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Terapia do movimento

Caminho, meio dia em ponto, e ignoro o suor até então manso escorrendo na minha
testa. É muito movimento na cidade – esse movimento até me esconde dos
problemas na cabeça. São problemas demasiados, os quais forçam-me a não os
esquecer. Mas pode ser uma terapia essa caminhada pelas calçadas repletas de gente.
Passar por trinta pessoas por minuto e nem sequer receber ou dar uma boa tarde pode
até doer um pouco – talvez seja um efeito colateral da terapia do movimento.
De tanto pensar nas pessoas que correm, fogem e (talvez) lutam contra seus
problemas internos (talvez eu consiga sentir na áurea dos outros o problema que
estão sentindo), começo a esquecer um pouco de mim e fico desligado do plano
físico. Olho de cima e vejo um rapazinho magro, com um semblante sempre positivo
e fugindo dos problemas da cabeça – ora, esse rapaz sou eu –. Continuo a observa-lo,
vejo que está sempre alerta, mas confia demais na intuição... olha nos olhos dos
outros na pura inocência de receber de volta um olhar e, quem sabe, uma leve
reverência – IMPOSSÍVEL, MERMÃO. Volto, então, ao corpo magro que transporta
meu fútil intelecto nessa cidade onde passam trinta fuckin pessoas por minuto e não
me dão nem um oi. Enfim, eu já tinha caminhado demais. Precisava agora de um
lugar para sentar. Caminhei até uma lanchonete, sentei e pedi o cardápio. Uma moça
simpática apareceu muito sorridente – o que me fez suspeitar se realmente era
simpatia ou era porque queria me vender seus produtos – e eu sorri pra ela e fiquei
ponderando sobre o que eu queria comer daquela lista (filtrando os preços, claro).
Pedi um x-bacon. Era só 8 reais, então, ok. Enquanto aguardava a comida, observava
as trinta pessoas por minuto que passavam do outro lado da vidraça. Alguns olhavam
sutilmente para mim, mas seguindo seus passos militarizados, marchavam em
direção ao limbo – tenho essa tese porque muitas das trinta pessoas por minuto que
vejo, não tenho as visto outra vez – e isso era algo que me deixava pensativo, só que
eu estava com fome e não queria nada além do x-bacon com uma coquinha gelada.
Volta a mulher com aquele sorriso cativante, me entrega o lanche e fica do outro lado
do balcão conversando com alguém de dentro da cozinha. Eu não conseguia ver a
face da outra pessoa, já que eu estava sentado. Rapidamente devorei aquele
hamburguer, bebi toda a coca da lata e fiquei calibrado outra vez. Passei uns quinze
minutos olhando para a calçada e fiquei checando se já tinha coragem de enfrentar
aquele sol de meio dia e meia. Tirei a carteira do bolso e paguei os 8 reais do x-
bacon e os 3 da coquinha. a moça agradeceu, me deu obrigado com aquele sorriso
muito autentico e lá saiu eu a enfrentar esse sol castigador de lombo.
De volta às calçadas da cidade onde trinta pessoas passam por minuto e nem me
olham no olho e nem me dão boa tarde e nem sequer um oi e, pior ainda, parece que
sou invisível. Isso dói bastante, assumo, mas preciso seguir a vida, tenho muita coisa
ainda pra fazer. Enfim, voltei à terapia do movimento. Caminhar é bom e cura a
alma, mas as trinta pessoas por minuto, por não falarem nem um oi, parecem NPC de
jogo, que se levarem uma cutucada, o máximo que podem fazer é soltar um ai ou
dizer “bem vindo a Jumanji”. Eu estou cansado de ser invisível. Caminhei mais um
pouco e um senhor que estava sentado no meio da calçada naquele calor escaldante
me pediu uma esmola. AMÉM, ALGUÉM ME VÊ. Sei que é apenas pela
necessidade, mas já é um lado. Eu só não dei dinheiro a ele porque precisava pra a
passagem de ônibus até minha casa. Confesso que foi difícil dizer não àquele velho
que infelizmente estava mais fudido do que eu. Fui até o ponto e fiquei esperando o
ônibus chegar. Enquanto isso, senti um cheiro maravilhoso de perfume doce vindo de
uma moça de cabelos cacheados que também esperava o ônibus – que mulher bonita,
aliás. Se as trinta pessoas por minuto que marchavam e as vezes trombavam em mim
não olhavam nos meus olhos, imagine aquele ser angelical. Forcei uns olhares dentro
de intervalos de cinco segundos. Fiz umas três vezes, mas foi em vão. A moça até
olhou uma ou duas vezes, mas nada que me levaria a acreditar que ela também me
achou angelical. Mas até que eu concordo um pouco com as não olhadas dela pra
mim, já que eu estava suado, com o rosto todo lascado do sol e com o cabelo
parecendo um pai do mato (dê um google). Enfim, não era hora para romance.
Falando nisso, eu nunca vi em filmes de romance, a mulher se apaixonar pelo rapaz
num ponto de ônibus meio dia em ponto num calor dos infernos, então não era hora
para amor. Chora coração.
Finalmente chega o ônibus. Dei sorte de ser um dos primeiros da fila. Pela contagem
que fiz, a moça não sentaria já que, entre mim e ela, tinha uma concentração de cê-cê
e pessoas brigando pelo lugar – a maioria tinha chego bem depois, povo sem
educação – fiquei pensando na situação da bixinha... e se a casa dela for longe?
Fiquei triste, juro.
A porta se abre e eu, rapidamente, entro antes daquele tumulto e tromba-tromba de
pessoas querendo um lugar dentro do ônibus. Sentei logo na frente pra não demorar
muito. Mas espere aí, ela não entrou no ônibus. Se concentrou em outra fila do
próximo ônibus que levava para um bairro um pouco distante do meu. Fiquei
frustrado, primeiro porque não tinha mais a terapia do movimento que me deixava
tranquilo; segundo porque estava com fome – pois o x-bacon não saciou toda minha
fome – e terceiro porque ela não sentou no ônibus pra eu sonhar com uma vida a dois
com aquela musa do ponto de ônibus. Só de raiva não dei lugar pra a véia que estava
em pé do meu lado. Fechei logo os olhos e abri a boca – pois sou bom ator – e deixei
a senhora reclamar com outra pessoa. Eu nem estava nas cadeiras preferenciais, por
que que essa véia estava conversando tanta abobrinha? Ora bolas!
Tinha nem como ouvir música, já que deixei o fone de ouvido em casa – quarto
motivo da frustração.
Desci do busão. Caminhei um pouquinho. Finalmente aquele fuzuê das trinta pessoas
por minuto cessou. Eram apenas 2 pessoas por hora, e por ironia, elas olharam nos
meus olhos, me deram oi e boa tarde. Cheguei na minha casinha às 14:15 e me deitei
um pouco.

Versão gramatica: Caminho pelo meio-dia em ponto e ignoro o suor que escorre
mansamente na minha testa. Há um movimento intenso na cidade - esse frenesi me
ajuda a afastar os problemas que ocupam minha mente. São tantos dilemas que me
forçam a não esquecê-los. No entanto, essa caminhada pelas calçadas cheias de
pessoas pode se tornar uma terapia. Passar por trinta indivíduos por minuto e nem
sequer trocar um bom dia pode doer um pouco - talvez seja um efeito colateral da
terapia em movimento.
Enquanto penso nas pessoas que correm, fogem e possivelmente lutam contra seus
próprios problemas (talvez eu consiga sentir a aura dos outros, captando um pouco
da dor que estão sentindo), começo a me esquecer um pouco de mim mesmo e me
desconectar do plano físico. Olho de cima e vejo um jovem magro, sempre com uma
expressão positiva, escapando dos problemas mentais - ora, esse jovem sou eu.
Continuo observando-o, noto que está sempre atento, mas confia excessivamente na
intuição. Ele olha nos olhos das pessoas com a pura inocência de esperar um olhar de
volta e talvez até uma saudação cordial - algo impossível, mano. Volto então para o
corpo magro que carrega meu insignificante intelecto nessa cidade onde passam
trinta pessoas malditas por minuto, sem me olharem nos olhos, sem me desejarem
um bom dia, nem mesmo um simples oi. Enfim, já caminhei o suficiente. Agora
preciso encontrar um lugar para sentar.
Dirijo-me a uma lanchonete, sento-me e peço o cardápio. Uma moça simpática surge
com um sorriso radiante - o que me faz suspeitar se é genuína simpatia ou se ela está
apenas tentando vender seus produtos. Eu sorrio de volta e pondero sobre o que
gostaria de comer daquela lista (considerando os preços, é claro). Opto por um x-
bacon. Apenas 8 reais, então está bom. Enquanto aguardo a comida, observo as trinta
pessoas por minuto que passam do outro lado do vidro. Alguns olham discretamente
para mim, mas continuam sua marcha militarizada em direção ao desconhecido -
tenho essa teoria porque muitas das trinta pessoas que vejo por minuto nunca mais as
encontro novamente. Isso me deixa pensativo, mas estou com fome e só quero o x-
bacon com uma coquinha gelada. A moça volta com aquele sorriso cativante,
entrega-me o lanche e conversa com alguém da cozinha do outro lado do balcão. Não
consigo ver o rosto da outra pessoa, já que estou sentado. Devoro rapidamente o
hambúrguer, bebo toda a coca da lata e me sinto revigorado. Passo cerca de quinze
minutos olhando para a calçada, decidindo se já tenho coragem de enfrentar o sol
implacável ao meio-dia em ponto. Tiro a carteira do bolso e pago os 8 reais do x-
bacon e os 3 reais da coquinha. A moça agradece, me diz obrigada com um sorriso
genuíno e eu me dirijo a enfrentar esse sol escaldante.
De volta às calçadas da cidade, onde trinta pessoas passam por minuto e nem olham
nos meus olhos, nem me dão um bom dia, parecem NPCs de um jogo que, se forem
cutucados, no máximo soltarão um gemido ou dirão "bem-vindo a Jumanji". Estou
cansado de ser invisível. Caminho um pouco mais e um senhor sentado no meio da
calçada, sob o sol escaldante, me pede esmola. Aleluia, alguém me vê! Sei que é
apenas devido à sua necessidade, mas já é um começo. No entanto, não lhe dou
dinheiro, pois preciso para a passagem de ônibus até minha casa. Confesso que foi
difícil dizer não àquele idoso que, infelizmente, estava em uma situação pior que a
minha. Vou até o ponto e aguardo a chegada do ônibus. Enquanto isso, sinto um
aroma maravilhoso de um perfume doce vindo de uma moça de cabelos cacheados
que também espera o ônibus - que mulher bonita, aliás. Se as trinta pessoas por
minuto que passavam por mim não olhavam nos meus olhos, imagine aquela criatura
angelical. Tento trocar olhares com ela em intervalos de cinco segundos. Faço isso
umas três vezes, mas é em vão. A moça até olha uma ou duas vezes, mas nada que
me faça acreditar que ela também me achou encantador. Mas, pensando bem,
concordo um pouco com a falta de olhares dela para mim, afinal estou suado, com o
rosto queimado pelo sol e o cabelo parecendo uma bagunça (pesquise no Google).
Enfim, não é hora para romance. Aliás, nunca vi nos filmes de romance uma mulher
se apaixonar por um homem em um ponto de ônibus ao meio-dia, sob um calor
infernal. Portanto, não é hora para o amor. Chore, coração.
Finalmente o ônibus chega. Sorte minha ser um dos primeiros na fila. Pela contagem
que fiz, a moça não entrará, pois entre ela e eu há uma multidão e pessoas disputando
lugar - a maioria chegou depois, sem educação alguma. Fico pensando na situação da
pobre moça... e se ela mora longe? Fico triste, juro. A porta se abre e, rapidamente,
entro antes da confusão e das pessoas se atropelando para conseguir um lugar no
ônibus. Sento-me na frente para não demorar muito. Mas espere aí, ela não entra no
ônibus. Ela se concentra em outra fila para o próximo ônibus que vai para um bairro
um pouco distante do meu. Fico frustrado, primeiro porque perdi a terapia em
movimento que me deixava tranquilo; segundo porque estou com fome - o x-bacon
não saciou totalmente minha fome - e terceiro porque ela não está no ônibus para eu
sonhar com uma vida a dois com aquela musa do ponto de ônibus. Por raiva, não dou
meu lugar para a senhora que está em pé ao meu lado. Fecho os olhos e abro a boca -
sou um bom ator - e deixo a senhora reclamar com outra pessoa. Nem sequer tenho
meus fones de ouvido para ouvir música - o quarto motivo de minha frustração.
Finalmente chego ao meu destino. Caminho um pouco mais. O frenesi das trinta
pessoas por minuto finalmente para. Agora, há apenas duas pessoas por hora, e,
ironicamente, elas olham nos meus olhos, dizem "oi" e "boa tarde". Chego à minha
humilde casinha às 14:15 e me deito um pouco.

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