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CAPÍTULO UM

QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS

A teoria do conhecimento, ou epistemologia, é o ramo da filosofia que trata das questões filosóficas
sobre o conhecimento e a racionalidade. Os epistemólogos estão primariamente interessados nas questões
sobre a natureza do conhecimento e nos princípios que governam a crença racional. Eles estão menos focados
em decidir se há conhecimento ou crença racional em casos reais, específicos. Assim, por exemplo, não é
tarefa do epistemólogo determinar se é agora razoável crer que exista vida em outros planetas. Este é
primariamente o trabalho de astrônomos e cosmólogos. A tarefa dos epistemólgos é tentar desenvolver uma
teoria geral estabelecendo as condições sob as quais as pessoas têm conhecimento e crenças racionais. Pode-se
então aplicar essa teoria mais geral ao caso específico da crença em vida em outros planetas, mas fazê-lo é ir
além das questões epistemológicas centrais. Embora no curso do exame das questões filosóficas seja
costumeiro pensar sobre muitos exemplos específicos, isso serve principalmente para ilustrar as questões
gerais. O objetivo deste capítulo é identificar algumas das questões teóricas centrais de que trata a
epistemologia.
Uma boa maneira de começar é olhar para as coisas que ordinariamente dizemos e pensamos acerca
do conhecimento e da racionalidade. Sistematizando-as e refletindo sobre elas chegaremos a um conjunto de
questões e enigmas. Assim, começaremos expondo de uma maneira sistemática algumas idéias comumente
(mas não universalmente) sustentadas acerca do que nós conhecemos e de como nós conhecemos essas coisas.
Chamaremos a essa coleção de idéias de Perspectiva Standard. Neste capítulo identificaremos algumas das
alegações centrais da Perspectiva Standard. Dos capítulos 2 até 5 tentaremos descrever em detalhe as
implicações da Perspectiva Standard e expor suas respostas a algumas das questões centrais. Então, dos
capítulos 6 até 9 nos voltaremos para diversos desafios e objeções à Perspectiva Standard. Assim, o objetivo
geral deste livro é proporcionar um melhor entendimento das perspectivas do senso comum acerca do
conhecimento e da racionalidade e ver em que extensão aquelas perspectivas podem suportar a crítica.

I. A PERSPECTIVA STANDARD

No curso comum dos eventos, as pessoas alegam conhecer muitas coisas, e elas atribuem aos outros
numa variedade de casos. Daremos exemplos abaixo. As alegações de conhecimento com as quais nós
estamos preocupados não são irrefletidas ou esquisitas. Antes, elas são juízos sensatos e ponderados. Assim,
a lista que segue reflete um conjunto de pensamentos acerca do conhecimento e da racionalidade ao qual
muitas pessoas provavelmente chegariam se elas refletissem honesta e cuidadosamente acerca do tópico. Você
pode não concordar com cada detalhe da perspectiva a ser descrita, mas é justo dizer que ela captura
acuradamente o senso comum reflexivo.

A. O Que Nós Conhecemos


A maioria de nós pensa que conhecemos muitas coisas. A lista seguinte identifica algumas
categorias gerais dessas coisas e dá exemplos de cada uma. As categorias podem se sobrepor e elas estão
longe de serem precisas. Ainda assim, elas nos dão uma boa idéia dos tipos de coisas que nós podemos
conhecer.

a. Nosso meio-ambiente imediato:


“Há uma cadeira aqui.”
“O rádio está ligado.”
b. Nossos próprios pensamentos e sentimentos:
“Estou animado com o novo semestre.”
“Eu não estou ansioso para preencher meus formulários de imposto.”
c. Fatos do senso comum acerca do mundo:
“A França é um país da Europa.”
“Muitas árvores deixam cair suas folhas no outono.”
d. Fatos científicos:
“Fumar cigarros causa câncer de pulmão.”
“A terra gira em torno do sol.”
e. Estados mentais dos outros:
“Meu vizinho quer que sua casa seja pintada.”
“Aquela pessoa ali que está rindo muito achou a piada que ela recém ouviu engraçada.”
f. O passado:
“George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos.”
“O presidente Kennedy foi assassinado.”
g. Matemática:
“2 + 2 = 4”
“5 . 3 = 15”
h. Verdades conceituais:
“Todos os solteiros são não-casados.”
“Vermelho é uma cor.”
i. Moralidade:
“A tortura gratuita de crianças é errada.”
“Não há nada de errado em tirar uma folga do trabalho de vez em quando.”
j. O futuro:
“O sol nascerá amanhã.”
“Os Chicago Cubs não ganharão a World Series no próximo ano.”1
k. Religião:
“Deus existe.”
“Deus me ama.”

Existem, naturalmente, muitas coisas destas categorias que nós não conhecemos. Alguns fatos
acerca do passado distante estão irrecuperavelmente perdidos. Alguns fatos acerca do futuro estão, ao menos
por enquanto, além de nós. Algumas das áreas de conhecimento da lista são controversas. Você pode ter
dúvidas acerca de nosso conhecimento nas áreas da moralidade e da religião. Ainda assim, a lista proporciona
uma exemplificação adequada dos tipos de coisas que nós tipicamente alegamos conhecer.
Assim, a primeira tese da Perspectiva Standard é

PS1. Nós conhecemos uma grande variedade de coisas das categorias (a) – (k).

B. Fontes de Conhecimento
Se (PS1) está correta, então existem algumas maneira pelas quais nós chegamos a conhecer as coisas
1 Os fãs dos Cubs podem não gostar deste exemplo. Mas aqueles que acompanham beisebol sabem que, não
importa o que aconteça, os Cubs nunca vencem. Nem o Boston Red Sox.
que ela diz que conhecemos; existem algumas fontes para o nosso conhecimento. Por exemplo, se nós
conhecemos alguma coisa acerca do nosso meio-ambiente imediato, então a percepção e a sensação jogam um
papel central na aquisição desse conhecimento. A memória obviamente é crucial para o nosso conhecimento
do passado e também para certos aspectos do nosso conhecimento de fatos correntes. Por exemplo, meu
conhecimento de que a árvore que vejo através de minha janela é um bordo depende de minha percepção da
árvore e de minha lembrança de como os bordos se parecem. Outra fonte de boa parte de nosso conhecimento
é o testemunho das outras pessoas. O testemunho não se restringe aqui às declarações feitas por testemunhas
sob juramento. Ele é muito mais amplo do que isso. Ele inclui o que as outras pessoas dizem a você,
incluindo o que eles dizem a você na televisão ou em livros e jornais.
Três outras fontes de conhecimento merecem também uma breve menção aqui. Se a percepção é a
nossa consciência das coisas externas através da visão, da audição e dos outros sentido, então a percepção não
dá conta do nosso conhecimento de nossos próprios estados internos. Você pode agora saber que se sente
sonolento, ou que está agora pensando acerca do que irá fazer no final de semana. Mas isso não ocorre por
meio da percepção no sentido recém estabelecido. Ocorre, antes, por meio da introspecção. Assim, está é
outra potencial fonte de conhecimento.
Além disso, algumas vezes nós conhecemos coisas por raciocínio ou inferência. Quando nós
conhecemos alguns fatos e vemos que aqueles fatos sustentam algum outro fato, nós chegamos a conhecer
esse outro fato. O conhecimento científico, por exemplo, parece surgir de inferências a partir de dados
observacionais.
Finalmente, parece que conhecemos algumas coisas simplesmente porque nós podemos “ver” que
elas são verdadeiras. Isto é, nós temos a habilidade de pensar acerca das coisas e de discernir algumas
verdades simples. Embora isso seja matéria de alguma controvérsia, nosso conhecimento de aritmética
elementar, de lógica simples e de verdades conceituais parece cair nessa categoria. Por falta de um termo
melhor, nós iremos dizer que conhecemos essas coisas por meio de insight racional.
Nossa lista das fontes de conhecimento, então, se parece com isto:

a. Percepção
b. Memória
c. Testemunho
d. Introspecção
e. Raciocínio
f. Insight racional

Sem dúvida, em muitos casos nosso conhecimento depende de alguma combinação dessas fontes.
A Perspectiva Standard sustenta que nós podemos ganhar conhecimento dessas fontes. Ela não diz
que essas fontes são perfeitas. Sem dúvida, elas não são. Algumas vezes nossas lembranças estão
equivocadas. Algumas vezes nossos sentidos nos enganam. Algumas vezes nós raciocinamos mal. Ainda
assim, de acordo com a Perspectiva Standard, nós podemos obter conhecimento usando essas fontes.
Se a lista de fontes de conhecimento deveria ser expandida é matéria de alguma controvérsia. Talvez
algumas pessoas acrescentassem insight religioso ou místico à lista. Talvez outras pensassem que existissem
formas de percepção extra-sensorial que devêssemos acrescentar. Entretanto, estas são questões sobre as quais
há maior desacordo. Acrescentá-las à lista, assim, pode fazer a lista parecer menos com alguma coisa que
mereça o nome de “Perspectiva Standard”. Assim, nós não as acrescentaremos aqui. Outros podem querer
acrescentar a ciência à lista das fontes de conhecimento. Embora possa não ser objetável fazê-lo, a ciência é
provavelmente melhor vista como uma combinação de percepção, memória, testemunho e raciocínio. Assim,
pode não ser necessário acrescentá-la à lista.
Assim, a segunda tese da Perspectiva Standard é

PS2. Nosso fontes de conhecimento primárias são (a) – (f).

A Perspectiva Standard, então, é a conjunção de (PS1) e de (PS2).

II. DESENVOLVENDO A PERSPECTIVA Standard

Numerosas questões surgem quando refletimos acerca da Perspectiva Standard. Essas questões
constituem o objeto primeiro da epistemologia. Esta seção identifica algumas dessas questões.
Se alguns casos caem na categoria de conhecimento e outros são dela excluída, então deve haver
alguma coisa que diferencie esses dois grupos de coisas. O que é que distingue o conhecimento da falta de
conhecimento? O que é preciso para conhecer alguma coisa? Isto leva à primeira questão:

Q1. Sob que condições uma pessoa sabe que alguma coisa é verdadeira?

Pode-se pensar que é uma questão de quão segura uma pessoa se sente sobre alguma coisa ou de se
existe um acordo geral sobre o assunto. Como veremos, estas não são boas respostas para (Q1). Alguma
coisa mais distingue o conhecimento de seu oposto. (Q1), afinal de contas, é surpreendentemente difícil,
controversa e interessante. Produzir uma resposta para ela envolve pensar em algumas questões difíceis. Esse
será o foco dos capítulos 2 e 3.
De acordo com muitos filósofos, uma condição importante para o conhecimento é a crença racional
ou justificada. Conhecer alguma coisa requer algo como ter uma boa razão para crer nela, ou chegar a crer nela
da maneira correta, ou alguma coisa do tipo. Você não conhece uma coisa se está apenas adivinhando, por
exemplo. Isto nos leva a uma segunda questão, uma que tem sido central para a epistemologia por muitos
anos:

Q2. Sob que condições uma crença é justificada (ou razoável ou racional)?

E isto nos levará a questões adicionais acerca das fontes de conhecimento alegadas. Como essas
faculdades nos tornam aptos a satisfazer as condições para o conhecimento? Como elas podem produzir a
justificação epistêmica? Esse será o foco dos capítulos 4 e 5, bem como de partes dos capítulos 7-9.
Nossas crenças obviamente jogam um papel central na determinação de nosso comportamento. Você
irá se comportar de maneira muito diferente em relação ao seu vizinho se acreditar que ele seja um amigo
confiável ao invés de um inimigo desonesto. Dada a habilidades das crenças de afetar o nosso
comportamento, parece claro que as suas crenças podem afetar a sua vida e a vida dos demais. Dependendo da
sua carreira e da extensão na qual os outros dependem de você, você pode ter a obrigação de conhecer certas
coisas. Por exemplo, um médico deve conhecer os últimos desenvolvimentos em sua especialidade. Algumas
vezes, entretanto, o conhecimento pode ser uma coisa ruim, como quando alguém fica sabendo da
deslealdade de um aparente amigo. Estas considerações sugerem que questões práticas e morais interagem
com questões epistemológicas de maneiras que merecem exame. Assim,

Q3. De que maneiras, se alguma há, as questões epistemológicas, práticas e morais afetam umas às
outras?
Trataremos dessa questão no capítulo 4.

III. DESAFIOS Á PERSPECTIVA Standard

A cuidadosa reflexão filosófica sobre as questões até agora listadas, a ser desenvolvida nos capítulos
2-5, resultará na exposição detalhada daquilo a que conduz a Perspectiva Standard. Entretanto, como se
evidenciará ao prosseguirmos, há razões para perguntarmos se essa perspectiva do senso comum é realmente
correta. Nós daremos a essas razões e às visões alternativas sobre o conhecimento e a racionalidade associadas
com elas a devida atenção nos capítulos 6-9. As idéias centrais por detrás dessas dúvidas são as bases para as
questões restantes acerca da Perspectiva Standard.

A. A Perspectiva Cética
Os advogados da Perspectiva Standard sustentam que nós conhecemos muito menos do que a
Perspectiva Standard diz que nós conhecemos. O ceticismo constitui um tradicional e poderoso desafio
filosófico à Perspectiva Standard. Os céticos pensam que a Perspectiva Standard é demasiado caridosa e
auto-indulgente. Eles pensam que a nossa asserção confiante de que conhecemos muitas coisas resulta de uma
autoconfiança presunçosa que é inteiramente injustificada. Como nós veremos, alguns argumentos céticos
repousam sobre possibilidades aparentemente bizarras: talvez você esteja apenas sonhando que vê e ouve as
coisas que você está vendo e ouvindo; talvez a sua vida seja algum tipo de realidade artificial gerada por
computador. Outros argumentos céticos não repousam sobre hipóteses estranhas como essas. Mas todas elas
desafiam as nossas confortáveis visões do senso comum. Estas considerações conduzem a um novo conjunto
de questões epistemológicas:

Q4. Nós realmente temos algum conhecimento? Há alguma boa resposta aos argumentos dos
céticos?

(Q4) questiona se, com efeito, as condições formuladas em resposta a (Q1) são de fato satisfeitas.
Os advogados da Perspectiva Cética sustentam que a resposta para cada uma das questões de (Q4) é “Não.”
Eles estão inclinados a negar tanto (SV1) quanto (SV2).

B. A Perspectiva Naturalista

A metodologia tradicionalmente utilizada pelos epistemólogos é primariamente a análise conceitual


ou filosófica: pensar rigorosamente acerca de como são o conhecimento e a racionalidade, freqüentemente
utilizando exemplos hipotéticos para ilustrar as questões. Entretanto, pode-se perguntar se não faríamos
melhor estudando alguma dessas questões cientificamente. Muitos filósofos recentes têm dito que faríamos.
Chamaremos a essa perspectiva de Perspectiva Naturalista porque ela enfatiza o papel da ciência natural (ou
empírica ou experimental). Assim, uma maneira pela qual a Perspectiva Naturalista desafia a Perspectiva
Standard tem a ver com a metodologia utilizada para sustentar as teses (SV1) e (SV2) da Perspectiva
Standard.
A Perspectiva Naturalista conduz a um segundo tipo de desafio à Perspectiva Standard. Há um
corpo de pesquisa acerca das maneiras pelas quais as pessoas pensam e raciocinam que é perturbador. Ele
mostra, ou ao menos parece mostrar, erros e confusões sistemáticos e generalizados na maneira como nós
pensamos e raciocinamos. Quando confrontadas com os resultados dessas pesquisa, algumas pessoas se
perguntam se algo como a Perspectiva Standard pode estar correta.
Estas considerações conduzem ao nosso próximo conjunto de questões:

Q5. De que maneiras, se alguma há, os resultados em ciência natural, especialmente na psicologia
cognitiva, influenciam nas questões epistemológicas? Os recentes resultados empíricos solapam a Perspectiva
Standard?

C. A Perspectiva Relativista
Outro desafio à Perspectiva Standard emerge de considerações de relativismo e diversidade
cognitiva. Para ver as questões envolvidas aqui, note que as crenças das pessoas e suas políticas de formação
de crenças diferem amplamente. Por exemplo, algumas pessoas estão dispostas a crer na base de pouca
evidência. Algumas parecem demandar muita evidência. As pessoas diferem também em suas atitudes em
relação à ciência. Algumas pessoas crêem fortemente no poder da ciência. Elas pensam que os métodos da
ciência proporcionam a única maneira razoável de aprender acerca do mundo que nos cerca. Elas ás vezes
consideram aos demais como irracionais por crer em coisas tais como astrologia, reencarnação, PES, e outros
fenômenos ocultos. Defensores destas crenças ás vezes acusam seus críticos de fé cega e irracional na ciência.
As pessoas também diferem amplamente sobre questões políticas, morais e religiosas. Pessoas aparentemente
inteligentes podem se encontrar em sério desacordo umas com as outras sobre essas questões. Não há dúvida,
então, de que as pessoas discordam, com freqüência veementemente, acerca de um grande número de coisas.
O fato de que haja todo esse desacordo leva algumas pessoas a perguntar se em cada caso (ao menos)
uma das partes da disputa deva estar sendo desarrazoada. Um pensamento confortador para muitos é o de que
há lugar para um desacordo razoável, ao menos sobre certos tópicos. Isto é, duas pessoas podem ter diferentes
pontos de vista e ainda assim serem razoáveis ao manter suas próprias perspectivas. Defensores da
Perspectiva Relativista estão inclinados a conceder espaço para muito desacordo razoável, enquanto que os
defensores da Perspectiva Standard parecem estar mais inclinados a pensar que uma das partes (ao menos)
deve estar errada em toda disputa.
Estas considerações sobre a diversidade cognitiva e a possibilidade de desacordos razoáveis
provocam as seguintes questões que têm a ver com o relativismo epistemológico:

Q6. Quais são as implicações epistemológicas da diversidade cognitiva? Existem standards


universais de racionalidade, aplicáveis a todas as pessoas (ou a todos os pensadores) todas as vezes? Sob que
circunstâncias as pessoas racionais podem discordar entre si?

As questões levantadas de (Q1) até (Q6) estão entre os problemas centrais da epistemologia. Os
capítulos que seguem tratam delas.

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