a impressão que fui embora de repente.
— Um pouco, mas... não me ofendeu. Isso é um pedido de
desculpas? — Mariana sorriu, sugestiva.
— É, pode ser. — Ele deu de ombros, descontraído.
— Aceito, então.
— Certo. — Engoliu em seco. Havia se esquecido que Caique estava
logo ali. — Tenham uma boa noite!
Mantendo a questão profissional, Noah desapareceu entre a
multidão, antes que se metesse em uma briga com um riquinho. Algo que
poderia acontecer, quem sabe?
Mariana ainda se manteve sorridente após a saída dele, intrigada
pela presença.
Caique, tossindo entre o punho fechado, ficou à frente da namorada.
Confuso, mantendo as sobrancelhas unidas.
— O que foi isso?
Então, ela acordou.
No salão, não havia apenas Dias e ela. Seu namorado de anos
estava bem ali, ouvindo tudo.
— Ah. — Mariana seguiu o olhar para o mesmo lugar onde Noah
havia se infiltrado entre os convidados. — Ah, não foi nada... acho... enfim,
sabe ontem à noite? — questionou. Caique assentiu. — Estava chovendo
muito. Meus tios tinham saído e Simas também, eu fiquei sozinha. Noah
acabou com a moto quebrada em frente à casa e deixei que entrasse para
se aquecer e esperar a chuva passar.
— Como ele sabia que era sua casa?
— Não sabia — garantiu, calma. — Ele tentou outras casas antes de
tocar o interfone — respondeu, percebendo aos poucos como aquela curta
história parecia absurda.
Caique deu um gole na bebida, ainda encarando Mariana. A garota
respirou fundo.
— Não crie um caso com isso, Caique.
— Não quero criar — recuou um pouco, franzindo a testa. — Só é
incomum, concorda?
— Ele estudou na nossa escola, sabia disso? Não é um completo
estranho.
— Não disse nada disso. Só quero saber se posso confiar em você
— adicionou. — Eu te vi hoje mais cedo, seria bom ter comentado que
esteve sozinha com um cara que não vemos há mais de cinco anos.
— Você deve confiar em mim — acrescentou. Mariana sentiu o corpo
esfriar. — Caso contrário, não estamos em um ótimo relacionamento. Eu
apenas o ajudei e ele está se desculpando por ter ido embora tão rápido. É
apenas isso. Somos amigos agora...
Era? Se era, porque sentia-se tão mentirosa e incoerente?
Assim que respondera, Mariana torceu internamente para que
Caique criasse, sim, um caso. Quem sabe demonstrasse ciúme sem
sentido e Mariana visse que Caique Massa não era tudo o que diziam. Não
orgulhava-se de ser tão covarde.
Então ele fez algo que Mariana não esperava: roubou um beijo
rápido dela e sorriu, tranquilo.
— É óbvio que achei estranho um cara que você nunca mencionou
antes aparecer na sua casa. Ainda mais a noite — disse calmamente. —
Mas se você tá me dizendo que são amigos agora, por mim está tudo bem.
Apenas perguntei. Confio em você de olhos fechados! — Caique abraçou-a
pela cintura. — Reconheço ele, já que você tá dizendo. Do Colégio Maria
Santana, né? E fico feliz que ajudou uma pessoa que precisava. Você é
incrível, Ana!
Não era o que esperava. Já não poderia dizer que conhecia Caique a
ponto de saber seus próximos passos. De repente, soube que era uma
impostora. Tanto com ele, quanto consigo mesma.
— Ah... — Ela sorriu de lábios lacrados. — É. Obrigada por entender.
Caique abriu um intenso sorriso de efeito, beijou a bochecha de
Mariana e arrastou-a pelo salão em busca de conhecidos.
Seria uma noite longa.
Doze: mariana

em uma doce mente carregada de falhas, o medo sempre vence.


sempre.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

— A Georgia Pessoa poderia estar aqui!


Mariana entortou o copo de margarita de uma vez.
— Você é única, Ana! — Caique riu bobamente, dando uma extensa
gargalhada que faz Mariana jurar que a piada não fora tão engraçada
assim. — Mas por que a Georgia estaria aqui?
Ela estava se referindo à festa de Susana Lima e Paiva estar
verdadeiramente chique, exclusiva e de fazer qualquer queixo cair.
Tão refinada que artistas contratados passavam entre o público
dando o ar de estarem em um circo espalhafatoso e criativo. Todos estavam
em belas roupas e adereços; a piada era apenas para comparar que
celebridades da alta costura, modelos, cantores ou dançarinos poderiam
estar lá. Músicos famosos com certeza marcariam presença e Susana
deveria estar feliz, de certa forma.
No entanto, Caique sempre ria quando não entendia o que Mariana
queria lhe dizer. Era apenas um comentário divertido que certamente
atingiria Simas com clareza: ele falaria outros nomes que deveriam estar lá
e sairiam para procurar, por diversão.
Mariana decidiu beber um pouco; seria naquela noite que romperia
com Caique. Ele não merecia ficar com alguém que não o estimava. Não
mesmo.
Noah Dias zanzava de um lado para o outro. Algumas vezes lançava
caretas divertidas a Mariana, que não prestava tanta atenção em Caique,
ou qualquer pessoa que lhe capturava para uma conversa. Noah mostrava
a língua, até mesmo rolava os olhos, e Maria ria com discrição.
Lange não saberia dizer se a questionassem, era apenas sua
segunda margarita, mas com certeza seria a última.
Comparar as pessoas era um ato feio e egoísta, e ela não podia ser
tão cruel com Caique. Ele era seu namorado e estava tentando manter a
noite agradável. Ela, certamente, é quem era a mesquinha da situação.
Caique encostou-se perto de uma janela qualquer, e Mariana
obrigou-se a se juntar a ele. Fechou rapidamente os olhos quando uma
ventania generalizada começou a atingir sua face. Sabia que era o pior tipo
de beijo já recebido.
Odiava o vento, odiava seu desespero para adentrar pelas frestas de
uma janela, odiava noites de tempestades e odiava como se sentia.
Seu coração gelou no mesmo instante, um calafrio dançou entre
suas costelas e Mariana pôde jurar que botaria toda a margarita para fora.
Caique puxou-a pela cintura. O emaranhado de suas mãos e beijos
molhados em seu pescoço lhe davam a falsa sensação de que a chuva,
que se aproximava, havia lhe raptado.
— O que foi? — Caique parou de distribuir beijinhos no rosto da
namorada.
Mariana demorou a focar seus olhos nele e, então, negou duas
vezes com o queixo.
— Enfim. — Ele respirou fundo. — Às vezes fico pensando que seria
ótimo me formar logo para depois...
— Para depois?
— Ana — disse ao rir, antes de continuar. — Meus pais se casaram
cedo. Acho que os seus também, né? Bom, não sei ao certo, mas sempre
gostei da ideia de me casar assim que saísse da faculdade.
Ela digeriu a informação. Caique estava na primeira graduação e
Mariana pensando na possibilidade de fazer uma segunda. Quanto tempo
esperariam?
O pedido fora feito dias antes, claro que Caique puxaria o assunto
novamente. Claro.
Não saberia dizer se Caique podia entendê-la com clareza. Temia
que fosse taxada como insensível, malvada ou egocêntrica. Não queria
sermões ou julgamentos. Apenas espaço para respirar, longe daquela
janela. O céu continuava cinzento, e ela tentava ignorar as nuvens rosa-
claras que se formavam quando a noite caía sem pretensões de chuva.
Um relâmpago acendeu ao alto, no segundo que Mariana engoliu em
seco.
Uma noite como aquela.
Um adeus para sempre.
Deus, sentia-se apertada.
E como ele poderia pensar em casamento? Mariana nem ao certo
sabia se conseguia acabar a noite ao seu lado, quanto mais uma vida
inteira. Não queria pensar nas circunstâncias que poderiam levá-la ao altar.
Não com ele.
Não queria ouvir vozes abafadas e poucas pessoas lhe acalmavam.
Estava ficando expert em disfarçar seu medo de chuva em situações como
aquelas: cercada de pessoas e olhos ligeiros.
Talvez fosse a margarita, Mariana não saberia dizer. Talvez a
margarita ou os beijos melosos de Caique. Suas mãos pegajosas e seu
sorriso embaçado pelo mal estar. Não saberia dizer. Com um sopro
descuidado, seu coração poderia saltar pela boca.
Caique inclinou-se em sua direção, queria outro beijo.
— Vou ao banheiro.
Juntando toda a força que continha para si, Mariana conseguiu
empurrar Caique. Talvez um pouco mais forte do que gostaria.
Não esperou pela resposta, caminhou batendo os pés entre o piso
clássico e chique da festa. Desviava das pessoas conforme a chuva
aumentava lá fora. Os flashes de algumas câmeras se tornavam como raios
particulares: a mesma classe, o mesmo incômodo.
Queria livrar-se dos saltos, do vestido, de tudo. Queria ir para casa.
Longe da pista de dança, o estômago embrulhou quando jogou todo
o corpo para abrir a porta do banheiro feminino mais próximo. Felizmente,
estava completamente vazio.
Com as paredes imitando renda dourada e vermelha e longas pias
cercadas por cerâmicas desenhadas à mão, Mariana respirou fundo. Lá, a
chuva não poderia assustá-la.
Com enormes espelhos que refletiriam quinze pessoas sem
esforços, Ana debruçou-se na pia, sentindo o corpo todo entrar em colapso.
Tomou o devido cuidado ao voltar até a porta, trancando-a.
A casa de Susana Lima e Paiva era grande o suficiente para haver
outros banheiros gigantes como aquele, ninguém notaria a falta de um. Ela
esperava que sim.
Com cuidado, Mariana retirou os saltos com facilidade, jogando-os
para qualquer cabine. Arrancou a máscara do rosto e voltou até a pia,
mergulhou o rosto na água entre suas mãos. Aquilo era relaxante e devia
servir.
— Nada de margarita novamente para você, Mariana — discorreu a
si mesma, voltando a lavar o rosto com água.
Definitivamente, não queria continuar daquela forma.
Mariana virou-se de costas para o espelho, curvando-se, e não se
importou com o vestido que acabou molhando, na altura do quadril. A
maquiagem, mesmo com água, continuava intacta.
Iniciou uma nova contagem e fez um exercício de respiração.
— A minha festa tá tão ruim assim?
Pega desprevenida, Mariana deu um grito abafado pelo susto que
levou de Susana.
Escorada na última cabine do banheiro, a anfitriã sorriu de maneira
contida. Olhos decorados com pequenas bolas de glitter, pérolas nas
bochechas, dentro de um longo e bufante vestido turquesa, Susana sabia
que estava deslumbrante. O poder do circo, é claro, concluiu Mariana
mentalmente.
— Jesus Cristo, claro que não. Eu... Não... — Ela secou o rosto com
as mãos desengonçadamente. — Não é isso. Só... — Virou-se de encontro
ao espelho novamente. Susana aproximou-se, ocupando a pia ao seu lado.
— Sua festa tá ótima!
Mariana não estava mentindo. A comida estava perfeitamente no
ponto, músicas da atualidade não paravam de tocar nas caixas de som, e
havia visto as pessoas dançando bastante.
— Você teve uma ótima ideia sobre o circo — comentou ao rir. —
Meu último aniversário mais criativo foi da Barbie.
Susana terminou de lavar a mão em silêncio.
— Não vai ser malvada comigo hoje, Mariana? — Susana Lima e
Paiva semicerrou os olhos na direção da garota extremamente alta ao seu
lado. Mariana juntou as sobrancelhas. — Bom, é óbvio que nunca contei à
minha mãe que você e suas amigas eram pessoas horrendas na escola...
Mariana abriu e fechou a boca.
Não lembrava-se de ser cruel com Susana, aliás, sequer recordava-
se de ter interagido com a aniversariante antes.
— Acho que entendi o que quer dizer, mas não sou mais amiga da
Caroline, nem da Bruna — defendeu-se. — Eu te tratei mal, mesmo?
Susana deu de ombros.
— Ok, talvez eu esteja exagerando. Você nunca me tratou mal, mas
nunca me tratou bem ou interferiu nas ideias sem limites de suas... ex-
amigas. — Susana cruzou os braços, e os seios grandes ergueram-se pelo
decote discreto. — Sabe do que estou falando. — A aniversariante insistiu
— Só... não precisa me tratar bem agora quando estamos longe delas.
Mariana usou do momento para puxar o ar.
— O que elas fizeram?
— Quer mesmo ter esse tipo de conversa?
— Só quero entender melhor e oferecer minhas mais sinceras
desculpas se for possível.
Susana mordeu o lábio, mesmo não estando insegura.
— Comentários — resumiu. — Daquele tipo que levamos para
sempre no coração e não conseguimos esquecer, nem a pessoa, nem o
que foi dito e nem o tom que usaram. Esses tipos de comentários, agora
consegue me entender?
Mariana assentiu. Não precisava de mais nada.
Assim como Caique, Bruna e Caroline faziam parte de famílias
importantes. Era “básico” que se tornassem amigas uma hora ou outra.
Além do mais, ouvia o que diziam sobre Susana, mas, tola como sempre,
imaginou que fosse apenas comentários ditos entre quatro paredes. O que,
aliás, também não era certo.
— Sempre soube que elas eram... como posso dizer... babacas? —
sugeriu. — No fundo, sempre quis me afastar delas, e estou começando a
tomar coragem de fazer o que realmente quero. Você merece um pedido de
desculpas muito melhor do que esse, que vem de uma bêbada de dois
drinques, chorando no seu banheiro imenso de chique e que molhou o
vestido com água da pia. — Sorriu de leve. — Mas, acredite ou não em
mim, Susana, você é muito melhor do que elas! Muito, incontáveis vezes
melhor.
Susana Lima e Paiva tinha um pequeno sorriso de confiança no
rosto.
— Eu sei — afirmou ao puxar um papel-toalha da instalação ao lado
e entregá-lo para Mariana. A garota pegou, agradecendo. — Você também
é melhor do que aquilo, merecia mais... sei lá. Nunca entendi por que
andava com elas.
— Vai por mim, nem eu — sussurrou. As duas riram, e Susana
observou Mariana retirar os vestígios de rímel abaixo dos olhos. — E o que
você tá fazendo aqui? É a sua festa!
— Não. — Susana apoiou-se na pia também, puxando o cílio
postiço. — É a festa da minha mãe — resumiu. Mariana entendeu de
primeira ao que Susana estava se referindo. — Desejos oprimidos na
adolescência, uma filha mais velha, um casamento podre de rico. O
resultado é uma festa de aniversário extravagante para recuperar... — Ela
parou de falar por um momento. — Esquece, não vai querer me ouvir.
— Estamos em um banheiro, sozinhas e... e estamos um trapo! Tem
certeza que não quero ouvir? — Mariana meneou a cabeça, sendo cordial.
— A menos que não queira falar comigo.
— Não, pode ser. Tô doida para falar disso com qualquer pessoa.
— Justo. — Mariana assentiu. — Então, deixa eu entender uma
coisa... você disse que sua mãe quer recuperar. Recuperar exatamente o
quê?
— Resumindo toda a ópera, estamos falindo — despejou
calmamente, como se estivesse fazendo um pedido simples em uma rede
de fast-food. — Não preciso ficar preocupada porque sei que não é tão
ruim. Ainda temos dinheiro, muito menos depois dessa festa, mas... morar
em um bairro comum de São Palomane não é ruim. Mas minha mãe é
careta, ultrapassada, quer tudo do jeito dela. Viu na festa uma chance de
todos se lembrarem que a Família Lima e Paiva é uma das mais
tradicionais possíveis dessa cidade.
— Então, o evento é unicamente destinado aos negócios futuros?
— Exatamente.
— É bem a cara da minha tia.
— Sério? — A garota baixa juntou as sobrancelhas rasas. Mariana
sorriu.
— Com certeza. Ela ama contatos e os holofotes. Ama qualquer
coisa que me colocaria no topo, e... — Exausta, Mariana decidiu prosseguir:
— Estou cansada. Tenho certeza que ainda não me conheço bem. Quase
nem um pouco.
— Acho que ninguém se conhece perfeitamente — Susana
acrescentou. Elas trocaram um olhar cúmplice e então riram novamente. —
Eu, por exemplo, pensei que ficaria horrorosa nessa roupa, mas até que
estou bonita.
— Não — intensificou Ana. — Você tá linda!
Susana apertou os lábios. Odiava ser uma pessoa tão gentil assim,
pois acabou corando com um simples elogio. No fundo, sempre quis um
pingo da atenção de Mariana Lange, e como estava conseguindo, não
pouparia esforços para tornar-se amiga dela.
— Valeu, Mariana — murmurou, envergonhada. — Você também!
— Obrigada... mas acredite em mim, eu estava bem melhor!
Susana dividiu o peso entre os pés.
— O seu namorado... o Caique... ele fez algo?
Mariana negou com a cabeça.
— Não. É bem mais complicado do que isso. Quando me sinto desse
jeito, só consigo correr, me isolar e ficar sozinha. Mas... — Ela encarou
Susana. — Algumas pessoas me acalmam.
— Você deve procurar essas pessoas sempre, então — a
aniversariante sugeriu.
Mariana fez que sim, mas sabia que nem sempre poderia recorrer a
Simas ou aos tios para sentir-se segura. O medo, a chuva e tudo o que lhe
apavorava não eram tão instantâneos assim.
Era mais. Algo bem mais feroz e sério que precisava ser domado.
— Eu até ficaria aqui, cobrando hora extra para te fazer companhia,
mas tenho uma festa para paparicar e uma mãe para manter de bom
humor. — Gargalhando fracamente, Susana colocou as mãos para trás. —
Ache alguém que te deixe calma ou fique sozinha aqui o tempo que
precisar, Mariana. Vou garantir que ninguém entre aqui!
— Você é uma ótima pessoa, Susana. Muito obrigada!
— Digo o mesmo.
As duas trocaram um breve abraço. Não como estranhas, mas como
duas amigas que voltaram a se falar. Como melhores amigas distantes e
que moravam em países diferentes do globo terrestre. Era um simples
abraço de agradecimento e presente.
Treze: mariana

quando a calmaria chega, sempre espere pela tempestade. pela


catástrofe e pela chance irresistível da tragédia premeditada.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

Susana se foi poucos segundos depois, sem olhar para trás, mas
com uma confiança e uma luz diferente para enfrentar todos à sua volta. Ao
menos tinha colocado para fora que a família já não era mais a mesma.
Lange esperou pacientemente a coragem surgir, embora soubesse
que aquela emoção poderia ser apenas um mito. Uma façanha inventada
para que as pessoas se sentissem confiantes em fazer aquilo o que não
queriam. Pensou, sem querer, nas amigas.
Nos momentos que partilhou, mesmo sabendo que não estava mais
dentro do corpo, dos breves segundos em que se sentiu ousada o suficiente
para pensar “Quero conhecer e fazer minhas próprias amigas”.
Mariana não queria ser como a chuva; uma força inevitável que lhe
assustava, mas extremamente repetitiva e que, no final, fazia apenas o seu
papel designado.
Chegou à conclusão difícil de que não voltaria para perto de Caique.
Ele a fazia sentir-se dentro de um olho do furacão. Não voltaria para os
braços do namorado, nem para seu carro caríssimo e seu anel de noivado
adormecido no bolso da calça.
O respeito que nutria por Caique era maior do que a repulsa de
seguir uma vida fadada ao tédio.
Respirou fundo, contando até dez. Não queria a sensação de volta, e
não queria incomodar Simas. Esse é seu problema, Mariana, decretou,
irritada, você não quer incomodar ninguém, só a si mesma.
Estudou seu maior defeito de frente: sempre colocava as outras
pessoas acima de seus próprios desejos. Se queria sentir-se bem e em
paz, por que não ir atrás de Simas? Ele sempre sabia o que fazer.
Pensou em Caique e recusou a oferta.
Refletiu em Susana, mas não queria estragar seu aniversário.
E pensou em Noah...
Ele estava trabalhando no momento, o que encheu seu cérebro de
dúvida.
Mariana Lange sabia que, se quisesse ser salva, precisava estender
a mão para a única pessoa que mais precisava dela no mundo inteiro.
A garota refletida no espelho.
Ela.
Quatorze: mariana

quando deixamos nossa fragilidade aberta, é um caminho sem volta.


é sentir como se ela não pertencesse nós, e sim à pessoa que nos
conheceu de corpo e alma. não há retorno.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

Mariana não saberia dizer, se perguntassem, quanto tempo ficou


trancada no banheiro, torcendo mentalmente para que ninguém tivesse
notado sua ausência.
Assim que botou os pés para fora, no corredor extenso, certificando-
se de que estava sozinha, ficou aliviada por notar os vidros embaçados e
úmidos das janelas à frente.
Decorados com gotículas generosas de chuva que davam a falsa
sensação de uma tempestade glamorosa do lado de fora.
Mariana só gostava de uma coisa nas gotas de água: a calmaria que
ficava após um conturbado temporal.
Decidida a ir embora, respirou fundo, sentindo-se um pouco mais
disposta a seguir caminho até a festa de Susana. Observou a barra de
notificações do celular, cheia de mensagens de Caique. Guardou o
aparelho no decote do vestido e se pôs a andar em direção ao salão.
Mas não teve tempo de sair do corredor deserto, pois passos
distantes chamaram a atenção da sucessora.
— Aí está você!
Suave, Mariana virou-se para encontrá-lo. Ao final do corredor, Noah
caminhava, segurando um punhado de dinheiro recém-contado. Enquanto
fazia seu desfile até Ana, Noah guardou as notas coloridas de cinquenta e
cem reais no bolso lateral.
Com ainda mais calma, decidiu ocupar um lugar diante de Mariana.
Levou um bom tempo para encontrá-la, já que considerava que a casa de
Susana era um verdadeiro labirinto.
— Você tá bem? — perguntou, vasculhando alguma resposta
invisível no olhar vago e no rosto levemente úmido dela.
Já Ana reparou nos fios pretos caindo sobre os olhos do garçom e no
rabo de cavalo desfiado, depois de tantas horas servindo mesas e
convidados.
— Vi que saiu correndo do nada — continuou. — Foram as minhas
caretas? Elas que te assustaram tanto? Se for, me desculpe.
Mariana riu ao negar.
Como poderia pensar numa possibilidade daquela? Era uma
alternativa ridícula.
Ana também reparou quando os olhos de Noah se aconchegaram
abaixo da luz quente de um lustre, ficando um pouquinho claro. As mesmas
íris varreram por seu rosto, intrigado.
Quis saber se Noah estava a considerando tão bonita quanto
pensava que era.
— Não, eu... — Não sabia explicar, sua garganta estava fechada em
um bolo enorme, e a vontade de chorar ainda era recente. Como explicaria,
se nem ao menos entendia? — Só me senti um pouco indisposta. Acho que
foi a margarita, eu bebi duas e acho que alucinei. Devo ter visto algumas
fadas.
— Fadas? — Noah abriu um sorrisinho e cruzou os braços. — Elas
estavam por aqui? Meu Deus, e nem consegui fazer um pedido!
— Pois é! — Deu de ombros. — Estavam, sim. Mas só fazia efeito
bebendo a margarita.
— Vou me lembrar disso da próxima vez...
— Realmente... nunca mais vou beber!
— Esqueci de avisar que as margaritas estavam mesmo bastante
suspeitas. — Sorriu, aliviado. — Ninguém merece ver fadas e ainda perdê-
las de vista.
— Concordo. — Ana ajustou melhor os ombros.
— E você tá melhor? Mesmo?
— Sim. Não cem por cento, mas vou melhorar.
— Quer companhia? — sugeriu. — Pra voltar? Não sou uma fada,
nem príncipe, mas consigo te levar a salvo até o salão. — Ao ouvir a piada
de Noalin, Mariana conseguiu sorrir um pouco mais. — Seu namorado tá
quase afundando o chão de tanto esperar.
— Não quero voltar — confessou.
— A festa tá no fim, aliás — informou Noah, enfiando as mãos nos
bolsos da calça surrada. Foi então que a garota reparou que o elegante
uniforme clássico dos garçons já não estava mais no corpo dele. O que não
o deixava menos bonito, pensou. — Susana cortou o bolo, a pista de dança
tá quase fechando.... Peguei meu pagamento e estou indo.
Cacete, pensou Ana. Tinha ficado muito tempo sozinha.
— Sério? — lamentou. — Tá acabando?
— Tem apenas aqueles bêbados chatos e umas pessoas sugerindo
um after — disse. — Festas essas a que não estou convidado, claro.
— Bom, então é a minha deixa. — Mariana sacudiu a cabeça. —
Não quero parecer interesseira, mas pode me levar para casa? Não quero ir
até lá. Só... pode me levar? Entenderei se falar não.
— Posso — respondeu, prático, sem nem pensar. — Fique sabendo
que estou de moto. É fácil te levar para o castelo.
— Motos. — Mariana avaliou a palavra, assentindo lentamente com
a cabeça e ignorando a parte sobre o “castelo”. — É. Pode ser legal.
Vamos? Ou...?
— Não quer se despedir...
Noah não terminou a frase, o semblante de Mariana Lange estava
aceso demais em animação para questioná-la o óbvio. Ela deveria saber o
que estava fazendo, Noah presumiu.
Não é?
Eles trocaram um rápido e subentendido olhar, e Mariana deixou que
Noah seguisse na frente.
Observou a estrutura dele; alto, Mariana sendo apenas poucos
centímetros mais baixa que ele. Direcionou os olhos para a camiseta que
cobria os braços dele, mas não totalmente, porque as pulseiras de
miçangas que confeccionavam seu pulso direito continuavam à mostra.
Desejou saber o local da tatuagem de Noah e como o desenho era
exatamente. Se era uma tatuagem sentimental ou um símbolo vulnerável
como os que os caras misteriosos gostavam de ter.
Juntos e silenciosos, seguiram caminho pela área de serviço da
mansão, desviando de poucos garçons e garçonetes que ainda
trabalhariam por lá. Desceram as escadas de uma sala aos fundos e Noah
pegou suas coisas abaixo de uma mesa de inox da cozinha vazia, piscando
para Mariana.
Seguiram em silêncio até a saída traseira, onde a moto dele estava
estacionada, ao lado de outros veículos populares.
— Toma. — Noah entregou-lhe um pesado casaco escuro de pele.
— Sei que você não quer ser reconhecida, e esses abutres — Apontou com
o queixo para as cercas altas, mas que não impediam fotógrafos de verem
quase tudo o que acontecia no gramado. — Sempre estão prontos.
Ela agradeceu, enfiando-se abaixo do casaco que pesou
ligeiramente nas costas. O cheiro metálico e forte de Noah estava na peça,
por toda a parte. Mariana não gostou de primeiro momento, jurou que
espirraria a noite toda pelo aroma potente, mas em poucos segundos
chegou à conclusão de que poderia se acostumar com aquilo. E muito.
— Não quero estragar o vestido da princesa — zombou, entregando
a ela um capacete extra.
Aninhado na moto, Mariana pôde jurar que estava prestes a fazer
algo muito imprudente, e que se quisesse desistir, aquela seria uma boa
hora.
Mas o quê, exatamente?
Andar de moto não era o fim do mundo.
Porém, lembrou repentinamente que seu primo e seu namorado
continuavam a esperando na festa.
Ana indo embora, sem avisar, na garupa de um novo "amigo"
curioso, tentando fugir de paparazzis que poderiam ou não reparar em sua
presença.
Fez o mais prático que conseguia, enviou uma mensagem a Simas e
Caique. Pedindo desculpas, principalmente, mas avisando que estaria em
casa o quanto antes. Pronto, fim de papo. Sem maiores explicações.
Pela primeira vez, Mariana Lange parou e refletiu se realmente
queria fazer aquilo. Se queria correr o risco assim que saíssem pelos
portões de ferro de Susana Lima e Paiva. Se fizesse, não podia olhar para
trás, apenas curtiria estar em uma moto, com aquela sensação aterrorizante
de liberdade comprada.
Com Noah. Um cara que reencontrou em menos de vinte e quatro
horas.
Mas ele era da minha escola, rebateu a si mesma, usando como
desculpa.
— Se meu vestido estragar, posso pedir para as fadas madrinhas me
fazerem outro — respondeu, ajeitando o capacete na cabeça e tentando
sorrir.
— Deve ser bom viver no reino, Vossa Majestade. — Noah esticou
um sensual sorriso em sua direção. Não fora de propósito, mas ele era
assim, Mariana teria que aprender a lidar. — Minha humilde moto não é
uma carruagem qualquer, não como as que você está acostumada a andar.
— É uma nobre carruagem, plebeu — replicou, abaixando a viseira
do capacete e puxando o vestido longo para dobrá-lo entre as pernas.
Avaliou onde seguraria assim que Noalin desse a partida.
Corajosamente, aconchegou as mãos entre as costelas e o quadril dele.
— Ah! — Noah soltou, ao debochar. — Achei que chegaríamos
nesse estágio só quando eu quebrasse o terrível encanto.
Os dois gargalharam ao mesmo tempo em que o motor da Shadow
roncou, fazendo não só Mariana despertar, como ter certeza que não tinha
mais volta.
E, honestamente falando, não estava dando a mínima.
Quinze: noah

se não podemos arriscar um pouquinho sequer, qual é a verdadeira


razão de continuar tentando?
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

Mariana nunca teve ou colecionou aventuras.


E as que teve, não eram nada.
Nada que pudesse orgulhar-se ou dar uma primeira página fantástica
em um jornal ou revista, mas as pessoas tinham o dom de fazê-la tornar-se
interessante. Na garupa de Noah, Mariana sentiu que poderia voar pela
primeira vez. As tranças escapavam pelas frestas frouxas do capacete
verde-água e o vento lhe atingia como pequenos beijos de coragem.
Sair da casa de Susana foi extremamente fácil; com o casaco velho
de Noah e um capacete que escondia o rosto, ninguém havia se
interessado por ela.
Fora a primeira vez que passara ao lado de fotógrafos e sem ser
notada. Nenhum deles reagiu quando Mariana passou, aninhada a Noah.
Nenhum.
Tornou-se invisível. Sentiu-se extremamente feliz quando a rua de
Susana ganhou distância e nenhuma foto havia sido tirada.
Soltou devagar as mãos em volta do corpo de Noah, abrindo os
braços para sentir toda São Palomane selando sua pequena dose de
liberdade naquela noite.
Ela sabia que Noah estava fazendo o caminho mais longo para sua
casa, para que passassem próximos aos bairros populares de São
Palomane, pelas praças desertas de areia escura, nos pontos turísticos.
Tudo aquilo poderia ser protagonista daquele momento tão único para
Mariana.
Abria e fechava os braços em volta de Noah. Vez ou outra, declarava
um ardido grito da garganta quando ele fazia uma curva perigosa.
— Ah, não! — discorreu, manhosa, quando identificou as
construções refinadas perto de casa. Aquilo significava que tinham
chegado. — Não podemos dar mais nenhuma volta?
— Sinto muito, princesa. Seu plebeu não pode mais se arriscar tanto
assim. Podem dar como sequestro e sabemos quem seria o primeiro
suspeito. — Noah estacionou a moto com cuidado assim que os portões de
ferro abriram-se. — De qualquer forma, tá entregue.
Mariana saltou da moto, puxando o capacete e jogando as tranças
twist para o lado. Deixou que o vestido caísse com a bainha até o chão,
sem importar-se com a umidade das pedrinhas cinzentas do quintal.
— Sendo assim, já que insiste... Muito obrigada por me trazer de
volta, nobre cavaleiro. — E fez uma reverência prática.
— De nada, princesa. — Noah refez a reverência por piada.
Mariana assistiu Noah pegar o capacete de volta, pronto para seguir
o caminho. Não estava chovendo mais e as nuvens começavam a se
distanciar uma das outras. Percebeu, com prática, que estava com fome.
E que queria a companhia de Noah por mais uma noite.
— Quer entrar?
Noah, sem saber o que Ana pensava, também sentiu-se coagido a
ficar. De alguma forma, sentia-se confortável na presença de Lange. E
ainda que não estivesse com tanta fome, queria um motivo para não
parecer tão facilmente convencido.
— Tem comida aí dentro?
— Sim — garantiu Mariana. — Quer entrar? — repetiu. Noah vacilou
os olhos pela entrada. Conhecia o caminho, a casa e o hall principal.
Julgava que já tinha visitado a mansão dos Lange vezes demais. — Meus
tios estão no hotel. Tudo bem.
— Só acho que... — Noah umedeceu os lábios. — Não seria legal,
sei lá...
— Só vamos comer, Noah. — Mariana gesticulou com os braços,
balançando as chaves da casa. — A menos que você queira ir embora, é
claro.
Com um gesto, ela seguiu a frente, destrancando a porta e
esperando que Noah deixasse a moto abaixo do toldo da garagem principal
para acompanhá-la. Mariana pendurou delicadamente o casaco pesado de
Noah em uns dos cabides e sorriu para o retrato da mãe, como sempre
fazia quando chegava em casa.
À porta, ouviu passos pesados.
— Decidiu ficar, então? — provocou.
— Não se pode negar o convite de uma princesa. — Forçou um
sorriso, fechando a porta atrás de si e respirando fundo. — Nossa, você é a
cara dessa mulher!
— Valeu! — disse a garota, contente. — Era a minha mãe.
— Ela era muito bonita, Mariana.
Noah voltou a admirar o quadro. Todos os traços contribuíam para
ser uma verdadeira obra de arte.
— Obrigada, Noah.
Voltando a andar na frente, calmamente, Mariana foi acendendo
todas as luzes dos cômodos. Gostava de luz, gostava de vozes, gostava de
vida. Sempre que ficava sozinha, ligava a TV em algum cômodo para não
sentir-se tão só.
Andou até a cozinha, acendendo a luz com um toque prático no
interruptor. Ficou descalça, deixando os saltos em qualquer canto do
corredor até a lavanderia. Noah não queria bancar o impressionado com a
arquitetura da casa, mas não resistia; nunca vira residência tão completa e,
certamente, cara.
Mariana abriu a geladeira, enfiando o corpo dentro ao checar as
variedades de comida.
— O que quer comer? — perguntou a Noah. — Pode ser o que
quiser... sou um desastre na cozinha, vou logo avisando.
— Vejamos. — Noah ficou ao lado dela, debruçando-se para
enxergar melhor as embalagens coloridas nas prateleiras geladas. — O que
é isso? Suco? — Ele juntou as grossas sobrancelhas no centro da testa. —
Um suco de laranja, alface, hortelã, espinafre... que diabos é isso?
— Meu tio ama esses sucos estranhos. É uma gororoba que usa
para treinar. — Mariana retirou o galão de suco das mãos de Noah,
devolvendo para a prateleira da geladeira. — Você sabe cozinhar?
— Eu tenho cara de quem sabe cozinhar? — rebateu. Mariana
ergueu uma sobrancelha. — Sei cozinhar apenas uma coisa. — Noah
revirou os olhos, abrindo o freezer. — E se chama nuggets de frango.
Conhece?
— Conheço, e estou ansiosa para meu estômago conhecer também.
— Mariana vasculhou ainda mais nas prateleiras enquanto Noah colocava
as embalagens de nuggets na ilha da cozinha. — Temos alguns molhos que
podemos acompanhar. Agridoces, salgados, doces, picantes.
— Por mim tanto faz.
— Já comeu no Senhor Frango? — perguntou, rápida. — É o melhor
frango da região. Tenho cupons de desconto, inclusive.
— Senhor Frango?
— É.
— O fast-food?
— Exatamente!
— Interessante. E sim, já comi. Prefiro o frango mexicano ou o
chileno, é a melhor pedida do cardápio.
— Ontem mais cedo... — começou Ana. — Comi com molho
agridoce. Você deve experimentar, então.
Retirou com cuidado o tubo do molho, sacudindo sob a vista de Dias.
Que, por sua vez, deu um passo para trás, esbarrando no balcão. Ana
encolheu-se, fazendo uma careta. Panelas caindo ao chão e mais
palavrões vindos de Noah.
— Você é, definitivamente, desastrado. Não sei como não derrubou
nenhum champanhe nos convidados da Susana. — Mariana despejou os
ingredientes na ilha, enquanto Noah voltava a xingar e a prender os
cabelos.
— Já derrubei, sim, mas a Susana estava me pagando duzentos
reais a hora. Aqui posso ser desastrado de graça que não irá custar a conta
de luz da minha família.
Ela poderia perguntar o que ele queria dizer com aquilo?
Bom, tinham atravessado a cidade em uma moto e Noah procurou-a
no meio da festa. Eles eram amigos, inclusive.
Contendo sua curiosidade, voltou a separar os molhos em pequenas
travessas redondas para facilitar a degustação. Raptou duas taças de
cristais da tia, servindo de suco de uva; simulando, possivelmente, um
vinho.
Sorriu com a infantilidade de estar fingindo apreciar vinho, ainda
mais à espera de nuggets. Não que fossem iguais ao do Senhor Frango.
Não, não eram, mas serviriam.
Noah ajudou a pôr a mesa, com coordenadas de onde ficava cada
utensílio.
Vinte minutos depois, com a comida assada no centro da ilha, Noah
e Mariana dividiam lados opostos do balcão, sentados confortavelmente.
— É o jantar mais sofisticado que já comi.
— Levando em conta que você frequenta lugares como a casa de
Susana Lima e Paiva, posso levar isso como um tremendo elogio. — Noah
ergueu a taça com suco de uva na direção dela, charmoso.
— Nem sempre! — garantiu. — Isso começou depois que meus pais
morreram. Eles... não eram muito ligados nisso, preferiam viajar. Qualquer
oportunidade de sair de casa era uma chance de pegar um avião e
aterrissar em outra cidade, estado ou país.
Noah mastigou devagar, não sabia se aquela conversa poderia suprir
sua curiosidade. Porra, com certeza Dias conhecia a história dos pais de
Mariana; nenhuma pessoa dentro do Colégio Maria Santana saía imune da
incerteza que todo o Caso Lange trazia à tona.
Leu algumas vezes em revistas, jornais e portais digitais o avanço no
desaparecimento dos pais de Mariana, mas nunca ouviu nada dela. Nem na
escola, nem em festas.
Nada.
— Você quer me perguntar alguma coisa? — Mariana abaixou o
queixo alguns centímetros, atenta. — Um vinco se formou na sua testa...
algo tá te incomodando?
— Não. — Dias riu, sem graça. — Deixa pra lá... vamos comer.
— Não. Pode falar.
Poderia mesmo?
E se a magoasse?
E se destruísse sua chance de fazer uma nova amiga?
E se estragasse tudo?
— Como... bem, não sei como perguntar isso, não quero parecer um
otário, não. — Noah engoliu os restos de frango e fez uma pausa. — Como
seus pais morreram, afinal?
A pergunta, de fato, pesou o clima. Sentiu-se tolo automaticamente e
quase desistiu de descobrir a resposta. Estava pronto para sair da casa de
Ana quando percebeu os detalhes à sua frente.
A garota levou um enorme pedaço de nugget de frango até a boca.
Com o tempo acostumou-se com as perguntas, já que os jornais não eram
misericordiosos quando tentavam contato.
— Sinceramente? Eu não sei te responder — disse. —
Simplesmente não sei como meus pais morreram, não há dúvidas de que
morreram de fato, mas sei que foi numa noite como essa. Todas as noites
chuvosas como essa, na realidade. Tempestade é o fenômeno da natureza
que mais me assusta. Você não consegue enxergar direito de onde vem,
não consegue dormir pelos trovões, ventania acaba sendo um ônus, é tudo
tão silencioso e barulhento ao mesmo tempo, que é difícil explicar.
Mariana mastigou, sem pressa.
— Sou sempre pega de surpresa por um raio ou relâmpago. — Fez
uma breve pausa. — Meus pais, por outro lado, amavam sair na chuva. Os
dias favoritos deles eram assim. Nublados, tempestuosos e cinzentos.
Costumavam sair de carro quase todas as vezes que chovia, sempre me
apavorei, mas eles me acalmavam. — Suspirou. — Eu sei que eles
viajavam muito, conheceram quase o mundo todo de mochilão. Em uma
dessas viagens, me deixaram com meus tios, aqui mesmo em São
Palomane.
Outra pausa. Bebeu um pouco de suco e sentiu-se realizada por não
sentir vontade de chorar. Depois de tanto tempo, era bom simplesmente só
conseguir contar uma história.
— Eles fizeram uma viagem pela Europa. Especificamente, na
França. Eles prometeram que voltariam em breve, porque sempre voltavam.
Sei que alugaram um avião particular, queriam chegar na Espanha o quanto
antes. As autoridades, mesmo receosas com o clima, permitiram o
embarque. — Mariana sorriu tristemente com a memória. — E foram. O
avião caiu, é o que tenho notícias. Ele nunca foi encontrado. Nem um sinal,
nada do radar, nada de destroços. Absolutamente nada. De vez em
quando, uma pessoa jura que tem provas de onde o avião caiu, mas parei
de pesquisar sobre. Me deixa muito mal e perdida, quase sem fôlego.
Esperou que Noah dissesse algo, então pôde completar:
— Meus tios ficaram comigo. Eu tinha dez anos. Tio William e tia
Rúbi sempre mantiveram a memória dos meus pais muito viva, então sou
muito grata por tudo o que fizeram por mim. E ainda que seja um
acontecimento sensacionalista, eles me protegeram o máximo que
conseguiram.
Noah engoliu em seco, o rumo da conversa estava emocional
demais. Não queria deixar de conhecer Mariana Lange tão a fundo. A
queria mais do que podia reconhecer a si mesmo.
— Sinto muito — discorreu em um fio de voz embargado.
Ela não queria escutar aquilo. Aquela era uma das péssimas
sensações em abrir o coração, a verdade e a mente a alguém; sentiam-se
na obrigação de dizer algo de volta. E Mariana não queria condolências.
Nada.
Nada mesmo.
Mas assim que ergueu os olhos até os de Noah, certificou-se que
pena ou rejeição não o acompanhavam. Geralmente, quando contava sobre
o acidente, as pessoas sentiam necessidade de abraçá-la ou passavam a
tratá-la diferente.
Noah, não. Sim, ele queria dividir um toque sincero de corpos
conectados, mas entendia que a parte de ficar vulnerável era mais difícil do
que falar da situação trágica em si.
Ser frágil consistia em deixar o lado sensível à mercê de qualquer
reação. Qualquer uma. Boa ou ruim, má intencionada ou não.
Sentiu desconfigurada de dentro para fora, porém, ao menos soube
que Noah pensava o mesmo; que a vulnerabilidade, naquele segundo,
jamais seria usada como arma em um contra-ataque.
Então Mariana agradeceu em silêncio.
Era o bastante.
Dezesseis: noah

o futuro é a fase da vida que mais me assusta. isso quer dizer que
posso estar exatamente onde estou agora daqui a dez anos. o que seria, de
pronto, lamentável, decepcionante e cruel.
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

Um dos maiores medos sociais de Noah Dias era o de talheres


batendo pratos de porcelana; o de bocas bebericando as bordas de copos;
o de olhos focados apenas no que acontecia entre a mesa e a refeição.
Odiava momentos constrangedores e os mataria com facilidade se
fossem pessoas. Surpreendeu-se quando seu momento de silêncio
constrangedor com Mariana Lange foi substituído pela própria voz, já rouca.
A cada palavra, Noah tinha consciência de que se aproximava mais
dela, da garota acima da cadeia social à sua frente que comia nuggets de
frango despreocupadamente e que lhe acolheu em uma noite chuvosa.
Agora, ainda com o clima tempestuoso pairando em São Palomane, sabia
que estava colidindo cada vez mais com Mariana e ninguém poderia culpá-
lo.
— Vai me contar como chegou no Colégio Maria Santana? — Sorriu
Ana.
— Fui bolsista desde a oitava série — começou, depois de engolir os
últimos vestígios da comida, sentindo-se satisfeito. Não tanto para negar
uma sobremesa, mas não pediria, pelo menos, em voz alta. — Consegui a
bolsa graças a um antigo professor do bairro, ele me viu avançando nas
aulas de Leitura e decidiu me indicar para a diretoria.
Mariana debruçou-se contra a ilha, curiosa e atenta. Muito, muito
atenta.
— Vi na literatura e na escrita uma maneira de fugir do que
pensavam que aconteceria comigo, sabe — continuou, abaixando o olhar.
— Alguém viu potencial em mim e acreditou nisso. De repente, outras
pessoas quiseram dedicar o tempo delas comigo. Caralho, fez toda a
diferença!
— Por que não veriam?
— Nem sempre foi assim, Mariana. — Riu a contragosto. — É fácil
demais pensar que estudar é chato, o que acontece mais no meu bairro do
que no seu, por exemplo. E eu achava um porre. Poesia parecia terrível,
sonetos piores ainda. Só quando consegui me identificar que percebi que
levava jeito para a coisa.
— E então, entrou no Colégio Maria Santana?
— Não. Passei a sétima série inteira me preparando para a prova no
final do ano, mas quando as pessoas acreditaram em mim, pude me ver no
espelho pela primeira vez como uma pessoa comum. Acho que foi a
primeira vez que descobri o significado de orgulho.
Sem perceber, Noah abriu um sorriso doce e nostálgico. Era grato
pela reviravolta.
— Aliás, por causa desse mesmo professor que eu decidi me tornar
um, quem sabe? Um professor daqueles que muda a vida de alguém e faz
a diferença no ambiente de trabalho.
— É normal sentir orgulho de você? — Lange cruzou levemente os
braços. — Porque sinto.
— Sinta quando eu começar a faculdade e conseguir fazer esse
sonho sair do papel.
— Independente... torço muito por você, Noah.
Noah sorriu abertamente, o primeiro sorriso singelo que conseguiu
esbanjar sem sentir-se estranho, mas, sem prática, logo o desmanchou.
Mariana lamentou internamente, já que, em seu pensamento, Noah deveria
sorrir mais vezes. Muitas vezes.
Assim as pessoas notariam o quão bonito e charmoso ele era sem
grandes esforços.
— E falo sério, você será um professor incrível, Noalin.
Ainda sem saber como aceitar um elogio sem corar, resmungar ou
ficar envergonhado, Dias tentou mudar de assunto.
— Esse nome... Noalin — ele debochou. — Não consigo me ver
como Noalin. Apenas minha mãe me chama assim, e só quando está
verdadeiramente furiosa.
— Ela não tá errada — concordou Ana. Os dois brindaram no centro
da ilha ao rirem. — Você é o Noah e o Noalin. Duas pessoas.
Entendendo uma linha particular de pensamento lógico,
completaram, juntos:
— É um alter ego.
Baterem palmas, impressionados com o raciocínio rápido.
— Se você é duas pessoas — começou Mariana. — Sabe diferenciar
o Noah do Noalin?
— Com certeza! — bradou. — Queria ser o que o Noalin me parece
ser. Resolvido com a vida, inteligente, seguro de si, com um quarto só seu,
um que possa decorar com livros e estantes enormes. Pôsteres de bandas
de rock pelas paredes. — O olhar sonhador de Noah Dias encantou
Mariana por segundos inteiros. — Camisinhas usadas pelo carpete, roupas
jogadas no chão. Uma vida sossegada.
— Camisinhas jogadas no chão?
— Tive muito tempo para fantasiar sobre isso — retrucou, risonho. —
E você? Como seria sua outra você?
— No meu caso, a fantasia seria quase a mesma — decretou
Mariana. — Queria ter amigos de verdade, que soubessem reconhecer que
estou sendo ingênua ao acreditar em sereias ou me chamassem de
extremamente inteligente ao acreditar em ETs. Queria que meus pais
tivessem tido um funeral decente, queria que ninguém me lembrasse do
aniversário da morte deles, porque vai por mim, eu sei de cor. Queria tantas
coisas, e nenhuma delas envolve a vida que tenho atualmente.
Dias respirou fundo, conseguia sentir todo o corpo pesar.
— Você tem o Caique, pelo menos — disse, servindo-se de mais
suco de uva. — Me parece verdadeiro.
— Não é a mesma coisa. — Mariana sugou os lábios, pensativa. —
O Caique vive em uma bolha mágica e encantada de uma vida perfeita que
nunca será estourada. Com certeza não é a mesma coisa do que ter
felicidade. Não sei se ser feliz tem algo a ver com ter uma pessoa ao meu
lado.
— Profundo.
— É?
— Sim — confirmou. — Estávamos falando disso. Se minha vida
fosse perfeitamente normal, eu me chamaria Noalin o tempo todo. Talvez
tivesse o Noah como apelido mais íntimo, mas definitivamente, adotaria o
Noalin para sempre. Qual seria o nome de seu alter ego?
— Meu segundo nome é Luísa. Mas não tenho nada contra a
Mariana. Quero ser a Mariana, só não desse jeito.
— O que você quer ser, então? — perguntou, apoiando o rosto no
meio das mãos. — Neste momento?
A pergunta pegou Mariana desprevenida.
O que ela queria ser?
Naquele momento?
Tinha acabado de responder que desejava a vida perfeita, mas não
tinha especificado o que queria ser. Ninguém nunca lhe perguntou aquilo
antes, já que esperavam que comandasse a franquia de hotéis da família
em algum momento da vida.
Mas Noah sabia, tinha a resposta na ponta da língua: professor,
porque sabia que faria a diferença na vida de alguém.
E Mariana?
Destinada a viver em tabloides, festas, eventos internacionais e...
só? Via defeito na vida falha de uma subcelebridade, graças à fama
repentina de ser órfã. O tipo da fama repentina errada.
Não era boa em muitas coisas. Não sabia cozinhar, nem tocar
instrumentos, não atuava e não cantava. E apenas dançava medianamente
bem graças a tia Rúbi. Gostava de ler, e escrevia poucas vezes, só quando
a obrigavam em redações recorrentes na escola e na faculdade. Havia se
formado em Recursos Humanos porque não sabia o que escolher direito.
Pensou em Moda ou História, nenhum dos cursos vingou.
Talvez arte. Talvez viajasse para pensar sobre seus atributos.
Mas sua real vocação? Bom, era mais uma resposta que ela queria
descobrir.
— Não sei — respondeu a contragosto, querendo mais alguns dias,
quem sabe anos, para responder àquela questão. — Não sei, é repetitivo e
chato, mas não sei!
— O que é estranho, porque você com certeza pode bancar uma
bolsa em qualquer lugar do mundo. Basta... literalmente querer.
Mariana negou ao sacudir a cabeça.
— Não, não. Você é quem merece essas bolsas. Quer ser professor,
tem foco e disciplina.
— Uau. Visto assim, eu devo ser um partido e tanto. — Noah piscou,
mas se arrependeu da atitude em seguida. Mariana riu.
— Com certeza! — brincou. — Mal consigo tirar meus olhos de você!
Apesar do tom, era verdade.
Não conseguia — mesmo se quisesse ou tentasse muito.
— Mas nós dois sabemos que ter inteligência e influência na mídia
não é uma competição justa. Sabemos quem vence, e essa pessoa é você.
Não ter ganância não significa que não terá tudo o que quer.
— Vou fingir que você não me chamou de burra — alfinetou Mariana,
analisando Noalin sorrir. — Mas não ter ganância me deixa em situações
ridículas. Por exemplo, aquele filme... eu não estava bem nele, né? Minha
falta de tato e carisma em cena são perceptíveis, nem todo o esforço do
mundo me deixaria bem ali. Ganhei o papel pelo meu sobrenome e ainda
atraí crítica negativa para a obra. De qualquer forma, é uma perda.
Concorda?
— Concordo! — assentiu. — Mas... também digo que você tem mais
opções de escolha.
— Sim... isto é.
— Caras como eu não selecionam as universidades, entende? A
gente vai onde foi aceito. Não passei nos últimos vestibulares e vou para
onde me aceitarem. Essa é uma nítida diferença.
— Sim, claro. Não quis dizer o contrário.
— Eu tô na lista de espera de uma universidade em Poços de
Caldas.
— Poços?
— É.
— E nada até agora?
— Nada — lamentou. — Tipo... eu tenho que esperar, mas já faz
tanto tempo que acho que já é impossível que a vaga seja minha mesmo,
saca?
— Tem certeza?
— Não tenho muitas esperanças, não sou do tipo que espera o
destino fazer por mim. É bom eu aceitar logo de uma vez que não entrei e
estudar para as próximas provas. E ponto final.
— Se isso acontecer — Mariana voltou a falar. — Se alguma
faculdade sensacional se interessar por você, vá. Simplesmente agarre a
oportunidade. E me conte tudo o que ver. Para quando eu for te visitar,
saber exatamente onde estou pisando. Pode ser?
Dias prendeu a respiração. Queria assentir desesperadamente com
a cabeça que faria aquilo. Era uma promessa que Noah não se importaria
se Mariana quebrasse, não a culparia por nada. Dentro de seus fundos
olhos bruscos, soube que não importava a resposta, ela apoiaria.
— Serei seu alter ego, Noalin.
Seus olhos ficaram concentrados um no outro, conectados.
Agradecidos. Realizados. Satisfeitos.
Dezessete: mariana

o que é pior? magoar a si mesmo ou magoar uma pessoa que nos


ama? em teoria, deveríamos nos amar, certo? assim não estaríamos
enfiados em certas situações irrelevantes.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

O celular de Mariana tocou, abrupto. Caique aparecia na tela,


avisando e piscando que estava preocupado com o sumiço repentino da
namorada.
— Sabe o que fazer, então. — Noah balançou a cabeça de modo
neutro. — Né?
Mariana concordou com o queixo e agarrou o telefone, pulando da
banqueta em que estava sentada, e deu alguns passos em direção à pia,
fazendo um sinal para que Noalin a esperasse.
Atendeu o celular, mas não conseguia emitir som algum. Ouviu
Caique perguntar por ela e, ainda assim, não respondeu. Mordeu os lábios
e soltou o ar.
— Caique? — disse, em uma rouquidão profunda que a pegou de
surpresa.
— Ana!? Fiquei procurando por você o tempo todo! — Caique
parecia furioso. Nada ressentido, apenas furioso. — Beleza que mandou
mensagem, mas simplesmente sumiu. Não gosto de saber que a minha
namorada e futura noiva me deixou sozinho em uma festa.
— Me desculpa... — sussurrou arrasada. Mais para si do que para
ele. — Estou em casa agora.
— Sei que tá — bradou. — Você avisou e depois não disse mais
nada. O que tá acontecendo, hein?
A fúria não estava mais presente na voz de Caique, porque havia
dado lugar à mágoa.
Ele não merece isso. Pelo menos, Mariana pensava daquele jeito.
Por cima dos ombros, viu Noah. Com os ombros retraídos, em
silêncio, apenas ouvindo suas respostas, afastado da conversa inteira com
Caique.
— Eu posso explicar, é que...
— Tô aqui na portaria, não quero entrar sem que você queira que eu
esteja aí, beleza? — Caique a interrompeu. — Posso entrar ou é melhor ir
pra casa?
Uma parte de Ana, aquela que ainda não estava acostumada a
romper laços, pensou em responder que Caique poderia ir embora. Pensou
em inventar uma desculpa qualquer e continuar no relacionamento que a
mantinha mais infeliz do que poderia imaginar.
Estar com Caique manteria duas famílias felizes. Em uma balança,
membros oficiais do clã Massa e Lange eram bem mais relevantes do que
seu próprio desejo.
Porém, nunca teria coragem se esperasse a coragem vir até ela.
Sempre pensou que o real significado de ousadia significava um extremo
choque de adrenalina fazendo todo o corpo ferver, quando nem ao menos
pensava em tomar as rédeas de uma situação.
Foda-se, foda-se, foda-se, cantou mentalmente.
— Pode entrar, vamos conversar cara a cara — definiu.
— Gosto assim — rebateu Caique.
Ouviu a chamada cair e, ao passo que sentia o coração retumbar,
gostava da sensação de ser detentora de decisões importantes.
— O Caique tá aí — avisou Lange. — Nós vamos conversar na sala,
se quiser...
— Ir embora? — Noah completou depressa. Claro que cairia fora,
não teria motivo para ficar.
Mariana cruzou os braços, rindo.
— Não, eu ia dizer para ficar e comer o sorvete da geladeira.
— Ah. — Dias congelou. — Sim... acho que... sim.
Não disse mais nada, ofereceu um sorriso desanimado para Dias e
refez o caminho até a sala de estar. Ficou extremamente feliz ao perceber
que os tios ainda demorariam para chegar. Se Rúbi estivesse por perto,
talvez não tivesse chance de romper com Massa.
No hall principal, pendurando o guarda-chuva em um cabideiro,
Caique já a esperava.
— Você tá bem? — quis saber, preocupado. O cabelo molhado o
fazia parecer um astro do cinema. — Você tá estranha desde...
Bom, não precisava terminar a frase. Desde o pedido, as coisas
tinham ruído.
Mariana aproximou-se mais.
— É, eu sei — confirmou e apoiou-se na madeira polida do móvel
mais próximo. — E sim, tô bem. Acabei de comer, a propósito.
— Veio sozinha?
— Não... o Noah me trouxe.
— Noah — repetiu Caique, seco. — Que bom que Noah te trouxe.
— Eu que pedi, na realidade.
— E por quê? — Deu um passo à frente. — Meu carro estava lá
também, seria bem mais confortável...
— Caique — chamou Ana, cansada. — Vamos ser sinceros um com
o outro?
No fundo, sabia que nem ele queria casar-se. Pelo menos, não
dentro de um ano. E tampouco com Lange.
— Vamos — decidiu. — Me fale, então.
— Caique, seu maior plano para depois da sua faculdade é se casar
comigo, certo? — questionou. O namorado assentiu. — E por quê?
— Como assim?
— Por que há a necessidade de sermos marido e mulher?
— Namorados há anos, Ana. Há anos. Nossas famílias esperam por
isso.
Famílias.
Nada de “eu e você” ou “te amo o suficiente para colocar um anel de
brilhantes no seu dedo”.
Famílias.
— Sendo franca, não estou pronta para isso. Não mesmo. —
Respirou fundo. — Casamento? Agora que acabamos de completar vinte e
cinco? Com tão pouca idade? Não, não, não! Não estamos no mesmo nível
de relacionamento há tempos. Espero que me entenda quando digo que
não posso suportar me casar apenas para manter aparências.
— Não entendo — Caique afirmou, ávido. — Realmente não
entendo. Temos carinho, amizade, companheirismo, não seria ruim tê-la
para sempre, Mariana. Mas não mereço ser colocado de lado.
— Posso concordar com isso.
— Sabe o que tá fazendo?
— No fundo, você sabe que tô certa. — Sorriu, de fraco. — Você
disse amizade, carinho, companheirismo. Só faltou dizer lealdade e teria me
comparado com um cachorro, entende?
Sem querer, Caique deixou um sorriso escapar também.
— Quando eu me casar, porque sei que vou, quero amor. Paixão,
urgência, carinho, lealdade, tesão em estar com a pessoa. Quero felicidade,
ainda que nos momentos ruins. E faz... tipo assim, meses que nós não
temos nada íntegro, Caique. É tudo morno, roteirizado... é deprimente.
— Mariana, só espero que saiba exatamente o que tá fazendo agora.
Terminar comigo pode não ser uma boa escolha.
— É uma boa escolha — garantiu Mariana, com um pingo de
confiança no futuro. — Para nossas famílias? É uma lástima. Mas eles vão
sobreviver, porque nós vamos também.
Mariana aconchegou-se em Caique, abraçando a pessoa com quem
esteve em uma relação amena desde o último ano da escola.
— Você merece uma pessoa que pularia no seu colo quando visse
aquele anel de noivado, alguém que queira passar todas as alegrias e
dificuldades com você. Alguém sem dúvidas, certa do que quer. Nós
merecemos esse término. Vai dar tudo certo.
Caique riu, Mariana sabia que sim, conseguia senti-lo tremer ao
devolver o abraço com afinco. Claro que seria difícil sair da rotina que
estabeleceram nos últimos seis a sete anos de relacionamento, mas não
seria impossível.
E conforme a ficha caía de que não estava mais ligada a Caique — e
sua família — Mariana conseguia identificar cada partezinha do corpo
relaxando, devido ao alívio.
Ambos teriam sido infelizes, exatamente como já eram.
— Vai dar certo — repetiu, confiante.
— Espero também.
Aconteceu, então. Em uma noite chuvosa, exatamente igual aos dias
que detestava diariamente, Mariana conseguiu terminar com Caique.
Não precisava mais arcar com as expectativas que lhe jogaram e
nem sorrir quando gostaria de ficar em silêncio. Nem mentir quando a
verdade desejava esgueirar-se da garganta. Não mais. Agora, Mariana
seria ela mesma.
Mais um passo rumo à verdadeira versão que estava prestes a
desbloquear.
Dezoito: mariana

aprendi que a zona de conforto traz apenas falso alento.


se não pensarmos muito nela, acreditaremos que a dominamos em
algum ponto da vida. e é aí que a farsa começa.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

— Qual é a desse filme, hein?


— Bem, se formos lembrar do que estávamos falando hoje mais
cedo, pode ser que seja a própria personificação de alter ego que podemos
ter nessa noite — Mariana respondeu a Noah, deixando que a mão direita
se infiltrasse no balde de pipoca à sua frente, sem tirar os olhos da TV. —
“De Repente 30” é um clássico, Noah. É cult hoje em dia.
— Clássico deve ser mesmo, porque o ator que faz o Hulk tá bem
novo — comentou, enfiando um punhado de pipoca na boca.
Um bom final para um término relativamente fácil foi finalizar a noite
assistindo ao seu filme clichê favorito, com muita pipoca e uma companhia
agradável.
Solteira, finalmente.
Pronto. Mariana poderia gabar-se que já não estava mais
comprometida. Sem namorado, sem qualquer vínculo social ou afetivo com
a Família Massa.
Solteira. Livre. Desimpedida.
Depois de terem jantado aquela mesma porção de nuggets e
confidenciado suas mais sórdidas piadas pós-término, Mariana teve a ideia
de matar o tempo que lhes restava assistindo qualquer filme que estivesse
passando na TV a cabo. Que, por ventura, era seu preferido.
“De Repente 30”, com a Jennifer Garner e Mark Ruffalo, sempre
prendeu totalmente sua atenção. Como poderia desejar uma idade tão boa
ou festiva quanto trinta? Diziam que era a idade sucesso. E, naquele ponto
atual das coisas, faltava apenas cinco anos para Mariana descobrir se era
verdade.
Se trinta realmente seria a idade perfeita.
Desde pequena, até pré-adolescente, adolescente e agora, beirando
à vida madura, lá estava Mariana Lange novamente, repetindo as falas das
personagens de Jenna e da amiga Lucy.
— Ok, até que é legal, mas ainda não entendi muito bem o enredo,
não — reclamou Noalin.
— É lógico. Fala sobre uma garota infeliz e insegura, que deseja ter
um pouco do glamour das mulheres independentes que sempre vê nas
revistas de moda — começou. — Jenna é exatamente o símbolo do alter
ego gritando e se desesperando para sair. No aniversário de treze anos, faz
um pedido e se vê presa no futuro dela, só que aos trinta.
— E o que mais? — Noah sorriu. Aquele fascínio de ouvir Mariana
falar aquecia o peito.
— É isso, entende? Passa a mensagem de que crescer antes do
tempo não é recomendável. Jenna percebe que a vida é mágica e excitante
quando se é adulto, mas necessária quando ainda se é uma adolescente.
Fora que nem tudo é o que parece ser... — Mariana sorriu, vitoriosa, depois
da explicação. — Nunca assistiu ao filme?
— Algumas partes picotadas lá e cá. Nunca me interessei pela
Jennifer Garner além do papel dela em “Demolidor”. — Noah jogou uma
pipoca para o alto, pescando com a boca em seguida. — Mas é, até que é
interessante, as músicas dos anos 80 são as melhores.
Mariana semicerrou os olhos na direção do garoto esparramado no
sofá ao seu lado. Achava engraçado a maneira como Noah ficara à vontade
tão facilmente.
— O que foi? — Noah virou o rosto a ela.
— Quando eu assistia esse filme, bem menor, queria ser como a
Jenna — confessou. — Não na forma literal. Não quero comandar uma
revista de moda em uma guerra secreta com outra, o que, no fundo, me
parece divertido! — Riram, brindando os baldes de pipoca. — Mas... ela foi
exatamente o que sempre quis ser, por mais que houvessem defeitos, no
final, Jenna se encontrou, entende? É atemporal, é...
— Cult? — debochou Noah, abaixando o olhar.
— É, é... cult!
Noah remexeu-se, dobrando a perna direita em cima do sofá para
poder ficar de frente para Mariana. O filme era muito interessante, mas não
tanto quanto ela.
Encararam-se nos olhos por poucos segundos.
— Na realidade, sempre vamos ser uma versão de nós mesmo daqui
a pouco tempo. Seja cinco segundos, cinco dias ou cinco meses. É
inevitável.
— É — concordou Ana. — Só queria um pouco mais de audácia para
saber quem eu serei. O mais rápido possível, ultrapassando limites... —
Precisou de um tempo a mais para dizer: — E uma boa dose de...
— Coragem, talvez?!
— Um empurrão seria a palavra ideal. — Piscou ao sorrir.
— Se você for quem quer ser, serei o meu próprio alter ego daqui em
diante. Pode ser? O que me diz? — Noah estendeu o braço direito até
Mariana, que pegou ainda no ar para selar aquele acordo tão inquietante.
— Mariana Lange, você acaba de decretar o seu destino.
— Li e aceito as condições, Noah Dias!
O som das gargalhadas de ambos não foram páreas para fazer Noah
esquecer que o mundo continuava lá fora, e que ainda precisava chegar em
casa, guardar o dinheiro que ganhara da festa, estudar e acordar cedo
naquele mesmo final de semana para trabalhar. Além de batalhar bastante
para ter uma vida.
Ainda que prometesse sonhos delirantes, promessas não muito
vazias e desejos sinceros, ainda existia uma realidade quando fosse
embora. Uma que não seria tão fantasiosa quanto todos os momentos que
dividiu com Mariana.
Passava das uma da manhã e ele tinha, com toda a certeza do
mundo, extrapolado na hora, nos sentidos e no bom senso. Principalmente
no bom senso.
Abrupto e sério, cessou a risada estendida aos poucos,
acomodando-se para longe de Mariana e alegando que precisava ir
embora. Logo a chuva da madrugada começaria e o caminho até sua casa
tornaria-se tortuoso.
— Mas já? — Mariana saltou do sofá, deixando as tigelas de pipoca
na mesa de centro, eufórica. Esperava ao menos que Noah assistisse
aquele feliz para sempre inconfundível entre Matt e Jenna. — Ainda não
chegamos na parte em que ela corre de uma ponte interditada de Nova
York até Nova Jersey. É sensacional!
— Certamente é a parte que não posso dormir sem antes assistir —
Noah brincou, para receber um sorriso de efeito de Mariana. Quando
conseguiu, continuou: — Preciso mesmo ir, Mariana. Mas...
O “mas”, ok. Ela entendia o que significava.
— Certo. É justo. Deve estar cansado — ponderou. — Te vejo...
— Por aí — completou.
Noah queria sorrir, queria demonstrar que sim, que a veria em breve.
O quanto antes se assim fosse possível, mas preferiu abastecer-se. Quem
sabe devolveria aqueles livros? Usaria como estratégia.
Optou por sacudir a cabeça positivamente, e deixar que Mariana o
acompanhasse até o hall principal, onde pegou o casaco, botando por cima
dos ombros. Eles se despediram, enfim, com acenos tímidos. Levemente
desajeitados.
Noah correu até a moto, abaixo do toldo da garagem, e montou-a.
Os portões, novamente, abriram-se devagar e preguiçosamente.
Noah enfiou a cabeça no capacete e acenou pela última vez, antes que as
ruas molhadas o consumissem para longe.
Era o fim de outro longo dia.
Parte III: dias úteis

“Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial
é que saiba amar”
— MACHADO DE ASSIS.
Dezenove: noah dias

injusto pensar em tudo. se eu ficar um pouco mais de tempo apenas


pensando, é capaz de não conseguir produzir nada. e sentir-se culpado por
descansar é pior ainda.
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

As contas atrasadas e as mais críticas foram pagas na segunda-


feira. Noah gostava de dias úteis, porque eram, em suma, bastante
eficientes no que se propunham a fazer.
Retornou para a casa mais cedo, depois de um turno na lanchonete.
Estudou até dormir e conseguiu fazer um mapa excelente sobre
universidades que prestaria vestibular no semestre seguinte. As mais
cobiçadas, contudo, eram as que mais chamavam sua atenção.
Queria mesmo ter ido para Poços de Caldas; soube que a cidade era
linda e que as reservas naturais eram de tirar o fôlego. Talvez tentasse a
universidade de novo, caso tivesse sorte de pagar pela taxa de pré-prova.
Decidiu que focaria inteiramente em viver sua vida exatamente como
estava disposto; sem contratempos.
Embora sentisse vontade de procurar um meio de manter contato
com Mariana, fazia quase uma semana que suas tentativas em ser uma
versão melhor de si mesmo estavam funcionando. A próxima tarefa em sua
grande chance de mudança envolvia cozinhar.
Especialmente a sobremesa favorita de sua chefe.
— Pronto. — Riu Lucélia. — É assim que se faz tostadas de mel!
Aprendi na internet em dois tempos, Noalin, e até que você pegou o jeito,
hein, garoto.
— É — admitiu, impressionado com a dedicação. — Até que é fácil,
Lucélia. Pensei que fosse mais difícil.
— Cozinhar não é um bicho de sete-cabeças, não.
Lucélia sorriu, justamente porque Noah estava sorrindo. Sempre
gostava de como o funcionário conseguia iluminar seu dia, em principal
porque o sorriso de Dias era realmente muito bonito e cativante.
Concentrada e repassando a camada de mel sobre pãezinhos salpicados
de açúcar, a chefe decidiu puxar assunto.
Geralmente, quando sugeria que Noah aprendesse uma ou duas
receitas da lanchonete, prontamente negava. Gostaria de saber o motivo da
mudança tão repentina. Ou quem estava por trás do interesse.
— Bem, se você continuar aprendendo tão bem, logo poderá ajudar
na cozinha, né? — Lucélia opinou, com as sobrancelhas tingidas erguidas.
Eram duas riscas desenhadas para baixo, que deixavam Noah com a breve
impressão de serem gaivotas de desenhos infantis. — Aliás, todo esse
movimento na cozinha me deu uma grande ideia.
— É? — Noah sorriu de lado. — Que tipo de ideia?
— Um aumento, quem sabe? Ou uma promoção? — cantarolou. —
Tudo para te ajudar no caminho árduo até a faculdade.
Dias esperou que fosse brincadeira. Ainda que soubesse que a
lanchonete não era um dos melhores empregos do mundo, sabia que
pagava bem para um cara que aparecia por lá em meio-período. Ele podia
fazer seus horários, seus turnos, além de horários flexíveis. E ainda
receberia um aumento?
— Sério? — resmungou, ainda desacreditado. — Mesmo, mesmo?
— Sim, é sim. Você vem se dedicando com as aulas e eu sei que
você não quer ficar nessa cidade para sempre, moleque. — Lucélia colocou
as mãos na cintura. — É um incentivo. Vá estudar, vá ser quem você quer
ser e depois volte — definiu. — Porque sentirei saudade.
Com cuidado, Noah limpou as mãos sujas de farinha no avental.
— Sendo assim, não tem como recusar, né? — perguntou, assistindo
a chefe negar silenciosamente com o queixo. — Obrigado, Lucélia. —
Debruçou-se na mesa extensa e beijou rapidamente a bochecha da velha
amiga. Emocionada, a senhora sorriu agradecida. — Mas não precisa forçar
a me dar um cargo, não. Tá na cara que essas tostadas de mel são a única
coisa que sei cozinhar, não podemos servir apenas isso.
— Noalin, meu bem, eu vendo o que quiser. A lanchonete é a minha,
menino — bradou como um trovão.
Noah riu um pouco, voltando a decorar as tostadas para uma festa
da terceira idade que Lucélia iria naquele dia.
— Bom... — decidiu. — Se você tá dizendo, não vou discordar!
E nem queria. Um aumento nas finanças viria muito bem a calhar.
— E olha só! — Lucélia fingiu estar surpresa ao olhar o relógio em
forma de boca pendurado na parede. — Seu expediente acabou! — cantou,
animada. — Já pode ir embora. Vamos cair fora dessa espelunca porque
tenho um lugar para ir. — E sorriu, ainda teatral. — Tenha uma ótima sexta-
feira!
— Já acabou? Não reparei — disse Noah, aliviado. Retirando o
avental por cima da cabeça e desfiando ainda mais o coque ao alto de seu
cabelo, completou: — O que foi?
— Tá na hora de cortar o cabelo! — informou. — Tá enorme!
— Está nos ombros, Lu. Não é estar enorme. E, além do mais, é
meu charme, sabia? As garotas gostam de ter um lugar para segurar.
A senhora não respondeu, aquilo era o cúmulo da intimidade.
Ajudar Lucélia e suas finanças era uma tarefa divertida e deixava o
trabalho duro no comércio menos sufocante. Lucélia tinha setenta e cinco
anos e julgava a beleza e o charme de Noah idênticas ao de seu falecido
marido, motivo pelo qual tanto gostava e o paparicava sempre que podia.
A lanchonete supria sua carência, as contas para pagar e os
cruzeiros da terceira idade que podia bancar graças às vendas, também.
Com o tempo, a ideia de uma grande reforma pareceu-lhe apetecer
inteiramente. Tinha ideias fantasiosas de aumentar o fluxo de clientes com
uma decoração inovadora e redefinir o cardápio com comidinhas da moda e
outras clássicas.
Quem sabe também não colocasse outra mudança em prática?
— Ah, se você fosse meu filho, Noalin, passaria a tesoura nesses
cabelos quando estivesse dormindo!
— É por isso que sou seu funcionário. Deus não dá asas às cobras!
— Noah piscou, recebendo um tapa certeiro de Lucélia no ombro direito.
Os dois caíram na gargalhada e Noah deixou o avental pelo caminho
em qualquer cabide que encontrou, pronto para ir. Ainda que adorasse
Lucélia, horas extras ainda eram horas extras.
No vestiário, sozinho, vestiu-se com roupas limpas, sem farinha ou
açúcar no tecido, e deixou os cabelos soltos.
Cumprimentou o outro funcionário, do turno da madrugada, Cleber,
que tinha cabelos pretos e olhos da mesma cor. Despediu-se de Lucélia
novamente e se pôs a caminhar em direção à moto, no beco ao lado.
Mas não foi embora.
Em alto relevo na barra de notificações, existia uma em especial que
fez o coraçãozinho adormecido de Noah saltar.

De @Marianalangeoficial: esse é o seu perfil?

Noah não gostava muito da internet, apesar de usá-la


constantemente nos últimos dias para saciar sua curiosidade acerca da
mais nova amiga. Os tabloides não ficaram contentes com o término entre
Mariana e Caique, e as especulações sobre o fim do relacionamento
dominaram a mídia por dois dias seguidos.
Contudo, nunca pensou que Mariana fosse encontrá-lo primeiro.
Sem vontade de ir para casa — ou talvez sem coragem de ignorar
aquela mensagem — , Dias sentou-se em um degrau, aos fundos da
lanchonete. Abriu a mensagem após desbloquear o celular e sorriu ao
constatar que Mariana ainda estava online no Instagram.

NOAH DIAS:
sim sou eu (:
demorou para me encontrar?
Exatamente como o príncipe fez com a cinderela?

Sentiu-se ridículo assim que a mensagem foi enviada. Teve tempo de


refletir se deveria apagar a piada ou não, mas esperou. Quem sabe desse
certo? Quem sabe tivesse mais confiança em si mesmo?

MARIANA LANGE:
foi um pouco difícil sim
alguns caras que mandei mensagem foram terríveis

NOAH DIAS:
Como por exemplo????

MARIANA LANGE:
Só o fato de ter mandado mensagem para eles, eu recebi alguns
nudes de volta
Bem do nada mesmo
Foi uma aventura que não quero repetir

Sem perceber, Dias já estava sorrindo.


Sorrindo para a tela idiota de um celular novo.
NOAH DIAS:
E esses nudes?
Eram bons?

MARIANA LANGE?
Péssimos!!!!!!!!!!!!!!!!

NOAH DIAS:
Viu todos????
Que espertinha!!

MARIANA LANGE:
Foram três caras. De perfis tão abandonados quanto o seu!
Sua última foto é de 2018!!!!!!!!!

NOAH DIAS:
Três péssimos nudes? Isso é MESMO uma porcentagem bem ruim
Isso tudo para me encontrar?

MARIANA LANGE:
Existe muitos noah dias por são palomane
Foi uma verdadeira batalha
Então lembrei que a susana poderia ter seu contato e falei com ela

NOAH DIAS:
Depois de três péssimos nudes

MARIANA LANGE:
Sim, depois de três péssimos nudes!
Mas tudo bem
O importante foi que te encontrei e que posso te seguir
E te passar meu número é (00) 0000-0000

Dias afastou o aparelho apenas um pouco para enxergar melhor.


Mariana, aquela que nunca tinha sido uma pessoa alcançável, tinha
passado um bom tempo procurando-o por aí. Entre perfis estranhos e perfis
desativados. Agora, o número pessoal da socialite brilhava no final de uma
mensagem em cinza-escuro.
Havia também uma novidade, algo que nem esperava mais que
fosse acontecer. Mas estava lá, bem ali, entre o número de Mariana e a
notificação de um e-mail chave.
Ainda que estivesse em êxtase total, a única coisa que pensava era
em continuar aquele bate-papo. Não importava quantas horas se
passassem.
Já fazia quase uma semana que não tinham se falado, poderiam
colocar as novidades em dia.
Era o que queria.
A melhor versão de si mesmo aprovaria a ideia.
Vinte: mariana

não gosto de espelhos.


eles me lembram de que preciso conviver dentro de mim eternamente, e
isso já é litúrgico demais.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

O sono de Mariana sempre fora pesado. Notoriamente, não quando


o assunto envolvia seus pais ou qualquer sentimento entalado na garganta,
mas ela nunca perdera seu sono por pouca coisa.
Despertou pela madrugada assim que Susana se movera para o
outro lado da cama, presa em um sono profundo, que causou extrema
inveja na garota ao lado. Mariana bufou e arfou diversas vezes, para
combinar com a quantidade de tentativas de pregar os olhos ou focar-se na
tentativa de simplesmente descansar.
Chovia, para variar.
O coração, ladrava em desespero.
Era sempre assim.
A insônia havia lhe invadido por completo, não conseguia se sentir
confortável. Mariana encarou tanto o teto de seu próprio quarto, contando
as estrelinhas de plástico que brilhavam no escuro, artefatos esses que
foram colocados especialmente quando a garota tinha mais de onze anos e
ainda morria de medo do escuro.
Fez uma pequena confraternização ao lado de Susana; eram
grandes amigas agora.
Quando, enfim, adormeceu, logo despertou. Cedo demais para
acordar Susana, ato que poderia ser até indelicado.
Deixou que a amiga continuasse dormindo e despencou para o
banheiro, lavou o rosto cansado e repleto de olheiras. Agarrou o celular na
cabeceira da cama e saiu do quarto. Rumando à cozinha, pois queria uma
tigela enorme de cereais com leite.
Sozinha no ambiente ainda mal iluminado pela manhã, engoliu todo
o cereal, tentando não ler nenhum dos rumores online sobre o motivo de
seu término, e abandonou a cozinha antes que os empregados chegassem
para preparar o café da manhã para os Langes.
Subiu os degraus lentamente, torcendo para o tio ter um sono tão
precário quanto o seu e estar devidamente acordado em seu escritório.
Touché, comemorou Mariana quando empurrou delicadamente a
porta do escritório do tio, no terceiro andar. Perto de papeladas
intermináveis e conversando com a esposa, William mantinha-se entretido.
— Atrapalho? — indagou Ana, perto do batente.
Rúbi, que estava aninhada em uma poltrona, encarou a sobrinha
com o semblante morno estampado. Ao menos, todos pareciam
devidamente acordados.
— Nunca. — O tio suspirou, cansado, afastando alguns papéis da
frente do rosto. Ele sorriu, ainda sonolento, e afastou os óculos de leitura do
rosto. — Não conseguiu dormir direito?
— Alguma coisa anda te preocupando, meu amor? — Rúbi quis
saber.
Mariana entrou totalmente no escritório e fechou a porta atrás de si,
contida.
— Choveu demais, então... acabei perdendo o foco — respondeu,
quase totalmente tímida. — E vocês?
Assistiu o tio concordar com a cabeça, e quase sorriu com o ato.
— Estou com problemas com fornecedores, sabe que gosto de tudo
no devido lugar, mas é coisa minha, coisa boba — William disse, piscando
rapidamente. Trocou um olhar com a esposa e acrescentou: — Mas...
hum... muita coisa aconteceu nesses últimos dias, Mariana. Tem certeza
que tá bem?
— Sim, estou. Muito, muito bem.
— Soube do pedido — Rúbi intrometeu-se. — Quer dizer, nós
soubemos do pedido. De casamento. Acha que fez o certo? Em ter
recusado?
— Tenho certeza que quero continuar sendo uma Lange — garantiu,
satisfeita. — Não pensei, nem por um minuto, em aceitar o pedido, Rúbi.
Aguardou, com paciência, que a tia dissesse aos ventos que a
odiava; que todo o trabalho duro e concreto em criá-la havia sido jogado
diretamente no lixo. Mas não disse. Assentiu com pesar — porque, afinal,
adorava Caique — e respeitou o momento com um voto de silêncio
respeitável.
William ajeitou-se na cadeira estofada e confortável, recostou-se no
apoio, atento ao que a sobrinha iria lhe falar.
— E, sendo franca, não quero aceitar nada vindo dele.
— Não posso ser um mentiroso, já que fico feliz em ouvir isso —
completou o tio, sério.
— Você nunca disfarçou. — Rúbi conseguiu sorrir, saindo da poltrona
e abraçando o marido por trás. — Dava um pouquinho de dó, viu? Do
garoto. Ele só era muito gentil.
— Não importa, não estou preocupado com isso. — William aceitou o
abraço da esposa e massageou o braço dela. Olhou para a sobrinha outra
vez. — Mas ainda bem que você tá aqui, queríamos conversar com você,
meu bem.
Ela olhou de William para Rúbi duas vezes, atenta.
Seja o que fosse, talvez teria que escutar o que mais temia.
— Antes, preciso saber. Vocês estão bravos comigo?
William e Rúbi entreolharam-se.
— Deveríamos? — A tia estreitou o olhar. — Fez alguma coisa
grave? Ele fez alguma coisa grave com você, Ana? — Ao ouvir a pergunta,
prontamente Mariana negou. — Então... desculpa, não entendi. Por que
deveríamos estar bravos?
Nem ela entendia, mas se pudesse usar um tempinho para pensar,
começaria a explicar melhor.
— Bem, não sei. Acho que é porque todas as minhas escolhas, por
mais que sejam minhas, não são minhas — soltou. A frase não caiu tão
bem assim, então precisou reformular. — Sem querer ofender, mas tudo o
que faço é pensando em vocês ou em outras pessoas. Apenas finjo pensar
em mim, quando, na realidade, estou sempre cedendo algo. Foi assim com
o Caique e com as minhas antigas amigas. Ninguém, absolutamente
ninguém, me pergunta o que eu quero sem antes deixar muito explícito que
não há escolhas.
Lange conseguiu a tensão atingir suas costas imediatamente;
arrependeu-se do que falara, porém sabia que estava certa. O conflito de
emoções não passaria, mesmo que tentasse.
— Ah, Mariana — choramingou Rúbi, sendo sincera. — É isso o que
você sente?
Ana não precisou responder, o clima entre eles dizia tudo.
— Ah, minha sobrinha querida. Me desculpe! Não sabia que se
sentia dessa forma, achei que fosse, sei lá, sua vontade fazer as coisas que
eu pedia. Ou... ouvir meus conselhos, não sei! Por alguns momentos,
pensei que... só estivesse sendo uma pessoa parecida comigo.
— Pode ser que eu seja, mas nem tanto quanto você acha que sou.
— Mariana — chamou William. — Você se sente obrigada em nos
obedecer? — Não esperou a réplica, pois completou: — Pode parecer
besteira, mas não se sinta assim, não. Sei que é mais fácil falar do que agir.
Mas não quero uma recompensa por ter te criado. Nunca na vida aceitaria
uma coisa dessas!
— Exatamente! — vociferou Rúbi. — Você é uma filha para nós! Te
acolhemos desde o primeiro dia de vida. Você não se lembra, porque
logicamente, era um neném. Mas fomos nós que te buscamos na
maternidade. — A tia fungou, alto. — Ana, não pode deixar sua vida de
lado, simplesmente, porque quer pagar uma dívida conosco.
— Isso não existe — o tio emendou, forte. — Sério. Não quero que
pense ao contrário.
— Sentia que sim — confessou a garota. — Só... não queria dar
trabalho ou ser um estorvo.
— Nunca! — Rúbi arregalou os olhos. — Sei que posso ter colocado
seus nervos à prova, sei disso. Mas só quero seu bem, hoje e sempre. E
agora que sei como você se sente, consigo me policiar melhor... pensar
antes de agir e falar.
Abruptamente, arrebatada por sentimentos aprisionados em sua
cabeça desde a adolescência, Mariana sentiu vontade de chorar um pouco.
— E sobre o casamento, nunca o apoiaria se não existisse seu
consentimento, e nunca senti que houve — disse William. — Estou falando
de amor. Pode parecer brega, mas é verdade. Um casamento é um marco
intenso de confiança e um passo enorme na vida de uma pessoa, meu
amor. Sei que pode parecer glamoroso para essas pessoas dos jornais e
revistas, porque envolve um anel de diamantes com safiras magníficas.
Mas não é apenas isso. E se, por acaso, o anel se perdesse? O que lhe
restaria? Nada. Apenas infelicidade.
Seu tio lhe encarou por longos segundos.
Mariana reparou nas linhas faciais exaustas de seu rosto e os traços
da idade chegando aos poucos. O bigode que não havia, nem por
brincadeira, um fio branco para combinar com o cabelo impecável.
Os tios tocaram-se, esperando pelo o que viria a seguir. Estavam
prontos para entender Mariana.
William tinha um longo casamento com Rúbi; conheceram-se ainda
jovens em uma área carente de São Palomane.
Ele havia lutado com todas as forças para uma bolsa integral em
uma nobre escola particular.
William viu em Rúbi alguém que poderia amar sem outros interesses.
Formaram-se em colégios distintos, mas havia sido Rúbi quem havia
entrado na faculdade. Formou-se em administração quando William pediu
um empréstimo alto no banco onde trabalhara, e encontrou a oportunidade
perfeita de crescer na cidade, após ouvir por acaso uma conversa de
alguns investidores do ramo de hotelaria e turismo.
Contou a ideia a Rúbi, que confirmou que seria um ótimo
investimento. Ainda que fosse um passo arriscado, apostaram na sorte.
Começaram com uma pequena pousada no norte de São Palomane e, com
o dinheiro que recebiam dos extras, conseguiram pagar o empréstimo antes
que entrassem os juros.
A maré de boa sorte continuou.
O primeiro casamento gigantesco e chique do Salão de Ouro do
Hotel Longe foi deles, dez anos depois de iniciarem suas vidas no ramo.
Logo tiveram Simas, presenteados depois de inúmeras tentativas de
gravidez. Anos depois, veio Mariana, um sopro de felicidade em meio à
tragédia.
William e Rúbi sabiam que tinham dois ótimos filhos, e nada no
mundo mudaria suas percepções.
— Então, apenas para finalizar... — O tio lhe lançou um sorriso
carregado de gentileza. — Quero que saiba que conselhos são dados por
pessoas que se importam com você. Se está ouvindo um conselho, saiba
que essa pessoa se deu ao trabalho, de ao menos, pensar em lhe dizer
algo que preste. Ela poderia te ignorar e dizer "Ok, Mariana, chega, vá para
casa e finja que eu me importo." e ponto. Mas não, está pensando e lhe
dizendo coisas que surtem efeito em você. Conselhos, acima de tudo, não
são regras. Você segue se quiser, você segue se for o caso de usá-los.
Fez uma pausa, buscando apoio da esposa.
— Mariana, você está fazendo suas escolhas assim que aceita
seguir um conselho. Não se prenda a isso como se fosse algo ruim, é
ótimo. Aja devagar, seja sutil, experimente seus limites. Um pouco de cada
vez, um passo depois do outro. Você já mudou seu cabelo, cortou relações
com amizades impróprias. Como isso não é tomar suas próprias decisões?
Mariana, então, sorriu genuinamente para o tio. Não precisou abrir a
boca e despejar tudo o que tinha acontecido, seu tio a havia entendido
perfeitamente. Ela acenou com a cabeça positivamente a ele. Tinha sido
uns dos melhores conselhos, e com certeza iria usá-lo: ser ela e apenas
ela.
— E... — Rúbi limpou a garganta, emocionada. — Pelas fotos que
Simas nos mostrou, adoraria conhecer o Noalin. Ele deve ser um ótimo
rapaz — elogiou. O sorrisinho nos lábios de Mariana se alastrou. — Ele é...
como diria na minha idade... um pão?!
— Tá tentando elogiar o Noalin? — Ana sorriu entre as lágrimas. —
Não acho que está funcionando, não.
— Estou! — A tia riu, alto.
— Também quero conhecê-lo. — William piscou. — Ele e você...?
Vocês dois...?
— Não! — Adiantou-se, perdendo um pouco a voz. Ainda sob a
supervisão do tio, Mariana mordeu os lábios. — Ainda não. Mas... Noah é
realmente especial.
Mariana apertou as mãos umas nas outras, deu a volta na mesa
polida de madeira sólida do tio e abraçou-os, pendurando-se em seus
pescoços.
Fazia muito tempo que não sentia-se assim.
— Obrigada, tio William. — Ela beijou singelamente sua bochecha e
apertou ainda mais o abraço. — Próximo passo é uma nova graduação.
— E o que tem em mente?
A pergunta da tia fez Mariana recuar um pouco — um pouco, só. Não
estava acostumada com a pergunta.
Tinha a chance de desbravar e fazer o que quisesse. Sentia-se um
pouco velha aos vinte e cinco anos, apenas porque sabia que a construção
de idade, conforto e idealizações era um pouco ultrapassada.
Agora, seria ouvida.
Tinha a chance de fazer o que quisesse, certo?
Então... por onde começaria?
Vinte e um: mariana

o estado de mudança só é concreto quando percebemos. até lá, é


apenas mera percepção. falácia pura.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

No sábado seguinte, Noah tirou um dia de folga com Lucélia;


passara a manhã toda com o pequeno vislumbre de um dia de folga. Havia
saído nos principais jornais como um novo affair de Mariana Lange. Poucas
pessoas o reconheciam, e essas poucas não sabiam dizer com clareza que
se tratava de Noalin Dias.
Não importava muito; precisava correr.
Havia encontrado uma ótima oportunidade naquela novidade que
ainda residia em seu e-mail. Era agora ou nunca mais.
Que se danem as notícias, agora ele poderia ter um brilhante e
saudoso futuro.

O motor da Shadow rugiu assim que estacionou abaixo do toldo que


tanto conhecia.
Rúbi Lange segurou as próprias mãos, após afastar as cortinas da
quilométrica sala e observar Noah em sua residência. Revirou fracamente
os olhos de maneira divertida e agitou-se para conhecê-lo antes que
Mariana aparecesse.
A campainha tocou e apressou-se a atender Noah, porque era uma
ótima anfitriã. E também porque estava chovendo muito lá fora.
— Boa tarde, dona Rúbi. Espero que não esteja incomodando.
— Não precisa me chamar de dona, não. — Sorriu. — É Rúbi, gosto
assim!
— Rúbi, então — decidiu. Quando pôde, adentrou o hall. — E
desculpa aparecer assim, na sua casa...
— Ouvi falar muito de você, Noah. — Rúbi fechou a porta e arrumou
a postura. — Pode vir quando quiser. Se é amigo da Ana, é bem-vindo aqui.
— Certo. Meu Deus. Obrigado!
— A propósito, ela tá lá em cima. — Ela tocou rapidamente os lábios.
— Pode subir! Você, agora, é de casa!
Dias assentiu, pois sabia que estava sendo observado. Ainda que
Rúbi fosse muito simpática, sabia que cuidados maternos ainda eram
cuidados maternos.
Com coragem, conseguiu subir as escadas, mas parou no alto do
corredor, quando lembrou-se, de repente, que não conhecia o caminho do
quarto de Mariana. Esteve na casa muitas vezes, mas nunca havia
adentrado o espaço pessoal de Ana. Aliás, não sabia se conseguiria.
Ainda confuso, seguiu o caminho que sua mente pensou que seria o
melhor a seguir. Mariana, possivelmente, moraria no último quarto, do
último corredor.
Dito e feito. A porta, totalmente aberta, trazia uma garota entretida
em fazer a própria mala. Livros, revistas, calcinhas, camisetas e saias
estavam jogadas em cima da cama. E Mariana, atenta na música que
cantava em grande estilo, não reparou na presença observadora de Noalin.
E ele queria assim, afinal.
Depois de muitos anos pensando que era uma pessoa esquecível,
desejou ser invisível para guardar a imagem de Mariana bem fresca na
memória. Seus últimos dias na cidade haviam sido caóticos e revigorantes.
Viu a mãe e o pai chorarem pela primeira vez de emoção após outra
conquista. O garotinho que gostava de literatura e que havia ganhado uma
bolsa de estudos conseguiu avançar outro passo.
O primeiro de milhares que Noalin almejava conquistar.
Aos poucos, Mariana pressentiu a presença dele, assustada.
Desligou o som de imediato, as íris esbugalhadas, sendo pega
desprevenida.
— Caramba, Noah! — reclamou. — Pensei que ia chegar só mais
tarde, meu Deus! — Ana colocou a mão sob o peito. — Você andou todo
calado nesses últimos dias... mandei mensagem, pensei que fosse
aparecer aqui apenas...
— Eu consegui, Mariana! — comemorou, entrando no quarto e
calando-a. — Eu consegui! Eu tô indo embora!
— Conseguiu?! — gritou ela. — Conseguiu o quê?
— Fiquei na lista de espera de uma universidade. Nem pensei que
eles fossem me chamar, mas me chamaram! — berrou, abraçando-a com
toda a força que conseguia. — Vou essa semana! Ainda essa semana...
passei os todos os dias procurando documentação, é por isso! Porque vou
embora!
— Ah, Noah!
Mariana cedeu.
Retumbou um grito afoito, correndo na direção de Noah, e jogou-se
em seu colo, embrulhando suas pernas em volta da cintura dele.
Abraçaram-se em um choque de temperaturas baixas que atiçou o coração
de ambos. Sentiram os corações pulsarem um pelo outro por baixo das
roupas. Era bom e gostoso, e juraram que podiam sentir aquilo para
sempre.
Agarrou-o dentro de um abraço tão apertado que foi capaz de sentir-
se perdendo as forças, porém não importava. Ele estava indo embora, fazer
o que tanto sonhou.
Havia coisa mais importante do que aquela?
— E quando você vai? — quis saber, eufórica.
— Segunda, bem de manhã!
— E seus pais?
— Estão felizes pra caralho! Me ajudaram com tudo, você precisava
ver a reação deles, sério! — Noah soltou-a com cuidado, mas não deixou
de enlaçar a cintura. — E eu vou precisar de um terno, aliás.
Mariana riu.
— Um terno?
— Vou chegar no meio do semestre, bem na cerimônia ministral de
História. Não sou muito de festas, mas quero dar uma boa impressão!
O coração de Lange saltou no lugar; quando queria, Noalin era um
fofo.
— E vai dar. — Ela tocou a bochecha dele. — Vem comigo. O Simas
deve ter algum que sirva.
No caminho até o quarto de Simas, Noah explicou tudo; a notícia
havia sido enviada para seu e-mail na sexta passada, enquanto conversava
com Mariana. Ele ficou tão pasmo que mal conseguiu acreditar na chance.
Não tocou no assunto consigo mesmo durante três dias, até a
universidade entrar em contato novamente, relembrando que Noah
realmente fora chamado em uma segunda lista de espera. Então, com
coragem, ousadia e determinação, correu atrás dos documentos
necessários.
O curso seria História, licenciatura. Do jeitinho que sempre desejou.
A universidade, no entanto, ficava em Poços de Caldas, Minas
Gerais. Noah mudaria-se para lá, sem olhar para trás.
E somente quando teve tempo, pôde retornar para contar
pessoalmente a grande novidade para Mariana. Talvez ela pudesse visitá-lo
também. Esporadicamente. Aliás, ele soube que Poços de Caldas era uma
cidade linda e incrível.
Muito turística.
Os dois apressaram os passos, subindo rapidamente de dois em
dois degraus, para o próximo andar. Correram entre os corredores e só
pararam quando Mariana escancarou a porta do quarto de seu primo,
Simas.
— E cadê ele, hein? — Noah perguntou.
— Tá com o Thiago — informou. — Mas fica de boa, ele não se
importa em emprestar um terno para você.
Mariana fez um sinal, pedindo que a seguisse até o closet de Simas.
Algumas araras de roupas estavam para fora, propositalmente destacando
blazers e calças de pregas sociais.
Noah torceu o nariz, qualquer que fosse sua semelhança com
ricaços acabava ali. Não se via dentro de nenhum deles. Queria o terno
mais barato — assim, se algo desse errado na cerimônia ministral, poderia
pagar pelo conserto.
— Tem alguma ideia? — Mariana passava os cabides entre as
araras, encarando Noah. — De terno? É algo muito elegante ou casual?
— Olha a minha cara de quem sabe o que tá fazendo, Ana —
zombou, imitando o ato de passar os cabides para o lado. — O mais barato
e o mais discreto. Essa é a pedida!
— Preto, então. É clássico, é elegante e deixa qualquer um gostoso.
— Mariana retirou um cabide do apoio.
— Quer dizer que não sou gostoso?
— Quer dizer que vai te deixar mais gostoso!
Havia muitas combinações que estava ansiosa para experimentar,
como blazer e calças pretas, com uma gravata vermelho sangue para
combinar.
— Me parece bom. Que tal um cinza? — sugeriu. Noah negou. —
Certo, iremos trabalhar com preto. Vá! — Ela bateu delicadamente na
bunda de Dias, entregando a primeira opção de terno a ele. — Vista e
depois desfile para mim.
— Sou obrigado?
— É necessário! — cantou. — Que tipo de amiga eu seria se te
mandasse para a universidade sem ser um gostoso dentro de um terno?
Noah mordeu a língua lentamente, pegando o cabide das mãos de
Mariana, sem escolhas. Entrou no espaçoso e amplo banheiro de Simas.
Vestiu o terno rapidamente e abriu a porta, entediado.
— Me sinto como... se estivesse numa cerimônia de funeral.
Mariana levantou os olhos para poder enxergar Noah, comprimiu os
lábios e negou. Sentada na ponta da cama do primo, pensou um pouco nas
alternativas.
— Nada a ver, Noalin. Definidamente, preto é a sua cor. Mas ainda
sim... não nesse corte. É bastante...
— Não sei o que significa, então seja prática — ele pediu aos risos.
Aproximou-se um pouco, abaixando-se para conversar com Ana. Tocou em
seu joelho, pontuando: — Me escolha outro terno, então. Já que... você
entende muito de cortes e tecidos, e essas coisas.
Mariana engoliu um seco, havia gostado do toque. Queria senti-lo
mais vezes.
Um pouco tensa, retornou para o closet. Escolheu o primeiro que viu
pela frente. Pegou o terno que estava namorando há muito tempo e jogou
nas mãos de Noah.
— Esse! É azul-marinho, meio giz, a gravata cinza, quebra
totalmente o contraste...
Noah não entendeu muita coisa, mas apenas confirmou com a
cabeça.
— Aliás, nessa cerimônia... você vai sozinho?
— Sim. Essa é a ideia.
— Acho difícil que seja — comentou Mariana. — Será cobiçado.
Noah sorriu.
— Carne nova, princesa. — Piscou. — É assim que acontece.
— Estou te arrumando para... outras pessoas ficaram te vendo?
— Sim, basicamente — definiu. — Mas só uma me interessa, fica
calma.
— De acordo com as fofocas, já somos um affair.
Ele não respondeu, sabia que não precisava.
Em seu ponto de vista, nenhum boato precisava ser desfeito. Que
pensassem que ele estava com Mariana, não dava a mínima.
Dias andou em ré, ainda dando a Mariana seu melhor sorriso: aquele
torto de confiança extrema que a deixava zonza. Trancou-se no banheiro
novamente, e voltou cinco minutos depois, derrotado; a gravata não estava
devidamente presa ao pescoço.
Mas o resultado inovador estava ali; extremamente esbelto e robusto
com o terno. Elegante, mas não ao ponto de deixá-lo desconfortável. Nada
irreconhecível, ainda era Noah dentro de um terno muito bem costurado e
moldado.
Mariana prendeu o "uau" no fundo da garganta, optou por morder os
lábios, evitando sorrir abertamente. Desejava que ele a agarrasse ali
mesmo.
— Então...? — perguntou afastando os cabelos que, bagunçados,
atrapalhavam a visão. — Pareço exatamente o quê?
— Um jovem novo na cidade, ansioso para voltar a estudar, dentro
de uma cerimônia ministral porque quer se enturmar. — Mariana
aproximou-se, amaciando o tecido do blazer.
— Ok, se você diz, acredito em você — confidenciou. — Mas ainda
levei um murro dessa gravata. Será que consegue...?
Ele não precisou terminar de explicar, apenas gesticulou para o
próprio pescoço. Mariana deu alguns passos para frente e começou a
atender o pedido. O temido nó que poucas pessoas sabiam fazer. Com a
garota tão perto de seu corpo, Dias soube definir que o cheiro dela era de
cereja.
E o de Noah, caramelo.
— Afinal, onde é sua tatuagem?
Mariana soltou o ar ao rir.
— De novo essa conversa?
— Até parece que não quer saber a minha. Vamos lá, me diga um
pouco mais sobre a sua. É em algum lugar vergonhoso?
— Lombar. — Mariana recomeçou o nó, os olhares atentos de Noah
eram desconfortáveis e quentes. Ela o queria na mesma proporção.
Noah perdeu o raciocínio.
Na lombar, realmente, era um lugar sexy e apropriado para ir à
loucura. Imaginava que Mariana estava brincando, mas seu rosto um pouco
ruborizado e o sorriso à meia boca queria dizer que era verdade.
— E será que poderei vê-la algum dia?
— Se me encontrar em momentos íntimos, quem sabe?
Noah pousou as mãos delicadamente na cintura de Mariana. Ela
estava tão próxima dele que precisava segurar-se para não desequilibrar.
Certo, ele gostou de contar essa mentira a si mesmo. Mariana
permitiu o ato, aninhando-se ainda mais contra seu peito. Terminou de fazer
o nó e não poupou esforços para erguer o queixo minimamente e beijar
Noah.
Seus lábios colaram-se rapidamente.
Noah tomou a nuca de Mariana para si, afastando as poucas tranças
soltas do rabo de cavalo.
Ela acomodou-se ainda mais no abraço quente e deixou que se
beijassem por mais tempo. Era algo totalmente novo para ambos. Fazia
tempo que Noah não beijava alguém, e nunca sentiu-se assim. Era
Mariana, teria que ser Mariana.
A garota sabia o que era sentir borboletas no estômago voarem e
dançarem tango, mas não soube explicar a explosão de sentimentos que
Noah lhe proporcionou. Segurou ainda mais sua gola e xingou baixinho
quando sentiu que iriam se separar.
— Tem certeza que é isso o que quer? — Noah perguntou baixo,
quase torcendo para Mariana não o escutar de fato.
— Se eu quero? — repetiu a pergunta, abobada por precisar pensar
em algo importante depois de beijá-lo. — Tá brincando comigo?
Mariana beijou-o, o fazendo se calar. Era melhor assim.
Era a única resposta plausível para aquela questão. Tomou em seus
lábios a única certeza que teve em tempos sórdidos. Puxou-o para sua
boca, segurando firmemente o rosto entre as mãos. Noah beijou
intensamente Mariana, sabia que era totalmente diferente do primeiro
toque.
O primeiro contato havia sido calmo e intenso. Agora era veloz,
sagaz, preciso e intenso. Toda a energia de ambos direcionada a um beijo
que, para eles, deveria ter acontecido antes.
Mariana arrastou os cabelos de Noah para trás, puxando-o
sensualmente.
Ouviu quando Dias gemeu baixinho, ainda com os lábios grudados
nos dela. Seu gosto era viciante. Era arrebatador.
Noah trouxe Mariana ainda mais para si, sentiu quando seus corpos
se encaixaram instantaneamente, como peças de quebra-cabeças
perfeitas. Reagiram automaticamente para o tesão crescendo ainda mais
dentro deles.
— Mariana?!
— Não para, Noah — suplicou — Por favor.
Vinte e dois: mariana

a indecisão é a matriz de péssimas ou boas escolhas. só saberemos se


arriscarmos. quanto mais riscos, menos dúvidas. acredite em mim, erros
não servem para serem repetidos.
— PARTE DO ACERVO INCOMPLETO DE MARIANA LANGE

Mariana ergueu a cabeça, buscando os lábios de Noah.


Beijaram-se no meio do quarto, sentindo as bocas geladas se
tornarem quentes com as línguas macias em sintonia.
Noah sustentou Mariana ainda em seu colo, segurando firmemente suas
pernas ao redor de seu corpo. Sentiu todo o corpo reagir em busca daquela
garota que tanto desejava. Não queria saber o que o mundo falaria deles,
não queriam saber as respostas de questões duvidosas.
Apenas eles bastavam.
— Você tá gelado. — Riu Mariana, ofegante.
— Foi sem querer. — Ele também sorriu, calmo. — Tomei muita
chuva antes de vir para cá.
— Vamos nos aquecer antes de tudo, Noalin — opinou. — O que
acha?
— Não precisa nem perguntar muito, princesa.
Noah caminhou tranquilamente, distribuindo beijinhos nas bochechas
avermelhadas de Mariana e fazendo a garota sorrir. Adentraram o amplo
banheiro branco de madeira revestida e continuaram os beijos ali.
A pele gelada de Noalin era um grande contraste em tudo, e a
ansiedade por desejar cada vez mais intimidade com ele só crescia nela.
Mariana puxou cuidadosamente a primeira peça de Noah, o terno
azul-marinho e, depois, a camiseta fina. Viu, finalmente, a tatuagem; listras
pretas nas costelas. Não entendeu de primeiro momento, mas as achou
incríveis.
— E então? — Noah beijou a testa dela — Era o que você esperava?
— Melhor. — Mariana sorriu, puxando o lábio inferior de Noah para
si. — Bem melhor.
Ele pousou a garota levemente no chão, puxando a camiseta para cima.
Tocou a cintura dela, virando-a delicadamente para o lado. Retirou,
ainda com cautela, a blusa de Ana. A tatuagem na lombar estava lá:
pequenos olhos expressivos.
Noah sentiu necessidade de beijar a pele de Mariana. Agachou-se
um pouco, passando seus dedos na região da lombar, e sorriu quando
percebeu que o toque causou pequenos espasmos de prazer na garota.
Beijou demoradamente a pele, ouvindo os pequenos gemidos que Mariana
soltava, implorando para que continuasse.
Desabotoou a calça, que deslizou ternamente pelo corpo de Mariana,
despencando até o chão.
Retirou a calcinha e desprendeu o sutiã com uma mão. Noah beijou
o pescoço de Mariana, afastando seus cabelos molhados para o lado com
puxões precisos que não a machucassem. Apertou a cintura contra a dele,
um choque de virilhas e tensões que poderia ser sentida até de longe.
Mariana deixou que ele a apertasse muito. Gostava da sensação da
força, gostava de ser desejada quase desesperadamente por Noalin.
Desamarrou os cabelos de Noah enquanto estavam em um beijo
intenso; cheio de línguas e viradas de cabeças, mordidas e gemidos
escapados entre o ar. Puxou para si as madeixas que tanto adorava e arfou
quando sentiu a ereção dele contra sua barriga.
Esticou-se para alcançar o registro do box e abriu com uma mão.
Terminou de retirar as peças que o separavam e riram, um pouco
envergonhados por aquela aproximação tão avassaladora. Entraram juntos,
sentindo o contraste da água quente em suas peles. Se abraçaram
ternamente no meio. A água caindo, banhando-os de um amor jovem que
descobriram em poucos dias.
Uma cumplicidade que não entendiam, mas não iriam fazer muitos
esforços para saber os motivos. Não queriam. Os beijos continuaram mais
ternos.
Uma tempestade os uniu, uma tempestade os separou.
Permaneceram abraçados, trocando carícias intensas. Esfregou-se
contra o peito dele, pedindo por mais. Segurou no azulejo atrás de si e
prendeu a respiração. Uma pitada de medo lhe atingiu. A tia estava em
casa!
E se subisse? E se os procurassem?
— Não pensa em nada, princesa — aconselhou Noah, notando o
rosto de Ana contorcer-se. — Não precisa pensar em mais nada além de
mim, certo?
— Certo — soprou Lange. — Só era besteira...
Noah pressionou a ereção novamente perto de Mariana e sorriu.
— Sim, sei que sim.
— E estou falando a verdade — sentenciou, enevoada a gemer um
pouco mais baixo. — É besteira, sim. Só quero me concentrar em uma
coisa.
Não iria suportar nem um minuto a mais. Quando suas pernas, ainda
trêmulas, não se mantinham em pé, Mariana desligou o registro, puxando
uma toalha para si e uma para Noah. Ainda aos beijos, parando todo o
percurso do caminho para brincarem um com o outro, enfim, caíram na
cama, aos risos e gargalhadas graves, altas e ridículas.
Se sentir medo se parecia com tamanho conforto, Mariana teria que
lidar com aquilo.

Mariana curtia a cabeça deitada sob o peito de Noah.


É tão clichê, pensou ao sorrir discretamente. Sentia que estava bem.
Muito bem.
Os cabelos de Noah jogados no travesseiro branco, sua mão
passeando entre braços e costas, em um carinho afagado e gostoso de se
sentir de olhos fechados, e desejando que nunca pudessem levantar dali.
Ainda chovia. Viu pelo canto do olho as gotas de chuva acumuladas
no vidro da janela. As lágrimas da janela. Mariana via assim.
Ergueu o pescoço para voltar a beijar Noah e puxou a coberta para
proteger-se do frio. Havia sido insensato. Seus tios ou Simas — já que era
o quarto dele — poderiam aparecer a qualquer momento.
Contudo, não soube conter a felicidade e nem o entusiasmo de
continuar deitada ao seu lado. Mas, para ambos, uma grande incógnita
pairava no ar.
E depois?
— Sabe... — Mariana começou. Fazendo sinais de corações no peito
de Noah. — Quando falei com os meus tios sobre o meu futuro, soube que
estava fazendo o certo. Você não é o único sendo a melhor versão de si
mesmo, Noalin.
— Noalin — repetiu, com um sorriso bobo no rosto. — Você é a
única pessoa que deixo me chamar de Noalin sem reclamar. Tirando a
minha mãe.
— Gosto do seu nome verdadeiro.
— Enfim, me diga, o que disse aos seus tios?
Ela afastou-se de Noah, sentando-se ao lado e repuxando a colcha
para cobrir o corpo nu. Lado a lado, Mariana virou-se na direção de Noah,
deitando-se em cima de sua mão.
— Não vou fazer outra faculdade, Noah. Decidi que não. — Outra
mordida no lábio. — Quero conhecer os lugares que meus pais conheceram
antes de tudo. Quero fazer cursos livres e quero entender quem eu sou e o
que quero. Vou visitar muitos países. Sobretudo, quero conhecer a França,
sob os olhos dos meus pais. A cultura, principalmente.
Fez uma pequena pausa, para tomar fôlego.
— Estou indo buscar ajuda também. Meu medo de chuvas. É...
intenso. Tira a minha paz rápido demais. Quero... cuidar de mim e cuidar de
quem serei. Contei a ideia aos meus tios essa semana... por isso estava
fazendo as malas. Eles me apoiaram, é isso o que importa. Confirmarei na
imprensa ao final de semana, e espero partir na próxima.
Noah beijou o dorso da mão dela, contente.
— Estou orgulhoso, Mariana.
Aquilo fora o suficiente para ela.
Sabia que estava fazendo a coisa certa ao ir para a França ou
qualquer país que quisesse. Pensou, por instantes, que seria incrível se
visitasse Noah e ele pudesse encontrá-la em algum lugar.
Olha só para mim, refletiu abobada, fazendo planos com Noalin,
quando nem ao menos sei como será nosso temido e desejado futuro.
Não queriam falar como seria da porta para fora.
Não desejavam respostas imediatistas.
Estavam curiosos para encontrá-las.
Mariana suspirou, inalando o cheiro gostoso e forte de Noah, aquele
mesmo que gostaria de recordar para sempre. Conhecia os pais e queria
vivenciar a sede de conhecimento que os dois tinham.
Ali, finalmente, entendeu o termo "herdeira". Herdeira de sabedoria e
dedicação.
— Quem sabe você possa me visitar? — Mariana soltou, engenhosa
e sorridente. Noah tocou sua bochecha generosamente. — Você terá férias
como professor, pode me ver...
— Quanto tempo espera ficar fora do país?
— O tempo que eu achar necessário. — Mariana beijou rapidamente
a boca dele, um selar simples — Quero visitar todos os lugares, parques,
instituições... Quero me conectar em algum lugar antes de voltar.
— Sentirei falta de alguém me chamando de Noalin — confessou. —
Mas... irei te visitar, não importa onde. Me diga quando e onde, e eu vou.
— Ótimo! — Mariana aninhou-se nele. Aquele abraço poderia ser
seu lar facilmente. — Sentirei sua falta e de Susana, com toda a certeza. E
por favor, mantenham contato. Saiam juntos e me mandem fotos!
— Poços é aqui perto, tenho certeza que a Susana me visitaria. —
Noah fez um pequeno carinho da testa de Mariana até o nariz. Sorriu
apaixonadamente. — Pode parecer uma pergunta meio estranha, mas você
já assistiu “Clube dos Cinco”?
— Acho que sim. É de John Hughes, 1985?
— Exatamente.
Dias lembrava-se da frase que o marcou a primeira vez quando
assistiu à produção: “E essas crianças em que você cospe enquanto elas
tentam mudar seus mundos. São imunes aos seus conselhos, elas sabem
muito bem pelo o que estão passando." Pela primeira vez na vida, havia
entendido como a arte poderia o consumir de volta.
— O que tem o filme? — Quis saber Mariana.
— Você sabe que só existem cinco tipos de pessoas que você pode
ser, de acordo com o estudo do filme. Um atleta, um caso perdido, um nerd,
um criminoso...
— E uma princesa — emendou Mariana.
— Exato. E o final do filme é algo totalmente incerto. Você fica se
questionando se John Bender e Claire vão ficar juntos, porque eles têm
uma forte ligação e ele, no fim de tudo, conseguiu o brinco dela. É o grande
questionamento da trama... o “será”?
— Fico pensando nisso também — disse. — O que aconteceu com
eles depois da detenção?
— São perguntas que nunca serão respondidas — Noah explicou. —
Sei que pode ser incerto o que temos nesse exato momento, e não me
importo de terminar como em “Clube dos Cinco”, porque sei que terei você
de volta em algum momento, Mariana Lange.
Sorridente, ela esticou a lapela da orelha, retirando o pequeno brinco
de pino e, suavemente, deixou sob a palma da mão de Noah.
Ana entendeu o significado. Era uma promessa. Assim como Claire
no filme, entregando sua joia e seu coração para John Bender.
Não importava como e quando, saberiam o caminho de volta. Não
era assim que funcionava?
Duas vidas não parariam apenas por causa de uma.
Aquele era o plano!
Extasiada, Mariana notou que o relógio de cabeceira não estava
pausado. O tempo não pausaria de imediato.
— Você pode ficar mais um pouco? — Mariana Lange perguntou.
— Sim — Noalin Dias respondeu.
Vinte e três: caixa de entrada

ANO UM

De: Mariana Lange [marianalange@email.com]


Para: Noah Dias [finaisdesemana@email.com]
Assunto: apagão!

Desculpa não ter respondido sua mensagem antes.


Teve um apagão na cidade que estou e não consegui NENHUM
LUGAR para te responder. Acredita que apagão significa
UM APAGÃO DE VERDADE??????!!!!!!!
Sério, a chuva foi longe demais agora. Mas estou
feliz? Não tive muito medo, eu e minha terapeuta estamos
criando um exercício de articulações e sentimentos para
conseguir encontrar toda a raiz do meu medo. Pelo o que
entendi, é meu. E não vai embora tão cedo. Há certas
coisas que não queria ostentar, mas cá estamos nós.
Amanhã as minhas aulas de Arte Centrada começam,
será dentro de uma antiga igreja que serviu de
inspiração para uma artista que eu amo demais. Vai ser
emocionante!
Me conta as novidades. Acabei de sair de uma
ligação com o Copel e ele vai me visitar na quinta.
Vamos andar de trem pelo centro da cidade e vou tentar
convencê-lo a comer algo diferente da culinária
francesa.
Enfim, voltando a falar sobre os exercícios. Por
enquanto, eu vejo resultados. Não muito aparentes,
porque ainda consigo perceber se vai chover ou não de
longe. Conheço o processo do tempo, o clima em excesso e
até mesmo a velocidade do vento me ajuda a identificar
se uma tempestade está vindo ou não. Ainda não sei se
isso é um dom ou apenas uma patifaria comigo mesma.
Por exemplo, se estou sozinha e percebo que
choverá, não fico com vontade de me enfiar debaixo do
cobertor e quando estou em público, consigo me
concentrar em uma conversa básica sem suar frio ou
encontrar meio de fugir do temporal. É promissor, não
acha?
Eu acho. Estou comendo croissants todos os dias.
Ok, nem todos os dias. Mas de manhã é quando mais como.
Gosto daqueles de chocolate, você iria gostar. Se bem
que você não gosta de metade das comidas que te
apresentei na sua última visita, mas isso é um bom
sinal. Significa que está aberto a visitar outro local
comigo. Né?
Enfim, preciso ir, estou com saudade!

Com amor,
Ana.

De: Noah Dias [finaisdesemana@email.com]


Para: Mariana Lange [marianalange@email.com]

Assunto: reposta

Eu não gosto de croissant????????????


Como assim?????
Eu gostei, sim. Só não entendo essa tara por essa
comida. Tipo, eu prefiro sonho fresquinho saído da
padaria, é bem melhor. Beleza que não é a mesma coisa,
ok que os ingredientes são completamente diferentes, mas
e daí???
Sinto que estamos prestes a falar de algumas
injustiças por aqui!
Enfim. Estou começando a ter aulas todos os dias, é
bem legal na maior parte do tempo.Tive que fazer uma
monografia em cima de um trabalho interessante, de um
professor da Inglaterra. O nome é engraçado. Se chama
Zeke. Nós trocamos alguns e-mails e foi interessante
essa partilha de conhecimentos. Sinto que me encontrei,
Ana.
Essa cidade é bem diferente de tudo o que já vi;
não chove tanto, já é um começo.
Sobre as aulas presenciais, isso me fez entender
melhor como professores sofrem todos os dias. Quero
dizer, a gente estuda para chorar no final do mês,
basicamente. Como isso teria que funcionar??
Com mais aulas, vieram mais responsabilidades.
Depois de um ano aqui, pensando que viveria apenas do
outro lado da moeda, meu queixo caiu quando descobri que
começaríamos o estágio em sala de aula, na semana
passada.
Foi um início interessante. As crianças foram a
minha parte favorita. Sério!!!!!!!! Pode parecer
loucura, porque quando fui te visitar em Londres no mês
passado, nós pegamos o metrô e um bebê chorou quando me
viu.
Ok. Águas passadas, mas é bom saber que posso
conhecer lugares com o meu próprio dinheiro e saber que
não gosto dessas coisas. Tipo assim, no meu novo
emprego, ele paga mil vezes mais do que na lanchonete,
certo? Então, posso te visitar com certa frequência,
ainda que precise economizar.
O que quero dizer é que, mesmo tendo mais dinheiro
do que quando nos conhecemos, ainda não vou gastar meu
suado salário com croissant. Tipo assim, não me
interessa que ele seja legítimo e francês, sonho de
padaria ainda venceria.
Óbvio, se eles estivessem em uma competição!
Fora isso, estou orgulhoso do seu progresso (meu
Deus, me desculpa por falar tanto de uma sobremesa e
esquecer a parte importante da sua nova terapia. Sério
me desculpa!!!!) mas estou orgulhoso!
De verdade.

Pensando muito em você,


Noah.

De: Noah Dias [finaisdesemana@email.com]


Para: Mariana Lange [marianalange@email.com]

Assunto: Reposta, reposta

Voltei apenas para REFORÇAR que estou MUITO


ORGULHOSO do seu progresso. Dei mais enfoque ao sonho no
último e-mail e fiquei pensando que parecia que eu
estava sendo insensível. E você sabe, estou tentando
falar mais sobre meus sentimentos e está funcionando.
Você é excelente, Mariana, e mal posso esperar para
te ver novamente. Seu progresso é único e maravilhoso de
assistir.
Me mande mais notícias assim que puder.

Att,
Noah.

ANO TRÊS

De: Noah Dias [finaisdesemana@email.com]


Para: Mariana Lange [marianalange@email.com]
Assunto: Passei uma tarde com sua tia

Oi, como você está?


Eu ouvi seus últimos áudios no meu celular, mas só
consegui te responder agora. Acho que não vou conseguir
te encontrar em Berlim, na semana que vem. O estágio
voltou a ser presencial depois de dezembro e quero
continuar aqui. Não quero que fique chateada comigo, só
quero ficar um pouco mais aqui antes de pedir uns dias
de folga. Tem trabalho extra!
Sobre o assunto do e-mail, eu fui pra casa no
último final de semana e decidi visitar seus tios.
Depois que o Simas se mudou da casa, eles ficaram ainda
mais dramáticos. Rúbi disse que está aproveitando o
tempo livre para redecorar a casa e disse que, há uns
três anos, reparou que dois livros desapareceram da
biblioteca.
Bom, eu não disse nada. Não sei como ela descobriu,
mas me fingi de bobo!
Nós tomamos limonada a tarde toda e foi delicioso.
Meus pais estão morando em Poços comigo, se adaptaram
bem. É meio que como férias infinitas agora que a
aposentadoria saiu. Eles não têm mais rotina alguma a
não ser ler, passear e assistir TV. É incrível vê-los.
Eles perguntaram de você.
Vou levá-los comigo na próxima vez que for te
visitar – o que explica eu querer mais tempo aqui.

Pensando em você,
Noah.

De: Mariana Lange [marianalange@email.com]


Para: Noah Dias [finaisdesemana@email.com]
Assunto: resposta

Ah, sério???
Pensei que iriamos nos ver! Até comprei ingressos
para o nosso musical favorito. Maaaaaaaas tudo bem, é
por uma boa causa! Eu entendo. De verdade.
Espero que seus pais gostem de me visitar, uma vez,
sua mãe disse que detesta aviões. Como eles vão passar
mais de vinte horas em curso total? Estou ansiosa para
saber. Se desejar um destino mais perto do Brasil, é só
me avisar. Eu deixo a galeria nas mãos de uma amiga que
fiz e te encontro. Sem problemas!
Sobre a minha tia, estou feliz que foi visitá-los.
Sério! Me conte mais novidades assim que possível, por
favor. E não se preocupe, eu entendo os motivos, seus
pais vão adorar um tempinho a mais com você (e feliz que
agora pode pensar em descansar ao lado deles!)

Com carinho,
Ana

P.S: sobre os livros, nunca pensei que ela


repararia!!!!!!!!

ANO CINCO

De: Mariana Lange [marianalange@email.com]


Para: Noah Dias [finaisdesemana@email.com]
Assunto: casamento!!!!!!!!!

Estarei aí no próximo semestre.


SIMAS VAI SE CASAR!!!!!!!!!!!!!!
Ele acabou de me ligar e me contou a novidade. Nós
ficamos chorando o tempo todo. Acho até que você sabia,
não sabia?
Não consigo parar de pensar que isso está mesmo
acontecendo. Eu disse que trinta era a idade do sucesso,
eu disse! As minhas aulas vão acabar ano que vem, o que
significa, mais do que tudo, que estarei de volta quando
você menos esperar. É isso mesmo, chega de
transferências, conexões, voos longos, enjoos e
croissants que você detesta. Estarei de volta o mais
breve possível.
Esses cinco anos passaram voando.
Às vezes penso que sim e às vezes penso que não.

Com carinho,
Ana.

P.S: SEREI A MADRINHA DELE, É LÓGICO!

De: Noah Dias [finaisdesemana@email.com]


Para: Mariana Lange [marianalange@email.com]

Assunto: resposta

Se eu sabia????
Mariana, eu que ajudei o Thiago a escolher todos os
preparativos. Me respeita!
HAHAHAHA brincadeiras à parte, nós não podíamos
falar nada (nem eu). Susana me fez prometer de que eu
não falaria absolutamente nada para você, porque, talvez
você não fosse se segurar. Tipo assim, eu amo você,
sabe? Mas Simas e você são duas pessoas curiosas demais,
precisava garantir que o segredo de Thiago estaria a
salvo comigo.
Sobre o casamento, será em breve. Simas disse que
não quer esperar nenhum segundo a mais ou a menos. Todo
o tempo conta!
Eu também serei o padrinho. Me sinto até meio
envergonhado em saber que terá tantas pessoas por perto.
Mas animado que será mais um dia feliz, especial e
festivo ao seu lado.

Pensando muuuuuuuito em você,


Noah.
Vinte e quatro: noah

o que é o fim além de um começo? revestido em outra convicção e


ideais? o fim sempre gera uma fantástica e maravilhosa nova oportunidade.
seguir em frente é apenas metade da sua história.
— PENSAMENTOS INEVITÁVEIS DE NOAH DIAS

Cinco anos após a partida de Mariana para outro continente, Noah


Dias trocava um dos pneus da moto.
Ele não entendia como, mas, de repente, aquela moto estava dando
mais um problema para a conta. Talvez estivesse na hora de aposentá-la. A
última vez em que precisou trocar um pneu era, ironicamente, quando
estava próximo de Mariana Lange, a sucessora da Família Lange. Alguma
coisinha mínima sempre dava errado quando estavam prestes a se
reencontrarem. Fosse uma pequena chuva ou um pequeno acidente pelas
ruas da cidade, coisa que fazia o trânsito travar por completo.
Mas era Mariana, ele faria de tudo para encontrá-la o quanto antes.
Pessoa que não via há, pelo menos, seis meses.
Ver, obviamente, era apenas uma característica.
Eles mantiveram um relacionamento à distância, que mostrou-se
bastante forte e predestinado, por mais que houvessem muitas dificuldades.
Noah, que agora estava começando a sair da ala substituta
acadêmica, poderia considerar-se um legítimo professor. Ele tinha alunos!
Pessoas que o respeitavam e o estimavam dentro e fora de uma sala de
aula.
No fim, para Noalin, Ana tinha razão. Trinta realmente estava sendo
sua idade do sucesso; em ministérios, em docência, em confiança, em
esperança. Tudo aquilo que pensou que não seria dele, agora era.
Antes de voltar ao conserto da moto, arrumou a gravata presa ao
pescoço e suspirou, alto. Era costumeiro vestir-se de social quase sempre
que consistia em dar uma aula em um dos institutos do bairro.
Agachado de frente a moto, pensou que mal via a hora de ver Ana
novamente. Naquele momento, Mariana estava chegando apenas para
comemorar o aniversário de Susana e, quando terminasse o final de
semana, retornaria para a França. Ela estaria oficialmente de volta dali a
pouco mais de três meses.
Só mais noventa dias e pronto.
E, quando chegasse, não precisaria mais suportar a presença um do
outro apenas por uma tela tremida de uma vídeo chamada.
Ficou feliz, por um momento, por eles. Na realidade, sempre ficava
feliz ao pensar neles. Nunca desejou nada de Mariana; nada. Nem um
trocado sequer, tampouco um ticket de desconto no Senhor Frango. Nada.
Tudo em Noah era dele. E tudo em Mariana continuava sendo dela.
Aflito, Noah inspirou, cansado, e quase limpou os dedos sujos de
graxa nas calças. No pátio do instituto, no centro de São Palomane,
também desejava almoçar o quanto antes.
Em suma, considerava-se um cara jovem e orgulhoso da namorada.
Cada viagem itinerante que Mariana enfiava-se era uma aventura para a
conta. Não que passasse todos os bons momentos sozinha, Noalin a
acompanhou em algumas viagens também. Nas férias, quando não
precisava se enfiar em estágios de História ou corrigir provas de alunos.
Sabia que Lange sempre encontraria o caminho de volta, partindo do
ponto que Dias sempre saberia em que lugar ficar. Um acharia o outro, era
um fato que nem todo o estudo do mundo poderia refutar.
Seu telefone tocou no fundo do bolso. Se ele atendesse, com certeza
perderia o horário exato para buscar Mariana no aeroporto. Mas, se não
atendesse, poderia preocupar qualquer pessoa que fosse.
Ofícios de um jovem professor ocupado.
Atendeu sem ver o nome.
— Noah? — Mariana disse do outro lado da linha.
— Princesa, estou a caminho... — disse. — Meu Deus, não saia daí!
Estou chegando... só tive mais um problema com essa porcaria de moto!
— Noah?
— Sério. Estou indo!
— Noah!
— O quê?
— Por que não experimenta... olhar para trás?
Noah coçou a grossa sobrancelha e, por cima dos ombros, tentou
espiar o que havia acontecido no pátio do instituto.
Com os cabelos livres das tranças e os pomposos fios cacheados no
alto, Mariana Lange sorria com o telefone grudado à orelha. Ela segurava
uma bolsa transversal cor-de-rosa e vestia uma jaqueta verde-musgo.
Noah apegou-se àquela imagem brilhante de seu passado, presente
e futuro.
Ele deixou o celular de lado, deixando no estofado da moto, e correu
até Mariana, abraçando-a com força. Pensava que a veria dentro de uma
ou duas horas. Era o tipo de surpresa que alegrava seu dia e inflava sua
paz.
A espera tinha acabado — ao menos, temporariamente.
Não importava, sempre era a mesma coisa. Quando a via, não
pensava em meses, dias ou horas.
Pensava no infinito e como, ali, Mariana seria eternamente sua.
Não importava se por um final de semana ou o restante dos dias
úteis.
Apenas seria.
Conheça a autora

L.S Englantine é apenas um pseudônimo da paulistana de 23 anos.


Estudante de Produção Editorial, é também formada em Letras. Começou
escrevendo fanfics e não parou mais.
Escrever, segundo ela, é uma inegável fonte de autoconhecimento e
desafios, além de ser sua maior paixão. Englantine ou Lara, é
completamente a favor de finais em que os personagens se encontrem
felizes, enredos dramáticas e lições de vida que ficam para sempre.

Me encontre nas redes sociais!

INSTAGRAM: @englantinescreve
TWITTER: @escritacriatine
TIKTOK: @englantine

Você também pode gostar