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O Desenvolvimento em Questão
Biard
Rio de Janeiro
2006
1
PAULO CESAR SCARIM
O Desenvolvimento em Questão
Niterói
2006
2
3
AGRADECIMENTOS E DEDICATÓRIA
Sem a ajuda de diversas pessoas este trabalho não teria sido concluído.
À minha família
À banca examinadora Prof. Dr. Carlos Walter Porto-Gonçalves, Prof. Dr. Ruy
Moreira – UFF, Prof. Dr. Jacob Binsztok – UFF, Prof. Dr. Marcos Antonio
Campos Couto - UERJ e Prof. Dr. Paulo Roberto Raposo Alentejano - UERJ
4
LISTA DE ABREVIAÇÕES
Cv - Cavalos
ha – Hectare
GT – Grupo de Trabalho
Km² - Quilômetro quadrado
m³ - Metro quadrado
ton – Tonelada
uni – Unidade
5
LISTA DE MAPAS
6
LISTA DE SIGLAS
7
DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a Seca
ECO 92 – Conferências das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
ECOTEC – Economia e Engenharia Industrial S.A.
EFAs – Escolas Famílias Agrícolas
EIA - RIMA – Estudo de Impacto Ambiental - Relatório de Estudo de Impacto Ambiental
ES – Espírito Santo
ESCELSA - Espírito Santo Centrais Elétricas S.A.
F.A.O. – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura
FASE – Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional
FETAES – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Espírito Santo
FINDES - Federação das Indústrias do Espírito Santo
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNDAP - Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias
FUNRES - Fundo de Recuperação Econômica do Espírito Santo
GERCA - Grupo Executivo de Recuperação Econômica da Cafeicultura
GERES – Grupo Executivo para a Recuperação Econômica do Espírito Santo
IBC - Instituto Brasileiro do Café
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
IDAF – Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal
IFOCS – Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca
INCRA – Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária
INED - Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Social e Econômico
LSPA/IBGE Levantamento Sistemático da Produção Agrícola
MEPES – Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo
MG – Minas Gerais
MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONG – Organização Não Governamental
PEDEAG – Plano de Desenvolvimento da Agricultura
PM – Polícia Militar
PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
8
PT – Partido dos Trabalhadores
RACEFFAES – Regional das Associações dos Centros Familiares de Formação em
Alternância do espírito Santo
SINDIEX – Sindicato do Comércio de Exportação e Importação do Estado do Espírito Santo
SPLAN – Secretaria de Planejamento
SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia
SSR - Serviço Social Rural
SUDAM – Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia
SUDECO – Superintendência para o Desenvolvimento do Centro Oeste
SUDENE – Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste
SUDESUL – Superintendência para o Desenvolvimento do Sul
SUPRA - Superintendência da Reforma Agrária
STRs – Sindicatos dos Trabalhadores Rurais
SUPPIN - Superintendência de Polarização de Projetos Industriais
UDR – União Democrática Ruralista
9
LISTA DE TABELAS
10
Tabela 21 - Área e estabelecimentos por grupo de área - 1970 e 1980 – Espírito Santo.... 158
Tabela 22 - Mão de obra familiar e assalariada - 1970 e 1980 - Espírito Santo ................ 159
Tabela 23 - População Rural e Urbana - 1970 e 1980......................................................... 159
Tabela 24 - Principais núcleos populacionais - 1940 - 1991 - Espírito Santo..................... 160
Tabela 25 - População Urbana e Rural - 1950 - 2000 - Espírito Santo............................... 160
Tabela 26 - Famílias com domicílio na zona rural - 1950 - 1991....................................... 161
Tabela 27 - Número de Propriedade e área - 1920 - 1995/6 - Espírito Santo .................... 162
Tabela 28 - Número de Estabelecimentos e Área - 1995/96 - Espírito Santo..................... 163
Tabela 29 - Número de árvores de Eucalipto por classe de área - 1995/96 - Espírito
Santo................................................................................................................. 164
Tabela 30 - Área plantada de monocultura de árvores - 1995 - 2000 - Espírito Santo....... 166
Tabela 31 - Uso de Adubos Químicos - 1996/96 - Espírito Santo...................................... 169
Tabela 32 - Área das principais atividades agropecuárias - 1960, 1976 e 1995/6 -
Espírito Santo................................................................................................... 170
Tabela 33 - Distribuição Geográfica de Indicadores de infra-estrutura - 1995/96 -
Espírito Santo................................................................................................... 172
Tabela 1 - Distribuição Geográfica da Produção - 1995/96 - Regiões - Espírito Santo.... 172
Tabela 2 - Área por atividade e pessoal residente e ocupado - 1995/96 - Espírito Santo. 174
Tabela 36 - Percentual da área e do Valor de produção - 1995/96 - Espírito Santo........... 175
Tabela 37 - Despesas e Receitas - 1995/96 – Espírito Santo.............................................. 177
11
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................ 13
ABSTRACT........................................................................................................................ 14
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 17
1.1 A LÓGICA COLONIAL, DESDE 1492, UM ENCONTRO MAL RESOLVIDO......... 20
1.2 A LÓGICA MODERNA COLONIAL, AS POLÍTICAS DOS CORPOS E DAS
TERRAS........................................................................................................................... 22
1.3 A LÓGICA DESENVOLVIMENTISTA MODERNA COLONIAL, A
RACIONALIDADE DO VAZIO E DO ATRASO.......................................................... 24
1.4 A LÓGICA GLOBAL DESENVOLVIMENTISTA MODERNO COLONIAL, NOVAS
REDES E ESCALAS DOS DOMÍNIOS E DAS EMANCIPAÇÕES............................. 24
2 DESCONSTRUINDO A IDEOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO........................... 28
2.1 A VERSÃO SOBRE A HISTÓRIA.................................................................................. 35
2.2 A CONCEPÇÃO SOBRE O REAL.................................................................................. 39
2.3 A VISÃO DE FUTURO.................................................................................................... 53
3 DESCONSTRUINDO AS TESES DO DESENVOLVIMENTO.................................... 69
3.1 SOBRE O VAZIO DEMOGRÁFICO............................................................................... 69
3.2 SOBRE O ATRASO........................................................................................................ 98
3.3 SOBRE O RACIONAL....................................................................................................107
4 CONFLITOS, DIVERSIDADES E POSSIBILIDADES................................................130
4.1 NOVAS DIRETRIZES, PLANOS E DISCURSOS PÓS- INSTITUCIONALIZAÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO..................................................................................................131
4.2 TRANSFORMAÇÕES NO ESPAÇO AGRÁRIO CAPIXABA APÓS A
INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO............................................150
4.3 DEMOCRACIA E NOVAS MEDIAÇÕES ENTRE CAPITAL, ESTADO E
SOCIEDADE...................................................................................................................185
5 CAMPESINATO: LUTA E RESISTÊNCIAS................................................................199
6 REFERÊNCIAS.................................................................................................................216
12
RESUMO
Várias versões locais do desenvolvimento foram criadas, a do Espírito Santo foi uma
delas. Buscamos neste trabalho demonstrar, por meio do exame das formas, a partir das quais
se instalou o desenvolvimentismo, os limites existentes para este projeto, enfocando as ações
coletivas dos movimentos sociais, representando a alteridade, possibilitando, assim, enxergar
a insurreição discursiva.
Em um primeiro momento cabe desnudar a economia do desenvolvimento – seu
elemento mais influente – e o papel dos modeladores que, por meio de um conjunto de
técnicas racionais (planejamento, medição, valoração, conhecimentos profissionais e práticas
institucionais), organiza a produção das formas de conhecimento e dos tipos de poder.
Partiremos, portanto, da forma local do desenvolvimento, seus atores e seus discursos.
A percepção do atraso produz também uma leitura interna ao solo capixaba de seu
presente e de seu passado, como também das possibilidades futuras. Quanto ao passado, o
atraso transparece como isolamento colonial, ocupação predominantemente litorânea e
reconhecimento das barreiras naturais e institucionais à dominação do solo. O modelo
agroexportador baseado em ciclos de monoculturas passa a ser visto como forma-conteúdo do
atraso.
A palavra-chave deste discurso foi crise do café. O comércio do café, principal
produto exportador, era controlado por grandes mercadores sediados, principalmente, no Rio
de Janeiro. Com o aumento da produção e a queda do preço, na década de 1950, as condições
para a realização do capital estavam se estreitando. As unidades agrícolas capixabas,
principalmente as produtoras de café, eram em sua maioria familiares, com pouco trabalho
assalariado e pouco consumo, porque autosuficientes, e foram identificadas como a causa do
atraso.
A busca, neste trabalho, da compreensão das territorialidades na formação do espaço
agrário capixaba revelou um complexo de conflitos demarcados temporalmente por um
acúmulo desigual, no território, das experiências de resistências às tentativas de
desterritorialização.
Este processo de acúmulo, por sua vez, foi se configurando por rupturas nas formas
e dinâmicas territoriais definindo padrões diferenciados de conflitividade que nos permitiram
periodizar este processo em quatro lógicas diferenciadas: a colonial, a moderna colonial, a
desenvolvimentista moderna colonial e a global desenvolvimentista moderna colonial.
13
ABSTRACT
Several local versions of the development were created, the Espírito Santo was one of
them. We seek in this paper demonstrate, througth examinations of forms, from which IF you
installed developmentalism, the existing limits for this Project, focusing os the collective
actions of social movements, representing the therness, enabling thuss see the discursive
insurrection.
In a first moment fits the strip development economics – your most influential element
– and the role of modelers who, througha set of rational techniques (pplanning, measurement,
valuation, professional knowledge and institutional practices), organizes the production of the
forms of know ledge and power types. We leave, the refore, the local formo f development, its
actors and the irspeeches.
The perceptions of delay also produces a reading of your internal state soil of your past
and present as well as future possibilities. As in the past, the delay shows how colonial
isolation, predominantly coastal occupation andrecognition of natual end institutional barriers
to the domination of the soil. The agroexportador model based on monocultures cycles
becomer seen as form contents of the delay.
The keyword of this speech was the coffee crisis. The coffee trade, main product
exporter, was controlled by large merchants hosted mainly in Rio de Janeiro. With the
increase in production and the fall in the price of 1950, the conditions for the realization of the
capital were narrowing. The state´s agricultural units, especially those producing coffee, were
in your most familiar with little wage labor and little consumption, because self-sufficient,
and have been identified as the cause of the delay.
The search, in this work, the understanding of the formation of the agricultural space
tettitorialities capixaba revealed a complexo of conflicts marked temporarily by na uneven
buildup in the territory of the experiences of resistance to attempts of deterritorialization.
This process of accumulation, in turn, was configured by ruptures in the forms and
territorial dynamics defining differentiated patterns of conflict that allowed us to periodize
this process in four different logics: The colonial, the modern colonial, the modern colonial
developmentalist and the global modern colonial developmentalist.
14
Palavras Chaves:
Keys Words:
Agrarian Geography, Development, Espírito Santo, Conflicts in the land, Social
Movements, Agrarian Space, Territory, Ideology and regional Economy
Contato:
pauloscarim@hotmail.com
15
Biard
16
1- INTRODUÇÃO
1
Para Escobar são palavras tóxicas. O autor cita o dicionário sobre o desenvolvimento do qual participaram Ivan
Illich, Bárbara Duben, Ashis Nandy, Vandana Shiva, Majid Rahnema, Gustavo Esteva, Arturo Escobar,
Wolfgang Sachs, entre outros. SACHS, Wolfgang. The Develoment Dictionary. Londres, Zed Books, 1992.
18
se instalou o desenvolvimentismo, os limites existentes para este projeto, enfocando as ações
coletivas dos movimentos sociais, representando a alteridade, possibilitando, assim, enxergar
a insurreição discursiva.
Em um primeiro momento cabe desnudar a economia do desenvolvimento – seu
elemento mais influente – e o papel dos modeladores que, por meio de um conjunto de
técnicas racionais (planejamento, medição, valoração, conhecimentos profissionais e práticas
institucionais), organiza a produção das formas de conhecimento e dos tipos de poder.
Partiremos, portanto, da forma local do desenvolvimento, seus atores e seus discursos.
Na análise econômica recorrente no período desenvolvimentista - focada nos
elementos do movimento do capital - o Espírito Santo aparece como região periférica ou de
desenvolvimento industrial incompleto. Recuperados os impactos da Segunda Guerra
Mundial, uma nova divisão mundial do trabalho passa a ser delineada na conjuntura
geopolítica da Guerra Fria. A concentração do capital, a formação de grandes conglomerados
econômicos e a ampliação da escala de produção e consumo são marcas importantes deste
período. Existem muitas outras.
Estas transformações das economias dos países desenvolvidos passam a exigir esforços
modernizadores das economias subdesenvolvidas, no sentido de aliar o aparato estatal ao
capital internacional e nacional. A criação da Cepal em 1948, do BNDE em 1952 e da
SUDENE em 1959 foram elementos da institucionalização do desenvolvimento na América
Latina e no Brasil.
No Brasil estas transformações provocaram a internalização das dinâmicas
internacionais e a internacionalização do capital, o que provocou reassentamentos políticos
entre as forças dominantes tradicionais e os propulsores da industrialização-urbanização. A
centralização política, as mudanças nas leis e os planos de desenvolvimento são aspectos
cruciais nesta reorganização político-institucional.
A concepção hierárquica e classificatória da visão de mundo centrada no modelo
ocidental-moderno produziu a hierarquização regional, tendo como pano de fundo dois brasis,
o moderno e o arcaico. A internalização da visão cepalina e o Plano de Metas (1950-1955)
são saídas apresentadas ao suposto atraso das regiões periféricas. Impõem, para tanto, a
aplicação de investimentos em infraestrutura de energia e transporte, a integração dependente
entre centro e periferia e a substituição das importações. A inserção das regiões periféricas se
dará, dentro desta divisão espacial do trabalho e da lógica do capital, como área
complementar e de possibilidades limitadas. O Espírito Santo, mesmo fazendo parte da região
19
Sudeste, região moderna-industrial, portanto, não apresentando os níveis de industrialização
característicos das regiões centrais foi localizado na periferia desta região, o “Nordeste do
Sudeste”, como normalmente passa a ser caracterizado a partir deste contexto de criação das
grandes regiões brasileiras (a partir da década de 1940) e do desenvolvimentismo brasileiro (a
partir da década de 1950).
Esta percepção do atraso produz também uma leitura interna ao solo capixaba de seu
presente e de seu passado, como também das possibilidades futuras. Quanto ao passado, o
atraso transparece como isolamento colonial, ocupação predominantemente litorânea e
reconhecimento das barreiras naturais e institucionais à dominação do solo. O modelo
agroexportador baseado em ciclos de monoculturas passa a ser visto como forma-conteúdo do
atraso.
A palavra-chave deste discurso foi crise do café. O comércio do café, principal
produto exportador, era controlado por grandes mercadores sediados, principalmente, no Rio
de Janeiro. Com o aumento da produção e a queda do preço, na década de 1950, as condições
para a realização do capital estavam se estreitando. As unidades agrícolas capixabas,
principalmente as produtoras de café, eram em sua maioria familiares, com pouco trabalho
assalariado e pouco consumo, porque autosuficientes, e foram identificadas como a causa do
atraso.
A busca, neste trabalho, da compreensão das territorialidades na formação do espaço
agrário capixaba revelou um complexo de conflitos demarcados temporalmente por um
acúmulo desigual, no território, das experiências de resistências às tentativas de
desterritorialização.
Este processo de acúmulo, por sua vez, foi se configurando por rupturas nas formas
e dinâmicas territoriais definindo padrões diferenciados de conflitividade que nos permitiram
periodizar este processo em quatro lógicas diferenciadas: a colonial, a moderna colonial, a
desenvolvimentista moderna colonial e a global desenvolvimentista moderna colonial.
20
1.1 A LÓGICA COLONIAL, DESDE 1492, UM ENCONTRO MAL RESOLVIDO
21
Tal lógica de ocupação do território teve, portanto, nestes conflitos, seu maior
elemento explicativo, principalmente quanto ao caráter militar das ações contra os índios que
habitavam a região.
Assim, neste período colonial onde o habitar passa a ser tratado no sentido do
domínio, a presença do outro passou a ser percebida na forma dos conflitos e dos limites. Os
paradoxos se avolumam neste processo, pois mesmo considerando os matos sem dono e a
colonização representando a abundância, os colonos disputavam os terrenos da praia.
Desta forma a presença do corpo (dos gentios) representando o habitar também
representava o domínio. Entendemos, assim, que, no século XIX quando foram declaradas
guerras de extermínio aos índios, entre os principais estão os Botocudos e os Pataxós ou
quando se estabelecem os aldeamentos, estavam buscando a invisibilidade territorial indígena.
A invisibilidade, associada à inevitabilidade do desaparecimento dos índios, era o
sentido desta política que promovia o cercamento (e o cerco) aos territórios tradicionais
indígenas por vários lados, visando desabitar o território.
22
A Imigração foi uma decisão política territorialmente estratégica cujo objetivo
primordial, no Espírito Santo, foi a colonização e o povoamento do grande vazio demográfico
que era o seu território no século XIX. Este processo foi o marco espacial do território
capixaba, ou seja, da sua ocupação territorial. Os eixos de penetração do movimento
imigratório foram marcando o território e formando núcleos, enfrentando a resistência
indígena. A imigração atingiu, assim, a zona do contestado entre ES e MG no início do século
XX.
O aumento do número de habitantes não índios modifica a lógica da disputa do
território. A participação do governo, pagando os custos dos imigrantes e disponibilizando
terras, produzindo as cidades e abrindo caminhos buscam o domínio das riquezas.
Conjuntamente com o aumento do preço das terras, do preço do café e o abandono
dos velhos cafezais, a aparente passividade dos fazendeiros frente à imigração e à abolição
indicam a gênese de interesses políticos e econômicos na província para além dos interesses
da grande propriedade, evidenciando interesses dominantes nas estratégias empresariais
dirigidas pelo comércio, pois, paradoxalmente, os produtores não controlavam a produção.
Este paradoxo que mostra a ocupação no interior do Espírito Santo, que configura uma forma
predominante de produção em pequena propriedade com trabalho familiar, explicita, ao
mesmo tempo, um outro tipo de classe, a dos setores do comércio cafeeiro. Assim, o processo
moderno colonial se funda por um especulativo esquema de comercialização.
Mas, ao fim do império, 85% da área do estado do Espírito Santo eram cobertas de
matas predominantemente ocupadas por comunidades indígenas, camponesas, caboclas,
pescadoras e quilombolas que tiravam seu sustento do uso extrativista do meio natural.
O aumento da área das propriedades e o aumento populacional foram contemporâneos
da violência contra colonos, da disputa pelo registro das terras, pela cobrança de impostos e
pelas ameaças de morte aos agrimensores e recenseadores, que são expressões dos inúmeros
conflitos envolvendo a questão da posse e da propriedade das terras. Os litígios territoriais se
misturam com conflitos pela posse das terras e neste contexto a categoria de posseiro emerge
como síntese e ocultamento da diversidade dos desterritorializados.
A presença de missionários, ao longo do século XX, fundando aldeamentos indica que
a questão central desta ocupação era a presença dos indígenas que recuando do litoral vão
percebendo o avanço gradativo de lavradores, lenhadores, madeireiros, caçadores, grileiros e
posseiros sobre as terras do alto das serras.
23
A transformação destas matas em terras disponíveis foi o elemento central das leis que
regulamentavam a ocupação de terras. Assim, as terras passam a receber denominações de
desconhecidas, devolutas, primitivas, isoladas, de ninguém, abandonadas, esquecidas,
desabitadas, vazias, ignoradas.
Nestas terras, estando fora de qualquer influência jurídica, os posseiros não tiveram
acesso aos procedimentos de legitimação das terras, ficando numa situação de fragilidade
diante da violência. Os conflitos pelos limites estaduais e os conflitos entre posseiros e
grileiros motiva a organização das ligas camponesas, dos militantes comunistas, conflitos
armados e proposta de criação de um estado autônomo.
Tudo isso num contexto agrícola, de expansão das áreas de propriedades particulares e
a expressiva presença das famílias de posseiros, parceiros, ocupantes, caboclos, negros e
pardos além dos migrantes e trabalhadores nacionais que demarcam o contexto rural do
território no qual, em meados do século XX, ainda existia uma grande área de florestas, mas
que produzia uma diversidade de produtos como o café, o feijão, o arroz, a cana-de-açúcar, a
banana, a mandioca além da criação de animais.
24
A crise do Estado e o neoliberalismo aprofundam as políticas de desterritorialização
camponesa num contexto de democracia, crescimento das organizações dos movimentos
populares urbanos, indígenas, ambientalistas, camponeses e quilombolas construindo novas
redes e articulações em múltiplas escalas fazendo explodir as territorialidades e as
visibilidades de sujeitos e singularidades que o processo desenvolvimentista moderno colonial
procurou silenciar e tornar invisíveis.
Menos que naturalizá-los e segmentá-los busca-se nas práticas baseadas-no-lugar,
aquilo que Escobar identifica como espaços de esperanças; isto, pelo fato da defesa dos
lugares estar vinculada às práticas de grupos que enfatizam quatro direitos fundamentais: sua
identidade, seu território, sua autonomia política e sua própria visão de desenvolvimento. Esta
ênfase nas práticas baseadas-no-lugar deriva de suas origens vinculadas cultural e
ecologicamente a um território, e este representa desta forma uma relação entre lugar, cultura
e natureza.
Mas não estaríamos sendo extremamente idealistas ao procurarmos estas práticas
numa região que há quinhentos anos vive sob o domínio colonial-moderno-
desenvolvimentista? Consideremos, pois, a objetividade do ato de ter a si próprio como
sujeito e como consciência, e ser capaz de construir referências que são relações de
significados. Assim, recuperar a objetividade é um ato contra o espaço sem significados, isto
é, contra o espaço reificado, o espaço alheio, dos outros.
O interessante é notar que tais concepções giram em torno da modernidade e de seu
processo de modernização. A modernidade, como argumenta representa um “paradigma” da
vida cotidiana, de compreensão da história, da ciência, da religião. Desenvolvida a partir do
final do século XV com o domínio do Atlântico, a modernidade se fortalece nos séculos
seguintes possuindo como lugares geo-históricos Portugal, Espanha, Holanda, França e
Inglaterra. Os outros lugares do Oriente aos continentes “descobertos” já entram com a “outra
cara” dominada, explorada e encoberta. Assim, a modernidade é justificação de uma práxis
irracional de violência.
A modernidade possui, desta forma, um núcleo racional forte e um conteúdo mítico,
“secundário e negativo”. É por isso que Edgardo Lander (2005) defende que a modernidade e
a organização colonial do mundo são dois processos que articuladamente conformam a
história posterior em uma grande narrativa universal, na articulação das diferenças culturais
em hierarquias cronológicas com a negação da simultaneidade e a construção do suposto
básico do caráter universal da experiência européia. Esta hierarquia estabelece uma ordem de
25
direitos universais para todos os seres humanos, como forma de negar o direito para a maioria
da humanidade, negando soberania e autonomia aos povos.
A modernidade, por esta análise, possuiria simultaneamente a dimensão do processo
que culminou na consolidação das relações de produção capitalistas e modo de vida liberal e a
dimensão colonial/imperial de conquista e/ou dominação de outros continentes e, ainda, uma
luta interna ao território europeu. A modernidade, no entanto, explicita também diversas
perspectivas de entendimento das populações nativas dos diversos territórios conquistados e
dos camponeses e trabalhadores europeus que viveram a expulsão da terra e do acesso aos
recursos naturais, a ruptura das formas anteriores de vida e de sustento e a imposição da
disciplina do trabalho fabril, portanto a subjugação de saberes, direitos e territórios de
“camponeses” do mundo todo. Portanto as concepções apresentadas possuem como substrato
as resistências ao modelo colonial-moderno-ocidental-liberal de organização da propriedade,
do trabalho e do tempo.
Milton Santos (1996) propõe uma leitura da modernidade como um processo
complexo de estruturação e desestruturação, articulação e negação, concentração e dispersão.
Enquanto ação, a modernização contempla diversas temporalidades do capital, do seu
processo reprodutivo, de seu papel estratégico e de sua face obscura e perversa. Contempla
seus resíduos transformadores, seus desencontros econômico, social e político e sua
fragmentação. Considera assim como as possibilidades, as insurgências e as resistências.
Temos que refletir que a ciência colonial-moderna-ocidental tende a mostrar muito
mais o olhar do colonizador e do capital do que o da diversidade, do que o olhar de quem
resiste. Assim temos dificuldades quando nos defrontamos com a emergência de outras
matrizes de racionalidade tecidas a partir de outros modos de agir, pensar e sentir que clamam
por se afirmar diante de um mundo que se acreditou superior porque baseado num
conhecimento científico universal (imperial) colonizador. Essa questão nos coloca o limite e a
crise da divisão do trabalho científico e a relação do conhecimento científico com outras
formas de conhecimento e seus portadores. Estes territórios epistêmicos reinventam-se
juntamente com os novos territórios de existência material, como novas formas de significar o
estar-no-mundo, de grafar a terra, de inventar novas territorialidades, enfim de geo-grafar.
(PORTO-GONÇALVES, 2006)
Desta forma, ao partirmos da constatação de que a modernidade possui seu núcleo
racional e que diversos conteúdos fogem a este núcleo, é possível percebe-la como um
processo complexo de estruturação e desestruturação. São as resistências que colocam a
26
complexidade e a polissemia dos conceitos. As resistências e a complexidade sobressaltam,
por outro lado, às temporalidades diversas das rugosidades.
Nesta perspectiva de construção de um relato que busque incorporar outros locus de
enunciação, cabe uma reflexão sobre a relação poder e saber, pois trata-se de encontro e de
conflitos e da capacidade para declarar o outro como descoberto. É a desigualdade de poder e
de saber que transforma a reciprocidade da descoberta na apropriação do descoberto. Toda a
descoberta tem, assim, algo de imperial, uma ação de controle e de submissão. Já dissemos,
citando Milton Santos (1996), que a descoberta imperial é constituída por duas dimensões:
uma empírica, o ato de descobrir e outra conceptual, a ideia do que se descobre, onde esta
precede a empírica. Assim, a ideia que se tem do que se descobre comanda o ato da
descoberta e o que se lhe segue, ou seja, a ideia da inferioridade do outro. A descoberta não se
limita a assentar nessa inferioridade, legitima-a e aprofunda-a.
Desta forma no primeiro momento da ruptura com o desenvolvimento, mais que
disputar as certezas do desenvolvimentismo, foi necessário suscitar as incertezas. Uma que foi
fundamental, deriva da possibilidade da existência de inúmeras territorialidades, o que coloca
em questão a capacidade de análise da concepção uniescalar sobre o território capixaba.
Nossa via
27
2- DESCONSTRUINDO A IDEOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
28
É neste contexto que a Federação das Indústrias do Espírito Santo – FINDES –
começa sua atuação, procurando influenciar nas políticas públicas no estado. E, também, o
debate sobre o desenvolvimento do estado ganha notoriedade pública.
As primeiras iniciativas da FINDES já demonstram as perspectivas de sua atuação no
momento em que cria um conselho técnico e realiza um levantamento geoeconômico do
estado. Do conselho técnico faziam parte, entre outros, Américo Buaiz, João Batista Motta e
Albuquerque, Eliezer Batista, Arthur Carlos Gerhardt Santos, Alberto Stange Jr. e Aloysio
Simões. Segundo Helder Gomes (1998), a criação do Conselho Técnico da Federação das
Indústrias vai transformar a FINDES em órgão auxiliar dos poderes públicos, no que tange
aos problemas industriais.
Contribuíram para esta efetivação a realização do “Seminário Pró Desenvolvimento
Econômico do Espírito Santo”, em 1960, com o apoio da Confederação Nacional da Indústria
(CNI) e com a sustentação política do governo estadual e, também, a realização de um estudo,
através de convênio entre o Estado e o Serviço Social Rural do qual derivam o documento
Desenvolvimento Municipal e Níveis de Vida e um “Plano de Ação”, visando o
desenvolvimento de projetos de infra-estrutura, de siderurgia, de diversificação agrícola, de
casas populares e de qualificação da força de trabalho industrial.
A criação da SUDENE, em 1959, influencia significativamente tais iniciativas, pois o
Espírito Santo, ao ser excluído destes projetos, passa a reivindicar políticas de atração de
investimentos e de isenção fiscal, levando o governo local a criar um Grupo de Trabalho –
GT, formado pelos representantes das indústrias e das finanças locais, prefeituras e governos
estadual e federal. A este GT coube a incumbência de elaborar estudos visando planos de
desenvolvimento para o estado. Diante da “crise” financeira que o estado atravessava com a
economia “presa” ao café, buscou-se influenciar os líderes locais para libertar o estado desta
“monocultura” a partir do fomento à industrialização. Através de subgrupos e de seminários
regionais, medidas foram elaboradas para incentivar a industrialização, amparar a agricultura
e institucionalizar o planejamento.
É possível perceber as mudanças nos discursos oficiais nos anos de 1960 e 1961,
fortalecendo a visão da promoção do desenvolvimento, visíveis nas articulações para a
mudança da sede da Companhia Vale do Rio Doce – CVRD – para Vitória (com Eliezer
Batista assumindo sua presidência) e com a construção do Porto de Tubarão em Vitória.
Assim, os discursos oficiais passam, cada vez mais, a ter uma perspectiva industrializante e de
crítica ao isolamento do estado.
29
No documento “A Economia Espírito Santense em Face do Problema do Café”,
apresentado em palestra pelo Governador Carlos Lindemberg, em 1961, são citadas
reportagens na imprensa do Rio de Janeiro, através da qual o governador tomara
conhecimento da possibilidade de proibição da exportação de café de tipos inferiores. Neste
documento o governador expressa, então, suas preocupações, pois 80% do café produzido no
estado eram de tipos inferiores. Mas ressalta que, apesar disso, esta produção sempre
encontrara mercado, exatamente pelo preço. Lembra também que o Espírito Santo não seria o
estado que mais ampliara a produção nos últimos 12 anos e que, apesar disso, contribuiria
com a retenção de valor igual aos demais estados produtores. Ainda neste documento,
Lindemberg argumentou que o setor primário, naquela época, era responsável por 65% da
renda territorial, das quais 60% deviam-se ao café que, somados à renda da mandioca, do
milho, do feijão e do cacau, totalizavam 90% deste valor da renda e ocupavam 89 % da área.
O café, segundo o governador, retinha 70 % da mão-de-obra do meio rural e era responsável
por 57,3% do total da exportação estadual e em torno de 90,6% da arrecadação. Assim, apesar
de sua baixa qualidade, encontrava fácil negociação e não havia estoques retidos. Lembra,
ainda, que o estado produzia somente 8,4% da produção do país, mas que, pela proposta do
governo federal 318.160 sacas de café ficariam retidas nas safras dos anos de 1961 e de 1962.
Em 1961, como um dos resultados destes esforços, foi criado o Conselho de
Desenvolvimento Econômico – CODEC, que funcionaria como orientador do governo. Mas
as medidas sugeridas pelo conselho, na época, não eram aprovadas pela Assembleia
Legislativa, constituída na sua maioria por representantes do setor agromercantil que aprova
apenas tímidas medidas de isenção fiscal.
Em 1962, o Grupo Executivo de Recuperação Econômica da Cafeicultura – GERCA 2
– elaborou um plano com o objetivo de reduzir a produção cafeeira. Os resultados não foram
tão expressivos como o esperado.
Francisco Lacerda de Aguiar volta ao governo do estado em 1963 e, com ele, a
agricultura volta a ser prioridade nos discursos governistas. Algumas medidas são conduzidas
neste sentido através do “Plano de Industrialização Rural”, do “Plano Educacional
Emergencial”, do estímulo ao processamento de produtos agrícolas tradicionais e ao
associativismo de pequenos empreendimentos rurais. Além disso, fortalece a “Associação de
2
O Grupo Executivo de Recuperação Econômica da Cefeicultura – Gerca, foi criado pelo governo federal em
1961.
30
Crédito e Assistência Técnica Rural do Espírito Santo” – ACARES 3 – e a assistência rural,
que acabaria assumindo o poder político antes conferido aos representantes da FINDES. A
criação da Secretaria de Planejamento reduz o poder de intervenção da FINDES.
Em 1964, a FINDES propõe a criação da “Comissão de Desenvolvimento do Meio
Leste” – COMLESTE – que serviria para atração de investimentos. Propõe também a
extensão da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste –SUDENE – para a área
ao norte do Rio Doce, ambas propostas negadas pelo governo federal.
A partir do Golpe Militar de 1964, institui-se a centralização do poder e das decisões,
o crescimento econômico com a política macroeconômica expansionista, e a promoção de
investimentos privados através de incentivos fiscais e de linhas de financiamento diretos com
taxas de juros subsidiadas.
Em 1965, devido a várias pressões locais e federais, o governador Francisco Lacerda
de Aguiar renuncia e em seu lugar assume o vice-governador Rubens Rangel, articulado aos
interesses das bases industrializantes. Neste governo interino, ganha força a Secretaria de
Planejamento e o CODEC. Este último passa a ser presidido por Arthur Carlos Gerhardt
Santos que, na época, era do quadro técnico da FINDES, após passar por seis meses de
estudos nos EUA.
A Reforma Tributária promovida pelo governo federal que se efetivou nos anos de
1966 e 1967, fortalece a centralização do poder, premiando a capacidade de articulação de
interesses regionais de cada unidade federativa junto ao poder central e, com a criação de
instituições e instrumentos locais de fomento, promove a corrida por recursos federais.
Christiano Dias Lopes Filho, que governou de 1967 a 1970 – primeiro governador
indicado pelo regime militar –, monta um quadro “técnico” a partir do Grupo de Trabalho
constituído no governo anterior por Arthur Carlos Gerhardt Santos, Lélio Rodrigues, Manuel
Martins, mais assessores de fora do estado. Ao mesmo tempo vive-se o momento de um
governo federal com centralização em Brasília e do recrudescimento do autoritarismo e da
violência.
A influência da FINDES aumenta com Christiano Dias Lopes Filho, o que é visível no
seu plano de governo que foi baseado no “Diagnóstico para o Planejamento Econômico do
Espírito Santo”, documento elaborado pela FINDES em 1966. É significativo dizer que este
pode ser entendido como um “governo da FINDES”. No entanto, o fato é que Christiano Dias
Lopes Filho foi o primeiro representante que não pertencia ao setor agrofundiário do Espírito
3
A Associação de Crédito e Assistência Rural do Espírito Santo, ACARES, foi criada em 1956 e viria a se
desdobrar na EMATER e na INCAPER.
31
Santo. Além disso, a Federação das Indústrias teve participação ativa neste governo e em
vários conselhos estratégicos tais como a SUPPIN - Superintendência de Polarização de
Projetos Industriais, a CODEC - Conselho de Desenvolvimento Econômico, entre outros, e
diversos quadros da FINDES ocupavam cargos nos escalões importantes da máquina
administrativa.
Em 1967 é realizada uma reforma administrativa visando maior intervenção do Estado
na economia, com discurso da racionalização e do desenvolvimento. A máxima veiculada era
a de que a industrialização seria o único meio possível para isso. Assim, as bandeiras da
Federação das Indústrias, como a conquista de incentivos fiscais, a da criação de um banco de
desenvolvimento e de um centro industrial, são assumidas pelo governo estadual.
O Diagnóstico para o Planejamento Econômico do Estado do Espírito Santo, de
1966, elaborado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Social e Econômico –
INED – e financiado pela FINDES, com a participação de José Artur Rios e João Paulo
Magalhães, serviu de base para o plano de metas e para o discurso de posse de Christiano
Dias Lopes Filho. O “diagnóstico” propõe o planejamento como instrumento através do qual
o Estado criaria mecanismos de indução do desenvolvimento criando um complexo industrial,
já que as atividades tradicionais, café, cacau e madeira, já não ofereciam perspectivas
animadoras, pois foram considerados esgotados seus potenciais produtivos. Deste trabalho,
32
local, derivando no desemprego de cerca de 240 mil pessoas, cuja maioria migrou para os
centros urbanos.
As indenizações financeiras (por cova liberada) foram pulverizadas entre os
agricultores e, por fim, foram direcionadas para os setores comercial e financeiro. Mas este
programa acabou possibilitando o estímulo e a liberação de mão de obra para as atividades
que, na época, demonstraram capacidade de crescimento para os anos subsequentes, tais como
a construção civil, a pecuária e o “setor florestal”.
Jones dos Santos Neves assume a direção da FINDES em 1968, permanecendo até
1977. Elabora um plano com 22 pontos dentre os quais constam a criação e atuação de
sindicatos empresariais; a articulação com a CVRD; maior articulação, ação e representação
nos órgãos governamentais e no planejamento estadual; criação de um centro industrial;
revisão da balança comercial; atração de investimentos.
Em 1968 com a realização do “Simpósio sobre os Problemas do Espírito Santo”, com
a presença do Presidente Costa e Silva, esta articulação da FINDES buscou a concessão de
incentivos fiscais, efetivada em 1969 com a transformação da CODES no Banco de
Desenvolvimento do Espírito Santo – o BANDES, com empréstimos via Banco Nacional de
Desenvolvimento – BND. Arthur Carlos Gerhardt Santos assumiu a presidência do banco até
ser nomeado governador. Em 1969, este sistema se fortalece com a criação do Fundo de
Recuperação Econômica do Espírito Santo – FUNRES, gerido pelo Grupo Executivo para a
Recuperação Econômica do Espírito Santo – GERES –, com captação de recursos das
renúncias de 33,3% do Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas residentes na região
capixaba em 1966.
A força da FINDES, neste contexto, pode ser atestada pela conquista de fornecimento
de energia com a criação da Espírito Santo Centrais Elétricas S.A. - ESCELSA; a criação do
Banco do Estado do Espírito Santo – BANESTES; a criação de mecanismos de incentivos
fiscais para projetos industriais e agropecuários; de benefícios fiscais para a compra de
máquinas e equipamentos; a criação do Centro Industrial de Vitória (CIVIT), em 1969; soma-
se também a criação, em 1971, da Superintendência de Polarização de Projetos Industriais
(SUPPIN) e da Coordenação de Planejamento Industrial (COPLAN), órgãos com participação
direta da Federação das Indústrias. Estes elementos demonstram a força da FINDES neste
contexto. A criação em 1969, do Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias
(FUNDAP), marca, também, este surto industrializante: obras de infraestrutura nas estradas,
33
construção de hidrelétricas, construção de usinas de pelotização e o apoio às políticas de
“reflorestamento”. 4
Em 1968, a federação das indústrias elabora o documento “O Espírito Santo como
Periferia de Dois Pólos”, no qual, a partir da análise da grave crise econômica do estado,
busca a extensão da SUDENE para a zona ao norte do Rio Doce, considerada uma zona
geoeconômica bem definida, num estado pobre entre vizinhos ricos que teria sofrido um golpe
devastador com a erradicação do café. Estas ações derivam no “Plano de Diversificação
Econômica e Desenvolvimento Agrícola do Espírito Santo (1968)”. Ao final do governo de
Christiano Dias Lopes Filho várias metas do plano da FINDES obtiveram êxito.
No governo de Arthur Carlos Gerhardt Santos (1971-1974), também sob a força da
ditadura militar, a FINDES buscou consolidar suas conquistas anteriores e abrir novos
espaços para a iniciativa privada com a criação do Fórum de Desenvolvimento Empresarial,
entre outras iniciativas; a mesma exerceu bastante influência na elaboração do I Plano
Estadual de Desenvolvimento, fortalecendo a busca de atração dos chamados “grandes
projetos”.
No governo de Élcio Álvares (1975 – 1978) foi forte a influência da Federação das
Indústrias na busca destes objetivos, ocupando com seus quadros vários postos importantes no
governo, tais como BANDES, Secretaria de Indústria e Comércio SUPPIN, entre outros.
Neste contexto a FINDES vislumbra uma maior participação do capital capixaba nas
oportunidades de desestatização das empresas públicas, visível no documento “Alguns
Aspectos Estatizantes da Economia Capixaba”, de 1975, coincidentemente ano em que o
governo estadual cria o “Grupo de Trabalho sobre a Desestatização”, que contou com a
participação efetiva da FINDES.
Em 1977 assume a direção da FINDES Oswaldo Vieira Marques (até 1983) já neste
contexto de busca de maior participação das empresas locais no processo de
“desenvolvimento”, 5 a partir do questionamento da maior participação do capital
internacional e da pouca participação dos ramos tradicionais da economia capixaba.
Esta postura se traduziu em questionamentos sobre a localização industrial da
Companhia Siderúrgica de Tubarão – CST, Samarco Mineradora e Aracruz Celulose, por
meio do discurso ambientalista e da exigência de uma política ambiental que fortalecesse os
4
Coloco este termo “reflorestamento” em suspenso devido à sua constante mudança semântica e sua atual
polêmica político-acadêmica em torno da “monocultura de árvores”.
5
No mesmo sentido do termo “reflorestamento”, por enquanto manteremos o “desenvolvimento” como um
termo em debate.
34
setores tradicionais (cana-de-açúcar, mineração, agroindústrias, construção civil, petróleo e
turismo) buscado assim, uma maior participação das pequenas e médias empresas, base de
sustentação da Federação das Indústrias, nos investimentos e incentivos fiscais.
Este é o momento vivido pelo último governo do período da ditadura, Eurico Rezende,
que governa de 1979 a 1982. Resulta desta postura a criação, por este governo, da Comissão
Estadual da Indústria da Construção – CEICO, e do Conselho de Desenvolvimento Industrial
e Comercial – CEDIC, e na participação direta de diversos quadros da federação das
indústrias.
Em 1962, o “Serviço Social Rural”, com apoio do Governo do Estado elabora o estudo
“Desenvolvimento Municipal e Níveis de Vida do Estado do Espírito Santo”. Este estudo,
além de dar bastante atenção ao agrícola e ao agrário, faz uma síntese histórica do ES, na
qual, sempre fazendo comparação com o Rio de Janeiro e o estado da Guanabara, reconhecem
que “até o século XIX, as encostas pertenciam aos índios”. (p.30) E é somente neste momento
que eles aparecem, pois desaparecem ao longo do texto, como também, aparentemente,
desaparecem do próprio território, pois “sua penetração se deve à imigração” (p.30) e da
construção do futuro, pois essa imigração foi o “primeiro e principal motivo de seu
desenvolvimento” (p. 30).
A tese do vazio vai se reforçando ao longo dos textos, pois passam a dar exclusividade
explicativa somente aos eventos que vêm de fora. Assim, segundo o documento, em meados
do século XIX dois grandes fluxos populacionais se encontram: um do litoral em direção ao
interior e outro de fluminenses e mineiros vindos do norte fluminense e zona da mata mineira.
Esses dois movimentos de penetração e desbravamento geraram, por sua vez, dois tipos
diferentes de estrutura social: a imigração estrangeira originou um povoamento baseado em
pequenas propriedades, nas quais plantava, ao lado do café, cereais, arroz e milho; enquanto a
imigração a partir dos solos fluminenses e mineiros teria provocado um povoamento que se
organizou em fazendas. Assim, os movimentos de devastação das matas e do plantio de
cafezais são considerados como de “povoamento” do território. Mas não todo o território, pois
a região ao norte do Rio Doce de ocupação recente é representada como um grande vazio
demográfico, sendo considerada, portanto, zona pioneira. Vide, a seguir, o mapa produzido
por este estudo onde o pretenso “vazio” é representado.
35
Mapa 1 -Espírito Santo - Densidade Demográfica, 1960. SPLAN, 1961.
É interessante notar que este estudo foi realizado num contexto de grandes
transformações, no qual, no período de 1950 a 1960, a população tinha crescido 138%,
atingindo 1.188.665 habitantes, conforme indicadores apresentados no próprio estudo. Mas,
para os autores, o fato de 65 % da população localizar-se no Centro e no Sul do estado mostra
um desequilíbrio na distribuição da população e este “encontra sua explicação na história da
ocupação que sofreu um retardamento ao atravessar o Rio Doce”. (SPLAN, 1961, p. 39)
Os autores elaboraram vários mapas onde procuram representar esta distribuição
desigual da população ao incluírem a área litigiosa do Noroeste capixaba. Mas o fato de não
incluírem as informações populacionais sobre esta área litigiosa reforça a tese do “vazio”
desta área. Observemos no mapa seguinte que esta região é representada num absoluto
“vazio”.
36
Mapa 2- Espírito Santo - Distribuição da População, 1960. SPLAN, 1961.
37
é fortalecer o efeito polarizador em alguns centros. O problema encontrado por este estudo
são as características do “subdesenvolvimento” da estrutura demográfica devido à “alta
natalidade, típica de uma população rural” e à característica familiar de sua economia devido
“ao grande número de dependentes.” (p. 114)
Segundo Becker (1969), “não faltam mesmo ao estado, as disparidades internas típicas
do subdesenvolvimento e é ao sul do Rio Doce que se concentra o essencial da vida
econômica do Espírito Santo”. (p. 26) Por esta diversidade interna, a porção sul, a de
Cachoeiro do Itapemirim, destacava-se por ser mais próxima e mais articulada com o Rio de
Janeiro e pela extensão da pecuária de leite e de corte e do arroz nas áreas úmidas. A área
central vinha se destacando através dos hortifrutigranjeiros, transformando o estado de
importador para exportador.
Assim, a partir das condições ecologicamente mais favorecidas, com maior
acessibilidade aos mercados e antiguidade do povoamento, o Sul vinha se integrando mais
rapidamente. No Norte, por sua vez, segundo Bertha Becker, “a erradicação incidiu sobre um
espaço onde a vida econômica e social era ainda extremamente dependente do café, e cuja
estruturação ainda não se cristalizara devidamente de modo a prover os meios para maior
facilidade de integração no mercado interno” levando a um “processo de depressão
econômica, desvalorização das terras e no êxodo em massa da população” (Becker, 1969,
p.29). Ainda segundo a autora:
38
Assim, o Norte estaria fora da valorização das áreas de matas mais acessíveis aos
mercados metropolitanos, dando origem às frentes pioneiras que ficavam entre 500 e 1000 km
de São Paulo e do Rio de Janeiro.
São estes elementos que, segundo Becker (1969), caracterizam a dualidade econômica
entre a agricultura de exportação e aquela para o mercado interno; e esta dualidade projeta-se
no espaço. A expansão com vistas à produção de alimentos,
39
com base nos indicativos de renda, mas principalmente na base agrária capixaba. Segundo o
estudo, são os pequenos agricultores que representam a barreira para a expansão da
produtividade, pois se trata de um “agricultor arraigado”.
Estas conclusões nos permitem visualizar a intencionalidade do texto e, após decretar
o vazio demográfico das zonas que estavam fora da economia mercantil cafeeira, recortam
outro alvo. Um recorte que parte do econômico, mas principalmente de uma econometria
mercantil urbana. Se em outros momentos as matas e os indígenas eram a barreira, chamada
de Natural, agora são estes pequenos agricultores o obstáculo, a rugosidade e os entraves ao
desenvolvimento. Este quadro, desta forma pintado, foi considerado pelos autores como um
“quadro pessimista” para o Estado. Daí o atraso.
Mas, para felicidade dos autores do estudo Desenvolvimento Municipal e Níveis de
Vida do Estado do Espírito Santo (1962), com as medidas restritivas do governo federal ao
café, o agricultor começou a se sentir desestimulado a continuar nesta atividade.
O que chama atenção na análise destes estudos são os paradoxos. Apesar dos dados
apresentados pelo próprio estudo Desenvolvimento Municipal e Níveis de Vida do Estado
do Espírito Santo (1962) demonstrarem o crescimento populacional, territorial e produtivo
do estado nas últimas décadas àquela época, ele observa a estagnação e descapitalização da
economia capixaba. E estas características seriam suficientes para localizar o estado entre “as
áreas periféricas do desenvolvimento nacional”, pois estas características são comuns a todas
estas áreas. Mas os autores vão além ao afirmarem que esse “quadro negativo”, que se repete
em todas as “regiões atrasadas” do país, se aguça no caso do Espírito Santo com a alta
dependência da economia em relação ao café. (p.126)
O interessante é observar que parte das evidências parece não ser assim tão evidente.
Após considerar que o “Estado não contribuiu para a crise de superprodução”, isto é, levando-
se em conta que a produção de café do Estado não vinha crescendo na mesma taxa que outros
centros produtores, o estudo coloca em questão a “transferência de renda do produtor ao
comércio exportador”, o que nos levaria a supor que esta seria a questão a ser tratada, pois
fica evidente que o café gera renda e quem produz este café que gera renda, mas que não é o
responsável pela “crise”, são os pequenos agricultores familiares. Mas o estudo prefere
desviar-se desta evidência e, novamente, encontra as limitações exatamente no regime de
pequena propriedade. Levando-se em conta os números do próprio estudo, estas limitações
abrangiam a maior parte do Estado, pois as propriedades de 10 a 100 hectares correspondiam
a 77,5% do total de estabelecimentos e a 55,7% da área total; e, em 87% do número total de
40
estabelecimentos e em 82,1% da área, o responsável era o próprio proprietário. O estudo
destaca ainda que a maior parte do pessoal ocupado vinha da própria família, embora grande
parte da mão-de-obra na zona rural fosse constituída principalmente por não proprietários,
englobando, combinando e misturando categorias como meeiro, terceiro, diarista, empreiteiro
e mensalista, mas predominando a meação, que se constitui uma atividade familiar.
Assim, o referido estudo da SPLAN (1962), parte das evidências de que não havia
crise na produção cafeeira do estado e, portanto, a base social desta produção também não
estava em crise. A questão encontrava-se, então, na desigualdade na apropriação da renda
gerada, caracterizando, portanto, um problema na distribuição. Mas, apesar destas evidências,
o estudo se volta contra a base produtiva representada pelos pequenos agricultores familiares,
exatamente aqueles que produzem, mas que não ficam com a renda.
Entretanto o estudo vai mais longe e, num momento messiânico, anuncia o ocaso
desta base social ao afirmar que:
41
território capixaba e à ideologia industrial desenvolvimentista na segunda metade da década
de 1960.
Este estudo realizado pela SPLAN (1968) e consequente plano são baseados em uma
pesquisa realizada em 327 propriedades em todo o estado. Este levantamento revelou que boa
parte das propriedades “ainda se situa num nível de exploração típico de uma economia de
subsistência”. Apesar do universo da amostragem ser reduzido é possível observar que houve
na pesquisa uma preocupação com a distribuição das amostras, se considerarmos que “boa
parte das propriedades” é correlata a uma área de aproximadamente um milhão e oitocentos
mil hectares da área ocupada pela pequena propriedade.
Além deste caráter de economia de subsistência, o estudo que deu base para a
elaboração do Plano de Diversificação e Desenvolvimento Agrícola revela outros elementos
considerados importantes pelos autores.
A produção desta “boa parte” das propriedades geralmente “não é levada ao
mercado”. É importante ressaltar aqui um componente de localização e de diferenciação no
estudo. Mercado aqui aparece como um lugar fora do lugar da produção. Enquanto isso as
“trocas são realizadas junto a comerciantes locais, nos arraiais e centros de reunião”. Assim,
apresenta-se uma distinção espacial, mas também uma distinção relacional, pois se em numa
relação “não se leva ao mercado” em outra “as trocas são realizadas junto”.
Estas trocas, levando-se em conta que a maioria da população, dos comércios e das
indústrias se localiza neste espaço agrário, deveriam ser significativas. Apesar disto, para os
autores do estudo/plano em questão, aconteciam “apenas esporadicamente”. Ou seja, existia
uma sazonalidade, talvez por causa das próprias sazonalidades dos produtos ou das
necessidades. Estas mercadorias eram “trocadas em quantidades mínimas, por mercadorias
essenciais, tais como sal, açúcar, querosene e tecidos”. Estes produtos representavam
mercadorias essenciais, como afirma o documento, e sua quantidade é relativa à necessidade e
à capacidade de consumo regulados por inúmeras dimensões sociais, culturais, econômicas e
ecológicas. Estas trocas eram realizadas “sem uso da moeda” (p. 07), o que revela, para nós,
outras dimensões relacionais, para além da moeda.
Revela também, o estudo, que o “tipo de agricultor que se encontra nesse nível de
atividade econômica é constituído pelo pequeno proprietário individual. Entendemos que este
termo pequeno proprietário individual” foi utilizado apenas como categoria jurídica, pois,
segundo o próprio estudo, os trabalhos nestes sítios eram realizados com a “mão-de-obra da
família e pelos parceiros”.
42
Apesar de não ser este o objetivo do estudo, fica evidente no mesmo que as relações se
dão em algumas escalas: a da unidade produtiva (família, parceiros...), a do arraial (lugar de
reunião, das vendas...) e a do mercado...
O documento procurou demonstrar, no entanto, que “a agricultura capixaba ainda se
encontrava num estágio de desenvolvimento bastante atrasado”. Levando-se em conta que
esta agricultura gerava renda, emprego e qualidade de vida para quem dela/nela vivia, esta
procura de um outro “desenvolvimento” deveria partir de outro lugar, pois segundo o
documento, a tese do “atraso” foi construída a partir “do ponto de vista de uma economia de
mercado”, ao qual o produtor deveria destinar seus produtos e que não estava junto às vilas,
povoados e arraiais.
Por este ponto de vista, “o exame detalhado a que se procedeu dos dados de
economicidade das propriedades pesquisadas”, analisando o grau de comercialização das
propriedades, “conduziu a uma clara delimitação, na amostra estudada, de duas sub-
amostras”, ou dois “níveis de exploração econômica”, ou seja: as propriedades “ativas” e as
propriedades de “subsistência”. Este “exame detalhado”, ao que tudo indica, levou os autores
a elaborar um fato geral uma regra de que “à medida que aumenta a área das propriedades,
cresce o grau de comercialização”, ou melhor, “a capacidade de comercializar a produção”.
Observemos, pois, como o grau de comercialização se transforma em capacidade de
comercialização. Mais adiante veremos como que, a partir deste ponto de vista, construir-se-á
“a determinação dos coeficientes técnicos”, referenciais adotados como necessários ao
desenvolvimento do Estado e estes, portanto, segundo o ponto de vista do estudo, “tem que
ser buscados ao nível da subamostra das propriedades que comercializam a sua produção.” (p.
09)
Assim, o estudo distingue e cria um referencial de capacidade de acordo com o
tamanho da propriedade. Aquelas propriedades situadas num estágio de subsistência
“limitadas às práticas do escambo, isto é, a troca não monetária de mercadorias” (p. 08), é
representada por:
43
propriedades consideradas “ativas”, a presença de culturas de subsistência (arroz, feijão,
milho e mandioca) sem finalidade comercial não era residual, pois o arroz foi encontrado,
nestas características, em 60%, o milho e o feijão em 71% e a mandioca em 85% das unidades
pesquisadas. Ressaltou ainda, o estudo, que em todos os tipos de propriedades existiam
“culturas e explorações animais em nível de subsistência” (p. 13).
O outro lado (oposto) da dualidade é constituído pelas “propriedades organizadas para
a produção comercial”, denominadas de propriedades “ativas” e que foram classificadas em
três tipos: as propriedades mistas (pecuária e agricultura), as propriedades exclusivamente
agrícolas e as exclusivamente dedicadas à pecuária.
Esta classificação é dada a partir da análise da especialização em cada uma destas
categorias, na qual diminui-se o paralelo à diminuição do tamanho da propriedade. Além
desse fato, levando-se em conta a produção, observou-se no estudo que, enquanto as
produções agrícolas eram feitas principalmente nas pequenas propriedades, o aumento da
produção pecuária se dava de acordo com o aumento do tamanho das propriedades. Ou seja, o
estudo aponta praticamente uma ausência da pecuária nas unidades até 10 hectares,
concluindo, assim, que estas são mais especializadas em agricultura e, por isso, menos
integradas. Desta forma, a ocorrência da pecuária foi o indicador de eficiência.
Assim, com base nestas análises da produção, da especialização e da comercialização,
o estudo conclui que, em qualquer programa de desenvolvimento a ser dirigido, desde então,
para a agricultura capixaba, as propriedades consideradas de importância estratégica seriam
aquelas situadas na faixa de 100 a 1.000 ha. Pois, segundo os autores, este tipo de empresa é a
mais avançada, a que possui a melhor alocação dos recursos produtivos e a que possui a maior
viabilidade no mercado.
Por estes elementos, os autores do volume II dos Estudos para o Desenvolvimento
Econômico do Estado do Espírito Santo, onde consta o Plano de Diversificação e
Desenvolvimento Agrícola, realizado pela SPLAN, em 1968, centraram suas análises e
propostas nas chamadas “propriedades ativas”.
Nestas, dos produtos comercializados, o café foi encontrado em 57% das unidades
ativas pesquisadas, a pecuária em 37%, o milho em 25,5%, o feijão em 23%, o arroz em 16%,
a mandioca em 7%, a banana em 5%, a cana de açúcar em 4,4% e o cacau em 2,8%.
Plantavam-se, ainda, laranja, tomate, cebola e amendoim.
O referencial substancial escolhido pelos autores para a análise desta realidade foi o da
produtividade, evidenciado nos dados da tabela a seguir:
44
Tabela 3 – Valor da Produção e Produtividade – Espírito Santo – 1968
45
Para o cálculo deste índice os autores somente consideraram os “dias efetivos de
trabalho aplicados em cada cultura”. Ou seja, não foram computados para efeito de custos “os
dias ociosos da mão de obra durante o ano”. Entretanto, apesar de não computarem estes dias
ociosos os autores tinham a consciência de que “até mesmo aos assalariados, esses dias, são
pagos.” (ASPLAN, 1968, p. 47)
Uma questão se coloca aqui: como calcular o valor da mão-de-obra familiar ou do
trabalho coletivo? Para os autores do documento e para as condições conjunturais do Espírito
Santo, essa preocupação não era prioritária além do que, isto também não seria possível, pois
a economia agrícola do estado era caracterizada pelo hibridismo. Para os autores, o café
expressaria de modo mais eloquente esta característica, pois apesar de ser a “principal lavoura
comercial do estado” ela empregava “predominantemente mão de obra familiar ou com
remuneração em espécie”. Este dado foi suficiente para os autores definirem que um grande
contingente populacional era desprovido de receitas monetárias e sem um efetivo poder
aquisitivo. Ou seja, tal contingente produzia o estritamente necessário à sobrevivência, e
estaria, portanto, mais “condicionado a um esquema de economia natural, ostentando, por
isso, padrões de vida muito baixos.” (p. 47)
Assim os custos de mão de obra “calculados” naquele trabalho foram transformados
em referencial para as análises comparativas entre os produtos e as unidades produtivas. Além
disso, foi para os autores o “elemento revelador das explorações que operam em níveis
deficitários”. As relações de trabalho concretas e as diferenças regionais não foram
consideradas nesta opção metodológica pelo cálculo. Para os autores “as diferenças regionais
eram insignificantes”. Por isso trabalharam com médias, as quais seriam “válidas para todo o
Estado” (ASPLAN, 1968, p. 48).
Para completar os cálculos dos indicadores que levariam à classificação da eficiência e
ineficiência, os autores levantaram dados sobre as despesas com os insumos, sementes e
mudas, calcário, fertilizantes, defensivos e embalagens. No entanto, não existia no Estado
“qualquer comércio ou serviço organizado para o seu fornecimento regular e em escala aos
agricultores” daqueles produtos. Além disso, através dos levantamentos “constatou-se” que
apenas 33% das propriedades apresentaram algum gasto com insumos. (ASPLAN, 1968, p.
50)
Foi, portanto, desta forma, ou com esta fórmula, que se “calculou” a margem líquida
de renda, como a “diferença entre o valor bruto de produção e os respectivos custos
operacionais” (p. 55). Mas admitem os autores que há uma diferença entre este cálculo e “sua
46
expressão financeira real” em “razão do emprego predominantemente da mão de obra familiar
ou remunerada em espécie”. Um paradoxo, mas que “traduz, no entanto, um fato bem
verdadeiro e de grande significado para a programação – que é a existência de explorações
marginais, em face de um esquema de monetarização da economia agrícola” (p. 55).
Então, grande parte das atividades, por estes cálculos, estaria nas “margens negativas”,
que por sua vez revelava o “grau relativo percentual de descapitalização” e por essa razão,
foram chamados no respectivo estudo de “coeficiente de ineficácia implícita”. Segundo os
autores, este método serve como “instrumento eficiente” para identificar “explorações” que
“responderiam negativamente a um programa de desenvolvimento que resultasse numa
ampliação da mão de obra assalariada” (p. 56).
Através dos cálculos os autores chegam a graus de eficiência diferenciados entre os
produtos e as regiões do Estado. Enquanto tomate e cebola apresentaram os maiores índices
de eficiência, mandioca, arroz, feijão, milho, cacau e, principalmente, o café apresentaram as
mais baixas taxas de eficiência. Entre as regiões, o Norte foi o que apresentou as mais baixas
taxas de eficiência, enquanto a Serrana Centro/sul foi a que apresentou as mais altas taxas de
eficiência.
Para os autores as baixas taxas e principalmente as margens negativas encontradas na
cultura do café,
Mas esta “análise da realidade”, que primou pela classificação e localização dos
lugares de acordo com uma hierarquia, estabelecida previa e ideologicamente com vistas ao
reforço do domínio das condições naturais de existência e sua mobilização para a acumulação
mundial de capital, não foi exclusiva de gestores ou ideólogos do estado ditatorial brasileiro.
Acadêmicos da época e do presente participaram e participam desta construção.
Berta Becker (1969), que elaborou um interessante estudo em 1969 sobre a região
Norte do Espírito Santo, em sua introdução identifica a localização econômica do estado da
seguinte forma:
47
Ocupando posição marginal em relação à região núcleo do país, tanto do ponto de
vista econômico como geográfico, o Estado do Espírito Santo caracteriza-se como
região periférica. Sua economia, fundamentada numa cafeicultura tradicional,
apresenta-se em crise, vendo-se o Estado na contingência de rapidamente integrar-se
no ‘core’ do país como solução para a mesma (...) sofrendo maior impacto. O Norte
capixaba configura-se como uma periferia deprimida, cuja integração, tentada através
da pecuária, apresenta dificuldades (Becker, 1969, p.3 da introdução).
Indiscutivelmente, o Espírito Santo é parte integrante da região sudeste, quer por sua
posição geográfica, quer pelas características de seu quadro natural, quer por uma
evolução econômica comum marcada pela atividade cafeeira. (...) No entanto,
participando do chamado Sudeste Velho, ocupa os confins orientais da região,
distantes e de difícil acesso; fundamenta sua economia numa cafeicultura arcaica que
gerou uma estrutura econômica subdesenvolvida (Becker, 1969, p. 4).
Assim a ilustre pesquisadora argumenta que, após a mudança da capital brasileira para
Brasília e a perda do comando econômico do país para São Paulo, a subordinação ao Rio de
Janeiro leva à decadência do Espírito Santo:
49
fundamentada no uso extensivo da terra – espaço e fertilidade – como principal fator
de produção” (Becker, 1969, p. 10).
Desta forma, a autora faz desfilar ao longo do texto como desvantagens que levaram
ao atraso do estado, quais sejam, o regime da pequena propriedade, as técnicas não racionais
de produção, condições locacionais pouco favoráveis (...) Assim como os paradoxos e, apesar
de em 1960, segundo a autora, as exportações do café representarem 16,1 % da renda do
Estado, lhe foi possível concluir que:
50
contemplado com nenhuma compensação financeira ao nível das transferências de renda.”
(BECKER, 169, p. 23)
Todos estes elementos estruturais e políticos demonstravam para a autora o caráter
periférico do estado, pois “as características de subdesenvolvimento” eram visíveis na
estrutura agrícola, na renda, na população ativa, no valor da produção agrícola, na deficiência
nos transportes, na economia sem dinamismo e na debilidade da vida urbana.
O que mais nos chama atenção é que esta leitura da realidade se disseminou e se
solidificou de tal forma que estudos recentes de várias matrizes teóricas continuam
reforçando-a.
Segundo Helder Gomes (1998),
[...] o Estado do Espírito Santo deve ser entendido como uma região, integrada de
forma extremamente atrasada no desenvolvimento da industrialização tardia no Brasil,
o que lhe confere uma condição subordinada na dinâmica de interdependência da
economia brasileira.” (Gomes, 1998, p.22)
51
base familiar tinha um estranho habitus, diríamos, de possuir “insignificantes manifestações
de trabalho assalariado” além de serem “quase todas autosuficientes”. Isto era possível porque
sua “cultura de subsistência” tinha padrão de consumo “ainda bastante rudimentar”, o que
cerceava a formação e o desenvolvimento de um mercado interno diversificado. (Gomes,
1998, p. 34)
Poucas eram, portanto, as perspectivas para a “promoção de um processo de
desenvolvimento”, pois o “processo intensivo de acumulação interna de capital” era impedido
pela monocultura cafeeira, pois esta possuía baixa “produtividade”, reduzida “qualidade” e o
“excedente” era apropriado pelo grande capital comercial que, concentrado no do Rio de
Janeiro, controlava uma rede de pequenas lojas e intermediários de café. (Gomes, 1998, p. 34)
O trabalho intitulado A Modernização Violenta: Principais Transformações na
Agropecuária Capixaba, de Hildo M. de Souza Filho, de 1990, é centrado no estudo das
“especificidades” da modernização agrícola no estado a partir de alguns elementos históricos,
como a constituição da economia cafeeira “baseada na pequena propriedade”, a “resistência”
às tentativas de industrialização, a integração ao mercado nacional, a erradicação dos cafezais,
a industrialização e a “modernização” agrícola. Segundo o autor, o resultado deste processo
foi a destruição da “base produtiva pretérita”.
No resgate histórico, Souza Filho (1990) reafirma as teses do “vazio demográfico”, da
grande “disponibilidade de terras virgens” e do “isolamento”. Foi neste sentido que a ação do
Estado dirigiu a ocupação do “território vazio” e a expansão cafeeira fundamentada na
pequena produção familiar, mas, segundo o autor, “este tipo de organização de produção
resistiu às crises de preços e solidificou uma estrutura incapaz de gerar mercados de
consumo e de trabalho, impondo resistência ao surgimento de indústrias e à própria
transformação tecnológica na agricultura.” (p. 38)
Assim está revelada a “precariedade” da pequena agricultura, pois de “baixa
produtividade” e de um produto de “qualidade inferior.” (p. 38)
Mas este mesmo autor se espanta com a resistência às crises desta agricultura de
pequena escala: “dentro deste quadro pode-se verificar o crescimento da agricultura sem que
necessariamente ocorresse a destruição da pequena agricultura familiar”. Além de terem
“sobrevivido”, acrescenta o autor, “o número dessas propriedades expandiu-se pela ocupação
de novas áreas em todo o Estado” e este crescimento “manteve inalterada a estrutura básica de
distribuição de terra, havendo, inclusive, desconcentração” ao longo da primeira metade do
século XX. (Souza Filho, 1990, p. 57)
52
Outro estudo, Cafeicultura e Grande Indústria, de Haroldo Corrêa Rocha e Ângela
Maria Morandi, de 1991, parte também da problemática da cafeicultura, principalmente das
condições de sua expansão e sua inibição à diversificação da economia. Este fato é explicado
também por causa da economia de “subsistência” e da “baixa produtividade”, criando um
“círculo vicioso”. Mas, observa o autor, a partir da crise cafeeira, “foi dada a partida num
processo de transformações econômicas que viria alterar profundamente a estrutura produtiva
da economia capixaba” (p. 23). Este processo gerou uma “crise social”.
Para os autores “esse processo de transformações do meio rural no Espírito Santo
encontra-se ainda em curso e, na medida em que a fronteira agrícola estadual já está
praticamente esgotada, pode-se prever que deverá continuar o processo de desruralização da
população”, mas conseguem encontrar o “efeito benéfico” deste processo, isto é, o
“estreitamento das relações do meio rural com o meio urbano e o conseqüente aumento da
complexidade das relações econômicas locais”. (Rocha & Morandi, 1991, p. 136)
Por nossa análise, se existir compatibilidade das técnicas, um sistema técnico pode
absorver estruturas pertencentes a um sistema precedente. A questão da eficácia do sistema
técnico pode ser entendida como articulação entre os diversos sistemas técnicos de diferentes
idades e o que tem uma consequência sobre as formas de vida possíveis na área em questão.
Se entendidas como os resíduos do passado, estas formas de vida seriam um obstáculo à
difusão do novo ou permitiriam ações simultâneas. Entretanto a territorialização de um
sistema técnico pode significar a desterritorialização de outro. Da desterritorialização do
campesinato produzem-se o trabalho assalariado e o capitalista. O avanço desses processos
encontra no Estado o agente modernizador, pois busca a legitimação por meio de projetos
técnicos, numa perspectiva de bem comum inquestionável. Os drásticos resultados dos
inúmeros programas tecnocráticos para a realidade camponesa capixaba colocam dúvidas
neste otimismo, fazendo necessária uma reflexão sobre seu papel.
53
diversificação” devia-se à “instabilidade da economia cafeeira” e às “perspectivas de um
modesto crescimento contrastando com as exigências e pressões demográficas da área” (p.
143). Assim, após o giro de raciocínio que parte da identificação de que a crise não é da
produção, mas da distribuição, atribui à base social produtiva as “limitações” que produziram
a crise. Apesar de afirmar que o estado não contribuiu para a mesma, chegam à “conclusão”
de que esta estrutura econômica “necessitava” de uma diversificação e esta, segundo os
autores, se confundia com o “imperativo da abertura de novas frentes de desenvolvimento”.
Observemos que os termos “necessidade” e “imperativo” reinam neste momento de
autoritarismo. Observemos também que a fórmula malthusiana da relação entre crescimento
da produção versus crescimento populacional também é usada para explicar esta necessidade.
Mas os autores ainda dizem que este “imperativo da abertura de novas frentes de
desenvolvimento” deveria orientar a substituição das “atividades decadentes por novas
capazes de impor aceleração ao processo de crescimento”. (p. 143)
Assim a dualidade “decadência/atraso” versus “desenvolvimento/crescimento” está
posta. Diante dela o estudo também orienta a saída para a “crise”, qual seja, o “estímulo” às
atividades siderúrgicas e de industrialização. Restaria perguntar, neste momento, a que se
refere a palavra “estímulo”? Colocaremos como hipótese inicial que estímulo, neste caso,
refere-se aos financiamentos públicos, não pagamentos de impostos, disponibilidade de terras
e de mão-de-obra a baixo custo.
O estudo da SPLAN (1962), porém, apresenta alternativas aos agricultores, sempre
deixando clara sua premissa, qual seja, “o aproveitamento das oportunidades do mercado”.
Estas alternativas poderiam ser divididas em duas dimensões. Uma do aproveitamento de
terras disponíveis, principalmente dos vales úmidos, incluindo “regularização do rio, obras de
irrigação e até mesmo pequenos aproveitamentos hidrelétricos” e das terras da região Norte
“área imensa de terras ainda não muito valorizadas e adaptáveis” (p. 146). Outra seria a
diversificação a partir do apoio à fruticultura, cana-de-açúcar, algodão, horticultura, pimenta
do reino, mamona, amendoim e fumo, pecuária e produção florestal. O problema apresentado
pelos autores é que naquele momento esta produção requeria “agricultores mais adiantados”,
mas o que o estudo encontrou foi somente uma “técnica muito atrasada”, uma
“comercialização ruim”, “pomares domésticos”, práticas culturais “rotineiras” e cultivos para
o “abastecimento doméstico” e mercados urbanos locais.
As sugestões apresentadas foram a melhoria da produtividade, da qualidade e da
comercialização, o fortalecimento econômico (cooperativas) e a industrialização.
54
As mudanças nas políticas públicas no Espírito Santo, no sentido da consolidação do
ideário desenvolvimentista, ganham força a partir de 1964, mas principalmente a partir do
governo estadual Lopes Filho. Em 1967, em memorial enviado ao governo federal, o
governador Christiano Dias Lopes Filho, baseado nos documentos A Crise Cafeeira no
Estado do Espírito Santo, do Departamento Estadual de Estatística e no “Programa de
Diversificação do Espírito Santo”, do acordo IBC/GERCA, apresenta os problemas criados
pela erradicação do café, que liberou terras e pessoas da lavoura, reduziu a produção de café e
provocou queda na arrecadação. Diante destes fatos, o governador argumentou que:
[...]terá inscrito, na história econômica deste país, o mais desumano crime já praticado
contra um Estado, contra um povo e contra os mais sentidos anseios de progresso de
uma geração (LOPES FILHO, 1967).
Os argumentos de que o estado se encontrava numa “grave crise” justificava, cada vez
mais, o intervencionismo estatal na sociedade capixaba. Lopes Filho declarou que seu
governo estaria tomando várias iniciativas para o “desenvolvimento”, como a criação da
“Companhia de Desenvolvimento”, que possuía a incumbência de elaborar e coordenar a
execução do programa de investimentos para a diversificação econômica do estado, a criação
de fundos para financiamento às agroindústrias e a realização de estudos sobre a produção de
animais, vegetais, atividades de reflorestamento e da indústria da madeira. Reivindicou, o
referido governador, maior participação do estado nos fundos da erradicação e maior
autonomia da gestão dos recursos a partir da CODES.
Sempre lembrando a grande população rural do estado e a importância do café na
economia, o governador argumentou que a erradicação causou impactos em diversos setores,
provocando também a diminuição proporcional da produção de produtos de subsistência, já
que historicamente esta esteve associada ao café, atingindo por esta monta todo o movimento
comercial e bancário do interior.
Lopes Filho argumentou ainda que a substituição do café devesse levar em conta os
elementos técnicos, como a topografia adequada à mecanização, o conhecimento de dados
agronômicos e de infraestrutura voltada à comercialização. Neste sentido informou ainda que
estava lutando para estruturar o governo “num sentido rigorosamente técnico, congregando
elementos e recursos capazes de promover o desenvolvimento do estado em padrão de
moderna racionalização” (LOPES FILHO, 1967). Partindo desta perspectiva, anunciou que seu
governo possuía a colaboração da FINDES a partir da contratação de uma equipe de técnicos
55
para elaborar estudos e projetos de planejamento básico e reforma administrativa, visando
acelerar o ritmo de crescimento socioeconômico do ES.
No ano seguinte, em 1968, esta articulação realizou o “I Simpósio sobre o
Desenvolvimento do Estado do Espírito Santo”, em cujos relatórios é possível perceber,
claramente, a ideologia dominante que se procurava inserir nas políticas públicas do estado.
A partir daquele diagnóstico das consequências da erradicação do café, argumenta
Lopes Filho que há a “necessidade da abertura de novas frentes agrícolas” para compensação
da receita e absorção da mão-de-obra que ficou ociosa.
Entretanto, embora afirmando que “a alternativa da silvicultura” era boa para o ES,
recomendou a expansão de culturas já tradicionais como o milho, arroz, feijão, banana, entre
outros, pois estas poderiam propiciar uma recuperação mais rápida da economia e, enquanto
isso, dever-se-ia “preparar a retaguarda” para que culturas novas fossem introduzidas. (LOPES
FILHO, 1968)
Preliminarmente, deveriam ser realizados estudos cuidadosos da aplicabilidade às
condições ecológicas e aos aspectos econômicos, pois na falta de dados experimentais locais,
na ausência de zoneamento técnico e na deficiência técnica e de mercado estavam os
principais pontos de estrangulamento que impediam uma melhor produtividade das culturas
básicas, segundo o documento.
Para ultrapassar estas limitações, a extensão rural e a pesquisa sistemática e
permanente em bases científicas e tecnológicas eram fundamentais, visando a introdução de
“espécies exóticas e o estudo de espécies indígenas”, assim como a industrialização dos
produtos florestais. Estas iniciativas visavam elevar a tecnificação da agricultura, visando à
melhoria dos produtos, aumento do lucro e conquista de mercado.
Mas, Lopes Filho lamentou que a disseminação de novas culturas esbarrassem no
“atraso” do meio rural e que nenhuma agricultura de “alta produtividade” poderia ser
implantada sem que tais “condições sejam [fossem] modificadas”.
Foi nesta mesma perspectiva de construção de um futuro orientado e dirigido pelo
tecnicismo que foram realizados os Estudos para o Desenvolvimento Econômico do Estado
do Espírito Santo. Entre eles consta o Plano de Diversificação e Desenvolvimento
Agrícola, elaborado pela ASPLAN, em 1968, e que foi baseado em uma pesquisa em 327
propriedades em todo o estado.
A implantação do Plano de Diversificação e Desenvolvimento Agrícola propõe que
para sua implantação devesse requerer, primeiramente, uma estrutura organizativa e
56
administrativa voltada para o planejamento, assim como uma estrutura de coordenação do
plano com atribuições definidas, a partir da “relação Governo e iniciativa privada”, para que
“aqueles órgãos para os quais se destina um conjunto de estímulos possam responder a tais
estímulos, tendo suas ações individuais orientadas para os resultados gerais propostos. (p.
319)
Existiriam, segundo o documento, duas categorias principais de instrumentos
necessários à execução do plano:
- “Os estudos básicos”, pesquisa e experimentação, engenharia rural, fomento,
extensão e garantia de escoamento que serão objetos de planos individuais;
- “Os auxiliares”: relacionamento entre órgãos e esferas administrativas e entre o
plano e seus beneficiários.
A partir daí delinear-se-iam os programas, destacando, os levantamentos básicos
(meteorologia e climatologia, solos e mercado), a pesquisa e experimentação agropecuária, as
estradas vicinais, a irrigação, a realocação de mão de obra, as práticas, insumos e
equipamentos, a extensão rural e treinamento de pessoal, o crédito e a comercialização da
produção.
Um dos volumes dos Estudos para o Desenvolvimento Econômico do Estado do
Espírito Santo foi dedicado ao “Potencial Florestal e Silvicultura” e foi realizado pela
empresa consultora Economia e Engenharia Industrial S.A. – ECOTEC, em 1967, com
recursos do IBC/GERCA sob orientação da CODES.
Tais estudos partiram da estimativa, em 1967, da existência de 12,6% do território
com florestas nativas, localizadas principalmente nos municípios de Linhares, Conceição da
Barra, São Mateus, Mucurici, Aracruz, Nova Venécia, Ecoporanga, Barra do São Francisco,
Mantenópolis, Colatina, Santa Teresa, Santa Leopoldina, Domingos Martins e Ibiraçu.
Mas uma advertência foi feita:
[...] em virtude da franca aceitação de muitas das suas madeiras pelas indústrias de
laminados, compensados, carpintaria, movelaria, dormentes e outras, bem assim da
proximidade do Porto de Vitória, da vizinhança do importante mercado consumidor
que é o Rio de Janeiro, e por outros motivos, as florestas do Espírito Santo, desde
muitos anos, têm sido objeto de intensa exploração (Ecotec, 1967, p. 44).
O estado vivia as influências do novo Código Florestal que, segundo o referido estudo,
trouxe “sensíveis vantagens para o produtor de madeira em conjugar essa atividade com a
industrialização e o reflorestamento” (p. 51). Talvez por isso, o grande interesse pelo estado já
que era calculado o volume de madeira nas reservas da época em torno de cem milhões de m3
57
ultrapassando os seiscentos mil hectares. Mas o foco principal estava em uma área específica
do estado, a Floresta de Tabuleiro que, “apesar da intensa devastação de que foi objeto, pode
ser tratada ainda como floresta de produção, já que suas reservas ascendem a cerca de 75
milhões de m³”. (p. 52)
A região montanhosa foi descartada, pois talvez houvesse uma distinção social entre
as duas áreas, ou até étnica, mas os autores preferiram outra explicação. No entanto,
colocaram suas ressalvas à exploração do potencial da Floresta Atlântica: “por seus limitados
remanescentes florestais, não pode e não deve ser objeto de qualquer exploração industrial”.
(p. 52)
O primeiro objetivo era retardar o processo e ganhar tempo para que a silvicultura
fosse introduzida. Para isso dever-se-ia “impor, aos métodos da exploração atual, um regime
de aproveitamento racional das florestas remanescentes.” Como?
Os estudos partem da ideia comum de que o estado encontrava-se numa crise, por esta
via introduzem novas noções para se pensar as saídas da mesma, como, por exemplo, a de que
o mesmo deveria tornar-se um “produtor permanente de madeira”. (p. 53) E, desta forma, a
silvicultura começa a aparecer como solução e a palavra chave passa a ser substituição,
principalmente da ocupação da terra e da mão de obra, justamente aquelas advindas da
erradicação do café, mas também a ocupação dos espaços advindos da crise anunciada das
serrarias nas reservas existentes, principalmente no norte do estado.
Introduzem também a noção de que a silvicultura recupera o solo e que possui
características semelhantes a da Floresta Tropical:
60
número de particulares” e é comum nas grandes empresas “essa influência atingir com
facilidade um raio de 50 km ao seu redor”. (idem, p. 87)
Desta forma, os autores deixam cada vez mais claro quais os tipos de capitais que
interessavam a este Plano ao afirmarem que:
Os autores reforçam ainda mais a que tipo de capital o estudo interessa à medida que
fazem os cálculos de custos e receita e chegam à conclusão de que para as pequenas
propriedades essa atividade não é rentável porque “é fato incontestável que o pequeno
silvicultor necessita, no período de maturação do investimento, de uma atividade
complementar para assegurar sua subsistência. (ECOTEC, 1967, p. 106)
Declaram também, os autores, que mesmo quando o plantio destas espécies
comessassem a produzir, não geraria receita suficiente para satisfazer seus investimentos,
arcar com as despesas de manutenção e obter uma remuneração adequada, pois “a receita
bruta seria insuficiente para assegurar a satisfação dos encargos financeiros, cobrir as
despesas com manutenção da floresta e proporcionar uma remuneração ao silvicultor”
(p.107). Mesmo intercalando com o plantio de outras culturas “não oferece uma solução para
o problema do pequeno silvicultor”. Assim concluem que “um programa de reflorestamento
que tenha como objetivo final a venda de madeira sob a forma natural e que seja efetuado nas
condições de crédito examinadas, revela-se inexeqüível sob o ponto de vista econômico e
financeiro”. (idem, p.108)
Desta forma o estudo propõe que se trabalhe com a venda de madeira semi-
industrializada, citando inclusive o estudo “feito pela ECOTEC para a Aracruz Florestal S.A”
no qual se “declara que a rentabilidade daquele empreendimento em relação a exportação
pode ser substancialmente ampliado em relação à que resultaria da venda no mercado
interno”. (p.109)
Primeiramente, a solução para a saída da crise, do atraso e do vazio foi o plantio de
espécies exóticas de rápido crescimento, principalmente de eucalipto na área de tabuleiro. Em
61
seguida, este plantio encontra uma direção que é a “integração da floresta com indústria de
processamento da matéria prima”.
Mas para isto era necessário resolver uma questão, pois “qualquer indústria que se
dedique à transformação mais elaborada da madeira necessita de farta disponibilidade de
água, podendo calcular-se o consumo em 900 por metro cúbico” (p.113) Assim, se a indústria
de celulose dispusesse de terra, de mão de obra barata, de terreno mecanizável, de um regime
pluviométrico adequado, crédito, água abundante, então ela seria viável.
Quanto ao consumo da celulose não haveria problema. Aliás, é seguro afirmar que
estes empreendimentos se apresentavam como solução para o aumento de consumo de
celulose e papéis em vários países, particularmente da Europa e América do Norte.
Acrescenta-se a isso o oportuno deslocamento destas fábricas poluentes para países do Sul
devido à pressão de alguns países do Norte para que estas saíssem de seus territórios. Cabe
observar aqui que a F.A.O já vinha trabalhando desde o pós-guerra em estudos de mercado,
de reservas de madeira e de produtos a base de polpa para papéis, principalmente, destacando-
se as pastas químicas e semi-químicas de celulose. Portanto, num contexto de aumento da
demanda no “comércio internacional” e de diminuição das reservas, aumentaria a
“importância das florestas cultivadas”. (ECOTEC, 1967, p.161)
A partir deste confronto entre oportunidades e possibilidades, os estudiosos voltam
seus olhos para a região do tabuleiro no Espírito Santo, “a única fonte de suprimento de
matérias primas” e onde o “empreendimento em execução em Aracruz só começa a produzir
em 1975”. (ECOTEC, 1967, p.162)
No entanto, haviam outros interesses disputando esta região, tais como as indústrias
madeireiras no E.S, que eram compostas de 663 estabelecimentos, entre serrarias, fábricas de
mobiliário, esquadrias, compensados e laminados, serrarias de dormentes e outros. Assim,
poderia haver um obstáculo ao Plano. Para superá-lo, elaboram o seguinte argumento:
[...] a indústria da madeira no Espírito Santo encontra-se, ainda, num baixo estágio de
desenvolvimento, se comparado com a de outros centros madeireiros do país. O
padrão de industrialização, no Estado, não corresponde ao potencial e à valia da
madeira da matéria prima existente, à oferta abundante de mão-de-obra a baixo custo,
e as facilidades relativas de transporte e de exportação (ECOTEC, 1967, p 214).
62
[...] qualquer projeto de desenvolvimento da produção florestal só poderá alcançar a
devida eficiência e rentabilidade se relacionado com um adequado desenvolvimento
industrial. Este deve ser tão integrado quanto possível, para poder aproveitar o maior
número de espécies de madeira de várias dimensões, bem como os respectivos
resíduos, de modo a fornecer o máximo lucro e propiciar campo para o plantio de
novos maciços planejados de acordo com as conveniências do futuro mercado
consumidor (ECOTEC, 1967, p. 214).
63
rusticidade, pela rapidez de crescimento e, também, por seu comportamento”, se adiantando
também em desestimular o reflorestamento com espécies regionais por ser
65
era oferecido o desenvolvimento da aptidão para enfrentar a concorrência dos grandes centros,
através do ensinamento de determinado ofício capaz de mantê-los e, finalmente, integrá-los à
sociedade. Ao mesmo tempo, nas comunidades rurais, com a mobilização de recursos
próprios, verificava-se “o despertar de outra mentalidade.”
Segundo Venturim (2003) o documentário buscava passar como verdade a idéia de
que sem a indispensável modernização seria inevitável o empobrecimento do campo. Diz
ainda, que “dentro do cerne do argumento tecnocrático contra o conflito entre dois pólos
opostos: o tradicional e o moderno, de forma sutilmente autoritária, a ACARES definiu o
“lugar” que a agricultura familiar deveria ocupar no processo de produção, mas não se falou
da subordinação dos produtores ao setor capitalista industrial e das desigualdades nos
benefícios concedidos. Pretendia-se que os produtores camponeses, mesmo mantendo as suas
relações de produção, se integrassem ao mercado, ou seja, com a unidade produtiva
mercantilizada e com a forma de reprodução determinada pelo mercado.
Para Milton Santos 1996 o território devia ser considerado como um conjunto com
suas divisões, heranças e conteúdos diversos, pois é desse modo que ele constitui, pelos
lugares, aquele quadro da vida social onde tudo é intermitente, onde fusões e tensões são
registros antigos. E recomposições e capturações, pois, como lembra Guatarri (2000), se as
desterritorializações provocam linhas de fuga, o território guarda o sentido da apropriação, da
subjetivação fechada sobre si mesmo.
Outra incerteza é quanto à capacidade de regulação do Estado, pois não são todos que
vivem na mesma dinâmica e na mesma velocidade. Milton Santos procurava reconhecer a
realidade dos territórios tal como é utilizado pela população como um todo. Argumentava que
estes usos são múltiplos e por diferentes velocidades e diversas técnicas, colocando em debate
a tese da unanimidade da velocidade como único caminho. (SANTOS, 1996, p.166)
Estes elementos colocam a necessidade da reflexão sobre o conhecimento possível
diante das incertezas. Walter D. Mignolo (2003) encontra no potencial epistemológico do
pensamento liminar a possibilidade de superar a limitação do pensamento territorial, da
epistemologia monolítica da realidade.
O pensamento objetivista espacial, ao pensar as fronteiras, recairia em estudos sobre
áreas. Para escapar disto o primeiro parâmetro, apresentado por Mignolo (2003) é o olhar a
partir de outro locus de enunciação, não como novos lugares ontológicos, mas principalmente
como irredutíveis diferenças epistemológicas. Menos como fundação e mais como passagens
e travessias, não como área a ser estudada e mais como um pensamento que se mova ao longo
66
da diversidade, atento a ouvir, atento à exterioridade, que possibilite refletir para além da
ontologização de uma área a ser estudada e caminhar para uma reflexão sobre a historicidade
das diferenças. Mais que uma nova localização, é a desconstrução que se coloca em primeiro
plano, um pensamento que se mova entre ambas as críticas: a crítica dos discursos imperiais e
a crítica dos discursos das identidades. (Mignolo, 2003)
Diante do exposto, é possível observar que se trata do lócus dicotômico de
enunciação, pois populações que foram desterritorializadas – reterritorializadas de formas e
em momentos diferentes ao longo destes quinhentos e poucos anos de dominação colonial –
moderno – desenvolvimentista, conviveram e resistiram aos vários processos subjugadores.
Desta forma, não buscaremos aqui nem a constatação ufanista do desenvolvimentismo, pois
consideramos que este mais esconde que mostra, nem tampouco a busca das identidades
essenciais das “minorias”. Partimos do entendimento inicial de que a prática e o discurso
desenvolvimentista visavam (e visam) a desterritorialização do campesinato capixaba como
forma de liberar mão-de-obra para a indústria, liberar terras para os novos empreendimentos
empresariais e estatais e ampliar a base de mercado dos insumos químicos e industriais.
O Espírito Santo foi “localizado” como periferia da periferia do centro de um país
periférico e o pacote modernizante foi imposto como solução. O caráter agrário e pequeno
minifundista familiar do estado eram as características responsáveis pelo “atraso” e a
industrialização e a urbanização eram o caminho óbvio. A tecnocracia formada na articulação
entre órgãos governamentais, gerência das grandes empresas e universidade criavam a
legitimação e fundamentação destas práticas e que foram também muito práticas.
A desconstrução de conceitos não pode ser entendida somente como desmerecimento
ou abandono, mas, sobretudo como uma forma de realizá-los, levando ao extremo sua
compreensão, assim: o conceito de produção nos leva ao de reprodução, como ultrapassagem
das dicotomias para abarcar o espaço todo; o conceito de rede, pelos novos processos de
territorialização e desterritorialização, leva ao espaço rizomático para dentro e para além do
próprio espaço. A multiescalaridade, a complexidade e a conectabilidade das redes e das
escalas como conteúdo do atual momento vai para além das fronteiras político-administrativo
estatal, colocando a questão da continuidade e da descontinuidade.
As hierarquias complexas dos espaços e dos conceitos também são repensadas, num
processo contínuo de produção e definição que inclui o global, o local e a escala humana: o
espaço todo. A realidade apresenta a complexidade, conjunto complexo de sujeitos que atuam
67
em diversas escalas, construindo e reconstruindo recortes políticos conceituais e revendo
paradigmas.
As resistências e a complexidade sobressaltam as temporalidades diversas das
rugosidades. A noção de rugosidade desenvolvida por Milton Santos ao longo de vários
momentos de sua obra possui relação com a capacidade organizacional dos lugares e das
populações de se apresentarem efetivamente enquanto territórios.
68
3 DESCONSTRUINDO AS TESES DO DESENVOLVIMENTO
69
incluía incursões múltiplas de interiorização com suas entradas, bandeiras, mineração e
pecuária.
Assim colocamos, inicialmente, alguns termos norteadores de nossa análise: território
e domínio. Assim, em se tratando de domínio e conquista, já indica uma perspectiva de que
estas ações visavam à destituição de outros dominantes do território. Isso pode parecer óbvio,
mas perante a tese do vazio não o é.
Para reforçar este argumento sobre a necessidade da conquista e sua contradição com a
tese do vazio, cabe citar a Carta Régia, de junho de 1534, em favor do futuro donatário Duarte
Coutinho, na qual explica que seus domínios “se estenderão e serão de largo ao longo da costa
e se estenderão, na mesma largura pelo sertão adentro, tanto quanto puderem entrar e for de
minha conquista”. Esclarecido, portanto, que seus domínios iriam até onde pudessem entrar e
fosse de sua conquista. A relação de poder é explícita, os possíveis obstáculos e conflitos
deste exercício estão implícitos.
Temos aqui, neste particular, que perscrutar o elemento interiorizador deste processo.
Pois a internalização das dinâmicas e interesses externos, em se tratando de um território,
portanto não de um espaço vazio, carrega contradições e conflitos. Assim, o elemento
interiorizador vai ganhar a dimensão do popular como contradição ao externo e dominante.
Nesta duplicidade, paradoxalmente complementar e contraditória, buscamos os elementos
deste popular e interior. Seguimos Gilberto Freire no pensar sobre a alimentação nos
primeiros séculos coloniais, que tinha como base a farinha de mandioca, o milho e as carnes
em geral.
Assim, participamos da compreensão de que a empresa colonial necessitava dos
saberes ancestrais indígenas para atingir minimamente êxito em suas intencionalidades de
interiorização. Esta necessidade vai fundar relações contraditórias, expressas na geração de
descendestes, frutos e criações.
Ressaltamos que, apesar da ocupação colonial no Espírito Santo, principalmente nos
dois primeiros séculos, ter apresentado uma dimensão econômica de expressão reduzida, não
devemos reduzir sua complexidade, ou seja, não devemos reduzir a análise territorial a uma
única dimensão.
Buscamos, aqui, fazer uma leitura do processo histórico como re-leitura, pois baseada
em textos de referência sobre o processo, buscando neles os elementos da presença
camponesa na província. A leitura proposta foi baseada nos fatores alimentação e agricultura
como constitutivos das demarcações territoriais fundamentais.
70
Foram os Jesuítas, a partir de 1551, que fundaram as primeiras fazendas produtivas de
maior porte, as quais, apesar das dificuldades, viveram vários momentos de prosperidade. Já
em meados do século XVII existiam pelo menos três fazendas jesuítas, cada uma voltada para
um tipo de produção – de farinha de mandioca, gado bovino e equino ou cana de açúcar –
buscando prioritariamente as imediações da sede, como elemento de reforço administrativo,
comercial e defesa. A lógica desta localização era a ocupação centrada no litoral/portos, como
os de São Mateus, Regência, Barra do Riacho, Santa Cruz, Vitória, Guarapari, Anchieta e
Itapemirim. A conquista teve no plantio e no comércio de alguns produtos dirigidos à
exportação, a lógica da sua configuração espacial: a cana-de-açúcar, algodão e mandioca já no
século XVI. O café somente ganharia importância no século XIX.
Como já dito, duas lógicas compõem esta formação territorial. Uma lógica mais ampla
da colonização portuguesa, que buscava dominar a costa para ter domínio do Atlântico. Outra
lógica, mais restrita, também da colonização portuguesa, que buscava a garantia da
sobrevivência da/na província. Esta lógica, mais restrita, lidava com várias dimensões,
abrangendo principalmente a defesa direta, a segurança alimentar e o enriquecimento do
império. Estas dimensões colocam o trabalho e a terra como elementos centrais dos conflitos.
Assim escambo, escravidão e aldeamento foram as políticas territoriais deste empreendimento
colonial. Um aspecto econômico importante foi minimamente a supressão da empresa
colonial. Antes da produção, visando o comércio internacional, tratou-se de garantir
suprimentos para aqueles que aqui ficavam para sustentar o domínio/domicílio.
Assim, a conquista teve, no plantio e comércio de alguns produtos, a lógica da sua
configuração espacial. A cana-de-açúcar que já em 1545 tinha 4 engenhos em Vitória, o
algodão que ao final do século XVI fez sombra ao açúcar, 6 a mandioca a partir de 1558,
principalmente na parte baixa do Rio Itaúnas e São Mateus.
Antes das fazendas de cana-de-açúcar, de mandioca e de café e durante todo o tempo
destes cultivos de exportação, porém, cultivou-se. Cultivar possui o sentido de uma relação
intensa com o solo. Buscou-se colonizar o solo para nele produzir. Assim, eram as roças que
marcavam a presença. O milho, a mandioca, o arroz e outras culturas de subsistência grafam,
continuamente, o espaço desta economia mercantil. Muribeca (com a produção de madeira),
Araçatiba (com a de açúcar) e Itapoca (com farinha e hortaliças) marcam esta dualidade das
fazendas e das roças que se confundem.
6
Em 1662 foi proibido, a não ser em propriedades em que trabalhassem até seis pessoas em serviço.
71
Mas a maior parte das atividades não era incluída nas estatísticas e relatos imperiais. O
espaço das roças era marginal aos interesses monetários da metrópole. Era marginal também
em sua localização, pois esteve na margem dos enclaves coloniais. Representavam zonas de
contatos e de fronteiras, mais inseguro e impuro, sempre híbrido e inconstante. Lugares de
constantes conflitos e resistências ao avanço da ânsia colonizadora.
As roças representavam um espaço fundamental de garantia do abastecimento de
víveres da província, impossíveis de serem supridos a partir da metrópole para as quais a
solos e braços eram fundamentais. Este espaço da subsistência vai ter, ao longo de sua
história, importância não somente para o ES, mas também para outras províncias.
Para sua intensificação foram necessárias domesticações. Primeiro no sentido da
permanência de um contingente de representantes da Coroa, subalternos condenados a serem
linha de frente nesta batalha, internalizando-os numa domesticação forçada neste novo
ambiente. Em seguida, a domesticação da natureza, que significava dar um sentido próprio,
apropriar-se, introduzir espécies vegetais e animais conhecidos, desvendar novas espécies e
aprender a lidar com elas. Mas principalmente “domesticar” os braços indígenas, aproximá-
los, fazê-los sair da mata, fazê-los ensinar seus conhecimentos sobre as matas, os rios, os
caminhos e os tesouros. Incluí-los sim, mas numa hierarquia pré-estabelecida unilateralmente.
Um interessante diálogo é possível a partir das contribuições de Porto-Gonçalves
(territorialidades e habitar) com diversas ideias presentes em Leopoldo Zea (sobre a barbárie e
marginalização), Enrique Leff (sobre a complexidade e os saberes), Edgardo Lander (sobre a
colonialidade e saber), Enrique Dussel (sobre a irracionalidade da modernidade), Rogério
Haesbaert (sobre a multiterritorialidade), Homi Bhabha (sobre a narrativa histórica da
alteridade), Nestor Canclini (sobre as estratégias de entrada e saída da modernidade),
Boaventura Santos (sobre o paradigma emergente e o novo senso comum), Walter Mignolo
(sobre pensamento liminar) e Bajonas Brito Junior (sobre o disparate).
Estas ideias colocam a questão do estar e do vir a ser, o estar junto das diferenças e a
geograficidade do devir histórico. O território se reapresenta, pois pressupõe a apropriação
como ato. A territorialização como ato, topoi material e simbólico e como ação (território-
territorialidade-territorialização-desterritorialização-reterritorialização) são perspectivas
importantes neste diálogo.
O sentido que se faz território nas múltiplas apropriações que se faz existência, não
como identidade unidimensional, mas da multidimensionalidade da vida, provoca tensões de
territorialidades e contradições societárias. Por esta dimensão territorial onde a questão reside
72
na conformação das territorialidades, as fronteiras se impõem. Mas como a realidade está
grávida de novas territorialidades, sabores e saberes, paisagens e práticas culturais, a
multidimensionalidade abre para a instauração das impossibilidades passadas.
A importância da presença recoloca a noção de gênero/modo de vida. Esta destaca a
escala privilegiada do lugar por meio da descrição e da espacialização, a diferenciação social,
política, econômica e cultural nascida na reprodução da própria existência e a produção do
espaço oriunda da organização da sobrevivência dos grupos por meio dos tipos diferenciados
de uso das condições naturais de existência.
Enquanto totalidade, o território passa a ser apreendido como uma síntese envolvendo
expressões de complexidade, de diversidade, de coesão, de solidariedade e de capacidade
organizativa. Este caminho de apreciação sugere a mirada às tentativas multiescalares de
atores sociais de demarcar, de entrelaçar, de instituir, de construir e de destruir territórios.
Esta presença é o que nos leva a compreender a simplicidade da afirmação de que o homem
(ainda) habita o mundo. Ele é sua morada, meio e condição (e produto, se entendermos
enquanto paisagem e obra). Quando Max Sorre pensa o meio, inclui o homem. Quando Vidal
de La Blache pensa o habitat inclui o habitar. Quando Derruau pensa o agrário, inclui o não
produtivo. Quando Ratzel pensa o solo, inclui a identidade. Quando Humboldt pensa a
existência como ponto de partida de onde cada coisa se lança em novas combinações, fala
também de afinidades e de gozo. Quando Milton Santos pensa o mundo do movimento, não
exclui o morar cuja residência e o lugar, o entorno vital, são quadros da vida. Leopoldo Zea
(1998) fala da existência que une dois mundos: o do não pertencer a nenhum e o dos lugares
que levam em suas entranhas a outros mundos que têm que conciliar. Sérgio Buarque de
Holanda nos adverte que podemos ensaiar a organização de nossa desordem segundo
esquemas sábios e de virtude provada, mas há de restar um mundo de essências mais íntimas e
que esse permanecerá sempre intacto, irredutível e desdenhoso das intenções humanas.
Henrique Leff fala do habitat, como ato de habitar, de significar e de transformar. O habitat é
habitado. Vandana Shiva nos fala que as lições de sobrevivência estão escondidas nas vidas e
nas crenças dos povos que habitam, vários pensar distinto, defendendo a possibilidade de um
meio onde podem participar as mais humildes espécies e as menores pessoas e com o espaço
para o pequeno, pois todos se ocupam de proteger e plantar.
Estas análises nos levam a resgatar a percepção da natureza como território de uso
comum. Lewis Munford, ao buscar a origem da cidade, nos conta da predisposição para a vida
social que o homem compartilha com diversas outras espécies animais para a qual a primeira
73
condição foi a existência de um suprimento alimentar amplo e seguro associado, portanto aos
primeiros vislumbres de finalidade agrícola, os primeiros animais de estimação e guardiões da
casa, a prática de se reproduzirem os vegetais comestíveis por meio de mudas, percepção do
tempo exigido para o crescimento de árvores (MUNFORD, 1965, p. 13-21).
Porto-Gonçalves (2006) lembra que a espécie humana conseguiu por meio das agriculturas, a
segurança alimentar, na qual domesticar animais e vegetais é torná-la parte de nossa casa, que
em Latim é domus, daí domesticar. Assim, argumenta que cada grupo constitui, por meio de
suas culturas, seus territórios, domínios (PORTO-GONÇALVES; 2006)
Esse processo de colonização e domesticação veio introduzir outra condição a partir da
qual se iniciou a reunião sistemática e o plantio de sementes de certas gramíneas, a
domesticação de outras plantas dotadas de sementes e a utilização de animais em rebanho.
Tudo isto exigiria uma ocupação permanente de uma área, prolongada por um período
suficiente, para se seguir todo o ciclo de desenvolvimento, induzindo a uma primeira visão
dos processos naturais e a reproduzi-los mais sistematicamente. O mais importante talvez
tenha sido a domesticação do próprio homem, que constitui em si mesma uma prova de
crescente interesse pela sexualidade e reprodução.
A compreensão da lógica camponesa pressupõe a compreensão de um universo rico
em particularidades, o campo constituído de lugares simbólicos permeados pela diversidade.
Para esta compreensão, o conceito de espaço, como uma ideia próxima da “medida” do
homem, aproxima-se da noção de territorialidade, como um caminho possível de ser
explorado para a reaproximação à existência comum dos homens, como experiência e prática
sócio-espacial concreta.
Buscamos analisar as concepções, mas tal análise está colada ao fato de que são
instituídos por sujeitos sociais, histórica e geograficamente situados, portanto territórios
epistêmicos, que se reinventam juntamente com os novos territórios de existência material.
Esta territorialização como ato prático e teórico, se faz território na existência. Habitar,
enquanto domesticar e dominar.
No sentido da desterritorialização, os jesuítas, além de silenciarem-se com a
escravidão dos africanos, tiveram um papel fundamental na administração do trabalho da
grande massa indígena para a manutenção das vilas, a criação de gado (Muribeca), a produção
de farinha de mandioca e legumes (Itapoca), açúcar (Araçatiba) e policultura (Carapina).
74
Segundo João Marçal Bode de Moraes, no século XVI as vilas fundadas por Jesuítas
(Aldeia Nova, 1556, hoje Santa Cruz) e aldeamento de Reis Magos (em 1580, hoje Nova
Almeida) foram pólos de atração de indígenas da região costeira norte da capitania.
Este sistema entra em colapso com a expulsão jesuíta e o afastamento das populações
aldeadas. Em Aldeia Velha, por exemplo, compreendendo a povoação de Riacho e Nova
Almeida havia uma sesmaria toda cultivada de doze léguas e seis de fundo pelo sertão,
concedida pelo donatário aos índios em 1610, confirmada por alvará em 1759 (MORAES,
2002, p. 286), mas que passa a ser invadida após este período.
Nesta desterritorialização inserem-se as disputas, prática e teórica, sobre a vida, a
morte, as forças, o sagrado e o profano, o tempo e o espaço, o homem e a mulher, o trabalho e
a natureza. Muito conhecimento e trabalho indígenas foram incorporados. Muitos foram
excluídos, amaldiçoados, dizimados e ocultados. A lógica espacial resultante foi produto das
resistências, dos conhecimentos e dos protagonismos dos indígenas presentes nesta relação,
ainda que teime em aparecer como obra exclusiva do dominador.
Na reflexão sobre a prática espacial, os modos de fazer, de plantar, de colher, de
pescar, de caçar, de curar e de criar aparecem como centrais. Assim, neste espaço
“marginal/marginalizado” existia todo um modo de fazer que configurava um conjunto de
atividades, como as olarias, ferrarias, farinheiras, curtumes, carpintarias (equipamentos e
naval), serrarias, artefatos têxteis (algodão e seda), caieiras, sericicultura, além daquelas
agrícolas (como as roças de arroz, feijão, milho, legume, mandioca) e pecuária (vaqueiros e
tropas de burro).
Neste processo dois conjuntos comerciais básicos se formam desta forma, o das
fazendas, que exportavam por conta própria, e o das roças, negociados por pequenos
comerciantes locais.
Enquanto as fazendas formam grandes propriedades com produção em larga escala de
culturas tropicais para exportação, as culturas marginais formam um setor de subsistência para
abastecimento dos centros urbanos, dos índios, dos jesuítas e dos escravos africanos. Assim,
por traz da noção de pobreza, desastre econômico, de abandono ou outras que aparecem em
várias análises sobre a província, até o final do período colonial, forma-se um setor que se
tornou auto-suficiente; até mesmo as pequenas vilas e propriedades, que produziam quase
tudo de que necessitavam, desde alimentos, instrumentos, tecidos, canoas...
Segundo José Teixeira (1975), em meados do século XIX havia uma produção
expressiva de telha, tijolo, trigo, farinha, linho, seda, café, aguardente, algodão em fio, arroz,
75
açúcar, cal, couro, achas de lenha, caçoeiras, taboas, toras, vigas, inclusive com exportação de
vários destes produtos.
Trata-se aqui, portanto, da constituição de um espaço de relações marcado pelos
conflitos. Identificações como civilizado, selvagem, colonizado, primitivo e também
identificações das práticas agrícolas como rudimentar, tradicional, caiçara, caipira, nativa,
coivara, cabocla, entre outras vão aparecendo como não-saber e assim deslegitimadas são
apropriadas, incorporadas e formam a base de sustentação da província. Estas relações se
davam no entorno das vilas (Vitória, Itapemirim, Benevente, Guarapari, Vila Velha, Viana,
Nova Almeida, e São Mateus), das fazendas e dos aldeamentos. O interior, o sertão, para além
da imagem de vazio demográfico, representava, no fundo, zona intransponível, onde poucos
ousavam ocupar, pois era domínio indígena. Estes conflitos relacionados à capacidade de se
territorializar são explicados pela relação dos povos indígenas com a terra que, segundo Vânia
Moreira (ano), pode ser definida como essencial, fundamental, básica e visceral. Os Krenak,
grupo dos Botocudos, por exemplo, demonstram esse laço essencial com a terra no nome que
davam a si mesmos, krenak ou "senhor da terra".
Estas dificuldades de mudanças de posição podem explicar as várias tentativas de
aldeamentos que foram implementadas ao longo dos séculos. Mas, apesar do relativo sucesso
de alguns aldeamentos de índios, a verdade é que a maior parte das comunidades era refratária
às tentativas de contato. Respondiam com guerra a todas as invasões empreendidas em seus
territórios tradicionais.
Os Botocudos, denominação derivada do ornamento, botoques labiais e auriculares,
possuíam uma estrutura social baseada em constantes fracionamentos do grupo, gerando
bandos que variavam numericamente entre 40 e 200 pessoas. Cada bando possuía sua própria
denominação, geralmente derivada do nome do chefe ou de alguma região geográfica na qual
permaneciam com maior frequência. A chefia era uma posição de relativa importância, mas
não implicava grandes diferenças entre líder e liderados, nem tampouco possuía um caráter
hereditário, pois se fundava na bravura do comportamento. Localizavam-se em uma vasta
região que compreendia parte dos atuais estados da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo.
Já no século XVI ocorreram os primeiros contatos belicosos entre europeus e
Botocudos, então conhecidos pelo nome Aimorés. Com a criação das capitanias de Ilhéus e
Porto Seguro, foi tentado o apresamento dos Aimorés para substituir a mão-de-obra
Tupiniquim que, em Ilhéus, tornara-se escassa depois de uma epidemia de varíola seguida de
revolta, em 1550. Os conflitos continuaram tanto em Porto Seguro como no Espírito Santo, à
76
medida que aconteciam as entradas em busca de ouro e pedras preciosas, as quais singraram
essas regiões durante os séculos XVII e XVIII. A existência, tida como certa, da mítica Serra
das Esmeraldas no sertão do Espírito Santo animou algumas expedições.
Até o fim do século XVIII, graças a táticas de guerrilhas nas selvas, os Botocudos
resistiram e eram senhores dos territórios entre os rios Doce, São Mateus, Cricaré, Pardo e
Mucuri. Tal conjuntura, contudo, não se manteve no século XIX. A partir daí, a expansão das
fronteiras da sociedade nacional ocorreu com força e determinação justamente sobre os
territórios até então ocupados por eles.
Assim, havia um território pleno de domínio e práticas. Outro elemento importante
que reforça a necessidade da desconstrução da tese do vazio como uma constatação
declarando ser uma tentativa de esvaziamento e subjugação.
Desta forma, as dificuldades diante do vazio transparecem no fato de que o aparato
militar presente na província no século XIX visava, preferencialmente, “evitar as surpresas
dos índios que habitavam a região”, segundo Teixeira de Oliveira. Observemos, portanto que
o habitar aqui está relacionado com o sentido do domínio. Assim a presença é percebida na
forma dos conflitos e dos limites. O mesmo autor diz que, em 1808:
Sendo rodeado de gentio inimigo todo o perímetro da colônia, desde a barra do Rio
Doce até a barra do Rio Paraíba do Sul, não se entranham os colonos para o centro do
sertão, disputando, todos, os terrenos da praia, mas nunca deliberando-se a ir formar
estabelecimentos onde os matos estão sem donos e a abundância abandonada ao corpo
do gentio (TEIXEIRA DE OLIVEIRA, 1975, p. 247).
Atentemo-nos para o paradoxo, pois “os matos estão sem dono”. Os matos
representam a abundância. Os colonos disputam os terrenos da praia. Dono aqui é no sentido
jurídico colonial. Mas que ali não está presente, no abandono, fora dos domínios coloniais. E
nesta abundância, nas matas, residiam, no sentido de domicílios e habitar, o corpo dos
gentios, mas inimigos. E este habitat também o era para os significados, não somente para os
significantes. Assim, se antes da chegada dos portugueses a Terra sem Males ficava no litoral,
com a presença do colonizador, os tupis a imaginavam agora no sertão e cada vez mais para o
interior (FIABANI, data, p. 260). Desta forma a Terras sem Males vai representar a aversão
ao colonialismo.
No século XIX foram declaradas guerras de extermínio aos índios, entre as principais:
aos Botocudos, em 1808, e aos Pataxós, em 1806. Neste momento vários grupos passam a ser
agrupados, primeiramente na Aldeia do Destacamento (Piraqueaçu), no Aldeamento Imperial
77
Afonsino (margem esquerda de Castelo) e, posteriormente, no Posto Indígena de Pancas. Esta
política de integração, que atravessa o século XX, era correlata a da invisibilidade associada a
de inevitabilidade do desaparecimento dos índios.
Principalmente após o declínio da mineração e o retorno dos conquistadores ao litoral,
esta política promovia o fechamento dos territórios tradicionais indígenas, ao norte pela
Bahia, a oeste por Minas Gerais e a leste pelo Espírito Santo.
A questão da segurança continuou sendo por muitas décadas um dos problemas
centrais que punham em risco a sobrevivência dos encraves luso-brasileiros de conquista e de
colonização da região. Pior ainda, tão logo começou a guerra e a intensa repressão contra os
índios do rio Doce, os contra-ataques se espraiaram por toda a capitania. Isso era uma
decorrência lógica da repressão sofrida e da crescente desorganização social e econômica das
tribos afetadas pela política repressora de D. João VI. Com a perda de seus territórios
tradicionais, a sobrevivência das tribos ficava cada vez mais comprometida. Fome, guerras
intertribais e ataques contra os enclaves da sociedade luso-brasileira, fosse como represália ou
como forma de obter alimentos e ferramentas de metal, tornaram-se cada vez mais frequentes.
A chegada, por exemplo, de trinta índios ao núcleo colonial de Santa Leopoldina em busca de
comida, em 1876, causou grande espanto entre os italianos que começavam a colonizar partes
do território do Espírito Santo.
A lógica deste domínio foi a ocupação centrada no litoral e nos portos, como os de São
Mateus, Conceição da Barra, Regência, Barra do Riacho, Santa Cruz, Vitória, Guarapari,
Anchieta e Itapemirim. Alguns são comarcas antigas como a de São Mateus (1833) e
Itapemirim (1835). Os Vales aparecem como áreas de interesses comuns, onde os rios são
prolongadores das atividades litorâneas/portuárias. Desta forma as primeiras comarcas
fundam-se em vales e em cada bacia secundária cria-se uma nova divisão. As diretrizes do
povoamento baseado em portos colocavam estrategicamente a existência de somente um porto
de grande calado, Vitória.
Dentre os portos menores destacavam, ao norte, Conceição da Barra e São Mateus, até
o último quartel do século XIX eram entrepostos de vulto (madeira, farinha de mandioca,
café, pedras e areia). E ao sul, o de Itapemirim como porta de entrada para a colonização. 7
Segundo Vilma Almada (1984), a região de Itapemirim pode ser entendida como
periferia da expansão do Vale Paraíba do Sul, a partir de Campos. Esta região torna-se a mais
populosa do estado a partir de 1870, impulsionada pelo café, que suplanta a produção
7
Em 1920, o sul representava o índice de 17,7 hab./km.² enquanto o norte ma atingia 0,72 hab./km² (Pacheco –
116).
78
canavieira em 1850. Esta expansão vai sendo favorecida pela abertura da possibilidade de
apropriação de terras devolutas pelos fazendeiros. Em 1861 existiam 4.688 posses legitimadas
no ES. O confuso e centralizador processo de regulamentação da Lei de Terras de 1850, em
1854, e as reviravoltas entre compra ou legitimação, ao longo de várias décadas, fragilizou os
posseiros favorecendo a formação de latifúndios. Os legitimadores se utilizavam da grilagem,
a partir da “legitimação” de registros anteriores a 1854. Este processo vai sofrer
transformações a partir de 1870 quando as vendas de terras públicas passam a ser mais
evidentes.
O café começa a aparecer com alguma importância na província em 1812, quando já
era exportado e, em 1851 ultrapassa os demais produtos de exportação. Para Cícero Moraes,
com o café começa “a conquista do interior do Estado. Era como um assalto a uma fortaleza
bem defendida... toda a zona entre o Rio Doce e Itabapoana se emprenhava no combate. A
cidadela, aos poucos, se rendia” 8 (MORAES, 2004, p.118). Portanto havia fortaleza, existiam
sujeitos nelas que eram visíveis, combatiam e defendiam-se contra o assalto que se
avolumava.
Assim, até o início do século XIX, a questão central para a empresa colonial
portuguesa para a instalação da província espírito-santense foi, sem dúvida, a necessidade de
desterritorialização indígena e sua subjugação na forma de mão-de-obra nas fazendas, nas
vilas, nos aldeamentos, nas roças e no exército.
Neste momento, uma série de fatores e dinâmicas territoriais influi para a mudança do
padrão de conflitividade na província. Entre estes fatores e dinâmicas territoriais podemos
citar: a desagregação da economia de base jesuíta; a crise da mineração e o retorno ao litoral
com seus capitais e escravos dos conquistadores; a vinda da família real para o Rio de Janeiro;
a expansão econômica para o norte fluminense atingindo o sul capixaba a partir de Campos; a
expansão do vale do Mucuri no extremo sul da Bahia, que foram favorecidos pela entrada
maciça de escravos africanos. A posterior entrada de imigrantes europeus vai fortalecer estas
novas dinâmicas.
Mas se estas novas dinâmicas territoriais vão fortalecer o domínio das terras indígenas
pelo processo colonial, paradoxalmente vai representar novos e intensos focos de conflitos,
colocando, em diversos momentos, esta empresa colonial em perigo.
8
Moraes, p. 118.
79
Assim, em simultaneidade com a Revolução Francesa, com a Revolução Industrial e
com o início das independências americanas, a província capixaba inaugura sua modernidade
sob o signo da escravidão.
Por isso, para lembrar que o moderno e o colonial não significam exatamente fases de
um processo evolutivo, recordemos as explicações de Felipe Angel (2002) la deuda de la
Modernidad con el resto de la historia se aclimata dentro del ámbito negativo que niega algo obvio,
algo que los precursores modernos en cada saber, en cada ciencia, siempre tuvieron en cuenta: la
Modernidad se edifica porque la cultura se reconstruye sobre conocimientos anteriores. Assim, neste
exato momento, fins do século XVIII e início do século XIX, é que começa a ganhar
dimensão expressiva o número de escravos na província, principalmente localizados nas
regiões de Vitória, Itapemirim, São Mateus e Reis Magos. Segundo Nara Saletto (1996), em
1824 existia no ES 13.188 escravos e 22.165 livres, sendo 8.094 brancos, 5.788 indígenas,
2.682 negros e 5.601 mulatos. A grande maioria destes utilizados nos trabalhos agrícolas
(incluindo aí todos os momentos da produção e circulação), mas também nos serviços
domésticos e como operários. Tentativas de liberdade são registradas com frequência na
província desde o início do século XVIII.
Segundo Teixeira de Oliveira, no século “vinham formando numerosos quilombos nas
brenhas próximas às fazendas e povoados” (OLIVEIRA; 1975, p. 331). Estabelecia-se uma
Guerra sem quartel aos quilombos. Segundo o autor, Queimado é um episódio na luta que os
negros iniciaram no dia em que se viram cativos. (OLIVEIRA; 1975, p. 331).
Também verifica este fato Stella de Novaes, para quem “avultava o perigo dos
quilombos nas matas próximas das fazendas e povoações, porque lutavam as autoridades para
conseguir meios de combatê-los”. (NOVAES, p.186)
Observem que estes se localizavam nas brenhas e nas matas próximas das fazendas e
povoações e a guerra deveria ir para além dos quartéis, colocando assim a questão do
domínio.
Diversas foram as leis e regras que deixavam claras as ordens para a destruição de
quilombos. Diversos relatórios e mensagens dos administradores da província relatam a
insegurança diante dos inúmeros quilombos. Várias destas mensagens relatavam revoltas, ou
eminência de, em várias localidades da província. Citamos algumas: Serra (1822), São Mateus
(1827, 1851, 1866), Itapemirim (1831, 1835, 1871), Queimados (1849, 1871), Santa
Leopoldina (1871). Apesar disso tudo entre 1874 e 1884 houve um aumento de 14,3% no
número de escravos.
80
O aquilombamento foi uma constância no período escravista. Entendido como a
tentativa de construção de uma estrutura definitiva após os atos de rebeldia, o quilombo foi
também uma experiência múltipla e com enormes variações. Os nomes e os critérios para se
definir esta tentativa também foram vários.
Os quilombos tinham como necessidades, ao mesmo tempo, a construção de condições
de sobrevivência e a reprodução sociocultural. Assim, alguns elementos serão fundamentais, à
época, para definir um quilombo, pois a partir desta definição será considerada a quantia a ser
paga ao capitão do mato. Estes elementos se constituirão principalmente de um local de
moradia, casebre ou palhoça, uma roça e alguns equipamentos, como o pilão e a farinheira.
Mas, na perspectiva da reprodução material e imaterial, outros elementos se agregam, tais
como, a presença diversificada de gênero e geração, das hierarquias, das festas e das crenças.
Portanto era a construção de uma nova territorialidade. Não um retorno. Assim os
aquilombados vão necessitar constituir não somente um local de referências e as referências
do local, mas também um conjunto de saberes que, por mais que possamos falar de memórias,
serão novos. Mesmo porque tradições são reinventadas em vários sentidos. Primeiro o tempo
percorrido, a experiência da escravidão, dos atos de rebeldia e, agora, da necessidade da
vigilância, defesa e sobrevivência, na mata tropical brasileira. Assim a produção das
condições de sobrevivência a partir das condições naturais encontradas no local escolhido
para o quilombo é reprodução e produção do novo.
Dos seus locais de origem de que foram arrancados, dos locais de passagem pelas
rotas comerciais aos locais de trabalho na província, foram muitas as partilhas. O quilombo
vai representar uma síntese deste processo, pois há um sentimento de solidariedade e
pertencimento para além das diferenças. Da diferenças advindas de diferentes locais de
origem, de diferentes línguas, de diferentes ecossistemas, de diferentes crenças, de diferentes
reis e rainhas e de diferentes processos de escravidão e atos de rebeldia. Diferentes
experiências, portanto, mas com um sentido comum.
Entre os quilombos, a fazenda e a vila, toda uma série de outros elementos se
constituirão como a troca, os caminhos, os segredos, as estratégias, as colaborações e as
traições. Mas também existiram as permissões, já que muitos quilombos eram altamente
produtivos e muitos escravos fugidos eram reutilizados e protegidos por outros senhores.
Para se ter uma ideia da importância que vão representar os escravos neste momento,
cabe dizer que as fazendas contavam com pilões de café, engenho de serra e torno,
farinheiras, engenho de pilar arroz, de cana-de-açúcar, olaria, ferreiro, moinho, curral, paiol
81
de milho, ferraria, olaria, fornos, lavador de café, senzalas, canaviais, roças, enfermaria.
Porém todas estas benfeitorias não somavam 10% do valor das terras. As terras e os escravos
somavam mais de 80% do valor total e os escravos valiam muito mais que a terra.
Com a evidência do fim da escravidão e o envelhecimento da população escrava, os
fazendeiros escravocratas, diante das constantes revoltas, do clima de terror constante e da
percepção de que o extermínio dos escravos significava o desaparecimento do senhor
enquanto classe, buscavam mecanismos mais sutis de preservação da mão-de-obra cativa, por
meio da sujeição pessoal, paternalismos, apadrinhamentos, casamentos, promessa de herança,
alforria gratuita em troca de favores e prestação de serviços.
Em 1865, com o fim da escravidão nos E.U.A, o Brasil passa a ser a única nação
independente da América com escravidão.
De 1864 a 1870, na Guerra do Paraguai, foi utilizado um grande contingente de
escravos no exército. Data de 1886 um decreto libertando escravos que serviram no exército.
Estes foram indícios fortes para que os fazendeiros do estado não se apercebessem da
iminência do fim da escravidão. Já em 1869 foi aprovada uma lei na província do Espírito
Santo autorizando gastos com alforria de escravos e começa a criação dos clubes
abolicionistas no estado. Mas, em 1871, na votação da Lei do Ventre Livre, os dois
representantes da província votaram contra. Esta atitude não é contraditória com o fato de
que, entre 1876 e 1885, somente 2,15% dos escravos na província foram libertados. Estes
elementos demonstram as resistências ao fim da escravidão, centradas na Lavoura e no
Comércio, a partir de 1871. Tanto que, ainda em 1885, o presidente da província cria uma
Companhia de Guerrilha para perseguir os que buscavam a liberdade nas matas. Mas neste
mesmo ano, 1885, os jornais da província se negam a publicar anúncios de escravos
“fugidos”.
Os fazendeiros buscavam manter o status quo, propunham a libertação gradual a partir
da instrução e educação “orientadas a lutar pela vida”. Mas fica cada vez mais difícil quando,
em 1886 se institui a lei que proibia o açoite. No desespero, entre 1887 e 1888, várias foram
as tentativas dos fazendeiros de substituição por contratos de salários. Em dezembro de 1887,
os fazendeiros do Itapemirim ofereciam garantias e vantagens para que os trabalhadores
continuassem nas fazendas com a promessa de que em 31 de dezembro de 1890 seriam
libertos. No início de 1888, dava-se a abolição como certa e os fazendeiros eram orientados a
fazerem-na por contra própria como forma de manter os escravos nas propriedades.
82
Ante a aparente passividade dos fazendeiros diante do crescimento da imigração e da
iminência da abolição, Carlos T. Campos Jr. (2002), diz que:
[...] os fatos denotam a presença, naquele momento, de interesses mais fortes do que
os da grande propriedade no Espírito Santo... As evidências dos interesses dominantes
expressavam-se nas estratégias empresariais dirigidas pelo comércio. Subordinando a
pequena produção que se multiplicava no Espírito Santo, o comércio apresentava-se
dessa forma como alternativa de continuidade à produção, mantendo o processo de
exploração, mas em novas relações... A indiferença das frações do capital
representativas do interesse da grande propriedade frente à política de imigração
expressa o seu contrário: a importância econômica e política do comércio (...) Como
não ocorreram modificações nessa política em âmbito local, difundiu-se a pequena
propriedade em relações de trabalho familiar no Estado a partir da região central,
reforçando a subordinação da produção ao comércio (...) O excedente vazava da
produção para o comércio, fazendo deste o grande centralizador de capitais. Desde o
vendeiro, residente na região produtora, até as casas comerciais sediadas em Vitória,
formava-se uma rede de suporte, tanto da exportação quanto da importação de
mercadorias (CAMPOS JR., 2002, p.36).
Após 1888, dois processos acontecem nas antigas fazendas escravocratas: os meeiros e
o parcelamento das propriedades para a colonização. Ao mesmo tempo houve um
significativo aumento da produção cafeeira, que duplicou de 1892 a 1897. E, conjuntamente,
há o aumento do preço das terras, do preço do café e o abandono dos velhos cafezais.
Vários trabalhos de pesquisa vêm mostrando que, após o fim da escravidão, muitas das
experiências se mantiveram em várias regiões do estado. No início do século XX, a região
fronteiriça entre o Espírito Santo e a Bahia era predominantemente ocupada por comunidades
camponesas, caboclas, pescadoras e quilombolas que tiravam seu sustento do uso extrativista
do meio natural. Ali, a rica floresta tropical atlântica, agrupando mata densa nos terrenos
sedimentares terciários e áreas alagadiças nas planícies de inundação dos rios, apresentava a
fartura suficiente para suprir estas comunidades de água, peixe, carne, frutos, madeira, ervas e
raízes medicinais. A fartura estendia-se à terra: no “sertão” de Itaúnas, a “terra era a rola” e
apropriada pelas posses que passavam de pai para filho. Esta situação favorecia o uso
comunal dos recursos oferecidos pela floresta e, assim, concretizava o território das
comunidades. (FERREIRA, 2002)
Assim, diante dos conflitos com os indígenas e africanos, a imigração foi uma decisão
política territorialmente estratégica. A título de exemplo, citamos o relatório do cônsul Nagar
sobre a colonização italiana no Espírito Santo. Escrito em 1895, o relatório consular é uma
importante fonte para a pesquisa do processo de colonização e imigração, fato, aliás,
ressaltado na apresentação escrita por Agostino Lazzaro. Contudo, na mesma apresentação
83
podemos ler que "a imigração italiana, germânica e polonesa, entre outras, teve como objetivo
primordial, no Espírito Santo, a colonização e o povoamento do grande vazio demográfico
que era o seu território no século XIX".
Campos Jr. (2002) diz que a imigração foi o marco espacial do território capixaba, ou
seja, da ocupação territorial. Considera os movimentos ao sul por mineiros e fluminenses e o
movimento da formação das colônias de imigrantes de açorianos, alemães, suíços, italianos e
pomeranos: Santo Agostinho (1813), Santa Izabel (1847), Santa Leopoldina (1857), Rio Novo
(1834) e Franscilvânia (1858).
Assim, se a imigração representa por um lado um importante elemento da formação
agrária camponesa no Espírito Santo, por outro possui o sentido de reforço do domínio sobre
os territórios tradicionais indígenas e de enfraquecimento da importância relativa aos
africanos nas estratégias de produção.
O que movia esta necessidade de mão-de-obra e expansão territorial era o complexo
cafeeiro que, expandindo do norte fluminense adentra no sul capixaba, dinamiza a tradicional
região canavieira e atinge novas áreas, principalmente na região serrana. Nesta área, a baixa e
a alta serrana, será o território por excelência do café. Sempre buscando novas áreas, a
princípio subindo os vales fluviais, vai fortalecendo o domínio territorial sobre os indígenas.
Através da fundação de portos, colônias, vilas, pousos, entrepostos, roças, caminhos,
comunidades rurais e igrejas, um novo espaço de relações se forma a partir do preexistente.
Assim, logo após 1808, foram introduzidos açorianos em Viana e espanhóis em
Linhares. A estas primeiras iniciativas tímidas outras se somaram, mas também malograram
enquanto condição de substituição do suprimento escravo. Estas primeiras iniciativas eram em
forma de parcerias, nas quais o migrante pagava com seu trabalho os custos de transporte,
instalação, alimentação e equipamentos, resultando em condições similares à escravidão.
O primeiro grande eixo de penetração do movimento imigratório foi o Vale do Rio
Santa Maria da Vitória-Santa Leopoldina. O lado norte desta zona, já no vale do Rio Doce,
vai demorar vários anos para receber a penetração dos colonos, tendo formado núcleos
somente no final do século XIX. No norte do Rio Doce a resistência indígena ainda era forte,
na Serra dos Aimorés, pois as condições climáticas e a zona do contestado foram obstáculos à
fundação de colônias.
Em 1846, de uma população estimada em 49.092, 29% eram brancos e destes somente
648 eram europeus ou 1,32 %. A partir de 1847 começa a chegada mais intensa de imigrantes,
como os alemães, nos vales dos rios Jucu e Santa Maria da Vitória, e logo mais nos rios
84
Guandu, Santa Maria do Rio Doce e Piraqueaçu, Benevente e Itabapoana. Logo após também
chegam os italianos, nos municípios de Santa Teresa, Castelo, Rio Novo do Sul, Itapemirim,
Colatina e São Mateus. Após a década de 1920, este fluxo segue para o norte com a
construção da ponte do Rio Doce em Colatina, em 1928. Juntam-se a estes os poloneses,
austríacos, belgas, luxemburgueses, gregos, holandeses, espanhóis, sírios e libaneses.
O número de habitantes não indígenas na província era baixo até 1870, com pouca
ocupação interiorana, mas com a colonização, aumenta o contingente populacional disputando
a ocupação do território. Mas é principalmente após 1870, com o subsídio do governo, a partir
de contratos com particulares nos quais o governo pagava um valor por imigrante, referente
aos custos do translado e disponibilizava terras, que se incrementou definitivamente a chegada
de imigrantes não escravos. De 1847 a 1887 entraram no ES aproximadamente 15.000
imigrantes e de 1888 a 1896 entraram aproximadamente 27.000 imigrantes.
Este processo pode ser descrito na perspectiva das frentes colonizadoras, aquela que
avança com suas fronteiras e entradas, produzindo as cidades de bocas do sertão. Tivemos
Castelo (em pleno século XVIII, com suas estradas de rodagem e posterior ferrovia), Santa
Leopoldina (com seu porto, casarões e rebocadores de café), Alfredo Chaves (ponto final da
navegação do Rio Benevente), Colatina (e a intersecção da ferrovia e da ponte sobre o Rio
Doce) e Nova Venécia com a estrada de ferro e posterior rodagem.
Segundo Cícero Moraes (2005) as lavouras se estendiam nas encostas do terreno
ondulado e os caminhos se abriam em todas as direções. Surgiam esperançosos povoados.
Parecia que a própria terra estremecia de impaciência, ansiosa para entregar a sua riqueza a
quem soubesse procurá-la. As colônias prosperaram porque, além de não disputarem terras
com os fazendeiros, os colonos pagavam pela terra e produziam o café, alimentando o
mercado. Por isso, teria havido o distanciamento dos fazendeiros, até indiferença, com as
políticas de imigração. Somente após 1888 é que se verificaram indícios de disputa e a
desestruturação das antigas fazendas escravocratas com as saídas via parcerias, vendas e
parcelamento.
Paradoxalmente “os produtores não controlavam a produção” (CAMPOS JR., 1996, p.
84), pois estavam inseridos em um especulativo esquema de comercialização. Este paradoxo
que mostra “a ocupação do interior”, que “configura uma forma predominante de produção
em pequena propriedade com trabalho familiar” e ao mesmo tempo “explicita outro tipo de
classe: a dos setores do comércio cafeeiro”. (CAMPOS JR., 1996, p. 84)
85
Assim, ao final do império, a província encontrava-se sob um processo contraditório
de expansão do domínio territorial moderno-colonial, mas com o uso de populações
mobilizadas. Mas apesar disso, a república inicia-se procurando demonstrar a superação do
período colonial. Considerava superado o problema indígena porque os vestígios da presença
indígena estavam sendo “suprimidos”. A questão da escravidão tinha sido superada pela
abolição e a queima dos arquivos. O problema da ocupação territorial e da produção para o
mercado havia sido superado pela imigração e pela propriedade privada da terra.
Mas apesar desse intenso processo, somente a partir de 1871 é que o valor dos
escravos cai suplantado pelo da terra. E, ao final do Império, dos 7.699 km2 de áreas ocupadas
por particulares apenas 2.831km2 eram garantidas e legitimadas, 3.368km2 eram nulas ou
criminosas e 1.322 km2 foram vendas de lotes coloniais. Estes 7.699 km2 representavam
769.900 hectares e 15 % do território da província.
Quando a Constituição de 1891 transferiu para o domínio patrimonial dos estados o
domínio das terras devolutas, o Espírito Santo recebeu, portanto, cerca de 4 milhões de
hectares sem título legal. Logo em seguida, em 1892, o Espírito Santo elabora sua primeira lei
para regularizar a situação das terras, através da legitimação das posses e a venda das terras
desocupadas. Assim, no início da república, quase todo o território capixaba era constituído
por terras tornadas devolutas e coberto por florestas.
Marta Zorzal e Silva (1995) apresenta os eventos da Abolição da escravatura (1888), a
Proclamação da República (1889) e a Assembleia Nacional Constituinte (1890– 1891) como
significativos para o entendimento da história capixaba. Isto porque parte do entendimento de
suas transformações, principalmente quanto às normas, aos direitos, centrado na análise do
estado, ou seja, do direito burguês, apesar destes eventos não terem apresentado todos os
elementos e que a reprodução ampliada de relações capitalistas de produção se completa
somente em 1930. Mas com relação aos aparelhos do Estado, com o fim da monarquia e com
a república constitucionalista (1891) e maior autonomia das províncias, enquanto unidades
federadas numa federação, ou seja, num quadro republicano federativo, as unidades possuem
maior margem de manobra. Pressupõe também a mudança nas estruturas de classe, de
escravatura para capitalista, a transformação do quadro sócio-econômico marcado enquanto
colônia exportadora de matérias primas, ajuntado de unidades primário-exportadoras em
vários estágios de evolução, tendo como elo o mercado nacional de escravos.
Deste contexto surgem clivagens territoriais e sociais derivadas do pacto das
oligarquias rurais com o capital mercantil-exportador e do emergente capital industrial num
86
Estado-oligárquico e elitista. Em 1900, no governo Campos Sales, na conhecida política dos
governadores, ganha o reconhecimento das situações dominantes em cada estado, tendo como
central as oligarquias do capital agromercantil.
Assim, a elite local, ex-escravista e com o controle do comércio passa a comandar o
domínio territorial e a política sobre as terras tornadas devolutas no ES.
Já em 1920 tínhamos no ES uma área regularizada de 1.278.699 hectares, dos quais,
89,35% do número de propriedades eram de até 100 hectares, correspondendo a 52,01% da
área total ocupada. Entre 101 a 1000 hectares correspondiam a 10,23% do número de
propriedades e 37,39% da área total ocupada. E as propriedades acima de 1001 hectares
correspondiam a 0,37% do número de propriedades e 10,70% da área total ocupada.
Em 1940, já com 1.966.517 hectares regularizados, 91.42% do número de
propriedades eram de até 100 hectares, correspondendo a 60,59% da área. As propriedades de
101 a 1000 hectares correspondiam a 8,43% do número de propriedades e 34% da área. As
propriedades acima de 1000 hectares correspondiam a 0,14 do número de propriedades e
4,36% da área. Segundo os dados do IBGE, 66,3% do território capixaba era coberto por
florestas nativas em 1950.
A população cresce, do ano de 1872 ao de 1940, em torno de 500%, de 82.137 para
750.107 habitantes, na sua grande maioria vivendo fora das cidades.
Com a construção da ponte sobre o Rio Doce em Colatina, na década de 1920; com a
construção da estrada de rodagem entre São Mateus e Vitória, na década de 1930; com a
construção da ponte sobre o Rio Doce em Linhares, na década de 1940; com a construção da
ponte sobre o Rio Cricaré, na década de 1950; e com a melhoria das condições de transporte
entre Vitória e o sul da Bahia, são promovidas a abertura de outras frentes de expansão.
Neste contexto são inúmeros os conflitos envolvendo a questão da posse e da
propriedade destas terras. Litígios territoriais se misturam com conflitos pela posse das terras
numa “região” onde as forças políticas, policiais e militares também não se entendiam.
Emerge aqui a categoria de posseiro, como síntese e ocultamento da diversidade dos
desterritorializados. O olhar sobre a região litigiosa nos ajuda no entendimento deste contexto.
Nesta região, na década de 1920 a chegada das primeiras lavouras de café. Com o
início da questão litigiosa, a partir de 1937, as ocupações por policiais mineiros passam a ser
constantes incitando a ocupação, por demais mineiros, desta porção do território. Em 1940,
com a abertura da estrada via Águia Branca, começa a chegada dos imigrantes, inicialmente
alemães e italianos.
87
As incursões e as extorsões contra posseiros, a violência contra colonos, a disputa pelo
registro das terras e pela cobrança de impostos, a ameaça de morte aos agrimensores e
recenseadores são expressões das disputas por terras e por minas de Águas Marinhas e
Turmalinas. As ordens dos vários lados envolvidos eram para tomar posse da região e
derrubar matas.
Nesta região, o número de caboclos e posseiros era grande, principalmente na
produção de pecuária, milho, café, arroz e feijão. A base da alimentação era constituída de
carne de porco e galinha, laranja, banana, mexerica, mamão, taioba, couve, almeirão, batata-
doce, aipim, abobrinha, arroz, feijão, milho e mandioca. Estes moradores também viveram a
violência da disputa de terras, os conflitos de interesse de diversas ordens, as rivalidades
políticas e a demonstração de força.
O caminho que vinha de Minas Gerais trouxe, já no início da década de 1930,
posseiros. Pequenas famílias e seus filhos que “possiou, cortou mata, derrubou, fez um
rancho”, um “trabalho braçal e infatigável”, “plantando”, “trouxe gente de minas”, pregam o
mutirão e doam terras a capuchinos. Estes capuchinos vinham do antigo Aldeamento
Itambacuri, montados em 1873, via Filadélfia, colônia montada por Teófilo Otoni em meados
do século XIX (hoje a cidade leva seu nome). Nas primeiras décadas do século XX chegam à
zona do contestado e são conhecidos como os vigários das matas. Deles diziam à época: “não
há outro que como ele conheça esse vasto território. Ele andou a descobri-lo, abrindo
caminhos, dando nome a ribeirões desconhecidos, erguendo dezenas de capelas, levantando
cruzeiros e criando povoados que são hoje cidades”. (GODOFREDO FERREIRA, apud
PALAZZOLO, p. 25)
A questão central desta ocupação era a presença dos indígenas, pois recuando do
litoral os Machalis, os Nak-Nanuks, os Giporoks, os Macunés, os Aranás, os Urucus, os
Pijichás, os Crisciúmas, os Tá-monhecs, os Potés, os Patachós, além de Kracatã, Cujam,
Jerunhim, Nerinhim, Hen, Jakjat, Rimbé, Krumm, Nhan-nhan, Camri, Pmacgirum, entre
outros, se fixaram na extensa faixa de terra que se encontra situada no vale do Rio Mucuri,
estendendo-se ao nordeste e noroeste até alcançar o Rio Jequitinhonha, até o Rio Doce e
Suassui Grande. Essas tribos integravam a poderosa e temida nação Botocuda. Para
aldeamento, estes indígenas apresentaram bastante “dificuldades”, principalmente os pojichas,
que habitavam as matas do Rio São Mateus, isto até 1909, quando é acertado “um acordo de
paz” com o líder Pojichas.
88
Estes vão percebendo o avanço gradativo de lavradores, lenhadores, madeireiros,
caçadores, grileiros e posseiros sobre as terras do alto São Mateus, “disponíveis e com matas
frondosas” e sobre elas machado, facão, picadas e clareiras, por capixabas, mineiros e baianos
(PALAZZOLO, p.43).
Em 1918 se instalam colonos em Pancas; em 1928 inauguram a ponte em Colatina, os
italianos chegam em São Domingos, os poloneses sobem o Rio São José; em 1934 expande o
corte de madeira no vale do Cotaxé; em 1939 os colonos baianos atingem o alto do vale do
Rio Itaúnas e fundam a vila de Mucurici. Estes representavam “o migrante, tornando-se
posseiro, esbarrava com a dificuldade de regularizar suas terras”. (PALAZZOLO, p.44)
A Lei que regulamentava a ocupação de terras em vigor, naquele momento, era a N°
1.711, de 1929, que garantia como legítima, independente de títulos, a quem ocupar terras
com moradia habitual e culturas efetivas.
Em laudo do Serviço Geográfico do Exército de 1941, diz que, até 1927, toda a região
ao norte do Rio Doce foi descrita como “desconhecida” e “devoluta”, “vida quase primitiva”,
“isolamento”, “população vivendo por si mesma”, “terra de ninguém, território abandonado,
esquecido ou ignorado, fora de qualquer influência juridicional”. Termos que indicam o
processo de sua intencionalidade de justificação da tese do vazio demográfico e sua
consequente ocupação. Os posseiros não tiveram acesso aos procedimentos jurídicos de
legitimação das terras, ficando numa situação de fragilidade diante da violência. Assim, por
serem “glebas indivisas com fronteiras fluidas”, como observa Palazzolo, a transformação em
terras devolutas é instrumento jurídico para sua transformação em terras de ninguém e, assim,
ser repassada a quem interessar, ou tiver poder para isso (vide a Lei N° 257, de 1949) na qual
o governo do estado concede gratuitamente à empresa mista de imigração e colonização uma
área de terras devolutas com 65.000 hectares, situada nos municípios de São Mateus e
Conceição da Barra.
O contexto agrícola, mostrado pelos dados do Censo Econômico de 1950, era de
expansão das áreas de propriedades particulares e a expressiva presença dos posseiros,
parceiros, ocupantes, caboclos, negros e pardos, além dos migrantes e trabalhadores
nacionais, demarcando o espaço agrário do território. Lembramos, a partir da seguinte tabela,
que este aumento era expressivo nas últimas décadas.
89
Tabela 4 - Número e Área das propriedades - Espírito Santo - 1920, 1940 e 1950
Apesar disso, em 1950, ainda existia uma grande área de florestas, principalmente em
Conceição da Barra, Linhares, São Mateus, Colatina e Aracruz, respectivamente com 74%,
67%, 51%, 48% e 35% de matas do total da área das propriedades.
Sobre este espaço rural é importante salientar, de início, sua importância para o estado.
Um espaço que encontra na sua base de sustentação produtiva a pequena agricultura familiar,
os indígenas, os afro-descendentes, os posseiros e parceiros, mas que não são sua sustentação
política. Um paradoxo, pois este poder era bem urbano e mercantil.
Quando falamos em base agropecuária na pequena agricultura é porque, pelos dados,
em todas as regiões do estado, assim aparece. As propriedades de até 100 hectares ocupam a
maior parte das áreas cadastradas em 1950. Existiam variações entre os municípios, mas
atingia, em alguns municípios, altos índices como em Santa Leopoldina com 78 %.
A produção possuía na família a força produtiva principal, à época, atingindo em
alguns municípios mais de 80% da força de trabalho, como em Domingos Martins e Santa
Leopoldina, mas os parceiros também eram bem expressivos atingindo 60% em Mimoso do
Sul, ultrapassando 50% em Cachoeiro do Itapemirim, Muniz Freire e Castelo.
Esta agricultura de pequena escala e familiar em grande maioria produzia uma larga
gama de produtos. Alguns destes produtos eram produzidos em todas as regiões, como o café,
o feijão, o arroz, a cana-de-açúcar, a banana, a mandioca além da criação de animais.
Entretanto sua distribuição não era homogênea.
Assim a partir de alguns municípios selecionados e representados na tabela abaixo, em
1950, verificamos que poucos são os produtos que possuem uma produção inexpressiva nos
municípios.
90
Tabela 5 - Porcentagem da produção municipal dentro da produção total dos produtos no Espírito Santo
–1950
91
importância ao espaço fora da capital, destacando principalmente em Cachoeiro do
Itapemirim com 19,34%, Colatina com 5,22%, Castelo com 2,42% e Afonso Cláudio com
1,36%.
Assim, é com razão a afirmação de que a indústria no Espírito Santo, até por volta dos
anos 50, “estava muito mais no campo e em lugares do interior, próximos da produção
cafeeira, do que localizada na capital do Estado”. (CAMPOS JR., 2002, p. 45)
A importância da agricultura diversificada nas regiões do estado fica nítida em todas
as atividades, com algumas exceções. Assim também os municípios analisados possuem uma
expressiva densidade de culturas. Há uma razoável diversidade de atividades por área e uma
boa distribuição das culturas, gastos e investimentos em todas as regiões. Podemos afirmar
que não há um processo de especialização e monopólio na relação área/atividade neste
período.
É neste contexto que, em 22/01/1952, é publicada a Lei N° 617 que trata das terras
devolutas do Estado. Segundo a mesma, as terras que o estado considerava incorporadas aos
domínios particulares não poderiam constituir latifúndios. Limita a área de concessão a 100
hectares dando preferência àqueles que ocupavam com culturas e moradia habitual. Diz ainda,
a lei, que propriedades acima de 10.000 hectares seriam incorporadas aos domínios
particulares somente com a aprovação do Senado.
Assim, chegamos a este contexto com inúmeras dinâmicas territoriais distintas entre si
e muitas vezes antagônicas. A população tanto urbana como rural repercute no grande
dinamismo territorial no Espírito Santo. Vejam os números do crescimento populacional do
estado na primeira metade do século passado.
O crescimento da população urbana foi maior que a rural; mesmo assim, em 1960, a
população rural era de 808.976 pessoas e a urbana 379.689 pessoas. O rural estava em grande
crescimento também. Como vimos, cresceu substancialmente no norte, que foi a zona de
maior crescimento um pouco acima da zona do baixo Rio Doce, sendo que o município onde
mais cresceu sua população foi Conceição da Barra, fundamentalmente rural, seguida de
Nova Venécia e Linhares. Destaca-se também o recuo de vários municípios do sul.
92
Outro elemento também importante deste crescimento é o da área total de
propriedades agrícolas, dando continuidade ao processo já comentado anteriormente. A tabela
a seguir apresenta os números absolutos.
Tabela 8 - Número de Propriedades e área em hectares - Espírito Santo - 1940, 1950 e 1960
93
A ideia de vazio agora foi atualizada a partir da definição jurídica de terras devolutas e
de posseiros. A prática do poder no Brasil que até aquele período alijava do reconhecimento
do direito os homens e principalmente as mulheres não proprietárias, faz com que também
não sejam reconhecidas as diferenças. Assim o termo posseiro representa já a invisibilidade. E
o termo terra devoluta também porque esconde outras possibilidades de uso da terra que não a
partir da prática jurídica da propriedade privada da terra.
As expressões “de ocupação recente” e “grande vazio demográfico” relativas às zonas
do território, que aparecem diversas vezes nos documentos analisados, apontam para a
transformação de algumas zonas onde ainda as matas e inúmeras comunidades indígenas,
quilombolas, núcleos familiares, pescadores, pequenos agricultores familiares e outros,
habitavam em propriedades privadas individuais.
Assim como, do vazio, estão excluídos os espaços derivados do processo imigratório,
principalmente de europeus a partir do século XIX, é possível concluir que este recorte tinha
um fundo que se ligava à noção de moderno. As imigrações e suas populações e espaços se
diferenciavam das r-existências (PORTO-GONÇALVES, 2006) indígenas e quilombolas e de
seus espaços e população derivados. É uma continuidade, embora atualizada, do recorte de
base racial fundada pela colonização europeia na África, Ásia e América.
Os termos “fronteira demográfica”, “desequilíbrios territoriais” e “expansão
potencial”, também presentes nos documentos analisados que defendem a tese do vazio
demográfico, refletem exatamente esta intencionalidade do domínio e as resistências a ele.
No entanto, quando os documentos começam a abordar termos como
“desenvolvimento” e “subdesenvolvimento”, quando associam o subdesenvolvimento à
estrutura demográfica de alta natalidade (típica de uma população rural) e também à economia
rural (devido ao grande número de dependentes), começamos a identificar uma mudança nas
perspectivas de ocupação territorial precedente. Se a partir de meados do século XIX e,
principalmente, com a derrocada da escravidão, a imigração e a pequena propriedade familiar
tornaram-se o modelo de preenchimento do vazio, agora, na perspectiva do desenvolvimento,
a ocupação do que resta de vazio deverá ser por um uso do espaço que não seja composto por
aquela população rural agora identificada como subdesenvolvida.
Pierre Bourdieu (1989) apresenta a necessidade de refletirmos sobre a história social
das classificações, dos conceitos, das identidades e das representações e os processos que
estão em jogo entre os vários campos (literário, universitário, social, político e econômico).
São lutas pelo poder de di-visão, classificação, entre o privilégio de objetar, definir o
94
conhecimento do real e da certeza (da representação da realidade e do seu reconhecimento) e
pelo monopólio da definição legítima. Esta é uma relação de poder que tem o Estado como
mediador e possui a capacidade de impor ao conjunto, sentidos, consensos, identidades,
unidades e realidades, apoiado por autoridades de conhecimento e reconhecimento. O Estado
usa seu potencial que organiza, estrutura, produz e reproduz relações e se reproduz a si
mesmo a partir do exercício da acumulação e de dominação/legitimação. Mas o Estado diluiu-
se, transbordou em sociedade.
A autoridade, segundo Bourdieu (1989), mesmo quando se limita a enunciar o ser,
produz uma mudança no ser, pois dizer as coisas com autoridade possui uma capacidade
produtiva numa relação entre a objetivação do discurso e a objetivação do objeto da
classificação (grupos, região, classe, etc...) para a qual deve haver pertinência.
Está em jogo, nesta dialética da manifestação, como diz o autor, “o poder quase
mágico das palavras”, pois este resulta “do efeito que tem a objetivação e a oficialização do
fato de que a nomeação pública realiza, a vista de todos, de subtrair o impensado e até mesmo
ao impensável a particularidade que está na origem do particularismo”. Assim entre a
representação da realidade e a realidade da representação se coloca a autoridade numa relação
entre a arbitragem/medida, a objetividade/subjetividade e representação/evocação.
(BOURDIEU, 1989, p.117)
Assim para o entendimento da luta permanente pela definição da realidade (instituída e
representada, como trabalhado por Bourdieu) na qual entra o municiamento de meios para
explicar mais completamente a realidade e também para compreender e prever as
potencialidades e possibilidades que ela encerra e oferece, há a necessidade de explicitar a
relação entre as lutas pelo princípio e pela di-visão (entre o campo científico e o social) e o
uso de critérios “objetivos” (conhecimento e reconhecimento). 9
O campo da ação coletiva, com sua especificidade de base, localização e posição, entre
os inúmeros atores, recoloca a relação entre a base sócio-estrutural e cultural e a construção
da identidade (objetiva/ subjetiva) e da consciência. Esta relação de reprodução estrutural
guarda contradições com consequências na construção do novo, pois contém tendências às
regulações, ao controle, à fragmentação e à segmentação.
9
Nestes conflitos transparecem a luta histórica entre o objetivismo e o subjetivismo, pois é primordialmente um
espaço de relações entre a estrutura objetiva e a subjetiva, não como conjuntos separados, mas como um campo
de lutas, com suas configurações específicas, suas posições e sua estrutura de distribuição de diferentes espécies
de poder.
95
A luta simbólica é a luta de várias representações ao mesmo tempo, reconstruída a
cada momento. Esta visão de cultura é uma crítica à visão determinista do ambiente, pois
envolve escolhas vitoriosas e também um conjunto de determinações, como um mesmo
mundo, mas com diferentes formas de apropriação deste mundo.
Assim, os conceitos de ambiental e de natural sofrem inovações simbólicas,
linguisticas, ganhando um caráter polissêmico, que têm implicações territoriais, pois, nesta
noção de território o ambiente é um referente. Os conflitos conceituais e os embates
simbólicos são lutas sociais em contextos de mudanças sócio-ecológicas onde são evocados
valores (estéticos, direitos comuns, tradição), mas também onde possibilitam a valorização de
formas específicas de saber, como a do perito, pois posicionam determinadas concepções de
valor, como propriedade da coisa, como concepção de desejável e com seus recursos
linguisticos de significação empregados determinando/determinado o/pelo poder de
argumentação.
Como foi demonstrado, a natureza é um conceito arduamente disputado em vários
níveis, de tal forma que é usado como justificativa, criando conflitos de legitimidade. Estes
conflitos transparecem nos fóruns (como nas audiências e nos conselhos) 10 que se
caracterizam tanto como instâncias de controle como de espaço de expressão de valores
divergentes, pois a luta discursiva não é somente luta de significados, mas política da
legitimidade. Estes fóruns colocam em evidência o papel da linguagem, o fortalecimento da
crítica coletiva, a capacidade discursiva, o discurso que define o campo de discurso do outro e
sua formatação, seja como hegemônico ou contra-hegemônico, como discurso ou contra
discurso. 11
A luta por recursos ultrapassa o processo de trabalho e situa-se no processo cultural de
1
produção de paisagem e valores múltiplos, no processo de re-produção, pois as práticas
culturais produzem tanto sentidos como colheita.
Nos conflitos centrados na sustentabilidade e justiça transparecem habitus, normas
tácitas e jogos estratégicos entre atores diretos e difusos, colocando em questão as
externalidades e a desigualdade à exposição aos riscos.
Estes conflitos mediados pelo espaço são antigos conflitos locacionais que a prática
social coloca em evidência. E o Estado é parte do conflito, vive o conflito como mediação e
10
Toda arena é uma arena construída, cabendo à análise destrinchar quem construiu, qual a distribuição de poder
e quais os conflitos entre as formas sociais distintas de apropriação do desenvolvimento.
11
Se há desigualdade de acesso aos meios de persuasão, as condições para o embate simbólico são diferentes,
além das formas específicas de ser de cada ator.
96
como tensão, pois seu papel está na sua capacidade de des/organizar, des/regular e
des/legitimar a sociedade e suas instituições e, na sua autoridade, na regulação da escolha dos
lugares para a locação de capitais. Nesta guerra dos lugares está presente a lógica da
destruição do contra-poder.
Mediadas pelo Estado, as grandes corporações se transformam em atores neste espaço,
buscando modificar as normas. Quando as resistências se acumulam, elas cambiam para
termos de ajustamento de condutas, pois mesmo que continuem a descumprir as normas,
fazem a coexistência para o cumprimento progressivo e ganham a legitimidade de
permanência. Enquanto gestora dos recursos, as grandes corporações se apoiam na estratégia
discursiva como legitimidade sem questionamento, na abdicação e na externalização das
funções de governo, num novo padrão de acumulação, impondo limites e regulações para as
culturas, as potencialidades e as criatividades.
97
3.2 SOBRE O ATRASO
Vimos, no capítulo anterior, que os interesses industrializantes no Espírito Santo, a
partir do final da década de 1950, elaboraram, além de práticas de domínio político, práticas
discursivas que legitimavam, a partir do controle do estado e das instituições tecnocráticas,
seus interesses e ações.
Estas práticas buscaram liberar enormes áreas do território capixaba para a
apropriação privada de grupos econômicos locais e internacionais. Para isso a tese do vazio
demográfico foi o álibi útil. Mas estes interesses não visavam somente àquelas áreas
“desabitadas”, ou seja, aquelas áreas nas quais seus habitantes foram transformados em
invisíveis para legitimar a apropriação das terras tradicionalmente ocupadas, mas também
liberar áreas consideradas “habitadas”, ou seja, aquelas que foram ocupadas pela pequena e
familiar propriedade privada da terra.
Para isso, não bastava a tese do vazio demográfico, pois do ponto de vista da
modernização defendida a partir do século XIX, como contraponto aos conflitos indígenas e
quilombolas, a imigração teve enorme visibilidade política e ideológica.
Assim, não era possível tornar invisíveis os descendentes dos imigrantes. Estes
ocupavam grande parte do território a partir de suas posses e propriedades ocupadas e
regularizadas com apoio da elite local.
Assim, a tese do atraso busca expandir o esvaziamento destas áreas, mas com outros
elementos discursivos. Partem da concepção de que o ES se encontrava em “relativo atraso” e
que este era representado pelos pequenos agricultores que eram a barreira para a expansão da
produtividade.
Observamos assim que, após séculos de tentativas de desconstruírem a barreira
representada pelas matas e seus habitantes, na década de 1950 buscou-se desconstruir a
barreira representada pelo “agricultor arraigado”, ou seja, aquele que com sua família e
comunidade formaram raízes no solo capixaba. Estes termos nos permitiram visualizar a
intencionalidade dos sujeitos discursivos, pois após decretar o vazio demográfico das zonas
que estavam fora da economia mercantil cafeeira, recortam outro alvo, recorte este que parte
do econômico, mas principalmente de uma econometria mercantil urbana. Assim os ideólogos
do desenvolvimento procuraram localizar o estado entre as áreas periféricas do
desenvolvimento nacional.
Apesar de reconhecerem que o Espírito Santo não contribuiu para a crise de
superprodução e que havia uma forte transferência de renda do produtor ao comércio
98
exportador, estes ideólogos vão localizar as limitações ao desenvolvimento exatamente no
regime de pequena propriedade. E esta passa a representar a lavoura cafeeira espiritosantense,
naquele momento, “mais atrasada tecnicamente e menos organizada na comercialização”.
Contraditoriamente, este regime estava proporcionando “maior bem estar coletivo às
zonas rurais” que a cafeicultura dos outros estados, apesar destas propriedades estarem “num
nível de exploração típico de uma economia de subsistência”, onde sua produção geralmente
não era levada ao mercado. Entretanto, as trocas eram realizadas junto a comerciantes locais,
nos arraiais e centros de reunião, por mercadorias essenciais, tais como sal, açúcar, querosene
e tecidos. Estas características situavam a agricultura capixaba num estágio de
desenvolvimento bastante “atrasado”.
Como os ideólogos do desenvolvimento deixam claro que suas posições derivavam do
ponto de vista de uma economia de mercado, cabe agora, com base nos dados históricos e nos
indicadores econômicos e agrários, discutir estas teses que representaram uma leitura sobre o
real que legitimaram práticas e teorias.
Lembramos inicialmente que o estado vivia no início da década de 1960 um contexto
de grandes dinâmicas territoriais e uma realidade econômica em que, podemos afirmar, não
havia crise.
Mas a partir da criação da SUDENE, deixando o estado e seus interesses fora de uma
área de incentivos fiscais do governo federal, a elite local logra na elaboração de justificativas
para a inserção no desenvolvimentismo nacional.
Neste contexto, a lógica dicotômica desenvolvido-subdesenvolvido deixa o Espírito
Santo numa zona de vazio, pois comparativamente, seus índices econômicos lhe
aproximavam dos estados nordestinos, mas administrativamente era parte do Sudeste.
A máxima do “Nordeste sem a SUDENE” passa a ser o mote justificativo para a
superação do atraso no qual, neste momento, o estado passa a se representar. Este mote tinha
no papel do Estado, aliado às empresas privadas, o eixo condutor objetivando a integração
produtiva, a expansão das relações capitalistas e o aumento da produção capitalista regional e
sua inserção no Plano de Metas e outros planos que marcaram a aliança entre Estado e Capital
neste processo:
• Plano Trienal (1962): partindo da problemática regional mostra-se preocupado
com a questão da localização das atividades econômicas;
99
• Programa de Ação Econômica do Governo (1964-1966): partindo da
problemática econômica e regional mostra-se preocupado com a integração das ações
regionais;
• I Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (1972-1974):
partindo da problemática nacional mostra-se preocupado com a integração agricultura e
indústria;
• II Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (1975-1979):
partindo da problemática setorial mostra-se preocupado com a criação de organismos
polarizadores.
Verificamos que a concepção desenvolvimentista vai ter como reforço a crise da
realização do capital comercial baseado na economia cafeeira e estes planos terão impactos
importantes no estado.
Os preços do café tiveram aumentos significativos nos anos após a Segunda Guerra
Mundial, passando de pouco mais de 15 dólares a saca de 60 kg, em meados da década de
1940, para mais de 85 dólares, em meados da década de 1950. Mas, após isso, começa uma
queda chegando a menos de 40 dólares no início da década de 1960. Apesar disso o número
de cafezais continuava a aumentar, principalmente no estado do Paraná.
Assim, este crescimento, aliado à queda do preço, vai causar diminuição na taxa
média de rentabilidade do comércio de café, representando especificamente uma “crise dos
preços”, como outras já houvera. Crises passageiras, em todos os casos. Inclusive esta da
década de 1960. Pois, no início da década de 1970, os índices de cafezais plantados e seus
preços retornaram ao patamar no auge da década de 1950.
Esta crise do preço do café atingiu de forma diferenciada os participantes do complexo
cafeeiro. Uma tentativa de explicação seria aquela que busca na estrutura fundiária os
argumentos. Assim, enquanto em São Paulo e no Paraná a produção possuía “bases
capitalistas mais ampliadas”, incluindo grande emprego de mão de obra assalariada e maior
inserção da economia cafeeira no conjunto da economia, no Espírito Santo a produção era
“baseada em unidades familiares” que não produziam somente café, mas grande parte dos
produtos do consumo familiar e local.
Esta explicação possui uma constatação sobre os indicadores que se aproxima da
realidade, mas devemos ir além, pois o que interessa neste caso é sua relação com o poder, ou
seja, com a capacidade de tomada de decisões. Desta forma, a base capitalista vai
desempenhar, a partir do final do século XIX, forte influência política nas decisões dos
100
mecanismos de preço e ocupação do solo. Portanto, é acertada a observação de que o ES
pouca influência teve nas decisões do Instituto Brasileiro do Café (IBC) ao longo das décadas.
Assim, foi a falta de capacidade política do conjunto de pequenos agricultores capixabas que
fez com que as decisões não os beneficiassem em âmbito federal.
Mas, por outro lado, a economia formal urbana dependia muito do café, pois, em
1949, o setor de beneficiamento, torrefação e moagem de café representava aproximadamente
60% do valor da produção da indústria de transformação do Espírito Santo. Assim eram as
atividades de beneficiamento e comercialização, que dependiam do excedente cafeeiro para
seu processo de acumulação e, estas sim, enfrentaram grandes impactos devido à dificuldade
com a geração de renda cafeeira e com a ausência de outra atividade capaz de compensar as
perdas.
Esta é a raiz para o entendimento da problemática em torno da implementação do
Programa de Erradicação dos Cafezais (1962-1967) que teve como órgão executor o
GERCA – Grupo Executivo de Recuperação Econômica da Cafeicultura e que buscou
erradicar os cafezais considerados antieconômicos.
O que procuramos demonstrar é que os agricultores familiares não sofreram “grande
impacto” com a crise do preço, pois não dependiam somente desta atividade para sua
sobrevivência. Assim, a pequena agricultura de base familiar no ES não estava em crise, mas,
por conta de sua exclusão política, pagaram o preço da crise.
Temos, portanto, que elencar os elementos que permitem o confronto com a leitura do
real efetuada pelos ideólogos desenvolvimentistas. Pensamos que a exposição dos argumentos
desta leitura no capítulo anterior e retomada de forma sintética no início deste item, já nos
permitiu identificar os paradoxos e contradições desta leitura. Mas temos que aprofundar ao
máximo estes paradoxos.
Dois trabalhos de pesquisa realizados naquele contexto no Espírito Santo, os dois de
caráter geográfico e muito interessantes, nos permitem iniciar este contraponto.
Jean Roche, ao analisar as atividades das populações de imigrantes alemães, no início
da década de 1960, argumenta que a atividade principal é essencialmente agrícola, porém
desenvolvem atividades industriais sem serem liberados de suas origens agrícolas. Assim as
atividades voltadas à comercialização eram complementares à agricultura. (ROCHE, 1968, p.
165)
O autor apresenta indicadores que demonstram a importância de atividades de
despolpa de café, descasca de arroz, produção de aguardente, produção de tacos, madeireiras,
101
serrarias, bebidas não alcoólicas e as olarias com fortes presenças na zona estudada.
Apresenta também informações que demonstram a importância destas atividades no total de
produção dentro do município e do estado.
Jean Roche (1968) considera que, mesmo não encontrando grandes concentrações, as
atividades secundárias, principalmente o artesanato das pequenas unidades de mão de obra
familiar, são de grande importância na vida econômica e social da zona estudada. Atividades
como de ferreiros, mecânicos, sapateiros, alfaiates, barbeiros, relojoeiros, joalheiros, seleiros,
eletrônica e fotografia são numerosas tanto nas cidades como nas vilas. As atividades
comerciais se localizavam principalmente no interior, na zona rural, mas também eram
numerosas nas vilas e nas cidades.
O que demonstram estas informações é a diversidade de atividades nessa área no
início da década de 1960. O comércio de café era exercido por comerciantes especializados,
proprietários das casas de comércio em geral que faziam a articulação interior – cidades. As
casas comerciais não somente compravam café, mas também outros produtos dos agricultores,
tais como, porcos, legumes, ovos, manteiga, mandioca, milho e gado.
As pequenas lojas faziam a intermediação entre os exportadores e os produtores. Com
a diminuição dos preços e a decorrente diminuição do consumo, estes sofriam um impacto
duplo. Este cenário dificultaria a acumulação de capital local levando à formulação de um
ideário burguês urbano comercial de superação do modelo cafeeiro capixaba.
Um elemento territorial importante é aquele que demonstra que a acumulação do
capital no modelo cafeeiro foi decorrente da ampliação da área de plantio aliado à chegada de
colonos de outros países e outras regiões.
Outro interessante estudo foi o realizado por Pasquale Petrone (2005), no qual relata
o trabalho de campo realizado no decorrer da XII Assembleia Geral da Associação dos
Geógrafos Brasileiros, realizada em Colatina em 1957. Esta pesquisa percorreu os municípios
de Santa Teresa, Santa Leopoldina e Colatina (hoje: Santa Teresa, São Roque do Canaã, Santa
Leopoldina, Santa Maria de Jetibá e Colatina), área de concentração de pequenas
propriedades e predominância do café. Mostra que a expansão do plantio, ao norte do Rio
Doce, provocou o abandono de cafezais antigos, mas que isso não significou de forma alguma
a decadência da região, pois, como demonstra, os cafezais foram renovados. Demonstra que o
café era a cultura comercial, mas, no entanto, eram associados a outras culturas como a
lavoura branca de cereais, principalmente milho, arroz e feijão, mandioca, batata inglesa,
cana-de-açúcar, fruta, mamona, fumo, floricultura, horticultura e criações.
102
Em síntese, o que estes autores demonstraram é que a agricultura de base familiar não
estava em crise, e sim, em expansão, isto em plena crise dos preços do café. E que não era
possível analisar esta realidade somente do ponto de vista do mercado, este entendido como
externo às áreas rurais do estado.
Para aprofundar estas análises que circunscreveram algumas áreas do estado,
utilizamos os dados do Censo Agrícola do IBGE de 1960. A análise destes dados foi
fundamental, pois, neste momento, foi o último registro deste período de ascensão da pequena
agricultura no estado.
Os dados nos mostram que, neste momento em que foram colocadas em prática
políticas de bloqueio do avanço da pequena agricultura, 89,63% dos 54.795 estabelecimentos
tinham até 100 hectares. E mais, apenas três estabelecimentos possuíam acima de 10.000
hectares.
O bloco das unidades até 100 ha representava 68,70% do valor das terras, eram
responsáveis por 38,15 % das despesas com parceiros, eram responsáveis por 31,29% dos
salários e por 13,41% das despesas com insumos (adubos, sementes, químicos, rações...),
89,63% dos financiamentos, 25% dos silos, 87% dos depósitos de cereais, 59,78% dos
veículos de tração animal, 53,39 % dos veículos de tração mecânica, 36,61% dos tratores,
63,57 % dos arados de aiveca, 43,95% dos arados de disco, 44,12% das semeadeiras, 53,85 %
dos pulverizadores e polvilhadeiras e 37,59 % dos cultivadores.
Se somarmos a este bloco o outro dos invisíveis, sobre os quais (indígenas,
quilombolas, ribeirinhos... posseiros de forma geral) o Censo não possuía dados econômicos,
esta importância da pequena agricultura aumentaria bastante.
Outro elemento importante deste contexto é o fato de que somente 0,74 % das
unidades usavam produtos químicos, enquanto 92,22 % usavam produtos orgânicos. Este fato
é importante, pois, após este momento e com a ideologia desenvolvimentista aplicada ao
espaço agrário capixaba, não somente a estrutura agrária será transformada, mas também as
práticas agrícolas sofrerão os impactos dos pacotes tecnológicos baseados na chamada
Revolução Verde.
Contra a tese de que, por ser a cultura do café uma monocultura e que por isso estaria
em crise, cabe ressaltar que o bloco das unidades até 100/ha possuía, em 1960, 47% do total
dos bovinos e 59,13% do total dos bois de trabalho. A maior parte das criações era realizada
em pequenas escalas. Para se ter um parâmetro, a maior parte das unidades criava até 100
103
cabeças: equinos: 76,3%; muares: 70,54%; suínos: 80,75; ovinos: 58,71%; galinhas: 90,29% e
patos e marrecos: 85,16%.
Dos estabelecimentos que promoviam a transformação dos produtos, poucos atuavam
em escala industrial. Desta forma, 99,80% da produção do açúcar, 68,37% da aguardente,
99,44% da rapadura, 99,77% da farinha de mandioca, 100% do polvilho, 69,44% do
beneficiamento do arroz, 50,16% do beneficiamento do café e 99,58% da farinha de milho,
eram produzidos em uma escala não industrial. Mas esta escala ficava com somente 32,60%
do valor da produção.
Estes dados nos permitem afirmar a grande importância da pequena agricultura
familiar no estado e esta importância estava distribuída por todas as regiões do estado e em
todas as atividades, não somente no café. O café não era a única atividade da economia
comercial no estado portanto a crise dos preços do café não atingia realmente esta base
produtiva.
Existiam outras atividades econômicas comerciais antigas e bem estruturadas no
espaço agrário, inclusive indústrias, algumas das quais possuíam ocupação de áreas e geração
de renda significativa e, somente assim, se entende a fragilidade da tese do atraso que tentou,
ideologicamente, associar a crise dos preços como uma crise da pequena agricultura familiar
no estado. Era o oposto o que acontecia. A agricultura familiar se desenvolvia associada ao
conjunto das atividades urbanas e sustentava estas atividades. Vejamos na tabela, na próxima
página, que as atividades agrícolas eram significativas em todas as regiões do estado.
104
Tabela 9 - Área em hectares dos principais produtos da agricultura e sua distribuição entre as regiões -
Espírito Santo - 1960
Assim, verificamos que a estrutura produtiva no estado não era restrita ao café. Se
relacionarmos estes indicadores com os relatos de Roche (1968) e Petrone (2005), nos quais
ficava nítido que esta diversidade também era presente internamente nas unidades produtivas
e que os agricultores familiares não comercializavam (mesmo sem o uso expressivo da
moeda) somente o café, confrontamos a tese de que a economia de subsistência seria de uma
tal simplicidade que levaria facilmente a uma crise.
Verificamos também que o norte do estado não representa um vazio econômico, muito
pelo contrário, pois neste momento o contexto representa mais uma distribuição não muito
desigual das atividades. Inclusive o norte superava em muitas atividades as demais regiões.
Mas esta distribuição das atividades não é correlata à distribuição da infra-estrutura
instalada. A tabela a seguir mostra uma concentração maior desta distribuição na região sul.
Isto pode ser entendido como o peso do acúmulo desigual das atividades neste processo de
produção cafeeira, no qual as rugosidades não representam as dinâmicas territoriais.
Assim, a infra-estrutura representa o fixo enquanto vivíamos um contexto de intenso
fluxo populacional e econômico diverso entre as regiões capixabas. Portanto, a economia
mercantil vivia um processo de expansão se apropriando de terras antes ocupadas por outras
estruturas sociais, ecológicas e econômicas, principalmente naquele contexto ao norte de
Vitória.
105
Tabela 10 - Distribuição das Atividades Agrícolas e infra-estrutura entre as Regiões - Espírito Santo -
1960
106
Tabela 12 - Distribuição das Atividades do Setor Florestal entre as Regiões - Espírito Santo - 1960
107
uma diversificação na estrutura econômica. Esta diversificação era devido à “instabilidade da
economia cafeeira” e às “perspectivas de um modesto crescimento contrastando com as
exigências e pressões demográficas da área”. Vimos também que mesmo identificando que a
crise não era da produção, e sim, da distribuição, atribuem à base social produtiva as
limitações que produziram a crise.
Defenderam naquele momento que o “imperativo da abertura de novas frentes de
desenvolvimento” deveria orientar a substituição das “atividades decadentes por novas,
capazes de impor aceleração ao processo de crescimento” e que era necessário aproveitar as
oportunidades do mercado e, para isso, substituir o agricultor com “técnica muito atrasada
por agricultores mais adiantados”. 12
No entanto, perpassa na leitura dos documentos que esta disseminação de uma nova
mentalidade, resumidamente na linguagem dos autores em “bases tecnológicas atualizadas,
equipamento moderno e escala adequada”, estava encontrando barreiras, vindas exatamente
do atraso presente no meio rural. Esta clareza das resistências os leva à conclusão de que
nenhuma agricultura de “alta produtividade” pode ser implantada sem que tais “condições
sejam modificadas”.
Para isso, portanto, era necessário modificar as condições existentes que, como vimos,
eram fortemente marcadas pela pequena agricultura familiar e os invisíveis (indígenas,
quilombolas e posseiros de modo geral). Nas palavras dos ideólogos do desenvolvimento,
tratava-se do aproveitamento de terras “disponíveis”, ou tornadas disponíveis. Havia,
portanto, no Espírito Santo, segundo os autores, uma “área imensa de terras ainda não muito
valorizadas e adaptáveis”. Mas qual área imensa seria esta? Os autores localizaram-na.
Primeiro os 12,6% do território com florestas nativas, localizadas principalmente nos
municípios de Linhares, Conceição da Barra, São Mateus, Mucurici, Aracruz, Nova Venécia,
Ecoporanga, Barra de São Francisco, Mantenópolis, Colatina, Santa Teresa, Santa
Leopoldina, Domingos Martins e Ibiraçu. Praticamente o norte todo. Ou seja, a área dos
invisíveis, do vazio demográfico e de terras devolutas. Mas não tinham interesse somente
nesta região, mas “em todas as áreas onde se formaram as lavouras de café existem condições
naturais para a silvicultura” desde que fossem “liberadas”. Possuíam interesse também nas
“terras cujo uso atual não tem significado econômico-social”. Mas não era somente isso, “a
silvicultura”, se os interesses dos ideólogos do desenvolvimento tivessem êxito total, poderia
ser “implantada em todo o território capixaba”.
12
Como já citado anteriormente.
108
Mas deveria ter um centro que, levando-se em conta vários fatores de localização,
infraestrutura, mão-de-obra e terras disponíveis, chega-se ao platô terciário, como a área
prioritária “abrangendo Aracruz, Linhares, São Mateus e Conceição da Barra”. Como
exatamente nesta área concentra-se a maior parte das florestas e de populações tradicionais do
estado, os ideólogos propõem dois passos fundamentais. Primeiro, “aproveitar o maior
número de espécies de madeira de várias dimensões, bem como os respectivos resíduos, de
modo a fornecer o máximo lucro”. Ou seja, com o uso de correntões, moto serras e fornos,
desmatar. Assim adaptar, liberar, desobstruir e “propiciar campo para o plantio de novos
maciços planejados de acordo com as conveniências do futuro mercado consumidor”. O
problema é que nestas áreas, apesar do “vazio demográfico”, eles estavam encontrando
obstáculos exatamente nos “grandes contingentes humanos no meio rural, dotados de baixo
poder aquisitivo” que se utilizavam das matas para retirarem lenha e outros usos.
E tudo isso visando o “comércio internacional”, pois, com a diminuição das reservas,
havia aumentado a “importância das florestas cultivadas”. Assim, se “a alternativa da
silvicultura” era boa para o mercado internacional, deveria ser “boa para o ES”,
principalmente após o intervencionismo da ditadura militar ter trazido “sensíveis vantagens”
para a silvicultura como uma atividade econômica, principalmente aquela que se “conjugar”
com a indústria, “com o fito mais nobre de aplicação de madeira para celulose e pasta para
papel”, apesar da necessidade de “farta disponibilidade de água”.
Esta alternativa não atenderia somente ao mercado internacional, como também ao
capital internacional, pois, segundo os ideólogos do desenvolvimento, era uma questão de
eficiência, ou seja, enquanto as indústrias dos países “tradicionais” eram “eficientes”, as do
Espírito Santo “encontram-se, ainda, num baixo estágio de desenvolvimento”. Apesar desta
eficiência, necessitavam de financiamento e abrandamentos da carga tributária para a
“indústria que tenha como propósito competir em escala no exterior”.
Era necessário o financiamento público destas atividades, pois exigiam “investimentos
vultosos e a longo prazo”. Era por isso também que necessitavam de muitas terras, pois “para
apresentar resultados econômicos, o empreendimento florestal necessita ser realizado em
larga escala”. Os ideólogos calcularam, à época, que o “tamanho mínimo econômico”
atingiria “com facilidade um raio de 50 km ao seu redor”.
Assim foram claros ao explicar o “efeito catalizador e aglutinador de grande número
de particulares”. E, por este efeito, provocar as resistências previstas, somente “grupos
econômicos” capazes de aglutinar os apoios necessários, em período de ditadura militar,
109
conseguindo desenvolver um projeto daqueles como estava “acontecendo com o de Aracruz,
que se propõe a reflorestar extensas áreas”.
Mas o argumento do governo e dos ideólogos do desenvolvimento era no “sentido
rigorosamente técnico”. Com esta linguagem, procuravam “promover o desenvolvimento do
estado em padrão de moderna racionalização”.
Apesar disso, propunham um plano experimental de “acordo com modernos métodos
estatísticos”, em área com “abundância de água”, necessária devido ao “intenso metabolismo”
da “árvore benfazeja e amiga”, não tanto por ser espécie exótica, mas “pela sua rusticidade,
pela rapidez de crescimento e, também por seu comportamento”. Para a constituição desta
“mentalidade nova” era necessário “abolir de forma radical” outras racionalidades.
Uma forma inicial de contraponto a este ideário é verificarmos as transformações
imediatas que as práticas deste ideário provocaram no espaço agrário capixaba.
Para Helder Gomes (1998), exatamente “no momento em que foram exigidas as forças
produtivas, necessárias ao salto de qualidade requerido, rumo ao desenvolvimento industrial
capixaba, estas não estavam presentes”. Esta ausência para o autor manifestava “as precárias
condições resultantes das formas de organização produtiva baseadas na empresa familiar”.
Havia, portanto, a partir do ponto de vista das “exigências da produção capitalista”, uma
distância desta com a empresa familiar, que representava “o estágio bastante atrasado do
desenvolvimento das forças produtivas locais”. (GOMES, 1998, p. 54-55)
As novas “dinâmicas territoriais” articuladas caracterizam a versão local do
“desenvolvimento” e sua correlata política industrial no Espírito Santo, no período de 1967 a
1975, como uma resultante direta da firme mobilização de interesses (políticos e econômicos)
em favor da industrialização.
A lógica de benefícios de grupos privados locais como forma de compensação pelo
fato de não participarem dos grandes projetos teria início no governo do estado com
Christiano Dias Lopes Filho, mas se fortaleceu com a criação do BANDES – Banco do
Desenvolvimento do Espírito Santo. Funda-se um mecanismo a partir do qual o governo
financiava a montagem de empresas para depois elas passarem para a iniciativa privada (Real
Café: Grupo Tristão).
Trata-se da produção e apropriação do espaço. Buscamos aqui recuperar a acepção do
conceito de espaço como uma ideia próxima da “medida” do homem. Mas com a ampliação
da escala da vida humana pela economia, pela política, pelo conhecimento e pela
comunicação, o espaço ganhou uma dimensão que extrapolou a escala da vida local. O
110
conceito de território que possuía originalmente uma proximidade da relação homem-solo foi
capturado pelo Estado. O conceito de lugar, por sua vez, seguindo o caminho interessante da
percepção e da subjetividade, foi individualizando-se ao ser invadido pela lógica
mercadológica. A noção de territorialidade apresenta um caminho possível de ser explorado
para a reaproximação à existência comum dos homens, como experiência e prática sócio-
espacial concreta.
A ampliação e instauração das novas lógicas encontram no espaço a condição desta
instauração, formando um sistema cada vez mais mundial se reproduzindo como condição
deste processo de produção, valorização, distribuição, circulação, troca e consumo. Processo
este que fraciona, especializa e integra as frações do espaço. O Estado é fruto, parceiro e
exerce um papel fundamental de gestor, de mediador e de legitimador deste processo. Mas
como o espaço é o “acúmulo desigual de tempos” (SANTOS, ano), cada novo processo entra
em contradição com o momento e com a lógica e organização espacial dos momentos
anteriores.
A mercantilização do espaço (fragmentação), a dominação do espaço
(homogeneização) e da divisão espacial do trabalho (hierarquização) se realizam a cada
momento e em cada fração de forma diversa e contraditória entre si. A contradição está
presente e fortemente marcada nas formas de tornar o espaço disponível para os vários
momentos da ampliação da valorização do capital (posse, apropriação, uso, troca,
produção...). Estes momentos produzem enormes e profundas transformações na vida dos
habitantes das áreas atingidas pelo impulso de mudanças e a liberação de áreas para a
ampliação do capital, o que provoca contradições e conflitos, choques, redefinindo a
reprodução da vida.
O Estado e o capital agem estrategicamente no espaço transformando as relações
sócio-espaciais como condição do processo de reprodução e acumulação do capital. O espaço
neste processo é banalizado, coisificado e maleável.
Para atingirem esta objetividade, os grupos locais agrupados na Federação das
Indústrias do Espírito Santo (FINDES) lograram generalizar seus objetivos como
coincidentes com o do desenvolvimento estadual. Tais interesses estavam voltados
principalmente para a solução do problema que consideravam crucial, isto é, a ausência de
mecanismos de financiamento da expansão desta parcela do capital local constituído por
empresas pequenas dos setores tradicionais.
111
O êxito desta mobilização expressou-se na criação da Cia. de Desenvolvimento
(posteriormente Banco de Desenvolvimento - BANDES) e GERES/FUNRES (Grupo
Executivo para a Recuperação Econômica do Espírito Santo/Fundo de Recuperação
Econômica do Espírito Santo). Duas iniciativas inteiramente voltadas para o financiamento de
investimentos fixos, principalmente para estimular o crescimento industrial, apoiando a
agroindústria e as atividades processadoras de insumos locais.
A sustentação da política capixaba de desenvolvimento apoiou-se na formulação de
instrumentos visando, por um lado, mobilizar recursos e, por outro, estimular investimentos,
principalmente no setor industrial. Quanto aos instrumentos de mobilização de recursos
financeiros, abriram-se as seguintes frentes: I) a implantação da CODES (em seguida
BANDES), buscando captar recursos para financiamentos, via repasses de diversas
instituições federais, notadamente o BNDES; 2) a ampla campanha da federação das
indústrias e do governo do estado que resultou na estruturação do GERES e na concessão da
possibilidade de desconto do Imposto de Renda e do ICM para a constituição do FUNRES; 3)
a implementação do FUNDAP, buscando ampliar a receita do estado e, consequentemente, os
recursos que este poderia alocar para os programas de desenvolvimento. Tais instrumentos
lograram colocar à disposição da política de desenvolvimento um volume expressivo de
recursos financeiros, ou seja, suficientes para atender à demanda despertada pelos programas
que foram implementados. A renúncia fiscal do estado em favor de todas as firmas para
estimular a acumulação acabou constituindo-se, por força das circunstâncias de mercado, em
poderoso mecanismo de concentração de patrimônio em favor de alguns poucos empresários.
A política de financiamentos e investimentos públicos fortaleceu a centralização
urbana e industrial. Segundo Cláudia Felisberto (1999), as propostas de desenvolvimento
econômico do Espírito Santo, estabelecidas na década de 1970, estiveram norteadas pelo
objetivo de se alcançar o “desenvolvimento via industrialização” e, associado aos interesses
locais, o “discurso de desenvolvimento”, vinculando a produção de mercadorias “produzidas
localmente” à lógica dos projetos de produção para exportação, e que estes objetivos
influenciaram no conteúdo das “políticas de desenvolvimento local” implementadas a partir
daquele momento. (FELISBERTO, 1999, p.199)
Estas políticas (GERES, FUNRES, FUNDAP E BANDES), baseadas em
instrumentos de incentivos fiscais e financeiros com a justificativa de que o desenvolvimento
estadual só poderia ser alcançado via industrialização, fizeram com que os recursos fossem
direcionados predominantemente para o setor industrial.
112
No sistema GERES/FUNRES, os gêneros que mais receberam recursos, tanto de
incentivos quanto de investimentos, foram os “gêneros locais” da indústria de transformação:
produtos alimentares, minerais não metálicos, bebidas, madeiras, calçados, têxtil e vestuário.
Os recursos foram apropriados, em sua maioria por empreendedores de origem local,
lembrando sistema de recompensa por não participarem dos grandes projetos. Os empresários
locais puderam se fortalecer e se constituir em grupos capazes de enfrentar a concorrência
nacional, pois 25 empreendedores, entre 1970 e 1990, apropriaram-se de cerca de 61% dos
investimentos e 59% dos incentivos aprovados ((FELISBERTO, 1999, p.199). No FUNDAP,
por sua vez, foram as empresas do comércio exterior, a maioria no setor primário e terciário,
com alto índice de concentração, pois vinte e uma empresas concentraram 88% dos
financiamentos. Quanto ao BANDES, o total dos recursos foi aplicado no setor industrial,
57% para a indústria de transformação ((FELISBERTO, 1999, p.200).
Assim, parece que o que vale neste contexto é a lógica da associação político
financeira entre os capitais locais e internacionais. Esta lógica impedia a reflexão sobre as
questões ambientais e sociais.
Esta política vai provocar grande concentração urbana e industrial, além da perda de
parte da população rural e um aumento da pressão sobre os recursos naturais no estado,
principalmente naquele momento, sobre as reservas florestais existentes. É neste momento
que temos a gênese da “questão florestal” no estado. As serrarias, carpintarias, carvoarias e
todas as demais atividades ligadas à extração de produtos florestais, como vimos, estiveram
presentes em todo o processo moderno-colonial. Mesmo porque, a maior parte da Capitania-
Província-Estado era coberta pela mata atlântica e a fertilidade natural do solo, em grande
parte, adveio de matéria orgânica e dos processos biofísicos florestais. Mas mesmo este
processo contínuo de devastação florestal não se constituiu numa questão florestal. A
questão florestal, da década de 1970, adveio em parte pela escassez florestal e em parte pela
instalação do setor moveleiro e do setor celulósico.
113
A escassez significou a percepção de que as matérias primas do setor madeireiro
capixaba estavam no fim, já que sua extração já atingia os últimos redutos florestais,
localizados exatamente neste arco ligando o litoral-norte e o interior-norte-noroeste. Este
fluxo, em busca de matéria prima para as madeireiras e serrarias capixabas, muitas delas
localizadas em Linhares e São Mateus, já ultrapassava os limites territoriais e adentrava na
Bahia. Esta entrada vai gerar, principalmente na década de 1980, uma série de conflitos, tanto
com o setor madeireiro da Bahia como com os ambientalistas do extremo sul baiano. Estes
conflitos confluíram para a taxação e proibição do tráfico de madeira na divisa entre os
estados, como também para a constituição de rotas de contrabando e corrupção dos órgãos
governamentais.
O “setor moveleiro” se instala em Linhares a partir da transformação das antigas
serrarias existentes neste município, principalmente a partir da década de 1940, em fábricas de
móveis na década de 1970. A instalação destas fábricas vai pressionar ainda mais, em termos
de demanda por matéria prima, gerando intenso debate sobre a escassez de madeiras. Na
década de 1980 falava-se em crise do “setor moveleiro”, gerando pressões para políticas
públicas de proteção ao setor como também provocando a transformação tecnológica e
empresarial deste setor com fechamentos das pequenas fábricas ou sua inserção em uma
cadeia produtiva liderada por algumas delas que conseguiram se transformar em fábricas cuja
produção passou a atingir os mercados nacionais. Estas fábricas articulam a criação, na
década de 1990, do Pólo Moveleiro de Linhares e a conquista de diversos incentivos
governamentais. 13
O “setor celulósico” por sua vez se instala como um grande projeto. A monocultura do
eucalipto marca sua presença inicialmente nos territórios indígenas no Espírito Santo, datada
do final da década de 60 (1967), quando foram iniciados os primeiros plantios de eucalipto
feitos por uma empresa chamada Vera Cruz Florestal. Pouco tempo depois, foi criada a
Aracruz Florestal S/A (ARFLO), que cuidava especificamente dos plantios do Grupo Aracruz.
Na segunda metade da década de 1970 é inaugurada a fábrica da Aracruz Celulose S/A, que
começou a produção de celulose de fibra curta com capacidade de 470 mil toneladas por ano.
Desde a implementação da Aracruz Celulose, o litoral norte capixaba tornou-se uma nova
frente de expansão e colonização.
Segundo Goldestein (1975) a implantação destes projetos industriais de polpa é uma
resposta a uma demanda em madeira do mercado internacional e garantia do suprimento do
13
Ver: Bento, Regianne Alvarenga Suave. O Ciclo Madereiro e a Construção do Lugar. Linhares – ES.
Monografia de Graduação. Geografia. UniLinhares, 2003.
114
mercado interno. É também orientação da FAO a unificação entre o aproveitamento do ativo
florestal com sua constante renovação e o “reflorestamento” com incentivos no Brasil que,
entre 1967 e 1973, foi de 1.310.540 hectares.
Outro fator que influenciou estes incentivos foi o Estatuto da Terra que procurou
livrar as terras da pressão por reforma agrária, pois não considerava latifúndio o imóvel rural,
qualquer que fosse sua dimensão, cujas características recomendavam, sob o ponto de vista
técnico e econômico, a exploração florestal: racionalmente realizada, mediante planejamento
adequado.
Além disso, a partir das leis de isenção de impostos para importação de equipamentos
para exportação sobre produtos de florestas plantadas tornou esta atividade denominada à
época de “reflorestamento” mais vantajosa que a agricultura, comparável aos incentivos da
SUDENE.
Os projetos, para terem acesso a estes investimentos e incentivos, deveriam contratar
uma das companhias especializadas em preparar projetos e em plantar árvores. Goldestein cita
a Revista Exame, de 05 de 1971, onde se lê que “quem elabora o projeto inventa os números
para quem vai plantar. Quem quer plantar tem que contratar uma empresa especializada para
inventar o projeto. E uma porção de técnicos ficam no IBDF esmiuçando as invenções”.
(EXAME, maio/1971, apud GOLDESTEIN, 1975, p. 189)
A lógica desta relação de vantagens, segundo Goldestein, fez com que os interesses
tivessem sido em “plantar o mais rapidamente possível e de qualquer jeito. Isto porque o
plantio era feito com dinheiro do governo ou de terceiros. Além disso, se lucrava na compra
da terra, no plantio, na administração e ainda se ficava com o corte final das árvores”. Assim,
com financiamento público, com terras disponibilizadas e com a valorização dada pelo
mercado a estes empreendimentos, foi possível “plantar grandes glebas de modo a justificar a
implantação da fábrica”. (GOLDESTEIN, 1975, p.190). Tal fato demonstra a teia de
interesses que liga, neste contexto, a escassez de madeira no mundo, a associação de capitais e
a articulação em nível governamental.
No caso da Aracruz Celulose, segundo a autora, a decisão da fábrica, tomada em 1969,
dizia respeito a uma produção de 750 toneladas dias. Seu projeto foi feito pela ECOTEC que,
à época, pertencia a Antônio Dias Leite, Ministro das Minas e Energia. Este ministro, segundo
Gomes, teria participado diretamente da formulação do projeto da Aracruz desde o governo
Christiano, através da Lei 5.106/1966 e das leis de incentivo ao “reflorestamento”. (GOMES,
1998, p.68)
115
Esta associação entre capitais internacionais e poder local fica visível quando o BNDE
vai assumindo os riscos do empreendimento a se tornando acionário majoritário e quando fica
explícito o acordo com os fabricantes de papel para que a Aracruz se especialize na produção
de polpa (GOLDESTEIN, 1975, p. 69).
Como vimos, os ideólogos do desenvolvimento tinham escolhido, já em 1967, uma
área prioritária “abrangendo Aracruz, Linhares, São Mateus e Conceição da Barra”, como
área core do investimento. Coincidentemente esta zona estava exatamente onde se
encontravam os grandes maciços florestais do estado e grande parte do vazio demográfico
apregoado. Em 1967, chega a Aracruz Celulose, inicialmente em área na região do município
de Aracruz, onde a COFAVI desde a década de 1940 explorava madeira e produzia carvão
vegetal, com algumas plantações de eucalipto em terras negociadas com o governo. (BODE
DE MORAES, 2002, p. 56)
Decorre também que, quando principia o discurso e as práticas do desenvolvimento no
estado, a partir da crise do café, a política indigenista ainda estava em curso na região. Apesar
das diversas tentativas oficiais de declarar como resolvido o problema indígena no Espírito
Santo, em 1975, o delegado da FUNAI, em Governador Valadares, teve que reconhecer que
havia índios Tupiniquins em Aracruz e que suas terras foram invadidas.
Segundo J. M. Bode de Moraes (2002), contra o processo de caboclização a
reelaboração de tradições específicas, os indígenas passaram a evidenciar a identidade
indígena em contraponto ao mito da primitividade. Diz o autor que, antes da Aracruz, os
índios viviam espalhados em pequenos povoados e núcleos familiares, possuíam roças que
obedeciam a um peculiar sistema sazonal de utilização do solo, cultivo pousio, plantavam
mandioca, feijão, milho, cana, frutíferas, fabricavam farinha, caçavam nas matas, pescavam
nos muitos rios, nos mangues e no mar, tinham criações de galinhas, faziam utensílios para
caça, pesca e para o uso cotidiano com matéria-prima das matas. Trocavam produtos entre si e
comercializavam marisco, farinha, lenha e artefatos com os de fora. Andavam por toda a
região visitando parentes, participando de eventos e trocando, possuíam trilhas e tinham o
conhecimento de toda a região. (BODE de MORAES, 2002, p. 56)
A nova política indigenista fica demarcada em 1967 com a criação da FUNAI e, em
1973, com o Estatuto do Índio, nos quais se dá atenção especialmente à questão da
regularização fundiária e “no caso dos Tupiniquins do Espírito Santo, a intervenção tardia do
governo junto às áreas de conflito foi proveitosa para os apropriadores de terras, já que não se
reconhecia nelas o ‘dono”. (BODE de MORAES, 2002, p. 73)
116
No entanto, com os conflitos entre os indígenas e o processo de instalação da Aracruz
a partir de 1967, a FUNAI não teve mais condições de se negar a intervir. Em 1979, a FUNAI
reconhece como terra indígena uma área descontínua de 6.500 hectares. A Aracruz se nega a
reconhecer a presença indígena. Em 1980 os índios decidem pela autodemarcação como única
forma de reaverem a terra invadida. A partir desta pressão, ocorre a homologação das terras
em 1983, mas reduzidas a 2.703 hectares. Em 1994, um Grupo de Trabalho é criado, pela
FUNAI, para estudar o caso. Diz Moraes que:
[...] com a demarcação imposta pela FUNAI, em 1983, houve não só uma redução de
44% sobre a área reivindicada, como também, e principalmente, uma desmobilização
social entre as aldeias, que passaram a obedecer a certas limitações espaciais antes
inexistentes, entre as quais o cerco das florestas de eucaliptos, dificultando a
locomoção sobretudo por tornar obrigatório o uso das estradas artificiais em vez dos
caminhos tradicionalmente utilizados pelos índios. Por isso, é notória a hostilidade
entre a comunidade indígena e os vigilantes da empresa, que com certa freqüência
impedem as tentativas dos índios de encurtarem os caminhos entre os eucaliptais, o
que por si já traz grandes dificuldades por causa da uniformidade da plantação e da
perda dos antigos referenciais espaciais” (BODE de MORAES, 2002, p. 77).
14
Como já citado anteriormente.
117
Como vimos, isso seria resolvido com a constituição de uma mentalidade nova
abolindo de forma radical outras racionalidades. No caso quilombola, cabe visualizar os
modernos métodos que procuraram promover o desenvolvimento do estado em padrão de
moderna racionalização.
No dia 19 de fevereiro de 1975, o Sr. Ivan de Andrade Amorim, funcionário da
Aracruz Celulose, assina dois requerimentos dirigidos ao Diretor Geral do Departamento de
Terras e Colonização, na Delegacia de Terras de São Mateus, encaminhados à Secretaria de
Agricultura do Estado do Espírito Santo e protocolados em 22 de abril do mesmo ano. Nestes
requer a legitimação de uma área total de 524 ha no município de São Mateus e no município
de Conceição da Barra. Nos dois requerimentos afirma ser casado, residente em Aracruz, de
profissão lavrador e requer a terra para cultivo de cereais. No dia 25 de fevereiro do mesmo
ano, o Sr. Ivan de Andrade Amorim entrega duas declarações direcionadas ao Sr. Diretor
Geral do Departamento de Terras e Colonização com o mesmo conteúdo, ao declarar que as
terras requeridas nestes processos destinavam-se a “integrar o programa de reflorestamento da
empresa Brasil Leste Agroflorestal S/A, tendo em vista o interesse do Governo de nosso
estado em estimular os projetos que se enquadram no plano econômico prioritário”.
No mesmo dia o Governo do Estado despacha o agrimensor para proceder a medição e
demarcação das áreas requeridas “desde que a mesma seja devoluta e não esteja reservada
para fins de utilidade pública”.
No mesmo dia, ainda, o agrimensor protocola informações sobre os terrenos
requeridos, afirmando que os terrenos são devolutos, que não estão reservados pelo estado,
pela União ou pelo Município para fins públicos e que o requerente, o Sr. Ivan de Andrade de
Amorim, que nos requerimentos iniciais afirmava ser residente no município de Aracruz,
residia nos dois terrenos requeridos, ou seja, o primeiro no município de São Mateus e o
segundo no município de Conceição da Barra há mais de sete anos. E nas mesmas fichas de
informação afirma ser o requerente lavrador e não ter outras atividades estranhas ao serviço
da lavoura.
Dois dias depois, 27 de fevereiro, o agrimensor encaminha o Termo de Aprovação e
Medição da área requerida do município de São Mateus, mas quanto ao mesmo documento
referente à área do município de Conceição da Barra consta a data de 21 de fevereiro.
Nos dia 14 e 15 de maio de 1975, o Chefe da Diretoria de Cadastro encaminha ao
Chefe da Diretoria de colonização ofícios afirmando que os processos do Sr. Ivan de Andrade
Amorim foram procedidos de acordo com o estabelecido em lei. O Chefe da diretoria de
118
colonização despacha os dois ofícios no dia 14 de maio, sendo publicados no diário oficial
dos dias 3 e 5 de junho.
No dia 20 de agosto do mesmo ano, o Sr. Ivan de Andrade Amorim assina declaração
endereçada ao Diretor Geral do Departamento de Terras e Colonização, reafirmando que a
legitimação das áreas requeridas destinar-se ia a integrar o programa de reflorestamento da
empresa Brasil Leste Agroflorestal S/A “razão porque a referida área se encontra cadastrada
no INCRA em nome da empresa supra citada”.
No dia 02 de setembro de 1975, o Chefe da Diretoria de Colonização encaminha os
processos com pareceres jurídicos e, no dia 03 de setembro, o Chefe do Departamento de
Terras e Colonização despacha estes processos para serem lavradas as respectivas escrituras e,
após terem isso, são arquivados os processos em 09 de fevereiro de 1978 e 17 de fevereiro de
1978, respectivamente.
As escrituras públicas dos terrenos foram lavradas em 05 de setembro de 1975, no
Cartório do 4º Ofício de Vitória e transcritas no Cartório de 1º Ofício de São Mateus em 12 de
setembro, e neste mesmo dia, por escritura pública transcrita no Cartório de 1º Ofício de São
Mateus, em 24 de setembro, transferiu sob o título de compra e venda à firma Vera Cruz
AgroFlorestal S/A, com sede no Rio de Janeiro.
Em 26 de novembro 1976, a firma Vera Cruz Agroflorestal S/A repassa, por
instrumento particular, estas áreas à Aracruz Celulose S/A e, no mesmo dia, a Aracruz
Celulose unifica em uma só propriedade, com a denominação de “Fazenda Sapé do Norte”
situada nos lugares denominados Córrego do Cabelo, Córrego do Sapato, Córrego do
Honorato, Córrego do Airimirim, Córrego do Sapucaia, Rio São Domingos, Rio Santana,
Córrego do Santaninha, Fazenda Santana e Atalaia, Córrego do Quitério, Córrego das Três
Barras, Fazenda Limeira, Morro do Atalaia, Córrego do Macuco, Piaúna, Córrego Fundo,
Jacarandá e Tabatinga, Córrego do Mucurí, São Pedro, Córrego Seco, no município de São
Mateus, com área total de 84.317.630 m² (8 431,76 ha). São dezenas de imóveis que, em
conjunto com outras inseridas em outros processos, foram dadas como garantia para contratos
de financiamentos junto ao BNDES.
Mas, apesar desse processo de apropriação das terras, em período de ditadura os
conflitos tornavam-se também invisíveis. Mesmo mais recentemente para alguns “a
tramitação social dos projetos em andamento não obteve grandes resistências” (GOMES,
1998, p. 67). Talvez porque, a partir de 1971, entra no governo Arthur Carlos Gerhardt
Santos, pelas mãos dos militares do governo Médici e seu centralismo autoritário, que vai
119
fortalecer a ideologia tecnocrática, a autonomia do governo aparecendo como “técnico”, pois
é assessorado por um quadro especializado em desenvolvimento regional. O aparato
institucional formulado pela equipe técnica do governo, em consórcios com empresas
contratadas em outras regiões, resultou em alterações significativas na estrutura empresarial e
de assessoramento técnico do governo. (Gomes, 1998, p.66)
Em 1974, o II Plano Nacional de Desenvolvimento traz a marca da atenção especial às
áreas vazias, às periferias e às fronteiras. E, neste plano, o BNDE teve um papel estruturador e
catalizador de investimentos. No Espírito Santo, este plano vai ter repercussão imediata, já em
1975, quando Élcio Álvares assume o governo do estado do Espírito Santo e quando
começam as articulações para a formalização do acordo de financiamento da unidade de
celulose com o BNDE. Demonstrando a coerência desta política de desenvolvimento Arthur
Grerhardt Santos, ex-governador e técnico da FINDES, assume a presidência da Aracruz
Celulose.
Este aparato tecnocrático escondia, a partir de suas linguagens e inversões, a
subordinação da elite local em relação aos grandes projetos e trazia à tona um elemento
importante destas políticas de desenvolvimento no Espírito Santo. Diante dos conflitos e das
críticas iminentes, a oferta de empregos, mesmo de forma precária e temporária, foi uma
forma de adequação subsidiária, isto é, pensar sobre o efeito multiplicador, ou melhor,
“minimizar os efeitos perversos”.
Esta política de adequação das terras de florestas e da pequena agricultura para as
práticas mais racionais e para o financiamento de grandes indústrias já apresentava as suas
primeiras repercussões no espaço agrário capixaba. Naquele período, o ES estava passando
por uma intensa urbanização, na qual a população urbana passou de 721.961, em 1970, para
1.283.378, em 1980. A urbanização já era intensa nas décadas anteriores, mas o fato
realmente novo neste processo foi a aguda e rápida diminuição da população rural, que passou
de 877.417 pessoas, em 1970 para 729.962, em 1980. Este foi um resultado imediato da
liberação das áreas agrícolas e florestais no ES.
Esta diminuição da população rural naquele momento, revertendo as tendências das
décadas anteriores, confronta-se com os dados de crescimento do número e área das
propriedades no ES. Assim, apesar do decréscimo da população houve um acréscimo de
956.660 hectares nas áreas das propriedades e de 5.610 proprietários entre 1960 e 1975. O
que em média daria 170 hectares por proprietário. Mas as médias escondem muitos aspectos
importantes.
120
Tabela 13 - Número de Propriedades e área em hectares - Espírito Santo - 1960, 1975 e 1985.
Tabela 14 – Área total e distribuição regional dos principais produtos agrícolas - Espírito Santo – 1976.
121
Tabela 15 - Área em hectares dos principais produtos da agricultura e sua distribuição entre as regiões -
Espírito Santo- 1960
Assim como em 1960, em 1976 estes produtos, com exceção do cacau, são produzidos
em todos os municípios, com exceção de Vitória. Outros produtos também são largamente
produzidos, embora repercutam menos em área ocupada como o abacaxi, o algodão, o alho, o
amendoim, o fumo, o melão, o sorgo, o tomate, o caju, o caqui, o coco da Bahia, o figo, o
limão, o mamão, o marmelo, o pêssego, a batata doce, a batata inglesa, a cebola, a melancia, a
soja, a laranja, a pêra, a pimenta do reino, a tangerina e a uva.
A distribuição regional destes produtos também sofreu mudanças, principalmente na
região norte. Seria de se esperar que esta região, por ser considerada da nova fronteira
agrícola do estado nas décadas pretéritas, seria a região com maior aumento em termos de
área plantada, mas foi o inverso o que ocorreu, pelo menos se levarmos em conta estes
produtos, pois relativamente às outras regiões, sua área plantada diminuiu.
Outros dados talvez iluminem esta questão. A área de pastagens por sua vez cresceu
assustadoramente, neste período, passando de 29,1 % da área total dos estabelecimentos, em
1960, para 55,5%, em 1975, incorporando mais de 1,5 milhões de hectares no período.
Outro dado importante deste processo foi o crescimento da monocultura do eucalipto.
Assim, se na metade da década de 1970 este processo ainda não era tão visível, em 1985 o
número de árvores plantadas de eucalipto chega a 165.477.000.
A distribuição deste plantio nos permitirá constatar o “efeito catalizador e aglutinador
de grande número de particulares” desta atividade:
122
Tabela 16 - Distribuição do número de árvores de eucalipto segundo a classe de tamanho de propriedade –
Espírito Santo – 1985
124
necessidade de intercâmbio e consolidam divisões territoriais do trabalho e outras novas vêm
sobrepor às antigas.
Aprofunda-se, desta forma, a integração, de cima para baixo, da agricultura na
indústria e, para organizar estes procedimentos, um conjunto de conceitos foram elaborados.
Um dos primeiros foi o “Agrobusiness”, entendido enquanto um agregado de subsistemas
inter-relacionados por fluxo de trocas (David & Gondelberb 1957, EUA). Logo após a
construção da ideia de cadeia agroalimentar, da produção para sua transformação, derivando
nas cadeias agroindustriais (Malassis, 1973 – França). O Complexo agroindustrial aparece no
Brasil na década de 1980 (Geraldo Müller, 1981) enquanto rede de relações. Logo após foi
pluralizado enquanto complexos agroindustriais (Kageyama, 1987).
Algumas das características fundamentais desta integração ao longo da década de
1980 foram:
125
• Industrialização da agricultura, entendida como a
internacionalização da economia brasileira, num capitalismo mundializado, a
partir do mecanismo da dívida, reforçando a necessidade de exportação (café,
cana-de-açúcar, soja, laranja, eucalipto...) em detrimento do mercado interno
(arroz, feijão, mandioca, milho...) e introdução do modo industrial de produzir
no campo.
• Domínio do capital monopolista industrial, que aprofunda sua
relação com a agricultura, fundamentado na articulação entre agricultura e
indústria, mas que isto deveria ser entendido como um desenvolvimento
desigual e combinado, pois 70% dos estabelecimentos agropecuários não
utilizam fertilizantes (1985), assim, a chamada modernização do campo não é
generalizada, já que nas unidades de até 10 ha existem um trator para cada 77
estabelecimentos, enquanto nas unidades com áreas acima de 1000 ha existem
em média dois tratores por estabelecimento (1985), representando além da
concentração de terras a concentração produtivo-técnica.
• Financiamentos desiguais, pois daqueles obtidos pela
agricultura em 1970, 11,5% dos estabelecimentos recebiam financiamentos;
em 1980 foram 21% e, em 1985, baixaram para 12,6%. Esta realidade fica
mais alarmante quando constata que, em 1985, apenas 3% das unidades até 10
ha receberam financiamento, quando o número foi de 72% para unidades
acima de 1000 ha.
• Produção capitalista assentada contraditoriamente na
produção não-capitalista do capital, pois por meio do monopólio do capital
na produção e na circulação, utilizando-se de relações de trabalho camponeses
(camponeses, parceiros, rendeiros, posseiros), convertem o fruto do trabalho
em mercadoria, realizam a metamorfose da renda em capital, caracterizando-se
em um processo de produção do capital por meio de relações não capitalistas,
gerando a expansão do trabalho assalariado nas grandes e médias propriedades
e trabalho camponês nas pequenas propriedades.
• Expansão das relações de produção e de trabalho
camponesas, como por exemplo, o aumento do número de posseiros,
principalmente no Nordeste. Os números e as pesquisas demonstram a recusa
126
do camponês em se proletarizar, através da luta pela garantia de posse como
meio de produção necessário e fundamental ao trabalho camponês.
• Distribuição territorial desigual nas relações de produção.
Se entre 1970-1985, na região sul, ocorreu a diminuição de todos os tipos de
produtores (expropriação absoluta/concentração), em Santa Catarina,
especificamente, aumentaram as formas camponesas. Por outro lado no
Sudeste, entre 1970-1980, tivemos o decréscimo de todas elas, enquanto no
período de 1980-1985 ocorreu o aumento do número de posseiros em 32%. No
Nordeste, no período de 1970-1985, ocorreu o aumento de 39% no número de
posseiros e 100% no número de parceiros. Na região Centro-oeste, neste
mesmo período, houve a diminuição do número de posseiros em 16%,
enquanto no Norte houve o aumento em 48%. Mas um dado é especialmente
problemático em todas as regiões: a proletarização atinge principalmente os
filhos.
• Crescimento contraditório do trabalho camponês nas
unidades até 100 ha e do trabalho assalariado nas unidades acima de 1000 ha.
Assim como aconteceu simultaneamente o crescimento dos latifúndios e das
unidades camponesas, ou seja, a concentração de terras e o crescimento
camponês, 1950-85 as unidades com área até 10 hectares aumentaram de 654
557 para 3 064 822, ou seja, houve crescimento e não desaparecimento,
significando que ele, o camponês, quer e luta para entrar na terra e que não
esgotou sua possibilidade histórica de formação/recriação; apesar do fato da
área total das unidades acima de 1000 hectares ter crescido de 95 milhões para
164 milhões de hectares, totalizando 43% da área ocupada. Sendo que algumas
unidades sozinhas ultrapassam os quatro milhões de hectares, uma área
superior ao estado do Espírito Santo.
• Caráter rentista da terra e do uso do solo. Em 1985, 45% das
terras eram ocupadas por pastagens, a forma mais comum de ocultar a terra
mercadoria, enquanto reserva de valor, à espera de especulação fundiária. Esta
é a estrutura básica, ou seja, os 140 milhões de hectares não explorados, mas
como parte da estrutura produtiva, pois é terra como reserva de valor/terra
improdutiva.
127
• Papel da produção camponesa no valor da produção animal
e vegetal. Em 1985 as unidades de até 100 hectares, representavam somente 21
% da área, mas 48% do valor da produção animal e vegetal. Enquanto isto, as
unidades acima de 1000 hectares com 43% da área representavam somente
17% da produção. Isto reforça o caráter de não uso da terra para fins
produtivos. Vejamos que, na pecuária bovina, as unidades de até 100 hectares
representam 31`% da produção, mesmo com apenas 15% da área, enquanto nas
unidades de acima de 1.000 hectares representavam 28% da produção apesar
de ocuparem 46% da área. Isto representaria, num cálculo de produção por
hectare, que as unidades de até 100 hectares produziriam 27 vezes mais que as
unidades acima de 10.000, ou seja, a terra nas pequenas unidades está ocupada
produtivamente, enquanto as grandes unidades estariam servindo mais como
reserva de valor. Podemos verificar também esta lógica quando analisamos a
importância da produção camponesa entre os principais produtos
agropecuários. As pequenas unidades produzem mais de 50% de morango,
abóbora, batata-doce, melancia, feijão, juta, fumo em folha, mamona, uva,
alho, cebola, melão, mandioca, batata-inglesa, tomate, coco da Bahia, banana,
amendoim, milho, algodão, café, cacau, suínos, aves e ovos. Enquanto as
médias unidades produzem mais de 50% de trigo, soja, arroz e leite, as grandes
unidades produzem mais de 50% na cana-de-açúcar e na pecuária.
• Distribuição territorial desigual da produção agropecuária.
Os bovinos concentravam-se no Centro Sul (75%), os caprinos no Nordeste
(92%), os suínos e aves no Sudeste e Sul. A soja, apesar de se concentrar no
Sul (60%), no Centro Oeste apresenta um grande crescimento (30%). O café
concentra-se no Sudeste (MG- 35%, SP- 22%, ES- 15% e o PR- 10%), a cana
concentra-se em SP (52%), assim como a Laranja (83%), sendo que esta última
concentra sua produção nas mãos de grandes empresas, como a Cutrale
(23,6%), a Citrosuco (22,6%), a Frutesp (14%), a Cargil (l7%) e o Montecitrus
(6.9%). O arroz concentra-se no Rio Grande do Sul com 43%.
• Ação do Estado, pois a distribuição/concentração da produção e
da estrutura fundiária no Brasil não pode ser entendida fora dele. O Estado que
produz a organização e a reorganização territorial, combinando mercado
interno e externo, atua no sentido de incrementar a produção, através do caráter
128
industrial da agricultura, fortalecendo a grande escala, garantindo o preço alto,
estimulando os setores competitivos e abandonando os da alimentação básica.
Uma das formas de sua ação foi através da implementação de novos pólos de
desenvolvimento, como o PóloCentro (grãos: soja e arroz), o PóloNordeste
(irrigação, São Francisco) e o PóloAmazônia (agromineral, agropecuário).
Com sua ação provoca o re-ordenamento territorial, a alteração da fronteira e
mantém São Paulo no papel de articulador (através das bolsas, do CEAGESP e
da Cotia.). A ação do Estado por intermédio da política de investimentos
fiscais altera o uso do solo. Um exemplo foi o incentivo à expansão da
indústria de papel e celulose e de derivados, pois estimulou o plantio de
monoculturas de eucalipto e pinos em vastas áreas (SP, PR, ES, BA, AM,
MG). Outro exemplo foi o estímulo à Soja que expande do Sul (RS, SC, PR)
para áreas do Cerrado (MT, GO, BA, MA e MS). Assim o é também na
determinação de várias áreas especializadas, como da pecuária de corte ou
leiteira.
Verificamos desta forma que, para o caso do Espírito Santo, a modernização levou ao
aumento da concentração urbana e industrial, ao aumento das monoculturas, à expulsão de
famílias do campo e à concentração fundiária.
129
4- CONFLITOS, DIVERSIDADES E POSSIBILIDADES
A reflexão sobre os conflitos nos conduz à reflexão sobre as ações. Milton Santos
(1996) nos pergunta: o que é uma ação, um ato ou uma atuação? As ações dizem respeito a
um comportamento orientado a um fim, processo dotado de propósito, subordinado às
normas, regulações, rotinas, de longo ou curto prazo, de origem distante, projeto, alienação,
conjunto e etapas cada vez mais estranhos aos fins próprios do homem e do lugar.
Existem os atores que decidem e os outros. No entanto, é sempre por sua corporeidade
que os homens participam do processo de ação, mas seu governo, o do próprio corpo, é
limitado. As escolhas se dão pela consciência, razão, técnica, ou seja, instrumental, mas
também por valores, tradição e afetividade, comunicacional, simbólica e ritualizada.
As ações são, em suma, de três ordens: técnica, normativa e simbólica. As ações se
geografizam, mas não de modo indiferente ao valor dos lugares onde estas se realizam.
Neste aparente impasse revela-se a intencionalidade, pois permite outras leituras
críticas da relação indissociável entre sistemas de objetos e ações. A intencionalidade está
presente na produção do conhecimento e das coisas.
O espaço geográfico é oferta de caminhos, é conduta e ação, como também o
direcionamento desta conduta e desta ação. Sem perder a cota do imponderável, rompendo a
unicidade, entortando a flecha do tempo, feixes de vetores ganham autonomia, se integram ao
meio, gerando eventos múltiplos e lugares de encontro.
No decorrer da análise do autor, a noção de evento, que a princípio representava uma
complexidade de significados 15 (acontecer solidário, coexistência e trama) se reduz. Partindo
do pressuposto de que não haveria evento sem atores, este torna-se sinônimo de ação. A teoria
do evento torna-se teoria da ação e esta passa a figurar como centro de sua teoria geográfica.
Assim legitima-se a classificação, a tipologia, a categorização, o ordenamento, a
identificação, a finitude e as separações. E somente aí aparecem os conflitos enquanto eventos
históricos, localizáveis. Sua duração é sua eficácia mediante recurso organizacional, com sua
área de ocorrência, onde seu impacto determina a escala e sua geograficidade.
15
Para Milton Santos (1996) o evento possui inúmeros significados: momento, instante, ocasião, possibilidade,
presente, atualidade, circunstâncias, singularidade, irreversível, incerteza, novidade, mudança, transformação,
desvio, anormalidade, impreciso, emergência, inescapável, irreversível, ressignificação, fundante, eficácia,
dissolução, acontecer solidário, coexistência e a trama.
130
4.1 NOVAS DIRETRIZES, PLANOS E DISCURSOS PÓS-INSTITUCIONALIZAÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO
131
empresas, no cenário de integração/marginalização, qual seja, a do alinhamento rural na
lógica da produção industrial que permite aumentar o excedente mobilizável.
Na encruzilhada entre a própria lógica que os ensina a reproduzir-se, mesmo com
níveis de vida restritos e uma lógica desenvolvimentista que os convida a produzir mais,
mesmo essa produção se efetivando a um custo social exorbitante, a reprodução camponesa se
faz como resistência.
A lógica camponesa pressupõe a existência de um universo rico em particularidades,
espaço rico e diverso, espaço produtor de culturas, espaço emancipatório e território fecundo
construído na solidariedade.
Este espaço é o campo, conceito que pode ser mais bem açambarcado se associado ao
de território como lugar marcado pelo humano. O campo são lugares simbólicos permeados
pela diversidade cultural e étnico-racial, pela multiplicidade de geração e recriação de saberes.
Estes saberes são organizados a partir de lógicas diferentes, de lutas e de mobilização
social, de estratégias de sobrevivência. Estes saberes incluem conhecimentos, habilidades,
sentimentos, valores, modos de ser, de produzir, de se relacionar com a terra e formas de
compartilhar a vida. O campo expressa um conjunto de possibilidades de ligação dos seres
humanos com a própria produção das condições da existência social. O conceito camponês
por sua vez se torna polissêmico. 16
Neste caminho de reflexão sobressai a ressalva de Porto-Gonçalves (2001) quando ele
diz que os paradigmas são instituídos por sujeitos sociais, histórica e geograficamente
situados e, deste modo, a crise desse paradigma é, também, a crise da sociedade e dos sujeitos
que o instituíram. Assim sendo, não nos surpreendamos quando vemos emergir novos
paradigmas e junto a eles novos sujeitos que reivindicam um lugar no mundo.
Estes pensamentos colocam em questão as relações que tiveram que se forjar em
situações assimétricas de poder, mas que nem por isso se anularam. O termo que o referido
16
Vejamos alguns termos encontrados referentes às práticas e/ou situações que associaríamos ao conceito de
camponês: Balanceiro, Bangueseiro, Barranquista, Braçal, Brejeirada, Cabeceiros, Caiçara, Caipira, Cambembe,
Cambiteiro, Canguai, Batedor, Camisão, Campeiro, Cana-de-varas, Candango, Cangalheiro, Campeiro, Freguês,
Biriba, Boiadeiro, Brabo, Camponês, Por situação, Machadeiro, Geraizeiro, Fundeiro, Serrano, Mateiro,
Horticultor, Inquilino, Lavrador, Caboclo, Cacundeiro, Patagueiro, Macaqueiro, Casca grossa, Chapadeiro,
Cochilheiro, Coiveiro, Madeireiro, Mambira, Avicultor, Babacuara, Bagaceiro, Beiradeiro, Jardineiro, Manso,
Capanga, Capiau, Capicongo, Capinador, Guasca, Moendeiro, Aparcelado, Apontador, Arador, Arrendatário,
Gibreio, Pantaneiro, Capixaba, Capoeirano, Capuaba, Carpidor, Lavradeiro, Perna, Facheiro, Farinheiros,
Ferreiro, Foreiro, Posseiro, Plantador, Corumbar, Roceiro, Enchiqueirador, Ervateiro, Meeiro, Rendeiro,
Agricultor, Almocreve, Enxadeiro, Apanhadeiras, Forneiro, Sertanejo, Ervateiro, Estanceiro, Estaqueador,
Extrativista, Peão e Sitiante. Encontraremos outros, muitos até, mas estes anteriormente citados ficam a título de
contribuição ao debate sobre a diversidade que o conceito compõe.
132
pensador nos oferece é mais do que resistir, é R-Existir (PORTO-GONÇALVES, 2001), pois
fala de sujeitos que se reinventaram na sua diferença.
No Espírito Santo, ao final do processo descrito nos capítulos anteriores, a crise do
milagre econômico e a ampliação do questionamento político indicando o crepúsculo da
ditadura associado à eclosão das vozes silenciadas e a crise mundial do capitalismo, fez com
que, a partir da segunda metade da década de 1970, uma renovação dos discursos e práticas
começasse a despontar.
A partir desta possibilidade, cada vez mais concreta, inicia-se um processo de
desestatização das empresas públicas, momento em que a FINDES vislumbra uma maior
participação do capital capixaba nas oportunidades que se abririam. A referida federação torna
público esse interesse em 1975, através do documento Alguns Aspectos Estatizantes da
Economia Capixaba. Coincidentemente logo após, o governo estadual criou um Grupo de
Trabalho para estudar o processo de desestatização, o que contou com a participação ativa da
FINDES.
Um primeiro fato demarca a mudança da forma de mediação praticada pela elite local
frente aos interesses do capital internacional e dos dirigentes nacionais. Em 1977 vem à tona a
primeira tentativa do legislativo capixaba em proibir o plantio de eucalipto em terras propicias
à mecanização agrícola. O governador Élcio Álvares (período da gestão) veta o projeto e em
seu lugar promove isenção de tributos às transações de imóveis destinadas às atividades de
reflorestamento como também o financiamento via FUNRES à Aracruz Celulose.
Neste contexto de busca de maior participação das empresas locais no
desenvolvimento, em 1977, assume a direção da FINDES o Sr. Oswaldo Vieira Marques (até
1983) e, com ele, fortalece-se o discurso de questionamento do disparate entre a participação
do capital internacional e a dos ramos tradicionais da economia capixaba.
A lógica política de mediação voluntariamente subalterna aos grandes projetos definia
a participação de seus quadros na direção nas grandes empresas que ainda eram de controle
estatal. Dá-se assim, uma nova troca de função, em 1977, quando Arthur Carlos Gerhardt
Santos assume a presidência de recém criada Companhia Siderúrgica de Tubarão, a CST.
Assim, as duas usinas de pelotização da CST na divisa dos municípios de Vitória e
Serra, da CVRD em parceria com o capital japonês e italiano, conjuntamente com outra usina
em Anchieta, esta com a participação do capital canadense, demarcaram no governo Élcio
Álvares o fortalecimento da participação das poucas grandes empresas nos indicadores
econômicos do estado.
133
Em 1979 entra no governo Eurico Vieira Rezende, com quem as questões centrais do
debate governamental passam a ser o saneamento da contas públicas e a regionalização da
ação integrada do governo.
Esta postura, que se traduziu em questionamentos sobre a localização industrial da
CST, SAMARCO e ARACRUZ, em discurso ambientalista e de política ambiental que
fortalecessem os setores tradicionais (cana-de-açúcar, mineração, agroindústrias, construção
civil, petróleo e turismo), busca a maior participação das pequenas e médias empresas, base
de sustentação da federação das indústrias nos investimentos e incentivos fiscais. A referida
postura desdobra-se na criação, pelo governo de Eurico Rezende 17, da CEICO - Comissão
Estadual da Indústria da Construção e do CEDIC - Conselho de Desenvolvimento Industrial e
Comercial, e na participação direta de diversos quadros da federação das indústrias.
O fim da ditadura militar deu-se sob as influências da crise econômica e dos
movimentos de recomposições políticas, e fecha-se o ciclo desenvolvimentista com a própria
crise. Assim, os primeiros governadores eleitos após a ditadura, Gerson Camata e Max
Mauro, buscam, em novos conceitos, outras formas de conviver com a estagnação econômica,
com a crise do Estado, com o neoliberalismo, com a desvalorização cambial, com a Lei
Kandir em 1986 e buscam apoio para a rearticulação do sistema GERES/BANDES (este
apoio surgiu a partir das orientações técnicas de Arlindo Vilaschi Filho e Orlando Caliman e,
principalmente no Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico - NEP/UFES).
Como saída a este contexto de crises os governantes, a partir do início da década de
1990, colocam em prática políticas para promover a abertura comercial com a ampliação dos
benefícios fiscais e de financiamento de unidades de capital e, principalmente, as
privatizações do capital estatal brasileiro, ao mesmo tempo em que praticava a ausência de
políticas de desenvolvimento regional.
Desta forma, nos governos de Albuíno Azevedo (1991-94) e de Vitor Buaiz (1995-
1998), os interesses do SINDIEX – Sindicato das Empresas Importadores e Exportadores do
ES e, principalmente sua articulação, foram fundamentais para a inversão do discurso da
valorização da vocação natural para atividades mercantis-portuárias. Assim, retiram-se
recursos dos cofres públicos por meio de uma prática do Estado que promove a perda da
arrecadação de ICMS pela renuncia fiscal. Neste contexto de guerra dos lugares, os conceitos
mudam e, a Integração Competitiva com Especialização, passa a compor os discursos e
documentos da política pública estadual.
17
Eurico Rezende governa de 1979 a 1982, último governo estadual do período da ditadura militar.
134
Aos segmentos de mármore e granito, agroindústria e metalmecânica, que vinham
crescendo com recursos do BNDES, FINEP, CNPq, GERES e BANDES, vão estabelecer
novas formas de mediações, recolocando o Governo no campo dos grupos de interesse local.
Segundo Cláudia Felisberto (1999):
Segundo Helder Gomes (2002), nos anos 80 assistimos a migração dos apelos
industrializantes para a defesa de uma suposta vocação natural da região capixaba para o
comercio exterior e para o desenvolvimento do setor de serviço como um todo (GOMES,
2002, p. 93).
Entretanto, esta metamorfose dos conceitos não definiu a total transmutação na
ideologia dominante, pois Gomes afirma que, nos anos 90, dos problemas estruturais que
impediam a qualificação das forcas produtivas e a formação de um ambiente científico e
tecnológico apropriado ao salto de qualidade exigida pelas relações concorrenciais, o
principal problema estava na gestão familiar de pequenas unidades de capital e na
desarticulação institucional interna que ainda persistiam na região. (GOMES, 2002, p.93)
Por vários elementos é possível perceber a manutenção de um domínio discursivo
centrado no urbano-industrial. É o que demonstra o trabalho intitulado A Modernização
Violenta: Principais Transformações na Agropecuária Capixaba, de Hildo M. de Souza
Filho (1990), centrado no estudo das especificidades da modernização agrícola no estado a
partir de alguns elementos históricos, tais como, a constituição da economia cafeeira baseada
na pequena propriedade, a resistência às tentativas de industrialização, a integração ao
mercado nacional, a erradicação dos cafezais, a industrialização e a modernização agrícola. O
resultado deste processo foi a destruição da base produtiva pretérita.
No resgate histórico o autor reafirma as teses do vazio demográfico, da grande
disponibilidade de terras virgens e do isolamento. Foi no sentido dessas teses que a ação do
135
Estado dirigiu a ocupação do território vazio e a expansão cafeeira fundamentada na pequena
produção familiar, mas, segundo o autor, “este tipo de organização de produção resistiu às
crises de preços e solidificou uma estrutura incapaz de gerar mercados de consumo e de
trabalho, impondo resistência ao surgimento de indústrias e à própria transformação
tecnológica na agricultura” (SOUZA FILHO, 1990, p.38). Revela-se, assim, a precariedade
da pequena agricultura, pois de baixa produtividade e de produto com qualidade inferior.
No entanto o autor se espanta com a resistência às crises desta agricultura de pequena
escala: “dentro deste quadro pode-se verificar o crescimento da agricultura sem que
necessariamente ocorresse a destruição da pequena agricultura familiar”. Além de ter
“sobrevivido”, “o número dessas propriedades expandiu-se pela ocupação de novas áreas em
todo o Estado” e este crescimento “manteve inalterada a estrutura básica de distribuição de
terra, havendo, inclusive, desconcentração” ao longo da primeira metade do século XX.
(SOUZA FILHO, 1990, p. 57)
A partir da análise das políticas de erradicação do café e da industrialização no Estado,
principalmente dos grandes projetos, o autor explica os traços da inserção da economia
capixaba no interior de uma divisão do trabalho entre as diversas regiões do território
nacional, pois entende que “a industrialização pesada, modernização da agricultura e
urbanização constituíram um processo único e resultante da acumulação capitalista operada
no plano nacional”. No plano local, diz o referido autor: “o crescimento dos setores industriais
e agrícolas encontraram-se subordinados a esta acumulação e ao poder de arrasto dos grandes
projetos, do mercado nacional e internacional” e, assim, “criou-se uma economia
completamente diferente daquela antiga estrutura que se baseava na pequena propriedade
rural”. (SOUZA FILHO, 1990, p. 84)
Souza Filho chama de violento o processo que leva ao rompimento nos anos 60, a
partir do qual teve início a segunda fase da história recente da agropecuária capixaba, esta
agora montada sobre uma nova estrutura “baseada em padrões tecnológicos mais avançados,
administração empresarial das atividades e ampliação das relações de trabalho, típicas de
regime capitalista de produção” (SOUZA FILHO, 1990, p. 177). A modernização no ES foi,
segundo o autor, em ritmo veloz levando ao “aumento mais rápido das despesas monetárias e
do uso de meios de produção mecânica e químicos, a ampliação da contratação de força de
trabalho assalariado, o rápido crescimento da produtividade do trabalho e uma forte
concentração da propriedade fundiária”. A erradicação dos cafezais seria assim o “marco
histórico mais importante para a agropecuária capixaba”, pois “destruiu uma estrutura apenas
136
parcialmente integrada aos mercados e extremamente resistente às crises e às políticas
governamentais” (p. 178). Sua “forma drástica expulsou previamente a força de trabalho que
não seria absorvida pelos novos padrões, eliminou boa parcela dos proprietários rurais
resistentes à absorção do processo técnico e menos aptos à administração empresarial”.
(SOUZA FILHO, 1990, 178)
O autor se pergunta, “quais foram os efeitos sociais de todas estas transformações?” E
responde que foi a melhoria da qualidade de vida: água canalizada, escoadouro sanitário,
iluminação elétrica, rádio, geladeira, televisão automóvel, escolaridade e esperança de vida.
Esta melhoria, porém, segundo o autor, “não revela os traumas do processo”. (SOUZA
FILHO, 1990, p.182)
Um outro estudo do período, Cafeicultura e Grande Indústria, de Haroldo Côrrea
Rocha e Ângela Maria Morandi (1991), também apresenta, como ponto de partida de análise,
a problemática da cafeicultura, principalmente as condições de sua expansão e sua inibição à
diversificação da economia. Fato este explicado também por causa da economia de
subsistência e de baixa produtividade, criando um círculo vicioso. Mas a partir da crise
cafeeira “foi dada a partida num processo de transformações econômicas que viria alterar
profundamente a estrutura produtiva da economia capixaba” (MORANDI e ROCHA, 1991, p.
23). Este processo gerou uma “crise social”.
Para os autores,
137
instrumentos de fomento e suas consequências para as finanças estaduais, bem como iniciam
a revisão das certezas das políticas nas décadas passadas.
Neste mesmo contexto, na década de 1990, apesar das diversas tentativas de
desterritorialização camponesa, esta população continuou fortemente presente no território
capixaba. Assim como também os discursos do atraso e do desenvolvimento continuaram
presentes.
Assim, apesar das crises vivenciadas pela atividade econômica cafeeira, esta ainda se
apresentava como uma importante opção agrícola capaz de gerar postos de trabalho e renda
para uma parcela expressiva da população do campo, constituindo-se ainda, portanto, na
"espinha dorsal" da agricultura estadual. Mesmo assim, diversas propostas de sua
transformação tinham lugar nas pautas técnicas e políticas, pensadas em termos, tais como, a
"Diversificação com café". 18
A partir de estudo do NEP-UFES – “Proposta de estratégias de interiorização do
desenvolvimento e descentralização de investimentos do Espírito Santo”, de 1993,
apresentou-se uma situação na qual, não despontando nenhum outro produto com a capa-
cidade de substituir o café enquanto produto básico para a sustentação da economia agrícola
capixaba, buscou-se promover as transformações estruturais na produção e na reorganização
do processo de planejamento e acompanhamento da cafeicultura no Espírito Santo.
Consideremos aqui, especialmente, o significativo número de pequenos produtores que,
historicamente, sustentou econômica e socialmente a população capixaba.
Para este estudo, a estratégia de diversificação com o café advoga que o crescimento
dessa produção no Espírito Santo, ao mesmo tempo em que não advoga o aumento da área
plantada com esse produto, podendo redundar até mesmo na redução da mesma. Aumentar a
produção por hectare através da reforma dos cafezais existentes, utilizando de matrizes
genéticas mais produtivas, tratos culturais que melhor combinem os vetores custos de
produção/produtividade, técnicas de manejo dos solos que permitam sua recuperação e a
utilização racional deste recurso natural.
Verifiquemos, pois, que o duplo sentido da lógica desenvolvimentista continua
presente, primeiro quando desconsidera as estratégias camponesas e, segundo, porque
apresenta um “pacote” de inovações como solução dos problemas, os quais inclusive foram
identificados a partir de um padrão “científico” modernizante.
Por traz de tais estudos está embutida a inserção subalternizada dos agricultores às
18
NEP-UFES; Proposta de estratégias de interiorização do desenvolvimento e descentralização de
investimentos do Espírito Santo. 1993, Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Almeida.
138
grandes empresas, pois a diversificação proposta, difere qualitativamente das inúmeras
iniciativas de diversificação implantadas no Espírito Santo uma vez que advoga a diversifica-
ção ao nível das propriedades, enquanto um projeto global para o Estado, o que representa,
por um lado, a preocupação em não se proceder a mera substituição de uma monocultura por
outra, buscando-se reduzir os impactos das crises de mercado e a diversificação das fontes de
renda por unidade produtiva, buscando a integração "base agrícola x empresas" deve se dar a
partir da atração de empreendimentos novos pelo "escritório de produção" e pelo estímulo à
terceirização (sub-contratação) por empresas pré-existentes, como por exemplo: estimular a
sub-contratação de pequenos fornecedores pelas empresas silcro-alcooleiras do Norte do
Estado; o fomento florestal da Aracruz deve funcionar também revestindo-se de um caráter
mais controlado e pulverizado no "corredor produtivo diversificação com café" e de forma
mais intensiva nos "corredores de pecuária", figurando como estratégico para viabilizar a
"diversificação" no Extremo Noroeste do Estado. A atração de empreendimentos viabilizados
pelo "CORREDOR CENTRO-LESTE", especialmente avicultura e suinocultura, era
importante nesta estratégia, procedendo-se análises aprofundadas e negociadas caso a caso,
quanto à forma de integração.
Propõem, assim, tais estudos, ações integradoras subordinando o interior à capital e
esta ao exterior, formando corredores logísticos.
A partir de 1995, com a diminuição das alíquotas de importação e consequente
aumento das importações nos portos capixabas, o SINDIEX aumenta sua influência nas
bandeiras em torno do repasse do FUNDAP, momento em que Arthur Carlos Gerhardt Santos
torna-se presidente desta instituição.
Em 1998 foi aprovada e sancionada a Lei número 5.623 que reconhece a
propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
Quilombos, em atendimento ao artigo 68 da Constituição Federal, no governo Vitor Buaiz. O
ano de 1999 começa com o decreto governamental que expande as áreas de plantio do
eucalipto e com o ato da Assembleia Legislativa que derruba o decreto do governo, no início
do governo de José Ignácio de Oliveira. Em 2001 é aprovada e sancionada a Lei número
6.557 que dispõe sobre as terras de domínio do Estado e sua atuação no processo de
discriminação e regularização fundiária, na qual abre brechas para a regularização de áreas
acima de 100 hectares, bem como a concessão de uso das terras públicas à empresas privadas.
Neste mesmo ano, 2001, a Assembléia Legislativa aprova a Lei número 6.780 proibindo, por
tempo indeterminado, o plantio de eucalipto com fins de produção de celulose no Estado do
139
Espírito Santo até que se realizasse um mapeamento agroecológico e o licenciamento
ambiental para o plantio de eucalipto. Logo após, a Assembleia Legislativa aprova a criação
de uma Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI - para apurar a situação da monocultura do
eucalipto no estado. Esta lei e a CPI foram instauradas tendo na presidência da ALES -
Assembleia Legislativa - o deputado José Carlos Gratz.
Estas contraditórias iniciativas vão aprofundar a crise da relação entre o Estado e
as empresas na qual a forma de mediação tradicionalmente instituída a partir da ditadura
militar dá seus últimos sinais de existência. Assim, a democracia, introduzindo novos sujeitos
na cena política, a privatização das grandes empresas, rompendo os laços administrativos
entre elas e a elite política local e mais a crise institucional do próprio Estado, questionando a
legitimidade de ação pública a partir da matriz neoliberalista, vão forçar uma mudança da
ação e do discurso do setor privado, à medida que aquelas formas tradicionais de relação já
não eram suficientes para garantir, perante a sociedade local e internacional, a
sustentabilidade que antes era garantida pela força do próprio Estado.
A partir de 2003 começam a transparecer novas iniciativas que demarcam a
transformação política de uma nova forma de articulação entre interesses privados e interesses
políticos, evitando, assim, novas hostilidades da classe política aos investimentos
estrangeiros.
O PEDEAG – Plano Estratégico da Agricultura Capixaba, construído no início do
primeiro governo de Paulo Hartung (2003-2006) e que está sendo ampliado para 2007- 2010,
atribui o papel de pensar a agricultura capixaba a partir do cenário internacional e do processo
de globalização.
Assim, fica patente a ordem de justificação a partir da globalização, pois segundo
o Plano, esta se expressaria, além do “aumento dos fluxos do comércio”, numa
“reestruturação das atividades econômicas” em escala mundial, com forte “imposição” dos
países desenvolvidos na busca de posições mais favoráveis. O imperativo da globalização
substitui, assim, o imperativo da vocação natural do período imediatamente precedente.
O novo governo se apresentava, em vários aspectos, como uma fase de superação do
período anterior. No âmbito da eleição de Luís Inácio Lula da Silva para presidente, parte dos
movimentos sociais participa e colabora com a construção de documentos programáticos do
novo governo estadual. Nesta perspectiva e no seu processo de construção, várias discussões
foram feitas sobre a participação dos movimentos sociais no governo, o que, inclusive,
140
tornou-se pauta no Fórum da Agricultura Familiar logo no início do governo, assim como a
possibilidade da criação de uma diretoria da agricultura familiar.
Nesta perspectiva, o processo de construção do PEDEAG foi um ritual de
articulação política e busca de apoios. Neste documento, portanto, vão aparecer os elementos
desta articulação.
Inicialmente cabe indicar que este Plano continua apontando as dificuldades para a
agricultura familiar, mas agora colocada na escala do acesso aos mercados internacionais. E,
diante dessas novas exigências, novas demandas de produção, logística e distribuição se
colocam como prioridades.
Cabe lembrar que é neste contexto que se torna público o avanço discursivo do
agronegócio como articulação de interesses e elaboração teórica. E neste terreno discursivo
verificamos a tendência de inclusão de toda a agricultura no âmbito do agronegócio.
No PEDEAG o ponto de partida desta construção é a observação da existência de
dois modos de produção agrícola, a agricultura familiar e a agricultura empresarial. Segundo
o texto, a agricultura familiar tem um papel fundamental na construção da estabilidade social,
segurança alimentar e também no desenvolvimento econômico. Mas por outro lado, segundo
o texto, a agricultura empresarial era a principal responsável pela geração de divisas além de
âncora verde do Plano Real, a partir dos últimos anos, com taxa de câmbio mais favorável,
vem contribuindo para gerar superávit nas contas externas. Em 2002, por exemplo, enquanto a
balança comercial brasileira gerou cerca de 13 bilhões de dólares de superávit, o agronegócio,
isoladamente, gerou 20 bilhões de dólares em termos de exportação. Portanto, a balança
comercial brasileira só era superavitária em razão das exportações agrícolas e agroindustriais.
Não fosse o desempenho da agricultura brasileira dessa última década, a vulnerabilidade
externa e os problemas de desemprego, de desigualdades e de fome seriam significativamente
maiores.
Assim, apesar do destaque ao papel social da agricultura familiar, no texto
desfilam construções que englobam o agronegócio ao conjunto das atividades agrícolas a
partir da inclusão destas atividades às “cadeias produtivas”. Como num passe de mágica, a
agricultura familiar foi incorporada ao agronegócio. Segundo o texto, no Espírito Santo, o
agronegócio, ou seja, “os negócios ligados à agricultura”, respondem por cerca de 30% do
PIB estadual e absorvem aproximadamente 40% da população economicamente ativa, das
quais 28% estão diretamente ligadas à produção e se constituem ainda na mais dinâmica
atividade econômica para cerca de 80% dos municípios capixabas. Ainda segundo o texto do
141
PEDEAG, o agronegócio capixaba chegou a produzir, em 2000, cerca de 6,5 bilhões de Reais
em termos de valor agregado, envolvendo cerca de 570 mil pessoas. O agronegócio foi, ainda
segundo o texto, o grande responsável pelo saldo positivo da Balança Comercial do Espírito
Santo, no ano de 2002. Do saldo global de U$ 569,4 milhões, cerca de 90%, ou seja, U$ 498,7
milhões foram devidos ao agronegócio capixaba (com predomínio do café e da pasta de
celulose). Assim, a agricultura familiar seria suporte, pois citando dados do INCRA, o texto
diz que 77% dos estabelecimentos rurais do Estado do Espírito Santo eram familiares, os
quais detinham 40% da área e geravam 36% do valor da produção rural. A agricultura
familiar seria, segundo o PEDEAG uma variável chave a ser levada em consideração na
formulação do planejamento estratégico da agricultura capixaba.
Outra tese que transparece neste mesmo texto é a do perfil democrático e inclusivo da
sociedade capixaba, pois os dados relativos à estrutura fundiária revelavam, segundo o texto,
a “desconcentração da propriedade rural” o que favorecia a existência de uma “vigorosa
agricultura familiar”.
Para defender tal tese, os autores do texto apresentam os dados sobre o número de
estabelecimentos segundo os quais 92% das propriedades estavam na faixa de até 100
hectares e cerca de 80% tinham a dimensão menor que 50 ha e, para reforçar seus
argumentos, apresentam a seguinte tabela:
143
logística, telefonia, energia, estradas, infra-estrutura hídrica e armazenagem e
[principalmente] inserir o agricultor familiar nas principais cadeias produtivas do
agronegócio, melhorando sua competitividade.
Entre as metas apresentadas encontramos a intenção de promover 4.000 assentamentos
com crédito fundiário, ampliar significativamente a exportação, aumentar a produtividade e
ampliar diversas áreas de plantio, tais como, em 47% a área estadual com fruticultura, em
133% a produção de álcool, ampliar a área de monoculturas de árvores florestal para 290,9
mil hectares, ampliar a produção da pecuária (63% do leite e em 100% a produção anual de
carne bovina) e ampliar as ações em agroturismo, artesanato e agroindústria artesanal, entre
outras metas.
A legitimidade conceitual seria dada, portanto, a partir da articulação entre a
competitividade e a existência de áreas degradadas. Ou seja, diante da existência de 600 mil
hectares de terras degradadas e dos gargalos representados pela agricultura familiar, os setores
de excelência que conseguem comercializar no mercado internacional seriam impulsionados a
ocupar estas áreas. É importante ressaltar que estes setores, ou seja, a pecuária, a fruticultura,
a cana-de-açúcar, o café e o eucalipto já representavam tendências à concentração fundiária e
à monocultura naquele momento.
O PEDEAG foi, portanto, um marco do surgimento de novos elementos discursivos
apoiados e legitimados em textos programáticos do governo estadual.
Outro elemento importante que começa a se tornar visível nos textos e nas ações foi
uma nova forma de articulação entre os diversos setores econômicos e políticos atuantes no
estado. Esta nova forma de articulação se fortalece a partir da crise institucional dos governos
anteriores, na qual as empresas se viram reféns de formas de mediação que não eram
vantajosas para as mesmas, pois os questionamentos às suas práticas econômicas, sociais e
ambientais começavam a ganhar repercussão internacional.
Esta nova articulação se torna textual em 2006, quando o governo do estado do
Espírito Santo (Paulo Hartung) elabora o Plano de Desenvolvimento – Espírito Santo 2025,
em conjunto com a organização não governamental Espírito Santo em Ação.
A organização “Espírito Santo em Ação” reúne empresários, criada num contexto de
crise do Estado, enquanto ente central de intermediação com a sociedade, da qual participam
representantes de várias empresas, tais como, a Aracruz Celulose, Águia Branca, CST, Grupo
Tristão, CVRD, Samarco, Suzano, Fibrasa, Petrobras, Escelsa, Banco do Brasil, Calimam,
Frisa, Nebrax, Itapemirim, Suco Mais, A Futura, A Gazeta, Gaya e Elkem. Além dessas
144
empresas, fazem parte da organização personalidades como Arthur Carlos Gerhardt Santos e
líderes da FINDES, do Exército e professores da Universidade Federal do Espírito Santo. A
entidade se propõe a ser a catalizadora dos interesses originários dos setores empresariais.
Uma de suas ações no ano de 2006 foi a publicação de manifestos contra as ações indígenas
no norte do estado e a nota de repúdio “aos atos de violência cometidos por índios e não
índios (integrantes do MST, CIMI, Rede Alerta Contra o Deserto Verde e outros) contra a
Aracruz e a ordem pública”.
O projeto ES-2025 aponta para o “novo ciclo de desenvolvimento” do estado, baseado
na “integração competitiva, em nível nacional e internacional, de uma economia capixaba
diversificada e de maior valor agregado, sustentada pelo capital humano, social e institucional
de alta qualidade” (palavras do governador Paulo Hartung no documento síntese do plano).
Na apresentação do plano, assinado pelo Secretário de Estado de Economia e
Planejamento, Guilherme Dias, foi apresentado o vocábulo desenvolvimento, que exprimiria:
145
1975, a expansão industrial teria sido mais significativa quando fomentada pelo grande capital
estatal e estrangeiro.
Até os anos de 1960, o grupo hegemônico estaria relacionado essencialmente ao
espaço agrário, centrado nos “interesses particulares da classe política dominante”. Com o
segundo ciclo de industrialização baseado nos grandes projetos, diante de uma “nova política
institucional” externa, o impulso econômico ocasionado e a forte união entre a União e as
lideranças políticas urbanas emergentes “resultou numa forte reconfiguração político-
institucional” no ES. Mas, na década de 1990, o ES teria passado por uma “forte crise ética e
moral”. Após enfrentar esta crise, aliado à forte conjuntura de crescimento econômico, o ES
vive um momento de euforia pelas suas potencialidades: base logística de alta capacidade,
segmentos econômicos de competitividade (mineração, siderurgia, celulose, petróleo,
agricultura em diversificação e arranjos produtivos locais), abundância de recursos minerais,
ativos ambientais de alto valor, estrutura fundiária equilibrada (“milhares de pequenas
propriedades produtivas”), janela democrática favorável, diversidade étnica e cultural e
posição geográfica favorável em face da dinâmica da globalização.
Apesar de lembrarem com euforia de milhares de pequenas propriedades produtivas e
da diversidade étnica e cultural, dentre os fatores do contexto capixaba que mais influenciarão
o futuro do Espírito Santo, estes desaparecem como sujeitos, incorporados e contidos no
interior de alguns elementos, como nos arranjos produtivos locais, na consciência ambiental,
nos níveis de pobreza, nos fluxos migratórios e nos gargalos no sistema logístico. No entanto,
a principal estratégia do documento é a “importância do comércio exterior para o
desenvolvimento econômico” e a demanda de mão-de-obra qualificada.
Assim, no novo ciclo de desenvolvimento figurariam como pilares centrais a
integração competitiva da economia capixaba ao mundo, o desenvolvimento do capital
humano, a eficiência do setor público e o dinamismo e inovação empresarial.
Neste contexto são demarcados os poderios político e econômico das grandes
empresas no Espírito Santo. Em 2006, das 200 maiores empresas do Espírito Santo, as 10
maiores empresas privadas (CST, CVRD, ARACRUZ, SAMARCO, COTIA, ESCELSA,
COIMEX, HERINGER, NIBRASCO E GAROTO) somavam a receita anual de 60 bilhões de
reais. Das 200 maiores empresas, 145 estavam na grande Vitória gerando 40.000 empregos. A
Aracruz com 3,7 bilhões de reais de receita gerava 2.249 empregos diretos, ou seja, quase dois
milhões de reais por emprego. A receita destas 200 empresas gerada no estado era de 49
bilhões de reais, com lucro de 23 bilhões de reais. As exportações somaram 6 bilhões de reais,
146
sendo que destes 45% era do setor de minérios, 25% do aço, 11% da celulose, 10% mármore
e granito e 4% do café. Os EUA ficaram na preferência com 23,8%, a China com 9%, 2%, a
Coréia do Sul 8,1%, a Holanda 5,8%, a Argentina 4,8% e o Japão 3,9%.
Em termos de arrecadação de impostos o cálculo muda. A Aracruz, por exemplo, ficou
com o 83° lugar na classificação geral em 2005, gerando 6,3 milhões de reais em impostos.
No mesmo ano gastou 174,6 milhões para comprar terras para plantio de eucaliptos. Apenas
como parâmetro de comparação, a Aracruz Celulose contribuiu com financiamentos de
campanha eleitoral em 2006 com o total de 4.952.389,0 reais.
Este processo pós-ditadura deixa suas marcas nas territorialidades agrárias no ES. A
territorialidade, com a sua múltipla semantização do espaço, lugar, paisagem e região, além
das suas dimensões concreta e subjetiva, experiencia outro contraponto, o do movimento, da
mobilidade, dos fluxos e das redes. Aos elementos básicos do território (pontos, linhas e área),
a mundialização das cidades e das redes acrescenta as questões das escalas e das
territorialidades. Atribui, portanto, outras qualidades de ser território, identidade,
subjetividade, apropriação, domínio, densidade e fluidez.
Pela fluidez contemporânea baseada nas redes técnicas que são o suporte da
competitividade, a vontade dos agentes hegemônicos é a supressão de todo obstáculo à livre
circulação de mercadorias, de informação e de dinheiro, a pretexto de garantir a livre
concorrência e assegurar a primazia do mercado transformado em global.
Porém, como a fluidez não é estritamente técnica, mas sócio-técnica, o hegemônico
não alcançaria as consequências atuais se ao lado das novas inovações técnicas não
estivessem operando novas normas de ação (desregulação) e um sistema de normas adequadas
aos novos sistemas de objetos/ações e destinados a provê-los de um funcionamento mais
preciso. Assim, a fluidez atual busca ser uma forma perfeita universal (técnicas
informacionais) por meio de normas universais (resregulação) e de uma informação universal
(discurso). 19
A dinâmica da riqueza no/do território coloca para a geografia o caráter político das
redes, da ordenação (políticas governamentais territoriais) e do ordenamento (várias
estratégias) que compõem novos territórios políticos e novos campos políticos, que também
re-compõem o território.
19
Cf. Milton Santos em A natureza do Espaço, 1996.
147
Há uma profunda relação entre as redes teóricas, as redes políticas e as redes
territoriais, pois as redes também são recursos do poder, por conta dos intensos conflitos entre
os diversos projetos e o poder enquanto campo é um lugar de enfrentamentos.
O mapeamento, enquanto regionalização das territorialidades (com suas contiguidades
e não contiguidades) e definição das zonas é locus do debate entre noção de Território como
construção social e noção de Terra como recurso. E estas duas noções não possuem
correspondência, pois o recurso natural por si só não pode ser critério de definição das
múltiplas identidades (por exemplo, na Amazônia). As territorialidades que lhes
correspondem não podem ser necessariamente consideradas como semelhantes, apesar de
certa objetividade lhes conferir equivalência. A noção de territorialidade incorpora grupos que
não constituem “populações tradicionais”, mas quando organizados em território introduzem
nas autodenominações a multiplicidade de critérios de associação.
Os agentes locais, por meio de ações coletivas e de conhecimentos intrínsecos, têm
construído identidades que se afastam do quadro natural. O mapeamento como mapa das
referidas territorialidades e como método não se reduz à cartografia dos dados oficiais e deve,
na sua interpretação, levar em conta as práticas de mobilização de agentes sociais dispersos
emprenhados na defesa do meio. O método deve incorporar o ato de autocartografar, ou seja,
configurar seus territórios. Constitui-se como uma crítica à referida despolitização dos
discursos cientificistas e uma luta para possibilitar uma maior visibilidade nos circuitos de
interlocução. Busca com estes atos recolocar criticamente o sentido daquelas formas de
controle social e historicamente fundadas pela geografia em sua vertente de inspiração
geopolítica e militar. O mapa temático, na perspectiva de Alfredo Wagner Berno de Almeida
parte das unidades de mobilização, caminha para generalizar os localismos das reivindicações
e das práticas que configuram territórios específicos e modalidades de usos dos recursos,
demonstrando, ao final, a não homogeneização e a explosão do etnicismo enquanto existência
coletiva. São mapas situacionais, datados pelos conflitos, ocorrências peculiares e relações de
antagonismos em situações localizadas. Apesar das dificuldades pela falta de informações
cartográficas nesta perspectiva e dos recortes oficiais pré concebidos, a incorporação da
representação gráfica dos próprios representados e dos conflitos que envolvam disputa pelo
acesso às condições naturais (recursos florestais, hídricos e minerais) se traduzem numa
importante contribuição para uma nova compreensão das territorialidades. 20
20
Cf. Almeida, Alfredo Wagner Berno. Universalização e localismo. Movimentos sociais e Crise dos padrões
tradicionais de relação política na Amazônia. In: Debate, N.3, Ano IV, Salvador; Cese, p.21-42.
148
Na questão das definições dos recortes territoriais, o primado da técnica, as
regulações, o princípio da comunidade tradicional e os naturalismos disputam o poder da fala.
Isto sem falar nas tentativas de construção de uma noção de território sem identidade,
buscando uma organização do espaço a partir da economia política dos recursos naturais.
Nestas mudanças no setor produtivo territorial associadas aos produtos, a natureza
passa a ser recurso e derivam daí processos desestruturadores com efeitos migratórios,
desmatamento e destruição das economias locais. A infraestrutura gerada e a ligação de áreas
(relação atrator/atrativo) modificam as trajetórias possíveis. Com as variantes de
reestruturações e desestruturações, profundas bifurcações são provocadas sem possibilidades
de previsão. A noção de caos ganha fôlego em detrimento da auto organização e da
capacidade de atores locais em definir trajetórias independentes. A geografia na perspectiva
interescalar (entre o local e o global) incorporou a análise da complexidade (sistemas
complexos não lineares, sistemas complexos longe do equilíbrio...) à questão da
desmaterialização da economia e às mudanças mundiais derivadas das mudanças internas das
empresas.
149
4.2 TRANSFORMAÇÕES NO ESPAÇO AGRÁRIO CAPIXABA APÓS A
INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
21
Lander, Edgardo (org); A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005
150
dos conceitos Esta articulação demonstra solidariedade como forma de superação das
dicotomias no hibridismo das pautas reivindicatórias.
A re-conceituação é uma constante nas situações de conflitos, nas quais não somente a
ciência dura passa a ser questionada na sua legitimidade de nomeação das coisas, como
também é questionada a segmentação da política e dos sujeitos da política. Nos espaços
públicos as concepções passam a ser objetos de disputa. Nestes espaços também a ciência
passa ser sujeito político ao propor novas conceituações e ao superar teoricamente suas
fronteiras, contribuindo para que os sujeitos políticos tradicionais superem suas próprias
fronteiras. Desta forma ciência e política passam a se reconhecer mutuamente como sujeito e
objeto.
As novas dinâmicas territoriais que atingiram o espaço agrário capixaba, sob a
denominação de desenvolvimento e modernização, terão nas inovações técnicas e
organizacionais o instrumento para criar um novo uso do tempo e um novo uso da terra,
mudando o calendário agrícola, a velocidade da circulação, a disponibilidade de créditos e a
proeminência da exportação. Buscam também reinventar a natureza, construindo
solidariedades materiais e organizacionais de uma nova espécie, a partir do controle e
modificações das sementes, dos fertilizantes, dos herbicidas, das formas de cultivo e da
biotecnologia.
O Estado foi o agente ativo da globalização da agricultura brasileira, seja na definição
de novas densidades normativas, de nexos modernos, de novos arranjos, de novas
valorizações e de novas fronteiras. A criação do mercado unificado, que interessa
primeiramente à produção hegemônica, leva à fragilidade das atividades agrícolas periféricas
ou marginais do ponto de vista do uso do capital e da tecnologia mais avançada, mas mesmo
assim a agricultura camponesa representa 30% do volume da produção agropecuária no
Brasil, embora mais sujeita às oscilações de preços e crises. As novas frentes pioneiras
representam especializações o que provocam simultaneamente o aumento da necessidade de
intercâmbio enquanto consolidam divisões territoriais do trabalho e outras novas que vêm
sobrepor-se às antigas.
Apesar das evidências empíricas e dos indicadores, um pensamento tecnocrático de
uma geração formada a partir da metade da década de 1960 transforma o campesinato em algo
invisível. A formação deste pensamento foi demarcada pelo curso da CEPAL em Vitória,
pelas gestões da FINDES, do BANDES, do FUNDAP, do GERES e da inserção no esforço
modernizante de instituições de pesquisa e planejamento como a UFES e o Instituto Jones dos
151
Santos Neves. Além desses postos, as diretorias de estatais e outras esferas governamentais
(BNDES, planejamento,...) foram fundamentais nas articulações da elite local. A circulação
por vários destes postos foi característica de muitos currículos desta geração.
Apesar de toda a urbanização e da chamada constituição da sociedade urbana, a
agricultura representa grande importância para a sociedade atual. Alguns dados demonstram
que a população rural no mundo representa em torno de 1/3 da população mundial. Os dados
abaixo permitem visualizar em parte esta importância:
22
Cf. Valverde, Orlando. Estudos de Geografia Agrária Brasileira. Petrópolis, Ed. Vozes, 1985
153
Nesta região a recusa dos proprietários em cumprir o Estatuto do Trabalhador Rural
provocou, no final da década de 1960 e início de 1970, a demissão de mais de 1 milhão de
trabalhadores que foram levados à condição de boias-frias (diaristas eventuais sem contratos).
Na zona tropical, as pequenas propriedades, nem sempre com títulos legitimados, dispersas
em pequenos redutos, formavam ilhas num oceano de latifúndios. Valverde cita Campinas e
Santo Anastácio (SP), Iguatemi, Dourados, Jauru (MT), Ceres, vale de Santa Tereza, Trombas
e Formoso, Araguatins (GO), São José do Itabapoana e Bacaxá (RJ), Vale do Cachoeira (BA),
o agreste (AL), Sanharó, Gravatá, Brejo do Triunfo (PE), Várzea do Açu (RN), Cariri (CE) e
em áreas dos planos de colonização, principalmente com posseiros e seringueiros ao longo
das BRs, na Amazônia.
A questão agrária se aprofunda, segundo o autor, por que “as pequenas propriedades
rurais não foram capazes de estabilizar os agricultores em suas terras”, nem de proporcionar-
lhes “níveis de vida decente”; assim como os projetos agropecuários na Amazônia (SUDAM)
privilegiaram as grandes empresas que a desmataram e a transformaram em pastagens
levando os trabalhadores à condição de “semi-escravidão (gato)”. O autor conclui que a
“marcha do povoamento” resultou de constantes históricas, como nomadismo e miséria da
população rural sem terra, assim como de carestia de alimentos nos centros urbanos. E
acrescenta que as tentativas de melhoria do meio rural até aquele momento tiveram a
tendência de acusar a superestrutura e de buscar saída em projetos sociais. Foi o que ocorreu
em 1950 com a Campanha Nacional de Educação Rural – CNER, ou ainda com o Serviço
Social Rural - SSR, que se transformou em Superintendência da Reforma Agrária - SUPRA,
para virar, posteriormente, o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária - IBRA e, por fim, o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, ou ainda, em 1968, com o
Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL. Na área da saúde, quando em 1920,
Epitácio Pessoa cria a Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca - IFOCS, que viria a se
transformar no Departamento Nacional de Obras Contra a Seca - DNOCS, com os açudes do
Nordeste. E ainda, a busca de soluções em projetos de planejamento para o desenvolvimento
regional, como o que ocorreu em 1953, com a Superintendência do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia - SPVEA, que se transformaria na SUDAM, como também a criação
das SUDENE, SUDECO e SUDESUL).
O autor considera que a análise quantitativa nos fornece elementos para o
entendimento da realidade agrária brasileira e, por meio destes dados, foi possível perceber a
subutilização do território brasileiro pelos cultivos e a extrema concentração de terras da
154
estrutura fundiária brasileira. Os dados apresentados pelo autor possibilitou o entendimento da
evolução do problema agrário brasileiro quanto a relação entre número de estabelecimentos,
área e pessoal ocupado, como podemos ver a seguir:
Área total dos estabelecimentos rurais (em milhões de hectares) 200 232 265 293
Área média dos estab. Rurais (em hectares) 103,8 116 79 59,4
Fonte: IBGE
Por estes dados poderíamos concluir, apressadamente, que o Brasil era um país
constituído de pequenas propriedades, já que a área média em 1970 era de 59,4 hectares e que
a estrutura fundiária teria se democratizado, já que em 1940 era de 103,8 hectares. Mas o
autor rapidamente apresenta outros números que problematiza esta conclusão. Vejamos a
seguir:
Ano No. de estabelecimentos acima de 1000 hectares. Área total em hectares % est. % área
155
Fica assim demonstrado o crescimento volumoso em mais de 14 milhões de hectares
dos latifúndios, mas contraditoriamente, fica demonstrado também, como é possível visualizar
abaixo, o crescimento dos minifúndios:
No entanto, quando comparamos a relação entre áreas de lavouras com as áreas dos
estabelecimentos rurais no Brasil, como em 1970, é possível perceber onde se localizavam as
áreas produtivas no Brasil:
Classes de áreas dos estabelecimentos (em hectares) Porcentagem utilizada em lavouras (%)
Menos de 10 65,5
10 – 100 26,1
10 000 → 0,6
23
Cf. Regionalização da Reforma Agrária
157
1962, o Grupo Executivo de Racionalização da Cafeicultura – GERCA – elaborou um plano
com o objetivo de reduzir a produção cafeeira. Os resultados não foram tão expressivos como
o esperado. O que levou o Instituto Brasileiro do Café (IBC) e o GERCA a estabelecer, para
o período de 1966/76, o segundo programa de erradicação do café, disponibilizando uma
indenização considerada alta para o momento. Os resultados desta vez superaram as
expectativas. Entre 1966/67 foram destruídos no Brasil, mais de 655 milhões de pés Ed café e
foram liberados 674 mil hectares de terra. Cerca de 35% desses totais (235 milhões de pés de
café e 193 mil hectares) correspondeu ao Espírito Santo. Vejamos o impacto na estrutura
fundiária:
Tabela 21 - Área e estabelecimentos por grupo de área - 1970 e 1980 – Espírito Santo
100 – 500 6.811 9,6 1.239.403 32,9 6.660 11,3 1.267.249 33,4
500 – 1000 470 0,7 315.511 8,4 544 0,9 375.422 9,9
158
Tabela 22 - Mão de obra familiar e assalariada - 1970 e 1980 - Espírito Santo
159
Tabela 24 - Principais núcleos populacionais - 1940 - 1991 - Espírito Santo
Urbana Rural
Fonte: IBGE
160
Observemos, que quando analisamos os indicadores referentes às famílias residentes,
verificamos que não houve queda em seu número, e sim, na sua composição.
Temos que buscar a compreensão da totalidade que, para Milton Santos, envolve a
estrutura e um processo complexo de estruturação e desestruturação, articulação, negação,
movimento, estrutura sempre provisória e móvel. Com a modernização tecnológica e a
tentativa de compreender a dialética entre os fatores de concentração e dispersão, o
significado do urbano no processo de acumulação global do capital, as diversas
temporalidades do capital no seu processo reprodutivo desigual (que nega a dicotomia
atrasado/moderno), a modernização perversa e seu papel estratégico, o novo re-inventa o
velho e dele se vale como face obscura do moderno (alta tecnologia + exploração infantil).
É assim uma modernização incompleta e perversa, com seus resíduos transformadores,
desencontros econômico, social e político (um não era reflexo do outro). A fragmentação do
todo não se define estruturalmente (como divisão de um todo, que exige articulação, corporal)
e a divisão do trabalho não se reduz à divisão técnica do trabalho, (social-aleatório-potência-
ato), as determinações do todo se dão de modo diferente, quantitativa e qualitativamente, para
cada lugar. O global existe através do local, assim, lugar não é somente parte do global e seu
reflexo, mas contrapõe-se a ele como possibilidade histórica, movimento, insurgência e
resistência.
Os dados começam a demonstrar a partir da década de 1980 as consequências do
desenvolvimentismo. As lógicas integrativas vão provocar a incidência dos recursos técnicos
sobre os recursos humanos. As mudanças organizativas e as características dos novos
equipamentos estão modificando os requerimentos de mão-de-obra tanto em quantidade como
em qualidade: conceitos/modelos eficiência, gerência, organizativo, flexibilização das
161
relações, novas tecnologias, novas disciplinas de trabalho, polivalência, formação de círculos
de controle de qualidade.
Neste contexto, na década de 1990, se daria a gestação dos complexos agro-industriais
como uma nova categoria econômica que representaria a perda de autonomia da agricultura.
Associando esta dependência ao grande aumento da produtividade sob condições
monopolistas, forma-se o seguinte paradoxo: na década de 1990, na agricultura brasileira, a
unidade camponesa representava 85,2% do total de estabelecimentos, ocupava 30,5% da área
total e era responsável por 37,9% do valor bruto de produção agropecuária nacional, segundo
IBGE – 1995/1996.
Ao final deste processo desenvolvimentista o estado representava, aos olhos dos
investimentos públicos, um lugar relativamente parecido com o que ocupava nas décadas de
1950 e 1970. Do crédito rural do BNDES, do total de 4.098.511.000 reais aplicados no Brasil,
42.004.000, ou seja 1,02% foram aplicados no ES. Do total dos recursos provenientes do
PRONAF, o E.S recebeu em 2001, 2,82%. Na safra de 2004/2005, do total de financiamentos
no Brasil para crédito de custeio a produtores e cooperativas, o E.S recebeu 1,25 % do total.
No caso específico do Estado do Espírito Santo, o número de estabelecimentos rurais
era de 73.288, com uma área geográfica de 46.098,77 Km² e um valor bruto de produção igual
a R$ 1.082.501.367,00, segundo dados do IBGE, 1995/1996.
O aumento da propriedade particular (Tabela 3), a manutenção da base da pequena
agricultura familiar e o aumento do latifúndio são outros elementos que se somam ao já
complexo paradoxo observado.
Apesar do avanço das propriedades havia neste momento 92.249 hectares de terras
produtivas não utilizadas. Isto dentre as cadastradas pelo levantamento. Mas ainda faltam
terras para chegar aos 4.618.400 hectares, no entanto, somente as áreas urbanas e as estradas
não explicam essa diferença.
162
Tabela 28 - Número de Estabelecimentos e Área - 1995/96 - Espírito Santo
163
Mapa 3 - Propriedades acima de 500 ha – Espírito Santo – 1995/96
Fonte: IBGE/UFES
164
Estes dados demonstram a extrema concentração fundiária que representa esta
atividade no Espírito Santo. Vejamos no mapa a seguir a sua distribuição geográfica:
Fonte: IBGE/UFES
165
A localização da indústria sucro-alcoleira representava, além de duas regiões, também
duas épocas distintas. No sul, a Usina Paineiras representa em Itapemirim as antigas e
modernas usinas centrais. Ao norte, em Linhares, São Mateus, Conceição da Barra, Boa
Esperança e Pedro Canário, representam a concrentação maciça desta monocultura.
O café retorna ao posto de segundo maior produtor, aumentando a área colhida no
período de 1990 a 2005, de 508.000 (17,46% da área brasileira) para 536.000 hectares
(22,88%).
A monocultura de árvores também aumenta muito sua área: de 1995 – 2000, segundo
análise dos dados LSPA/IBGE, realizada em dezembro de cada ano, temos o seguinte quadro:
Conceição da Barra %
Fonte: IBGE
166
Depois:
4- Jaguaré: 394.182 m³
5- Pedro Canário: 151.715 m³
6- Linhares: 22.184 m³
7- Pinheiros: 22.184 m³
8- Domingos Martins: 13.426 m³
9- Marechal Floriano: 11.365 m³
10- Colatina: 11.074 m³
11- Boa Esperança: 10.651 m³
12- Baixo Guandu: 8.321 m³
13- Águia Branca: 8.976 m³
14- Pancas: 7.576 m³
15- Alegre: 6.134 m³
Grande parte deste aumento se deu com o apoio governamental por meio da liberação
de recursos e licenças, da sustentação política e institucional, além do financiamento
destinado ao Programa Fomento FIorestal. O primeiro programa, o Fomento 1, que tinha
como meta plantar 28.000 ha, de 1990 a 2001, plantou uma área total de 21.252,24 hectares, e
destes, em 2001, 3% eram de espécies nativas e 7,42% estavam irregulares junto aos órgãos
competentes, sendo que os projetos, naquele momento, estavam distribuídos da seguinte
forma: Litoral Norte 35,93%, Noroeste 33,28%, Central 28,67% e Sul 2,12%. Este programa
foi renovado em 1999 (Dados obtidos no IDAF). O programa Fomento 2, iniciado em 2000,
tinha como meta 30.000 ha e até 2001 tinha plantado 1.253,31 hectares distribuídos da
seguinte forma: Central 57,01%, Litoral Norte 20,56%, Noroeste 17,76% e Sul 4,67%. O
programa Fomento 2 destinava 3,5 % da área para plantio de espécies nativas.
Os dados sobre distribuição fundiária para o estado do Espírito Santo, na década de
1990, mostravam que, nas últimas duas décadas, houve uma fragmentação dos
estabelecimentos menores que 100 ha, principalmente por sucessão hereditária, situação que
inviabiliza muitos pequenos produtores devido ao reduzido espaço para a produção. Em
contrapartida, os níveis de concentração fundiária no estado, principalmente na região Norte,
giravam em torno de 60 a 70% da área ocupada por grandes propriedades neste período. Tal
concentração residia fundamentalmente na expansão dos grandes projetos produtivos como,
por exemplo, as florestas homogêneas de eucalipto cujo cultivo estava predominantemente
167
disseminado com plantações para a produção de celulose e carvão. Outros cultivos em grande
escala e extensões são: a cana-de-açúcar e a fruticultura, bem como o avanço da pecuária de
corte e leiteira e da rápida expansão da atividade mineradora do granito.
Fonte: IBGE/UFES
168
Intrinsecamente à lógica do desenvolvimento desses projetos encontra-se o consumo
exagerado de insumos externos, ou seja, insumos de fora da propriedade que geralmente são
de alto custo e causam dependência financeira, tecnológica e biológica para a agricultura
camponesa.
É importante lembrar que em 1960, como vimos, o uso de adubos químicos era
raridade, mas o orgânico era usado em 90,56% das unidades. Mas em 1995/96 o uso de adubo
químico generalizou-se para todas as atividades, principalmente na horticultura, feijão, café,
eucalipto, milho e cana-de-açúcar. Vejamos as porcentagens na tabela abaixo.
Adubos químicos
%
Café 73,6
Bovinos 23,7
Monocultura de árvores 64,6
Banana 59,1
Cana-de-açúcar 60,2
Horticultura 90,9
Cacau 20,0
Feijão 81,5
Milho 61,6
Mandioca 41,4
Fonte: IBGE
Em 1995, do total dos tratores, 40,5% estava no café% e 15,8% na pecuária. Quanto à
potência, os de acima de 100 cv, a pecuária ficava com 28,8%, o café com 25,4% e a
monocultura de árvores com 13,8 %.
O CEASA representa um marco no abastecimento metropolitano com uma crescente
movimentação de produtos. Assim, no ano de sua instalação, em junho de 1977, sua
movimentação foi de 7.000 toneladas, em outubro de 2003 foi de 38.000 toneladas e em
setembro de 2005 foi de 42.614 toneladas. Possui a seguinte participação percentual dos
estados na oferta: o ES com 63,0 %, MG com 13,0%, BA com 8,0%, SP com 6,0% e os
demais com 10,0%.
169
Tabela 32 - Área das principais atividades agropecuárias - 1960, 1976 e 1995/6 - Espírito Santo
Os principais municípios capixabas ofertantes são: Santa Maria de Jetibá com 15,49%,
Domingos Martins com 5,66%, Linhares com 5,61%, Santa Teresa com 4,76% e Venda Nova
com 3,24%. Os principais produtos ofertados são batata com 11,35 %, tomate com 11,16%,
mamão com 7,20%, laranja com 7,08% e ovos com 5,35 %. Os principais estados
compradores, exceto o E.S, são: Bahia com 42,0%, Rio de Janeiro com 35,0% e Minas Gerais
com 11,5%. Além da central CEASA-ES em Cariacica, outras estruturas como o
Hortomercado da Praia do Suá em Vitória – ES, o Mercado Produtor de Laranja da Terra em
Laranja da Terra e o CEASA– Sul em Cachoeiro de Itapemirim.
A lógica do apoio a estas atividades, vinculada ao abastecimento metropolitano da
grande Vitória, determina em parte a sua localização, como podemos visualizar no mapa a
seguir.
170
Mapa 6 - Horticultura e viveiros – Espírito Santo – 1995/96
Fonte: IBGE/UFES
171
Tabela 33 - Distribuição Geográfica de Indicadores de infra-estrutura - 1995/96 - Espírito Santo
172
Mapa 7 - Lavoura Permanente – Espírito Santo – 1995/96 - UFES
173
sujeitando a renda da terra produzida pelos camponeses à sua lógica, qual seja, a
transformação da renda territorial em capital.
A territorialização do capital significa a desterritorialização do campesinato e vice e
versa. Da desterritorialização do campesinato produz-se o trabalho assalariado e o capitalista.
Os avanços desses processos sobre o território são determinados por um conjunto de fatores
políticos e econômicos.
Em 1995 no estado, residiam no estabelecimento 64% dos declarantes que ocupavam
44% da área. Das principais atividades, levando-se em conta as áreas ocupadas, teríamos
neste momento o seguinte quadro:
Tabela 35 - Área por atividade e pessoal residente e ocupado - 1995/96 - Espírito Santo
174
plantio de mandioca e horticultura, que utilizam 5,5 ha. e 4,2 ha., respectivamente, para cada
emprego gerado, gerando renda no espaço rural.
No entanto, se algumas culturas são mais integradas com o mercado, outras são mais
integradas entre si, gerando uma diversificação interna às unidades. Na tabela a seguir,
verifiquemos o percentual de área e de valor da produção dos principais produtos:
% sobre o
total da área
Madeira
Plantada
Horticultura
Cacau
Feijão 5,3
Mandioca 48,3
Arroz 4,5
Fonte: IBGE
Continuação da tabela 36
% sobre o total Arroz Cana-de-Açúcar Milho Mandioca Banana
da área
Madeira 98,8
Plantada
Horticultura
Cacau 74,0
Feijão 16,9
Milho
Mandioca
Arroz
Fonte: IBGE
175
Assim, nas áreas cuja principal atividade é o café, produzem também 66% de arroz,
56% de milho, 48% de feijão e 33% de banana e um pouco de cada um dos demais produtos.
Mesmo nas áreas de atividade pecuária, se verifica também essa diversificação de produtos.
Enquanto isso, o arroz, o milho, a mandioca e o feijão são os que são mais produzidos em
outras áreas onde não são realizadas as atividades principais. A monocultura de árvore, ao
contrário, é a menos solidária, sendo desenvolvida quase que totalmente somente nas áreas na
qual ela é a atividade principal. O mesmo ocorre com a monocultura da cana-de-açúcar.
O Estado como agente modernizador busca se legitimar por projetos técnicos que
supostamente aperfeiçoariam o conjunto das condições indispensáveis ao bem estar das
comunidades rurais, como a diversificação e a rentabilidade, o melhoramento de sementes e o
apoio à comercialização, numa perspectiva de bem comum inquestionável. Mas a realidade
histórica dos inúmeros programas tecnocráticos e seus resultados drásticos para a realidade
camponesa coloca dúvidas neste otimismo. Uma reflexão teórica dos desafios fundamentais
conflitantes se faz necessária.
A lógica da produção camponesa tem por finalidade não a acumulação, mas a garantia
de produção necessária à sua unidade de produção e consumo. Um item fundamental da sua
sobrevivência é a solidariedade camponesa, o que garante coesão social em caso de
dificuldades. A lógica do sistema de reprodução camponesa não pressiona necessariamente o
agricultor a maximizar sua produção e sua renda, mas procura, principalmente, otimizar a
utilização de sua força de trabalho.
A lógica do sistema camponês é, portanto, a reprodução do seu sistema local. Seu
objetivo prioritário é a produção necessária que deve ser obtida com o máximo de segurança.
Esta cultura de segurança desenvolvida na memória coletiva das coletividades rurais que se
recordam das dificuldades do passado, entra necessariamente em conflito com a obsessão
manifestada pelas lógicas modernizadoras do estado e das empresas, no cenário de
integração/marginalização.
O projeto de modernidade agrícola, isto é, o alinhamento rural sob a lógica da
produção industrial, permite aumentar o excedente mobilizável a preço de grandes riscos
sociais e ecológicos. As disparidades entre as atividades também são encontradas em outros
índices. Vejamos os dados sobre despesas e receitas no quadro a seguir:
176
Tabela 187 - Despesas e Receitas - 1995/96 - Espírito Santo
177
Mapa 8 - Parceiros – Espírito Santo – 1995/96
Os gastos com salários acima calculados aludem também, tanto ao uso da mão de obra
familiar como do sistema de parcerias, ao baixo valor da mão-de-obra rural. Outro elemento a
destacar neste período é a disparidade entre os dados de receita e os de pagamento de
impostos, exemplificado pela madeira plantada que consta como a segunda atividade em
receita e possui pagamento de impostos insignificante. No caso bovino, o fato de 97,04% não
usar ordenha mecânica, talvez ilustre os dados acima.
Por outro lado, os estabelecimentos de até 20 hectares somam 364.813 hectares,
totalizando 38.948 estabelecimentos, ou seja, 53% dos estabelecimentos, e totalizando
10,45% da área. (1995/96. IBGE)
178
Mapa 9 - Propriedade de 5 a 20 ha – Espírito Santo – 1995/96
179
Mapa 10 - Percentual de Ocupantes – Espírito Santo – 1995/96
Historicamente, o impacto desses projetos na vida cotidiana destas famílias tem como
reflexo mais preocupante, o passivo social de diminuição das terras de populações indígenas
(diminuição de 40 aldeias no final dos anos de 1960 para 7 na década de 1990), de
remanescentes de quilombolas (de 10 a 12 mil famílias para 1.300 na década de 1990) e de
diversas famílias camponesas.
Desta forma, tornam-se impressionantes os indicadores que demonstram a
permanência dos descendentes africanos e indígenas no estado. Em 2003, de uma população
total no estado de 3.097.498 habitantes, 1.554.337 se afirmam como pretos e pardos,
correspondendo a 50,18%. Enquanto isso, a identificação indígena ficou em 12.746 pessoas.
Considerando o fato de ser a década de 1950 um marco importante para a referência sobre as
mudanças da forma de ocupação do espaço agrário, temos naquele momento 355.868 pretos e
pardos, ou 37,17% da população. Os indígenas haviam desaparecido dos dados. Os elementos
para a explicação deste fenômeno da invisibilidade da presença indígena devem ser buscados
a partir da articulação de várias dinâmicas aqui apresentadas.
180
Outro fenômeno bem visível é a permanência da ruralidade como um todo. Se até a
década de 1960, como já visto, a população rural continuava a crescer, elevando consigo o
número de vilas e cidades, na década de 1980 este movimento retorna aos níveis de 1950. A
partir de 1980 ocorre uma estabilização, qual seja, um pouco abaixo de 700 mil pessoas
residentes (Dados IBGE), enquanto que no estado esta população continuava forte econômica
e culturalmente. Se em 1950 tínhamos, no ES, 33 municípios, em 1970 tínhamos 53,
atingindo 67 em 1991 e 77 em 2000. A permanência da população rural demarca grande parte
do território, apesar do processo urbano industrial e da desterritorialização das populações
rurais do estado. No interior destes municípios existem 249 distritos e 172 vilas. As redes que
se formam entre as comunidades rurais, com suas igrejas, vendas, partidas de futebol, de bola
de pau, de carteados, de espaço para reuniões e festas, demarcam fluxos diversos em várias
escalas, com meios de comunicação variados e, na maioria das vezes, a conversa direta é o
meio mais comum.
Estas redes, vilas e territorialidades imprimem uma marca rural ao território capixaba.
O mapa adiante representa os municípios e seus índices de ruralidade. O método de cálculo
deste índice aqui utilizado considera a população rural de cada município, além das
populações de localidades (vilas e distritos) onde a população rural era mais expressiva que a
urbana (mais que 50%), representam aqueles municípios que possuem uma representação
demográfica rural maior que a urbana e tais critérios nos permitem considerar estes
municípios como municípios rurais. Por outro lado muitos municípios representam aqueles
onde o urbano é predominante. Observamos, no entanto, que esta predominância da
população no espaço urbano em muitos municípios se dá, não pela expressividade da
população urbana sobre a rural, mas pelo esvaziamento da população rural. É notória,
portanto, a coincidência entre esta relação população urbana/esvaziamento do campo e a
ocupação do mesmo espaço pelas monoculturas anteriormente apresentadas (pecuária,
eucalipto e cana, principalmente).
O campo constitui-se num universo socialmente integrado ao conjunto da sociedade
brasileira e ao contexto atual das relações internacionais. Não se trata aqui, portanto, do
entendimento do campo como um universo isolado, autônomo em relação ao conjunto da
sociedade e que tenha uma lógica exclusiva de funcionamento e reprodução. Porém, o campo
mantém particularidades históricas, sociais, culturais e ecológicas que o diferencia.
Desse modo, o campo é um espaço rico e diverso, que tem suas particularidades e ao
mesmo tempo é produto e produtor de cultura. É essa capacidade produtora de cultura que o
181
constitui espaço de criação do novo e do criativo. É um espaço emancipatório, um território
fecundo de construção da democracia e da solidariedade, ao transformar-se no lugar não
apenas das lutas pelo direito à terra, mas também, pelo direito à educação, à saúde, à
organização da produção, pela preservação da natureza, etc.
O conceito de campo pode ser mais bem compreendido a partir do conceito de
território como o lugar marcado pelo humano. São lugares simbólicos permeados pela
diversidade cultural e étnico-racial, pela multiplicidade de geração e recriação de saberes, de
conhecimentos que são organizados com lógicas diferentes, de lutas, de mobilização social, de
estratégias de sustentabilidade. Assim, o desenvolvimento humano e o fortalecimento do
capital social, por meio dos vínculos sociais, culturais e de relações de pertencimento a um
determinado lugar, a um espaço vivido, são imprescindíveis para o desenvolvimento territorial
sustentável.
Este processo leva ao aspecto singular da estrutura agrária do ES que é a expressiva
participação da pequena exploração agrícola camponesa, cuja a pequena propriedade rural
representa 90% do total de imóveis e ocupa 44% da área total, evidenciando uma aparente
desconcentração fundiária.
Verifica-se, pois, que em relação ao país, nossa estrutura fundiária é de fato bem
menos concentrada. O que não quer dizer que a distribuição de terras aqui seja equitativa.
Avaliando o peso da grande propriedade na estrutura fundiária do estado tem-se que, embora
representem apenas 2% do total de imóveis, ocupam cerca de 25% da área total cadastrada.
Por outro lado, verifica-se no estado uma expressiva concentração fundiária que vem
aumentando de forma progressiva, enquanto que no país esse processo se estabilizou ao longo
das duas últimas décadas (1970-1995). Outro aspecto da desigualdade no campo
espiritossantense aparece quando comparamos a agricultura camponesa e a patronal no que se
refere ao acesso ao crédito e a participação no valor da produção. Embora a agricultura
camponesa contribua com 36% do valor total da produção, ela detém apenas 14% do valor
total dos financiamentos agrícolas. Por outro lado, a agricultura patronal, que contribuiu com
64% do valor da produção, tem uma participação de 86% no total de financiamento.
Ainda que não tenha sido na mesma intensidade que em outros estados, o modelo de
desenvolvimento rural implantado no ES tem sido marcado, assim como no restante do país,
pela desigualdade e exclusão de largas parcelas da população rural, pela tendência à
concentração da terra e da renda, pelo empobrecimento das famílias camponesas e pelo
fortalecimento da agricultura patronal.
182
Apesar de ainda ser predominante a mão-de-obra camponesa, seja do(a)
proprietário(a) ou de parceiros(as), aumenta o assalariamento temporário (principalmente nas
pequenas explorações, como complemento à força de trabalho camponesa nos momentos de
pico de mão-de-obra) e permanente (de maior expressão nas grandes propriedades, onde
substituem a mão-de-obra camponesa).
A adoção do pacote tecnológico vigente tem acarretado o aumento do impacto
ambiental gerado pelas atividades agrícolas (desmatamento, erosão do solo, contaminação do
meio ambiente por agrotóxicos), com graves consequências para a saúde da população e para
a qualidade dos recursos naturais. Em algumas regiões, chegou a comprometer os recursos
naturais sobre os quais se apoia a agricultura, como é o caso do problema da seca e do
esgotamento dos recursos hídricos e de erosão dos solos, principalmente na região norte do
estado, tornando a agricultura uma atividade de alto risco, principalmente para os(as)
pequenos(as) produtores(as).
A crise no setor urbano-industrial nos anos de 1990, associada à manutenção de um
perfil fundiário bastante concentrado, tem ocasionado o fracionamento das pequenas e médias
propriedades 24 e o aumento dos conflitos pela posse da terra e a violência no campo.
Observa-se ainda, nos últimos anos, a tendência ao aprofundamento deste processo.
Temos, de um lado, o agravamento da crise do emprego no setor urbano e, por outro, um
processo de expansão das atividades ligadas à grande produção rural capitalista (pecuária de
corte, reflorestamento, cana-de-açúcar) poupadoras de mão-de-obra e concentradoras de
terras, o que pode levar a um acirramento dos conflitos tanto no campo quanto nas cidades.
Segundo dados do INCRA e de movimentos sociais e sindicais, embora existam no
estado do ES cerca de 50.000 famílias de trabalhadoras e trabalhadores rurais sem terra, nos
últimos 20 anos foram assentadas apenas 3.356 famílias, numa média de 168 famílias
assentadas por ano, o que, mantido o ritmo e a estimativa de 50.000 famílias constantes,
levaria cerca de 300 anos para se concluir a Reforma Agrária no estado.
Além da pouca efetividade da Reforma Agrária no estado até então, observa-se ainda a
descontinuidade das políticas de Reforma Agrária dos governos anteriores. Isso significa que
as ações do poder público sobre a estrutura fundiária estavam condicionadas mais por fatores
conjunturais, resultantes de pressões e contrapressões exercidas pelos interesses vinculados à
24
Esta conclusão está baseada na análise dos dados do Cadastro do INCRA de 1992, 1998 e 2001, na qual se
verifica o aumento relativo dos minifúndios e diminuição de pequenas e médias propriedades, bem como a
redução da área média dos imóveis destas categorias.
183
questão da terra, do que por uma necessidade estratégica de reorientação do modelo de
desenvolvimento no campo.
É o caso, por exemplo, de se privilegiar a adoção, nos últimos anos do governo
anterior, de mecanismos de mercado para obtenção de terras (Banco da Terra e o Crédito
Fundiário) em detrimento do instituto da desapropriação. No caso do Espírito Santo, percebe-
se que as aquisições por meio de tais programas foram, em sua maior parte, de pequenas e
médias áreas, o que, se por um lado não contribui para a desconcentração da terra, por outro
alimenta o processo de fragmentação das pequenas e médias propriedades.
Outro aspecto a ser observado refere-se aos limites da atual legislação, que tem se
pautado em critérios meramente produtivistas, ignorando por completo os outros aspectos que
definem o cumprimento da função social da propriedade, como o respeito às legislações
ambiental e trabalhista.
184
4.3 DEMOCRACIA E NOVAS MEDIAÇÕES ENTRE CAPITAL, ESTADO E
SOCIEDADE
Grande parte da resistência e dos conflitos gerados por este projeto se concentraram
inicialmente nos municípios de Aracruz, Conceição da Barra e São Mateus, onde a empresa
concentra mais de 90% de suas atividades e onde os conflitos começaram. A fábrica da
Aracruz Celulose S/A está localizada sobre uma antiga aldeia indígena, a Macacos. Seus
plantios foram feitos sobre igrejas, cemitérios, vilas e inúmeros símbolos arqueológicos,
históricos e culturais. As comunidades indígenas depois de longa luta conseguiram demarcar
7.559 hectares, mas a empresa ainda ocupa 10.500 hectares de suas terras.
O naturalista Augusto Rusch, o jornalista Rogério Medeiros, o escritor Maciel de
Aguiar e o bispo Aldo Gerna denunciaram desde a década de 1960 os inúmeros impactos
ambientais, sociais, econômicos e culturais deste projeto nas áreas indígenas e quilombolas.
Os dados levantados por eles expuseram a importância social e econômica da agricultura
camponesa no estado, evidenciados na área ocupada e produtiva, na quantidade de produção e
na mão de obra empregada; em confronto com processos de degradação ambiental em todo o
estado, derivados do desmatamento e da implantação do desenvolvimento que vêm
impactando o meio ambiente de forma significativa, com redução drástica da biodiversidade
local e com a degradação de solos; recursos estes que estão na base da sustentabilidade da
agricultura camponesa. Destacam também o déficit hídrico que atingia naquele momento 68%
do estado. Outro elemento destacado foi a importância do café que se faz presente em quase
todos os sistemas de produção camponeses vigentes no estado.
Em janeiro de 1967 a Aracruz Florestal começou a se instalar no Espírito Santo por
meio de obras de construção e alguns desmatamentos. Os primeiros pés de eucalipto no
município de Aracruz datam de novembro de 1967, na localidade de Guarita, próximo à Barra
do Riacho. Nos anos de 1968 e 1969 a presença deste empreendimento já aparece em breves
relatos nos jornais locais. Este município contava na época com aproximadamente 26 mil
habitantes, sendo quase 20 mil na zona rural, ainda com 60% de sua mata nativa onde viviam
40 comunidades indígenas Tupiniquim.
A partir de 2004 as comunidades indígenas Tupiniquim e Guarani intensificam suas
lutas pela demarcação de seus territórios e ocupam e demarcam a posse dos 11.009 hectares já
identificados, mas ainda não demarcados pelo governo.
Os conflitos se acirram em 2005 com a demora dos procedimentos administrativos
para a demarcação. Ao mesmo tempo, entendimentos entre os Tupiniquins e os Guaranis,
185
FUNAI e Ministério da Justiça estabeleceram um cronograma de atividades com prazos bem
definidos, com o objetivo de agilizar a demarcação e a regularização das terras indígenas.
Estudos complementares da FUNAI foram elaborados oferecendo maior segurança jurídica
para a emissão da portaria declaratória pelo Ministro da Justiça e o ato homologatório do
Presidente da República.
Segundo o documento, a ocupação do litoral norte do Espírito Santo pelos Tupiniquim
era imemorial. Mesmo após massacres, guerras e catequese jesuítica, os Tupiniquim
permaneceram na região como grupo diferenciado da sociedade regional, mantendo a posse
de suas terras. Constituíam-se em pequenas comunidades compostas por grupos camponeses
voltados para a produção direta e vivendo segundo seus usos e costumes.
Apesar de muitas vezes serem referidos como “índios civilizados” por cronistas e
viajantes, ou mesmo como caboclos, os Tupiniquim mantiveram-se fiéis às suas tradições e
princípios culturais, que são acionados e muitas vezes reforçados em situações de conflito. As
práticas de não reconhecimento dos índios enquanto grupo étnico diferenciado, chegando
mesmo a considerá-los extintos ou inexistentes ou impondo-lhes uma “assimilação” à
sociedade regional, são frequentes ao longo da história brasileira.
O conhecimento e o domínio de um território funciona como fator de identificação e
troca entre as famílias indígenas. Regras de acesso à terra, tais como posse e domínio
comunal, aliadas à apropriação doméstica e individual do produto do trabalho e à
identificação de grupos camponeses aos roçados, como acontecia nas antigas aldeias
Tupiniquim, permitem a reprodução da vida tradicional entre os Tupiniquim e Guarani.
A degradação das condições ambientais (devido à destruição das matas nativas de
onde os índios sempre obtiveram seu sustento) e o plantio da monocultura de eucalipto
provocaram um sentimento de incerteza. Córregos secos, fauna escassa, terras inadequadas à
agricultura são hoje as características da área que já foi uma das mais diversificadas da região
Sudeste. A presença de extensas áreas homogêneas de plantio de eucaliptos submetidas a
intenso cultivo, para implantação da indústria de celulose, resultou em profundas
transformações no meio ambiente, fato este que a Empresa insiste em negar.
As sucessivas subtrações de terras em seu território tradicional, em função de políticas
equivocadas, vêm, ao longo dos anos, restringindo e, em alguma medida, inviabilizando os
direitos e perspectivas desses povos indígenas. Apesar de hoje intensamente ocupadas pelos
plantios de eucalipto, os índios pretendem reverter no futuro essa condição, ampliando as suas
áreas de cultivo e promovendo a recuperação ambiental dessas áreas. A prova de que isso é
186
possível pode ser constatada nas atuais terras indígenas, que no passado também foram
completamente ocupadas pelo eucalipto e onde hoje já existem plantios de café e
principalmente roças de mandioca, feijão, milho e outras culturas tradicionais.
Mas no dia 20 de janeiro de 2006 a Polícia Federal na calada da noite, em ação
arquitetada estrategicamente através de um mandado de reintegração de posse expedido por
um juiz federal do município de Linhares, norte do Espírito Santo, tendo como autora da ação
a empresa Aracruz Celulose, ataca a ocupação e as aldeias construídas nesta ocupação
ocasionando dezenas de feridos. Segundo a comissão de caciques era “inaceitável,
inacreditável, que ainda hoje, em pleno século 21, ainda somos caçados em nosso próprio
território, inclusive com a destruição das nossas aldeias”. (CCLTG, 24/01/2006 ) 25
Esta ação foi considerada pelas comunidades indígenas como uma tentativa de
massacre, uma ação de extermínio literalmente, que através de ação impetrada pela Aracruz
Celulose, um juiz federal de Linhares concedeu uma liminar com mandado de reintegração de
posse da área em litígio.
Nas áreas recentemente ocupadas, embora permaneça em litígio judicial, já se pode
ver ressurgir o modo tradicional de ocupação indígena nos locais onde havia antigas aldeias e
que por mais de três décadas foram invadidas pelo eucalipto. Cercados pelos plantios, os
índios estão construindo moradias mais adaptadas aos padrões tradicionais, feitas com
madeira, palha e barro. Em volta dessas, estão fazendo roças de subsistência, com a variedade
característica dos cultivos tradicionais, as quais garantem uma alimentação rica e adequada ao
seu modo de vida. Dentro da área identificada como T.I. Tupiniquim estão em reconstrução
duas antigas aldeias, e que não se dá de forma mais efetiva e abrangente em função de não
haver ainda o reconhecimento oficial dos direitos dos índios sobre essas terras que
tradicionalmente lhes pertence.
Para enfrentar condições adversas de sobrevivência, os Tupiniquim e os Guarani, em
conjunto com os técnicos do GT 0783/94, definiram consensualmente uma proposta de
unificação das Terras Indígenas Caieiras Velhas e Pau Brasil. Esta proposta resulta em uma
área de 14.270 hectares, incluídas as Terras Indígenas atualmente demarcadas e passaria a
denominar Terra Indígena Tupiniquim - T.I.Tupiniquim.
De acordo com a Constituição brasileira, são reconhecidos aos índios os direitos
originários às terras que tradicionalmente ocupam, definindo-as com base nos seguintes
pressupostos: habitação em caráter permanente, terras que utilizam para suas atividades
25
Nota da Comunidade Indígena Tupiniquim e Guarani, distribuída e publicada em diversos meios de
comunicação.
187
produtivas, terras que são imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários
ao seu bem estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Vimos que o grupo empresarial Aracruz, antes Aracruz Florestal, utilizando-se de
técnicas de coação e violência explícitas, capangas e coronéis, a partir de 1967, buscou fazer
valer o projeto de implantação de grandes plantios de eucalipto para a nova fábrica a ser
instalada, a Aracruz Celulose S/A. De olho no extenso tabuleiro, este projeto foi se
apropriando das terras e construindo a infraestrutura necessária, como fábrica, porto, estradas
de rodagem, estrada de ferro, sistema de abastecimento de água, energia e telefonia. A
quantidade de mão-de-obra necessária para o plantio e para as construções foi grande e as
pessoas vieram de várias partes do país. Para esta mão-de-obra foram produzidos lugares de
moradia e convivência que vão desde verdadeiras cidades projetadas até barracões, passando
por conjuntos populares e por sub-moradias, palafitas, marcando no espaço a hierarquia e a
segregação da própria empresa. Estes fluxos de alta e baixa necessidade de mão-de-obra
causam fortíssimos impactos sobra o espaço urbano regional, com o crescimento de áreas de
moradias precárias em cidades pequenas de toda a região na época de construção, e grande
desemprego após os períodos de construção e plantio.
As comunidades negras rurais e remanescentes de quilombos, no norte do Espírito
Santo, região denominada por eles de Sapé do Norte e que compreende os municípios de
Conceição da Barra e São Mateus, foram impactadas pela monocultura do eucalipto desde
que, a cerca de 40 anos, a Aracruz Celulose se estabeleceu na região. Antes da chegada da
empresa, havia 10 mil famílias, restaram depois cerca de 1.300 famílias.
Os dados do censo de 1991 dizem que o Espírito Santo era o pior estado do país em
desigualdade racial medida em anos de vida. A presença da cultura negra no Espírito Santo
era bastante expressiva, com registro no referido censo de 1,6 milhões de negros, totalizando
65% da população estadual. Dispersos hoje por todo território, a maior concentração ainda
está no norte do Espírito Santo. Os municípios de Conceição da Barra e São Mateus
apresentam um dos índices de maior concentração da monocultura de eucalipto no estado,
exatamente onde se encontra grande parte das comunidades negras rurais.
No Espírito Santo, em especial nas comunidades quilombolas do Sapé do Norte, como
não podia deixar de ser, esse quadro coincide com os seguintes impactos: processos de
insegurança alimentar com a diminuição da produção de subsistência, pesca, caça e coleta;
perdas das condições de emprego e trabalho implicando em intenso fluxo para as cidades
vizinhas e para a capital; degradação das terras devido ao uso intensivo de agrotóxicos e
188
envenenamento, assoreamento e diminuição dos recursos hídricos, manejo inadequado dos
solos, perda da biodiversidade, falta de matérias-primas para o artesanato para as mulheres,
principalmente e por fim, redução da qualidade de vida da população quilombola.
Se de um lado a agricultura moderna experimenta uma fase de dinamismo face à
evolução de seus principais agregados estruturais, por outro, as gritantes disparidades
regionais do país agravavam o problema do subemprego e do desemprego.
A agricultura é o setor onde o problema ambiental atinge não apenas os agentes
econômicos fora dela (alimentos contaminados, por exemplo), mas também degrada a sua
própria base produtiva, o que não ocorre na indústria. Neste setor, a poluição atinge
normalmente elementos externos a ela. Essa é talvez a maior especificidade da relação meio
ambiente - agricultura, se comparada à indústria.
É importante ressaltar que no Espírito Santo proliferam diversas experiências que
buscam superar o modelo atual de desenvolvimento, experiências junto ao campesinato nas
comunidades rurais, nos assentamentos de reforma agrária, nas comunidades indígenas e
quilombolas. Estas experiências são referências e os atores responsáveis por elas são parceiros
e protagonistas de um processo e de um saber em construção que devem ser potencializados e
irradiados através de um projeto, tornando visível o acúmulo nas experiências pedagógicas e
agroecológicas espalhadas pelo território capixaba.
Tais experiências nos leva à ideia de que uma geografia dos conflitos não é,
exatamente, uma cartografia das ações, pois não dizem respeito somente a um comportamento
orientado a um fim, mas sim às atividades pelas quais os homens constituem-se como conflito
social com seus inúmeros aspectos visíveis e invisíveis.
Assim para um espaço feito em conjunturas requer uma teoria capaz de pensar as
ações, as possibilidades, as circunstâncias, as vivências, as potências e suas virtualidades,
criando uma rede de conceitos que respeitem o presente e o movimento de presentificação, o
presente alargado e a extensão do presente, representados nos novos temas, cenas, atores,
fazeres e os sujeitos da ação.
Mas em 1967 a problemática era dos conflitos, pois a chegada da empresa Aracruz ao
Espírito Santo respondia à nova política econômica do estado que visava romper a
dependência da economia capixaba em relação à monocultura do café e promover incentivos
fiscais para a implantação de grandes indústrias. A companhia logo empreendeu o domínio
das terras, começando pelo município de Aracruz e depois abrangeu os municípios de
Conceição da Barra e São Mateus.
189
A implantação da monocultura do eucalipto e a instalação da Aracruz Celulose S.A.
modificou e afeta a vida dessa população. Os quilombolas do norte do estado perderam suas
terras diante da promessa da empresa de empregos temporários e das inúmeras formas de
violência pública e privada.
O despojo de seus territórios tradicionais também inviabilizou a agricultura de
subsistência e a criação de animais. Os poucos que resistiram permaneceram ilhados pelos
eucaliptos da empresa e hoje sobrevivem do plantio de mandioca para fazer farinha e da cana
para produzir melado. Utilizam, quando podem, os restos de madeira do eucalipto para
produzir carvão vegetal, além de outras pequenas produções, como frutas e verduras
produzidas no próprio quintal da casa, onde resta o mínimo de terra produtiva que puderam
conservar. Restaram-lhes, então, os ofícios mais degradantes, como carregar tonéis de
herbicidas e agrotóxicos para serem aplicados nos cultivos de eucalipto, de modo a facilitar a
colheita - já que essas substâncias extinguem qualquer outra forma de vida que não o
eucalipto. Em média, são jogados cerca de 250 mil litros de herbicidas por dia nas plantações
de eucalipto. Um dos venenos utilizados era o Tordon que, além se ilegal, por ser
comprovadamente cancerígeno e causador de doenças genéticas, não era indicado para esse
tipo de cultura. Mesmo assim, a substância foi utilizada em municípios onde o eucalipto foi
plantado. Todas as comunidades apresentam camponeses com sintomas de contaminação.
Além de representar riscos à saúde e à própria vida dos trabalhadores, era responsável pela
contaminação da água dos rios, causando também a morte por envenenamento de porcos,
galinhas e outros animais domésticos. O problema se tornou tão grave que não há mais um
córrego que não esteja contaminado nos municípios de Conceição da Barra e de São Mateus,
segundo relatam as comunidades.
Outro indício da devastação e do desequilíbrio ambiental causados pelo plantio de
eucalipto é o assoreamento dos rios, hoje praticamente secos, uma vez que a espécie exótica
plantada consome muita água, o que gera falta d’água atingindo não somente os animais,
como também a produção de qualquer tipo de alimento.
Assim, são muitos os atuais desafios para as populações quilombolas do Sapê do Norte
do Espírito Santo. Reocupar e resistir nas terras onde nasceram e se educaram, reconstruir o
trabalho em suas tradicionais lavouras de mandioca e nas farinheiras, organizar-se para o
acesso às políticas públicas de crédito agrícola, moradia, diversificar a produção para garantir
a segurança e autonomia alimentar e criar mecanismos de comercialização de seus produtos
no mercado local e regional.
190
Para cada um desses desafios, as atuais gerações terão de construir e percorrer um
longo caminho de transição. No Espírito Santo, uma tarefa fundamental da transição
quilombola consiste na construção das condições políticas, objetivas e subjetivas, para uma
assistência técnica agrícola, agrária e ambiental, que tenha por horizonte outros modelos de
apropriação, uso e significação do território, reunindo o recorte campesino, a educação
popular, a agricultura camponesa de base ecológica, a segurança alimentar, em uma estratégia
de reparação de Direitos.
A ideia era pensar as políticas públicas sob o prisma da transição: da monocultura para
a diversificação, dos produtos a base de agrotóxicos para os agroecológicos, do latifúndio para
a pequena produção, do mercado internacional para o local, do primado do lucro para o
primado da igualdade de direitos e dos princípios da economia popular solidária.
Mas a questão quilombola não se restringe ao Norte, ao contrário, a cada dia novas
comunidades se autodefinem quilombolas, pois vários núcleos escravocratas existiram no E.S
e com as resistências e aquilombamentos nas áreas não dominadas (nas áreas de matas,
serras, subindo os vales), se distribuíram por todo o território. Assim, à medida que as vitórias
dos movimentos negros da cidade e do campo ganham visibilidade, novas comunidades
adquirem a confiança na autoafirmação.
O processo tecnológico-produtivo da agricultura no Espírito Santo acarretou
contradições diversas, destacando-se a produção simultânea de riqueza e miséria; a utilização
de diferentes níveis tecnológicos nas distintas regiões e por produtos; e as formas desiguais de
tratamento nas relações de trabalho, apresentando modernas relações contrapostas a situações
de desrespeito às condições mínimas e legais de trabalho.
Vimos também que com a participação ativa do Estado, primeiramente ditatorial e
depois democrático, a expansão das monoculturas e dos latifúndios foi encoberto pelos
discursos e planos de linguagem técnica rebuscada e que as oposições a estas práticas e
discursos foram (e ainda são) cerceadas pela violência e pelo controle da máquina política
administrativa.
Cabe, portanto indicar neste momento as vozes e os movimentos que foram se
colocando como críticos a este processo. Já naquele contexto de ditadura militar as
Comunidades Eclesiais de Base - CEBs - e as Escolas Famílias Agrícolas - EFAs - se
constituíam em pontos de encontro para as conversas sobre a realidade das famílias rurais no
Espírito Santo.
191
Neste processo surge em 1968 o MEPES - Movimento de Educação Promocional do
Espírito Santo juntamente com as Escolas Famílias Agrícolas que buscavam a promoção
integral do homem rural, atuando no meio rural, promovendo e desenvolvendo a cultura por
meio da ação comunitária, principalmente nos municípios de Anchieta, Alfredo Chaves,
Iconha, Piúma, Presidente Kennedy, São Gabriel da Palha, Rio Bananal e São Mateus.
As EFAs são entidades que buscam promover o desenvolvimento sustentável do meio
rural por meio da formação dos jovens, num espírito de solidariedade, valorizando assim as
raízes culturais e multiraciais do povo, a educação para a cidadania, na qual a observação e a
experiência são valorizadas por meio da pedagogia da alternância. Primeiro trata-se de viver
situações concretas no meio camponês e sócio-profissional por meio de estadias e estágio.
Assim as EFAs buscaram se contrapor ao processo de desenvolvimento a partir do momento
em que este reproduz situações indesejáveis como o deslocamento da realidade rural,
predominando uma transposição da visão urbana para o campo, e a opção pelo modelo
elitizado de desenvolvimento brasileiro, que exclui a agricultura camponesa e continua
comprometido com os princípios da Revolução Verde que, nas últimas décadas, priorizou e
monopolizou a introdução de sementes, agroquímicos e máquinas na agricultura.
Nos documentos do movimento é argumentado que essa agricultura encontra-se em
crise por causa da insustentabilidade, dependência do mercado, alto consumo e exploração
dos recursos naturais, sem maiores preocupações com a biodiversidade, chegando a afetar a
bioética e a biossegurança de nosso planeta.
As CEBs funcionavam como espaço de conscientização da realidade vivida. Neste
prisma de animação e conscientização nasceram as oposições sindicais dos STR's (Sindicato
dos Trabalhadores Rurais) e, posteriormente, a conquista do sindicato mediante eleições. No
Norte capixaba destacaram-se as oposições dos STR's de Colatina, São Mateus, Linhares,
Barra de São Francisco, Pancas, Nova Venécia, acompanhados pela Comissão Pastoral da
Terra, na perspectiva de construção de um sindicalismo combativo. Esses sindicatos
promoveram importantes mobilizações, envolvendo os assalariados dos canaviais e das
plantações de eucalipto na luta por melhores condições de trabalho e salário. Os grupos de
oposição sindical, em muitos momentos, acabaram se transformando em grupos de Sem
Terra, cujo pilar central consistia no debate sobre a necessidade de possuir a terra para
sobreviver e trabalhar, uma vez que, muitas dessas terras espalhadas pela região não estavam
sendo utilizadas. É neste momento, nos últimos dias da ditadura militar, que se dá o
nascimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, no estado.
192
A modernização da agricultura e a implantação dos grandes projetos industriais
estatais no Espírito Santo vitimaram principalmente populações tradicionais, pequenos
agricultores e meeiros. Em sua maioria, esses excluídos foram empurrados para as periferias
urbanas do Espírito Santo vivendo em condições sub-humanas, o que resultou num aumento
da concentração fundiária no Estado e o acréscimo populacional das áreas urbanas.
O surgimento do primeiro grupo de Sem Terra se deu em 1983 na localidade de Pé
Sujo, no município de São Mateus. Composto basicamente de trabalhadores rurais
desempregados que passaram a ter acompanhamento e orientação do STR de São Mateus e de
padres ligados à pastoral social da igreja católica e passaram a conduzir ações e negociações
com o governo estadual visando a posse de terras para promover assentamentos.
Como meio de articulação autônoma dos trabalhadores rurais surge de forma decisiva
o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra no Espírito Santo no ano de 1985. Em
janeiro de 1985 foi realizado, na cidade de Curitiba-PR, o I Congresso Nacional dos Sem
Terra, contendo a participação de lideranças sindicais, agentes das pastorais das CEB's,
integrantes da Comissão Pastoral da Terra - CPT - e de trabalhadores rurais do Norte do
Espírito Santo. Neste processo surgem as primeiras ocupações e assentamentos conquistados.
Em 1986, fazendeiros do Norte do Estado fundaram a União Democrática Ruralista -
UDR - e passaram a contratar "pistoleiros” e a promover acordos políticos junto às esferas de
poder de modo a impedir a efetivação das ocupações. O reflexo desses conchavos entre as
elites latifundiárias e os poderes públicos pôde ser sentido quando a Fazenda Barra do
Cristalino foi ocupada em 06 de setembro de 1987 por 250 famílias de trabalhadores rurais
sem terra. Os mesmos foram recebidos a tiros por pistoleiros e policiais militares impedindo
que o comboio prosseguisse com a ocupação.
Em 06 de dezembro de 1987, a articulação dos assentados, sob a orientação do MST,
fundou o Centro Integrado de Desenvolvimento dos Assentados e Pequenos Agricultores do
Espírito Santo (CIDAP) com a finalidade de negociar projetos para os assentados e de servir
como entidade jurídica representante do MST. Nesse mesmo ano deu-se início à construção
do prédio no Km 44 da Rodovia São Mateus - Nova Venécia, numa área de 10 ha. Atualmente
o CIDAP funciona como centro de Formação do MST o que lhe concedeu uma nova
nomenclatura, Centro de Formação Maria Olinda ou CEFORMA.
O período entre os anos de 1989 e 1991 foi marcado pelo desencadeamento de uma
série de conflitos e pelo assassinato de lideranças do Movimento Sem Terra, tendo como
intermediários os fazendeiros da região que contavam com a conivência do poder executivo e
193
judiciário. Em várias dessas ações patrocinadas pela então UDR e apoiadas pela PM (Polícia
Militar) e pelo poder judiciário ficou evidente a intenção de esfacelar o movimento. O apoio
estatal pode ser verificado facilmente na fala pública proferida pelo então coronel de polícia
Wanzeler, “não permitirei a invasão de um palmo de terra no norte do estado a partir de
agora".
Após o ostracismo e a repressão que atingiram brutalmente o MST/ES, resultado do
conflito de 1989, o movimento ressurge das cinzas em 10 de Agosto de 1992, no qual novos
grupos de Sem Terras, compostos de aproximadamente de 250 famílias ocuparam a Fazenda
São Joaquim no município de Conceição da Barra. Esta ocupação foi, à primeira, de grande
porte realizada posteriormente àqueles acontecimentos de 1989.
Desta vez, as negociações tanto com o INCRA quanto com o Governo do Estado
foram rápidas, pois era grande o quantitativo de Sem Terras e tinha-se o temor de possíveis
conflitos. Como de praxe, os mesmos foram obrigados a deixar a fazenda mediante a
reintegração de posse, porém, ao contrário de outras vezes, a saída foi negociada e sem
violência por parte dos militares.
A ocupação da Fazenda São Joaquim marca uma nova fase de articulação do MST/ES
com outros setores da sociedade civil organizada, como sindicatos principalmente a CUT,
parlamentares do PT e de outros partidos e pastorais na capital do estado, possibilitando, desta
forma, maior suporte e defesa do MST e de sua bandeira.
Assim ao longo das décadas de 1970 e 1980 vozes isoladas e ações localizadas foram
se ampliando e fortalecendo a contestação ao pacto público e privado em torno do
desenvolvimento. Na década de 1980, a criação do MST, as atuações das igrejas, o
nascimento de novos partidos políticos, a perspectiva de uma nova constituição e as eleições
diretas para presidente colocaram uma primeira dúvida a este consenso. Nesta década, as
pressões e as negociações com o Estado permitiram a criação de alguns assentamentos e a
demarcação de parte dos territórios indígenas.
Na década de 1990, iniciado sob o clima das eleições de 1989, o fim do socialismo
realmente existente e do avanço dos discursos da nova ordem internacional, do neoliberalismo
e da globalização, aliado à crise do Estado e às privatizações, vão fazer com que,
principalmente na primeira metade da década de 1990, a crítica social ao desenvolvimento
fosse abafada. Neste contexto poucos direitos garantidos na Constituição de 1988 foram
regulamentados (ex. Territórios Quilombolas), não avançamos na demarcação das terras
indígenas, o número de assentamentos foram reduzidos e a política de reforma agrária de
194
mercado e o crédito rural foram as políticas que mais avançaram no espaço agrário capixaba.
Nesta década, ocupa o espaço público contestatório as Organizações Não Governamentais
(ONGs), principalmente aquelas consideradas ambientalistas.
É em torno da ECO-92 que a articulação entre ONGs do Espírito Santo e Bahia com o
grupo Greenpeace (que fizeram ações em Aracruz e Vitória), repercutiu nacional e
internacionalmente no momento em que a monocultura do eucalipto estava em franco
crescimento nos dois estados.
Assim as ONGs, a FASE, a CIMI, a APTA e o Fórum das ONGs Capixabas serão
importantes atores neste contexto em que a crítica ambiental formula os instrumentos
principais de atuação. As ações tinham na mediação do Estado sua principal estratégia, como
as ações civis públicas, os EIA Rimas, os Termos de Ajustamento de Condutas e a busca de
criação de mecanismos legais para bloquear o avanço das monoculturas no estado. É neste
contexto que em 1998 os indígenas e a Aracruz assinam um acordo, após uma ação de auto-
demarcação de seus territórios e a pressão do Governo Federal contra os indígenas.
A partir de 1999 intensificam-se a luta dos camponeses, indígenas, quilombolas e
ambientalistas contra a expansão da monocultura do eucalipto promovida pela Aracruz
Celulose com apoio do governo do estado. No cerne deste movimento estava a luta indígena,
considerada mãe de todas as lutas. A luta indígena data de mais de quinhentos anos. E muito
nos ensina.
Quando em meados do século XX a sociedade não-índia já decretava sua resolução, ou
seja, a extinção dos indígenas em território capixaba, a luta indígena provou sua existência, ou
re-existência. Da perda total de seus territórios e de todas as consequências desta perda, a
resistência e a luta foram aglutinando parceiros, principalmente quando passam a ser símbolo
nas conquistas frente a um gigante de fogo que tudo engole.
Estes apontamentos nos permitem o entendimento da agricultura, das culturas
agrárias e dos saberes da terra como antiguidade e modernidade, pois saberes tradicionais
rebeldes. Esta prática é fruto de todo um conhecimento prévio, anterior, de longa data, que
enquanto saber acumulado foi base para o surgimento do fenômeno agrícola. Não sendo
válido, portanto, uma separação ríspida entre coleta e agricultura, nomadismo e
sedentarismo, agricultura e floresta.
Esta diversidade de usos, das matas, dos animais, das pastagens, das ervas, das hortas,
dos pomares e das terras cultivadas, formando um complexo de uso comum que representou
durante quase toda a história da humanidade a quase totalidade das necessidades de
195
alimentação do homem, forma a base da denominada agricultura camponesa. Este complexo
camponês permaneceu dominante até o século XIX. Foi a intensificação do uso do solo, a
exploração da mão-de-obra camponesa e o aumento da área cultivada que propiciou o
aumento expressivo da produção de alimentos e o consequente aumento da população
mundial. Com o aumento do consumo e a mercantilização acentuada dos produtos agrícolas
em escala mundial verifica-se o aumento do espaço agrícola a partir da ocupação de terras
marginais, coletivas e de pousio.
Assim as revoluções agrícolas, industriais, urbanas e burguesas se entrelaçam num
processo pelo qual a terra, como substrato básico à riqueza, foi retirada daqueles que
diretamente nela trabalhavam, como forma de ampliação da acumulação da mais-valia, de
transformar o trabalho humano e a terra em mercadorias, de destituir controles sobre a terra
(desterritorialização), de centrar o poder na cidade (burguesia comercial-industrial e
financeiro) e de aprofundar a divisão social do trabalho (entre agricultores e artesãos, entre
trabalho manual e intelectual e entre cidade e campo).
De luta em luta, parte de suas reivindicações são aceitas quando em 1997 a FUNAI
reconhece como terras tradicionalmente ocupadas pelos Tupinikim e Guarani duas áreas
totalizando 18.070 ha. No entanto, estão demarcados apenas 7.061 ha. Diante disso, da
morosidade do estado, dos resultados calamitosos para a qualidade de vida e para a soberania
destes povos, do acordo forçado pelo Estado e pela empresa em 1998, no dia 17/05/2005 os
Tupiniquins e os Guaranis ocuparam e demarcaram os 11.009 ha, para acelerar os
procedimentos administrativos de demarcação pelo Governo Federal.
Em 1999 o Governo Estadual edita um Decreto Lei ampliando a área permitida para o
plantio em todos os municípios do estado. Estes plantios novos iriam atingir exatamente as
principais áreas de atuação da entidade. Após grandes mobilizações públicas das organizações
sociais e ambientais do estado, o governo anula o projeto. Neste momento novas formas de
ações e novos discursos vão emergir diferenciando-se do formato tecnicista e jurídico da
década de 1990, incluso nos discursos ambientalistas.
Ao longo de 1999 até o momento atual foram grandes os debates e mobilizações
contra esta monocultura, como foi, por exemplo, o seminário Os Danos Socioambientais da
Monocultura do Eucalipto no Espírito Santo e na Bahia. As entidades ampliam suas
citações do eucalipto como uma das principais atividades de impacto no uso dos solos
agrícolas do tabuleiro e mais recentemente das áreas serranas. Inicia-se também a percepção
na leitura do contexto das mudanças societárias e paradigmáticas contidas neste movimento
196
que ganha força neste movimento intitulado Movimento Alerta Contra o Deserto Verde
que passa a ser um espaço de articulação entre diversos movimentos e organizações do campo
e da cidade, organizações não governamentais, representantes de partidos e igrejas,
acadêmicos e principalmente camponeses, indígenas e quilombolas.
Esta articulação será um marco no novo padrão de conflitividade em conjunto com as
transformações na mediação entre o Estado e o capital privado no Espírito Santo. Esta rede
reunia à época uma diversidade visível de atores, participando comunidades indígenas,
quilombolas, organizações sociais do campo (MST, FETAES, MPA), acadêmicos,
ambientalistas, O.N.G.s, pequenos proprietários agrícolas, igrejas, lideranças políticas locais e
estaduais, sindicalistas, entre outros.
Pelo seu desenho, demarcava uma perspectiva da não dissociação entre o campo e a
cidade, a não dissociação entre a visão ambiental e a social e a não dissociação entre a visão
técnica e a visão política. Integrava os vários matizes do movimento social agrário, as várias
tendências políticas e as várias áreas do conhecimento. Este movimento colocava em questão
o modelo de desenvolvimento de uma região, a forma de gestão do território, o paradigma da
organização política dos próprios movimentos, o papel do Estado, os paradigmas acadêmicos
e vários dogmas ambientalistas.
Esta articulação derivava dos conflitos decorrentes dos inúmeros impactos da
monocultura de eucalipto em diversos municípios do Espírito Santo e Extremo sul da Bahia.
Com a proibição deste plantio no ES em 2001, o plantio e seus impactos ameaçavam avançar
para o estado do Rio de Janeiro. O avanço desta monocultura e a relação, comunicação e troca
de experiências entre as entidades destes três estados fez nascer no Rio de Janeiro uma
articulação buscando barrar este empreendimento. Assim o Movimento Alerta contra o
Deserto Verde ganha uma dimensão numa área que vai do norte do RJ até o sul da BA. No
final de maio de 2002 estes movimentos dos três estados se reuniram para definir uma pauta
comum de lutas, estabelecendo uma prática de encontros anuais que vai agregar novos estados
a cada ano.
Em vários momentos da história, os protagonismos dos movimentos sociais
produziram uma explosão que contrariava as análises correntes provocando crítica e fazendo
com que a problemática dos sujeitos fosse alterada. O descompasso entre estrutura e ação
dificulta acompanhar os deslocamentos do social, do político e do campo da historicidade. Por
isso, o acompanhamento dos fóruns, com seus diferentes atores e representações, obriga o
repensar os movimentos.
197
Enquanto processo de criação, a relação entre o anseio e a capacidade de ação do
sujeito protagônico coloca outras maneiras de pensar a política além da difundida. Mas a
visibilidade do sujeito não é simples, primeiro por conta da crise da legitimidade das
lideranças e da criação de novos atores especializados. Vivemos um momento do
fortalecimento do paradigma administrativo o que reforça o protagonismo dos mediadores e
das lideranças que têm, nesta capacidade programática, o próprio exercício de poder buscando
conferir segurança e ordem. Além disso, assistimos a um deslocamento violento para a
política do espetacular e da cenarização valorizando o capital da visibilidade. O debate sobre a
natureza, ou a forma como ela é incluída ou excluída do debate, trás junto a inclusão ou a
exclusão de lugares, regiões, paisagens, culturas e povos. A exclusão ou inclusão representa
formas de distribuição de poderes, como os poderes de definir centralidades e limites.
Centralidades e limites estão na base de noções caras à geografia como território,
região, paisagem, rede e lugar. Estas noções participam dos conflitos e sofrem a lógica do
nomadismo dos conceitos presentes nas diversas estratégias discursivas num debate
constantemente recontextualizado. 26 O poder de definição acadêmica também representa um
recorte, um limite e uma região. A territorialidade sempre foi uma categoria negligenciada.
De origem na etologia e na etnologia que leva a uma relação concreta, derivada de chão, terra
e natureza, mas também subjetiva, do latim territor, como lugar e terror, e com a antropologia
outro valor subjetivo como identidade. Uma primeira aproximação é a relação entre as
definições dos sujeitos da ação e sua área ecológica, enquanto base e vida econômica, como
substrato das definições e das classificações sociais.
26
A transição conceitual guarda relações com mudanças culturais, enquanto mudança do olhar em relação ao
objeto e também com as transformações da atividade política, enquanto história social das categorias e de suas
formas intermediárias.
198
5 – CAMPESINATO: LUTA E RESISTÊNCIAS
199
Para além da imagem de atraso e incapacidade, o que demonstram as organizações
camponesas é o descontentamento diante das matrizes desenvolvimentistas. As resistências
elencadas por vários documentos governamentais e empresariais, menos que partindo de um
tal subdesenvolvimento, partem da utopia da construção de um outro mundo.
Assim afirmam a questão do habitat tão importante para o pensamento crítico sobre a
sociedade atual e resgata elementos da reflexão sobre a relação homem e natureza. Humboldt
diz que a “existência não era senão o ponto de partida de onde cada coisa se lança em novas
combinações” (Humboldt, Quadros da Natureza, 1964, pág 200). Com o mundo do
movimento a realidade, o lugar e a noção de residência não se esvaem, são quadros da vida
que têm peso na produção humana, seu entorno vital.
Neste momento de ascendência outros movimentos e organizações do campo vão
surgir. O Movimento dos Pequenos Agricultores, M.P.A., nasce em 1998 tendo por base
muitas nascentes, pois vem de uma articulação que surgiu em vários lugares do país na
metade da década de 1990.
Priorizando a força de luta e vontade da militância e no discurso de mudança da
situação vivida pelo campesinato, o M.P.A. busca construir um movimento autônomo, de
massa, popular, que busca uma resposta alternativa à crise do atual modelo de produção.
Em seus documentos definem que o campesinato, o movimento camponês, a
identidade camponesa, o modo de vida e os valores do campesinato, aparecem com diversos
rostos: Indígenas, Quilombolas, Mestiços, Imigrantes Europeus, etc.
O MPA nasce propondo uma ruptura com o campo sindical procurando se diferenciar
deste a partir de uma construção que seja coletiva, de baixo para cima, de acordo com a
realidade concreta dos campesinos e através das mobilizações e das lutas, mas também
buscando alavancar recursos (créditos) junto aos Governos e instituições.
Partem de uma crítica aos grandes impactos causados no campo com os programas da
Revolução Verde e propõem um novo processo de produção em direção à agricultura
camponesa de base ecológica. Sua base é composta de mais de 10.000 famílias distribuídas
em mais de 30 municípios de várias regiões do estado e em mais de 350 comunidades.
O MPA se organiza por meio de entidades sem fins lucrativos que busca orientar-se no
sentido de articular, organizar e desenvolver ações junto às comunidades camponesas dando
suporte à sustentação social e à afirmação humana das mesmas.
200
Fica nítida, nos documentos deste movimento, a busca da capacidade de autonomia
econômica e política da agricultura em base familiar, principalmente frente ao estado, ao
mercado e às multinacionais.
Esta busca de autonomia norteia suas ações de combate ao uso de agrotóxicos por
meio de práticas alternativas de desenvolvimento, de práticas de manejo de florestas, da
recuperação de sementes crioulas, dos saberes populares, da organização dos espaços para
comercialização da produção e da criação de agroindústrias caseiras.
Estas práticas visam se contrapor aos desequilíbrios sociais, ambientais e culturais
gerados pelas políticas ditas desenvolvimentistas que se fizeram presentes a partir dos anos
sessenta, principalmente na região norte do Estado do Espírito Santo, com a implantação dos
projetos na área de celulose.
A partir desta perspectiva, o M.P.A. buscou se articular com outras organizações do
campo, como o MST para se afirmar como uma organização com o objetivo de repensar essa
realidade com práticas que visualizem outro modo de vida para além da monocultura, do uso
intensivo de produtos químicos, das sementes selecionadas e geneticamente modificadas, da
assistência técnica imposta e de toda uma visão voltada para o mercado externo.
Na relação dos movimentos e organizações com a fragmentação das redes e dos
espaços urbanos impõe a multiescalaridade e a complexidade como conteúdo do atual
momento para além das fronteiras estatais e conceituais.
As hierarquias complexas dos espaços e dos conceitos podem ser pensadas como
processo contínuo de produção e definição, rede que inclui o global, o local, o espaço todo. A
realidade apresenta a complexidade, na qual nós, sujeitos do conhecimento, somos parte de
um conjunto complexo de sujeitos que atuam em diversas escalas, construindo e
reconstruindo recortes políticos conceituais e revendo paradigmas.
Para resgatar os caminhos e estradas interrompidos pela concentração fundiária, estes
movimentos e organizações, procuram rompem o isolamento teórico e prático e se articulam
no campo e na cidade.
Dentro deste quadro de ações estão trabalhando a recuperação de técnicas simples e
que comprovadamente estão trazendo resultados surpreendentes, como, por exemplo, a
recuperação de solos por meio de adubação verde; estruturação da produção de farinha e
açúcar por meio de associações; recuperação de sementes de café mais resistentes à seca, com
maior durabilidade da lavoura e maior produtividade. Essas práticas diferentes se inserem no
imaginário e na cultura das comunidades como algo que fez e faz parte do cotidiano dessas
201
comunidades camponesas, mas que, agora, está ganhando outro significado (processo de re-
significação). Um elemento fundamental de suas análises é a importância da afirmação de seu
território como garantia da identidade e sentimento do campesinato.
A partir deste momento acentua as relações do MST, do MPA, indígenas e
quilombolas no campo da produção e no processo de organização da consciência sobre a
importância do sentimento de territorialidade, do espaço geográfico como espaço de
afirmação de identidade.
Estes movimentos tiveram importante papel nas mobilizações nas esferas estadual e
local com o objetivo de exigir do governo maior empenho e agilidade no que diz respeito à
materialização das políticas públicas voltadas para as comunidades camponesas e contra as
plantações de eucalipto da empresa Aracruz Celulose.
Outra organização importante deste novo momento dos conflitos agrários no estado a
partir da crise política da década de 1990, é a RACEFFAES (Regional das Associações dos
Centros Familiares de Formação em Alternância do Espírito Santo). Representando famílias e
educadores das escolas famílias agrícolas partem do conceito de campesinato e da agricultura
camponesa e deixam claro em seus textos a defesa da agroecologia, que segundo o
pensamento da organização, é um sistema que tenta imitar, ao máximo, a natureza, onde
cultivar a fraternidade, a solidariedade e independência do mercado e garantir a subsistência
equilibrada são as prioridades.
E esta concepção tornada metodologia propõe que seja uma prática vivencial e
educacional, que estabeleça relações ecológicas entre as pessoas e destas com os elementos
da natureza, relações de igualdade na diversidade, buscar a produção em vista das
necessidades do presente e do futuro com equilíbrio ambiental e social, produtores e
consumidores do campo e da cidade buscando um ambiente de vida (infra-estrutura –
paisagismo – implementos – maquinarias – utensílios) que reflitam valores da ruralidade.
Denominam esta concepção de Pedagogia da Alternância, um sistema próprio e apropriado
de educação do campo.
Tendo como referência esse entendimento é que se concebe os saberes do campo
como toda ação educativa que incorpora os espaços e as práticas sociais constitutivas dessas
populações e seus saberes. Por isso o campo é mais do que um perímetro não-urbano,
expressa um conjunto de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a
própria produção das condições da existência social e com as realizações da humanidade.
Toda essa diversidade de coletivos humanos apresenta formas específicas de produção de
202
saberes, conhecimentos, valores, culturas, ciências e tecnologias. Possuem especificidades
que devem ser respeitadas e incorporadas nas políticas públicas e nos projetos pedagógicos.
Todavia, o campo e a cidade ou o rural e o urbano são apreendidos como dois polos de um
continuum, com especificidades que não se anulam e nem se isolam, mas, antes de tudo,
articulam-se. É a compreensão de que os sujeitos têm história, participam de lutas sociais, têm
nome e rostos, gêneros, raças, etnias e gerações diferenciadas, o que significa levar em conta
as pessoas e os conhecimentos que estas possuem.
Nos lembra Henrique Leff, quando este nos fala do habitat como território, que fixa ou
assenta uma comunidade de seres vivos e uma população humana, impondo suas
determinações físicas e ecológicas ao ato de habitar, destacando em território e habitat os
processos organizadores através do organismo que o habita, da cultura que o significa, da
práxis que o transforma. O habitat é habitado pelas condições ecológicas de reprodução de
uma população, mas, por suas vez, é transformado por suas práticas culturais e reprodutivas
(simbolizações e significações que configuram identidades culturais e estilos étnicos
diversos), assim o habitat se define por ser habitado, sendo território habitado. O território é
uma territorialidade construída por práticas de apropriação do mundo, no habitat se forja a
cultura. Habitar o habitat é localizar, no território, um processo de reconstrução da natureza,
arraigar as u-topias.
Vimos que, quando os novos atores sociais do campo e da cidade – o crescimento dos
movimentos indígenas e quilombolas, novas redes e novas instituições – e a crítica dupla ao
Estado colocaram em dúvida o consenso desenvolvimentista, novos conceitos, novos espaços
de poder e novas relações foram criados demonstrando aberturas para a desconstrução do
caráter universal e natural da sociedade capitalista-liberal. Isso requer o questionamento das
pretensões de objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de naturalização e
legitimação dessa ordem social: o conjunto de saberes que conhecemos globalmente como
ciências sociais (LANDER, 2006).
Lander diz que um grande esforço extraordinariamente vigoroso e multifacetado vem
sendo realizado nos últimos anos em todas as partes do mundo. Cita as múltiplas vertentes do
feminismo, o questionamento da história europeia como história universal, o
desentranhamento da natureza do orientalismo, a exigência de abrir as ciências sociais, as
contribuições dos estudos subalternos na Índia, a produção dos intelectuais africanos, o amplo
espectro da chamada perspectiva pós-colonial e a busca da perspectiva de saberes não
eurocêntricos nas Américas.
203
Estas perspectivas encontram forças neutralizadoras tanto nas sucessivas separações
do mundo real como nas formas de conhecimento sobre as bases desse processo de sucessivas
separações, como na forma como se articulam os saberes modernos com a organização do
poder constitutivo do mundo moderno (LANDER, 2006, p. 23).
Mas apesar disso, um novo modo de ver o mundo está se construindo a partir de
algumas ideias centrais: concepção de comunidade e de participação, assim como de saber
popular (episteme de relação), a ideia de relação através da práxis, a redefinição do papel do
pesquisador social (reconhecimento do outro e de si mesmo), do caráter inacabado do
conhecimento, a multiplicidade de vozes, dos mundos e da vida (a pluralidade epistêmica), a
perspectiva da resistência (modos alternativos), a revisão de métodos e a filosofia da
libertação.
É possível que estas ideias e perspectivas também se encontrem presentes nos vários
conflitos na América Latina, e especificamente também no Espírito Santo. Mas para
reconhecê-las faz-se necessário, em parte, descortinar o discurso desenvolvimentista que
marca fortemente as análises e a produção do espaço capixaba. E disso deriva a proposição de
buscar nas bordas do domínio colonial-moderno-desenvolvimentista práticas e saberes
construídos na resistência e na relação com este domínio. Não na busca de identidades, mas
como ressalta Carlos W. Porto-Gonçalves (2006) há que reconhecer que há pensamentos que
aprenderam a viver entre lógicas distintas e a se mover entre distintos códigos, o que leva a
pensar também no campesinato etnicamente diferenciado.
Vandana Shiva nos fala que as lições de sobrevivência estão escondidas nas vidas e
nas crenças dos povos que habitam, vários pensares distintos, defendendo a possibilidade de
um meio onde podem participar as mais humildes espécies e as menores pessoas e com o
espaço para o pequeno, pois todos se ocupam de proteger e plantar. A emancipação não seria
vista somente a partir dos indicadores econômicos e dos direitos dos homens, incorporaria
outras subjetividades e práticas na gestão dos poderes.
Assim, a participação destas organizações (Indígenas, Quilombolas, MST, MPA e
RACEFFAES) no debate sobre as monoculturas e o desenvolvimento e, principalmente, a
participação destas nas lutas contra a monocultura do eucalipto promovem um rompimento
radical na pauta e nos discursos políticos e ambientalistas no estado. Na articulação dos
diferentes sujeitos contra-hegemônicos, uma diversidade de conceitos demonstra
solidariedade como forma de superação das dicotomias. Esta articulação é demonstrada no
204
hibridismo das pautas reivindicatórias. As noções identitárias localistas são universalizadas e
os códigos de identificação são reconstituídos nos auditórios comuns.
Centrados na identidade camponesa reforçam, em conjunto com os indígenas e
quilombolas, a questão da terra como central ao debate. Assim atualizam conceitos e
indígenas, quilombolas e camponeses vão imprimir à Rede Alerta Contra o Deserto Verde,
principalmente a partir de 1998/99, uma presença ativa no Espírito Santo, Bahia, Minas
Gerais e Rio de Janeiro.
A complexidade assume cada vez mais o centro dos debates. Isso não significa que
somente agora a realidade tornou-se complexa, mas que cada vez mais fica evidente que a
ciência moderna sempre buscou colonizar num processo progressivo e que coloca numa
ordem cômoda e regular tudo que escapa e fica além de sua fronteira. A polissemia dos
conceitos e o intenso debate teórico em tornos deles demonstram claramente o quanto estes
são e foram objetos de disputas. Os conflitos pelos conceitos e pelas definições são correlatos
aos conflitos sociais que lhes estimulam ou deles são derivados. Assim as definições de
políticas públicas passam por definições de conceitos e recortes disciplinares que legitimam
comunidades científicas e instituições. Desta forma, superar as dicotomias conceituais não é
um ato simplesmente discursivo, mas se insere num processo de tomada de decisões que
envolvem práticas políticas que vão ao encontro das solidariedades construídas ou em
construção, tanto pelas empresas, quanto pelos órgãos governamentais e pelos movimentos
socioambientais do campo e da cidade.
A desconstrução de conceitos como forma de superar dicotomias não pode ser
entendida como desmerecimento ou abandono, mas como uma forma de realizá-los, levando
ao extremo sua compreensão. Assim o conceito de reprodução leva à ultrapassagem da
fronteira do urbano para abarcar o espaço todo. O conceito de rede urbana, pelos novos
processos de territorialização e desterritorialização, leva a rede ao espaço rizomático para
dentro e para além do urbano.
Esta Rede Alerta contra o Deserto Verde, foi uma Rede constituída por um grupo
bastante heterogêneo de uma centena de organizações, com o objetivo de conter a expansão
da monocultura do eucalipto, denunciando os impactos socioambientais causados por sua
produção para celulose e carvão vegetal e cobrando publicamente do governo a reparação
pelos danos causados às comunidades de povos indígenas, quilombolas e agricultores
camponeses.
205
No Espírito Santo a Rede passa a articular importantes entidades que atuam nos
municípios onde as comunidades indígenas, quilombolas e camponesas (MST, MPA, CPT,
RACEFFAES) colocam em prática a crítica ao modelo hegemônico de desenvolvimento
fundado na lógica dos grandes projetos (celulose, mineração e metalurgia).
Assim os grandes projetos, a monocultura, o latifúndio e o monopólio do poder são
vistos como entraves à construção da emancipação política e social das organizações sociais
do campo.
Concentrando sua ação política na contraposição ao sistema produtivo do modelo
florestal/celulose, não só se apresenta publicamente como um movimento reativo, como
também propositivo na medida em que defende um modelo de desenvolvimento rural baseado
na agricultura camponesa e nos princípios da agricultura camponesa de base ecológica.
Quatro elementos centrais podem explicar esta articulação tão heterogênea de
indígenas, quilombolas e campesinato: a demora dos governos federais que se sucedem em
demarcar os territórios indígenas reconhecidos, o reconhecimento dos direitos e a visibilidade
da lutas dos quilombolas; a inviabilidade de reforma agrária diante da concentração e do
latifúndio que representava esta atividade e a disputa por terras agrícolas pelo programa
Fomento Florestal.
A luta pela terra passa a sintetizar um conjunto de lutas, pois para esta articulação em
Rede soma os diversos impactos desta atividade nas inúmeras comunidades: as questões das
terras, dos rios, dos alimentos, dos trabalhos e das identidades passam a ser representadas pelo
território.
Assim, se até 1998/99 o debate estava centrado no ambientalismo, as ações tinham um
caráter jurídico e urbano e as vozes eram das personalidades, a partir deste momento ganha
mais visibilidade a ruralidade na qual os indígenas, os quilombolas e o campesinato, as
territorialidades do campo e as ações e lutas pelos territórios produzem um debate de
conceitos que estrapola os limites parcelares das ciências. Floresta e reflorestamento, moderno
e modernização, desenvolvido e desenvolvimento foram palavras tão úteis que colocá-las em
suspenso e refletir sobre seus significados era um ato de rebeldia.
As questões territoriais vêm recebendo cada vez mais atenção nos meios acadêmicos e
sociais, refletindo o interesse da sociedade como um todo pela temática como resultado da
crescente e competitiva integração global de lugares e regiões. Como decorrência, o território
passa a ser entendido como uma síntese compreendendo expressão da complexidade, da
diversidade, da coesão, da solidariedade e da capacidade organizativa.
206
Este caminho de análise propõe o olhar multiescalar, o que nos remete a Novy (2002),
e as tentativas de atores sociais de delimitar um determinado espaço para que, no seu âmbito,
a ação possa transcorrer de acordo com regras determinadas, mas há também os espaços de
entrelaçamento, redes, lugar do conflito, campo e das concepções fundamentais, o que leva a
busca pela constituição dos campos, da estrutura e das práticas de poder que buscam orientar
as ações, construindo redes complexas de elementos distintos, muros, espaços, instituições,
regras, discursos. Possuindo no território forças que criam, constroem, reforçam,
desvalorizam e destroem espaços de poder, assim como pelo empenho em criar o poder sobre
o espaço como uma forma estrutural que solapa sempre de novo esse empenho de
territorialização. Novy coloca a importância do entendimento das resistências, das rupturas e
das casualidades.
Este encontro nos leva a compreender a simplicidade da afirmação de que o homem
(ainda) habita o mundo. Ele é sua morada. Para uma grande parcela da população a terra ainda
é meio e condição (e produto, se entendermos enquanto paisagem e obra). Existir é re-existir
(nos ensina a pensar Porto-Gonçalves). A re-existência inclui a resistência.
Diante da invisibilidade e das tentativas de desterritorialização que os indígenas,
quilombolas e camponeses vivenciaram ao longo deste processo de desenvolvimento, buscam
a fala pública para se colocarem também nas possibilidades de futuro.
A reprodução que se faz como resistência em deixar de ser camponês se faz também
inversamente para tornar-se novamente camponês, ou seja, os processos de (re) criação do
campesinato a partir dessas formas de luta e resistência contra a exploração e a exclusão. A
luta pela terra é um dos principais elementos para compreendermos a questão agrária. A
ocupação da terra e a resistência são formas de luta. A reforma agrária é outro elemento da
questão agrária. Pelo fato da não realização da reforma agrária, por meio de ocupações, os
sem-terra intensificam a luta, exigindo do governo a realização de uma política de
assentamentos rurais.
Partindo: da constatação de que território, territorialidade, territorialização,
desterritorialização e reterritorialização formam um conjunto diverso de momentos,
simultaneidades e dinâmicas da constituição do habitar; da concepção de que a geografia,
assim como as epistemologias das ciências parcelares, fundam-se na separação sujeito –
objeto e que faz de sua metodologia o classificar, nomear, espacializar, hierarquizar e validar;
do questionamento vigente sobre a ligação entre parcelamento científico, tecnocracia e
divisão social do trabalho na qual a semantização e resemantização estão inseridas em um
207
complexo jogo político de apropriação e uso das condições naturais de existência e; do papel
que a escrita, as normas técnicas e a legitimidade acadêmica possuem nas relações desiguais
numa sociedade patrimonialista como a brasileira, na qual por mais que os subalternizados
falam sua fala deve ser validade pelo Estado.
Poderíamos, a partir destes parâmetros, situar o processo de reconhecimento dos
territórios étnicos, culturais e agrários primeiramente na relação entre direito e norma. Ou
seja, o direito às condições naturais de existência e ao conteúdo diferenciado dado por um
grupo particular na relação de permanências e mudanças destas significações e o direito à
autodenominação e à autodeterminação não necessitam de uma norma escrita / cartorial/
positiva que lhe atribua estes direitos. Em segundo, entre a palavra escrita nas normas
(território, quilombo...) e o conteúdo diferenciado dado às palavras, nomeações e
renomeações.
Ao longo do processo de desterritorialização das populações diversas, em lugares
diversos dos continentes diversos, seus translados e reterritorializações e as múltiplas
resistências, ao longo do período escravagista diversas foram as atividades e diversos foram
os vínculos e relações entre escravos e não escravos, assim como foram diversas as
significações destas relações.
No período escravista-colonial-moderno as crises, as falências, as negações ao
trabalho e as diversas reações mútuas levaram a uma séria de re-significações, novos marcos
legais e novas dinâmicas sócio-econômicas e territoriais (industrialização, metropolização,
novos movimentos sociais, ecológicos e étnicos, “globalização”, etc). Para a população
“negra”, “africanos”, “descendentes de escravisados” as políticas públicas atingiram no
máximo a inclusão ao mundo do trabalho assalariado (de que forma?), sua folclorização (qual
recorte?), atitudes contra o preconceito (e sua solidificação?) e políticas compensatórias (nova
localização?).
Uma série de subalternizações foi localizando estas populações: não-livre, não-branco,
não-proprietário, não-escolarizado, não-urbano. Para as mulheres, as crianças e os idosos
acrescentam-se mais algumas. Por isso devemos refletir sobre o sentido profundo das
superações para estas populações. Quando a Geografia se coloca no debate, traz junto à
natureza e seus povos esquecidos.
A questão da re-produção é central para a geografia, pois cabe à geografia refletir
sobre a apropriação, o ordenamento e os usos do território pelas comunidades. O território
apresenta-se desta forma como mediação e como multiplicidade de sujeitos que se desdobram
208
em territorialidades e universalidade. Tendo o espaço como conceito central cabe pensar o
diálogo entre a estrutura, a expressão das relações e as próprias relações.
As classificações possuem intrinsecamente a relação entre o objetivismo e o
subjetivismo perpassados pelas relações de poder, por que a política é a arte das divisões, das
delimitações, das definições. Souza Santos (2000).
Neste sentido os conceitos de comunidade e etnicidade são exemplares. A comunidade
aparece como o menor grupo local, com território contínuo, com experiências comuns, com
instituições de serviços básicos, como unidade local, como consciência local de sua entidade,
como área ecológica, como grupo de pessoas interagindo, interesse e valores comuns, como
unitário e regional, representando a integração de três sistemas de cultura, o adaptativo, o
associativo e o ideológico, em suma, base ecológica, vida econômica, tradição e inovação.
Muitas vezes é construída por hipóteses pré-concebidas, generalizantes e não como formas de
construção do real, que faz parte do real representado. 27
As classificações e regionalizações como definidoras de poderes e definidas por
relações de poderes influem também na definição das resistências, pois, por exemplo, o
método e a teoria da aculturação não leva em conta o conflito. 28
Os conceitos de etnia, comunidade, camponês, caboclo, caipira, entre outros, estão em
luta, pois passam por interesses, diminuição, diluição, ocupam diversos lugares na população,
são subordinados, emancipados, continuamente conceituados, reconceituados, refundados,
recriados, num campo polissêmico.
As questões das territorialidades e dos territórios étnicos guardam relação com a noção
de comunidade, pois já correram o risco de naturalização, passaram por representação
centenária face ao Estado e nas últimas três décadas se constituem em novos conceitos,
derivados das lutas anti-colonialista e anti-classista, dando surgimento a novos termos (ex.
conflitos étnicos) que utilizam este conceito para representar o sentimento positivo de
pertencimento a um grupo cultural. Em período bem recente houve outro ressurgimento das
nacionalidades sufocadas, quando também aspectos negativos da etnicidade ressurgiram com
27
Assim se coloca a questão do método de pesquisa sobre as definições, sobre o ritual de entrada no objeto de
pesquisa, sobre a mediação, as lideranças, os mandos e sobre nossas projeções e substanciamento das lideranças,
levando a confusões e dificuldades de perceber as lideranças, num fetichismo da delegação, e que a todo o tempo
no campo somos objetos dos mediadores numa contínua negociação, confundindo o instituído e o instituinte.
Sendo essencial perceber de onde estes mediadores estão falando e que o controle da impressão passa pelo
controle da mediação e da interlocução, da forma onde se dá a qualificação do mediador. Na análise do campo,
não separa os entrevistados e os informantes da análise, mistura quem fala e quem constrói a narrativa,
procurando situar o lugar e a situação da fala.
28
A ideia de aculturação contribuiu, para a solidificação da antropologia aplicada, instrumento de planejamento.
Os contestadores propõem o princípio da ação, como uma intervenção a serviço dos observados, em defesa das
comunidades.
209
a problemática da imigração e de sua repressão. Porém, com o advento dos novos
movimentos e de novas comunidades surgem novos e vários critérios (línguas, culturas,
etnias, misturas..) construindo o sentido do pertencimento construído pela organização
política e de novos princípios de aceitação e justificação como o de tolerância.
Neste contexto o conceito de etnia ganha força, em detrimento de comunidade,
sertanejo, caboclo, seringueiro. Por mais que haja permanências, coexistindo com novas e
antigas conceituações, ocorrem mudanças no significado do conceito, mantendo algo em
comum, a insistência na identidade com novos direitos derivados do caráter do grupo, pois o
direito e as definições já são produtos de uma luta.
As novas políticas étnicas pelos reconhecimentos, representam lutas além ou contra
certos reconhecimentos. A mudança no significado da palavra comunidade se situa na relação
entre as comunidades locais territorializadas e as comunidades virtuais, diluídas pela
comunicação, interação e organização de distintas ordens, como duas ordens escalares. As
redefinições atingem principalmente noções “intermediárias”, como de caboclos, de pardos,
de caipiras, de caiçaras, pois não se afirmam como conceitos, pela falta de existência coletiva,
porque não se constituem como movimentos sociais reconhecidos. Somente ações
interessadas não são suficientes para se definir. Este é o plano das possibilidades e
dificuldades para surgirem novos conceitos. 29
O fenômeno da etnicidade não tem objetividade clara como também é um paradoxo,
pois entra a relação temporal, memorial, as novas e as antigas etnias. Na delimitação do
objeto de investigação participam vários elementos (gênero, região, classe, religião...) o que
permite múltiplas classificações e formação de múltiplas identidades com diferentes
categorias étnicas. Mas três são os caminhos da etinicidade. Um que vincula aos laços
inseparáveis, por um certo contrato, tomados como dados, pré-existentes. Outro que possui
como idéias centrais a de ser social e situacionalmente construída, a partir das circunstâncias e
das habilidades. E um terceiro que parte da idéia de fronteira, do isolamento e suas relações,
seu campo de relação, que permeável permite interação e troca. Mas sofre na sua definição e
delimitação uma série de camuflagem: acomodação, aculturação, adaptação, aclimatação,
assimilação, miscigenação e estranhamento.
29
Os movimentos também têm que tratar com a fluidez dos conceitos para outro conjunto da argumentação,
numa re-semantização, assim o direito, por isso, não é mero conhecimento dos direitos, mas no quadro dos
direitos são repensados a própria maneira de conceituação burocrática tem que seguir as exigências
internacionais e as lutas locais. Para fora é um simples indicador, mas este não é a política, mas a partir deste
indicador dá início à política étnica.
210
Na definição dos limites territoriais e sociais cabe perscrutar onde se formulam as
hipóteses e teorias e quais unidades serão definidas, questionando noções como sendo de
variações ecológicas, heranças culturais, regiões culturais e nicho ecológico? Pois, na medida
em que os atores sociais assumem determinadas categorias étnicas, formam grupos étnicos,
organizacional e politicamente. Na delimitação do grupo deve-se pensar tanto o limite étnico
(social) como o conteúdo plural relacional, pois o lugar da precisão deve aparecer na
30
circunstância levando-se em conta que o conflito é um elemento da persistência. São
31
territórios teóricos re-significados juntamente com os territórios concretos. Ter como
referência a noção de conflito necessita localizar o lugar institucional de manifestação e o
novo campo de lutas, que expõe diferenças de representação, práticas e interesses e recoloca a
relação entre fatores objetivos e subjetivos.
O sujeito desta perspectiva é construção e existência coletivas que se instituem na
diversidade de movimentos e de redes sociais que redesenham o território conquistando o
reconhecimento de direitos, ampliando suas pautas e multiplicando suas instâncias de
interlocução. 32
Este caminho possibilita aos saberes nativos das populações tradicionais legitimidade
política para além da racionalidade econômica. A participação política institucional nos
parlamentos e executivos, nos conselhos, coloca seus saberes e discursos numa relação de
poder como espelho para as identidades, refletindo a complexidade político, jurídico e cultural
das territorialidades específicas. Nesta dimensão relacional, ocorrem frequentes colisões entre
as lógicas e práticas das comunidades na relação com o Estado e as empresas afetando as
políticas, indo além do direito como técnica que disciplina a coexistência. 33
Outro conceito que ganha ressonância na análise é o de rede, pois apesar da busca da
superação da geometrização do mundo, a dimensão territorial continua sendo um elemento de
30
Refletir sobre os interlocutores e estratégias discursivas, na relação de fixidez e flexibilidade, identidade e
fronteira, autoatribuição e atribuição externa estigmatizada de identidades. A fronteira é o elemento explicativo
da identidade pois integra a fixidez, o flexível e o variável e as evocações.
31
“Daí, a dinâmica do lugar ser uma questão permanente de preservação do pedaço, ou, de outro modo, do
espaço de vida e do entorno. Mas, a luta pela preservação do espaço de vida e do entorno começa, com o tempo,
a modificar as relações que definem o lugar.” (Silva, 1986, p. 142).
32
Territórios possíveis (Silva, 1986, p. 160)
33
Ou como diz Gonçalves, “a dimensão globalizada não necessariamente leva a uma fragmentação política,
como muitos querem fazer crer. Ao contrário, diversos movimentos sociais têm se forjado e se constituído
exatamente em razão dessa escala mundial e, desse modo, se inserido no debate político, conquistando o direito
de ser ouvidos e de interferir nos seus destinos. O contêiner de poder de que nos falara Giddens, em nosso caso o
Estado Nacional, ouve menos esses protagonistas do que seu equivalente em escala internacional. Desse modo,
esses movimentos sociais colocam, explicitamente, a necessidade de participação democrática, o que por si
mesmo. Estabelece a necessidade de uma instância de regulação das posições conflitantes e, nesse sentido,
redimensionam o papel do Estado que, até aqui, se constituiu contra ‘os de baixo’” (2001, p. 192)
211
explicação dos fatos como também o é para o entendimento da questão do novo personagem.
Pois mesmo deslocado o debate para o problema do ser, da existência humana, da existência
do corpo, da corporeidade do corpo, da matéria, do espaço vivido, concebido e da
representação do espaço, do reforço da tradição, da supressão do múltiplo dentro do homem e
do discurso da identidade, a rede mantém as categorias básicas da localização e da
distribuição, tendo a extensão como derivado.
Temos que passar pela dialética dos conceitos de distribuição e localização, pois o
espaço é ontologicamente a contradição na relação dos dois, distribuição (alteridade, múltiplo,
diversidade) e localização (centralidade, identidade), mantendo esta geograficidade como uma
tensão do humano.
Se território, na perspectiva materialista, possui dimensão física representando recurso
e abrigo, no cyber espaço, com a anunciada perda da materialidade e com o fim das
distâncias, representa a desterritorialização da terra. Na perspectiva do relativo e do
relacional, além da localização (econômico/empresa), do político (controles) e da
desmaterialização (fim das fronteiras), o território incorpora o cultural relacional e simbólico,
pela apropriação e valores individuais das experiências integradas. Com a desterritorialização,
o território perde sua relevância como identidade, entendendo-o como mobilidade que se
repete. O que coloca em evidência as redes, pois rede e território se articulam, as redes e os
territórios mutuamente se constituem, pelo fato que rede é trabalho, inteligência, princípio
associativo e possui como conteúdo o movimento.
A rede entendida para além da técnica recompõe o território, pluralizando os
parâmetros da geografia, pois a recomposição deriva dos movimentos, das descontinuidades e
das continuidades, no tempo e no espaço, da circularidade, em torno dos circuitos espaciais de
poder, de decisões, de ordem e de comandos. E desta forma re-politiza o espaço colocando em
cena as territorialidades. Na análise dos conflitos a noção de escala teve que ser colocada em
questão, isto a partir da compreensão de que nas múltiplas escalas 34 de construção das
identidades, novas relações de poder se produzem num fenômeno político novo, no qual se
faz necessário mapear as qualidades da ação e as escalas dos campos de poder. Nas estratégias
trans-escalares das resistências há permanente tensão entre as diferentes escalas de atuação
34
Castro (2000) propõem a discussão da escala em três questões, a das dificuldades que o raciocínio analítico
entre as escalas cartográficas e geográfica estabeleceram na utilização do conceito para abordar a complexidade
dos fenômenos espaciais e as tentativas de ir além destas limitações, a escala como um problema metodológico
essencial para a compreensão do sentido e da visibilidade dos fenômenos numa perspectiva espacial e, por fim, a
escala como uma estratégia de apreensão da realidade, que define o campo empírico da pesquisa.
212
(concentração, localização e expansão). O acúmulo de análises sobre rede na geografia
possibilita pensá-la de forma multiescalar, levando em conta algumas abordagens: as
abordagens empíricas, que priorizam a conexão física e visível e que parte das repartições das
funções e dos equipamentos duráveis, dando prioridade às centralidades e hierarquias,
constituindo redes pragmáticas; as abordagens analíticas que condução campo da abstração
como uma possibilidade de leitura do mundo e explicação da complexidade do espaço e da
teia de relações e fluidez; as abordagens da representação, como um novo paradigma de
significações, que incorporam as grandes linhas de abordagem analítica, tendo a rede não
como um conceito, mas como um escopo analítico; as abordagens dos sistemas, como campo
de significados (fixos e fluxos, nódulos, teia, relações, ações recíprocas, preferências
mutuamente apoiadas, redes e objetos técnicos, poder, pontos, nós, atores que constroem suas
ações e que se desdobram na construção da rede, aproximação, distensão, hierarquia,
densidade, vertical, piramidal); as abordagens da estrutura como conceito operante e rede
como conjunto de nós interconectados, estrutura estruturante que cria topologias e lógica dos
lugares, posições sociais, definem inclusão e exclusão; as abordagens do movimento, tendo a
rede como uma forma de sociabilidade e tecido.
Cabe, desta forma, pensar a rede para além das hierarquias, das centralidades, das
pirâmides, das hegemonias e dos nódulos e fazer um exercício em busca das interconexões,
horizontalidades, vontades, diferenças, isonomias, descentralizações, compartilhamento de
valores e objetivos, comunicações, conteúdos, sentidos e qualidade dos sentidos das conexões
e das tecituras.
Nos recortes das escalas e nas definições das regiões ocorrem conflitos que se
acentuam com a explosão, da interescalaridade com a monoescalaridade, da
multisustentabilidade com a hierarquia interescalar, da autonomia com a interdependência, da
solidariedade com a auto explicação dos lugares, da complexidade com o equilíbrio.
Mas não poderíamos caminhar mais sem perscrutar o conceito de região, pois é por ele
que passa os procedimentos de definir identidades, dividir e dar visibilidade a zonas distintas
é intrínseco à metodologia de mapeamento e por isso é necessário pensar sobre a re-
conceituação das regiões inseridas no contexto.
213
Esta re-conceituação é necessária para incorporar as dimensões simbólicas e os
diversos usos das condições naturais. Se as perspectivas étnicas fazem repensar noções
derivadas do conceito terra, a perspectiva organizativa faz repensar a noção de território. Pois
esta perspectiva traz junto a existência coletiva, a construção da identidade, o sentido coletivo
de autodefinição, as territorialidades específicas e as fronteiras socialmente construída. Para
isto Almeida propõe uma ruptura com o saber colonizador e colonizado, que apesar de se auto
identificar com uma certa visão objetivista, partem de noções pré-concebidas, como de
homem, meio, quadro natural e recursos, vindos da biologia e da botânica. Este princípio
organizativo representa um processo de desnaturalização propostos pelas ciências sociais,
numa postura relacional que definam identidade a partir da sociologia do conflito. O que se
questiona também é a forma empresarial e mercantil de compreensão do mundo no qual a
competitividade é um padrão universal. Diante disso a solidariedade nas lutas indicam outro
locus de compreensão do mundo e das possibilidades de futuro.
Os conflitos e os conceitos de rede e território se apresentam não somente como
recortes de análise, complementares e/ou conflituosas, mas também formas existenciais
complementares e/ou conflituosas. Técnica, natureza e sociedade se apresentam em
simultaneidade. A escolha de um modelo de equipamento, feito na Noruega, ao se instalar no
Espírito Santo determina o tipo de plantio, a idade do corte, o uso dos recursos naturais,
determina a mão de obra, o ritmo da produção e a estrutura fundiária, entre outras dimensões
da vida.
As escalas não se apresentam somente como recortes geométricos, mas como
momentos da ação e da reflexão de sujeitos diferenciados e com estratégicas discursivas
diferenciadas para cada escala. E a mediação é desterritorialização e reterritorializazão
constante. A presença teimosa do corpo, da fala e da paisagem dos quilombolas, dos indígenas
e dos camponeses deixa visível a contestação ao conceito do urbano como espaço total. No
mínimo a dúvida.
As promessas de emprego nas grandes indústrias levam à novas formas de pensar
sobre o trabalho. De emancipação humana para sugeição ao capital. O conceito de classe de
confunde quando frente a frente se colocam os impactados pelos grandes projetos.
Ao final deste ciclo de desenvolvimento e na preparação do próximo se questiona o
sentido mesmo do moderno. Se as promessas elaboradas nos documentos acima discutidos
foram cumpridas, por que das resistencias? O que na fábula da globalização continha de
exclusão? Os discursos que tiraram dos caponeses, indígenas e quilombolas o sentido do
214
futuro, procurando aprisionar num passado alegórico milhares de famílias como norma de
legitimar as expropriações, estão sendo constantemente satirizadas, pois passíveis de serem
desconstruídas à luz das evidências e do vivido.
A agricultura camponesa no Espírito Santo, de raizes diversas, vem resistindo a todas
as tentativas de exclusão, através do apego à terra, ao território, à comunidade e ao mundo.
Além de questionarem os resultados do desenvolvimento trazem elementos da crítica ao
próprio sentido de pensar e viver para o desenvolvimento.
Portanto, é sobre outra lógica e outras linguagens que indígenas, quilombolas e
camponeses vem construíndo seu futuro, onde as lutas e transformações sofridas formam
gerações, sentidos e representações prenhes de significados.
Assim, estas ações e falas nos colocam de frente com nossas mais profundas raízes e
sobre elas Sérgio Buarque de Holanda nos adverte que podemos ensaiar a organização de
nossa desordem segundo esquemas sábios e de virtude provada, mas há de restar um mundo
de essências mais íntimas que, esse permanecerá sempre intacto, irredutível e desdenhoso das
intenções humanas.
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