Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Eu me vejo como um filósofo fracassado que, por meio de ensaios aparentemente *Este Dossiê originou-
políticos ou filosóficos, tenta fazer passar de contrabando reflexões originalmente se de uma “Sessão Es-
pecial” no Encontro da
filosóficas... Eu não compreendo a filosofia à maneira dos criadores de grandes
Anpocs de outubro
sistemas filosóficos, mas como a tentativa de se compreender, de se descobrir, de se 2007, organizada para
liberar, de se criar. A vida, e a vida humana em particular, é autocriação... O que homenagear André
importa compreender antes de tudo é que um Ser só pode se compreender, se Gorz, que se suicida-
liberar, ser responsável por si mesmo na medida em que é consciente de produzir- ra, juntamente com
sua mulher Dorine, em
se a si mesmo: onde ele se vive como sujeito de sua existência (André Gorz)1.
setembro daquele ano.
Esta passagem diz, ao mesmo tempo, muito e pouco sobre André Gorz. 1. Trecho de uma entre-
vista de André Gorz,
Muito porque parece revelar um traço de sua personalidade, perceptível
concedida a Martin
sobretudo para quem o conheceu pessoalmente: seu jeito discreto podia ser Junder e Reiner Mais-
confundido com timidez. Pode, por outro lado, dizer pouco porque parece chen, durante um se-
não fazer jus à importância de sua obra, já naquela época, como uma con- minário na Alemanha,
tribuição para a teoria social contemporânea. Mas talvez tudo isso se expli- em outubro de 1983; a
entrevista foi publicada
que também pela compreensão que tinha de si mesmo – evidente já em
em inglês como um
seus primeiros escritos e desde sua primeira infância – como um estranho “afterword” ao livro
neste mundo de alienação; mundo que, aliás, foi objeto constante de crítica The Traitor, pela edito-
em toda sua obra; lutou, portanto, por um mundo no qual as pessoas pu- ra Verso, em 1989, pp.
dessem ser sujeitos de sua própria existência até seu último ato. A morte 273-307; ela foi tam-
bém publicada em
por suicídio junto com Dorine, com quem partilhou a vida por sessenta
francês recentemente, anos, em setembro de 2007, embora tenha chocado e surpreendido muitos
no livro organizado em de nós, foi ao que tudo indica uma escolha existencial, condizente com sua
sua homenagem por
filosofia.
Christophe Fourel, An-
dré Gorz: un penseur
pour le XXIe siècle, Paris, De Viena a Paris
La Découverte, 2009,
pp. 179-197. André Gorz nasceu em Viena, na Áustria, em 9 de fevereiro de 1923; ou
melhor, ele só nasceu bem mais tarde, 1958. Quem nasceu em Viena, em
fevereiro de 1923, foi Gerhardt Hirsch, filho de Robert Hirsch e Maria
Hirsch. Robert e Maria, ele judeu e ela católica, trocaram o Hirsch por
Horst em 1930 para se protegerem do antissemitismo então emergente, fa-
zendo com que nosso personagem tivesse um segundo nascimento. Assim,
em 1930, aos 7 anos de idade, Gerhardt Hirsch tornou-se Gerhardt Horst.
Em 1939, quando a Áustria foi ocupada pelo exército de Hitler, Gerhardt
2.A expressão “um dis- tinha 16 anos de idade; com a prisão de seu pai, sua mãe achou por bem
cípulo emancipado” é
enviá-lo para a Suíça, para evitar sua convocação ou mesmo uma eventual
de Christophe Fourel;
ver a introdução do li-
prisão. Ali frequentou o Instituto Montana, perto de Zurique, e foi então
vro citado na nota an- que decidiu dedicar-se ao estudo da língua francesa. Mudou-se para Lausanne
terior. em 1941, para estudar engenharia química, onde também entrou em con-
3.Ver, a respeito, Josué tato com os escritos de Sartre, de quem se tornou “um discípulo emancipa-
Pereira da Silva, André do”2 e cuja obra constitui-se numa das principais influências em sua forma-
Gorz: trabalho e políti- ção intelectual. Além de Sartre, Karl Marx e, mais tarde, Ivan Illich são
ca, São Paulo, Anna- outros dois autores em quem Gorz buscou inspiração3. Porém, ele encon-
blume, 2002; Finn
trou-se com Sartre pela primeira vez somente em 1946, em Genebra, du-
Bowring, André Gorz
and the Sartrean Lega- rante uma conferência do filósofo francês, para a qual ele fora convidado
cy, Londres, Macmi- por ser um dos poucos que, na Suíça, conhecia a obra de Sartre.
llan, 2000; Françoise Conheceu Doreen Keir em 1947; os dois se casaram em 19494, mesmo
Gollain, Une critique ano em que foram morar em Paris, onde Gorz também começou a traba-
du travail, Paris, La
lhar como jornalista, a partir de 1951. Ao naturalizar-se francês, em 1954,
Découverte, 2000.
Gerhardt se transformou em Gérard. Seu nome passou então a ser Gérard
4.Doreen Keir passou Horst. Mas em 1955, ao começar a escrever para o recém-fundado L’Express,
então a se chamar Do-
ele adotou o pseudônimo de Michel Bosquet; Bosquet, tradução francesa
rine Horst.
do alemão Horst, significa pequeno bosque. Foi com esse nome, Michel
5.Ver Critique du
Bosquet, que ele publicou seus primeiros escritos sobre ecologia5.
capitalisme quotidien,
de 1973; Écologie et po- Em 1958 publicou seu primeiro livro, Le traïtre, um ensaio teórico-
litique, de 1975; e autobiográfico no qual combina marxismo e psicanálise para analisar sua
Écologie et liberté, de própria história de vida; é nesse livro que utiliza pela primeira vez o pseu-
1977. dônimo André Gorz, nome com o qual se tornou mundialmente conheci-
junho 2009 11
des com valor social, mas sem valor de mercado. Em dois de seus últimos
livros, Misérias do presente, riqueza do possível, de 1997, e O imaterial, de
2003, nos quais aborda a questão da emergência do imaterial, ele radicaliza
ainda mais sua posição, propondo a quebra do vínculo entre trabalho e ren-
da e adotando a proposta da renda básica incondicional.
junho 2009 13
André Gorz
Tradução de Fernando Antonio Pinheiro Filho
Um dia, um adolescente tardio descobre que o caminho que tomou ao acaso vai
tornar-se irreversível. O portão está prestes a fechar-se atrás dele. Ele entra na idade
em que não se recomeça mais, a idade em que se começa a envelhecer, em que é
preciso aceitar ocupar na sociedade um lugar que nos fará existir como um Outro
entre os Outros. Bem antes de ser um destino biológico, o envelhecimento é um
destino social.
Esse fragmento, que se apresenta como um epílogo de O traidor, foi publicado em
Les Temps Modernes de dezembro de 1961 e janeiro de 1962 com o título de “O
envelhecimento”. Quarenta anos mais tarde, a questão aí explorada de modo
intransitivo permanece: “Como entrar nessa sociedade sem renunciar às possibili-
dades e aos desejos de que somos portadores?”.
recomeçava sem cessar, e os anos não contavam: ele não tinha mais idade
aos 23 que aos 22, e não era indo para os 24 ou mesmo os 25 que passaria
a ter. Agora isso mudara: 36 anos era já uma idade, 37 ainda mais: trata-se
da idade em que (por força de anúncios como “procura-se homem entre 30
e 35 anos” ou “homem com menos de 35 anos” ou “especialista certificado,
35 anos”) havia-se supostamente feito algo que nos determinasse e traçasse
definitivamente um caminho a ser seguido. Numa palavra, se ele não havia
feito nada, era já um fracassado, e se havia feito algo, era necessário insistir
nisso sob pena de tornar-se um. De todo modo, seu passado prefigurava
seu futuro.
Ora, o que o desagradava era precisamente o fato de que jamais visara
suas atividades sob esse ângulo: não tinha nenhuma certeza de querer per-
petuar a personagem pseudônima que há anos entregava artigos por enco-
menda e sob medida; entrara nessa atividade por acaso, facilidade e necessi-
dade de ganhar seu pão (após dois dias de estágio numa companhia de
seguros e na falta de oferta de livros para traduzir), jamais tivera a intenção
de fazer disso a atividade de sua vida, e eis que esse caminho vicinal que
tomara durante sua espera (de quê?, da vida que começasse de fato?) desig-
nava o homem que ele devia tornar-se. Sua vida estava prestes a soçobrar e
a voltar-se contra ele como o ser que ele devia fazer perpetuar, daí por
diante, até sua morte, porque ele era isso e nada além disso e não tinha mais
chances de mudar. E mais, ainda que mudasse, a partir desse ponto a idade
permaneceria. Ele tinha a idade em que envelhecemos: até os 30 anos, a
rigor, acumulamos um pouco ao acaso; passando dos 30, é preciso que a
acumulação renda; é o período em que se espera que o indivíduo social
chegue à maturidade; passados 35 anos é preciso que ele amortize a dívida.
Isso parecia simples, mas não o era absolutamente. A idade havia caído
sobre ele, que a via de fora como um conjunto de interditos, de limites, de
obstáculos insuperáveis (ele não faria mais um curso de mecânico, ele não
seria jamais piloto de carreira), e no entanto a evidência permanecia fugidia,
a intuição impossível: não havia idade em parte alguma de si, assim como
não havia evidência de que um dia deveria morrer. Um e outro, o envelhe-
cimento e o fato de que era mortal, eram realidades ao mesmo tempo oni-
presentes, vindas dos quatro cantos do mundo social, e perfeitamente opa-
cas à inteligência: eram escandalosas. [“Por que é preciso morrer?” “É assim
mesmo”, havia dito Maria. Ele gostaria de aceitar, como a cada vez que ela
dava essa resposta idiota, não podendo admitir que ela ignorava a razão
daquilo que afirmava nem, sobretudo, que ela aceitava ignorá-lo: como
quando ele quis saber por que, se a terra é redonda, as coisas do outro lado
não caem do céu; “porque a terra é um ímã”, ela havia dito, “um ímã atrai”;
ela lhe oferecera um; ele atraía os alfinetes e quando quis saber por que ela
respondeu “porque é um ímã”.] Os homens morrem porque são mortais, e
eles são mortais porque morrem, isso não se sustentava e, quando ele escu-
tava em suas orelhas o ruído de sua própria presença povoando a noite
universal, nada anunciava que essa presença pudesse um dia ter fim.
Ele nascera sem idade, aquém da imortalidade e da morte. A depender
de si, teria antes pensado (sentado no banco de madeira do trem 58, olhan-
do seus pés nos sapatos acinzentados de fundo de lã pendendo no vazio
enquanto um senhor gordo, em frente, escondido atrás de seu jornal, deixa-
va os seus repousarem pesadamente sobre o assoalho, parecia-lhe tão ridicu-
lamente inconcebível que seus pés pudessem um dia atingir o assoalho e seu
olhar decifrar os respingos negros) que existe a raça dos indivíduos nascidos
grandes e aquela dos pequenos e que os pequenos, supondo (como lhe afir-
maram) que pudessem tornar-se grandes, deveriam, para tanto, sofrer uma
metamorfose radical (como a lagarta em borboleta?), tão radical que apaga-
ria no grande a lembrança de sua medida comum com o pequeno.
Nada absolutamente nele indicava que pudesse crescer e esse processo
de “crescimento” que evoca um misterioso “tornar-se Outro”, cujo acaba-
mento, talvez, se manifestasse um dia por uma brusca metamorfose, ficaria
para ele no domínio do “eu disse”. “Quando você for grande”, dizia Maria,
ou “você é muito pequeno para compreender”, ou “você é muito grande
agora para usar esses cachos”, ou “logo você será um menino grande e irá à
escola”, ou ainda “quando estiver crescido, você partirá com outra mulher e
me deixará sozinha”. Assim, tais observações constantes e decididas o enve-
nenavam com a ideia de sua relatividade e de que seu estatuto era provisó-
rio, portanto que aquilo que vivia não tinha importância e só contava o
adulto que ele seria (“faço isso pelo teu bem, você me agradecerá quando
for grande”) e essa ideia o revoltava já que o adulto que ele seria não se
anunciava em parte alguma como sua possibilidade, era um futuro que
vinha deles apenas e lhes dava controle sobre ele, lhe conferia de imediato o
ser-Outro opaco e ininteligível do grande potencialmente contido no pe-
queno e a que este último era alegremente sacrificado. [Essa opressão exercida
cotidianamente sobre ele em nome do grande que ele seria ia tão longe que,
revoltado e desesperado por não ser jamais considerado por si mesmo tal
como existia presentemente, pôs-se a desejar não crescer jamais e a recusar,
seja com raiva seja com indiferença, os alimentos oferecidos porque “é pre-
junho 2009 17
junho 2009 19
Assim, ele tinha o direito e mesmo o dever de ter uma idade social, mas
não o de assumir a idade de seu corpo: as exigências deste, em seu meio,
contrapunham-se às tarefas que a sociedade destinava aos adolescentes de
sua idade: havia a necessidade de que, aos 13, 15 ou 16 anos, permanecesse,
por uma boa meia dúzia de anos ainda, um filho submisso à autoridade dos
pais, e a maturação sexual, que tornava possível relações autônomas com o
outro, restritas à esfera da dominação parental, tornava-se a suprema deso-
bediência, o Mal por excelência: a negação do estatuto infantil em que sua
família esperava mantê-lo por muito tempo ainda. E não tenho plena cer-
teza de que essa contradição entre a idade fisiológica e a idade social possa
ser suprimida nas sociedades industriais: estas (e não apenas a sociedade
burguesa) necessitam de ao menos dezesseis anos para formar cidadãos ca-
pazes de conduzir suas máquinas e administrar seus aparelhos. O prolonga-
mento da escolaridade tem como reverso uma negação social da maturida-
de orgânica, ou, ao menos, das relações humanas cuja possibilidade existe
virtualmente desde a aproximação da puberdade. Essa defasagem entre as
possibilidades orgânicas e o estatuto social, que as condena a existir apenas
no vazio, produz e define a adolescência. Ela não existiu em outras socieda-
des. Ela é a reserva feita a indivíduos que, por sua maturação orgânica,
poderiam ser adultos, mas que, na ausência de maturação social, são man-
tidos sob tutela. Ele foi destes que viveram essa condição como uma grande
infelicidade. Foi destes que dificilmente se recuperaram dessa alienação pri-
meira e opressiva de sua vida afetiva e corporal.
Tudo isso indica já claramente que alguém não se torna adulto em virtu-
de da idade, nem pelo desenvolvimento orgânico. De resto, o que quer dizer
“ser adulto”? Era a questão que ele se colocava começando essa digressão, já
que há dois anos, contra toda expectativa, ele sente que isso lhe aconteceu: o
peso da idade se infunde nele; é uma aventura complexa. Ainda há cinco
anos, ele não pensava que isso pudesse lhe acontecer nunca. Não existia ida-
de até então: nem 20, nem 30, nem, em seguida, 35. Eram números abstra-
tos, bons para os questionários e que não significavam nada: ele tinha aos 35
anos, como aos 22, segundo a esperança de vida desse continente, um futuro
suficientemente vasto para que nenhum de seus projetos se chocasse com a
possibilidade provável da morte como um limite demarcando o campo de
seus empreendimentos. E então, mesmo com alguma falta de fôlego devida
aos efeitos da nicotina, ele não observou uma maior resistência de seu corpo
ou da matéria à ação física. Um só fato, a rigor, denotava um envelhecimento
orgânico: o estreitamento da duração – parecia-lhe longo, há dez anos, subir
junho 2009 21
anos que a juventude é o destino que os velhos te farão sofrer, anuncia que
amanhã a juventude será o destino imposto pelos jovens aos velhos. Isso
não significa que necessariamente a estrutura social deva mudar de forma
radical só por esse fato, mas representa um tônus diferente para todas as
mudanças potenciais e para a luta de classes. Mas esse não é o meu tema.
Queria mostrar apenas que a juventude, vivida como uma opressão parti-
cular nessa sociedade pós-malthusiana, pode parar de conhecer-se como tal:
quando, em Cuba, em certas nações da África (amanhã talvez na Argélia,
no Japão, na Turquia, no Brasil), os rapazes de 20 a 30 anos, relativamente
majoritários, conquistem o poder e imponham à sociedade seus projetos
(quaisquer que sejam, de resto), eles cessarão de se pensar jovens: eles são os
agentes que definem as normas, as perspectivas, as tarefas, eles são os que
avançam e não os retardatários, e mesmo que percam para si mesmos toda
noção de sua idade (e dos direitos ou deveres que essa idade lhes conferia
enquanto Outros), os Outros, agora, são os não jovens: a qualidade de
velho (a idade) lhes pertence como a raça vem aos oprimidos pelo opressor:
como sua dimensão de alteridade vivida. A situação se reverte: a “maturida-
de” se pensa como impotência e declínio diante da soberania vitoriosa da
“juventude” que, por seu turno, não se pensa; é doravante a transparência
da ação. E se a vaga demográfica conserva ou aumenta sua amplitude, os
dirigentes de 30 anos aprenderão sua velhice das normas estabelecidas por
aqueles de 25 anos ou menos.
E tudo que ele acaba de dizer mais acima sobre sua juventude encon-
tra-se relativizado: era uma situação de imponderabilidade, de disponibi-
lidade, de irresponsabilidade, para ele, por volta de 1950. Nessa data, na
Europa, ser jovem era isso: saber que os mais velhos comandavam o mun-
do e que, a menos que abraçasse suas perspectivas (e mesmo que o fizes-
se), você não contava. Era invejar da geração mais velha a chance de ter
feito a Resistência e ter acreditado poder reconstruir o mundo, e era saber
que se nasceu tarde demais; era certamente saber que a geração mais velha
havia perdido sua chance e que, ali onde ela falhara, não se teria chance de
vencer; era, a seguir, entender-se como uma geração para nada: formada e
impregnada pela ideologia dos mais velhos, não tinha tido parte em suas
vitórias provisórias nem em sua falência; nascidos tarde demais em rela-
ção a eles, era-se nascido cedo demais em relação à geração que, em segui-
da, a partir de 1965, lançaria talvez forças novas na contenda; de um modo
ou de outro era reconhecer o estado das coisas dadas como impossível de
modificação; era saber-se destinado a um papel de gestor, não de inven-
junho 2009 23
tor. Ele foi jovem porque as circunstâncias sociais e históricas lhe retira-
ram todo controle sobre o dado e, reduzindo-o à impotência, provocava-
o a negar em retorno um mundo que o negava: era a tal ponto o mundo
dos outros (produzido por eles, mantido por eles) que ele não concebia mes-
mo que seus problemas pudessem se colocar diante dele; contestava de uma
só vez os dados dos problemas, os termos em que eram postos e as solu-
ções tentadas; ele os achava tão aberrantes e inúteis (Pacto Atlântico, guerra
da Coréia, rearmamento alemão, macarthismo, guerra da Indochina etc.)
quanto os sempiternos cuidados de seu pai com os negócios, vendo em
todos antes de tudo a deformação de uma realidade plurívoca e elástica
pelas estruturas mentais e os interesses esclerosados de gerações imbecis.
Nenhuma ação que pudesse reconhecer como sua ou decidir por si era
possível no mundo deles (salvo, a rigor, alguns assassinatos políticos cujas
armas ele polira em seus sonhos), nenhuma profissão ou função o esti-
mulava, toda atividade redundava em alienação num Outro pré-fabrica-
do pela inércia dos interesses e dos aparelhos em vigor.
Envelhecer era portanto isso: ver organizar-se uma sequência de eventos
e de experiências nessa nebulosa já presa, irremediavelmente, numa forma
imprevista, a que chamamos uma vida.
Há coisas que eu não faria mais, não viveria mais a febre das primeiras
descobertas e a fé em que tudo pode ser balançado pelas margens e recome-
çado de novo, o essencial (tentá-lo, querer lográ-lo sem ser desviado ou tor-
nado prudente pelas derrotas recentes, sem levar em conta os conselhos de
sabedoria, sem estar marcado diretamente pelo que se deu antes) não serei
mais eu que farei: dizer-se tudo isso é envelhecer. E se ele se diz isso, não é
por algum resto de masoquismo, é porque ele é dito assim pelos outros: não
é em sua cabeça que se gerou a ideia de envelhecimento, como um fantasma
que se pode conjurar, mas fora, no mundo que se faz sob seus olhos ela
nasceu e é de fora que ela toma posse dele como um pensamento sem sujeito
que o pensa no nível do ser e que ele se limita a denotar bem ou mal esperan-
do que outros (o que não vai demorar) a formulem contra si. Tenho já uma
vida que se arrasta nas coisas fora como um ser-fora e perdida para mim
mesmo, de que já não sou o senhor, já que, através dos que se servirão dela
como um trampolim, um contraponto ou uma matéria indiferente em vista
de seus próprios fins, esta vida, que se confunde mais e mais com sua época,
apagando-se nessa noite anônima, cessa de me pertencer, torna-se a caduci-
dade de projetos de que não serei mais o autor e que não me produzirá mais
do que eu não os produzi, e fará de mim pouco a pouco um Outro.
junho 2009 25
mais pura. Agora você sabe que a contestação é prática sob pena de ser nula,
e que é necessário esperar mais da lógica das coisas do que das ideias dos
homens. Fazemos o que podemos. A cumplicidade com os agentes do crime
insinuou-se em você: antes de mais nada, você ganha convenientemente tua
vida, você tem, com mais de 35 anos, uma carreira, uma família, ou as duas,
para defender, o escândalo, para si individualmente, não é mais um obstácu-
lo, você sabe que não se morre disso e de certo modo vive-se disso. Então o
que quer que diga, você o diz por um resto de ponto de honra, em memória
de tua juventude morta, medindo no mesmo passo tua estagnação: não é
mais você que vai atiçar o fogo, você servirá melhor de caução e de
encorajamento para a ação que, unicamente, pode conduzir até o fim aque-
les que, ainda não habituados pela ocupação e pela idade ao apodrecimento
ambiente, e vítimas designadas do mundo que você legou, recusam de for-
ma radical as mutilações porque, justamente, eles ainda não as sofreram
nem tiraram vantagem delas.
Encontra-se aí o significado essencial que tem hoje “ser jovem”: é não ter
nada a perder e ser para si mesmo apenas indefinidas possibilidades a reali-
zar; é não ter propriedade, nem aquisições, nem interesses a defender – pois,
supondo que os tenhamos, somos velhos precoces, herdeiros ou sucessores
do destino pré-fabricado pelo legado dos antepassados – e, como
consequência, não ter outro ponto de vista sobre o mundo que o de suas
próprias exigências; é não ter feito ainda o suficiente para aceitar como uma
verdade da experiência que não fazemos jamais o que queremos e que não
quisemos jamais o que fizemos. Também a “integração” não chega por algu-
ma aceitação contratual da ordem estabelecida ou da fundação social reco-
nhecida: ela vem pela ação. Ela chega pelo fato de que você não tem hoje
eficácia, poder, realidade objetiva a não ser aceitando que os teus atos, ins-
crevendo-se no ser, articulando-se com o campo social e sendo predefinidos
por ele, te dotam, externamente, de um ser inerte obediente às leis e às forças
da matéria trabalhadas por Outros e te dando o significado de Outro entre
Outros. Você só tem poder, direito e posicionamento na medida em que,
assumindo o Ser-Outro, aceita agir sobre os Outros pelo peso da alteridade
inerte que teus atos passados representaram no meio do mundo.
Estar integrado é finalmente isso: considerar como essencial o Outro
pelo qual você tem controle sobre os Outros, é retomar nas condutas livres
as relações inertes entretidas, como coisa humana, com os outros homens-
coisa do campo social. É ser designado, pela objetividade dos atos passados,
como qualquer um (o Gorz, o Boqueteau) que, uma vez nomeado, vem a teu
junho 2009 27
junho 2009 29
produção mercantil para a qual existe um mercado, você tem uma cota e
como que uma cotação na bolsa. Redator (ou engenheiro, ou vendedor, ou
tradutor...) “confirmado”: tuas capacidades não estão mais sob dúvida, você
já provou que, indivíduo singular, sempre um pouco inquietante e imprevi-
sível, poderia, a despeito de tua singularidade e de “Deus sabe” que exigên-
cias subversivas, produzir esses objetos cosméticos e artificiais que, em nos-
sas sociedades de consumo uniformizantes, devem atenciosamente
esconder sob seu verniz sem respingos o suor, o cansaço, a sujeira do trabalho,
as asperezas, as resistências, as usuras da matéria, a fim de refletir no consumi-
dor fascinado e enganado (à maneira dos manequins, dos Belmondos, dos
cenários de Chabrol, da Time Magazine, da Elle, das engenhocas aerodinâ-
micas e cromadas) o universo mítico e fetichizado da abundância: ou seja, o
universo arquifalso da elegância sem risco em que as mercadorias eclodem
instantaneamente e por magia graças apenas ao gesto desenvolto de puxar
uma nota de uma carteira, em que o dinheiro é o caminho mais curto entre a
necessidade e o gozo, em que a riqueza é poder de compra e raridade de pro-
dutos, raridade de numerário. Confirmado: está provado que, o que quer
que você seja (isso só diz respeito a você, melhor que ninguém saiba), você
sabe ser a personagem ficcional que a Maquinaria exige – ser significa pro-
duzir o ato requisitado sem esforço visível como consequência da sua “natu-
reza”, com a facilidade das peças lubrificadas. Homem confirmado, Outro
que não homem, homem conforme ao Outro, com essa “qualidade” que
chamam de “conformidade dinâmica”: não aquela, passiva, da matéria in-
forme, mas a do “chefe” que a rejunta e que “personaliza” seu ser-Outro
como se fosse o Outro-em-pessoa. Sabendo que você tem, em sua ocupação,
uma cotação, uma reputação estabelecida, um valor em capital (o que não
exclui que esse valor, no caso, seja frágil: sua reputação, como a das prostitu-
tas, dos atores, dos criadores de moda, deve-se ao encontro fortuito das suas
capacidades próprias com as normas impessoais de uma moda caprichosa),
uma carreira abre-se para você: o passado responde pelo futuro, e como o
comerciante, o médico, o industrial, o arquiteto estabelecidos, você passará
os anos que te restam a gerar teu fundo ou teu capital de experiência, teu
interesse. O passado apodera-se do futuro, os atos realizados petrificam a
liberdade que os realizou e lhe prometem, como prêmio de sua subordina-
ção ao ser, uma segurança de renda. Desde que você não mude de nome, de
atividade, de país, o passado daqui para frente qualifica o presente e, não
importa o que você tenha, o determina. É em função do passado que se
apreciam teus atos e por meio dele que se os avaliam. E você se encontra
junho 2009 31
desde então nessa posição abjeta de ter, por tuas conquistas e por estar no
lugar, direitos, precedências, privilégios: porque teu nome é conhecido e tua
assinatura vendável (e também porque tua antiguidade na profissão te vale
credores, fidelidades, solidariedades de idade), teu produto, com a mesma
qualidade ou até com menos qualidade, terá prioridade sobre aquele dos
trabalhadores mais jovens. E porque insensivelmente tua estátua se adestra
e, vivo, você sente já a naftalina, o bálsamo, a honra, a urina do velho e do
cadáver em que tudo, daí por diante, te transforma, tornando-o “parecido
consigo mesmo”, você se põe a sonhar com as grandes catástrofes (revolu-
ções, guerras, crises, mortes dos próximos, longa doença na pior das hipóte-
ses) que cobririam o passado de escombros e te devolveriam a si mesmo, à
liberdade fresca das origens, jovem novamente, isto é, pobre e raso.
E no entanto não se trata de covardia, embora a covardia e a escolha do
conforto venham como significações objetivas sobrequalificar uma condu-
ta que a razão prática ordena: a saber, que a partir de um certo momento a
iniciativa de um homem conhece seus limites: suas coordenadas, suas fide-
lidades, suas ferramentas estão à disposição, ele as manejará talvez, mas não
as substituirá jamais por outras mais novas (ele não terá jamais uma segun-
da adolescência: os novos períodos formadores serão vividos partindo dos
antigos, como seu alargamento ou negação. Não haverá mais primeira vez,
começo de história); o novo daí em diante será produzido sobre a base do
antigo; o constituído imporá ao constituinte suas estruturas. O campo de
ação está definido, e define suas tarefas. Mais vale agora fixar-se nele. É
preciso continuar ou decidir que nada tem sentido. “Este é teu domínio;
você não terá outro.” A evidência do envelhecimento está aí. Ele não fora
feito nem para essa atividade nem para nenhuma outra, nem para tornar-se
esse homem nem nenhum dos outros possíveis. Ele teria gostado de ser
também e ao mesmo tempo agrônomo, geólogo, médico, montador de
rede de alta tensão, pescador, navegador (todas profissões itinerantes).
Ele não será mais nada disso. De início (porque haverá um após) porque
existe uma lei da ação que só evitamos evitando a própria ação: a saber, que
para agir é preciso fazer-se inerte. Para mover a matéria das coisas, é preciso
deixar seu peso assentar. O braço que fende a lenha deve equilibrar seu peso
e o pensamento, por mais especulativo que seja, imitar o movimento da
matéria, ponderar suas inércias e submeter-se a elas fazendo delas leis. Há
uma paciência do finito; imitando a matéria que trabalha, o agente deve
perseverar nesse trabalho até embrutecer-se e aceitar perder-se em proveito
do resultado. (Preferir a si ante qualquer resultado é a atitude do diletante. É
o que ele foi até aqui. É contra si que ele reivindica.) Seu Fazer está destinado
a voltar ao Ser; seu êxito será esse fracasso. Os resultados são detestáveis, e
ainda mais os dos que (aventureiros, santos, estetas) seriam preferíveis. É
preciso amar-se muito pouco para agir, renunciar imediatamente a coinci-
dir com esse Ser em quem o resultado congela no fim a ação que o produziu.
É apenas no começo (de uma vida, de um empreendimento, de um casal...)
que os fins determinam os meios a inventar, que o projeto configura o mun-
do à imagem de um objetivo que é ausência. Na medida em que se avança, os
meios forjados perpetuam na inércia de sua matéria a finalidade primeira (e
frequentemente já morta) de teus atos passados: no começo você era senhor
soberano fazendo surgir o nada de uma obra a fazer lá onde não havia nada
além de caos de materiais brutos, você forçava a matéria a imitar o homem.
Depois, os fins arruinados no agenciamento da inércia te lançam um olhar
de pedra e, contribuindo por inércia para o objetivo projetado, a matéria
impõe seus fins como sua própria lei e determina o homem, limita-o a
imitá-la. O fim da casa, do romance, do casal não é mais que o preenchi-
mento de vazios deixados pela atividade passada, e esse preenchimento (o
último toque dado no quadro, o último capítulo do romance), se requer
ainda tua liberdade, já a petrifica: não é mais ela que determina presente-
mente a natureza das tarefas; ela mesma é requisitada pelo que fez antes: teus
atos anteriores prefiguram os que devem vir a seguir. Tua liberdade passada
vem a teu encontro, de fora, com a necessidade de um destino. Você se torna
o servidor do agente soberano que foi um dia.
O resultado se faz a esse preço. É preciso aceitar estar terminado: estar
aqui e em nenhuma outra parte alhures, fazer isso e não outra coisa, agora
e não jamais ou sempre; aqui apenas, isso apenas, agora apenas – ter essa
vida apenas.
Resumo
O envelhecimento
A partir da exposição, sob a forma de relato literário, do sentido social do processo de
envelhecimento, o texto produz uma combinação inventiva entre ao menos três di-
mensões da questão: a juventude como adiamento das determinações sociais, a forma-
ção relacional da identidade com referência à introjeção de um papel social e o viés
alienante indissociável do assentamento no mundo adulto. Valendo-se da alternância
entre relato e análise e da remissão às circunstâncias do período em que foi escrito, o
junho 2009 33
trabalho conserva seu frescor ao esboçar uma espécie de fenomenologia do vivido vol-
tada ao peso específico da definição profissional no capitalismo moderno.
Palavras-chave: Envelhecimento; Juventude; Identidade; Tempo social; Alienação.
Abstract
Aging
Based on the literary exposition of the social meaning of the aging process, this inno-
vative text combines a study of at least three dimensions of the topic: adolescence as a
postponement of social functions, the relational formation of identity through the
introjection of a social role, and the alienation indissociable with becoming part of the
adult world. Alternating between descriptive account and analysis, while citing a series
of contemporary events, the work maintains its freshness by sketching a phenomenol-
ogy of the lived world, focusing on the specific meaning of professional careers under
modern capitalism.
Keywords: Aging; Adolescence; Identity; Social time; Alienation.
II
junho 2009 37
ção adversa, “num mundo estranho e hostil”. Pela forma impessoal, genéri-
ca, de apresentação do problema no último texto, a situação adversa a que
ele se refere pode ser tanto a de um prisioneiro confinado em uma cela
como, num sentido mais amplo, a de um indivíduo em um contexto social
alienante; e o mundo hostil pode ser uma prisão ou mesmo uma determi-
nada sociedade.
Numa perspectiva bem sartriana, segundo a qual o homem está conde-
1.“Nous sommes con- nado a ser livre1, Gorz afirma que as atitudes do indivíduo não podem ser
damnés à être libres“ compreendidas a partir de circunstâncias objetivas. Assim, qualquer que
(Sartre, 1983, p. 447).
seja o mundo hostil, uma prisão ou uma determinada sociedade, a atitude
ou o plano de fuga adotado depende da escolha do indivíduo. E para saber
se elas têm ou não o mesmo valor, ele analisa as determinações subjetivas
que fundamentam cada uma das três possíveis atitudes, sem, no entanto,
perder de vista se a situação do indivíduo decorre de uma escolha desafor-
tunada ou de uma alienação objetiva. Portanto, ele privilegia a interpreta-
ção subjetiva, afirmando que somente uma hierarquização dos fins ideais
da realidade humana e do significado fundamental do projeto original é
capaz de fornecer os fundamentos de uma teoria da alienação e de uma
moral voltada para a libertação:
junho 2009 39
III
Nas páginas seguintes do mesmo texto, Gorz procura deixar claro como o
conhecimento da idade, a consciência de que começara a envelhecer, foi
para ele uma experiência desagradável; a descoberta da idade fazia-o lem-
brar de pequenos eventos e pensamentos aos quais não havia prestado
atenção. A consciência de que já tinha uma idade, de que estava envelhe-
cendo, era a descoberta de uma condição que até então parecia ausente de
sua vida:
Durante os anos mais importantes de sua vida [...] ele não teve idade nenhuma;
recomeçava sem cessar, e os anos não contavam: ele não tinha mais idade aos 23
junho 2009 41
que aos 22, e não era a passagem aos 24 ou mesmo aos 25 que o faria ter. Agora isso
mudou: 36 já é uma idade, 37 mais ainda (Gorz, 1961, p. 638).
A diferença estava no fato de que aos 36, 37 anos de idade, o passado tinha
preestabelecido o futuro de uma forma que o indivíduo já não tem mais a mes-
ma possibilidade de recomeçar sempre que lhe convier como ocorria aos 22
ou 25 anos de idade. A percepção da idade ou do envelhecimento vincula-se
assim à redução da liberdade de escolha, limitando as possibilidades de novo
começo; e, por isso, o envelhecimento é uma condição bastante objetiva.
Portanto, a descoberta da idade, do envelhecimento, não é um fenôme-
no apenas subjetivo; ele é acima de tudo social: “a idade de um homem é
social ” (Gorz, 1961, p. 639). Claro que há também um envelhecimento
orgânico, biológico, da mesma forma que há um envelhecimento psicoló-
gico, cujas manifestações podem variar de um indivíduo para outro. E a
percepção subjetiva da idade é, sem dúvida, importante. Mas, apesar da
importância desta última, aos 36 anos de idade não há, na perspectiva de
Gorz, como evitar a dimensão social do envelhecimento; ou seja, aos 36
anos a medida do envelhecimento é dada pela sociedade.
Além do envelhecimento orgânico propriamente, Gorz distingue duas
outras idades: uma psicológica e outra social. Embora pareça ter sido a per-
cepção – psicológica – de que tinha uma idade que o alertou para o proble-
ma do envelhecimento, sua análise subsequente concentra-se na dimensão
social do envelhecimento. Da perspectiva da sociedade, portanto, há um
momento no qual as escolhas feitas antes por um indivíduo, tenham sido elas
bem ou malsucedidas, já marcaram profundamente sua biografia. Ou seja, a
certa altura da vida, quiçá aos 35 anos de idade, o indivíduo envelhece por-
que não lhe é permitido recomeçar; porque seu passado já prefigurou seu
futuro. Ainda que ele queira recomeçar, restrições sociais, que lhe escapam
ao controle, tornam difícil o recomeço, limitam seu campo de ação:
IV
junho 2009 43
[...] deve ser compreendida num duplo sentido: a) a quantidade de trabalho neces-
sário decresce rapidamente até se tornar marginal na maior parte das produções
materiais e das atividades de serviço; b) o trabalho não implica mais um face a face
do trabalhador com a matéria. A transformação desta última não resulta mais de
uma atividade imediata e soberana (Gorz, 1983, p. 73).
Por isso, em sua concepção, a solução para a crise não deveria ser buscada
no retorno às políticas de pleno emprego, que, para ele, seriam tanto inefi-
cazes no plano do desemprego como indesejáveis no que se refere aos efei-
tos sobre o ambiente natural; a solução deveria, ao contrário, ser buscada
numa redução programada do tempo de trabalho que permitisse distribuir
para toda a população as conquistas do progresso técnico e do aumento da
produtividade do trabalho dele decorrente8. 8.Para uma análise de-
Diante de tais circunstâncias, então, a luta por autonomia, que antes se talhada da proposta de
Gorz a respeito de uma
buscava na própria esfera do trabalho, devia deslocar seu foco para a esfera
política de redução do
do tempo livre, fazendo com que a ideia de emancipação deixasse de ser
tempo de trabalho, ver
emancipação no trabalho e passasse a ser emancipação do trabalho. Nessa Silva, 2002, pp. 185-
perspectiva, até mesmo a luta contra o trabalho alienado, tema que marcou 195; e para uma dis-
seus escritos da década de 1960, ganharia nova forma; afinal, conforme ele cussão sobre a redução
escreveu certa vez, “o mesmo trabalho que [...] é corveia quando realizado da jornada, inclusive
na história da industri-
cotidianamente e em tempo integral, torna-se um tempo vazio entre outros
alização no Brasil, ver
quando, repartido para a população inteira, é realizado em apenas quinze Silva, 1996.
minutos por dia” (Gorz, 1980, p. 146).
Mas em seus escritos publicados entre os anos de 1977 e 1996, a discus-
são a respeito do tempo de trabalho, mesmo que implicasse uma crítica aos
defensores de políticas de tipo keynesiano voltadas para o crescimento eco-
nômico, mantinha um forte vínculo com o trabalho como integrador so-
cial. Assim, quando propunha uma renda social como forma de financiar a
redução do tempo de trabalho, ele deixava muito claro que tal renda devia
manter o vínculo com algum tipo de trabalho social, ainda que sua duração
junho 2009 45
junho 2009 47
Referências Bibliográficas
DURKHEIM, Émile. (1989), As formas elementares de vida religiosa. São Paulo, Edições
Paulinas.
GORZ, André. (1958), Le Traïtre. Paris, Éditions du Seuil.
_____. (1961), “Le vieillissement”. Les Temps Modernes, 187: 638-665.
_____. (1962), “Le vieillissement II”. Les Temps Modernes, 188: 829-852.
_____. (1964), Stratégie ouvrière et néocapitalisme. Paris, Éditions du Seuil (trad. bras.:
Estratégia operária e neocapitalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1968).
_____. (1967), Le socialisme difficile. Paris, Éditions du Seuil (trad. bras.: O socialismo
difícil. Rio de Janeiro, Zahar, 1968).
_____. (1973), Critique du capitalisme quotidien. Paris, Éditions du Seuil.
_____. (1977a), Fondements pour une morale. Paris, Galilée.
_____. (1977b), Écologie et liberté. Paris, Galilée.
_____. (1980), Adieu au prolétariat. Paris, Galilée (trad. bras.: Adeus ao proletariado.
Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982).
_____. (1983), Les chemins du paradis. Paris, Galilée.
_____. (1988), Métamorphoses du travail. Paris Galilée (trad. bras.: Metamorfoses do
trabalho. São Paulo, Annablume, 2003).
_____. (1989), “A discussion with André Gorz on alienation, freedom, utopia and
himself ”. In: _____. The Traitor. Londres, Verso.
_____. (1994), “Revenu minimum et citoyenneté”. Futuribles, 188: 61-66.
_____. (1997), Misères du présent, richesse du possible. Paris, Galilée (trad. bras.: Misé-
rias do presente, riqueza do possível. São Paulo, Annablume, 2004).
_____. (2003), L’immatériel. Paris, Galilée (trad. bras.: O imaterial. São Paulo,
Annablume, 2005).
_____. (2004), Le Traïtre (suivi de “Le vieillissement”). Paris, Galilée.
_____. (2006), Lettre à D. Histoire d’un amour. Paris, Galilée (trad. bras.: Carta a D.
História de um amor. São Paulo, Annablume/Cosac Naify, 2008).
HABERMAS, Jürgen. (1987), The Theory of Communicate Action. Boston, Beacon Press,
vol. 2.
_____. (1990), Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
HONNETH, Axel. (2003), Luta por reconhecimento. São Paulo, Editora 34.
MEAD, George Herbert. (1934), Self, Mind, and Society. Chicago, University of Chi-
cago Press.
SARTRE, Jean-Paul. (1956), Being and Nothingness. Nova York, Pocket Books.
_____. (1983), Cahiers pour une morale. Paris, Gallimard.
SILVA, Josué Pereira da. (1996), Três discursos, uma sentença. São Paulo, Annablume/
Fapesp.
_____. (2002), André Gorz: trabalho e política. São Paulo, Annablume/Fapesp.
_____. (2008), Trabalho, cidadania e reconhecimento. São Paulo, Annablume.
Resumo
junho 2009 49
teoria desse autor, tensão que decorre em boa medida de uma visão filosófica que con-
cebe indivíduo e sociedade como entidades quase antagônicas.
Palavras-chave: André Gorz; Teoria social; Tempo; Tempo de trabalho; Envelhecimento.
Abstract
O socialismo nunca foi uma necessidade que se impusesse às massas com uma
evidência fulgurante. Da revolta primitiva à vontade consciente de modificar a
sociedade, nunca houve uma passagem imediata. O descontentamento dos tra-
balhadores, mesmo poderosamente organizados, a respeito de sua condição,
nunca foi ultrapassado espontaneamente, visando uma colocação em questão da-
[...] a recusa da sociedade perdeu, nos países capitalistas avançados, sua base natu-
ral. Enquanto a miséria – isto é, a privação do que é necessário para viver – era a
condição da maioria, a necessidade de um desabamento revolucionário da socieda-
de podia vir automaticamente. Proletários e camponeses miseráveis não tinham
necessidade, para se erguerem contra a ordem existente, de saber que outra socie-
dade pretendiam construir: o pior era o presente; não tinham nada a perder” (Idem).
junho 2009 53
II
[...] sua vocação de classe dirigente, deve primeiramente atacar a condição operária
nos locais de trabalho porque é lá que, através das alienações mais diretas do traba-
lhador, como produtor e cidadão, a sociedade capitalista pode ser indiretamente con-
testada. E também porque é unicamente através da recusa consciente das relações
opressivas de trabalho, através de uma ação consciente para submetê-las ao controle
dos trabalhadores associados, através de uma vontade ininterrupta de autodetermi-
nação independente das condições de trabalho, que a classe operária pode conservar
ou afirmar permanentemente a autonomia de sua consciência de classe, a emanci-
pação humana do trabalho como finalidade suprema” (Gorz, 1968, p. 46).
junho 2009 55
junho 2009 57
plo), essa hierarquia se manteve, ainda, durante muito tempo; toda a vida
cotidiana se constituía em torno da organização do trabalho. À qual se
subordinavam todas as demais formas de atividade” (Idem).
O operário fabril de nossos dias, assim como o servo exemplificado por
Heller, também vive seu cotidiano profundamente absorvido “pela organi-
zação do trabalho”, à qual todas as outras atividades estão subordinadas.
A contradição entre tempo livre e trabalho, a oposição entre trabalho e
vida foi criada com o advento do capitalismo, mais precisamente com a in-
dustrialização. A noção do tempo é completamente modificada com o sur-
gimento da sociedade capitalista. Segundo Thompson, as sociedades indus-
triais distinguem-se como tais em função da maneira como administram o
tempo e pela divisão entre trabalho e vida (cf. Thompson, 1979, p. 288).
Referindo-se ainda à questão do tempo, esse autor afirma:
[...] a este novo ritmo imposto à vida ordenado pelos patrões, senhores dos relógios
[...], o escravo da fábrica reagia nas horas de folga, vivendo na caótica irregularida-
de que caracterizava os cortiços encharcados de gim dos bairros pobres do início da
Era Industrial do século XIX. Os homens se refugiavam no mundo sem hora
marcada da bebida ou do culto metodista. Mais aos poucos, a ideia de regularidade
espalhou-se, chegando aos operários” (Woodcock, 1998, p. 125).
Não existe uma crise do movimento operário, mas há uma crise da teoria do movi-
mento operário. Esta crise (no sentido de reexame, crítica, ampliação do pensamen-
to estratégico) é devida, principalmente, ao fato de que a reivindicação econômica
imediata não mais basta para expressar e concretizar o antagonismo radical da classe
operária diante do capitalismo; e de que esta luta, por mais árdua que seja, não é
mais suficiente para colocar a sociedade capitalista em crise nem afirmar a autono-
mia da classe operária frente à sociedade na qual se insere” (Gorz, 1968, p. 28).
junho 2009 59
III
Uma primeira meta das alternativas políticas a ser liberada será destruir o muro
que separa o produtor de seu produto e leva o trabalhador, como consumidor
mistificado, à contradição consigo mesmo, como produtor alienado. As reivindi-
cações imediatas dos trabalhadores referentes aos salários, horários, ritmos e quali-
ficações, oferecem aos sindicatos, e sobretudo às seções de empresa dos partidos da
classe operária, ocasião de indagar sobre o problema da utilidade social e individual
de produções às quais o trabalho está vinculado (Gorz, 1968, p. 81).
[...] deve aparecer, em todos os níveis, como uma possibilidade concreta e positiva,
realizável sob a pressão das massas: no nível da oficina, pela conquista de um poder
operário sobre a organização e relações de trabalho, no nível da empresa, pela con-
quista de um contrapoder operário concernente à taxa de lucro, o volume e a orien-
tação dos investimentos, a evolução e o nível tecnológico” (Gorz, 1968, p. 68).
Fica então imediatamente evidente que lutar para que a vida conserve um sentido
é lutar contra o poder do capital, e que essa luta deve passar, sem solução de continui-
dade, do plano da empresa para o plano da sociedade, do plano sindical para o plano
junho 2009 61
político, do plano técnico para o plano cultural. Cabe então ao movimento socia-
lista tomar fôlego e situar o combate no seu verdadeiro terreno: a luta pelo poder.
Tudo a partir de então é posto em jogo: os empregos, os salários, as carreiras, a
cidade, a região, a ciência, a cultura, a possibilidade de desenvolver as capacidades
dos indivíduos [...]. Tudo isso só pode ser salvaguardado ou reconquistado se o
poder de decisão passar das mãos do capital para as mãos dos trabalhadores (Gorz,
1968, p. 111).
Referências Bibliográficas
AGLIETTA, Michel. (1991), Regulación y crisis del capitalismo. México, Siglo Veintiuno.
AMORIM, Henrique. (2006), “Continuidades e rupturas teóricas em André Gorz: clas-
se social, trabalho e qualificação profissional”. In: SILVA, Josué Pereira & RODRI-
GUES, Iram Jácome. André Gorz e seus críticos. São Paulo, Annablume.
CASTELLS, Manuel. (2000), A sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra.
GORZ, André. (1968), Estratégia operária e neocapitalismo. Rio de Janeiro, Zahar.
_____. (1982), Adeus ao proletariado. Rio de Janeiro, Forense Universitária.
HELLER, Agnes. (1972), O quotidiano e a história. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
MARTINS RODRIGUES, Leôncio. (1999), Destino do sindicalismo. São Paulo, Edusp.
MUNCK, Ronaldo. (2002), Globalisation and Labour. London/New York, Zed Books.
OFFE, Claus. (1989), Capitalismo desorganizado. São Paulo, Brasiliense.
QUEIROZ, José Benevides. (2006), “Sociedade e estrutura de classe no neocapitalismo
(1950/1960)”. In: SILVA, Josué Pereira & RODRIGUES, Iram Jácome (orgs.), André
Gorz e seus críticos. São Paulo, Annablume.
RODRIGUES, Iram Jácome. (2006), “Transformações no mundo do trabalho e dilemas
do sindicalismo”. In: SILVA, Josué Pereira & RODRIGUES, Iram Jácome (orgs.), André
Gorz e seus críticos. São Paulo, Annablume.
SCHMITTER, Philippe C. (1992), “¿Continúa el siglo del corporativismo?”. In:
SCHMITTER, Philippe C. & LEHMBRUCH, Gerhard. Neocorporativismo I. Más allá
del Estado y el mercado. México, Alianza Editorial.
SILVA, Josué Pereira da. (2002), André Gorz: trabalho e política. São Paulo, Annablu-
me/Fapesp.
STURMTHAL, Adolf. (1971), Consejos obreros. Barcelona, Fontanella.
THOMPSON, Edward. (1979), “Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo indus-
trial”. In: _____. Tradición, revuelta y consciencia de clase. Barcelona, Crítica.
_____. (1987), A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, vol. 2.
WATERMAN, Peter. (1999), “A New Union Model for a New World Order”. In: MUNCK,
Ronaldo & WATERMAN, Peter. Labour Worldwide in the Era of Globalization. Lon-
don, Macmillan Press.
WESTERN, Bruce. (1999), Between Class and Market: postwar unionization in the capitalist
democracies. Princeton, Princeton University Press.
junho 2009 63
Resumo
Abstract
Working-class strategy and neocapitalism
This text discusses some of the questions raised by André Gorz in his book Working-
class strategy and neocapitalism, published in the mid 1960s. It situates this work as part
of a wider set of studies by the author in which he explores the transformations in capi-
talism in central countries after the Second World War, focusing on how these
Texto recebido e apro- prompted the need for new action strategies among the working-class and union move-
vado em 24/3/2009. ments. The first theme discussed is the relationship between general and specific de-
Iram Jácome Rodri- mands and the role performed by reformism in working-class action. Secondly, based
gues é professor livre- on this new phase, the article reflects on André Gorz’s studies concerning overall
docente do Departa- changes within capitalism and, by extension, within the more developed capitalist soci-
mento de Economia e eties. Finally, the article analyzes in more detail the question of the workplace, com-
do Programa de Pós-
pany, factory and production as a fundamental locus in the fight for working-class
Graduação em Socio-
emancipation.
logia da Universidade
de São Paulo e pesqui- Keywords: Working-class strategy; Neocapitalism; Unionism; Socialism.
sador do CNPq. E-
mail: ijrodrig@usp.br.
Ricardo Abramovay
Apresentação
junho 2009 67
meira parte das Metamorfoses do trabalho, Gorz (2003a) discute com o pró-
prio Marx (em cuja obra ele se apoia tão fortemente), procurando apontar
um erro conceitual básico de sua formulação. Marx mostra de maneira ge-
nial (nos Grundrisse e no Livro I de O capital) como o sistema de máquinas
coloca inteiramente a seu serviço a atividade criativa, transformadora do
trabalho humano. O elemento ativo, capaz de trazer algo novo para a vida
social (o trabalho humano), converte-se em pura passividade, como se as
máquinas adquirissem poder próprio. Essa ideia é fundamental, igualmen-
te, no raciocínio desenvolvido por Karl Polanyi (1980) em A grande trans-
formação, quando se refere à força destrutiva do “moinho satânico”. No en-
tanto, é o que mostra Gorz, essa inversão não decorre do capitalismo e não
seria abolida caso o regime social de produção deixasse de ser capitalista. A
relação de estranhamento entre o trabalhador e os meios materiais de pro-
dução (quer se trate de máquinas, de escritório ou de uma locomotiva) não é
abolida pelo fato de ele não mais trabalhar para o capital e sim para o coleti-
vo organizado dos operários que teriam controle sobre a produção social. A
2. “O fracasso do panr- tentativa soviética de imprimir identidade existencial, sentido humano ao
racionalismo socialista
trabalho resultou no stakhanovismo, que em nada se distinguia das piores
não pode ser explicado
apenas por razões histó- práticas administrativas aplicadas nas sociedades capitalistas. O projeto po-
ricas e empíricas. Sua ra- lítico que consiste em ultrapassar o capitalismo por meio da expropriação
zão profunda é ontoló- dos grandes meios de produção e troca e da substituição generalizada do
gica: é ontologicamente mercado pelo planejamento central padece do vício de imaginar que uma
que a utopia marxiana
organização social complexa pode ser perfeitamente transparente aos olhos
que faz coincidir traba-
de seus participantes e, por aí, então, gerida de forma democrática. As me-
lho funcional e ativida-
de pessoal é irrealizável gaorganizações privadas e públicas características das atuais sociedades de
na escala dos grandes sis- massa são necessariamente opacas, quaisquer que sejam as regras de
temas pelo fato evidente alocação e distribuição da propriedade e dos resultados do trabalho. É cien-
de que o funcionamen- tificista e tecnocrático o mito de que o controle do Estado pela sociedade
to da megamáquina in-
organizada pode oferecer imagem visível, compreensível do funcionamento
dustrial burocrática exi-
ge uma subordinação das grandes organizações, a ponto de permitir o planejamento democrático
das tarefas que, uma vez e participativo. Essa crítica marca a trajetória intelectual de André Gorz e
instalada, perpetua-se e consolida-se na obra visionária que, publicada em 1988 (um ano antes da
deve perpetuar-se por queda do Muro de Berlim), mostrava que a inviabilidade dos regimes de
inércia, a fim de tornar
planejamento central não decorria de circunstâncias históricas particulares
viável e calculável a fun-
cionalidade de cada uma
(da destruição da vanguarda operária russa durante a Guerra Civil dos anos
das engrenagens huma- de 1920, ou de um suposto desvio de rota representado pelo stalinismo, por
nas” (Gorz, 2003a, pp. exemplo), mas sim do equívoco de imaginar que o trabalho fabril pode ser
48-49). emancipador, uma vez despojado de sua natureza capitalista2.
junho 2009 69
Illich distinguia duas espécies de técnicas: as que ele chamava de propícias à convi-
vência (conviviales), que aumentam o campo da autonomia, e aquelas, heterônomas,
que o restringem ou o suprimem. Eu [Gorz] as chamei “tecnologias abertas” e
“tecnologias ferrolho”. São abertas as que favorecem a comunicação, a cooperação,
a interação, como o telefone ou, atualmente, as redes de softwares de livre acesso.
As “tecnologias ferrolho” são as que submetem o usuário, programam suas opera-
ções, monopolizam a oferta de um produto ou de um serviço (Idem, p. 16).
[...] o trabalho efetuado em vista de sua troca mercantil, por mais interessante que
seja, não pode estar no mesmo plano da atividade do pintor, do escritor, do missi-
onário, do pesquisador, do revolucionário etc., que aceitam viver na privação por-
que é sua própria atividade que serve para eles de objetivo primário e não o valor de
troca dessa atividade” (Idem, p. 136).
junho 2009 71
junho 2009 73
[...] uma riqueza com a vocação de ser um bem comum [...] a área da gratuidade se
estende irresistivelmente. A informática e a internet minam o reino da mercadoria
em sua base. Tudo o que é traduzível em linguagem informatizada e reprodutível,
comunicável sem despesa, tende irresistivelmente a transformar-se em bem co-
mum e até em bem comum universal quando acessível a todos e utilizável por
todos” (Gorz, 2008, p. 37).
[...] ele se estende e se prolonga na luta contra a mercantilização das riquezas pri-
meiras – a terra, as sementes, o genoma, os bens culturais, os saberes e competên-
cias comuns, constitutivos da cultura cotidiana e que são as premissas da existência
de uma sociedade. Do feitio dessa luta depende a forma civilizada ou bárbara que
tomará a saída do capitalismo (Idem, p. 39).
junho 2009 75
junho 2009 77
ção que, apesar das intenções explícitas de seus participantes, lhes são sub-
jacentes. Estudo realizado, por exemplo, sobre o paradoxo de os produtores
culturais ligados ao tecnobrega paraense estimularem a divulgação de seu
trabalho por meio de CDs oferecidos quase gratuitamente mostra a exis-
tência de uma clara hierarquia entre os que participam dessa atividade. A
oferta gratuita de gravações musicais tem como contrapartida o poder dos
donos das aparelhagens sobre a organização de shows lucrativos, bem como
uma entrada altamente seletiva na publicidade veiculada pelas emissoras de
rádio (cf. Favareto et al., 2007).
A maneira como Gorz (e Benkler) encara o potencial emancipatório da
economia da informação em rede é, portanto, objeto de duas críticas im-
portantes. De um lado, Gorz e Benkler parecem não perceber que o pró-
prio mercado não poderia funcionar se não se apoiasse em formas de socia-
bilidade não restritas a propriedades e contratos, o que significa ao menos
um grão de sal na oposição tão marcada entre o calor das relações humanas
significativas e a fria objetividade daquilo que seria próprio ao mercado. A
segunda crítica é que tudo se passa como se a extensão da área de gratuidade
que acompanha a internet conduzisse a formas de interação desprovidas de
estruturas hierárquicas de dominação. No caso do tecnobrega paraense, a
presença dessa hierarquia é nítida. Quanto aos domínios em que agem os
hackers, uma abordagem sociológica procuraria aí formas de dominação
social, estruturas que se impõem – apesar da supressão da propriedade pri-
vada e do esforço de fazer da rede um espaço genuíno e voluntário de coo-
peração humana.
junho 2009 79
Economia e intimidade
junho 2009 81
Conclusões
junho 2009 83
Referências Bibliográficas
AZNAR, Guy. (1995), Trabalhar menos para trabalharem todos. São Paulo, Scritta.
BATISTA, José Renato de Carvalho. (2006), “ ‘Não se pode servir a Deus e a Mammon’:
uma etnografia sobre os sentidos do dinheiro em ritos e festas do Candomblé”.
30º Encontro Anual da Anpocs, 24 a 28 de outubro. GT Sociologia Econômica.
BECKER, Gary. (1996), Accounting for Tastes. Cambridge, Harvard University Press.
BENKLER, Yochai. (2006), The Wealth of Networks How Social Production Transforms
Markets and Freedom. New York/Lonon, Yale University Press. (Disponível em
http://www.benkler.org, consultado em 25/07/2007.)
BERGER, Peter L. (1991), Perspectivas sociológicas : uma visão humanística. São Paulo,
Vozes.
BRUNI, Luigino & ZAMAGNI, Stefano. (2007), Civil Economy Efficiency, Equity, Public
Hapiness. Oxford, Peter Lang.
CARNEIRO, Marcelo S. (2005), “O dinheiro é verde? ONGs e empresas na construção
do mercado de madeiras certificadas na Amazônia brasileira”. 29º Encontro Anual
da Anpocs, 25 a 29 de outubro de 2005. GT Sociologia Econômica.
CASTRO, Ana Célia. (2007), “O catching-up do sistema agroalimentar brasileiro: fa-
tos estilizados e molduras conceituais”. 31º Encontro Anual da Anpocs, 22 a 26 de
outubro. Caxambu (MG). GT Sociologia Econômica.
CONROY, Michael. (2007), Branded! How the “Certification Revolution” is Transforming
Global Corporations. Gabriola Island (Canada), New Society Publishers.
DAHRENDORF, Ralf. (1991), Homo sociologicus: ensaio sobre a história, o significado e a
crítica da categoria de papel social. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
ELSTER, Jon. (1985), Making Sense of Marx. Cambridge, Cambridge University Press.
junho 2009 85
POLANYI, Karl. (1980), A grande transformação: as origens da nossa época. 3 ed. Rio de
Janeiro, Campus.
RIFKIN, Jeremy. (2004), O fim do emprego. São Paulo, M. Books do Brasil.
SINGER, Paul. (2002), Introdução à economia solidária. São Paulo, Fundação Perseu
Abramo.
STEINER, Philippe. (2000), “Marx et la sociologie économique”. Cahiers Internatio-
naux de Sociologie, CVIII: 57-77.
_____. (2006), A sociologia econômica. São Paulo, Atlas.
SUPLICY, Eduardo M. (2002), Renda de cidadania: a saída é pela porta. São Paulo,
Cortez.
SWEDBERG, Richard. (2003), Principles of Economic Sociology. Princeton, Princeton
University Press.
T OURAINE , Alain. (2005), Un nouveau paradigme: pour comprendre le monde
d’aujourd’hui. Paris, Fayard.
VAN PARIJS, Philippe. (1996), Refonder la solidarité. Paris, Cerf.
WEBER, Max. (1991), Economia e sociedade. Brasília, Editora da UnB, vol. 1 .
ZELIZER, Viviana A. (1997), The Social Meaning of Money: Pin Money, Paychecks, Poor
Relier, and Other Currencies. Princeton, Princeton University Press.
_____. (2004), The Purchase of Intimacy. Princeton, Princeton University Press.
Resumo
Anticapitalismo e inserção social dos mercados
O artigo estabelece uma comparação entre André Gorz e alguns dos mais importantes
autores da nova sociologia econômica. É verdade que se trata de um diálogo que nunca
ocorreu de maneira explícita. O que torna a comparação relevante, porém, é que ela
abre caminho para expor duas maneiras alternativas de encarar o tema sociológico
básico da inserção dos mercados na vida social. Para Gorz, mercado e sociedade civil
são termos antinômicos e não há tarefa política mais relevante que impedir a invasão,
a colonização da vida social e das relações afetivas pelo mercado. Já para a sociologia
econômica, ao contrário, os mercados estão completamente mergulhados na vida so-
cial, são por ela explicados e não podem ser considerados esferas institucionais autôno-
mas. Dessa diferença na maneira de conceber a relação entre economia e sociedade
decorrem consequências políticas fundamentais: para Gorz, as redes sociais que mar-
cam a expansão dos softwares livres representam, potencialmente, o início de uma so-
ciedade, não capitalista. Para a nova sociologia econômica, no próprio mercado é
possível encontrar redes sociais baseadas em laços não mercantis. Além disso, a inser-
ção social dos mercados convida a que a ação política se dirija não apenas ao setor
público e associativo, mas também, e cada vez mais, à própria forma de se organizar o
setor privado.
Palavras-chave: Sociologia econômica; Creative commons; Esquerda; Emancipação social.
Abstract
junho 2009 87
Valéria Paiva
*
Neste artigo procuramos compreender, através da análise da estrutura nar- Este artigo é uma ver-
rativa do clássico O Cortesão (1528), de Baldassare Castiglione, o sentido são revisada do segun-
do capítulo de minha
ao mesmo tempo ideal e normativo da dissimulação tanto para a “modela-
dissertação de mestra-
gem da identidade” individual, como para a preservação da identidade coletiva do defendida em de-
da aristocracia como grupo social1. zembro de 2005 no
Desde a publicação dos estudos hoje clássicos de Norbert Elias, sobre o Iuperj. Agradeço aos
processo civilizador e a racionalidade de corte, vem se consolidando cada professores Ricardo
Benzaquen de Araújo
vez mais nas ciências humanas um interesse na releitura dos tratados de
(Iuperj) e Cicero Ara-
comportamento considerados, até então, ou como simples manuais de eti- újo (DCP-USP), assim
queta ou como formulações idealistas e utópicas, para a compreensão do como aos pareceristas
modo de vida que caracterizou primeiro o Renascimento, depois o Barroco anônimos, pelas críti-
(cf. Pécora, 2001b). O próprio Norbert Elias, entretanto, não fornece mui- cas e sugestões a ver-
tas pistas para compreender a importância da dissimulação, seja para os sões anteriores deste
artigo.
atores que viveram o processo civilizador, seja para a formação da sociedade
moderna. Uma única vez, em O Processo Civilizador, o tema da dissimula- 1. O termo “modela-
gem da identidade” é
ção aparece explicitamente, e sob uma lente positiva, como necessário à
utilizado aqui empres-
manutenção da vida em “sociedades pacificadas”. Trata-se de uma conver- tado de Greenblatt
sa, relatada pelo autor, entre Eckermann e Goethe, em que Goethe censura (1984), para dar uma
o amigo por sua exigência de autenticidade na vida social, enfatizando o forma conceitual à ideia
aspecto benéfico e humano da moderação dos afetos2 (cf. Elias, 1994, p. de que, com o Renasci-
mento, a percepção de
48). Em A Sociedade de Corte, em que Elias se apoia principalmente nas
que a identidade indivi- Memórias de Saint-Simon para analisar o comportamento cortesão, a dissi-
dual era construída ad- mulação costuma aparecer, por sua vez, associada a uma perspectiva mora-
quiriu contornos insti-
lista em que o decoro, como o ajuste prudente do homem às circunstân-
tucionais (sobre esse
tema, ver também Gree- cias, contrasta com uma verdade psicológica nascente, cuja profundidade
ne, 1968). Segundo seria acentuada na personalidade romântica, e que viria a definir o sujeito
Louis Marin, assiste-se nos séculos XIX e XX (cf. Elias, 2001; Pécora, 2001b).
nesse momento históri- No contexto do século XVI, no entanto, a dissimulação relaciona-se a
co (seu exemplo é Mon-
um estilo, isto é, a uma forma ao mesmo tempo estética e moral através da
taigne) ao surgimento
do tema do reconheci-
qual os saberes e as virtudes eram atualizados em comportamentos social-
mento de si que se so- mente valorizados. Diferente do que estamos acostumados a pensar hoje, o
maria – e por fim o in- valor do conhecimento e das virtudes dependia então de sua representação
corporaria – ao tema para um público, e de seu reconhecimento e apreciação por um público.
clássico, platônico, do Estamos diante de um tipo de sociedade em que a visão se impunha como
conhecimento de si –
o órgão regulador do comportamento por excelência e em que a admiração
simbolizado pelo pre-
ceito délfico do “conhe- do outro era a recompensa do comportamento bem-sucedido. Essa era a
ce-te a ti mesmo”. O sociedade de corte. E fosse porque eram predominantes a linguagem falada
tema do reconhecimen- e a linguagem corporal sobre a linguagem escrita, isto é, porque as relações
to preserva o sentido sociais assumiam uma forma retórica; ou porque nesse tipo de sociedade
clássico do conhecer-se a
não havia uma esfera privada contraposta à esfera pública, tal como viemos
si mesmo como reco-
nhecimento de ser aque- a conhecer, e todas as pessoas estavam constantemente em presença de um
le que desde sempre me é outro, o tipo de virtudes e o modo de sua realização eram exclusivos ao
conhecido, mas aponta espaço público, dando-se através de ações dirigidas para um público, para
para um segundo senti- serem observadas e admiradas por um público (cf. Elias, 2001; Habermas,
do: o de se reconhecer na
1984).
exploração das frontei-
A separação entre o público e o privado tornou-se, no entanto, tão es-
ras, dos limites, desse lu-
gar reservado ao próprio sencial a nossa sociedade que não conseguimos mais imaginar uma organi-
reconhecimento. Se, no zação social destituída de uma esfera privada, quer dizer, “reduzida” a uma
primeiro caso, encon- esfera pública. A consequência disso é a tendência em desconsiderar, no
tramos um ideal de cul- estudo das sociedades de corte, a dimensão ideal e normativa inscrita nessa
tivo, por meio da imita-
busca coletiva por reconhecimento e admiração, operando como uma es-
ção, de uma herança e
de um patrimônio co- pécie de “hermenêutica do mal” que resume as aparências a determinações
mum relegados à huma- ou interesses ocultos (cf. Boltanski, 2000). Procuramos realizar neste artigo
nidade letrada, no se- um esforço na direção contrária.
gundo encontramos O livro de Castiglione nos permite seguir essa direção por apresentar a
um ideal de exploração
dissimulação como critério moral e estético para a ação. Escrito nas primei-
de um “eu” que se torna
“meu” no processo/per-
ras décadas do século XVI, dele sobressai, ainda, a dupla característica que
curso mesmo de explo- Elias identificou em O Processo Civilizador, nas obras de Erasmo e Della
Casa3. De um lado, o tema da dissimulação aparece sem o cerceamento e o
controle moral típico aos séculos posteriores, quando a incorporação dos ração de lugares e limites
hábitos civilizados vai dotar certos comportamentos socialmente modela- desconhecidos (cf.
Marin, 1999).
dos de tamanha naturalidade que não será mais necessário falar sobre eles.
É o que acontece, por exemplo, no processo de controle da maior parte das 2. “Mas, nessa citação,
ele [Goethe] fala com
funções corporais. O mesmo se passa com a dissimulação, com a particula-
grande conhecimento
ridade de que se assiste, a partir da experiência da Reforma protestante, mas como homem do mun-
especialmente nos últimos dois séculos, a uma crítica ao excesso de artifício do, como cortesão, com
no comportamento social, sem deixar de pressupô-lo em alguma medida. base em experiências
O que podemos observar em O Cortesão é, contudo, precisamente o pro- que são estranhas a
cesso anterior, de valorização da dissimulação no comportamento aristo- Eckermann. Ele enten-
de a compulsão de aba-
crático. Por isso, de outro lado, é que o tratado de Castiglione permite
far os próprios senti-
entrever o sentido do processo civilizador. Para voltarmos a Goethe, não mentos, de suprimir
importa o que se diga, é necessário nos controlarmos e nos darmos bem simpatias e antipatias,
com os outros se temos que viver em sociedade (cf. Elias, 1994, p. 37). compulsão inerente à
Como fazer isso é, apesar da distância que nos separa, um dos temas cen- vida cortesã e que fre-
quentemente é inter-
trais do livro de Castiglione.
pretada por pessoas de
Falar dessa distância nos adverte para a provável permanência da dissi- situações sociais dife-
mulação como uma regra tácita de convivência social. Podemos perceber rentes e, por conseguin-
em um autor tão contemporâneo como Erving Goffman, por exemplo, a te, com uma diferente
importância que a “autoapresentação” seguiu tendo nas sociedades moder- estrutura afetiva, como
sendo desonestidade ou
nas. Goffman destaca-se por explicitar, em seu livro A Representação do Eu
insinceridade. E com
na Vida Cotidiana, que o tecido social se mantém não somente por critérios um grau de consciên-
de justiça, mas igualmente por aqueles de justeza, isto é, de uma adaptação cia que o distingue
sem atritos entre os atores sociais. Uma adaptação que, como o ideal de como um relativo estra-
Castiglione, parece espontânea, mas de fato é construída. Seria em alguma nho a todos os grupos
medida anacrônico, no entanto, pensar a sociabilidade renascentista nos sociais, ele enfatiza o
aspecto benéfico, hu-
termos de Goffman, a partir da metáfora da representação teatral. A metá-
mano, de sua modera-
fora teatral implica o “bastidor” como um “coespaço” social do “palco” e ção em afetos indivi-
indica uma cisão entre a identidade do ator e a identidade do personagem duais. Seu comentário
que dificilmente poderíamos identificar no estilo de representação renas- é um dos poucos pro-
centista (cf. Goffman, 1990, pp. 244-247). nunciamentos alemães
dessa época a reconhe-
A sensação de anacronismo produzida pela aproximação entre períodos
cer algo do valor social
históricos bastante distintos, sem as devidas mediações, obriga-nos a pensar da ‘cortesia’ e dizer al-
que O Cortesão, como qualquer outro livro, tem uma história. E que essa guma coisa positiva so-
história não deixa de ser o resultado de uma tradição que lhe era anterior e bre a habilidade social”
que, por sua vez, é incorporada em um processo de recepção ativa nos sécu- (Elias, 1994, p. 48).
los seguintes à sua publicação. Na medida em que adotamos uma perspec- 3. Peter Burke e Carlo
tiva hermenêutica, procurando desdobrar o significado que a dissimulação Ossola mostram o cará-
junho 2009 93
ter exemplar que o livro adquire especialmente em Castiglione, entender esse processo de recepção
assumiu, tornando-se ultrapassa os objetivos propostos neste artigo. Vale a pena, no entanto, re-
referência para a com-
meter pontualmente a algumas conclusões a que chega Peter Burke em seu
posição de muitos ou-
tros tratados de mesmo livro As Fortunas d’O Cortesão, em que o autor busca mapear – através da
tipo e servindo de base análise de edições, traduções, imitações e modificações incluídas no texto
para a criação, já a par- original de Castiglione – o sentido atribuído ao livro por “comunidades de
tir de meados do século leitores” com características sociológicas distintas.
XVI, de catálogos pres-
Durante o século XVI, O Cortesão teve em torno de sessenta edições em
critivos daquilo que se
consolidaria cada vez
italiano e, além das traduções, pode-se identificar a circulação das edições
mais como sendo “a” em italiano nas demais cortes europeias – especialmente na Espanha, na
cultura e “a” língua cor- França e na Inglaterra. Ao longo desse período, no entanto, o livro perde seu
tesã – uma espécie de caráter aberto, devido ao seu formato de diálogo, como veremos, para se tor-
listagem do conteúdo nar um livro de consulta, com índices analíticos e notas dos principais as-
que pautaria doravante
suntos e máximas. Depois do sucesso obtido no século anterior, no século
as conversações e a soci-
abilidade da aristocra- XVII se observa um declínio, segundo Burke, do interesse pelo livro de Cas-
cia de corte e depois, tiglione, que nunca mais teria a mesma recepção calorosa dos primeiros
em um sentido mais anos. O fortalecimento das monarquias absolutas aliado aos movimentos de
amplo, da honnête gens Reforma e Contrarreforma contribuíram para uma crítica moral, de fundo
(cf. Burke, 1997; Osso-
religioso, à dissimulação. Por um lado, no contexto da Reforma, assiste-se a
la, 1997). O clássico de
Giovanni Della Casa, o uma crítica da “cultura da representação” em prol de uma “cultura da since-
Galateo, muito citado ridade”, posteriormente recuperada com o Movimento Romântico no sécu-
no volume I de O Pro- lo XIX (cf. Burke, 1997, p. 124). Por outro lado, se O Cortesão chegou a ser
cesso Civilizador, pode, incluído no Index dos livros proibidos pela Inquisição, vê-se também o sur-
por exemplo, ser consi-
gimento de uma literatura de corte em relação à qual os conselhos de Casti-
derado em uma linha
glione pareceriam não cínicos, mas excessivamente francos diante do poder
de continuidade direta
com O Cortesão. absoluto dos príncipes. O pequeno tratado Da Dissimulação Honesta, do
italiano Torquato Accetto, é um exemplo dessa literatura de secretários de
príncipes que adquiriu importância ao longo do século XVII, em que a dis-
simulação adquire as cores sombrias do tacitismo e era justificada ao mesmo
tempo em termos religiosos e políticos, como estratégia de sobrevivência
nas cortes (cf. Míssio, 2004).
Apesar de O Cortesão não ter recebido nunca mais a mesma atenção
como a que se seguiu à sua publicação, é interessante notar, por fim, o
ressurgimento do interesse pelo livro no fim do século XVII e início do
século XVIII, ligado à “aristocratização” dos burgueses ricos, o que nos
daria pistas sobre a influência do modelo retratado por Castiglione nas so-
ciedades modernas (cf. Burke, 1997, pp. 147-148). É especificamente so-
bre esse modelo que nos debruçamos a seguir.
O quadro
O tratado, como diz Castiglione no prólogo, foi escrito para seu amigo
Alfonso Ariosto (primo de Ludovico Ariosto, autor de Orlando Furioso),
que lhe havia pedido escrever sobre
[...] a forma de cortesania mais conveniente ao fidalgo que vive numa corte de
príncipes, de tal maneira que possa e saiba servi-los em tudo o que seja razoável,
conquistando as graças deles e os elogios dos outros; em suma, como deve ser
* A data entre colche-
aquele que mereça ser chamado de perfeito cortesão, para que nada lhe falte” ([1528]*
tes refere-se à edição
1997, p. 11, I, I)4.
original da obra e é
indicada na primeira
Para que nada falte ao perfeito cortesão, uma variedade de temas rela- vez em que a obra é
cionados com o saber viver de corte aparece e desaparece ao longo dos diá- citada. Nas demais, in-
logos e dos livros que compõem o tratado, testemunhando a competência dica-se somente a edi-
ção utilizada pelo au-
do autor em relação à cultura cortesã e humanística que lhe era familiar e às
tor (N.E.).
questões que então se impunham aos representantes “intelectuais” dessa
4.As citações de O
cultura: entre outras, a importância da origem familiar nobre (livro I); o
Cortesão seguirão sem-
debate sobre a institucionalização e a legitimidade da língua vulgar (livro pre esse mesmo pa-
I); a enorme gama de ditos, facécias e motes que serviam às conversações drão: como de costu-
mundanas (livro II); a questão feminina e a forma de amor conveniente aos me, o ano da edição
cortesãos (livros III e IV); a relação entre o cortesão e o príncipe (livro II, brasileira mais o núme-
ro da página em que
mas principalmente livro IV). Entretanto, a importância da obra para a
se encontra a citação,
compreensão de um modelo Renascentista de sociabilidade – e da reper- seguidos da indicação
cussão desse modelo no período das monarquias clássicas – está, com efei- em algarismos roma-
to, não somente relacionada com sua variedade de temas, mas também, e nos do livro e do capí-
principalmente, com a forma como os temas se apresentam, de um lado, e tulo da obra.
junho 2009 95
o modo como são costurados uns aos outros em função do objetivo propos-
to, de outro.
O que Alcir Pécora afirma a propósito do tratado Da Dissimulação Ho-
nesta, do secretário italiano Torquato Accetto, vale ainda mais para a obra de
5. “E porque vós nem
Castiglione: pois também Castiglione conquista para o seu tratado “o mes-
da senhora duquesa,
nem dos outros que mo estatuto, concomitantemente teórico e prático, do ‘cânone’ de Policleto,
morreram, exceto do referido por Plínio: uma estátua particular de uma figura humana que for-
duque Iuliano e do car- necia, igualmente, o padrão de proporcionalidade perfeita para toda figura
deal de Santa Maria em humana” (Pécora, 2001a, p. XII). Com o objetivo de forjar a figura do mais
Portico, tivestes notícia
perfeito cortesão, o que vemos se construir ao longo dos diálogos e dos li-
durante a vida deles,
para que, até onde pos-
vros que compõem o livro é uma imagem verossímil da perfeita sociabilida-
so, tenhais alguma de- de, representada em sua forma mais típica, a conversação. O “retrato de
pois da morte, mando- pintura” da corte de Urbino que sai das mãos de Castiglione é, em sentido
vos este livro como um metafórico, uma representação pictórica da sociabilidade também ela pen-
retrato de pintura da sada como representação5. Compreendida não como desempenho de múl-
corte de Urbino, não da
tiplas funções sociais, mas como apresentação de si: um modo de ser e de
mão de Rafael ou de
Michelangelo, mas de estar com o outro através do qual os sujeitos modelam sua identidade indi-
um reles pintor que so- vidual. Resulta daí uma espécie de causalidade circular: o padrão de propor-
mente sabe traçar as li- cionalidade perfeita, no caso a ideia – em seu sentido platônico, a imagem –
nhas principais, sem do mais perfeito cortesão, é o produto final, mas ao mesmo tempo o pressu-
adornar a verdade com
posto do modus operandi de sua produção. Se nos fosse possível imaginar
vagas cores ou fazer pas-
sar por arte da perspec-
esse “retrato de pintura”, veríamos o salão oval luxuosamente ornado, cená-
tiva aquilo que não o é“ rio do livro e das soirées organizadas pela senhora duquesa Elisabetta Gonza-
(Castiglione, 1997, p. ga com a ajuda de sua lieu-ténante e amiga Emilia Pia; veríamos os membros
5, “Dedicatória”). daquela corte – os seus personagens –, homens e mulheres, jovens e senho-
6.“Minha Senhora, res, muito bem-vestidos, sentados em círculo de forma intercalada; podería-
uma vez que lhe agra- mos supor, pelos gestos das figuras, que estivessem em qualquer conversa-
da que seja eu a come- ção amável típica a uma sociabilidade íntima e fraternal entre iguais; mas
çar os jogos desta noi-
com certeza não veríamos representada nessa cena a figura do perfeito corte-
te, não podendo sen-
satamente deixar de são, cuja presença como modelo, invisível aos nossos olhos, se faria sentir,
obedecer-lhe, decido no entanto, para todas as outras figuras inegavelmente.
propor um jogo pelo Não é, então, simplesmente por acaso que, depois de percorridos os
qual penso em receber lugares-comuns da retórica (Dedicatória, Prólogo, Elogio ao lugar, ao Se-
pouca censura e menos
nhor, apresentação do cenário etc.), encontramos, no início da narração
cansaço; ele consiste
em que cada um pro-
propriamente dita, o diálogo que determinará dali em diante toda a repre-
ponha segundo a sua sentação. Incumbida de dar início ao jogo que teria lugar naquela noite,
opinião um jogo ain- Emilia Pia engenhosamente propõe um que “[...] consiste em que cada um
da não realizado [...]” proponha segundo a sua opinião um jogo ainda não realizado [...]”6. O
jogo escolhido, a saber, “modelar com palavras um perfeito cortesão”, tor- (Castiglione, 1997, p.
na-se assim o resultado de um “metajogo” que impõe ao tratado sua própria 18, I, VI).
chave hermenêutica (cf. Ossola, 1997). Por um lado, vários dos jogos pro- 7. Nas palavras de Carlo
postos retornam ao longo do livro, considerados agora, no entanto, à luz Ossola (1997, p. 69):
“S’agissant de limites, la
do jogo escolhido (sendo o discurso de Bembo sobre a loucura do amor
tradition en offrait ce-
sublime, ao fim do tratado, um exemplo disso). Por outro lado, recria-se e pendant de plus nettes,
impõe-se, através desse artifício, o espaço retórico – “fictício” – da palavra car ‘former par la parole
como o espaço propriamente reservado à formação e instrução do príncipe un courtisan parfait’ cor-
e do cortesão em sua relação com o príncipe7. respond, comme le no-
O fato de o jogo escolhido, “modelar com palavras um perfeito cortesão”, tait Cian, à l’‘oratione
fingere’ cicéronian; aussi,
ser ele mesmo o resultado de um jogo discursivo implica, assim, um espaço
c’est bien dans l’espace
específico, aquele da palavra e do discurso, no interior do qual o processo de fictif du discours que l’
modelagem da identidade se desenrola: “former par la parole” significa ne- institutio’ du prince
cessariamente nesse contexto “former dans la parole”. Mas uma segunda prendra sa place, place
consequência tão ou mais importante ainda se põe: a de que, se se trata de autorisée davantage par
le ‘genre littéraire’ que
modelar o mais perfeito cortesão narrativamente, a narrativa, isto é, o dis-
par l’ histoire, et fondée
curso mesmo, deve também ela se aproximar ao máximo do objetivo pro- sur un voeu conjuguant
posto: “former par la parole” e “dans la parole” significam igualmente, como perfection du cortisan et
afirma Ossola, “former à la perfection des paroles” (Ossola, 1997, p. 70). formation du prince
A garantia de se atingir o objetivo proposto no jogo escolhido se vincu- dans le cadre même des
hypothèses rhétoriques
la, com isso, à precondição que torna possível a escolha do próprio jogo,
du ‘dire’” (Tratando-se
uma espécie de sociabilidade perfeita: e “se em algum lugar existam ho- de limites, a tradição ofe-
mens que mereçam ser chamados de bons cortesãos e que sabem julgar recia no entanto [exem-
aquilo que compõe a perfeição da cortesania, com boas razões havemos de plares] mais claros, por-
pensar que aqui estejam” (Castiglione, 1997, p. 25, I, XII). A imagem do que ‘modelar com pala-
cortesão, por mais ideal que pareça e seja, não provém nesse contexto de vras um perfeito corte-
são’ corresponde, como
um idealismo descolado, digamos, das possibilidades de sua realização. Ao
o observava Cian, ao ora-
contrário, é somente porque e quando essas condições se tornaram muito tione fingere ciceroniano;
difíceis de serem cumpridas, ou passaram a ter que ser artificialmente cria- por isto, é bem no espa-
das, que o modelo de formação proposto por Castiglione se tingiu com as ço fictivo do discurso
cores de um idealismo, com o sentido pejorativo a partir do qual o enten- que a institutio do prínci-
pe terá seu lugar, lugar
demos hoje: do irrealizável, do faltoso. Tal como está posta no livro, no
autorizado mais pelo ‘gê-
entanto, a noção de ideal reflete antes uma dialética entre essência e aparên- nero literário’ do que
cia que se realiza nos termos próprios em que é concebida: com o objetivo pela história e fundado
de existir simplesmente enquanto Ideia. sobre um voto (desejo,
É precisamente a forma de diálogo-conversação, que estrutura o trata- promessa) conjugando
do, o que garante a verossimilhança dessa representação. Diferente do mo- perfeição do cortesão e
formação do príncipe no
delo platônico-socrático, em que um interlocutor é responsável por condu-
junho 2009 97
quadro mesmo das hi- zir a narrativa, as falas contraditórias e os diálogos aparentemente inconclusos
póteses retóricas do ‘di- se prestam, em O Cortesão, para a composição do quadro que se quer mos-
zer’”).
trar: o ideal pressuposto à conversação, e que ao mesmo tempo lhe trans-
cende, impõe-se apesar e através de um contínuo contradizer-se, como uma
espécie mesmo de pintura, cuja nitidez da imagem vai se delineando pouco
a pouco no jogo de cores e de luzes e sombras que dão vida e profundidade
aos traços de um desenho em branco e preto.
Contradizer não é, no livro, simplesmente uma espécie de resultado
“natural”, não intencionado, do jogo da sociabilidade. Ao contrário, trata-
se de uma postura explicitamente posta como regra do jogo escolhido:
E me seja perdoado se eu, devendo contradizer, perguntasse; pois creio que isso me
seja permitido, seguindo o exemplo do nosso dom Bernardo, o qual, por excesso de
vontade em ser considerado um belo homem, contrariou as regras do nosso jogo,
perguntando e não contradizendo. – Vede – disse a senhora duquesa – como de
um só erro procedem vários outros (Idem, p. 39, I, XXIII).
junho 2009 99
preendida pela noção de harmonia musical, tomando a música como um 10.Como afirma Fu-
modelo transcendental (cf. Fumaroli, 1998, p. 293). maroli, o termo conver-
satio não existia no vo-
É precisamente essa estética capaz de insinuar uma harmonia “preestabe-
cabulário ciceroniano,
lecida”, característica de um ideal de sociabilidade baseado na concórdia das e os termos que lhe se-
vontades individuais, que encontramos em O Cortesão. Não sem razão, esse riam mais ou menos
ideal, assim como o do cortesão, se revestiu para nós de um idealismo no sen- equivalentes são sermo
tido depreciativo desse termo. A própria conversação vai, ao longo dos sécu- e colloquium (cf. 1998,
p. 289).
los XVII e XVIII, perdendo o caráter naturalmente harmônico que a carac-
terizou típico-idealmente no período renascentista. Mantendo puramente 11. “L’interlocuteur du
sua configuração formal – determinada, por um lado, por uma espécie de sermo cicéronien, tel
qu’il apparaît dans ses
“decoro forçado” e, por outro, pela repetição mecânica e não espirituosa dos
dialogues, est l’orateur
lugares-comuns da antiguidade clássica –, a conversação se aproximará de du Forum, mais dans
um coquetismo literário, cujo fim o surgimento da literatura propriamente son loisir. Il n’y renonce
dita, isto é, da literatura escrita, ajudará a consolidar (cf. Idem). pas à son auctoritas, à ses
Se a conversação adquiriu no século XVI um sentido sociológico distin- vertus: la conversation
de loisir cicéronienne est
to, para o que a instituição do próprio vocábulo em língua vulgar contri-
encore de la vie civique
buiu, isso se deu a partir do acréscimo de uma nova camada de significado et active, continuée par
ao sermo ciceroniano, cujo estilo permaneceu, no entanto, para esse discur- d’autres moyens dans
so, como modelo retórico10. Um modelo que estava de acordo com a “urba- une retraite provisoire.
nidade” fraternal e amigável entre os pares da “boa sociedade” em seus La parole y est soumise
aux mêmes règles de
momentos de convivência na corte destinados não ao convencimento, através
clarté, à la même métho-
de uma oratória eloquente, mas ao esclarecimento mútuo, mediante o diá- de rhétorique qui con-
logo. Como afirma Fumaroli: siste à chercher la sagesse
(verité et bonheur) en
O interlocutor do sermo ciceroniano, tal como aparece nos diálogos, é o orador do prenant appui sur la
Fórum, em seus momentos de lazer. Ele não renuncia a sua auctoritas, a suas virtu- doxa, sur les lieux com-
muns qui sont le parta-
des: a conversação do lazer ciceroniano é também ao redor da vida cívica e ativa,
ge de tout les hommes,
continuada por outros meios num retiro provisório. A palavra submete-se aí às et d’abord de tout les
mesmas regras de clareza, ao mesmo método retórico que consiste em procurar a Romains. La différence
sabedoria (verdade e felicidade) buscando apoio sobre a doxa, sobre os lugares- entre eloquentia et sermo,
comuns que são a partilha de todos os homens e, em primeiro lugar, de todos os chez Cicéron, n’est pas de
méthode, mais de condi-
Romanos. A diferença entre eloquentia e sermo, em Cícero, não é de método, mas
tion d’exercice: ici, une
de condição de exercício: no primeiro, uma vida ativa e pública, a relação do ora-
vie active et publique, le
dor com um grande auditório que ele quer conquistar; no segundo, uma vida rapport de l’ orateur à un
contemplativa e privada, o otium, e a relação do interlocutor com seus pares que large auditoire qu’il lui
são seus amigos e que cooperam de boa vontade para o esclarecimento comparti- fait conquérir; là, une vie
lhado, em estilo simples e natural, das questões de interesse genericamente huma- contemplative et privée,
l’otium, et le rapport de
no (Idem, p. 290)11.
l’ interlocuteur avec ses O estilo simples e natural, também chamado de “aticismo ciceroniano”,
pairs qui sont ses amis et afasta-se de um maneirismo que “peca” pelo excesso de ornamento, mas se
qui coopèrent volontiers
afasta igualmente do estilo simples, de matriz estoica, do “aticismo sene-
à l’ éclaircissement en
commun, en style sim- quiano”, que conheceu uma enorme repercussão no século XVII – princi-
ple et naturel, des ques- palmente na Espanha e nas regiões sob sua influência. Apesar de os dois
tions d’intérêt générale- estilos serem “simples”, o “aticismo senequiano” caracteriza-se por uma bre-
ment humain”. vidade, uma agudeza e uma obscuridade que em muito o distanciam da
12.“Eis o estado dessa elegância harmoniosa, da clareza e da naturalidade típica ao modelo cicero-
grande máquina do niano. O estilo simples de matriz estoica privilegia mais o movere que o
mundo, a qual, para a delectare (ou melhor: privilegia o delectare em função do movere) e, entre as
saúde e conservação de
qualidades necessárias a todo bom orador, antes o entendimento, ao qual
toda coisa criada, foi
produzida por Deus. O ele submete a memória, que o juízo, entendido como “bom gosto”, uma
céu redondo, adornado disposição natural (um “não sei o quê”) que permite que o orador se ponha
com tantos lumes divi- de acordo com as circunstâncias, os assuntos, as pessoas. Como é o caso no
nos, e no centro a terra aticismo ciceroniano.
circundada pelos ele-
O caráter cerimonial implicado por uma civilidade constantemente
mentos e sustentada
por seu próprio peso; o atuante em todo o conjunto da vida social faz com que a adaptação às
sol, que girando ilumi- aparências e às suas circunstâncias seja uma norma social válida para toda
na tudo e, no inverno, sociedade de corte entendida como um tipo. Trata-se de uma condição
se acerca do signo mais sine qua non de uma sociedade cuja estrutura de possibilidades de prestí-
baixo, depois, pouco a
gio e poder se define pela performance pública, no convívio constante com
pouco ascende do outro
lado; a lua, que dele re-
os outros e aos olhos de outros. Isso significa que, independentemente
tira sua luz, conforme se do modelo retórico a que estejamos nos referindo, esse modelo se atuali-
aproxima ou se afasta; e za em um espaço regido pelo princípio da conveniência, isto é, pela adap-
as outras cinco estrelas tação. Entretanto, a conveniência ciceroniana tem um significado que
que seguem o mesmo modula essa adaptação em um sentido específico: estar de acordo com as
curso de maneiras dife-
pessoas, os lugares, os assuntos e as circunstâncias é, nesse contexto, se
rentes. Estas coisas têm
tanta força pela harmo- modelar e se relacionar com os outros e com o mundo a partir da convic-
nia de uma ordem com- ção de que a linguagem, mas também a natureza, o corpo humano, as
posta de maneira tão artes são dotados e compartilham de uma mesma racionalidade interna e
determinante que, se orgânica. É estar de acordo com uma espécie de modelo exterior e supe-
fossem mudadas num
rior que organiza o todo em sua multiplicidade e em sua constante varia-
ponto, não poderiam
ficar juntas e levariam o
bilidade, dotando-o de ritmo e beleza: “Estas coisas têm tanta força pela
mundo à ruína; têm harmonia de uma ordem composta de maneira tão determinante que, se
ainda tanta beleza e gra- fossem mudadas num ponto, não poderiam ficar juntas e levariam o
ça que as inteligências mundo à ruína; têm ainda tanta beleza e graça que as inteligências hu-
humanas não podem manas não podem imaginar coisa mais linda” (Castiglione, 1997, p. 323,
imaginar coisa mais lin-
IV, LVIII)12.
Essa espécie de modelo exterior e superior pode certamente ser mais da. Pensai também na
bem compreendida quando consideramos, com Cícero, que existe por trás figura do homem, que
pode ser considerado
das atividades humanas uma ideia perfeita – no sentido de plena, acabada –
um pequeno mundo,
daquela atividade: no qual se vê cada parte
do corpo ser composta
Eu coloco em princípio que não há nada, de nenhuma espécie, de tão belo que não necessariamente com
seja inferior em beleza àquilo de que ele é apenas o reflexo, como o retrato de um arte e não ao acaso, e
todo o conjunto resulta
rosto, àquilo que nem os olhos nem os ouvidos nem nenhum sentido podem per-
por fim belíssimo; a tal
ceber, e que nós não atingimos senão pela imaginação e pelo pensamento” (Cícero,
ponto que seria difícil
apud Fumaroli, 2002, p. 55)13. julgar que utilidade ou
graça possam dar ainda
Tanto a figura do cortesão como a imagem da sociabilidade da qual ela ao rosto e ao restante do
se origina só adquirem sentido quando entendemos que a verdadeira per- corpo todos os mem-
bros, os olhos, o nariz, a
feição não se encontra nelas mesmas, mas na ideia que elas refletem em
boca, a orelha, os braços,
ato: pois a perfeição consiste justamente em assinalar uma outra que a o peito e as demais par-
transcende “e que apenas se conhece como desejo” (Pécora, 2001b, p. 73). tes” (Castiglione, 1997,
Ora, mas essa perfeição, que se conhece apenas como desejo, como vonta- p. 323, IV, LVIII).
de ou, como em vários momentos afirma Castiglione, como uso e costu- 13.“Je pose en principe
me, encontra uma única via para se realizar: quando, adaptando-se às cir- qu’il n’y a rien, dans
cunstâncias, o sujeito se põe em harmonia com a variabilidade que existe aucun genre, de si beau
qui ne soit inférieur en
no mundo, a partir de um juízo que ele é capaz de formar a respeito da
beauté à ce dont il n’est
ideia de alguma coisa. Nesse sentido, como foi afirmado anteriormente, que le reflet, comme le
trata-se de uma dialética entre essência e aparência que se realiza nos pró- portrait d’un visage, à
prios termos em que é concebida ou, como afirmou Erwin Panofsky, esse ce que ni les yeux ni les
é o círculo vicioso que está no coração da concepção clássica da arte: “O oreille ni aucun sens ne
vaivém das ideias ao mundo natural e do mundo natural às ideias” peuvent percevoir, et
que nous n’embrassons
(Panofsky, apud Pons, 1991, p. XIX)14.
que par l’imagination et
É igualmente nesse contexto que a conversação tem lugar: os perso- la pensée”.
nagens do livro e dos diálogos são, também eles, representantes dessa
14.“Le ‘va-et-vient des
variabilidade que poderíamos encontrar em todos os níveis das ativida- idées au monde naturel
des e dos fenômenos humanos, e em cada ser humano em particular15. et du monde naturel
Cada um dos personagens do livro tem um juízo próprio sobre como aux idées’”.
deve ser aquele a que se deva chamar de perfeito cortesão (cf. Castiglio- 15.“Os oradores tam-
ne, 1997, p. 27, I, XIII)16. Mais: cada personagem é representativo da bém tiveram sempre
“profissão da cortesania” e, diferentes entre si, todos deixaram, no entan- tanta diversidade entre
to, um nome gravado na história (cf. Pons, 1991, p. XIV). Com efeito, si que toda época pro-
duziu e apreciou um
não há, como tradicionalmente nos diálogos platônicos, um personagem
tipo de oradores pecu-
encarregado de conduzir os demais em direção à verdade; e também não
liar daquele período; os se trata de oradores, diante de um auditório, buscando demonstrar algo
quais foram diferentes para um público ou convencê-lo. A ideia do perfeito cortesão é construí-
não só dos predecesso-
da pouco a pouco sobre um consentimento que emerge não da unanimi-
res e sucessores, mas
também entre si, como dade das posições, mas através de um contínuo contradizer-se. Em oca-
se garante foram Isócra- siões específicas, as contradições se resolvem com a autoridade de algum
tes, Lísias, Ésquines e personagem particular capaz de exprimir o sentimento geral de um gru-
muitos outros entre os po que, no entanto, já se encontrava de antemão em harmonia. Muitas
gregos, todos excelen-
vezes, ainda, as contradições não se resolvem, mas mesmo assim segue-se
tes, mas similares cada
um a si próprio. Entre os
adiante sob a ordem, seja da senhora duquesa, seja da senhora Emilia
latinos, mais tarde, Car- Pia, de não parar simplesmente o jogo sobre um único ponto, com o
bone, Lélio, Cipião risco de aí se perderem e de não chegarem nunca ao objetivo proposto
Africano, Galga, Sulpí- (cf. Castiglione, 1997, p. 61, I, XXXIX).
cio, Cota, Graco, Mar- Quando se considera, de uma perspectiva interna à representação, a fun-
co Antônio, Crasso e
ção que a contradição desempenha nos diálogos de O Cortesão, ressalta-se
tantos que seria demais
nomear, todos bons e que se trata menos de uma contradição entre ideias – ainda que, com efei-
bem diferentes um do to, a conversação reflita um debate no plano das ideias – do que entre as
outro. De modo que pessoas “reais” que compartilhavam o ambiente mundano daquelas con-
aquele que pudesse consi- versações noturnas17. Isso ocorre porque as pessoas-personagens retratadas
derar todos os oradores
por Castiglione são dotadas de tamanha realidade que muito dificilmente
que existiram no mundo
encontraria tantas ma- se poderia dizer que elas estejam ali apenas para exercer seu papel mecani-
neiras de dizer quantos camente, como marionetes em um teatro de palavras armado para nos fazer
oradores houvesse” (Cas- conhecer a vontade de um diretor abscôndito. Ao contrário, apresentadas
tiglione, 1997, p. 59, I, com tanta vida, qualquer leitor é certamente capaz de senti-las como reais,
XXXVII, grifos meus).
de se afeiçoar a elas, de percebê-las individualmente – se não pela coerência
16. “Todavia considero de suas intervenções, por sua maneira individual de manifestar humor, por
que cada coisa tem a sua suas preocupações mundanas particulares, por seu jeito próprio de se apre-
perfeição, mesmo quan-
sentar. Nesse sentido elas representam a diversidade e a variabilidade que
do oculta, e que esta
pode ser julgada com existe no mundo, pois eram e foram representadas como eram: realmente
discursos razoáveis por diferentes umas das outras, ainda que compartilhassem um mesmo ideal
quem dela souber. E que todas procuravam encarnar.
porque, como disse, Em comparação com os personagens modernos e em relação aos leitores
muitas vezes a verdade
modernos, os personagens de O Cortesão são reais, no entanto, em um sen-
está escondida e não me
vanglorio de ter tal co-
tido específico: como pessoas de um discurso retórico, simples e natural,
nhecimento, não posso mas não como personagens-indivíduos reconhecidos como tais a partir de
louvar senão aquele tipo uma existência internamente rica, produto de um desenvolvimento pes-
de cortesão que mais soal. No sentido em que consideramos hoje e que, segundo Erich Auerbach,
aprecio e aprovar aquilo a tradição hebraica comumente considerou, delas não se pode dizer que
que me parece mais se-
sejam reais, pois não têm, no mesmo sentido em que não o têm as persona-
gens homéricas, profundidade (cf. 1976, pp. 4-5). Durante a representa- melhante ao verdadeiro,
ção, os personagens encontram-se o tempo todo, em atos e pensamentos, segundo meu pouco
juízo: o qual podereis
no mesmo cenário, isto é, no mesmo ambiente simbólico e no mesmo uni-
adotar, caso vos pareça
verso de ação. Estão situados sempre em um único plano, o da aparência: bom, ou permanecer
do discurso em palavras e em gestos. E em momento algum, a partir da com o vosso, se for dife-
hora em que se inicia a narração propriamente dita, eles se retiram ou nós, rente do meu. E nem in-
leitores, somos retirados por qualquer motivo desse cenário e desse plano – sistirei em que o meu
seja melhor que o vosso;
do tempo presente vivido em conjunto pelos personagens. Um presente
pois não somente a vós
passível de ser fixado em uma imagem, em um “retrato de pintura”. pode parecer uma coisa
É precisamente nesse sentido que elas são sem profundidade. Mesmo as e a mim outra, mas a
contradições não servem, aqui, para produzir rupturas e/ou dobras no pla- mim próprio poderia
no narrativo, para instaurar um processo subjetivo perspectivista ensejando parecer ora uma coisa,
o surgimento de um segundo plano – não palpável, não acabado, não visí- ora outra” (Castiglione,
1997, p. 27, I, XIII).
vel – que permitiria a emergência de cada personagem a partir de sua
historicidade pessoal, de seus dramas e de suas felicidades. Antes, aliás, é 17.Como afirma Alain
Pons: “Et il (le jeu) n’y
função das contradições reunir as perspectivas diversas dos vários persona-
parviendra que collecti-
gens sob o modelo ideal que está sendo coletivamente construído, permi- vement, dans l’exercice
tindo o desenrolar do jogo. de son activité principa-
O que Auerbach constata acerca da representação homérica da realida- le, la conversation, avec
de pode, com algum cuidado, ser aplicado neste caso, pois também aqui sa oralité suppose de
spontanéité, de contact
encontramos um relato que parece ter como intenção atingir o leitor atra-
direct et même d’affron-
vés de um encantamento sensorial em relação não a um personagem ou a tement entre des person-
uma ideia, mas a um modo de vida: “a alegria pela existência sensível é nes et non simplement
tudo para eles, e a sua mais alta intenção é apresentar-nos essa alegria” entre des idées” (1991, p.
(Idem, p. 10). O relato “do mais belo jogo que se poderia realizar” é, como XVI, grifos meus).
já foi apontado, a apresentação de uma forma específica de sociabilidade,
baseada na concórdia das vontades individuais e na harmonia, e essa apre-
sentação é igualmente um momento de celebração. Não há um jogo,
como afirma Pons, mais bonito, mas também mais difícil do que este, o de
apresentar a si mesmo: “la cour (se) parle”, e o faz coletivamente (cf. Pons,
1991, p. XVII).
O modelo
cio literário que garante o caráter coletivo da tarefa de “modelar com pala-
vras um perfeito cortesão” e, assim fazendo, de a corte apresentar a si mes-
ma. Trata-se muitas vezes, com efeito, de uma aparente contradição, pois a
consonância da vontade e das opiniões já está de antemão dada. Ao contrá-
rio do que seria possível imaginar, o resultado desse contínuo contradizer-se
não é, assim, produzir uma ruptura na narrativa, mas servir como uma es-
pécie de elo entre as falas. Ao final, o que resta é um sentimento, uma deter-
18.Para Carlo Ossola,
minada imagem com a qual seguimos em frente – nós com a leitura, eles
a regra do “contradi- com o jogo –, ao mesmo tempo em que se cria, com esse artifício, o efeito de
zer” que rege o jogo de naturalidade necessário a uma conversação urbana e íntima entre os pares
“modelar com palavras de uma elite aristocrática que compartilhavam, também, o direito de dis-
o perfeito cortesão” se cordar entre si, amigavelmente18.
conjuga como uma es-
A importância da contradição ultrapassa, no entanto, sua utilidade e
pécie de filosofia da
história, com que Cas- beleza como artifício literário para revelar aquilo que definirá, em sua es-
tiglione abre o livro II, sência, o modelo de cortesania proposto por Castiglione: “dosar com graça
definindo para o corte- suas atividades, gestos, hábitos, em suma, cada movimento” (1997, p. 39,
são um tipo de existên- I, XXIV). Se, da perspectiva da composição do tratado, ela é um elemento-
cia paradoxal, fundado
chave do processo narrativo, cujo estilo permite apresentar como natural
em opostos, mas por
isso mesmo de acordo um modelo específico de sociabilidade e de conversação capaz de encantar
com a própria ordem e, com isso, produzir efeito de realidade, de uma perspectiva interna ao tra-
do cosmos (cf. Osso- tado a contradição torna-se ao mesmo tempo preceito normativo e critério,
la, 1997, p. 100). Se- estético e moral, para a ação.
gundo Castiglione, al-
A graça é, para o ideal de cortesão apresentado no livro, uma espécie de
guns “gostariam que
no mundo houvesse
adjetivo de todos os adjetivos, ou, como afirma Castiglione, o “condimento
todos os bens, sem de todas as coisas, sem o qual todas as outras propriedades e boas condições
nenhum mal, o que é se tornam de pouco valor” (Idem, p. 40, I, XXIV, grifos meus). E a fonte da
impossível, pois, sen- graça encontra-se justamente na capacidade de, ao adaptar-se às circunstân-
do o mal contrário ao cias, o cortesão ordenar a si mesmo de tal forma que o seu discurso, os seus
bem e o bem ao mal,
movimentos, os seus gestos conjuguem ao mesmo tempo perfeição da téc-
é quase necessário pela
oposição e por um cer- nica e naturalidade. Dissimulando o cuidado com tudo o que diz ou faz –
to contrapeso que um através da simulação de uma certa displicência –, o cortesão alcança, no pla-
sustente e fortifique o no pessoal, a mesma harmonia e equilíbrio característico à ideia da perfeita
outro e, faltando ou sociabilidade, exibindo, também em relação ao próprio comportamento,
aumentando um deles,
esse triunfo da naturalidade que foi sempre capaz de distinguir a “verdadeira
falte ou cresça o outro,
porque nenhum con-
nobreza” (cf. Pécora, 2001b, p. 73).
trário existe sem o seu Como afirma Alain Pons (1991), foi um grande mérito de Castiglione
oposto” (Castiglione, ter sido capaz, se não de definir, ao menos de enunciar as condições formais
1997, p. 86, II, II). de manifestação da “graça”, essa qualidade do comportamento que parece
Mas, tendo eu várias vezes pensado de onde vem essa graça, deixando de lado
aqueles que nos astros encontraram uma regra universal, a qual me parece valer,
quanto a isso, em todas as coisas humanas que se façam ou se digam mais que
qualquer outra, a saber: evitar ao máximo, e como um áspero e perigoso escolho, a
afetação; e, talvez para dizer uma palavra nova, usar em cada coisa uma certa
sprezzatura (displicência) que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito
sem esforço e quase sem pensar. É disso, creio eu, que deriva em boa parte a graça,
pois das coisas raras e bem feitas cada um sabe as dificuldades, por isso nelas a
facilidade provoca grande maravilha; e, ao contrário, esforçar-se, ou, como se diz,
arrepelar-se, produz suma falta de graça e faz apreciar pouco qualquer coisa, por
maior que ela seja. Porém, pode-se dizer que é arte verdadeira aquela que não
parece ser arte; e em outra coisa não há que se esforçar, senão em escondê-la
(Castiglione, 1997, p. 42, I, XXVI).
século XVI ao século XVIII, muitos temas antes tratados pelos manuais de
etiquetas e de comportamento desaparecem ou persistem somente pontual-
mente (cf. Elias, 1994, p. 141). A estabilização social acompanhada pela
institucionalização de hábitos civilizados torna desconfortável e embaraço-
sa a referência, antes natural, a determinadas maneiras de (não) agir em pú-
blico. O tema da dissimulação parece ter seguido um caminho paralelo,
contribuindo – agora no plano simbólico – para o controle dos impulsos e a
racionalização das condutas individuais. O Cortesão de Castiglione é um
exemplo de como, em um momento do processo civilizador, a dissimulação
foi não só um requisito, mas um valor para os membros da aristocracia
como grupo social. A crítica à dissimulação como fingimento no século
XVII, posteriormente recuperada pelo Movimento Romântico, antes que
negar, nos estimula a pensar em seu processo de naturalização e nas razões
que ainda tornam embaraçoso admitir que ela é parte necessária da vida nas
sociedades civilizadas.
Referências Bibliográficas
Resumo
tiglione.
Abstract
Identity as a collective product in the Book of the Courtier , by Baldassare Castiglione
Bringing some aspects of rhetoric tradition back into the sociological view of court socie- Texto recebido em 14/
5/2007 e aprovado em
ties, this article analyses the narrative structure of a classic book of court societies – The
25/8/2008.
Book of The Courtier – to sustain dissimulation as a component of both renaissance self-
Valéria Paiva é douto-
fashioning and sociability. Since the Norbert Elias’ classical analysis this kind of books
randa em Sociologia
has received a lot of attention from sociological criticism. However, dissimulation is
pelo Programa de Pós-
usually related to hidden interests, but rarely to an aesthetic and moral judgement about Graduação em Socio-
social action, which is the perspective of this paper. logia do Iuperj. E-mail:
Keywords: Renaissance sociability; Identity; Dissimulation; Baldassare Castiglione. vpaiva@iuperj.br.
Flexibilização e precarização
Autogestão e heteronomia
perativa não possui produto próprio, trabalha como terceirizada para deter-
minadas empresas. Em tese, se trabalhasse para diversas fábricas e/ou em-
presas, não se caracterizaria nenhum processo de subordinação a nenhuma
delas. No geral, entretanto, acontece o inverso, com uma empresa domi-
nando as encomendas e impondo não apenas especificações de produtos,
mas também formas de organização do trabalho e supervisão. Independen-
temente de seu relacionamento com entidades representativas e de sua
vinculação política, é comum às empresas contratantes manter nas coopera-
tivas, em comodato, máquinas diversas, emprestar prédios e criar outras for-
mas de dependência que possibilitam o controle sobre elas.
Mesmo quando a cooperativa mantém total autonomia na gestão, esta
esbarra na dependência da empresa contratante, que termina sendo a con-
dição da existência da cooperativa. Para os trabalhadores, isso se manifesta
na baixa percepção da propriedade coletiva, mesmo quando destacam o
caráter participativo da gestão. Vietez e Dal Ri (2001) dão uma interpreta-
ção à existência da propriedade coletiva dos trabalhadores em empresas
autogestionárias. Para eles, a única propriedade que os trabalhadores te-
riam seria a sensação de pertencimento a uma “comunidade de trabalho”,
já que não haveria acumulação de capital e sim reprodução dessa comuni-
dade em si mesma, com a manutenção dos postos de trabalho, a produção
e a distribuição de renda. Ainda assim, consideram que essa acumulação
poderia existir de forma competitiva, embora em novas bases. Reconhecem
que a existência de acumulação sem expropriação do trabalho alheio é algo
a ser pensado como uma possibilidade. O concreto do cotidiano das coope-
rativas e empresas autogestionárias e sua forte vinculação e dependência ao
mercado tornam a mudança na concepção de empresa algo complexo, uma
vez que elas estão inseridas de uma forma ou de outra na dinâmica capita-
lista que determina os espaços de atuação.
Concluindo
Referências Bibliográficas
ANTEAG. (2000), Autogestão: construindo uma nova cultura de relações de trabalho. São
Paulo, Anteag.
CABRAL, Guilherme R. E. (2004), Uma tentativa de implantação de uma cooperativa
autogerida: o desafio da participação na Cooperativa dos trabalhadores têxteis de con-
fecção e vestuário de Pernambuco Ltda. Dissertação de mestrado, UFPE.
CAVALCANTI, Clóvis (org.). (1988), No interior da economia oculta: estudos de caso de
uma pesquisa de avaliação do desenvolvimento de base no Norte e no Nordeste do
Brasil. Recife, Fundação Joaquim Nabuco/Massangana.
CLARO, Mauro. (2004), Unilabor: desenho industrial, arte moderna e autogestão operá-
ria. São Paulo, Editora Senac.
Resumo
Paradoxos do trabalho associado
Abstract
The paradoxes of associated work
This article seeks to discuss the heterogeneity of associated work in cooperatives and
self-management companies and their two inherent paradoxes: integration with or an
alternative to the capitalist market, and autonomous or subordinated work. I examine
various dilemmas faced by associated work on the basis of concrete experiences that
reflect contexts, places, possibilities and limits. More than simply an atypical variant of
work diverging from normal wage labour, associated work presents peculiarities that
reflect the recent dynamics of flexible capitalism and its constant pursuit of cost reduc-
tion measures. The article discusses various positive aspects of worker cooperatives and
self-management companies, including the possibility of promoting workers’ autonomy,
the negative aspects arising from the instability caused by the loss of social rights linked
to the work, and finally, from a third perspective, their potential as an alternative form
of social insertion for workers excluded from the formal job market.
Keywords: Workers’ cooperatives; Associated work; Social vulnerability; Self-manage-
ment; Job instability.
Pablo Holmes
*
Introdução Este trabalho foi rea-
lizado com auxílio do
CNPq.
Se tomássemos ao pé da letra as palavras de Axel Honneth, poderíamos
dizer que as divergências que seu trabalho apresenta em relação à teoria do
discurso desenvolvida por Jürgen Habermas realmente não passam do que
se poderia esperar de um debate como este: uma briga de família. Segundo
ele próprio, sua proposta “pode ser vista como um posterior desenvolvi-
mento do projeto teórico habermasiano” (Honneth, 2003c, p. 246), o que
dá a impressão de que suas ressalvas àquele permanecem no plano das me-
ras correções e retoques.
Não seria para menos. Ambos são os mais importantes herdeiros vivos
da Escola de Frankfurt, como se convencionou chamar os autores agru-
pados no Instituto de Pesquisas Sociais. Habermas, predecessor de Hon-
neth na direção do Instituto, foi aquele que, assistente de Adorno, ajudou
a dar continuidade à tarefa de construir uma teoria crítica da sociedade
que articulasse os motivos emancipatórios da filosofia materialista com as
contribuições das novas ciências sociais empíricas, o que realizou na for-
ma de uma teoria do discurso (cf. Wiggerhaus, 2000, pp. 573-599).
Honneth, ainda menos conhecido, foi aquele que, nos últimos anos, ten-
tou dar novo fôlego à tarefa crítica na forma de uma teoria do reconheci-
mento social.
Essa discussão suscita uma querela de fundo bem mais abrangente. Sem
querer nos deixar dispersar por essa discussão, articulada em termos bem
particulares, os quais exigiriam um aprofundamento por ora dispensável aos
nossos propósitos, na filosofia prática kantiana e na ética de Aristóteles, de-
vemos ao menos preliminarmente explicitar de modo geral os seus termos.
Trata-se do debate referente ao abismo entre “eticidade” e “moralidade”, que
podemos traduzir por uma disputa entre convicções liberais universalistas e
convicções de inspiração comunitária, denominadas “particularistas”4. 4. Sobre a pertinência
De um lado, podemos dizer que o grande mérito das filosofias morais de tal distinção entre
“ética” e “moral”, com
de inspiração kantiana, como a do próprio Habermas, é reivindicar que
extenso apoio bibliográ-
jamais a noção de “bem” pode ser confundida com outra, moralmente fun- fico, ver Forst, 2001,
dada sobre parâmetros universalistas, de “justo” (cf. Forst, 2001, pp. 345- pp. 34ss.
347). O móvel da ação justa, como assinalara Kant, deveria ser somente o
próprio dever e jamais qualquer motivo teleológico, qualquer finalidade,
por assim dizer (cf. Kant, 1951a, p. 60). Na explicação de Habermas, o
“bem”, na realidade, guardaria a marca de ser sempre um “bem” para “nós”,
tendo de se haver fatalmente com outras concepções de “bem” que se mate-
rializam em outras finalidades para “outros” diferentes de “nós” que, a ri-
gor, dificilmente podem ser conciliados (2001b, p. 163). A ética kantiana
do “dever” quer ser, por isso, para além de uma ética de valores, uma ética da
justiça. Segundo ela, o que valeria como justo deveria distinguir-se clara-
mente, por via de sua universalidade, do que vale como um bem (cf. Forst,
2001, pp. 348-349). O justo estaria fundado na razão e sua pura forma,
enquanto o bem seria sempre algo material, talhado por interpretações de
grupos particulares acerca de valores e costumes virtuosos, padecendo, por-
tanto, de um grau de contingência que só pode ser eliminado pelos meios
racionais que são, por definição, os mesmos para todo ser racional. Como
sabemos, tal raciocínio leva a uma concepção como a de Kant, para quem a
única lei prática que pode haver é aquela que estabelece a universalidade de
um mandamento, como vinculante, sem exceções (cf. Kant, 1951b, p. 499).
A tradição aristotélica, por sua vez, sempre apontou a necessidade de que
houvesse valores em que fundamentar um conceito de justiça. Esses valores
tomariam a forma de virtudes e sentidos teleológicos compartilhados por
comunidades que, em conjunto, buscariam realizá-los na sua prática co-
mum (cf. Lehman, 2006, pp. 347-376). Só com a consecução e a promoção
das virtudes próprias de um povo poderiam os homens alcançar a “vida
boa”, a qual, como já dissemos, reuniria em si os ideais de felicidade e justiça
(cf. Habermas, 1999a, pp. 81ss., 1999b, pp. 193-211; Schnädelbach, 1986,
pp. 38-42). Como nos mostra Günther, para Aristóteles o princípio formal
de justiça serviria apenas para fazer julgar de forma igual casos iguais, algo
que por si só não tem o sentido de um princípio moral como aquele kantia-
no, que serviria para fundamentar as próprias normas com que julgamos
(cf. Günther, 2004, pp. 263-267). Com efeito, para Aristóteles, as decisões
concretas não estariam informadas por normas válidas universalmente des-
de uma posição teórica originária (cf. Wolf, 2001, pp. 275-276), mas por
uma faculdade de julgar que se orientaria de acordo com os critérios de vir-
tude oferecidos pela tradição política de um povo (cf. Aristóteles, 1956,
1141b). Seguindo a crítica de Wellmer à teoria do discurso, poderíamos
dizer que caberia somente à experiência, radicalmente contingente, de indi-
víduos dotados de discernimento moral graças à aquisição de conhecimen-
tos éticos compartilhados no contato com confrontantes sociais a aquisição
de uma sensibilidade contextual com que se poderiam tratar as situações
concretas de um modo “moralmente” adequado (cf. Wellmer, 1987, pp. 77-
105, 125-135). Para Aristóteles, esse era o espaço da praxis, da contingência
irredutível das possibilidades de ação humana que só poderia ser trazida à
ação consciente por via de uma educação para a virtude na experiência prá-
tica de vida, algo que culminaria na phronésis como uma sabedoria prática
para julgar corretamente (1956, 1139b). Uma postura que, por fim, jamais
se poderia confundir com aquela, platônica, de um julgamento imparcial de
acordo com critérios universais válidos a priori, graças “à impossibilidade de
qualquer conhecimento último e definitivo sobre a vida boa” (Wolf, 2001,
p. 273), a qual é a maior inspiradora do kantismo moral (cf. Schnädelbach,
1986, pp. 38-63; Habermas, 2004, p. 314).
Para os teóricos de inspiração aristotélica, portanto, as teorias morais não
teriam muito a contribuir para a resolução de problemas práticos efetivos. A
ções contextuais que só podem ser atribuídas ao mundo da vida dos pró-
prios implicados (cf. Honneth, 2000b, p. 57). Não é à toa que Honneth
afirma que uma teoria da justiça e da liberdade sob condições modernas é
de certa forma “dependente de um diagnóstico do tempo” (2004b, p. 284).
Para ele, o universalismo jurídico constitui-se a partir de uma concepção
teleológica de liberalismo (cf. 2004a, pp. 357ss., 2004b, pp. 389ss.), que
seria o resultado das condições “internas” de articulação de normatividades
no interior de uma comunidade de valores (cf. 2004b, pp. 385, 389). Aos
lembrarmos da crítica de Albrecht Wellmer a Habermas (1987) – tachada,
aliás, de neoaristotélica pelos seguidores do último (cf. Günther, 2004, pp.
84-87) –, sabemos que não é mero acaso que Honneth faça referência dire-
ta a ele ao tratar do problema da aplicação situacional de padrões jurídicos
e morais de reconhecimento (cf. Honneth, 2003a, p. 186, n. 77). É com
referência a interpretações de situações, com referência a uma faculdade de
julgar radicalmente contextual, que os indivíduos levam adiante as repre-
sentações prático-simbólicas de seu mundo da vida social (cf. Wellmer, 1987,
pp. 87, 149ss), e não a partir de discursos aplicativos imparciais (cf. Gün-
ther, 2004, pp. 299-358; Habermas, 2001b, pp. 287-289).
Certamente Habermas estava consciente de que apenas mediante ele-
mentos da evolução social a que ele chama “externos” – e que consistiriam
inclusive em lutas por reconhecimento – poder-se-ia realizar o processo de
liberação dos potenciais de coordenação da ação comunicativa (cf. 2002,
pp. 422ss., 2003a, pp. 480ss.). Se uma “ressociologização” da teoria crítica
se limitasse, contudo, a esse “recurso à sociedade e ao conflito social” como
forma de “construção” da modernidade universalista – algo que Habermas
teria realizado, com efeito, em seu “Trabalho e interação” (cf. Habermas,
1997; Nobre, 2003, p. 119) –, a contribuição de Honneth não passaria,
realmente, de uma continuação – enfim supérflua – da obra habermasiana.
É exatamente porque, para Honneth, “a moralidade social pode também
ser entendida como uma articulação normativa de princípios que gover-
nam o modo pelo qual os sujeitos se reconhecem em uma dada sociedade”
(2003b, p. 181, grifo nosso), que podemos dizer que ele dá uma contribui-
ção original, que o diferencia de Habermas. No mais, se essa diferenciação
já estava sugerida na atenção aos “sentimentos de desrespeito social” em
detrimento das condições de comunicação (cf. Honneth, 2000c, p. 98), ela
se tornou ainda mais clara nos últimos anos. Nesse sentido, aquilo que, em
suas próprias palavras, significaria um “giro historicista” de sua teoria (cf.
Honneth, 2004a, p. 358, n. 4) torna explícito o que parece ter sido enco-
berto graças a uma hesitação inicial em romper com a ideia de uma racio-
nalidade comunicativa normativamente reguladora. A ideia de um “giro
historicista” é, aliás, mencionada exatamente em resposta à crítica, ofereci-
da por Zurn, de que Honneth não havia deixado claro em que fazia assen-
tar as pretensões normativas de sua Eticidade Formal: (a) se em uma re-
construção da racionalidade comunicativa habermasiana; (b) se em uma
atualização naturalista de Hegel; (c) ou mesmo se em uma crença metafísi-
ca de inspiração aristotélica numa natureza humana (cf. Zurn, 2000). Se
são as experiências pessoais interpretadas como traumáticas que “são o nú-
cleo normativo daquelas concepções de justiça que determinam as expecta-
tivas que valem como aquelas de respeito, dignidade, honra e integridade”
(Honneth, 2000c, p. 99), temos de dizer que a construção da moralidade
social é dependente de interpretações dos próprios implicados (cf. Honneth,
2000b, p. 68) que não podem ser atribuídas à “estrutura de uma ação co-
municativa”, senão têm de remontar a uma “concepção antropológica que
substitua a pragmática universal habermasiana” (Honneth, 2000c, p. 101).
Aliás, se tivéssemos, “para apontar experiências sociais como patológicas,
que recorrer a determinados desenvolvimentos da vida social a partir de
pretensões contexto-transcendentes, a filosofia social estaria não menos que
perdida” (Honneth, 2000b, p. 68).
Se, para Habermas deveria valer, ao lado da posição de segunda pessoa
incluída no mundo da vida como intérprete (cf. 2002, pp. 417ss., 478),
responsável pela construção intuitiva de uma pragmática empírica (cf.
2003a, pp. 367ss.), uma posição de terceira pessoa – referente a um observa-
dor – que permitiria o abandono dos contextos concretos de atuação em
favor de uma transcendentalidade acontextual, responsável em última aná-
lise pela reconstrução ontologicamente neutra do próprio mundo da vida
por meio de uma pragmática formal (cf. Idem, pp. 419ss., 2002, pp. 511ss.,
2001b, pp. 401ss.; Holmes, 2008, pp. 29-32), para Honneth, “como ‘o con-
ceito de normalidade’ de uma sociedade têm de valer as condições cultural-
mente dependentes que permitem aos seus membros uma forma infrangível
de autorrealização” (2000b, p. 57). Ou seja, para ele é o mundo da vida que
serve de fonte exclusiva para identificação de patologias sociais (cf. Hon-
neth, 2000c, pp. 55ss.; Nobre, 2003, pp. 13, 15ss.), algo que exige a inserção
radical em uma comunidade de valores, mesmo no interior da modernidade
(cf. Honneth, 2000d). Desse modo, o caráter contexto-transcendente da teo-
ria habermasiana, tão bem analisado, aliás, pelo mesmo Wellmer (1987, pp.
96-119), não deixaria a possibilidade de que insistíssemos na interpretação
Para além das diferenças que possa haver entre os dois teóricos quanto
ao papel da teoria social, o direito é visto, por ambos, como algo central na
transição para a Modernidade. Depois da perda daqueles conteúdos tradi-
cionais que outrora ofereciam um amálgama normativo em que a integra-
ção social podia se realizar de modo mais ou menos aproblemático, a coor-
denação das ações sociais torna-se possível apenas por meio de princípios
formais de igualdade de tratamento que possam superar o vazio deixado
(cf. Habermas, 2001a, pp. 200-210, 2003a, pp. 146-172, 2001b, p. 163;
Honneth, 2003b, p. 182, 2004a, pp. 358-363, 2000b, pp. 282-309).
Para Habermas, o direito assume, em sociedades a que chama descentra-
das, a tarefa de mediar as tensões entre uma esfera ideal, na qual os sujeitos se
compreendem como membros iguais de uma comunidade política, e as es-
feras descomplementares, em que essas pretensões encontram as mais diver-
sas resistências do ponto de vista da faticidade. Ele acredita que essas resis-
tências são de dois tipos. De um lado, elas são chamadas internas quando
dizem respeito à faticidade de ações que teimam em não se adequar aos
mandamentos estabelecidos por procedimentos de produção normativa (cf.
2001b, pp. 97ss.). Ou seja, a um plano imanente em que as normas jurídi-
cas são confrontadas diretamente com o que, na teoria do direito tradicio-
nal, podemos chamar “mundo dos fatos”. E, de outro lado, essas resistências
podem ser ditas externas quando a idealidade de normas constituídas pelo
acordo racional de membros iguais e participantes de uma comunidade po-
lítico-jurídica tem de se haver com uma faticidade que transcende as possi-
bilidades de qualquer dominação normativa da realidade complexa por
uma coordenação consciente e racional dos atores sociais (cf. Habermas,
2001b, pp. 105ss.; Neves, 2006, pp. 111ss.). Aqui, revelam-se os problemas
referentes àquelas esferas sistêmicas controladas de maneira neutra por có-
digos autorreferentes especializados que se tornam opacas ao acesso de uma
deliberação consciente, mediada linguisticamente, acerca das formas de re-
gulação das condutas (cf. Habermas, 2001a, pp. 253-261). Também desde
o ponto de vista externo, poderíamos nos referir às pressões éticas que per-
manecem em confronto com as formas de regulação imparcial de condutas.
O que acontece sobretudo em sociedades que apresentam um grau elevado
de particularismos culturais (cf. Neves, 2006, pp. 215-226).
Para Habermas, a tensão interna seria resolvida mediante duas caracte-
rísticas do direito. Primeiro, pela força motivacional representada pelas ra-
zões; a ação comunicativa, nesse sentido, teria o poder, por meio das preten-
sões de validade assentadas em atos de fala, de realizar uma transição entre a
esfera ideal de justificação e a esfera fática das motivações. Aqueles que to-
mam parte em uma comunidade jurídica deveriam poder pressupor a legiti-
midade das normas que regulam em conjunto suas interações, o que só po-
deria ser traduzido por aquilo que Habermas entende como a força
motivacional implícita nas boas razões (cf. 2001b, pp. 94ss.). Por outro
lado, a coação, que marca o sistema jurídico como sistema social, forçaria a
uma obediência obrigada àqueles que, colocando-se apenas na posição de
observadores estratégicos das relações sociais, resistissem faticamente à vali-
dade das normas mediante atos de desobediência. Ela teria o poder, portan-
to, de dobrar possíveis déficits motivacionais dos agentes (cf. Idem, p. 92;
Neves, 2006, pp. 111ss.). Já a tensão externa seria resolvida por via da capa-
cidade, própria de sociedades modernas que não mais se deixam regular em
conjunto por visões de mundo globais e unificantes de todas as esferas da
vida social, de fazer conectar o poder comunicativo, na forma de uma for-
mação democrática da vontade, com os sistemas sociais autônomos em que
impera a autorreflexividade de códigos de controle não linguísticos. Assim,
mediante a força do poder comunicativo presente em uma esfera pública
informal pluralista, o poder administrativo regulatório do Estado estaria
sempre, em casos limites, obrigado a dispor do apoio público consciente dos
implicados por intermédio das instituições procedimentais de formação da
vontade democrática (cf. Habermas, 2001b, pp. 432-439).
O nível da validade torna-se, portanto, central em sua formulação. De
um lado, é graças às pretensões de validade criticáveis e à lógica argumenta-
tiva livre de coações que se pode produzir poder comunicativo mediante a
possibilidade aberta pelo discurso prático de uma superação das particula-
Fraser, 2003, pp. 27-30). Na história das sociedades modernas, esse fenôme-
no ter-se-ia materializado numa ampliação do catálogo de direitos no senti-
do da criação de direitos sociais capazes de prover aos indivíduos um míni-
mo de bens que os fizessem aptos a participar do processo político, algo que
é acompanhado no rastro de Marshall (1967, pp. 57-114). Mas, se, para Ha-
bermas, esse processo é compreendido sempre a partir de uma prioridade da
moral sobre a eticidade, em Honneth é essa última que adquire prevalência,
ao menos metodológica.
Em certo sentido, os diagnósticos são bastante semelhantes, graças à
inclusão da moral universalista no diagnóstico do tempo moderno, ao me-
nos no que diz respeito ao direito. Mas há no seu desenvolvimento diferen-
ças que se devem exatamente àquela ruptura metodológica. Assim, ao con-
trário da compreensão habermasiana, que identificava a raiz normativa do
diagnóstico do tempo com as condições de integração comunicativa (cf.
Honneth, 2000c, pp. 101ss.), Honneth aponta que “aquilo que tem que
valer como perturbação (Störung) ou desenvolvimento problemático (Feh-
lenentwicklung) da vida social não pode mais atuar como condições racio-
nais de entendimento livre de coação, senão como pressupostos intersubje-
tivos do desenvolvimento da identidade humana” (Idem, p. 103). Nesse
sentido, no interior da modernidade, a mera consideração igual de suas
características de membro de uma comunidade política não seria capaz de
dar a cada indivíduo a satisfação de suas pretensões normativas de reconhe-
cimento, ou seja, não seria capaz de satisfazer um conceito crítico-teórico
de justiça social atento a uma concepção pós-metafísica de “vida boa” (cf.
Honneth, 2004b, pp. 386ss., 2000c, pp. 334-338).
Assim como toda a ação social regida por normas deve ser confirmada
pela existência de uma apreciação positiva de outros parceiros de interação,
aquelas opções tomadas no interior da esfera de liberdades oferecidas pelo
sistema de direitos, ou mesmo aquelas características particulares herdadas
pela origem cultural de certo indivíduo, como língua, costumes, religião,
autointerpretações, preferências éticas etc., precisam encontrar também
confirmação quanto a seu valor no seio da sociedade diante de confrontan-
tes sociais (cf. Honneth, 2003a, pp. 139-141). Para que o indivíduo possa se
relacionar consigo mesmo do modo mais intacto possível, ou seja, gozando
das condições formais de uma autorrelação prática saudável, ele precisa,
além de ser membro com iguais direitos de uma comunidade política, ter
institucionalizado, em linguagem jurídica ou nos padrões culturais que irão
importar para a aplicação das normas válidas, a proteção e a valorização das
partes de sua personalidade que são particulares e não podem ser considera-
das de modo universalista nos termos de um princípio jurídico da igualdade
(cf. Idem, p. 199). Uma teoria da sociedade moderna, pensa Honneth, não
pode encerrar sua tarefa na descrição de limites normativos mínimos para os
diálogos inter(sub)culturais e conflitos éticos. Um conceito liberal de asso-
ciação política é necessário, e garante a autonomia individual e o autorres-
peito. Apesar disso, um indivíduo que se veja livre para optar, nesse espaço
normativo vazio de conteúdos, não pode ser dito ainda realizado, ou seja,
dotado de uma subjetividade intacta ou, melhor ainda, gozando de uma
“vida boa” (cf. Honneth, 2004c, pp. 11-15).
Chama logo a atenção o fato de que, segundo essa concepção, o capitalis-
mo não é, de modo algum, como havia entendido Habermas, um projeto
livre de origens ideológicas e impermeável a valores e opções éticas. Se houve
uma desestruturação daqueles conteúdos da eticidade tradicional, que inte-
grava todas as esferas da vida sob algumas interpretações densamente difun-
didas, restaram, por outro lado, diferentes formas de avaliar as opções aber-
tas a cada indivíduo na esfera de liberdade privada (cf. Honneth, 2003b, pp.
154ss.). A complexificação social, o desacoplamento dos sistemas funcio-
nais do mundo da vida, como Habermas chama o surgimento das esferas da
economia e do Estado administrativo autônomos regulados por meios de
controle não linguísticos – dinheiro e poder –, pode ser, nesses termos, obje-
to de uma substancial reformulação teórica. Para Honneth, a burguesia, que
fora responsável pela promoção da forma de regulação jurídica pretensa-
mente imparcial, por meio da qual havia conquistado o status jurídico de
igualdade formal, haveria trazido, junto com esse novo nível normativo de
organização política, suas próprias formas de avaliação das formas de vida
particulares (cf. Idem, pp. 153-155). Os padrões culturais que valeriam para
o grupo social dominante estariam, assim, inextricavelmente imersos no
próprio mecanismo dos códigos de controle, nos seus critérios de avaliação
dos aportes individuais aos subsistemas econômico e burocrático e na avalia-
ção das finalidades a que servem esses subsistemas. O padrão de valores, que
Nancy Fraser chama de branco-europeu-macho-heterossexual (1987, pp.
48ss.), haver-se-ia tornado no rastro da modernização burguesa aquele ba-
seado no qual os diversos atores sociais seriam julgados quanto à medida de
estima social que poderiam merecer (cf. Honneth, 2003b, p. 154). Faria
parte, assim, das tarefas descritivas e normativas de uma teoria da sociedade
também este plano de lutas sociais por interpretações e os modos como ava-
liamos as contribuições individuais sempre tomadas desde o ponto de vista
Referências Bibliográficas
Resumo
Abstract
A family quarrel: methodological rupture in critical theory (Habermas v. Honneth)
This paper attempts to analyze the convergences and divergences between the theo-
retical viewpoints of Habermas and Honneth, two of the most important social phi-
losophers of the last few decades. Firstly, it compares their distinct methodological
suppositions, relating them to the current debate over the contradiction between ‘moral’
and ‘ethical’ viewpoints. Next, it explores the idea that social struggles for recognition
can form a theoretically productive medium for understanding the evolution of politi-
cal institutions in the modern western world. Finally it examines the role played by the
rule of law in modern societies, looking to determine to what point we can adhere to
the Habermasian theory of discourse and where this can be usefully complemented by
a theory of social recognition.
Keywords: Modern law; Social theory of recognition; Theory of discourse.
Texto recebido em 5/
11/2007 e aprovado
em 25/8/2008.
Pablo Holmes é mes-
tre em Filosofia e Teo-
ria do Direito pela
Universidade Federal
de Pernambuco e dou-
torando em Sociologia
na Universität Flens-
burg, Alemanha. E-
mail: pabloholmes@u
ol.com.br.
Marcelo C. Rosa
*
O crescimento das organizações e dos movimentos sociais em torno de de- Agradeço aos comen-
mandas por terra e reforma agrária no Brasil na última década é um fenô- tários dos pareceristas
anônimos que contri-
meno relevante no campo das ciências sociais. Levantamentos da Comis-
buíram para o refina-
são Pastoral da Terra apontam que há mais de cinquenta movimentos mento de diversas
diferentes em todo o país1. Trata-se de ações coletivas que trazem para o questões discutidas ao
centro das disputas políticas a transformação do espaço e das relações so- longo deste texto.
ciais em regiões que a própria sociologia brasileira tratou de caracterizar 1. Ver o relatório “Con-
como o locus dos modos de dominação tradicionais2. Uma breve passada de flitos no campo” em suas
olhos nos locais em que se concentram esses grupos, que na sua maioria se edições de 1995 a 2007.
identificam como movimentos, direciona nossa atenção para as pequenas 2. Trabalhos exemplares
cidades situadas em regiões que tiveram na grande lavoura o sentido de sua desse tipo de caracteri-
formação. É nesses locais que se encontram os acampamentos, as sedes dos zação são Homens livres
na ordem escravocrata de
movimentos e as casas e famílias de seus líderes e militantes3.
Maria Sylvia de Carva-
Alguns trabalhos já se dedicaram ao estudo do processo de espacialização lho Franco (3 ed., São
e territorialização dos assentamentos e acampamentos no Brasil (cf. Fer- Paulo, Kairós, 1983) e
nandes, 1999, 2000) e a seus efeitos sociais (cf. Palmeira et al., 2004) em Coronelismo, enxada e
regiões específicas. Nenhum deles, no entanto, teve por foco compreender voto de Vitor Nunes
Leal (Rio de Janeiro,
qual o lugar desses movimentos na sociabilidade dessas cidades. Para além
Nova Fronteira, 1997).
do acampamento ou do assentamento, que em geral ficam nas zonas rurais,
3.Análises como as de
muitas dessas organizações possuem escritórios ou pequenos espaços para
Palmeira et al. (2004)
encontros nos centros urbanos desses municípios.
procuraram dar conta Essas questões e constatações vieram à tona em uma pesquisa realizada na
desse tipo de impacto. região canavieira do estado de Pernambuco entre 2001 e 2004. Naquele lo-
4. A pesquisa, entre ou- cal concentra-se, desde meados dos anos de 1990, o maior número de ocu-
tras fontes e formas de pações de terra e também de movimentos sociais voltados para essas práticas
obtenção informações,
de reivindicação. Quando o trabalho de pesquisa foi iniciado, por meio de
foi feita por meio de
entrevistas com todos visitas às sedes dos movimentos, encontrei locais equipados com dormitóri-
os principais militantes os, computadores e outras facilidades – como nos casos da Fetape e da sede
de movimentos que estadual do MST – e outros que funcionavam nas próprias casas dos mili-
atuavam na Zona da tantes, como nos casos do MTRUB, do MTBST e de sedes locais e regionais
Mata de Pernambuco. do próprio MST. Esses últimos casos chamaram a atenção para a importân-
Para o caso do MST, fo-
cia do empenho individual de certos sujeitos na construção do que conhece-
ram entrevistados os
líderes de microrregio- mos como luta por terra no Brasil. Como todos eles vivem em cidades do
nais que representam interior, foi possível perceber as múltiplas faces desses investimentos na vida
um conjunto de cida- em movimento, com o empenho de suas reputações e recursos materiais em
des nas quais há acam- uma tarefa vista por alguns como luta social e por outros como atividade
pamentos e assenta-
ilegal4, características que, ao longo dos processos de reivindicação, associam
mentos do movimen-
to. Para o caso dos as organizações aos próprios indivíduos que as representam.
movimentos locais fo- Ao longo deste artigo trabalharemos com casos exemplares de militan-
ram entrevistadas suas tes e lideranças5, por meio dos quais bucaremos reconstituir alguns dos
lideranças oficiais. Os sentidos que o pertencimento a um movimento de sem-terra adquire numa
casos aqui trabalhados
região marcada pela sociabilidade agrária. Tomando os depoimentos for-
são uma seleção que
leva em conta a quali-
mais e informais desses sujeitos, procuraremos destacar as formas pelas quais
dade e a profundidade a adesão, o empenho e a dedicação ao movimento são justificadas pelos
das entrevistas, bem próprios militantes. A partir dos casos estudados, procuraremos apresentar
como questões de fai- a hipótese de que os movimentos se configuram em uma alternativa de
xa etária e gênero. significação social (cf. Elias, 1997) no mundo da cana-de-açúcar, transfor-
5. Nem todos os líde- mando, em certos casos, o pertencimento ao movimento em algo tão ou
res participantes de mo- mais importante que a aquisição da própria terra.
vimentos se identificam
como militantes. Essa
expressão é usada prin- Militantes e lideranças em movimento6
cipalmente por sujeitos
ligados ao MST. Para os Tendo em vista que a forma e o conteúdo das ações coletivas estavam se
demais casos, a expres- alterando na Zona da Mata e que a inflexão havia se dado justamente após a
são mais corrente é “li-
chegada do MST à região no início dos anos de 1990, iniciei o trabalho tra-
derança”.
vando contato com os militantes que construíram a organização nessa re-
6. Toda vez que a pala- gião. Essa opção metodológica era relevante justamente porque a chave para
vra movimento aparecer
a compreensão desse processo não poderia estar no MST de forma geral, mas
em itálico, ela se refere
justamente nos impactos e nas particularidades de sua chegada àquele local.
homenagem após seu guiu um emprego para carregar manualmente os caminhões de uma usina
assassinato. com sacos de açúcar. Em 1991 foi demitido e, a convite de um amigo, foi a
9.Engenho é a deno- uma reunião promovida por militantes do MST que vinham de outros esta-
minação local para as dos. Logo em seguida, participou da ocupação de uma propriedade na sua
propriedades que cul-
própria cidade e foi convidado a fazer um curso de formação de militantes:
tivam cana-de-açúcar.
A gente já era militante, mas não tinha participado de nenhum curso. [O primeiro
curso] foi um curso muito bom onde eu comecei a ver um pouco da realidade, a viver
um pouco da história, ter mais conhecimento político [...]. Apesar da dificuldade de
ler, de escrever, essa coisa toda, mas tinha uma boa memória para já começar a
pensar toda a situação que o país vivia. Aí a gente retorna para as bases, retorna
para casa [...] Já para o final de 1993 veio outro curso em Santa Catarina, em
Caçador. Então eu fui com os outros companheiros para lá participar do estudo
[...]. Na minha saída fizeram uma festa. E na minha chegada fizeram outra festa, os
companheiros do acampamento e os companheiros do sindicato. Era uma festa, para
eles era um grande motivo, porque era uma pessoa daqui que estava se engajando no
movimento. Que tinha tendência de junto com eles crescer politicamente, crescer junto
10.A entrevista com com eles aqui nos acampamentos (grifos meus)10.
Miguel foi realizada por
Lygia Sigaud e por Sér-
A entrevista e as conversas que mantive com Miguel durante o meu
gio Chamorro Smircic
em 9/9/1999. Agrade-
trabalho de campo apontam para a importância social que pertencer aos
ço a sua gentileza em quadros do MST foi ganhando naquela região. Para um homem que havia
me ceder o material. Os cursado apenas a primeira série, o engajamento no movimento represen-
cortes realizados na en- tou, como ele mesmo fez questão de assinalar, uma nova possibilidade de
trevista são de minha inserção social.
inteira responsabilida-
No curto período de tempo entre ser um trabalhador rural como qual-
de e visam a tornar o
texto mais conciso. quer outro e aquele no qual foi recebido com festa por companheiros e ami-
gos da cidade, sua vida mudou completamente. Os cursos de militante ini-
ciados na região o levaram a visitar Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio
de Janeiro, entre outros estados. Para alguém que conheceu o Recife, distan-
te menos de cem quilômetros de sua cidade natal, apenas aos 18 anos, ter
visitado algumas das principais cidades do país representa muito. Miguel
conhece todas as autoridades locais e também é reconhecido por elas quan-
do passa pelas ruas da cidade. Atualmente morando na cidade vizinha de
Tamandaré, sempre que o procurei nas feiras e nas praças da cidade todos
sabiam quem era o “Miguel do MST” e onde ele poderia ser encontrado.
Na última vez que o encontrei, Miguel havia se afastado da militância.
Sem receber por muitos meses a pequena ajuda de custo que utilizava para
César
uma prisão. Então, com quarenta dias eu peguei o hábito do povo sem-terra. En-
tão eu tinha uma decisão: ficar com a minha família ou ir para os sem-terra.
CÉSAR: quando eu disse que era sem-terra eu deixei de ter amigos e a minha família
ficou me olhando. Eu tive que tomar uma decisão: ou eu fico com a família ou
com o movimento sem-terra. E aí hoje eu sou um dos maiores exemplos lá da juven-
tude de Rio Formoso, eu coloco até de Pernambuco. Hoje eu sou bem-vindo em Rio
Formoso. Eu faço debate em colégio municipal, estadual [...]. Então hoje é todo
mundo lá dizendo assim: olha, eu quero ir é contigo onde está os sem-terra.
pessoal denotam que sua aventura agora já poderia ser reconhecida, não
apenas porque muitas famílias tiveram acesso à terra, mas porque ele tem
novas histórias para contar, de suas viagens e das conquistas do movimento.
Um movimento que por meio de figuras como ele ganha espaço nas narra-
tivas pessoais e familiares da Zona da Mata.
Para manter sua posição na cidade e no movimento, e mesmo para gal-
gar posições ainda mais prestigiosas, ele precisa passar dias e noites agitan-
do uma ocupação ou lendo os livros de Marx e Che Guevara que carrega
em sua pastinha, com a qual desfila orgulhoso pela cidade. Esse trabalho
constante lhe credencia junto à direção do MST e também junto aos habi-
tantes de sua cidade natal.
MÁRCIA: Eu era professora, mas eu formava a associação com pessoas que eram
deficientes, pessoas que passavam necessidade. A gente sempre tinha aquele traba-
lho de procurar as pessoas e tentar ajudar. Procurar os políticos para fazer doação
de colchão, de cadeiras de rodas e de alimentação. Pelo menos uma vez por dia a
gente preparava uma sopa lá na associação e nós doávamos para esse pessoal. Eu
tinha um conhecimento muito grande na cidade e o pessoal me procurava muito.
Depois a gente via que tinha pessoas que não tinham casa [...] não podiam pagar
aluguel de casa, e os prefeitos não doavam terreno para eles construírem a casa, e aí
a gente começou fazendo a ocupação de sem-teto.
MARCELO: Como é que começou essa coisa de ocupar os terrenos da cidade?
MÁRCIA: Eu era professora, mas tinha procuração de todo mundo da cidade. Tanto
do pessoal pobre quanto do pessoal que trabalhava na Prefeitura e que não apoiava
o prefeito. Eles passavam a informação pra mim. Aquele terreno ali foi uma briga
política e o prefeito está aguardando para quando chegar a política e ele fazer a
política dele em cima daquele terreno. Eu ia lá e ocupava com os trabalhadores.
Acabou que eu fui presa em 1997.
MARCELO: Em 1997?
MÁRCIA: A minha prisão lá na cidade. E passei mais de 24 horas presa. Depois me
tiraram da cadeia, quando eu cheguei em casa o meu pai não entendeu. Ele não
entendia minha luta. Quando eu cheguei em casa ele não me aceitava dentro de
casa. Eu já era separada do marido.
MARCELO: Já tinha separado?
MÁRCIA: Já tinha três filhos. Não baixei a cabeça não. Ele não me queria dentro de
casa e eu fui pra rua, fui para o mundo mesmo. Foi nesse ano que eu encontrei o
movimento sem-terra lá na cidade.
MARCELO: A senhora não conhecia nada do movimento?
MÁRCIA: Não. Eu tinha conhecimento era do sindicato rural, que é diferente do
MST. Um companheiro fez um convite para eu fazer um trabalho de base com
ele e eu fui.
Descrevendo seus vínculos sociais, Márcia mostra que a vida nessas cida-
des do interior não era simples e que havia uma gama de possibilidades de
envolvimento com a política. Tomando os rumos que nos são ofertados pela
vida dessa militante, vemos que o MST não chega àquele local em uma
espécie de vácuo político ou ideológico.
Turbina
TURBINA: Fui preso e já estava com mandado. Me levaram para o presídio de Vitó-
ria [de Santo Antão], passei lá uma semana e daí eu vim aqui para Escada. Quando
eu saí, saí um pouco revoltado com a burguesia. Hoje toda a burguesia da cidade me
respeita, até a polícia. É Turbina pra cá, Turbina pra lá.
Judith
como ela me disse, sua vocação sempre foi ajudar os outros, ao visitar os acam-
pamentos do MST encontrou um modo distinto de aplicar seu saber técnico.
Primeiro, ela montou uma barraca em um acampamento vizinho à ci-
dade. Por um ano trabalhou como parteira em Joaquim Nabuco, vivendo
no acampamento. Ainda nesse ano, foi-lhe designado o posto de coordena-
dora de saúde do acampamento e, logo a seguir, de todos os acampamentos
de Água Preta. Nos meses seguintes assumiu a coordenação de saúde de
toda a regional Mata Sul. Atarefada e envolvida no movimento, no ano
seguinte abandonou seu emprego e se dedicou somente ao MST:
JUDITH: Eles [as pessoas da cidade] dizem assim: menina, como é que tu deixou
uma vida diferente. Tu deixou uma vida onde tu tava com pessoas das melhores.
Estava sempre com secretário de saúde, médico, enfermeiros formados da elite maior. E
hoje tu deixou tudo isso? Tu jogou para o alto? E tu estás hoje no meio dos sem-terra,
vândalos, pessoas precárias, pessoas que passam fome, que estão lá de pés descalços,
sujas. Eu falei: me sinto bem junto deles.
MARCELO: Você abriu mão de tudo isso?
JUDITH: Tudo. Tudo mesmo. [...] Você está junto com os sem-terra? Eu falei: Estou.
[...] Sem-terra me enche de orgulho. Muita gente se envergonha. Para mim é questão
de orgulho. Assim me sinto orgulhosa. Às vezes passo na cidade e ficam brincando
comigo: sem-terra!
MARCELO: Mas o que é que as pessoas que entram para o movimento sentem?
JUDITH: Sente assim uma vibração. Eu costumo brincar e dizer assim para o pes-
soal: olha, o movimento sem-terra é um vírus. Depois que contamina não tem
mais jeito. Na minha casa era difícil. Só eu era sem-terra. Meus filhos tinham uma
vida diferente. Quando eu entrei foi um tabu.
mente agita a vida daquela cidade; ele não era membro das famílias tradi-
cionais, não havia sido socializado em partidos políticos e não era apadri-
nhado de nenhum chefe político local (o que passou a ocorrer depois de
formar seu movimento).
Seu envolvimento com a instância movimento inscreve-se num marco de
possibilidades concretas de agir que foram legitimadas pelo MST, quando
aprendeu os códigos sociais necessários, e pelo Estado, na figura do superin-
tendente do Incra, que, pessoalmente, entendia que a representação direta
dos interessados poderia acelerar os processos de desapropriação e diminuir
os conflitos internos aos grupos. Reconhecido pelo Incra, logo ele passou a
ser visto na cidade como alguém que detinha um tipo específico de poder: o
de incluir pessoas nas demandas por terras e cestas básicas.
O poder e a significação social de seu Fernando renderam-lhe bons
frutos ao lhe permitir entrar nas disputas de poder daquela cidade e tam-
bém de certas instâncias estaduais. Talvez por esses mesmos motivos ele
tenha sido brutalmente assassinado por matadores de aluguel em março
de 2007.
19.O registro no fó- pio19. No caso da prefeitura e da Secretaria de Agricultura, o registro indi-
rum mostrou-se eficaz cava também que o MTBST se tornava passível de receber algum tipo de
quando um dono de
benefício relacionado com os programas de reforma agrária. Esse caso de-
terras organizou um
falso acampamento em nota como os movimentos, no início da década de 2000, já faziam parte das
suas terras para que elas estruturas de significação locais. Uma resposta sobre as razões dessa transfor-
fossem incluídas na lis- mação não poderia ser única, no entanto. Uma de suas faces é
ta dos imóveis impe- indubitavelmente aquela que permite que por meio do movimento dos
didos, por Medida Pro-
sem-terra os recursos públicos passem a ser transferidos para pequenos
visória, de serem desa-
propriados. Como o
municípios do interior.
MTBST, um movi-
mento registrado, já ha- Novos movimentos, novos horizontes
via solicitado a desa-
propriação da área, a O reconhecimento público da importância do movimento e de seus
juíza local não acatou
líderes não se encerra nos limites da nova organização. Estar em um movi-
o pedido do proprie-
tário para que o pro- mento fornece condições para o ingresso em outros espaços sociais. Se, no
cesso de desapropria- começo, José Clemente queria uma “terra para trabalhar”, depois de ter
ção fosse suspenso. experimentado a forma movimento suas expectativas em relação ao futuro
em Amaragi se alteraram.
O prestígio repentino como líder de um movimento rendeu-lhe um lu-
gar no PSL – Partido Social Liberal – e depois no PAN – Partido dos Apo-
sentados da Nação. Pela forma como ele estabelece essa relação, pode-se
vislumbrar que um movimento pequeno dá assento num partido igualmen-
te pequeno. Mas seu prestígio foi se elevando – foi procurado por um can-
didato a deputado e, posteriormente, foi convidado a mudar de partido e a
se candidatar à presidência do partido na cidade. Se tudo corresse bem,
poderia ainda almejar a uma vaga de vereador, assim como já fizera o líder
do MTRUB, e depois, como revelou, passar a um partido maior.
A inusitada transformação em líder forneceu elementos para que ele
planejasse incursões futuras em lugares sociais anteriormente interditados,
como, por exemplo, o Sindicato de Trabalhadores Rurais.
O caminho que começou timidamente nas fileiras do MST contribuiu,
nesse caso, para o envolvimento cada vez maior dos fundadores do MTBST
em outras instâncias e organizações locais, dispondo, numa mesma trama,
partidos políticos, conselhos municipais e sindicatos. Para eles, o acesso a
todas essas instituições era a principal diferença entre um membro de um
movimento e uma pessoa comum. O mesmo teria acontecido com o funda-
dor do MTRUB, que perdeu sua vida justamente porque ela tinha um
significado maior que sua existência física.
Conclusão
Este trabalho teve como um dos seus objetivos uma análise dos impactos
da atuação do MST nas pequenas cidades da região canavieira de Pernam-
buco. Ao longo do texto, tais impactos foram importantes para demarcar
um conjunto de questões sociológicas que emerge dessa análise. A principal
delas é o que chamamos, com apoio na obra de Norbert Elias, de significação
social. Para este autor, a noção de significação permite tratar de forma dinâ-
mica a relação entre indivíduos e sociedade sem que um polo ou outro seja
necessariamente privilegiado. Segundo Elias (1997, p. 222), cada estrutura
ou figuração social possui instituições a cujo pertencimento e funções cuja
execução fornecem sentido à existência social de indivíduos. Tomando os
conflitos geracionais entre os alemães do século XX, o autor mostra que tais
instâncias se transformam justamente porque os sujeitos sociais se remetem
a elas de forma reflexiva. Estar ou não estar em um lugar significativo para os
homens de seu tempo e lugar é uma questão pela qual todos os indivíduos
passariam em sua existência, pois todos seriam capazes de reconhecer e
mapear seu meio.
O que pudemos observar ao estudar o caso do movimento dos sem-
terra em uma região específica é o fato de que muitas pessoas, ao tomarem
contato com essas novas instâncias de poder, as viram também como ins-
tâncias de significação social. Os casos de indivíduos socializados no mun-
do das ocupações e acampamentos levados a Pernambuco pelo MST per-
mitiram observar esse fato com clareza. Se as adesões em geral se deram em
um momento da vida no qual a posse da terra poderia significar uma mu-
dança, logo a seguir os sujeitos em questão passaram a ver que a vida nos
próprios movimentos era também uma possibilidade de existência social
digna. Tanto a terra como os próprios movimentos podem ser lidos aqui
como objetos que permitem a integração de indivíduos em canais políticos
que no passado estavam relativamente bloqueados. Eles representam uma
mudança na estrutura de significação, especialmente se tivermos em conta
que os casos analisados ocorreram em municípios cuja população é sempre
menor que 30 mil habitantes.
A comparação entre os casos de diferentes gerações de militantes que na
época estavam ligados ao MST com os daqueles que romperam com o mo-
vimento originário possibilita também compreender que não se trata de
uma adesão incondicional ou irrefletida ou da única opção existente. Os
sujeitos com os quais convivemos foram conduzindo sua vida em movi-
mento na medida em que essas instituições lhes foram sendo pessoal e cole-
tivamente importantes. Quando a vida pessoal se viu prejudicada pelo mo-
vimento, militantes como Miguel se retiraram da luta, e outros, como os
fundadores do MTRUB e do MTBST, trataram de moldá-los às suas possi-
bilidades. Vemos também por meio desses casos que os movimentos não
chegaram na região para ocupar um vácuo social. Eles se estabeleceram por
meio de corpos cuja socialização prévia lhes permitia investimentos diferen-
ciados no local, desde ambíguas relações familiares, como no caso das mu-
lheres com filhos que se tornaram lideranças, até aqueles que com algum
capital transformaram suas casas em sedes de seus próprios movimentos. A
expressão “luta pela terra” ganha nesse contexto sentidos diferentes porque
mistura e une histórias sociais distintas. Múltiplas socializações, como afir-
ma Lahire (2006), que não podem ser reduzidas a um habitus ou conjunto
de disposições que fosse homogêneo no passado da cana, e que não será
homogêneo no futuro porque todos passaram pelo MST. Cada um desses
sujeitos imprime sua própria marca a esse processo porque ele também os
atinge com características próprias e diferenciadas.
20. Ver especialmente o
A morte, depois de terminada a pesquisa, de um dos principais persona-
trabalho de Wolford
(2006). Na tentativa de
gens deste trabalho é um indicador incrivelmente forte de como a chegada
mostrar que o MST não desses movimentos alterou o destino de muitas pessoas na região. Altera-
alterou tão profunda- ções que não mudam todos os valores e as formas de significação social do
mente quanto ela supu- lugar, mas que também não permitem um fácil retorno aos modelos de
nha os valores sociais da inserção social do passado, como fazem crer alguns dos analistas desse mes-
região, a autora acaba
mo processo20.
por afirmar que “quanto
mais as coisas mudam,
mais elas continuam as
mesmas”. Seguindo as Referências Bibliográficas
próprias pistas que essa
autora deixa ao longo
BOLTANSKI, L. (2000), El amor y la justicia como competencias. Buenos Aires, Amorrutu.
desse interessante traba-
lho e de outros, é impor- ELIAS, N. (1997), Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX
tante notar que a exis- e XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
tência de novas possibi- _____. (2000), Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
lidades já é uma altera- FERNANDES, Bernardo Mançano. (1999), MST. Formação e territorialização em São
ção significativa naque-
Paulo. São Paulo, Hucitec.
le espaço social e que se-
_____. (2000), A formação do MST no Brasil. Petrópolis, Vozes.
ria difícil afirmar que
não houve mudanças GARCIA JR., A. R. et al. (2001), “Les transformations du pouvoir municipal”. Cahiers
sociais associadas a esses du Brésil Contemporain, 43/44: 124-144.
movimentos. LAHIRE, B. (2006), A cultura dos indivíduos. Porto Alegre, Artes Médicas.
Resumo
Biografias e movimentos de luta por terra em Pernambuco
Este artigo analisa a contribuição das chamadas “lutas por terra” para a produção de
novas formas de significação social na região da Zona da Mata de Pernambuco. Por
meio da análise de entrevistas com militantes dos diversos movimentos que organizam
Abstract
Biographies and land claim movements in Pernambuco
This paper analyzes the contribution of so-called ‘land struggles’ in the creation of new
forms of ‘social meaning’ in a sugar plantation region of the Brazilian Northeast. Analysis
of interviews with militants from various movements coordinating land occupations
in the region reveals that, as well as supporting rural people’s access to land, these
organizations enable their leaders to become prominent figures in local urban politics,
thereby contributing to the modification of traditional power structures.
Keywords: Social movements; Social meaning; Local impacts; Landless rural workers;
Pernambuco.
Texto recebido em 8/
10/2008 e aprovado
em 9/12/2008.
Marcelo C. Rosa é pro-
fessor do Departamen-
to de Sociologia e do
Programa de Pós-Gra-
duação em Sociologia
da Universidade de
Brasília e pesquisador
do CNPq. E-mail: mar
celocr@uol.com.br.
miúda dos “sertões” brasileiros, desde o século XVI. Afirma ainda, com
todas as letras, que as dificuldades enfrentadas por tais grupos nada tinham
a ver com condicionantes biológicos. Acredito que, dessa perspectiva, não
devamos entender a segunda parte de Cunha, que registra medições antro-
pométricas da população estudada (desprovida de importância para o leitor
contemporâneo), como indício de uma suposta visada racista por parte do
autor.
Enfim, não é demais relembrar que a fase de maior aproximação entre a
USP e a ELSP, diretamente relacionada com a presença de Emílio Willems,
foi determinante para o desenvolvimento futuro do projeto acadêmico e do
programa de pesquisas liderado por Florestan Fernandes à frente da Escola
Paulista de Sociologia, nas décadas de 1950 e 1960. O sociólogo percebeu
naquele momento que o alcance de uma pesquisa coletiva ultrapassava muito
qualquer empreendimento individual e, também, que a fundamentação
empírica de uma análise sociológica deveria ser extremamente rigorosa. Da
mesma maneira, devemos reconhecer que a maioria dos estudos sociológi-
cos e antropológicos sobre as sociedades rurais, realizados depois de Cunha
e de outros “estudos de comunidades”, lhes são diretamente devedores.
Emílio Willems transmigrou para os Estados Unidos em 1949, em fun-
ção das condições de trabalho que lhe foram oferecidas pela Universidade de
Vanderbilt (na qual se aposentou em 1974) e, eventualmente, também por
ter se sentido traído por seus alunos, fato que pode estar implícito na passa-
gem seguinte de um curto depoimento que forneceu a pedido de Marisa
Correa: “Não quero mencionar aqui as várias causas que determinaram a mi-
nha transmigração para os Estados Unidos. Uma delas reside no fato de que
fui convidado por uma instituição especializada em estudos brasileiros”3. 3. Marisa Correa (org.),
De todo modo, importa menos conhecer os motivos que determinaram História da antropologia
sua saída do Brasil do que investigar o papel decisivo que desempenhou no Brasil (1930-1960).
Testemunhos: Emílio
entre nós, por meio de sua obra e de sua atuação institucional. Essa tarefa
Willems e Donald Pier-
envolve reconsiderar a importância dos “estudos de comunidades”, missão son. Campinas, Edito-
possível atualmente por estarmos distantes das disputas acadêmicas e polí- ra da Unicamp/Vérti-
ticas que os desqualificaram. ce, 1987.
*
A heterogeneidade cultural do Brasil Texto publicado pela
Secretaria de Agricul-
tura, Indústria e Co-
Se for traçada uma reta, no mapa do Brasil, ligando a cidade de São Paulo às
mércio do Estado de
cabeceiras do Xingu, no planalto mato-grossense, encontra-se, ladeando São Paulo, 1944.
essa linha, uma série de agrupamentos humanos culturalmente muito hete-
rogêneos. Numa extremidade está a metrópole moderna representando um
tipo de civilização urbana que se está rapidamente difundindo em todas as
zonas da Terra onde entrou a cultura ocidental. Tipos mais antigos de civili-
zação urbana lhe cedem lugar e este ato se exprime pela substituição de bair-
ros antigos, com sua arquitetura multissecular, por uma espécie de
edificação urbana altamente estandardizada. Esse fenômeno se processa, de
maneira semelhante, nas metrópoles sul-americanas, nas cidades medievais
da Europa e nas antigas cidades asiáticas.
Acompanhando a reta, depara-se com um tipo de cultura rural estreita-
mente ligado à cidade: estradas atravessam-na, seus homens trabalham e
produzem para mercados e toda a sua vida está organizada de maneira a
satisfazer as necessidades desses mercados. Se, por qualquer motivo que, às
vezes, escapa à compreensão desses produtores rústicos, os mercados dei-
xam de absorver sua produção ou lhes diminuem a compensação monetá-
ria, a sua vida se torna extremamente difícil, pois a sua subsistência material
depende de troca monetária e lucro.
Não envolve este ensino do francês, que pode ser apenas superficial, o risco da
formação de déclassés? Logo que conhece algumas palavras da nossa língua, o nati-
vo se julga um ente de raça superior e de uma classe que tem direito a todos os
direitos. Ele considera incompatível com sua dignidade voltar à lavoura. O que ele
deseja é uma posição como ajudante de escritório em qualquer ramo de comércio
ou, de preferência, na onipoderosa administração, mas tais posições são poucas e
abarrotadas e, muitas vezes, mal remuneradas. Então o desgraçado julga-se vítima
de uma grande injustiça e, pretendendo fazê-lo semifrancês, tornam-no antifrancês,
agente de descontentamento e rebeldia.
e mais uma dúzia de imagens literárias, gastas pelo consumo diário, pou-
quíssima coisa se sabe sobre a natureza das nossas culturas caboclas. Apenas
se vislumbrou o abismo que as separa da civilização urbana e até hoje pou-
cas foram as tentativas de subordinar a política educacional a um estudo
prévio baseado nos métodos que a moderna análise cultural aconselha.
não se baseia na troca. Esta, se ocorre, é acessória e nada tem que ver com o
sistema econômico em si. Este pode ser caracterizado como regime de au-
tossuficiência: a própria tribo produz de acordo com suas necessidades e
consome o produto de seu trabalho.
Todavia, muitos índios entraram em contato com os conquistadores
brancos. Perdendo a sua cultura tribal é provável que tenham adquirido
elementos da cultura ocidental. Veja-se o que o colono português podia
oferecer ao índio.
Em primeiro lugar é preciso frisar que, nos séculos XVI, XVII e XVIII,
a organização econômica da maior parte dos países europeus se achava ain-
da na fase pré-capitalista. Parece mais fácil compreender a importância des-
se fato lembrando, mais uma vez, em que consiste a economia capitalista.
Os característicos gerais da economia ocidental ou capitalista são três: ne-
cessidades ilimitadas, sistema monetário e individualismo. Por conseguin-
te, numa economia pré-capitalista as necessidades são limitadas pela tradi-
ção, dinheiro não há ou não é essencial para a realização das atividades
econômicas fundamentais e, enfim, o indivíduo está moralmente preso, no
exercício das suas atividades econômicas, à organização clânica, familiar ou
aldeã, de que é uma parte integrante. Todos esses característicos aplicam-se
não só ao campônio português, mas a quase todas as sociedades campesinas
da Europa. As comunidades aldeãs eram, em geral, organizações autossufi-
cientes e as semelhanças com tribos primitivas muito maiores do que pode
parecer à primeira vista.
Acresce que as técnicas agrícolas, até o fim do século XVIII, surpreen-
dem pelo seu acentuado primitivismo. Até o fim do século XVIII e, em
muitos países, até o século XIX, predominava a rotina milenar, o sistema de
três parcelas. Esse regime baseia-se na cultura alternada sobretudo de ce-
reais, de maneira que cada ano outra parcela é deixada de pousio. Avizi-
nhando-se o momento em que a produção destarte obtida já não compensa
o esforço dispensado, passa-se a aplicar o mesmo sistema a outro complexo
de terras que antes servia de pasto. Com a redução das pastagens e a ocupa-
ção total das terras disponíveis, o sistema de três parcelas torna-se estacio-
nário. Afim de evitar o esgotamento, o lavrador tem de empregar processos
de adubação. Durante mais de mil anos, a maioria dos lavradores europeus
seguiu esse regime.
Quanto à maquinária agrícola, convém lembrar que os implementos
usados até a segunda metade do século XVIII pouco diferiam das máquinas
relativamente mais eficientes do tempo do império romano. Não há dúvida
de que o arado romano era melhor do que a maioria dos tipos que na
Europa se usavam até o ano de 1750, mais ou menos.
Afirmou-se tantas vezes que o caboclo aprendeu as suas técnicas agríco-
las do índio. Sem querer negar isso, quero lembrar apenas que a própria
cultura trazida pelos imigrantes portugueses e outros já continha a expe-
riência do alqueive que aqui passou a ser chamado capoeira. Também a
exploração extensiva e “destruidora” de todas as terras disponíveis fazia par-
te do lastro cultural do campônio europeu. Praticamente, toda a agricultu-
ra chamada moderna é fruto do século XIX.
A conclusão que se pode tirar desses fatos históricos é a de que os pontos
de contato entre a economia indígena e a economia campesina da época
colonial eram numerosos e facilitaram, sem dúvida alguma, a hibridação
das duas culturas.
A cultura adventícia teve o destino das culturas indígenas. Também ela
se desintegrou. O produto híbrido, a cultura cabocla, com suas variações
locais e regionais, não alcançou, em parte alguma, o grau de integração
social que caracterizava as culturas originárias. Não se salvou nem a aldeia
indígena, nem a comunidade campesina da Europa. A colonização dispersa
com sítios isolados por grandes distâncias foi substituindo o povoamento
cumulativo de índios e europeus.
Com efeito, essa substituição outra coisa não significa senão a perda de
inúmeros elementos culturais cuja existência e perpetuação se prendiam à
agregação íntima, a um sistema de cooperação e divisão de trabalho susce-
tível de sobreviver somente quando os homens podem agir, incessantemen-
te, em conjunto e sob o controle direto da comunidade. Acresce que as
culturas indígenas e campesinas se baseiam na tradição oral da comunida-
de. Escasseando os contatos, a tradição oral não pode deixar empobrecer.
É o que aconteceu com as chamadas culturas caboclas. De certo, nin-
guém ficará surpreso com a observação de que as culturas campesinas da
Europa apresentam um conteúdo mais rico e variado do que as culturas
sertanejas do Brasil. Para muita gente, no entanto, constitui motivo de es-
panto o fato de que também a maioria das culturas tribais do Brasil central
e setentrional esteja em condições relativamente mais favoráveis do que a
de seus vizinhos caboclos. O alto grau de integração da vida tribal, a estreita
cooperação dos homens, o desempenho de importantes funções econômi-
cas pelas mulheres fazem com que essas tribos tenham desenvolvido uma
organização econômica mais eficiente do que os caboclos das regiões cir-
cunvizinhas. Os Tapirapé, por exemplo, estudados por Herbert Baldus e
Referências Bibliográficas
ELKIN, Henry. (1940), “The Northern Arapaho of Wyoming”. In: LINTON, Ralph,
Acculturation in Seven American Tribes. Nova York.
MENDIETA Y NUÑEZ, Lucio. (1940), “Ensayo sociológico sobre los Tarascos”. In: Los
Tarascos, México.
SCHMIDT, Carlos Borges. (1943), “Aspectos da vida agrícola no Vale do Paraitinga”.
Sociologia, V (1): 35-55.
STONEQUIST, E. V. (1937), The Marginal Man. Nova York.
WILLEMS, Emílio. (1940), Assimilação e populações marginais no Brasil. São Paulo.
_____. (1941), “O desnivelamento econômico como fator de aculturação”. Revista
de Imigração e Colonização, ano II (2 e 3), abr.-jun.
Resumo
Abstract
to econômico de que se tem notícia. Essa linha é per- de manutenção da liderança mundial. O Projeto para
seguida pelo autor ao longo do livro, o que torna sua o Novo Século Norte-Americano, desenvolvido pelos
leitura bastante instigante, daquelas que se quer con- falcões e acolhido pelo Congresso e pela população
cluir rapidamente para se conhecer o desfecho. amedrontada, recolocou os Estados Unidos na rota
O livro divide-se em quatro partes. De início, das guerras imperialistas. No entanto, a invasão do
Arrighi busca demonstrar como o caminho “natu- Iraque e a tentativa de controlar as maiores reservas de
ral” de desenvolvimento econômico, preconizado por petróleo do mundo se tornaram custosas demais. Au-
Adam Smith, baseado no incremento do mercado menta o déficit público e a dependência financeira do
interno a partir do aprimoramento da agricultura e império com relação às potências ascendentes, sobre-
do comércio, conformou a economia chinesa até o tudo China, que Arrighi compreende ser a grande
fim de seu período imperial. Em contrapartida, em- vencedora da guerra do Iraque.
bora tenha sido a sede da ideologia do livre mercado, Por fim, na quarta parte do livro, além de uma
a Europa havia determinado seu crescimento econô- vigorosa análise do recente debate de intelectuais
mico a partir do ambiente externo, impulsionada norte-americanos sobre como lidar com a “ascensão
pelas conquistas territoriais no continente america- pacífica” chinesa, Arrighi encontra os fundamentos
no. Esse caminho “antinatural” europeu explicaria o históricos do caminho “natural” chinês de desenvol-
que Kenneth Pomeranz chama de Grande Divergên- vimento econômico, do século XII até os dias atuais.
cia, em que a Europa, impulsionada pela Revolução A ênfase, é claro, se dá na estratégia para a retomada
Industrial, ergue sua curva de crescimento, enquan- do crescimento econômico nos últimos vinte anos.
to o Leste asiático entra em forte declínio. A crise de hegemonia norte-americana não se re-
Na segunda parte, Arrighi retoma algumas das fere apenas à perda de credibilidade de sua posição
formulações de O longo século XX e de Caos e governa- como força invencível ou à sua débâcle econômico-fi-
bilidade no moderno sistema mundial 2, em uma analí- nanceira. O próprio american way of life, que susten-
tica que expõe os fundamentos da atual crise econô- tou a pujança consumista da maior economia do
mica, de raízes situadas no início dos anos de 1970. mundo e a admiração de populações de todos os paí-
Em síntese, trata-se de explicar como a queda da taxa ses, aparece como o grande responsável pela devasta-
de lucro naquela década gerou um aumento da finan- ção ecológica de nosso tempo. A mensagem final de
ceirização da economia e fez com que o capital empe- Adam Smith em Pequim refere-se a essa questão. No
nhado na produção buscasse a mão de obra barata dos momento em que a via “natural” chinesa se encontra
países do Terceiro Mundo, sobretudo no Sudeste asiá- com o “caminho extrovertido da Revolução Indus-
tico. Quando o fracasso do Vietnã os fragilizou, os Es- trial”, é o mundo capitalista como um todo que se
tados Unidos tentaram se sustentar com uma política modifica. Como diz Arrighi, “o fato é que nem mes-
monetária frouxa, que impulsionou uma forte expan- mo um quarto da população da China e da Índia
são do crédito, mas sem aumento de demanda com- pode adotar o modo norte-americano de produzir e
parável na economia real. Com dinheiro barato cor- consumir sem matar por sufocação a si mesmo e ao
rendo o mundo, os dólares emitidos pelo Federal Re- resto do mundo” (p. 392). A conquista da hegemo-
serve perderam valor, aprofundando a crise de nia mundial pelos chineses dependerá das decisões a
hegemonia dos Estados Unidos. serem tomadas no futuro próximo. Se o novo ciclo de
Arrighi sugere, na terceira parte, que o 11 de se- desenvolvimento no Leste asiático respeitar os limites
tembro de 2001 teria possibilitado aos Estados Uni- impostos pelo planeta pode ser que a China consiga
dos a deflagração de sua última cartada com o intuito se elevar como modelo para os outros países.
sores” do mercado, que constituem o mainstream da OGM mostra que, passando ao largo das pressões dos
teoria econômica e advogam a existência do homo indivíduos, sua implementação na agricultura persis-
oeconomicus, e os “críticos” do mercado – originários te avançando significativamente. Deve-se entender,
de um espectro político que vai do liberalismo escla- então, que o diagnóstico de Stehr de fato revela a tôni-
recido ao conservadorismo – que entendem a sua res- ca desse momento histórico, ou estaria, antes, proje-
trição ou superação como necessária. Igualmente pro- tando um futuro desejável? De todo modo, o edifício
cura, mutatis mutandis, escapar à visão de que as re- teórico apresenta contribuições fundamentais à so-
lações de poder entre produtores e consumidores ciologia contemporânea, ao desenhar uma crítica
teriam aqueles como dominantes. No bojo da ascen- multifacetada ao pressuposto da ação racional do in-
são do conhecimento, afirma: “O caráter cognoscitivo divíduo, que (ainda) permanece como base do
[knowledgeability] dos atores aumenta suas possibili- enfoque econômico dominante, e que também tem
dades de ação, sua capacidade de assegurar que, ao implicações sobre as práticas teóricas e políticas.
menos, suas vozes encontrarão eco; crescem as chan-
ces de formular uma opinião categórica, de organi- Notas
zar resistência e, de modo geral, ser um participante
1.Curiosamente, a edição em inglês teve o título e o
ativo no mercado” (p. 237) e “gostaria de definir co- subtítulo alterados, numa mudança que dificilmen-
nhecimento e knowledgeability [cognoscibilidade] te pode ser considerada irrelevante: Moral Markets:
como a faculdade para a ação social (capacidade de How Knowledge and Affluence Change Consumerism
ação), como a possibilidade de iniciar algo” (p. 248). and Products. Boulder, Paradigm Publishers, 2007.
Nesse movimento, seu referencial teórico pauta- A paginação das citações refere-se à edição alemã.
se, sobretudo, pelos estudos de Émile Durkheim e 2.Ainda que sejam esses seus principais interlocu-
Max Weber e, em termos do debate contemporâneo, tores, Stehr mobiliza amplo espectro teórico de di-
no diálogo crítico com autores como Niklas Luh- versas colorações. Menciono, outrossim, a remissão
mann2. A principal divergência que Stehr levanta a Georg Simmel, Karl Marx e Pierre Bourdieu; e
quanto a essa abordagem consiste em matizar a dis- igualmente a referências centrais da sociologia eco-
posição à contínua diferenciação funcional dos siste- nômica, como Richard Swedberg e Neil Smelser.
mas sociais: “Mas também desse ponto de vista a di-
ferenciação funcional do sistema econômico não pode
ser entendida de maneira que a instituição economia
alcance uma autonomia abrangente em relação a ou- José de Souza Martins, Sociologia da fotografia e
tros sistemas sociais” (p. 79). Embasado em pesqui- da imagem. São Paulo, Contexto, 2008, 208 pp.
sas de opinião de países “altamente desenvolvidos”, José de Souza Martins, José de Souza Martins. São
o autor traz o exemplo da biotecnologia e do com- Paulo, Edusp (coleção Artistas da USP), 2008, 184 pp.
portamento axiologicamente orientado, em que ob-
serva a intenção de organizar-se para deixar de ad- Luiz Armando Bagolin
quirir produtos geneticamente modificados. Professor doutor do IEB – USP
A partir de seu principal exemplo empírico, per- Magali dos Reis
mito-me levantar uma possível questão a essa propos- Professora doutora da PUC-MG
ta. Diante da constatação da forte tendência ao au-
mento no grau de pressão exercido pelo consumidor As fotografias de José de Souza Martins, recente-
ante as empresas e governos, o próprio exemplo dos mente publicadas em livro da Edusp (2008),
colimam o seu discurso sobre sociologia da imagem donado, cheio de escombros, lixo e rastros de seus an-
apresentado em Sociologia da fotografia e da imagem tigos ocupantes. De outro, faz-nos indagar sobre
(2008), fazendo da fotografia assim chamada “estéti- quem foram aqueles homens, como viveram, como e
ca”, e não a documental, objeto de representação de por que sofreram e, além de tudo, como nos compor-
imaginários socialmente partilhados. Distante da so- taríamos naquela situação, se ali estivéssemos ou se ali
ciologia e da antropologia que tem na fotografia um tivéssemos vivido como companheiros ou inimigos.
amparo ou suporte metodológico para a investigação Além ou aquém das ruínas, os vestígios, invisíveis, da-
de caráter cientificista, tão somente, Martins, fotó- quela humanidade sondam o imaginário do fotógra-
grafo, amplifica a busca do sociólogo, a exemplo de fo assim como de qualquer outro espectador. Não se
Gisèle Freund e outros, que a entendem como ence- trata, porém, de subjetividade piegas ou de uma leitu-
nação de mitologias cotidianas. O “ato fotográfico” ra psicológica daquilo que na imagem ofereça-se pos-
envolve múltiplas relações e a muitos: o fotógrafo, o sivelmente à introjeção. A fotografia não nos dá a ver
fotografado, um terceiro, o observador eventual da senão aquilo que já não é, ou “o isso foi”, segundo
imagem revelada, sem que possa comunicar um úni- Roland Barthes, revelando pelas ausências, segundo
co sentido ou um que ao menos prevaleça sobre todos Martins, aquilo que se oculta no trato, ou no travo so-
os outros. Por meio daquele, o homem comum pode cial. A fotografia como “representação social” só o é
ficcionalizar-se a si mesmo como recurso à autoiden- na medida em que contempla a “memória do frag-
tificação ou para a manutenção de ritos supérstites, mentário”, como propõe o autor, ou no momento em
pré-modernos, à sociedade industrializada, moderna. que o fotógrafo se conscientiza da impossibilidade de
Para Martins, seguindo Durkheim, o homem co- retratar ou “congelar” a realidade, “aquilo que lá está”
mum é incapaz de interpretar conscientemente as re- ou que “ali esteve”. Talvez, por isso, em francês, a ex-
lações sociais, assim como a situação de que participa. pressão “revelar uma fotografia” seja mais adequada
A “anomia”, conceito durkheimiano, atesta o mo- do que em português, pois se escreve développer une
mento de abstração, de desencontro entre a consciên- photo, quer dizer, literalmente, “desenvolver uma
cia social desse homem e as realidades sociais nas foto”, como acusou Castañon Guimarães, tradutor
quais se insere. Por isso, para Martins, a fotografia, de Barthes para a língua portuguesa. Desnecessário
muito mais do que a palavra (ou a palavra positivada), pensá-la, entretanto, tão somente como imagem “co-
e contra a ideia de verossimilhança em que normal- dificada”, subordinada aos procedimentos inerentes à
mente vem embalada, é instrumento capaz de tornar ciência sobre o funcionamento da câmera escura, se-
visíveis esses desencontros, de pôr em evidência os gundo Barthes, uma vez que genericamente se propõe
descompassos ou os momentos de separação da refe- como imago lucis opera expressa (imagem expressa por
rida consciência. ação da luz); além de sua natureza como código vi-
Em Sociologia da fotografia e da imagem, Martins sual, a fotografia revela, desenvolve a suposição de
pensa a fotografia indicial e subjetiva, na medida em personagens por parte das pessoas que comparecem
que esta permite compartilhar os resíduos de uma hu- diante de uma objetiva, que se deixam, ou não, captu-
manidade, já extinta muitas vezes, convidando-nos a rar pela abertura do diafragma. Tal abertura se dá si-
pensar sobre o que foi a sociedade a qual pertencera. multaneamente para uma espécie de “dramaturgia
As suas fotos sobre o Carandiru não ilustram, antes social” ou para a “sociabilidade como dramaturgia”,
demonstram esse sentimento de dupla pertença que segundo Martins, uma vez que as pessoas “represen-
comparece a todo ato fotográfico. De um lado, as tam-se” e “representam para a sociedade” quando po-
imagens permitem que adentremos num lugar aban- sam para uma fotografia.
Inútil como documento ou vestígio constitutivo tidiano: “Paranapiacaba”, “Fábrica de Linhas Pavão”,
da história do fotografado, a fotografia como repre- “Cerâmica São Caetano” remetem à ruína como evi-
sentação interdita à biografia o biografado, pois se de- dência das transformações por que passaram aquelas
senvolve, por contingência, em torno do biografável. comunidades que testemunharam a transformação
Contingente, a fotografia só pode ser afeita à memó- de seu modo simples de existência pela industrializa-
ria como estranhamento das perdas, das oposições, ção, aparentemente consubstanciadora da moderni-
das rupturas e do abandono, como construto do mo- dade. Há nesses ensaios um jogo de aparências que
mento irreconciliável do presente com o passado. se move, a par do real, pelo imaginário do fotógrafo,
Não estranha, portanto, que o autor chame a atenção porquanto nas tramas de luzes e sombras, de grades e
para o conceito de “momento decisivo”, de Henri portões, máquinas, escombros e silhuetas humanas,
Cartier-Bresson, interpretando-o como censura à fo- se entrevê o entretecimento de relações humanas pas-
tografia casual, tirada a esmo e tão somente docu- sadas ou daquelas que ainda persistem nostálgicas,
mental, em prol de uma outra que, a partir da imagem graças aos afetos. Pois o olhar que o mantém interes-
devindo, permanece como síntese imagética graças à sado nesses escombros industriais, sobretudo, é de
sua razão compositiva e ao apuro da estesia e do olhar. natureza afetiva, buscando na figuração de seu pas-
Para Martins, a fotografia aliada ao conceito “mo- sado, enquanto menino, critérios para a escolha do
mento decisivo” opõe-se à fotografia, antissociológi- “momento decisivo” na recolha das referidas imagens.
ca, do flagrante e da técnica documentarista a serviço Realistas, essas fotografias o são tão somente como
do congelamento da banalidade. Coincide, assim, o experiência ficcional fortemente identificada com os
seu discurso ainda com o de Barthes quando este cen- princípios compositivos da fotografia produzida en-
sura a imagem fotográfica “unária”, ou seja, aquela tre o final do século XIX e a primeira metade do XX,
que elogia a busca de unidade a fim de reportar “de e particularmente com as obras de Doisneau, Kertész,
uma só vez” aquilo que simplesmente se propõe a re- Henri Cartier-Bresson, Gisèle Freund e outros. O
portar. Martins, no entanto, interpreta como verda- modo como Martins opera a seleção de seus moti-
deira, ou especialmente mais significativa, a fotogra- vos, quase sempre baixos, riparográficos, ou comuns,
fia de caráter “estético”, ou a que é feita conforme as o enquadramento, o tratamento conferido à capta-
premissas bressonianas, uma vez que a entende porta- ção da luz, enevoada, a escolha pela granulação fina
dora de sentido remissivo à situação cotidiana que re- que na imagem em preto e branco gera contrastes
presenta. Ao aceitá-la como uma “ideia sociologica- com contornos menos duros, além de outros deta-
mente mais densa”, o autor também a assume como lhes de natureza técnica, faz dessas imagens análogos
atitude para as suas próprias operações como fotógra- remissivos à história recente da fotografia, sobretudo
fo, não casuais ou documentaristas, fazendo da elabo- a da primeira metade do século XX. De algum modo,
ração e da construção representativa, assim como da na obra de Martins, essas imagens não apenas iconi-
reflexão, que acompanham o ato fotográfico, instru- zam, pela representação das ruínas, a modernidade e
mentos que, recursivamente, operam a sua reflexão o seu declínio, simultaneamente ao aparecimento “de
como sociólogo sobre a imagem e a cotidianidade do uma nova humanidade, juridicamente livre”, mas a
homem comum. comentam pela manutenção de uma forma específi-
No livro da Edusp, já referido, Martins expõe en- ca de discurso quanto à singularidade do olhar e do
saios fotográficos de sua autoria acompanhados de fotografar.
anotações em poemas, de três situações álibis para se Tal relação ainda é evidente nas fotografias colo-
pensar as emanações, ficcionais, das lidas com o co- ridas, que, ao final do livro, saturam de cores inten-
sivamente artificiais as superfícies de objetos e má- “aparentemente” é o empecilho que foi deslocado por
quinas arruinadas, de aspecto ferruginoso. A com- Theodor Adorno na sua busca por reconhecer, ler e
posição de algumas dessas fotos, assim como de seus interpretar a sociedade a partir de elementos como
títulos, alude às diversas tendências da arte abstrata, os citados.
que, no Brasil, estiveram em voga na década de 1950. As estrelas descem à Terra toma por tarefa a explici-
Plenamente operante na fotografia do período, os tação de fenômenos sociais a partir da leitura atenta,
princípios construtivos de uma arte não representa- no período de novembro de 1952 até fevereiro de
tiva grassaram por aqui, na esteira de Rodchenko ou 1953, da coluna de astrologia do Los Angeles Times es-
Lázló Moholy-Nagy, por exemplo, na obra, entre crita por Caroll Righter. Diferentemente das grandes
outros, de Geraldo de Barros, que Martins parece obras de arte, a questão não envolve as sutilezas de
emular pela cor. A cor ajuda a desfazer completa- análise da forma, em que “a referência ao social não
mente qualquer possibilidade de uso dessas imagens deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais
como registros documentais, pois até mesmo a pátina fundo para dentro dela” (Notas de Literatura I). Em
desses objetos é alterada de modo a não permitir compensação, a astrologia só pode ser discutida a par-
qualquer outro comentário ou impressão que não tir da análise dialética que envolve os textos da coluna
aquele que os remeta à sua estranha aparição na pá- e a sociedade. Essa dialética está centrada, sobretudo,
gina branca do papel. Enaltecendo pela cor a pig- no sujeito configurado pela figura do leitor.
mentação das superfícies em corrosão, as últimas ima- O propósito do livro não é a astrologia em si,
gens presentes no livro de Souza Martins nomeiam- mas a “suscetibilidade” (p. 174) à qual estão sujeitas
se “pós-modernidades”, menos talvez porque as pessoas, ou seja, a astrologia é usada como “chave
testemunharam o ocaso da modernidade, mas por- para potencialidades sociais e psicológicas muito mais
que tomam por empréstimo, como apropriação ou abrangentes” (p. 174). A astrologia é vista como “sin-
arte combinatória, procedimentos de experimenta- toma” (p. 174) de tendências sociais específicas.
ção da imagem análogos aos de outros artistas que, Esse propósito implica, no decorrer do estudo,
outrora, agiram sob a égide daquela categoria. um procedimento de análise que lança mão, de um
lado, de conceitos ligados à psicanálise e à psiquia-
tria e, de outro, de conceitos sociológicos. Mas essas
Theodor W. Adorno, As estrelas descem à Terra – duas perspectivas aparecem dialeticamente relacio-
a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um nadas por meio de um pensamento filosófico que
estudo sobre superstição secundária. Tradução reconhece nos indivíduos as questões sociais, tendo
Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo, Editora da em vista no entanto que “a sociedade é feita daqueles
que ela abarca” (p. 175).
Unesp, 2008, 194 pp.
Dessa forma, o autor recorre em grande medida
Patrícia da Silva Santos à “abordagem bifásica” que, em psicologia, corres-
Mestranda em Sociologia pela USP ponde ao comportamento neurótico que oscila entre
extremos contraditórios, por exemplo, alguém que
O que poderia haver em comum nas previsões de age em relação a si mesmo por vezes como criança
horóscopo do Los Angeles Times da década de 1950, travessa, por outras como disciplinador severo. Para
na literatura de Franz Kafka e na música de Stravins- Adorno, a coluna utiliza-se desse instrumento de po-
ky? Aparentemente não há nada de substancioso que laridades para manter a dependência do leitor, ao tra-
possa atar coisas tão diferentes. Mas justamente esse balhar com uma imagem dele como sendo alguém
frustrado e, ao mesmo tempo, passível de obter su- te socializado” (p. 32). Essa é uma das especificida-
cesso. Desse modo, a individualidade só é conquis- des bases da astrologia no período moderno e Ador-
tada a partir do sacrifício que o leitor faz de si mes- no procura sublinhar reiteradas vezes esse caráter em
mo em nome de uma crença arbitrária nos ditames seu esforço de articular o estudo da coluna com a
da coluna. Nesse sentido, a dependência, a semifor- interpretação dos processos sociais. Assim, a astrolo-
mação e outros elementos aparecem associados à gia moderna aparece pautada num “super-realismo”
suscitação de “disposições paranoicas” (p. 190), no (p. 36), que releva a “ordem do cotidiano” (p. 91),
interior das quais a astrologia aparece como um dos ordem essa, por sua vez, regulada pelo mundo do
sintomas da regressão social. A afirmação do sujeito trabalho e pelas configurações sociais e familiares
só ocorre mediante a sua negação diante das potên- modernas. Contraditoriamente, a astrologia está fun-
cias sociais (trabalho, família, relacionamentos etc.). dada nas bases arbitrárias da determinação dos astros
No âmbito estritamente sociológico, é interessan- sobre as vidas individuais, no entanto “esse mistério
te destacar a recorrência às observações ligadas às clas- não é mera ‘superstição’. Ele é a expressão negativa
ses sociais, à divisão sexual do trabalho dos leitores da organização do trabalho e, mais especificamente,
da coluna, bem como à manutenção dos sistemas de da organização da ciência” (p. 182).
autoridade por meio da exposição frequente da figu- Outra reflexão importante que Adorno retoma
ra do chefe (aos leitores, aconselha-se sempre a obe- no texto sobre a coluna de astrologia é a de “indús-
diência à hierarquia do trabalho). tria cultural”. A forma moderna do zodíaco sob a
O livro retoma conceitos centrais da filosofia concepção de “superstição secundária” depende dela,
adorniana de maneira bastante específica. Gostaria em grande medida. A coluna, assim como o cinema
de destacar dois desses desenvolvimentos um pou- e outras formas de indústria cultural, ajuda a manter
co mais detalhadamente. uma espécie de “normalidade” social pré-fabricada e
O primeiro é a retomada da concepção base da fundamentada na esfera da aparência, que impede o
Dialética do esclarecimento: o “entrelaçamento do mito indivíduo de chegar a uma reflexão autêntica e o
e do esclarecimento”. Tal concepção é pontuada em mantém estritamente nos limites da ideologia.
vários momentos na discussão sobre a coluna de as- Esses dois aspectos da discussão de Adorno fazem
trologia. A crença no zodíaco ilustra muito bem o da análise sobre a astrologia um estudo sociológico
fato de que “a irracionalidade não é necessariamente que articula a totalidade social a aspectos particulares.
uma força que opera em uma esfera externa à racio- Trata-se, assim como no caso das análises da literatu-
nalidade: ela pode resultar do transtorno de proces- ra ou da música (embora com procedimentos dife-
sos racionais de autoconservação” (p. 30). Desse rentes, ajustados às especificidades dos objetos), de
modo, a tensão entre progresso científico e a crença remover a esfera do “aparente” sustentada pela ideo-
na astrologia é mantida latente por conta do caráter logia com o intuito de melhor reconhecer a dialética
de “superstição secundária” adquirido por essa últi- dos mecanismos sociais.
ma em sua configuração moderna. Nesse sentido, a Por fim, ponto importante e relevante do livro é
análise da coluna de astrologia não tem relações com o seu desenvolvimento sob a forma do ensaio, arti-
o oculto (que seria a “superstição primária”), em sen- culando a observação empírica à análise especulativa,
tido individual e de expressões do inconsciente (como sob a égide da especificidade do pensamento ador-
a visão de fantasmas, ou a telepatia, exemplos utili- niano. No entanto, diferentemente de outros textos
zados por Adorno), mas, ao contrário, “o oculto apa- considerados mais herméticos, a leitura de As estrelas
rece, aqui, institucionalizado, objetivado e amplamen- descem à Terra flui de maneira particular devido à sua
escrita menos rebuscada e à argumentação pautada sal dos textos restantes, apesar de não contrabalançar
em exemplos. Embora essa característica em si mes- o salto qualitativo que poderia ter sido dado com a
ma não tenha relação determinante com a qualidade delimitação prévia de um objeto de pesquisa e de
do texto, ela é mais um incentivo à leitura para aque- uma metodologia de comparação baseada em parâ-
les que se esquivam do autor alegando a dificuldade metros equivalentes para os casos analisados.
da sua escrita. No caso do texto de Jefferson da Conceição, a uti-
lização desse instrumento seria imprescindível para
sustentar sua tese central. Ao desenvolver uma crítica
Iram Jácome Rodrigues & José Ricardo Ramalho ao argumento empresarial do “custo ABC”, esse autor
(orgs.), Trabalho e sindicato em antigos e novos se baseia na avaliação de dados do valor adicionado
territórios produtivos: comparações entre o ABC nas indústrias de autopeças, e conclui sobre o cresci-
paulista e o sul fluminense. São Paulo, Annablu- mento da lucratividade e produtividade no setor no
período estudado. Porém, ao não contrapor os dados
me, 2007, 364 pp.
apresentados com os de outras regiões, sua exposição
Davisson Charles Cangussu de Souza perde força explicativa. Ora, pode-se indagar se as
Doutorando em Sociologia pela FFLCH – USP “vantagens comparativas” que o mercado de produ-
ção e consumo brasileiro oferece em relação aos países
A coletânea analisa as transformações ocorridas capitalistas centrais (o que explica a fragilidade da
nas duas últimas décadas no trabalho, no sindicato e também difundida tese do “custo Brasil”) não seriam
nos “territórios produtivos” que abrigam os dois prin- ainda maiores nos “novos territórios”, a começar pela
cipais polos da indústria automotiva brasileira: o ABC ausência de tradição de luta sindical.
paulista, uma região tradicional no setor desde o fi- Um aspecto metodológico importante de ser des-
nal da década de 1950, e o sul fluminense, incluída tacado está presente no artigo de Cecília Pontes et
nessa cadeia produtiva nos anos de 1990. A origina- al., que resume os resultados da pesquisa comparati-
lidade do enfoque proposto e a diversidade temática va realizada pelos organizadores da coletânea. A par-
que apresenta torna sua leitura indispensável para os tir da aplicação de um survey junto a operários do
estudiosos das questões trabalhistas e sindicais no ABC e do sul fluminense, os autores concluem que,
Brasil, estimulando o debate acadêmico tanto entre a despeito de diferenças relevantes no perfil socioe-
os que se identificam com sua abordagem como en- conômico entre os trabalhadores das duas regiões, as
tre seus críticos. Sem a preocupação de abordar cada representações que estes fazem de suas condições de
um de seus treze artigos, teceremos alguns comentá- trabalho são bastante similares. O procedimento ado-
rios sobre determinados aspectos analíticos e meto- tado nesse trabalho revela uma concepção apriorística
dológicos que nos chamaram a atenção durante a lei- dos fatores que condicionam “o comportamento e as
tura de alguns textos. opiniões” dos operários, pautados exclusivamente em
O objetivo mais geral do livro é estabelecer com- critérios sociais e econômicos. Ademais, mesmo que
parações entre as duas regiões escolhidas. Porém, ao a própria pesquisa mostre não haver uma relação de
contrário do que o próprio título sugere, apenas três causa e efeito entre os aspectos escolhidos, não é rea-
artigos adotam esse procedimento, o que pode de- lizado um esforço analítico adicional a fim de verifi-
cepcionar o leitor que espera encontrar aí uma série car o que há de comum entre esses dois segmentos
de exercícios comparativos. Essa ausência pode ser que resulta em “atitudes operárias” tão semelhantes.
compensada parcialmente por uma leitura transver- Essa questão poderia ter sido aprofundada a partir
de critérios metodológicos mais amplos na elabora- lúrgicos do ABC “tem mantido sua tradição históri-
ção do questionário ou por meio de entrevistas ca de defesa dos interesses dos trabalhadores” em seu
dirigidas semiestruturadas, em que se poderia explo- apoio à criação de cooperativas e à economia solidá-
rar elementos do plano político-ideológico e cultural. ria (p. 360).
A leitura que os autores fazem das transformações Em outros artigos, os autores opinam até mesmo
analisadas advém de um marco teórico situado em sobre o dever-fazer dos “atores”. Refletindo sobre a
uma determinada interpretação no campo da teoria participação do sindicato dos metalúrgicos nas estra-
da globalização. A ideia que os une, sintetizada no tex- tégias de desenvolvimento regional no ABC, Zeíra
to de apresentação dos organizadores, é a constatação Camargo afirma que os fóruns regionais “devem ser
de um movimento de reespacialização das fábricas, fortalecidos”, ou ainda que “os atores devem conti-
que tem alterado os antigos e instalado novos territó- nuar se qualificando para a elaboração e execução de
rios produtivos. Esse processo teria provocado o surgi- projetos regionais” (p. 136). Na avaliação do “papel
mento de estratégias baseadas em “arranjos institu- das redes sociopolíticas na promoção do desenvolvi-
cionais”, cujo pressuposto geral está na visão de que é mento regional” no sul fluminense, Rodrigo Santos
possível o “entendimento” entre os “agentes sociais” a destaca que a região ainda caminha para esse “ama-
respeito de políticas de desenvolvimento regional. durecimento”, mas que “espera-se que o sindicato dos
Esse mesmo debate tem dividido a CUT desde o metalúrgicos [...] assuma uma postura mais decidida
início dos anos de 1990 entre uma ala majoritária nessa construção” (p. 115).
defensora de uma prática mais “propositiva” e cor- Não encontramos nesses trabalhos argumentos
rentes minoritárias que defendem a continuidade do que validem as conclusões de seus autores. Sendo
modelo de ação “combativa” que caracterizou a cen- assim, o “juízo de valor” que emitem faz com que a
tral nos anos de 1980. Também na bibliografia po- ideologia política sindical perca seu caráter de objeto
demos encontrar argumentos “partidários” de cada de análise, reafirmando uma velha tradição nos estu-
um dos dois lados, nem sempre apresentados com a dos sobre sindicalismo no Brasil, em que a aborda-
devida argumentação crítica, apresentação de dados gem teórica dos autores se confunde com o posiciona-
empíricos e rigor teórico. Esse é o caso de alguns tex- mento político dos sindicatos analisados.
tos presentes nesta coletânea, nos quais a maneira
como determinados autores “tomam partido” os ex-
põe a certa fragilidade argumentativa, em que as ca-
tegorias analíticas são substituídas muitas vezes por
meras adjetivações elogiosas às práticas sindicais do
setor hegemônico cutista. Regina dos Reis, por exem-
plo, ao tratar dos mecanismos de “articulação políti-
ca regional”, desenvolvida no ABC ao longo dos anos
de 1990, com intensa participação dos sindicatos da
CUT, avalia-os como “iniciativas inovadoras”, ou
“experiências positivas”, que estariam “acima das di-
vergências político-partidárias e dos diferentes inte-
resses e tensões existentes entre as esferas do poder
público, privado e da sociedade civil” (p. 77). Nilson
Oda conclui em seu texto que o sindicato dos meta-
to econômico de que se tem notícia. Essa linha é per- de manutenção da liderança mundial. O Projeto para
seguida pelo autor ao longo do livro, o que torna sua o Novo Século Norte-Americano, desenvolvido pelos
leitura bastante instigante, daquelas que se quer con- falcões e acolhido pelo Congresso e pela população
cluir rapidamente para se conhecer o desfecho. amedrontada, recolocou os Estados Unidos na rota
O livro divide-se em quatro partes. De início, das guerras imperialistas. No entanto, a invasão do
Arrighi busca demonstrar como o caminho “natu- Iraque e a tentativa de controlar as maiores reservas de
ral” de desenvolvimento econômico, preconizado por petróleo do mundo se tornaram custosas demais. Au-
Adam Smith, baseado no incremento do mercado menta o déficit público e a dependência financeira do
interno a partir do aprimoramento da agricultura e império com relação às potências ascendentes, sobre-
do comércio, conformou a economia chinesa até o tudo China, que Arrighi compreende ser a grande
fim de seu período imperial. Em contrapartida, em- vencedora da guerra do Iraque.
bora tenha sido a sede da ideologia do livre mercado, Por fim, na quarta parte do livro, além de uma
a Europa havia determinado seu crescimento econô- vigorosa análise do recente debate de intelectuais
mico a partir do ambiente externo, impulsionada norte-americanos sobre como lidar com a “ascensão
pelas conquistas territoriais no continente america- pacífica” chinesa, Arrighi encontra os fundamentos
no. Esse caminho “antinatural” europeu explicaria o históricos do caminho “natural” chinês de desenvol-
que Kenneth Pomeranz chama de Grande Divergên- vimento econômico, do século XII até os dias atuais.
cia, em que a Europa, impulsionada pela Revolução A ênfase, é claro, se dá na estratégia para a retomada
Industrial, ergue sua curva de crescimento, enquan- do crescimento econômico nos últimos vinte anos.
to o Leste asiático entra em forte declínio. A crise de hegemonia norte-americana não se re-
Na segunda parte, Arrighi retoma algumas das fere apenas à perda de credibilidade de sua posição
formulações de O longo século XX e de Caos e governa- como força invencível ou à sua débâcle econômico-fi-
bilidade no moderno sistema mundial 2, em uma analí- nanceira. O próprio american way of life, que susten-
tica que expõe os fundamentos da atual crise econô- tou a pujança consumista da maior economia do
mica, de raízes situadas no início dos anos de 1970. mundo e a admiração de populações de todos os paí-
Em síntese, trata-se de explicar como a queda da taxa ses, aparece como o grande responsável pela devasta-
de lucro naquela década gerou um aumento da finan- ção ecológica de nosso tempo. A mensagem final de
ceirização da economia e fez com que o capital empe- Adam Smith em Pequim refere-se a essa questão. No
nhado na produção buscasse a mão de obra barata dos momento em que a via “natural” chinesa se encontra
países do Terceiro Mundo, sobretudo no Sudeste asiá- com o “caminho extrovertido da Revolução Indus-
tico. Quando o fracasso do Vietnã os fragilizou, os Es- trial”, é o mundo capitalista como um todo que se
tados Unidos tentaram se sustentar com uma política modifica. Como diz Arrighi, “o fato é que nem mes-
monetária frouxa, que impulsionou uma forte expan- mo um quarto da população da China e da Índia
são do crédito, mas sem aumento de demanda com- pode adotar o modo norte-americano de produzir e
parável na economia real. Com dinheiro barato cor- consumir sem matar por sufocação a si mesmo e ao
rendo o mundo, os dólares emitidos pelo Federal Re- resto do mundo” (p. 392). A conquista da hegemo-
serve perderam valor, aprofundando a crise de nia mundial pelos chineses dependerá das decisões a
hegemonia dos Estados Unidos. serem tomadas no futuro próximo. Se o novo ciclo de
Arrighi sugere, na terceira parte, que o 11 de se- desenvolvimento no Leste asiático respeitar os limites
tembro de 2001 teria possibilitado aos Estados Uni- impostos pelo planeta pode ser que a China consiga
dos a deflagração de sua última cartada com o intuito se elevar como modelo para os outros países.
sores” do mercado, que constituem o mainstream da OGM mostra que, passando ao largo das pressões dos
teoria econômica e advogam a existência do homo indivíduos, sua implementação na agricultura persis-
oeconomicus, e os “críticos” do mercado – originários te avançando significativamente. Deve-se entender,
de um espectro político que vai do liberalismo escla- então, que o diagnóstico de Stehr de fato revela a tôni-
recido ao conservadorismo – que entendem a sua res- ca desse momento histórico, ou estaria, antes, proje-
trição ou superação como necessária. Igualmente pro- tando um futuro desejável? De todo modo, o edifício
cura, mutatis mutandis, escapar à visão de que as re- teórico apresenta contribuições fundamentais à so-
lações de poder entre produtores e consumidores ciologia contemporânea, ao desenhar uma crítica
teriam aqueles como dominantes. No bojo da ascen- multifacetada ao pressuposto da ação racional do in-
são do conhecimento, afirma: “O caráter cognoscitivo divíduo, que (ainda) permanece como base do
[knowledgeability] dos atores aumenta suas possibili- enfoque econômico dominante, e que também tem
dades de ação, sua capacidade de assegurar que, ao implicações sobre as práticas teóricas e políticas.
menos, suas vozes encontrarão eco; crescem as chan-
ces de formular uma opinião categórica, de organi- Notas
zar resistência e, de modo geral, ser um participante
1.Curiosamente, a edição em inglês teve o título e o
ativo no mercado” (p. 237) e “gostaria de definir co- subtítulo alterados, numa mudança que dificilmen-
nhecimento e knowledgeability [cognoscibilidade] te pode ser considerada irrelevante: Moral Markets:
como a faculdade para a ação social (capacidade de How Knowledge and Affluence Change Consumerism
ação), como a possibilidade de iniciar algo” (p. 248). and Products. Boulder, Paradigm Publishers, 2007.
Nesse movimento, seu referencial teórico pauta- A paginação das citações refere-se à edição alemã.
se, sobretudo, pelos estudos de Émile Durkheim e 2.Ainda que sejam esses seus principais interlocu-
Max Weber e, em termos do debate contemporâneo, tores, Stehr mobiliza amplo espectro teórico de di-
no diálogo crítico com autores como Niklas Luh- versas colorações. Menciono, outrossim, a remissão
mann2. A principal divergência que Stehr levanta a Georg Simmel, Karl Marx e Pierre Bourdieu; e
quanto a essa abordagem consiste em matizar a dis- igualmente a referências centrais da sociologia eco-
posição à contínua diferenciação funcional dos siste- nômica, como Richard Swedberg e Neil Smelser.
mas sociais: “Mas também desse ponto de vista a di-
ferenciação funcional do sistema econômico não pode
ser entendida de maneira que a instituição economia
alcance uma autonomia abrangente em relação a ou- José de Souza Martins, Sociologia da fotografia e
tros sistemas sociais” (p. 79). Embasado em pesqui- da imagem. São Paulo, Contexto, 2008, 208 pp.
sas de opinião de países “altamente desenvolvidos”, José de Souza Martins, José de Souza Martins. São
o autor traz o exemplo da biotecnologia e do com- Paulo, Edusp (coleção Artistas da USP), 2008, 184 pp.
portamento axiologicamente orientado, em que ob-
serva a intenção de organizar-se para deixar de ad- Luiz Armando Bagolin
quirir produtos geneticamente modificados. Professor doutor do IEB – USP
A partir de seu principal exemplo empírico, per- Magali dos Reis
mito-me levantar uma possível questão a essa propos- Professora doutora da PUC-MG
ta. Diante da constatação da forte tendência ao au-
mento no grau de pressão exercido pelo consumidor As fotografias de José de Souza Martins, recente-
ante as empresas e governos, o próprio exemplo dos mente publicadas em livro da Edusp (2008),
colimam o seu discurso sobre sociologia da imagem donado, cheio de escombros, lixo e rastros de seus an-
apresentado em Sociologia da fotografia e da imagem tigos ocupantes. De outro, faz-nos indagar sobre
(2008), fazendo da fotografia assim chamada “estéti- quem foram aqueles homens, como viveram, como e
ca”, e não a documental, objeto de representação de por que sofreram e, além de tudo, como nos compor-
imaginários socialmente partilhados. Distante da so- taríamos naquela situação, se ali estivéssemos ou se ali
ciologia e da antropologia que tem na fotografia um tivéssemos vivido como companheiros ou inimigos.
amparo ou suporte metodológico para a investigação Além ou aquém das ruínas, os vestígios, invisíveis, da-
de caráter cientificista, tão somente, Martins, fotó- quela humanidade sondam o imaginário do fotógra-
grafo, amplifica a busca do sociólogo, a exemplo de fo assim como de qualquer outro espectador. Não se
Gisèle Freund e outros, que a entendem como ence- trata, porém, de subjetividade piegas ou de uma leitu-
nação de mitologias cotidianas. O “ato fotográfico” ra psicológica daquilo que na imagem ofereça-se pos-
envolve múltiplas relações e a muitos: o fotógrafo, o sivelmente à introjeção. A fotografia não nos dá a ver
fotografado, um terceiro, o observador eventual da senão aquilo que já não é, ou “o isso foi”, segundo
imagem revelada, sem que possa comunicar um úni- Roland Barthes, revelando pelas ausências, segundo
co sentido ou um que ao menos prevaleça sobre todos Martins, aquilo que se oculta no trato, ou no travo so-
os outros. Por meio daquele, o homem comum pode cial. A fotografia como “representação social” só o é
ficcionalizar-se a si mesmo como recurso à autoiden- na medida em que contempla a “memória do frag-
tificação ou para a manutenção de ritos supérstites, mentário”, como propõe o autor, ou no momento em
pré-modernos, à sociedade industrializada, moderna. que o fotógrafo se conscientiza da impossibilidade de
Para Martins, seguindo Durkheim, o homem co- retratar ou “congelar” a realidade, “aquilo que lá está”
mum é incapaz de interpretar conscientemente as re- ou que “ali esteve”. Talvez, por isso, em francês, a ex-
lações sociais, assim como a situação de que participa. pressão “revelar uma fotografia” seja mais adequada
A “anomia”, conceito durkheimiano, atesta o mo- do que em português, pois se escreve développer une
mento de abstração, de desencontro entre a consciên- photo, quer dizer, literalmente, “desenvolver uma
cia social desse homem e as realidades sociais nas foto”, como acusou Castañon Guimarães, tradutor
quais se insere. Por isso, para Martins, a fotografia, de Barthes para a língua portuguesa. Desnecessário
muito mais do que a palavra (ou a palavra positivada), pensá-la, entretanto, tão somente como imagem “co-
e contra a ideia de verossimilhança em que normal- dificada”, subordinada aos procedimentos inerentes à
mente vem embalada, é instrumento capaz de tornar ciência sobre o funcionamento da câmera escura, se-
visíveis esses desencontros, de pôr em evidência os gundo Barthes, uma vez que genericamente se propõe
descompassos ou os momentos de separação da refe- como imago lucis opera expressa (imagem expressa por
rida consciência. ação da luz); além de sua natureza como código vi-
Em Sociologia da fotografia e da imagem, Martins sual, a fotografia revela, desenvolve a suposição de
pensa a fotografia indicial e subjetiva, na medida em personagens por parte das pessoas que comparecem
que esta permite compartilhar os resíduos de uma hu- diante de uma objetiva, que se deixam, ou não, captu-
manidade, já extinta muitas vezes, convidando-nos a rar pela abertura do diafragma. Tal abertura se dá si-
pensar sobre o que foi a sociedade a qual pertencera. multaneamente para uma espécie de “dramaturgia
As suas fotos sobre o Carandiru não ilustram, antes social” ou para a “sociabilidade como dramaturgia”,
demonstram esse sentimento de dupla pertença que segundo Martins, uma vez que as pessoas “represen-
comparece a todo ato fotográfico. De um lado, as tam-se” e “representam para a sociedade” quando po-
imagens permitem que adentremos num lugar aban- sam para uma fotografia.
Inútil como documento ou vestígio constitutivo tidiano: “Paranapiacaba”, “Fábrica de Linhas Pavão”,
da história do fotografado, a fotografia como repre- “Cerâmica São Caetano” remetem à ruína como evi-
sentação interdita à biografia o biografado, pois se de- dência das transformações por que passaram aquelas
senvolve, por contingência, em torno do biografável. comunidades que testemunharam a transformação
Contingente, a fotografia só pode ser afeita à memó- de seu modo simples de existência pela industrializa-
ria como estranhamento das perdas, das oposições, ção, aparentemente consubstanciadora da moderni-
das rupturas e do abandono, como construto do mo- dade. Há nesses ensaios um jogo de aparências que
mento irreconciliável do presente com o passado. se move, a par do real, pelo imaginário do fotógrafo,
Não estranha, portanto, que o autor chame a atenção porquanto nas tramas de luzes e sombras, de grades e
para o conceito de “momento decisivo”, de Henri portões, máquinas, escombros e silhuetas humanas,
Cartier-Bresson, interpretando-o como censura à fo- se entrevê o entretecimento de relações humanas pas-
tografia casual, tirada a esmo e tão somente docu- sadas ou daquelas que ainda persistem nostálgicas,
mental, em prol de uma outra que, a partir da imagem graças aos afetos. Pois o olhar que o mantém interes-
devindo, permanece como síntese imagética graças à sado nesses escombros industriais, sobretudo, é de
sua razão compositiva e ao apuro da estesia e do olhar. natureza afetiva, buscando na figuração de seu pas-
Para Martins, a fotografia aliada ao conceito “mo- sado, enquanto menino, critérios para a escolha do
mento decisivo” opõe-se à fotografia, antissociológi- “momento decisivo” na recolha das referidas imagens.
ca, do flagrante e da técnica documentarista a serviço Realistas, essas fotografias o são tão somente como
do congelamento da banalidade. Coincide, assim, o experiência ficcional fortemente identificada com os
seu discurso ainda com o de Barthes quando este cen- princípios compositivos da fotografia produzida en-
sura a imagem fotográfica “unária”, ou seja, aquela tre o final do século XIX e a primeira metade do XX,
que elogia a busca de unidade a fim de reportar “de e particularmente com as obras de Doisneau, Kertész,
uma só vez” aquilo que simplesmente se propõe a re- Henri Cartier-Bresson, Gisèle Freund e outros. O
portar. Martins, no entanto, interpreta como verda- modo como Martins opera a seleção de seus moti-
deira, ou especialmente mais significativa, a fotogra- vos, quase sempre baixos, riparográficos, ou comuns,
fia de caráter “estético”, ou a que é feita conforme as o enquadramento, o tratamento conferido à capta-
premissas bressonianas, uma vez que a entende porta- ção da luz, enevoada, a escolha pela granulação fina
dora de sentido remissivo à situação cotidiana que re- que na imagem em preto e branco gera contrastes
presenta. Ao aceitá-la como uma “ideia sociologica- com contornos menos duros, além de outros deta-
mente mais densa”, o autor também a assume como lhes de natureza técnica, faz dessas imagens análogos
atitude para as suas próprias operações como fotógra- remissivos à história recente da fotografia, sobretudo
fo, não casuais ou documentaristas, fazendo da elabo- a da primeira metade do século XX. De algum modo,
ração e da construção representativa, assim como da na obra de Martins, essas imagens não apenas iconi-
reflexão, que acompanham o ato fotográfico, instru- zam, pela representação das ruínas, a modernidade e
mentos que, recursivamente, operam a sua reflexão o seu declínio, simultaneamente ao aparecimento “de
como sociólogo sobre a imagem e a cotidianidade do uma nova humanidade, juridicamente livre”, mas a
homem comum. comentam pela manutenção de uma forma específi-
No livro da Edusp, já referido, Martins expõe en- ca de discurso quanto à singularidade do olhar e do
saios fotográficos de sua autoria acompanhados de fotografar.
anotações em poemas, de três situações álibis para se Tal relação ainda é evidente nas fotografias colo-
pensar as emanações, ficcionais, das lidas com o co- ridas, que, ao final do livro, saturam de cores inten-
sivamente artificiais as superfícies de objetos e má- “aparentemente” é o empecilho que foi deslocado por
quinas arruinadas, de aspecto ferruginoso. A com- Theodor Adorno na sua busca por reconhecer, ler e
posição de algumas dessas fotos, assim como de seus interpretar a sociedade a partir de elementos como
títulos, alude às diversas tendências da arte abstrata, os citados.
que, no Brasil, estiveram em voga na década de 1950. As estrelas descem à Terra toma por tarefa a explici-
Plenamente operante na fotografia do período, os tação de fenômenos sociais a partir da leitura atenta,
princípios construtivos de uma arte não representa- no período de novembro de 1952 até fevereiro de
tiva grassaram por aqui, na esteira de Rodchenko ou 1953, da coluna de astrologia do Los Angeles Times es-
Lázló Moholy-Nagy, por exemplo, na obra, entre crita por Caroll Righter. Diferentemente das grandes
outros, de Geraldo de Barros, que Martins parece obras de arte, a questão não envolve as sutilezas de
emular pela cor. A cor ajuda a desfazer completa- análise da forma, em que “a referência ao social não
mente qualquer possibilidade de uso dessas imagens deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais
como registros documentais, pois até mesmo a pátina fundo para dentro dela” (Notas de Literatura I). Em
desses objetos é alterada de modo a não permitir compensação, a astrologia só pode ser discutida a par-
qualquer outro comentário ou impressão que não tir da análise dialética que envolve os textos da coluna
aquele que os remeta à sua estranha aparição na pá- e a sociedade. Essa dialética está centrada, sobretudo,
gina branca do papel. Enaltecendo pela cor a pig- no sujeito configurado pela figura do leitor.
mentação das superfícies em corrosão, as últimas ima- O propósito do livro não é a astrologia em si,
gens presentes no livro de Souza Martins nomeiam- mas a “suscetibilidade” (p. 174) à qual estão sujeitas
se “pós-modernidades”, menos talvez porque as pessoas, ou seja, a astrologia é usada como “chave
testemunharam o ocaso da modernidade, mas por- para potencialidades sociais e psicológicas muito mais
que tomam por empréstimo, como apropriação ou abrangentes” (p. 174). A astrologia é vista como “sin-
arte combinatória, procedimentos de experimenta- toma” (p. 174) de tendências sociais específicas.
ção da imagem análogos aos de outros artistas que, Esse propósito implica, no decorrer do estudo,
outrora, agiram sob a égide daquela categoria. um procedimento de análise que lança mão, de um
lado, de conceitos ligados à psicanálise e à psiquia-
tria e, de outro, de conceitos sociológicos. Mas essas
Theodor W. Adorno, As estrelas descem à Terra – duas perspectivas aparecem dialeticamente relacio-
a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um nadas por meio de um pensamento filosófico que
estudo sobre superstição secundária. Tradução reconhece nos indivíduos as questões sociais, tendo
Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo, Editora da em vista no entanto que “a sociedade é feita daqueles
que ela abarca” (p. 175).
Unesp, 2008, 194 pp.
Dessa forma, o autor recorre em grande medida
Patrícia da Silva Santos à “abordagem bifásica” que, em psicologia, corres-
Mestranda em Sociologia pela USP ponde ao comportamento neurótico que oscila entre
extremos contraditórios, por exemplo, alguém que
O que poderia haver em comum nas previsões de age em relação a si mesmo por vezes como criança
horóscopo do Los Angeles Times da década de 1950, travessa, por outras como disciplinador severo. Para
na literatura de Franz Kafka e na música de Stravins- Adorno, a coluna utiliza-se desse instrumento de po-
ky? Aparentemente não há nada de substancioso que laridades para manter a dependência do leitor, ao tra-
possa atar coisas tão diferentes. Mas justamente esse balhar com uma imagem dele como sendo alguém
frustrado e, ao mesmo tempo, passível de obter su- te socializado” (p. 32). Essa é uma das especificida-
cesso. Desse modo, a individualidade só é conquis- des bases da astrologia no período moderno e Ador-
tada a partir do sacrifício que o leitor faz de si mes- no procura sublinhar reiteradas vezes esse caráter em
mo em nome de uma crença arbitrária nos ditames seu esforço de articular o estudo da coluna com a
da coluna. Nesse sentido, a dependência, a semifor- interpretação dos processos sociais. Assim, a astrolo-
mação e outros elementos aparecem associados à gia moderna aparece pautada num “super-realismo”
suscitação de “disposições paranoicas” (p. 190), no (p. 36), que releva a “ordem do cotidiano” (p. 91),
interior das quais a astrologia aparece como um dos ordem essa, por sua vez, regulada pelo mundo do
sintomas da regressão social. A afirmação do sujeito trabalho e pelas configurações sociais e familiares
só ocorre mediante a sua negação diante das potên- modernas. Contraditoriamente, a astrologia está fun-
cias sociais (trabalho, família, relacionamentos etc.). dada nas bases arbitrárias da determinação dos astros
No âmbito estritamente sociológico, é interessan- sobre as vidas individuais, no entanto “esse mistério
te destacar a recorrência às observações ligadas às clas- não é mera ‘superstição’. Ele é a expressão negativa
ses sociais, à divisão sexual do trabalho dos leitores da organização do trabalho e, mais especificamente,
da coluna, bem como à manutenção dos sistemas de da organização da ciência” (p. 182).
autoridade por meio da exposição frequente da figu- Outra reflexão importante que Adorno retoma
ra do chefe (aos leitores, aconselha-se sempre a obe- no texto sobre a coluna de astrologia é a de “indús-
diência à hierarquia do trabalho). tria cultural”. A forma moderna do zodíaco sob a
O livro retoma conceitos centrais da filosofia concepção de “superstição secundária” depende dela,
adorniana de maneira bastante específica. Gostaria em grande medida. A coluna, assim como o cinema
de destacar dois desses desenvolvimentos um pou- e outras formas de indústria cultural, ajuda a manter
co mais detalhadamente. uma espécie de “normalidade” social pré-fabricada e
O primeiro é a retomada da concepção base da fundamentada na esfera da aparência, que impede o
Dialética do esclarecimento: o “entrelaçamento do mito indivíduo de chegar a uma reflexão autêntica e o
e do esclarecimento”. Tal concepção é pontuada em mantém estritamente nos limites da ideologia.
vários momentos na discussão sobre a coluna de as- Esses dois aspectos da discussão de Adorno fazem
trologia. A crença no zodíaco ilustra muito bem o da análise sobre a astrologia um estudo sociológico
fato de que “a irracionalidade não é necessariamente que articula a totalidade social a aspectos particulares.
uma força que opera em uma esfera externa à racio- Trata-se, assim como no caso das análises da literatu-
nalidade: ela pode resultar do transtorno de proces- ra ou da música (embora com procedimentos dife-
sos racionais de autoconservação” (p. 30). Desse rentes, ajustados às especificidades dos objetos), de
modo, a tensão entre progresso científico e a crença remover a esfera do “aparente” sustentada pela ideo-
na astrologia é mantida latente por conta do caráter logia com o intuito de melhor reconhecer a dialética
de “superstição secundária” adquirido por essa últi- dos mecanismos sociais.
ma em sua configuração moderna. Nesse sentido, a Por fim, ponto importante e relevante do livro é
análise da coluna de astrologia não tem relações com o seu desenvolvimento sob a forma do ensaio, arti-
o oculto (que seria a “superstição primária”), em sen- culando a observação empírica à análise especulativa,
tido individual e de expressões do inconsciente (como sob a égide da especificidade do pensamento ador-
a visão de fantasmas, ou a telepatia, exemplos utili- niano. No entanto, diferentemente de outros textos
zados por Adorno), mas, ao contrário, “o oculto apa- considerados mais herméticos, a leitura de As estrelas
rece, aqui, institucionalizado, objetivado e amplamen- descem à Terra flui de maneira particular devido à sua
escrita menos rebuscada e à argumentação pautada sal dos textos restantes, apesar de não contrabalançar
em exemplos. Embora essa característica em si mes- o salto qualitativo que poderia ter sido dado com a
ma não tenha relação determinante com a qualidade delimitação prévia de um objeto de pesquisa e de
do texto, ela é mais um incentivo à leitura para aque- uma metodologia de comparação baseada em parâ-
les que se esquivam do autor alegando a dificuldade metros equivalentes para os casos analisados.
da sua escrita. No caso do texto de Jefferson da Conceição, a uti-
lização desse instrumento seria imprescindível para
sustentar sua tese central. Ao desenvolver uma crítica
Iram Jácome Rodrigues & José Ricardo Ramalho ao argumento empresarial do “custo ABC”, esse autor
(orgs.), Trabalho e sindicato em antigos e novos se baseia na avaliação de dados do valor adicionado
territórios produtivos: comparações entre o ABC nas indústrias de autopeças, e conclui sobre o cresci-
paulista e o sul fluminense. São Paulo, Annablu- mento da lucratividade e produtividade no setor no
período estudado. Porém, ao não contrapor os dados
me, 2007, 364 pp.
apresentados com os de outras regiões, sua exposição
Davisson Charles Cangussu de Souza perde força explicativa. Ora, pode-se indagar se as
Doutorando em Sociologia pela FFLCH – USP “vantagens comparativas” que o mercado de produ-
ção e consumo brasileiro oferece em relação aos países
A coletânea analisa as transformações ocorridas capitalistas centrais (o que explica a fragilidade da
nas duas últimas décadas no trabalho, no sindicato e também difundida tese do “custo Brasil”) não seriam
nos “territórios produtivos” que abrigam os dois prin- ainda maiores nos “novos territórios”, a começar pela
cipais polos da indústria automotiva brasileira: o ABC ausência de tradição de luta sindical.
paulista, uma região tradicional no setor desde o fi- Um aspecto metodológico importante de ser des-
nal da década de 1950, e o sul fluminense, incluída tacado está presente no artigo de Cecília Pontes et
nessa cadeia produtiva nos anos de 1990. A origina- al., que resume os resultados da pesquisa comparati-
lidade do enfoque proposto e a diversidade temática va realizada pelos organizadores da coletânea. A par-
que apresenta torna sua leitura indispensável para os tir da aplicação de um survey junto a operários do
estudiosos das questões trabalhistas e sindicais no ABC e do sul fluminense, os autores concluem que,
Brasil, estimulando o debate acadêmico tanto entre a despeito de diferenças relevantes no perfil socioe-
os que se identificam com sua abordagem como en- conômico entre os trabalhadores das duas regiões, as
tre seus críticos. Sem a preocupação de abordar cada representações que estes fazem de suas condições de
um de seus treze artigos, teceremos alguns comentá- trabalho são bastante similares. O procedimento ado-
rios sobre determinados aspectos analíticos e meto- tado nesse trabalho revela uma concepção apriorística
dológicos que nos chamaram a atenção durante a lei- dos fatores que condicionam “o comportamento e as
tura de alguns textos. opiniões” dos operários, pautados exclusivamente em
O objetivo mais geral do livro é estabelecer com- critérios sociais e econômicos. Ademais, mesmo que
parações entre as duas regiões escolhidas. Porém, ao a própria pesquisa mostre não haver uma relação de
contrário do que o próprio título sugere, apenas três causa e efeito entre os aspectos escolhidos, não é rea-
artigos adotam esse procedimento, o que pode de- lizado um esforço analítico adicional a fim de verifi-
cepcionar o leitor que espera encontrar aí uma série car o que há de comum entre esses dois segmentos
de exercícios comparativos. Essa ausência pode ser que resulta em “atitudes operárias” tão semelhantes.
compensada parcialmente por uma leitura transver- Essa questão poderia ter sido aprofundada a partir
de critérios metodológicos mais amplos na elabora- lúrgicos do ABC “tem mantido sua tradição históri-
ção do questionário ou por meio de entrevistas ca de defesa dos interesses dos trabalhadores” em seu
dirigidas semiestruturadas, em que se poderia explo- apoio à criação de cooperativas e à economia solidá-
rar elementos do plano político-ideológico e cultural. ria (p. 360).
A leitura que os autores fazem das transformações Em outros artigos, os autores opinam até mesmo
analisadas advém de um marco teórico situado em sobre o dever-fazer dos “atores”. Refletindo sobre a
uma determinada interpretação no campo da teoria participação do sindicato dos metalúrgicos nas estra-
da globalização. A ideia que os une, sintetizada no tex- tégias de desenvolvimento regional no ABC, Zeíra
to de apresentação dos organizadores, é a constatação Camargo afirma que os fóruns regionais “devem ser
de um movimento de reespacialização das fábricas, fortalecidos”, ou ainda que “os atores devem conti-
que tem alterado os antigos e instalado novos territó- nuar se qualificando para a elaboração e execução de
rios produtivos. Esse processo teria provocado o surgi- projetos regionais” (p. 136). Na avaliação do “papel
mento de estratégias baseadas em “arranjos institu- das redes sociopolíticas na promoção do desenvolvi-
cionais”, cujo pressuposto geral está na visão de que é mento regional” no sul fluminense, Rodrigo Santos
possível o “entendimento” entre os “agentes sociais” a destaca que a região ainda caminha para esse “ama-
respeito de políticas de desenvolvimento regional. durecimento”, mas que “espera-se que o sindicato dos
Esse mesmo debate tem dividido a CUT desde o metalúrgicos [...] assuma uma postura mais decidida
início dos anos de 1990 entre uma ala majoritária nessa construção” (p. 115).
defensora de uma prática mais “propositiva” e cor- Não encontramos nesses trabalhos argumentos
rentes minoritárias que defendem a continuidade do que validem as conclusões de seus autores. Sendo
modelo de ação “combativa” que caracterizou a cen- assim, o “juízo de valor” que emitem faz com que a
tral nos anos de 1980. Também na bibliografia po- ideologia política sindical perca seu caráter de objeto
demos encontrar argumentos “partidários” de cada de análise, reafirmando uma velha tradição nos estu-
um dos dois lados, nem sempre apresentados com a dos sobre sindicalismo no Brasil, em que a aborda-
devida argumentação crítica, apresentação de dados gem teórica dos autores se confunde com o posiciona-
empíricos e rigor teórico. Esse é o caso de alguns tex- mento político dos sindicatos analisados.
tos presentes nesta coletânea, nos quais a maneira
como determinados autores “tomam partido” os ex-
põe a certa fragilidade argumentativa, em que as ca-
tegorias analíticas são substituídas muitas vezes por
meras adjetivações elogiosas às práticas sindicais do
setor hegemônico cutista. Regina dos Reis, por exem-
plo, ao tratar dos mecanismos de “articulação políti-
ca regional”, desenvolvida no ABC ao longo dos anos
de 1990, com intensa participação dos sindicatos da
CUT, avalia-os como “iniciativas inovadoras”, ou
“experiências positivas”, que estariam “acima das di-
vergências político-partidárias e dos diferentes inte-
resses e tensões existentes entre as esferas do poder
público, privado e da sociedade civil” (p. 77). Nilson
Oda conclui em seu texto que o sindicato dos meta-