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Moto de mulher

Comprei uma Honda vermelha que tava na promoção e saí da loja dirigindo.
Feliz demais, me sentindo que nem uma passarinha trepada na moto. O vento
vem direto na cara, até arde o olho, mas é um sentimento gostoso de quase voar.
Ainda mais no caminho pra Barbalha, de tarde, a pista vazia. Mas esse caminho
eu só fiz depois.
Primeiro eu vesti o colete de mototáxi que guardei por três meses enquanto
esperava a oportunidade da moto. Saí pilotando pelo bairro, não andei nem três
quarteirões e uma mulher fez sinal com a mão.
Para aí, mototáxi.
Parei e ela me olhou assustada quando chegou perto.
Oxe, e é mulher, é?
Eu dei um sorrisinho meio troncho. Disse que pois é. Ela montou na garupa e
falou que pelo menos ficava mais à vontade pra segurar na minha cintura. Não
segurava na cintura de mototáxi homem que era pra não dar liberdade. Eu disse
que pois é de novo.
Fui deixar essa mulher tão longe que eu nem sabia onde era aquilo. Ela foi me
ensinando. Parecia que não ia chegar nunca. O sol rachando.
Quando a gente chegou lá, na frente de uma casa de taipa toda se
desmontando, ela perguntou quanto tinha dado a corrida. Eu fiquei pensando por
um tempo e ela me olhando impaciente, mas eu tava juntando a cara pra falar
que era dez reais. Eu achava que ela ia reclamar do preço, ainda mais o destino
derrubado daquele jeito. Falei que era oito conto e fiquei pensando por que eu
tinha falado “conto”, mas ela me entregou o dinheiro sem dizer nada e sumiu pra
dentro da casa.
Fiquei tomando coragem pra voltar.
Não sabia voltar, na verdade. Tinha entrado em tanta rua pequena, em tanto
beco, em tanta esquina de cerca. Não tinha uma placa de rua que fosse pra eu
saber o nome. Fiquei olhando pra todo lado, o celular quase sem sinal. Longe
demais, longe de um jeito que nem dez conto pagava.
Demorei uns vinte minutos tomando essa coragem e saí morrendo de raiva. Eu
sempre me achei burra, mas ali a burrice tinha passado dos limites. Eu devia ter
dito que não ia levar mais longe que a Matriz, ainda mais no meu primeiro dia.
Eu sei ir até o Crato, até a praça da Sé. Sei ir até Barbalha, até a praça da
Estação. Sei andar em Juazeiro até o Hotel Verde Vale, passando um pouco da
Rádio Tempo, mas pro outro lado só se for até a Matriz. As ruas que vão
cortando esses caminhos todos eu não conheço. Sempre andei pelas ruas
principais. As avenidas. Nunca prestei atenção quando eu era a levada e não a
levadora.
O resumo era, então, a minha burrice. Otária demais, só oito reais. Dirigindo
na chinelada, com medo de qualquer cara de macho que aparecia nas calçadas.
Eu só achava que iam me roubar. Imagina se levam minha moto zerada que não
deu tempo nem de sujar os pneus direito.
Fiquei nessa angústia, duas horas perdida. Até que avistei a estrada de volta
pra Matriz. Depois de uns dez minutos comecei a reconhecer melhor as casinhas,
as cercas, as placas. Entrei de novo na cidade com a maior alegria. Mais feliz do
que quando peguei a moto pela primeira vez. Aí decidi ficar pelo centro.
Parei a moto num ponto de mototáxi perto da padaria, mas veio um cara falar
que tinha que se cadastrar pra ficar ali. Eu perguntei como que fazia o cadastro e
ele respondeu que era só com Zé, que tinha sido o primeiro mototáxi a começar
aquele ponto. Que lutou na prefeitura e tudo pra ter o direito de parar perto do
sinal, do lado da faixa de pedestre. E, além do mais, nunca tinha visto mototáxi
mulher. Isso não ia dar certo. E o perigo? Era perigoso ser mototáxi. Ser mulher
mototáxi, então. E a minha moto era pesada, se fosse pelo menos uma Biz. Eu
disse que Biz não era moto e que tá bom, depois eu passava pra falar com Zé.
Fui subindo a rua até a igreja do Salesiano. Uma coisa ruim na boca, como se
eu não tivesse dado o troco e as palavras estivessem todas amontoadas ali. Ouvi
e não falei nada. Que tipo de resposta era “Biz não é moto”? Só se a mãe dele
fosse uma Biz, aí ele se ispritava e escutava bem escutado.
Eu tava quase fazendo a volta, quando uma senhora deu sinal com a mão. Ô,
mototáxi. Eu parei, mas dessa vez não percebi se ela ficou surpresa.
A senhora desengatou numa fala rápida sobre precisar entregar uma sacola
numa fábrica de chinela. Mas não era aquela ali logo da esquina, era aquela no
caminho de Barbalha. Não aquela que ficava já perto da cidade, era uma que
ficava no meio do caminho.
Quanto que fica pra levar essa sacola lá?
Seis reais tá bom, eu disse, coçando os olhos. Dava pra notar que eu não sabia
como cobrar direito, se isso era muito ou pouco, mas ela pegou o celular e pediu
o meu número. Meu telefone tocou, ela desligou no segundo toque e ligou pra
outra pessoa.
Ó, vai ser seis reais, pague aí que a mulher tá indo levar. É mototáxi, não é
favor, você pague aí.
Desligou e me entregou a sacola. Tava pesada.
Cuidado que é de quebrar.
Quando eu parei no sinal perto do shopping, dei uma espiada pra dentro da
sacola, mas a coisa tava embalada numa caixa. Fiquei pensando se era copo de
vidro, um bomboniére, um vaso. Tudo do tamanho que coubesse numa caixa de
uns cinquenta centímetros. Depois me distraí com o caminho e esqueci de pensar
sobre a caixa.
Entrei ali na estrada pra Barbalha e tentei ir devagar pra não perder a fábrica.
Nunca tinha reparado em fábrica nenhuma que ficasse no meio do caminho. Aí
vi um muro com um desenho de chinela gigante e concluí que era ali, só que era
do outro lado da pista, tinha que fazer o retorno.
Passei um posto de gasolina e uma churrascaria, andei mais um trecho e entrei
pra pista da esquerda. Fui voltando tudo de novo. Mato, terreno baldio, uma casa
sozinha, outra casa. Vi a fábrica chegando, mas não encontrei onde entrava e
passei direto.
Ô peste.
Já tava nervosa pensando que ia ter que refazer a estrada da direita, mas
reparei numa ruazinha e me embrenhei nela.
Achei que dava pra contornar por trás, mas de um lado era um monte de casa
e do outro era uma plantação de milho. Só vi um pedreiro mexendo num resto de
cimento e parei a moto pra falar com ele.
Perdi a entrada da fábrica ali, sabe qual é?
Sei.
Não tem outro caminho, não, aqui por dentro?
Tem aquele caminho ali de terra, no meio da plantação.
E a moto vai passar?
Passa sim, que passa até moto pequena.
Então eu fui. Se passava até moto pequena, a minha passava. Era um caminho
de terra entre os milhos. A terra fofa, a moto bambeando, eu morrendo de medo
de cair. Fui, fui, fui, até que o caminho acabou. A praga do caminho acabou.
Mas ele disse que passa até moto pequena.
Entrei na plantação de moto e tudo, sendo que não tinha mais caminho
nenhum. Só milho alto. É claro que a moto atolou. Empacou. Não se mexia por
nada. Me deu um desespero tão grande que eu comecei a chorar. Fiquei olhando
pros milhos, pra terra, pro caminho atrás. Ia ter que virar a moto e empurrar. A
moto pesada que só a bixiga, o sol rachando, a sacola pendurada no meu braço.
Fiz uma força que eu nem sabia que tinha. Acho que demorei mais de meia
hora pra conseguir virar a moto, depois mais dez minutos pra conseguir
empurrar a bicha de volta pro caminho. O tempo todo ouvindo o cabinha
dizendo que se fosse pelo menos uma Biz. Biz que é moto de mulher.
Quando finalmente consegui, limpei as lágrimas da cara e comecei a voltar.
Só vi a queda.
Tentei segurar a moto com a perna esquerda, pra não cair, mas meu joelho
estralou e foi uma dor desgramada.
A moto ficou ligada, a buzina apitando, os pneus rodando. Caí por cima da
sacola com caixa e tudo. Chorei mais. De dor, de raiva, de não saber como eu ia
levantar dali. Nem sei quanto tempo passou, mas o pedreiro veio correndo e
dizendo caiu foi, caiu foi.
Ele me ajudou a levantar a moto e empurrar até a rua. Fui mancando e
mandando uma mensagem pro celular da senhora da sacola. Quebrou o que tinha
dentro da caixa, me dê um endereço que eu vou aí pagar.
O pedreiro parou a moto no pezinho e fez cara de riso.
E tu é mototáxi, é?

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