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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CAMPINAS
2022
JULIA MARIANNO MARQUES REZENDE
CAMPINAS
2022
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751
Informações Complementares
Título em outro idioma: When nets and peebles invite children to play : maleablle and
plural educational environment
Palavras-chave em inglês:
Play
Imaginnattion
Childhood cultures
Educational environment
Body
Área de concentração: Educação
Titulação: Mestra em Educação
Banca examinadora:
Eliana Ayoub [Orientador]
Guilherme do Val Toledo Prado
Juliana Scarazzatto
Marília del Ponte de Assis
Data de defesa: 14-12-2022
Programa de Pós-Graduação: Educação
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
COMISSÃO JULGADORA:
A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na
Secretaria do Programa da Unidade.
CAMPINAS
2022
Agradeço à minha orientadora, Profa. Dra. Eliana Ayoub, a Nana, por sua sabedoria,
atenção, paciência, acolhimento e envolvimento em todas as etapas do trabalho. Ao Prof. Dr.
Guilherme Prado, por sua leitura atenta e comentários precisos durante o processo de
qualificação. Às parceiras de caminhada Profa. Dra. Juliana Scarazzatto e Profa. Dra. Marília
del Ponte de Assis, pelo encorajamento e diálogo constantes. Aos meus colegas de laboratório
(Daniela, Eduardo, Isabel, Ivan, Midore e Rafael), pela partilha nos estudos e nas conversas,
em especial ao Eduardo Ribeiro, que generosamente contribuiu para a revisão do texto.
Agradeço às(aos) minhas(meus) mestras(es) Ana Angelica Albano, Ana Amélia Pereira
(Peo), Zélia Monteiro, Beth Bastos, Nichan Dichtchekenian e Tales Ab´Sáber, pelos
ensinamentos e inspirações.
CAPÍTULO 1
Uma das brincadeiras de que eu mais gostava quando pequena era pular corda.
Gostava de pular, de cantar e de bater a corda ritmada. A lembrança dessa brincadeira é para
mim ensolarada, por mais que eu tenha brincado tantas vezes e, com certeza, em dias nublados
também. Além da fluidez e dos raios de sol, eu me lembro das vozes femininas. Éramos todas
meninas, cantando em conjunto, sabíamos o repertório de cor. Pulei corda dos 5 aos 12 anos de
idade, em São Paulo-SP, cidade em que nasci e morei durante maior parte da infância. Minhas
companheiras eram a vizinha, a irmã, as colegas de escola e as muitas outras crianças que
encontrei em festas, em quintais e casas de amigas. Com todas elas, não era necessário ensaiar.
Bastava alguém começar: “Um homem bateu em minha porta e eu abri”, que as restantes
entoavam em coro as diversas canções, fazendo a corda girar.
Apesar da sensação de fluidez e unicidade que experimentava nessa brincadeira,
desafiadoramente ainda fazia parte dela, uma modalidade diferente, a qual chamávamos de “de
fora”. Nessa modalidade, era preciso “entrar” na corda que já estava girando, já estava em
movimento. Recordo-me que não importava quantas vezes eu treinasse, só de ver aquela corda
rodando sem mim, sabendo que eu precisaria me intrometer no meio daquele movimento,
daquela vida em andamento, eu me atrapalhava. Por fim, eu tomava coragem e me deslocava
para o centro da corda, ou melhor dizendo, para o ponto que eu projetava imageticamente como
centro, mensurando espaço e movimento. Ao me deslocar, por vezes, atingia o objetivo e, uma
vez estando bem posicionada, iniciava minha sequência de pulos com ritmo e tranquilidade.
Outras vezes, eu me antecipava, chegava cedo demais, errava o ponto, tropeçava na corda ou
deixava que ela batesse em meu ombro.
A lembrança da brincadeira de corda, nas suas diferentes modalidades, ajuda-me a
compreender os processos investigativos referentes à presente dissertação, pois, ao empreendê-
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los, alternei momentos em que me senti dentro da pesquisa, tranquila e bem posicionada, como
se cantasse em uníssono com autoras(es) e demais participantes, e momentos em que me senti
deslocada, desarmonizando com os contextos, tropeçando, caindo, ou ainda do lado de fora,
buscando coragem para entrar.
Por vezes, achei insuficiente o que eu havia registrado durante o campo, em outras,
as notações me pareceram excessivas e receei não fazer jus ao observado, ou ao que foi expresso
pelos participantes e às histórias vividas em conjunto. Nesses momentos, ao resgatar o fluxo do
vivido, era como se eu não tivesse mais permissão de adentrá-lo, como se minhas notações não
mais me pertencessem. Os textos assumiam caráter de alteridade, mesmo para mim que os
escrevera. Além disso, ora encontrava perspectivas e conceitos em comum com os autores
estudados, ora deparava-me com incongruências.
Jean Clandinin e Michael Connelly (2015) afirmam que se colocar num texto é tão
difícil para o autor, como colocar-se em uma cultura é difícil para um etnólogo. Ressaltam que,
ao entrar em campo, a(o) pesquisadora(or) está entrando em uma vida em movimento, ou
melhor, em muitas vidas, pois os participantes e as realidades estudadas estão em constante
processo de mudanças, assim como a(o) própria(o) pesquisadora(or). São vidas, caminhos, que
se entrecruzam em determinado momento, mas que já existiam antes do encontro e continuarão
a existir para além dele.
Mikhail Bakhtin (2011b, p. 272) afirma que, quando nos dispomos a comunicar
algo, estamos, de alguma forma, respondendo a enunciados anteriores, uma vez que “Cada
enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados”.
Foram muitas as vezes que interrompi a redação para inverter a ordem dos
capítulos, refazer o caminho lógico dos argumentos e revisitar os episódios narrados. Mal
escrevia uma palavra, lembrava-me de um trecho lido, um autor, uma anotação do diário de
campo, uma cena registrada pelo meu celular, uma cena registrada na memória, a fala de uma
professora e, dessa forma, o texto parava, e eu o recomeçava. As telas do meu computador se
revezavam continuamente entre a bibliografia de referência, as imagens de campo, antigos
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textos escritos e buscas ao dicionário. Livros abertos sobre a mesa juntamente me serviam de
consulta. Cada argumentação que eu assumia parecia ter sempre mil começos, porque, ao longo
da escrita, descobria que os pontos de partida que eu havia estipulado, na verdade eram meios.
Havia sempre um começo do começo. Uma experiência, uma convicção, uma leitura, algo que
veio antes, que foi originário e que eu não podia prosseguir sem mencionar.
Além dos múltiplos inícios, durante a escrita, cada elemento do campo e da
literatura me lançava a incógnitas, sensações, observações e inquietudes, sendo difícil manejar
a frustração de não conseguir abranger todos os inícios, perspectivas e elos que se mostravam
potenciais organizadores dos diálogos.
Em texto-carta dedicado a suas(seus) orientandas(os), Eliana Ayoub (2021, p. 63)
diz: “Fico o tempo todo lidando com a ansiedade de ter de priorizar o que trago ou não para os
diálogos. Às vezes me percebo desejando trazer o mundo para cá! Doce (e amarga) ilusão: o
mundo não cabe neste livro e se quer em lugar algum...”. Neste mesmo texto, a autora aponta
para o lado prazeroso e favorecedor do aprendizado que a escrita pode proporcionar: “Curioso
reparar quão trabalhosa, difícil e, ao mesmo tempo, prazeroso está sendo esta escrita. A cada
momento tenho de fazer opções, decidir o que entra e o que não entra no texto. Demoro nessas
escolhas e aprendo muito com elas” (AYOUB, 2021, p. 63).
Neste percurso não estava sozinha. Ao compartilhar meus textos com o grupo de
pesquisa da Faculdade de Educação da Unicamp, do qual faço parte, o Laboratório de Estudos
sobre Arte, Corpo e Educação (Laborarte), por meio da leitura atenta da orientadora desta
pesquisa, Profa. Dra. Eliana Ayoub (Nana), das provocações do Prof. Dr. Guilherme Prado
(membro da banca de qualificação) e das inúmeras conversas e leituras realizadas com
amigas(os), colegas de trabalho e familiares, fui conseguindo alcançar uma escrita para além
de mim, uma narrativa com alcance de sentidos compartilhados, estabelecidos na minha relação
com as(os) pares, com as(os) demais participantes da pesquisa, com autoras(es) e com as
referências que li e com quem dialoguei. O texto fluiu, justamente, quando reconheci que,
apesar de ter participado de todo o processo de pesquisa, eu, de partida, já estava
simultaneamente dentro e fora, pois o que eu pensava, sentia e escrevia já era para além de
mim, continha um outro, muitos outros – era meu, no entanto, era de outros também.
Adail Sobral, Rosaura Soligo e Guilherme Prado (2017, p. 178) se referem ao texto
de pesquisa como a um concerto e dizem que as vozes que se tornam presentes em uma
dissertação podem ser dissonantes: “O discurso tendencialmente dialógico está voltado para
tornar presentes as vozes que o constituem, para a instauração, mais ou menos explícita, de um
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Porém, esse mundo único do conhecimento não pode ser percebido como o único todo
concreto, preenchido pela diversidade de qualidade da existência, da mesma forma
como percebemos uma paisagem, uma cena dramática, um edifício, etc., pois a
percepção efetiva de um todo concreto pressupõe o lugar plenamente definido do
contemplador, sua singularidade e possibilidade de encarnação; o mundo do
conhecimento e cada um de seus elementos só podem ser supostos. (BAKHTIN,
2011a, p. 22)
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A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar
e na cidade – é ela própria, num certo sentido, uma floresta artesanal de comunicação.
Ela não está interessada em transmitir o “O puro em si” da coisa narrada, como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida
retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do
oleiro na argila do vaso”
Jorge Larrosa (2004, p. 12-13) afirma que “El ser humano es um ser que se
interpreta y, para esa autointerpretación, utiliza fundamentalmente formas narrativas”1. Por
conseguinte, os textos, que tecemos sobre nós mesmos e que nos possibilitam dar sentido à vida
e ao que se passa conosco, referem-se à temporalidade intrinsecamente humana, que se constitui
entre o nascimento e a morte, entre princípio e fim. São formulados a partir do ponto de vista
do devir, da trajetória (LARROSA, 2004).
Tal concepção vai ao encontro do que Clandinin e Connelly (2015, p. 63)
evidenciam sobre a temporalidade dentro da pesquisa narrativa: “a temporalidade é uma
questão central, em que localizar as coisas no tempo é a forma de pensar sobre elas, ou seja,
pensar não como algo que aconteceu naquele momento, mas sim como uma expressão de algo
acontecendo ao longo do tempo”.
Benjamin (2017b) discorre sobre memória e reminiscências em “A imagem de
Proust” e se refere à narrativa de À recherche du temps perdu 2 como “tecido de rememorações”.
1
O ser humano é um ser que se interpreta e, para essa autointerpretação, utiliza formas narrativas
(tradução livre da autora)
2
Em busca do tempo perdido (tradução livre da autora).
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O autor afirma que Proust não descreveu sua vida como de fato ela aconteceu e, sim, a vida
rememorada. Complementa a afirmação, fazendo alusão ao trabalho de tecelagem de Penélope,
ressaltando o esquecimento como elemento fundamental do tecido:
Pois o principal, para o autor que rememora, não é absolutamente o que ele viveu,
mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria
preferível falar o trabalho de Penélope do Esquecimento? Não se encontra a memória
involuntária de Proust muito mais próxima do esquecimento do que daquilo que
chamamos em geral de rememoração? E não seria esse trabalho de reminiscência
espontânea, em que a rememoração é a trama e o esquecimento a urdidura, muito
antes o oposto do trabalho de Penélope, ao invés de sua cópia? (BENJAMIN, 2017b,
p. 37)
Breve roteiro
3
Lina Forneiro.
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narrativa como abordagem metodológica e descrevo os lugares por onde passei e de onde falo,
tendo como tema principal as experiências que acredito constitutivas do meu interesse em
pesquisar modos de compreensão e produção infantis, com ênfase nas linguagens lúdica e
corporal.
Na seção “Inspiração etnográfica – uma professora café-com-leite”, conto como a
aproximação com a sociologia e a antropologia da infância consolidaram os caminhos
investigativos do presente trabalho e me auxiliaram a entender meu jeito de estar e conviver
com as crianças. Em seguida, passo a descrever a entrada em campo e o convívio com as(os)
participantes. Com intuito de preservar a privacidade deles, usarei nomes fictícios para as
crianças e equipe pedagógica escolar4.
No capítulo 2 “Pedrinhas e mundos palma das mãos”, discorro sobre conceito de
ambiente educador, sobre brincar, baseada principalmente na abordagem winnicottiana, e sobre
a imaginação material e espacial, próprias da perspectiva bachelariana.
No capítulo 3 “O brincar no ambiente maleável e plural: intimidades entre crianças
e matéria”, descrevo como as crianças usam ludicamente elementos das composições e, com o
intuito de adentrar a zona de contato e afetação múltipla entre imaginação e materialidade,
concentro as narrativas em quatro temas – concavidade, massa, peso e compasso.
Após este breve roteiro, retomo as vozes da infância, enveredando pelos caminhos
formativos explicitados na próxima seção.
4
Projeto de pesquisa foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas e
Sociais (CEP-CHS) da Unicamp e aprovado no início de 2019. Constam anexados o parecer do CEP-
CHS (anexo 1) e os modelos dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) referentes à
presente pesquisa (anexo 2).
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recordo, como se eu estivesse estado lá, presenciando meu tio brincando de esconde-esconde e
trancado, sem querer, na geladeira que, na época, tinha trava; como se eu sentisse a textura do
colchão que era colocado na escada para virar escorregador, quando meus avós saiam à noite;
ou ainda, como se eu tivesse achado os chicletes que as crianças guardavam debaixo da cama
para voltar a mascar no dia seguinte. Essas cenas me foram narradas inúmeras vezes por minha
mãe e tios que, além das próprias vivências, contavam similarmente sobre a infância de seus
pais (meus avós). Gosto muito de “lembrar” quando minha avó, com 9 anos, já encantada por
meu avô, enviou uma cartinha a ele na escola que dizia “Eu sou aquela que dará pulinhos no
recreio”. E ela deu mesmo! Conta meu avô, que logo se apaixonou por aqueles pulinhos.
A vida de casal de meus avós se iniciou em Botucatu/SP e depois de alguns anos,
em 1962, eles foram para Cotia/SP, cidade próxima à cidade de São Paulo, na Granja Vianna,
região, na época, bem pouco urbanizada, com pequenas florestas e muitos terrenos baldios. Ao
crescerem, os filhos igualmente moraram em casas da mesma região, de tal sorte que eu passei
minha infância na Granja, com intenso convívio com primos, tios e avós. Lá, na década de
1980, era comum faltar energia elétrica e haver interrupção da linha telefônica. Lembro-me de
que algumas vezes fui com meus pais a uma fazenda próxima buscar leite de vaca,
armazenando-o em galões, e à casa de plantações comprar verduras no pé. Recordo ainda que
era preciso ficar atenta(o) ao caminho de carro, pois, atravessando a rua, havia cavalos, vacas e
carneiros e, quando a pé, tínhamos de saber onde ficavam os poços d’água que eram muitos no
bairro, já que não tinha água encanada.
Brinquei com minha irmã e primos nos quintais, morros e ruas de pouco acesso.
Fazíamos poções com flores e terra, salvávamos insetos nos lagos e piscinas, andávamos pelo
chão de pedras sem pisar nas linhas, procurávamos trevo de quatro folhas, quebrávamos as
suculentas para ver e sentir sua umidade e passávamos em frente ao canil dos cachorros só para
ouvi-los latir e sair correndo de medo.
Nós, crianças, ocupávamos e habitávamos as casas e os quintais por meio da
brincadeira. Conhecíamos os cantinhos, as melhores árvores para subir, os lugares onde se
criava lama depois da chuva, onde colher fruta no pé, em que móveis se esconder, onde havia
pó, onde cheirava a naftalina, que parte do gramado era boa para dar estrelas, os melhores
lençóis para fazer cabaninhas e os colchões mais macios para pular. Do nosso ponto de vista,
as casas, os terrenos e os quintais eram como se fossem comunitários, ou seja, eram todos
nossos. Do mesmo jeito, como eram nossas as histórias contadas pelos pais e avós.
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Era dessa forma, por inteiro, que eu me sentia ao conviver com as crianças
brincando.
Depois da experiência na Casa Redonda, decidi seguir a carreira educacional, que
por dez anos exerci em concomitância à clínica onde atuava como psicoterapeuta. Em 2009,
formei-me em pedagogia pela Universidade Brasileira Luterana do Rio Grande do Sul (EaD) e,
em 2011, optei por encerrar a clínica, concentrando minha atuação na escola. Atualmente, faz
21 anos que trabalho nos segmentos educação infantil e ensino fundamental I, tendo exercido
as funções de estagiária, auxiliar de classe, professora polivalente, consultora pedagógica e,
atualmente, orientadora educacional. Trabalhei nas instituições: Escola Casa Redonda (dois
anos), Escola Viva (seis anos), Colégio Santa Cruz (10 anos), Escola Arapoti (1 ano) e Colégio
Visconde de Porto Seguro5 (atual), todas situadas na cidade de São Paulo.
Nesse percurso de trabalho em diferentes escolas, algumas se assemelhavam à Casa
Redonda, tendo o brincar como elemento central dos processos educativos, e outras não. Mas
em todas elas, de algum jeito, as crianças brincavam. As situações lúdicas das diferentes
instituições não eram iguais entre si, mas eu notava que carregavam traços em comum. Era
visível como nos momentos de brincar, a relação entre pares e adultos da escola se modificava.
Eu intuía, ou melhor, tinha a certeza de que nessas situações algo diferente acontecia. Quando
me refiro a acontecer algo diferente, é no sentido da experiência, apontado por Larrosa (2011,
p. 5, grifo do autor), algo que “me passa”:
A experiência é ‘isso que me passa’. Vamos primeiro com isso. A experiência
5
Colégio fundado, em 1878 pela comunidade imigrante alemã da cidade de São Paulo. A unidade em
que trabalho se situa no Panamby, zona sul da Cidade de São Paulo, SP.
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aprendi a observar por meio de variadas experiências brincantes, mas que ganhou amplitude e
especificidades a partir da minha trajetória corporal, a qual narro a seguir.
Cresci vendo minha mãe subir em árvores, balançar-se em redes, descer dunas e
montanhas correndo. Ela nunca foi esportista nem bailarina, mas sempre apresentou vivacidade
e alegria corporal, de maneira que os cuidados maternos se apresentaram para mim
intensamente atravessados por essa linguagem. Nessa interação, eu me sentia corajosa e
habilidosa. Adorava, por exemplo, escalar as pernas dela, segurando em suas mãos, para, no
fim, dar uma cambalhota. Outra brincadeira que em casa era quase diária, era o “breque”. Minha
mãe me punha sentada em seus calcanhares e, com o impulso da perna, jogava-me para o alto
e me pegava de volta, acolhendo-me com a planta dos pés. Meu pai não tinha a mesma
vivacidade corporal, mas, nas festas, acompanhava minha mãe na pista de dança. Os dois
dançavam muito, sem parar! Uma dança “puladinha” que misturava frevo, rockabilly e valsa.
Estilos que marcaram a história do casal, que viveu alguns anos em Recife/PE, que tem próxima
descendência europeia e cuja adolescência foi nos anos 1960.
Eu, como era de se imaginar, vivia pulando também. Amava correr, fazer gestos
gímnicos como parada de mão, ponte, estrela, cambalhota para trás e para frente e girar, girar
até ficar tonta. Morei em Recife de 1984 a 1986, e lá tive contato com as danças populares. Na
“Escola Parque do Recife”, onde estudei, nós aprendíamos durante os recreios passos de
ciranda, frevo, cavalo marinho e maracatu. Nos fins de semana, havia grandes cirandas nas
praças. Lembro-me de dançar e dar as mãos para pessoas que não conhecia. Todos, adultos e
crianças, cantando alto, ritmados, ao som do ganzá e da zabumba. Eu ficava fascinada pela
sintonia dos diversos corpos em movimento e pelo diálogo alegre entre dança e música.
Déborah França (2011), ao descrever a ciranda, tendo como referência a composição do músico
pernambucano Capiba, ressalta os elementos que outrora tanto me encantaram: “Mão com
mão”; diversas faixas etárias; canto e dança imbricados.
6
Letra da música “Minha Ciranda”, de Lourenço Capiba.
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Quando tinha dez anos, fiz aulas de dança. Comecei com balé, mas meu cabelo era
crespo, não se segurava na redinha, tinha alergia ao tule e me achava horrorosa naquele colã.
Mais tarde, ingressei nas aulas da bailarina e coreógrafa Beth Bastos, voltadas para consciência
corporal, baseadas nos princípios desenvolvidos pelo bailarino e coreógrafo Klauss Vianna.
Nessas aulas, eu não precisava fazer nada muito além do que era capaz. No entanto,
os movimentos eram lentos e tão diferentes do que estava acostumada a executar no dia a dia,
que era como se eu estivesse aprendendo uma outra língua. Todas as alunas estavam. Portanto,
não havia conseguir ou não conseguir, mas sim, conhecer, aprender e criar novas possibilidades.
Não havia metas a serem alcançadas, mas um processo que gerava caminhos que, ao serem
percorridos, abriam novas possibilidades.
Fui aluna da Beth Bastos durante toda minha adolescência e começo de vida adulta.
Por intermédio dela, conheci e me apaixonei pelo universo da dança contemporânea, tornando-
me conjuntamente aluna da bailarina Zélia Monteiro. Jussara Miller (2005) enfatiza seis tópicos
corporais trabalhados na abordagem Klauss Vianna, que compõem o que a autora cunhou de
“acordar”. São eles: presença, articulações, peso, apoios, resistência, oposições e eixo global.
Ainda segundo a autora, trata-se de percurso de auto-observação, conduzido pelos sentidos, o
25
despertar sensorial, que resulta “em uma Presença: o estar presente aqui e agora” (MILLER,
2005, p. 68).
Logo, por 20 anos vivi a dança, sintonizada com o peso dos ossos, abertura de
articulações, equilíbrio dinâmico, atenção à respiração, enrolamento da coluna, vivacidade da
ponta dos pés ao cocuruto da cabeça.
Além das aulas, fiz parte de um grupo de criação em dança por cinco anos, em
conjunto com outras alunas da Beth e da Zélia, o que me ajudou a compreender as dimensões
expressivas, estéticas e criativas que a experiência corporal e os processos investigativos,
ligados a ela, podem alcançar. Compreensão esta que se amplia nas palavras de Monteiro
(2007, n.p):
Todos os bailarinos procuram essas técnicas, mas procuram como técnicas de
fisioterapia justamente para ajudar na tal da preparação do corpo, para deixar
o corpo preparado. E do Klauss não era para deixar melhor preparado, isso é
muito importante que fique claro. Podia até ter essa função também, mas ia
muito além disso, era esse próprio trabalho de conhecimento e sensibilização
do corpo que fazia a cognição para a criação no movimento e no gesto, na
dança.
Vieira (2015, p. 141) aponta igualmente para a importância da articulação entre a técnica
e o processo criativo, dentro da perspectiva de Vianna: “Na técnica de Vianna, o viés somático
está sempre articulado às questões técnico-expressivas e criativas como um sistema dinâmico
de construção corporal para o processo criativo do intérprete-criador”.
Nessa abordagem, o corpo é entendido como uma espécie de “captador”, favorecedor
dos processos criativos. Em entrevista para o Projeto “Klauss Vianna, um resgate histórico”,
Monteiro (2007, n.p) afirma: “Era baseado também na questão do ser humano, do corpo como
um captador [...]. Um alvo sensível que é capaz de captar e dar respostas, leituras e respostas
para o ambiente, um corpo que permeava nesse sentido”.
As experiências vividas com o grupo de dança do qual fui membro me ajudaram a
compor gestos e movimentos a partir da sensorialidade, da sensação e do contato (com corpo
dos[as] outros(as) bailarinos(as), com objetos e ambiente). Nesse percurso, reativei a própria
infância. Miller (2005, p. 105) afirma que “Cada corpo é vestido de seus vestígios”, que,
segundo a autora, são memórias registradas no decorrer da vida que se expressam graças à
estrutura e à organização corporal de cada pessoa.
Esses vestígios se equiparam aos gestos/imagens que cada pessoa carrega consigo, aos
quais Ayoub (2012, p. 279) faz referência, ao discorrer sobre linguagem e compreensão à luz
26
dos conceitos bakhtinianos. Segundo a autora, da mesma forma como a palavra vai à palavra,
o gesto vai ao gesto, uma vez que: “Por mais que estejamos embotados em nossa gestualidade,
em nossa expressividade corporal, não somos seres mudos - privados de gestos. Ao contrário,
o gesto/imagem que apreendo do outro, reverbera em mim mediatizado/a pelos gestos/imagens
que trago comigo”. Nessa ótica, como bem aponta Ayoub (2001, p.56-57): “[...] a expressão
corporal caracteriza-se como uma das linguagens fundamentais a serem trabalhadas na infância.
A riqueza de possibilidades da linguagem corporal revela um universo a ser vivenciado,
conhecido, desfrutado, com prazer e alegria. [...]”.
Minha trajetória na dança foi qualificada pela experiência comunitária e a sensação de
pertencimento, de maneira semelhante ao brincar como narrei anteriormente, marcando as
retinas e enchendo meus olhos de sol (BARROS, 2010). Tornei-me, então, uma educadora
sensível às linguagens lúdica e corporal, principalmente nas suas dimensões criativa e
expressiva.
Quando, em 2018, entrei para o Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), do qual faz parte a presente
dissertação, foi como um batizado, no sentido a que se referiu Peo (2014) na história da pipa.
Foi a partir desse programa que pude tecer simbolicamente um fio por inteiro, entrecruzando
as experiências lúdicas de infância, somadas às formações profissional e acadêmica e ao vivido
em campo, ampliando e aprofundando pontos de vista no diálogo com autoras(es), nas
discussões e nas reflexões próprias às situações formativas da pós-graduação e na elaboração
do texto de pesquisa.
Outro aspecto a ser considerado é que, muitas vezes, por existir um espaço
específico para um trabalho corporal nas aulas de educação física, nos demais
tempos da jornada cotidiana, acentua-se um trabalho de natureza intelectual
no qual a dimensão expressiva por meio da gestualidade é praticamente
esquecida.
comunidade adulta/educadora, que era foco das problemáticas das discussões das quais
participei. Discussões essas pertinentes ao contexto histórico e social no qual eu estava inserida,
marcado pelas problemáticas da educação moderna e da concepção moderna de infância,
apontadas por diversas(os) autoras(es) (ÀRIES, 1981; BROUGÈRE, 1998; CARVALHO;
PEDROSA, 2002; CORSARO, 2005, 2011; DELGADO, 2013; DELGADO ; MÜLLER, 2005;
FRIEDMAN, 2015, 2016; KRAMER, 2015; MÜLLER, 2006; PINTO, 1997; SARMENTO,
2002, 2004, 2008, 2011; SIROTA, 2001, 20127). Segundo esse entendimento, a infância é uma
etapa do desenvolvimento, caracterizada por inacabamento, dependência, imaturidade e
inaptidão, cabendo à comunidade adulta mostrar e pavimentar os caminhos para a saída dessa
condição. Assim, o tempo futuro, como ápice do crescimento e maturação, seria o sinal de
possível completude a ser alcançada. Solange Jobim e Souza (2015, p. 50) enumera os traços
atribuídos a esse tempo, conforme a abordagem moderna de desenvolvimento, o saber linear,
cumulativo, homogêneo e vazio:
Sonia Kramer (2015, p. 17), ao fazer referência à sua própria formação, descreve
modos modernos de conceber a infância, que se assemelham aos que eu aprendi durante as
graduações, em psicologia e pedagogia:
Concepção que, segundo Jacinto Manuel Sarmento (2002, p. 2), está aliada à ideia
de déficit.
7
Philippe Ariés, Gilles Brougère, Maria Isabel Pedrosa, Ana Maria Carvalho, Willian Corsaro, Ana
Cristina Coll Delgado, Fernanda Müller, Manuel Pinto, Manuel Sarmento, Regine Sirota.
29
modernidade: criança é o que não fala (infans), o que não tem luz (o a-luno),
o que não trabalha, o que não tem direitos políticos, o que não é imputável, o
que não tem responsabilidade parental ou judicial, o que carece de razão, etc.
ser amada e protegida. Nesse entendimento, subjaz a ideia de que o ambiente deve atuar da
maneira mais reduzida possível, preservando a inocência e a espontaneidade infantil (PINTO,
1997).
Sobre o mesmo tema, Sarmento (2004) afirma que saberes da pediatria, da
psicologia do desenvolvimento e da pedagogia se constituíram ao longo de 250 anos em torno
desse dualismo, originando outras abordagens que se contrapõem, como: rousseaunianas e
montaigneanas; construtivismo e comportamentalismo; pedagogias centradas no prazer;
pedagogias centradas no esforço; proposições ligadas à liberdade; e proposições ligadas ao
controle.
Os óculos que a maioria de minhas colegas e eu vestíamos, durante os anos 1990 e
início de 2000, permitia-nos enxergar as crianças e as infâncias vividas no contexto escolar,
somente por esse dualismo. Logo, o interesse e o encantamento que eu nutria pelo brincar se
mostravam “perigosos”, como se a proximidade com a brincadeira automaticamente me
posicionasse no centro do pensamento romântico, rechaçando a educação formal, o
aprendizado, a cultura e o contexto social. Segundo Larrosa (2004, p. 21), “O sujeito moderno
se relaciona com o acontecimento do ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade.
Sempre se pergunta sobre o que pode fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo,
consertar algo”.
É nesse sentido que Pinto (1997) observa a semelhança entre as duas pontas da
dualidade anteriormente citada, uma vez que, em todos os casos, se evidencia a intervenção do
adulto como fundamental na formação de meninas e meninos que, segundo as duas linhas de
pensamento, é um ser deficiente, que ora necessita ser protegido e salvaguardado dos riscos
impostos pela sociedade, ora necessita de instrução para ser levado a deixar de ser o que é até
se tornar um adulto.
próprias, o que não significa dizer que se situam à parte do mundo adulto.
Como afirmam Ana Cristina Delgado e Fernanda Müller, (2005, p. 164), as
culturas de infância não são produzidas num vazio social, e as crianças não têm completa
autonomia no processo de socialização, “as respostas e reações, os jogos sociodramáticos, as
brincadeiras e as interpretações da realidade são também produtos das interações com adultos
e crianças”. As culturas de infância se produzem dentro de contextos determinados. Nessa ótica,
a criança não é vista como um ser abstrato e universal e, sim, pertencente a grupos concretos e
contextualizados, sob os quais incidem outros fatores de diferenças, que vão além do recorte
geracional, como recortes de gênero, raça, posição social, entre outros. Delgado e Müller (2005)
se referem a essas culturas como “múltiplas infâncias”.
Sarmento (2002, p. 3) salienta, no entanto, que apesar de esses fatores de diferença
incidirem sobre as infâncias, acarretando múltiplas culturas, há uma condição comum a elas:
todas são uma “geração desprovida de condições autônomas de sobrevivência e de crescimento
e que estão sob o controlo da geração adulta”. As culturas infantis dispõem de uma
“universalidade” que ultrapassa os limites da inserção cultural local de cada criança,
apresentando formas próprias e específicas de interpretação desses contextos. Nas palavras do
autor: “Não obstante, a ‘marca’ da geração torna-se patente em todas as culturas infantis como
denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais
para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção cultural”.
(SARMENTO, 2002, p. 4, grifo do autor).
Na interação com os adultos, as crianças são expostas a crenças, valores e
conhecimentos, que são transformados, gerando juízos, interpretações infantis que favorecem
a configuração e as mudanças das formas sociais.
Assim, as crianças não recebem apenas uma cultura constituída que lhes
atribui um lugar e papeis sociais, mas operam transformações nessa cultura,
seja sob a forma como a interpretam e integram, seja nos efeitos que nela
produzem, a partir das suas próprias práticas (a arte contemporânea, por
exemplo, ilustra bem os efeitos das expressões infantis integradas no
imaginário colectivo). (SARMENTO, 2009, p. 15)
Willian Corsaro (2005), um dos pioneiros na área, já havia apontado para a maneira
própria das crianças de compreender e atuar no mundo, tornando-as capazes de provocar e
reinventar os sistemas culturais em que estão inseridas. De acordo com o autor, as crianças
produzem e partilham entre si um conjunto de atividades, rotinas, artefatos, valores e
33
preocupações – que designou como cultura de pares –, por meio dos quais atribuem sentidos às
suas experiências, modo interpretativo – o que designou como reprodução interpretativa. Ou
seja, para Corsaro (2005), as crianças são ativas nos processos de construção de conhecimento
e, para além disso, são autoras e produzem saberes compartilhados, imprimindo suas marcas.
Maria Leticia Nascimento (2016) aborda esses conceitos, afirmando que a apropriação e a
interpretação dos sistemas culturais adultos, por parte das crianças, provocam a reinvenção da
cultura, inter-relacionando os mundos sociais/culturais. “Isto é possível a partir do coletivo, da
atividade em comum, na qual as crianças negociam, partilham e criam culturas com outras
crianças e com outros adultos” (NASCIMENTO, 2016, p. 34).
Como exemplo de renovações operadas por meio da produção cultural infantil,
Sarmento (2002, p. 17) cita artistas que fizeram um esforço epistemológico para rever o mundo
humano, como Miró, Paul Klee, Dubuffet e Paula Rego, iluminando “os olhos dos adultos com
a redescoberta dos traços das crianças”.
Corsaro (2005, p. 443, grifo do autor) discute a relação do adulto pesquisador
interessado pelas culturas infantis e ressalta que se trata de aprender com as crianças e não sobre
as crianças. “Discuto como, com o tempo, passei a fazer ‘pesquisa com, e não mais sobre,
crianças’, ou seja, como meus métodos de coleta de dados acabaram se tornando gradualmente
mais abertos à contribuição direta das crianças”.
Segundo Meirelles (2015, p. 20), isso exige “[...] a liberdade de não buscar
respostas, mas nos deixar levar pelas ações e pelas expressões infantis, em uma atitude de
aprendiz das crianças”. Sim, é uma liberdade exigente. Exige deslocamentos, o abandono da
posição “adultocêntrica” e a aceitação da condição de aprendiz.
Esse seria o caminho da abordagem de investigação etnográfica, que tem sido
recorrentemente adotada pelos pesquisadores das culturas de infância, alguns dos quais citei
anteriormente (CARVALHO; PEDROSA, 2002; CORSARO, 2005, 2011; DELGADO, 2013;
DELGADO; MÜLLER, 2005; MÜLLER, 2006; PINTO, 1997; SARMENTO, 2002, 2004,
2008, 2011; SIROTA, 2001, 2012). Segundo essa ótica, para conhecer as diferentes culturas, é
necessário inserir-se no contexto e conviver com suas(seus) atrizes(atores) sociais, de forma a
se aproximar de seus modos de interpretar e viver o cotidiano, as formações de grupos, a
distribuição de poderes, papéis, etc. Isso não significa, porém, isentar-se da própria
singularidade; pelo contrário, cabe estar consciente de si, dos impactos vividos durante o
processo de investigação, tendo como base de análise a produção de dados gerados a partir do
convívio.
34
Friedman (2015, p. 42) indica que esse tipo de investigação implica em “se colocar
na pele do outro”, em constante diálogo com as percepções da(o) pesquisadora(or) e com a sua
“criança interior”. Luiza Lameirão (2015, p. 78) afirma que, no trabalho investigativo, “O
importante é chegar às perguntas que muitas vezes permanecem, por anos, como enigmas em
nossa vida” e, em seguida, cita as palavras do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (1999 apud
LAMEIRÃO, 2015, p. 344): “Não corras, vai devagar, que aonde tens de ir só cabe a ti! Vai
devagar, não corras, que a criança de teu eu, recém-nascida, eterna, não te pode seguir!”. Para
mim, ir devagar e ter comigo as perguntas que permanecem é ir por inteiro, ir batizada, como
o fio da pipa referida pela Peo (2014).
Houve um tempo em que eu estremecia ao ouvir a expressão “contato com criança
interior”. Imersa no já citado dualismo – ambientalismo x romantismo – lia essa proposta como
“em busca da infância romantizada”. Portanto, poder confiar no caminho indicado pelas
crianças e suas culturas tem sido, para mim, o grande legado das pesquisas realizadas no campo
da sociologia. Ancorada nesse ponto de vista, compreendi a escola como lugar de produção
cultural e deixei de considerar meninas e meninos unicamente como alvo de minha atuação,
vislumbrando o entendimento de que elas(eles) já estão inseridas em contextos sociais e
históricos, já possuem cultura e conhecimento de mundo, ou seja, são coautoras(es) do mundo
como o conhecemos. E é junto, é com elas(eles) e não para elas(eles) que atualmente direciono
minha ação educativa e o desenvolvimento da presente pesquisa.
À vista disso, estar com as crianças, convivendo e observando seus modos de viver
o cotidiano, não significava um afastamento da minha responsabilidade como professora, mas
o contrário, era por essa via que eu poderia conquistar elementos que me ajudariam a repensar
e aprimorar as maneiras adultas de favorecer as culturas infantis e, junto com as crianças, criar
oportunidades de avanços nas aprendizagens e no conhecimento de mundo.
Dessa forma, o termo “café-com-leite” deixou de ser pejorativo para mim. Hoje,
entendo que ser “café-com-leite” não é ser menos importante, estar de fora ou ser tutelado por
alguém. Pelo contrário, é uma oportunidade de estar junto e entrar no jogo, com tempo para
35
aprender, sendo permitido observar e experimentar, mesmo que ainda não se saiba o que fazer
ou para onde ir. O que anteriormente indicava momentos de transgressão e de desacordo com
os propósitos educacionais, hoje, para mim, significa investigar, aprender, conhecer.
Não me sinto mais uma professora café-com-leite, aquela que anteriormente
indiquei como não sendo capaz de sustentar propósitos pedagógicos, afastando-se de vez em
quando da sua responsabilidade profissional. Atualmente, entendo que sou uma professora-
pesquisadora, que se preocupa em promover contextos pedagógicos, favorecedores das culturas
infantis e dos múltiplos aprendizados e que, para isso, se concede a possibilidade de, a depender
da situação e do grau de desconhecimento sobre o assunto que deseja aprender, se tonar café-
com-leite, tendo as crianças como referência, reconhecendo que, em muitas dimensões, elas são
de fato “jogadoras” mais experientes.
Essa mudança de posicionamento, a meu ver, não necessariamente invalida os
conhecimentos produzidos nas áreas da psicologia e da pedagogia, justamente pela dimensão
de multidisciplinaridade que requer os estudos das infâncias, como expressa Kramer (2015).
Embora reconheça as contribuições dos trabalhos realizados dentro do campo da antropologia
e da sociologia da infância – como ênfase na cultura, na necessidade de pesquisar a diversidade,
na importância de se estranhar o familiar e na radicalidade da mudança de estatuto teórico das
infâncias –, ela ressalta que o conhecimento produzido por outras áreas pode continuar a
contribuir para a pesquisa com crianças, principalmente, ao se considerarem as diversas
possibilidades de leituras e de apropriação de uma teoria.
indicados por Nascimento (2016, p. 5), para que não se apaguem as especificidades do
posicionamento das diferentes perspectivas.
Ocorre que outros se equivocam quando usam, em uma relação direta, autores
da pedagogia com os da sociologia. Uma coisa é colocar áreas em diálogo,
outra é tratar da construção social da infância ou da interpretação das culturas
e, por exemplo, usar Malagguzzi. Para ser objetiva, é possível colocar áreas
em diálogo, mas às vezes parece não haver discernimento do objeto de cada
campo científico, gerando confusão e equívocos que não ocorre apenas com a
sociologia da infância.
A escola onde realizei o trabalho de campo8 fica na Zona Oeste de São Paulo,
próxima à Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP).9 Trata-se
de uma escola experimental que atende em sua maioria crianças e adolescentes de favelas10
próximas à CEAGESP.
Desde a época da graduação, eu guardava comigo o desejo de conhecer essa
instituição que é referência no trabalho com cultura brasileira e diversidade de linguagens,
principalmente no que diz respeito às oficinas oferecidas para crianças, adolescentes e seus
familiares no campo das artes plásticas, música, literatura e dança. Essa escola é gratuita e
conveniada da prefeitura de São Paulo, tendo ainda a iniciativa privada como financiadora, em
forma de doações pessoais e por meio de um instituto, com regime de fundação.
O instituto atua na sociedade de diversas formas, considerando aspectos culturais,
de saúde e educação para as crianças, bem como para seus familiares e cuidadoras(es). Uma de
suas iniciativas que caminha ao encontro dessa premissa é o “barraco-escola”:
8
O modelo do termo de autorização referente à instituição consta anexado à presente dissertação (anexo 4)
9
Maior central de abastecimento de frutas, legumes, verduras e flores da América Latina.
10
Optei por utilizar o termo “favela”, seguindo a mesma maneira que professoras(es) e famílias da região se
referem ao lugar onde mora a maioria dos(as) estudantes dessa escola.
11
Disponível em: https://www.acaia.org.br/ateliescola.
12
Os(as) participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e atribuí nomes
fictícios para a preservação das identidades.
38
contou-me que, por meio dessa ação “barraco-escola”, as(os) professoras(es) vão até as
comunidades, montam uma base e lá propõem atividades a meninas e meninos e,
consequentemente, passam a conhecer melhor as condições de moradia das crianças. As favelas
“Linha” e “Nove” ocupam atualmente uma área de 14 207 m2, segundo o jornal El País13 e são
constituídas por 700 famílias, ou seja, há, em média, 20 m 2 para cada uma delas. As
comunidades dessa região sofrem constantemente com enchentes e, como as paredes são
coladinhas umas às outras, há pouca entrada de luz de sol, o que favorece o mau cheiro e o
mofo. Há um Projeto de Intervenção Urbana (PIU) em vigor que pretende substituir as favelas
por moradias na própria região, mas ele está atrasado em função de negociações entre empresa
privada, poder público e vizinhança.14
A história desse instituto começou em 1997, quando uma artista plástica passou a
receber meninas e meninos das favelas do entorno da CEAGESP e do Conjunto Habitacional
Cingapura Madeirite em seu ateliê de artes. As atividades se expandiram e criou-se um espaço
de oficinas diárias oferecidas no contraturno da escola formal. Mais tarde, passou a ofertar
ensino regular para o início do ensino fundamental I, fundamental II e médio. Por fim, em 2016,
inaugurou-se o segmento da educação infantil. Atualmente, o instituto é referência pelo trabalho
realizado no âmbito da cultura brasileira e das artes, bem como por sua inserção na comunidade
local, promovendo atendimento e espaço de produção de cultura para estudantes e suas famílias.
Minha primeira tentativa de contato com a escola foi via e-mail e telefonema para
a secretaria e a coordenação, mas não obtive resposta. Segui minha jornada, solicitando ajuda
a amigas(os) que, profissionalmente, mantinham contato com a comunidade escolar, entre
elas(es) uma jornalista e um professor de música. Como resultado, consegui uma entrevista com
a psicóloga da escola, para qual mostrei meu projeto de pesquisa e contei um pouco da minha
trajetória. Lilian foi receptiva e me encaminhou para uma entrevista com a coordenadora da
educação infantil, Maria. Foram duas longas conversas tecidas por mim e Maria. Falamos sobre
a escola e o instituto, sua história, desafios e conquistas. Falamos igualmente sobre educação
no Brasil, sobre crianças, o trabalho com as linguagens e o brincar e as(os) autoras(es) que
tínhamos como referência.
Maria permitiu que eu convivesse por uma semana no ambiente escolar, para que
somente depois alinhássemos os(as) participantes, dia da semana, horário e ambiente da
13
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/20/politica/1529507034_635165.html.
14
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/01/28/
39
pesquisa. Em acréscimo, ela sugeriu que eu falasse com as(os) professoras(res), pois acreditava
que elas(es) é quem melhor conheciam o cotidiano das meninas e dos meninos e saberiam como
me ajudar. Passado esse período, reunimo-nos mais uma vez.
Nessa escola, havia três séries de educação infantil, cada qual constituída por
apenas uma turma. Na rotina desses três agrupamentos, não havia um horário fixo para o
brincar. Cada professora organizava as propostas, conforme as especificidades de seu grupo, de
tal forma que o momento de brincar poderia acontecer em horários diversos ao longo do dia. À
medida que passei a frequentar regularmente a instituição, algumas crianças se aproximaram
de mim. Primeiro, perguntaram meu nome e depois passaram a me dizer “oi” e “tchau”, ao me
verem chegando e, posteriormente, indo embora. Passado um tempo, foram me convidando
para sentar mais perto, assistir às aulas, mostrar desenhos e até me solicitavam ajuda para
resolver conflitos com colegas, amarrar os sapatos ou ir ao banheiro.
A aproximação com a equipe similarmente se deu aos pouquinhos. Algumas(uns)
se interessaram pelo projeto e, ao descrevê-lo, nós acabávamos refletindo sobre o tema. Conheci
com mais proximidade as(os) polivalentes e as(os) auxiliares da educação infantil e a professora
de educação física.
Contei à Maria o que havia observado e dialogado com as(os) professoras(res) e,
juntas, definimos que: 1) eu acompanharia o grupo de crianças de quatro e cinco anos, do
professor Francisco e da assistente Fernanda; 2) nossos encontros, que mais tarde denominei
de composições, seriam às quartas-feiras pela manhã, quando eu chegaria mais cedo para
organizar e montar o espaço; 3) antes do momento do brincar, eu teria acesso às crianças em
sala de aula, para conversar sobre as composições, mostrar fotos e registrar seus comentário,
opiniões e reflexões; 4) ao todo, organizaríamos oito composições e, no fim da pesquisa, eu
doaria para a escola os materiais utilizados. Assim, mantendo a pretensão de conduzir o
percurso investigativo distante do conhecimento genérico e descontextualizado (CLANDININ;
CONNELLY, 2015), foi a partir da vivência cotidiana que defini, em conjunto com a equipe
escolar, qual seria a turma de participantes e que momentos e contextos da rotina escolar eu
investigaria com mais regularidade e detalhamento.
Francisco foi bastante receptivo à proposta da pesquisa. Contou que, quando
menino, fora morador de favela e que, infelizmente, notava que um problema enfrentado por
ele na época somente se agravou: as crianças pobres não têm mais espaço para brincar. Explicou
que, atualmente, as casas estão cada vez mais juntas, sem terreno, as ruas perigosas e o som
alto dos aparelhos eletrônicos que se sobressaem às suas vozes. Por fim, comentou que, diante
40
desse contexto, entendia a temática do espaço como fundamental para educação infantil,
principalmente, quanto ao brincar e sugeriu que nossas composições fossem realizadas em um
espaço da escola que ficava perto da quadra central. O chão desse espaço era de terra e havia
uma torneira próxima. Francisco considerava importante que as crianças tivessem acesso à
água, e eu concordei.
A turma de Francisco se autodenominava de Capogingas. O professor tinha
formação como capoeirista. Em diversos momentos da rotina, tocava pandeiro, entoava músicas
de roda e convidava meninas e meninos para dançar, principalmente na passagem entre uma
atividade e outra, o que foi, aos poucos, se tornando um ritual identitário do grupo. Será com
essa nomenclatura “Capogingas” que me referenciarei à turma ao longo do texto.
O horário escolhido para que eu acompanhasse o grupo brincando foi 9h, às quartas-
feiras. Além dos encontros de brincar, que nomeei de composições, eu dialogava com a intenção
de conhecer a percepção das crianças sobre as brincadeiras, bem como ouvir suas sugestões e
registrar suas lembranças do vivido. Para isso, semanalmente, organizava, junto com o
professor, uma roda de conversa.
Para as referidas rodas, das primeiras vezes, selecionei algumas imagens de
fotografias que eu havia tirado das composições e conduzi a conversa, mediando os turnos de
fala para que todas tivessem oportunidade de fazer comentários e comunicar suas impressões.
No entanto, percebi que as crianças, muitas vezes, não queriam relatar suas vivências para todo
o grupo, mas sim, queriam segurar as fotos em suas mãos e se ver nelas, fazendo comentários
para as(os) amigas(os) mais próximas(os): “Olha eu aqui!”; “José! José! Vem ver você!”.
Então, decidi distribuir o material em pequenos grupos, favorecendo a aproximação de todas às
imagens e a diversidade das falas. Deixei de fazer perguntas e passei somente a anotar os
comentários, que se multiplicavam, conforme meninas e meninos se viam nas fotos e iam
revivendo as brincadeiras: “Luísa, lembra dessa?”; “Eu não gostei desse dia!”. “Hoje vai ser
minha vez de ficar com essa pá!”; “Que isso Adriano! Que cê tava fazendo?”,
Por conseguinte, o formato “roda de conversa”, que eu havia imaginado como
forma de ouvir as crianças, foi se modificando, e as situações de escuta passaram a ser uma
oportunidade para que elas se lembrassem do vivido, renegociassem papéis e objetos e
conhecessem mais sobre as brincadeiras das(os) colegas. Eu anotava e gravava o que diziam,
perdendo de quando em vez alguns pedaços, pois acabava participando do diálogo, que ainda
que, menos controlado, foi ficando cada vez mais rico. Como referido anteriormente, na seção
“breve roteiro”, eu chegava cedo na escola e, previamente, montava o espaço de brincar, ou
41
Se admitirmos, deste modo, que toda imagem pertence à grande família dos
fenômenos, não poderemos mais equiparar uma imagem a uma bola de sinuca
42
ou a um prego que a tábua engole quando, nela, o martelo bate. Sem chegar a
ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um
processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é
pensante.
CAPÍTULO 2
Na escola onde estudei até os 11 anos de idade, por vezes, havia reunião de pais e,
como minha mãe e minhas tias trabalhavam na instituição, isso significava que eu, minha irmã
e meus primos ficávamos naquele ambiente até bem tarde da noite. Nessas ocasiões,
ocupávamos o espaço que de dia era habitado por inúmeras crianças, mas, de noite, era só nosso.
Como as reuniões eram recorrentes, conhecíamos os diversos espaços e estávamos habituados
àquela rotina, o que nos permitia pressupor quanto tempo duraria nossa expedição, sabendo-
nos seguros. Experimentávamos a estranheza de habitar uma escola sem crianças e ainda por
cima no período da noite, entretanto simultaneamente vivíamos aquela rotina com intimidade e
liberdade.
A escola não anoitecia de imediato, ela ia escurecendo e esfriando. Muitas vezes
vivi esse anoitecer em cima do pé de amora. Era uma árvore bem grande e de lá de cima, nos
galhos mais altos, eu percebia que as amoras iam esfriando, conforme o sol desaparecia, e o
mais impressionante é que o gosto delas também ia mudando.
Além do pé de amora, havia o tanque de areia. Ele era enorme! Eu começava
peneirando areia, fazendo bolos com formas de pudim e, durante a brincadeira, minhas pernas
iam se afundando no tanque. Quanto mais anoitecia, mais fundo meus pés alcançavam,
chegando à areia úmida. Quanto mais anoitecia, mais úmida a escola se tornava. A sensação de
afundar na areia ligeiramente molhada e sentir um leve frio me trazia ar de aventura, de
sobrevivência. Depois de peneirar, muitas vezes, começava a cavar. Cavava e cavava bem
fundo. Quanto mais fundo, mais gelado, mais areia grudada, maior a mistura e maior a sensação
de se diluir no tanque, no frio, na noite.
Lembro-me, em acréscimo, de entrar nas salas de aula e procurar vestígios sobre o
44
que havia se passado por ali, que pudessem ter escapado à nossa percepção diurna. Meu primo
e eu brincávamos de ser detetives, e cada rabisco na lousa, papel de bala no chão, inscrições
nas mesas, para nós tudo eram pistas, como se fosse possível adentrar nas experiências vividas
por meio das marcas deixadas pelas crianças. Nunca descobríamos nada, mas era gostoso
investigar. Havia uma sensação de transgressão, de invasão, que nos alegrava.
Mais tarde, quando me tornei professora, percebi que não era preciso estar de noite
ou ter a escola somente para si para que as crianças se sentissem à vontade para invadir e
transfigurar os espaços cotidianos. Na Escola Viva, onde trabalhei por seis anos (2001 a 2007),
havia uma escada que corria por fora do prédio, dando acesso ao andar de cima. Embaixo dela,
um vão. Meninas e meninos amavam esse lugar. Passavam-se anos, mudavam as turmas, e ele
permanecia sempre ocupado por uma ou mais crianças. Certamente, na brincadeira, ele era
transfigurado. O mesmo acontecia nas partes do chão, em que não havia nem grama e nem
concreto. Eram filetes de terra. E era lá que as crianças se aglomeravam. Tanque de areia,
cabanas, escorregador, barrancos, cordas, campos abertos, cantinhos com árvores, embaixo da
mesa, em cima da mesa, colchonetes, almofadas, poças d’água identicamente eram muito
procurados por elas. O que tinham de tão especial?
As maneiras das crianças de habitar e, por meio do brincar, recriar objetos e espaços
do cotidiano, são, para mim, um espanto. Apesar de um pedaço de madeira, de até mesmo um
fio de cabelo, uma sombra, ou um furo na camisa, poderem virar brinquedo nas mãos de uma
criança, intriga-me perceber que o material e o ambiente são vividos e usados de formas
diferentes por meninas e meninos, convidando-as(os) a brincar com maior ou menor grau de
adesão.
Certa vez, o grupo de estudos sobre práticas escolares, do qual eu fazia parte, estava
assistindo aos minidocumentários de publicação do Instituto Casa Redonda (2000),
mencionado anteriormente. Ninguém no grupo tinha dúvidas sobre a importância de
oportunizar às crianças tempo e espaço para brincar, mas discutíamos a brincadeira inserida no
currículo escolar, na tradicional rotina da educação infantil. Eu, que estava finalizando o estágio
na Casa Redonda, tentava contar aos colegas como era a proposta da escola, no entanto,
percebia que os deixava confusos, desacreditados dos meus relatos que descreviam
positivamente cenas de crianças de diferentes idades, brincando juntas, sem propostas dirigidas
ou padronizadas, durante longo período. Sugeri, então, que assistíssemos aos vídeos. As
imagens tiveram efeito imediato em minhas(meus) colegas. Minutos de silêncio e
encantamento! Até que apareceram na tela duas crianças correndo juntas, ora mais rápido, ora
45
mais devagar, empurrando um cabo de madeira, cuja ponta inferior era talhada com um homem
andando de bicicleta. Conforme as crianças corriam e o empurravam o brinquedo, o homem,
que vestia roupas tradicionais do nordeste brasileiro, pedalava seguindo seus ritmos. Meninas
e meninos riam muito e se olhavam com cumplicidade. Assistindo a essa cena, meu colega e
amigo exclamou: “Ah! Mas também, os brinquedos são muito legais!”
Sim, os brinquedos eram “muito legais”. Havia alguns artesanais, como esse que
citei, e havia tecidos, pregadores, caixotes, utensílios domésticos reais (usados), bichinhos de
borracha, outras miniaturas, minicaixas de areia, enormes caminhões de madeira, entre outros.
Eram brinquedos diferentes, se comparados aos da maioria das escolas que conhecíamos, que
tinham algumas bolas, bonecas de plástico, miniatura de utensílios domésticos de plástico,
jogos de encaixe de plástico, bambolê e, com sorte, alguns carrinhos de metal.
Atualmente, esse cenário mudou. No Brasil, por exemplo, há várias instituições
de ensino, algumas mais novas, outras mais antigas, como a Casa Redonda, que se preocupam
com o ambiente onde as crianças brincam (BARROS, 2018).
Quando me refiro a ambiente, estou usando a categorização utilizada por Lina
Forneiro (1998, p. 232-233), que distingue ambiente e espaço, tendo em conta, principalmente,
as relações interpessoais:
O termo espaço se refere ao espaço físico, ou seja aos locais para a atividade
caracterizados pelos objetos, pelos materiais, pelo mobiliário e pela
decoração. Já o termo ambiente, refere-se ao conjunto do espaço físico e às
relações que se estabelecem no mesmo (os afetos, as relações interpessoais
entre crianças, entre crianças e adultos, entre crianças e sociedade em seu
conjunto).
Hoje, a importância do ambiente, não apenas para o brincar, mas como recurso
educativo associado a todo currículo das instituições, é razoavelmente difundida, como aponta
Forneiro (1998, p. 229):
Nos últimos anos, foram dados muitos passos à frente e hoje faz parte da
“cultura” profissional dos professores(as) dessa etapa educacional que o
espaço de suas aulas seja um recurso polivalente que podem utilizar de muitas
maneiras e do qual podem extrair grandes possibilidades para a formação.
educativos das escolas emilianas, apontam os conceitos e as experiências que guiaram as suas
construções e transformações. Segundo Vea Vecchi (2017, p. 157), “Os educadores [...]
consideraram o espaço uma parte fundamental da quantidade e da qualidade das relações, das
aprendizagens e das comunicações que se desenvolvem na escola”. Já Lella Gandini (2016),
ressalta que o diálogo que vem sendo amplificado entre pedagogia e arquitetura está centrado,
principalmente, na noção de relação e aponta a sincronia entre pedagogia baseada nas relações
e arquitetura relacional.
Outros aspectos apontados pelas(os) professoras(es) de Reggio Emilia, sobre o
ambiente, são acolhimento e plasticidade. Por esse ponto de vista, explicitam que é fundamental
levar em consideração os modos como as crianças reagem aos ambientes construídos e
projetados. “Anotações cuidadosas devem então ser feitas, acerca de como as crianças agiram
com esses objetos e, eventualmente, os reinventaram” (GANDINI, 2016, p. 145).
Entendendo a ação da criança como primordial na construção do próprio
conhecimento, Gandini (2016) enfatiza a necessidade do ambiente ser flexível, o que significa
dizer que os objetos, os materiais e as estruturas são vistos como elementos que “condicionam
e que são condicionados pelas ações das crianças e dos adultos que estão ativos neles”
(GANDINI, 2016, p. 335).
Forneiro (1998, p. 250) discorre sobre essa relação entre preocupação com ambiente
educador e concepção de criança protagonista da própria aprendizagem, nas seguintes palavras:
Giulio Ceppi e Michele Zinni (2013, p. 20, grifo nosso), ao descreverem o que seria
arquitetura relacional, afirmam: “No espaço relacional, o aspecto predominante é a relação que
ele possibilita, as várias atividades especializadas que podem ser conduzidas nele e ‘os filtros
de informação e cultura que podem ser ativados neste espaço’”.
Destaco dessa citação a expressão “filtros de informação e cultura que podem ser
ativados neste espaço”. Ou seja, os autores declaram que o contexto necessita favorecer o
contato ativo das crianças com o conhecimento e a cultura. Essa afirmação, a meu ver, vai ao
encontro da indicação feita por Vecchi (2017) sobre a necessidade de se escutarem os habitantes
do passado, e não apenas os do presente, além do que foi tantas vezes apontado pela sociologia
da infância, a respeito de as crianças não operarem em um vazio social (DELGADO, 2013),
mas sim, dentro de contextos situados, específicos e detentores de histórias.
Sendo assim, o ambiente educativo deve operar em dois sentidos opostos que se
complementam: ser marcado pelo passado – permitindo que meninas e meninos tenham acesso
à tradição e, simultaneamente, ser flexível para que elas(eles) deixem e percebam suas marcas.
A discussão sobre ambiente educativo igualmente pode ser feita, de maneira
análoga, especificamente, a brinquedos, objetos e materiais disponibilizados. Ao discorrer
sobre a “A história cultural do brinquedo”, Benjamim (2017c, p. 282) escreve:
palha e berços de vidro, o adulto está tentando interpretar a “sensibilidade infantil”. No entanto,
quanto mais representativos e atraentes são os brinquedos, “mais se afastam dos instrumentos
de brincar, quanto mais eles imitam, mais longe eles estão da brincadeira viva” (BENJAMIN,
2017c, p. 283).
Nessa ótica, os brinquedos populares, inventariados por João Amado (2008, p. 88),
são diferentes, pois estão mais condizentes com a “brincadeira viva”, uma vez que se associam
às tradições da comunidade onde estão inseridos, similarmente são marcados pela abertura à
liberdade e à imaginação. “[...] de objetos tão efêmeros quanto os materiais de que são feitos,
e, em grande parte, traduzem uma espécie de miniaturização do mundo dos adultos produzida
pelas próprias crianças, mas com grande margem de liberdade, imaginação e criatividade”.
Entre os brinquedos pesquisados – adornos e adereços, brinquedos sonoros,
bonecos e bonecas, representações animais, miniaturas de utensílios domésticos, miniaturas de
alfaias e engenhos agrícolas, construções, artes e ofícios, transportes, armas, quebra-cabeças e
fantasias –, o autor identifica as seguintes características: são fabricados pelas próprias
crianças; são constituídos predominantemente por elementos naturais; têm origem assentada na
imitação e na transgressão das regras e dos valores da vida adulta; muitos são universais;
possuem característica multidimensional dos efeitos do jogo e da brincadeira, especialmente,
da produção e do uso desses brinquedos pelas crianças.
Mayumi Lima (1995, p. 188) comenta as brincadeiras tradicionais, indicando as
mesmas qualidades, que reúnem no mesmo elemento forças de conservação e transgressão:
Por esse ponto de vista, concordo inteiramente com meu colega de grupo de
estudos: “Ah! Mas também, os brinquedos são muito legais!”, traduzindo por legais um
conjunto de características tais como: propiciam a interação entre pares, estão ao alcance das
crianças, são abertos e flexíveis em suas ações e ressignificações, são dotados de informação e
cultura.
Daniela Guimarães (2006), ao discorrer sobre os ambientes próprios à educação
infantil, usa a expressão “convite à ação e à narratividade”. Já Adriana Klisys (2015) fala em
objetos “de largo alcance” e nomeia “acervo lúdico” o conjunto de objetos e materiais
49
Benjamin finaliza o conto, narrando momentos em que ele pegava moldes para
bordar e, de vez em quando, cedia à tentação de se “apaixonar à rede do lado do avesso, que ia
ficando cada vez mais confusa à medida que, com cada ponto, eu me aproximava do fim do
trabalho do lado do direito” (BENJAMIN, 2013, p. 104).
Para mim, não tem melhor descrição de brinquedo/brincadeira. Quando leio o
conto, logo se faz presente a imobilidade imposta ao menino, em função do ato de costurar da
mãe, que meticulosamente repara um pequeno estrago em sua camisa. Gradualmente, no
entanto, vai ganhando força a transgressão imaginada, sonhada e realizada pela criança, que
interpreta o mundo à sua maneira, transformando os botões em rodas de carrinhos. E desse jeito,
é criado um novo sentido para a caixa de costura! Mas sem a mãe e toda a ordem sequenciada
que constituía sua caixa, não haveria a vontade de enfiar os dedos pelos buracos. Não haveria
a impaciência, a transgressão imaginada e tampouco, no futuro, os botões virando rodas para o
carrinho do Thor.
Há algo em comum entre os ambientes e os materiais defendidos e analisados pelos
diversos autores, que, usando emprestada a imagem narrada por Benjamin (2013), poderíamos
nomear de “capacidade de ser virado do avesso”.
51
Além do chão de terra batida, havia um espaço retangular de cimento com grandes
bancos de madeira, um corredor de cimento com grelha para absorver a água da chuva e uma
52
15
Escola situada na cidade de Lima, no Peru, que segue princípios das escolas emilianas.
53
(que faziam aula de educação física naquele momento), usando o andar de baixo coberto,
próximo ao refeitório. Aceitei sua proposta, e realizamos dois encontros dessa forma, unindo o
espaço, os grupos e o material. Em outra ocasião, as professoras das crianças mais novas me
pediram para não desmontar o ambiente, para que pudessem usá-los também com suas turmas.
Cada vez que juntávamos material, ficava mais difícil separar o que era de cada turma, até que
por fim a escola propôs que eu guardasse os elementos e os objetos da pesquisa em um
quartinho destinado a isso. Essa mistura de material se deu, à medida que eu me sentia mais
inserida na comunidade, trocando experiências, ideias e observações. De tal forma que os
ambientes das últimas composições foram montados em conjunto entre mim e as(os)
professoras(es) das três séries do infantil. Fiquei maravilhada com a porosidade da equipe que,
breve e criativamente, se apoderou dos objetos, montando ambientes de brincar, inserindo e
retirando elementos do acervo lúdico, conforme as especificidades de cada grupo.
Por esse motivo, ainda que eu tivesse previamente escolhido cada objeto e
planejado os ambientes, todos os dias as composições sofreram modificações graças às crianças
e professoras(es) da instituição. Uma composição não ficou igual à outra, a despeito de os
elementos principais se repetirem.
Ao longo das narrativas, farei referência a diversos materiais, inclusive aos que
foram sendo incorporados durante o trabalho de campo. Por ora, cito os elementos presentes
em todas as composições. Foram eles: bacias e potinhos de alumínio de diversos tamanhos,
colheres de pau, pás de plástico resistentes, redes e cabanas feitas com tecidos de diversos
tamanhos, pedrinhas, engradados, pedregulhos, elementos colhidos na natureza (galhos, frutos
e folhas), elásticos e pregadores para sustentação de redes e cabanas, bambolê e fitas de cetim.
54
55
56
No primeiro dia de montagem, cheguei cedo e me deparei com uma situação que não
havia previsto. Os espaços da escola, escolhidos por mim e Francisco, para serem usados no
brincar, estavam ocupados pelas crianças mais velhas, que esperavam o início de suas aulas. Eu
já tinha descarregado do carro bacias, tecidos, elásticos, pás, cestas, pedrinhas... e fiquei
preocupada: “como conseguiria montar os ambientes, se eles já estavam ocupados?”. Resolvi
esperar todas(os) entrarem nas salas de aula. Somente, então, corri para montar os ambientes.
Havia bem pouco tempo e não foi possível organizar tudo o que eu havia planejado. Consegui
57
dispor pedras, tecidos e elementos da natureza, conforme desejava e, em acréscimo, fiz algumas
cabanas. Mas fiquei chateada, pois não pude armar as redes.
Quando as(os) Capogingas chegaram, logo se puseram a investigar o ambiente e os
materiais com avidez e euforia. Dessa vez, fui acometida por um sentimento de insegurança:
será que alguém se machucaria? Será que alguém se desequilibraria e cairia bem em cima da
quina da mureta? Jogariam as pedras para o alto, ou pior, umas nas outras? Enquanto eu me
desequilibrava em pensamentos temerosos, as crianças me solicitavam ajuda, perguntavam
como usar um objeto, reclamavam do comportamento de uma(um) colega ou requisitavam para
si mais colheres, mais panos, mais pedras, mais pregadores. Eu estava em uma montanha russa,
certa de que em algum momento o carrinho se descarrilharia.
Até que ouvi uma voz chamando por mim em tom muito cordial e alegre: “Julia!
Julia!”. Virei-me para procurar quem me chamava, mas não vi ninguém. Então de novo escutei
“Julia!”. Fui seguindo o som e, para minha surpresa, vi Helena sentada confortavelmente na
rede que ela própria havia amarrado para si. Nunca vou me esquecer do seu sorriso! Nem do
meu!
Como foi reconfortante vê-la tranquila na rede. Justamente a rede que eu não havia tido
tempo de montar. Helena estava visivelmente orgulhosa de seu feito. E eu claramente aliviada.
Helena construiu um ninho, um lugar para si e, simultaneamente, me reposicionou, me indicou
o meu lugar. Testemunhando a potência daquela menina, lembrei-me de que não precisaria
58
cuidar de tudo, nem ofertar soluções prontas às meninas e aos meninos. Meu papel era, em
parceria com os outras(os) professoras(es), oferece-lhes determinadas organizações do
ambiente e do material. Uma vez indicado os caminhos e contando com a escuta e a mediação
dos adultos, as crianças descobririam como brincar e cuidar de si, saberiam modificar os
contextos e criar mundos de sentidos.
Adianto, que nas demais composições, meninas e meninos não tomaram banho na
grande bacia de alumínio, mas o seu tamanho e resistência foram diferenciais nas composições,
de tal forma que essa foi a única bacia que foi usada em todas as composições. Durante as
brincadeiras, ela aglomerava mais de uma criança que, normalmente, tinha um projeto em
comum, como transportar pedras, lavar os instrumentos, ou cozinhar para uma grande festa.
Acredito que, de alguma forma, a grande bacia transmitia sentidos de união e intimidade,
semelhantes aos experimentados por Mario em sua infância.
Uma professora gostou da cortina de fita de cetim e a associou com a decoração das
festas juninas escolares e de sua infância. Depois me pediu orientações de como construí-las.
Por fim, as cabanas também foram pontos de atenção e, ao me verem montando-as,
educadoras(es) e crianças mais velhas opinavam: “Eu sei como faz”; “Prende no galho lá de
cima”; “Essa ficou boa!”, “Agora falta um teto”.
Lagarta e Borboleta
Fazendo alusão a Benjamin, Jobim e Souza (1994) fala acerca das mágicas da
criança e do “mistério que emana dos objetos”, que se situam dentro do campo semântico da
linguagem e alimentam a imaginação infantil:
Ao citar a poetisa Adélia Prado, Gilberto Safra (2005, p. 128) discorre sobre o olhar
“que pressente a presença do ser nas coisas do cotidiano, nos objetos do mundo” e ressalta o
caráter cultural, marcado pela presença e pela história humana, que carrega, e correlaciona a
materialidade do mundo à experiência humana, afirmando:
Em nossa cultura, é raro poder olhar as coisas e perceber que elas são
61
encontros de relações entre vários homens, muitas vezes até de homens que
viveram em épocas diferentes. As coisas transpiram a cultura com suas
tradições, perspectivas e sabedoria de vida. (SAFRA, 2005, p. 128)
Certa vez, quando era professora na Escola Viva, a mãe de dois meninos me relatou
a conversa entre seus filhos, que versava sobre o que queriam ser quando crescer. Na escola, a
62
turma do filho mais velho, de cinco anos, estava estudando planetas; e a turma do mais novo,
de três anos, investigava a metamorfose.
A maneira como os dois irmãos formularam seus projetos de vida tem como marca
o paradoxo que se encontra no cerne da brincadeira. As afirmações feitas pelos meninos
incluem a aceitação de que seus desejos – ser jogador de futebol e ser super-herói – podem não
se realizar. Ou seja, aceitam de partida algum grau de frustração, traduzido pela expressão “se
eu não for”. A formulação dos irmãos, portanto, não é a mesma dos contos de fadas “Era uma
vez, no tempo em que não havia tempo, quando os desejos ainda se cumpriam” (GRIMM, 1989,
p. 7). Os irmãos se situam no tempo e elaboram projeções, imaginam um futuro. No entanto,
a expressão “se eu não for” também reserva uma parcela de ilusão, de esperança, como se nela
estivesse contida a ideia “talvez eu ainda possa ser”. Ilusão e renúncia estão paradoxalmente
contidas no mesmo enunciado.
O filho mais velho guarda, cuidadosamente, a esperança de ser jogador de futebol,
mas indica caminhos mais possíveis: astronauta ou astrônomo. Já o mais novo ainda guarda a
esperança de ser super-herói, mas provavelmente considera lagarta ou borboleta algo mais real.
Winnicott (1975) afirma que a possibilidade de compreender o mundo de forma
objetiva é uma conquista do ser humano. cuja trajetória se inicia desde o nascimento. Para o
autor, não existe a realidade em si e, sim, a realidade compartilhada. Cada sujeito vai, ao longo
da vida, ampliando sua capacidade de entender o mundo (tempo, espaço, cultura) de forma
objetiva e compartilhada com sua comunidade.
Quando a criança nasce, ela se insere em um mundo que já está aí. Do ponto de
vista dos adultos, é mais uma(um) bebê que será apresentada(o) à cultura previamente existente.
Mas do ponto de vista da(o) bebê, o mundo é subjetivamente percebido como criação própria.
Uma mãe suficientemente boa, ou quaisquer outras pessoas que exerçam a chamada “função
materna”, vai ofertar o seio/alimento à(ao) bebê justamente quando ela(e) tem fome,
possibilitando a ilusão de que o seio/alimento foi criado pela(o) bebê. Nesse percurso, a(o)
63
16
Escrevo no singular, mas faço a ressalva de que a “função materna” na maior parte das vezes não é
atribuída a apenas uma pessoa. Uma(Um) mesma(o) bebê, frequentemente, é cuidada(o) por diferentes
parentes e pessoas de referência, que podem assumir as funções de oferecer alimento, cuidados com
higiene etc.
64
machucada(do). Antonio entendeu meu receio, mas ficou inconformado: “Mas eu sou ‘a rainha
da natureza’ e esse é meu poder!”. Nesse momento, me recordei de uma outra cena, quando
duas meninas brincavam de achar pedras preciosas. Lembrei que, quando a pedra era muito
bonita, elas a seguravam por um tempo estendido, com as duas mãos juntas para, segundo as
meninas, sentir sua magia. Propus o mesmo para o Antonio. Ofereci a ele a possibilidade de
segurar as pedras em suas mãos. Disse que precisava ser com muita concentração para que o
poder da pedra passasse para ele. Antonio experimentou e gostou do ritual. Ele segurava a pedra
em suas mãos, depois a soprava (etapa que ele inventou), colocava-a no chão e, em seguida,
jogava seu poder nas outras crianças.
Por meio da brincadeira, Antonio pôde deixar de lançar as pedras, o que colocaria as(os)
colegas em risco, mas, sem deixar de ser a rainha da natureza que lançava poderes, “destruindo”
seus inimigos. As características reais de força e destrutividade da pedra foram conservadas,
simultaneamente, à fantasia de que, ao segurá-las, ele absorveria seu poder e ainda poderia
lançá-lo sobre as(os) pares.
Essa brincadeira não se ancorou completamente na realidade (mundo objetivo) e
nem unicamente no espaço interior ou na fantasia. Em vez disso, fundamentou-se,
paradoxalmente, nesses dois universos.
Sarmento (2002) afirma que o jogo simbólico corresponde a um elemento nuclear
da compreensão e da significação do mundo pelas crianças, sendo a imaginação do real
essencial em seus modos de inteligibilidade e de interpretação do que experenciam, que é
coexistente com a lógica formal. O autor realça o imbricamento entre realidade e imaginário
próprios ao brincar, e se refere à expressão usada por Paul Harris “navegar entre dois mundos”:
66
Partindo desse pressuposto, Sarmento (2002, p. 11, grifo do autor) vai além e
questiona o conceito de real, sugerindo que a imbricação entre realidade e fantasia estaria na
base de toda interpretação humana, constituindo-se em uma recriação:
A reflexão que Winnicott (1975, p. 76) apresenta sobre seus próprios estudos que
relacionam o brincar e a experiência cultural parece corroborar a análise de Sarmento:
Não é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças. Este
esforço, que é, simultaneamente, analítico e crítico, na interpretação dos
mundos sociais e culturais da infância, e político e pedagógico, na concepção
da mudança das instituições para as crianças, tomando como ponto de
ancoragem as culturas da infância, permitir-nos-á rever o nosso próprio
mundo, globalmente considerado. Este esforço epistemológico não é, aliás,
inédito. Miró, Paul Klee, Dubuffet ou Paula Rego, para falar apenas de alguns
pintores, há muito que iluminaram os olhos dos adultos com a redescoberta
dos traços das crianças. É um mundo infinitamente mais pacífico aquele que
se desenha nesses traços...
Outro exemplo citado pelo autor, que identicamente revela esse esforço
epistemológico, são as produções cinematográficas e literárias que “brincam” com o tempo,
usando o recurso de apresentá-lo de forma não cronológica, o que, segundo o autor, se
assemelha à reiteração presente nas brincadeiras, histórias e cantigas infantis. “O tempo da
criança é um tempo recursivo, continuamente reinvestido de novas possibilidades, um tempo
sem medida, capaz de ser sempre reiniciado e repetido” (SARMENTO, 2002, p. 11).
Portanto, as produções infantis são reconhecidas e compreendidas, como quer Marina
Marcondes Machado (2007), por meio da expressão poética adulta (literatura, “nonsense” dos
desenhos animados, a mistura de tempos nos roteiros de cinema, a possibilidade de convivência
de espaços em cenários no teatro, performances e instalações nas artes plásticas). A esse
processo de transposições que leva o adulto a compreender a estética infantil, a autora, citando
69
Bachelard, usa a expressão “desamadurecer”, que, por sua vez, relaciona-se à aproximação
entre infância e poesia. Nas palavras de Machado (2007, p. 172): “Um caminho interessante
para esse encontro é a aproximação entre infância e poesia, de modo que, para rever a linguagem
da psicologia da criança, em direção a outras maneiras de dizer, convido o adulto a
desamadurecer para compreender as crianças no mundo.”
Sobre infância e poesia, Bachelard (1988, p. 20) escreve: “Nos seus devaneios, a criança
realiza a unidade da poesia”. E adiante (1988, p. 21), acrescenta: “Os poetas nos ajudarão a
reencontrar em nós essa infância viva, essa infância permanente, durável, imóvel”.
A letra da música de Arnaldo Antunes, chamada “Cultura”, a meu ver, é um
exemplo de aproximação do artista aos modos de compreender infantis, que se apoia
simultaneamente na imaginação e na realidade, produzindo uma visão singular e poética do
mundo:
17
“Cultura”, de Arnaldo Antunes, Álbum “Canções Curiosas”, Coro das primas e vários, Palavra Cantada, 1998.
Disponível em: https://www.palavracantada.com.br/musica/cultura/. Acessado em 2022.
70
talvez, a questão mais inquietante lançada pelas crianças à pedagogia: o direito a animar as
coisas e emprestar-lhes uma existência poética em sua conquista linguageira de brechas entre
vida real e vida fabulada” (RICHTER; DA SILVA; DE FARIA, 2017, p. 244)
A força que emana do objeto e que é encontrada pela criança, quando essa entra em
contato com ele, segurando-o e sentido-o, relaciona-se à afirmação de Sandra Richter (2004, p.
32) sobre a imaginação infantil “que vai muito além das palavras ao alcançar outros sentidos e
significados não verbalizáveis de sua experiência”. A criança apresenta uma “relação direta
com os objetos”:
Por estar desarmada de conceitos e ideias do que sejam as coisas mundanas, a criança
estabelece uma relação direta com o que a cerca. Seu olhar torna-se um olhar primal,
poético, seduzido pela admiração, encantado pela novidade. A imaginação torna-se
18 18
Canção “If you hold a stone”, de Caetano Veloso. Álbum “Caetano Veloso”, de 1971. Se você segurar uma
pedra, segurá-la em suas mãos. Se você sentir o peso, você não terá perdido o tempo de entender. (tradução livre
da autora).
71
louca vontade de ver e integrar o detalhe ordinário que, por desafiar o familiar, exige
o movimento de tornar-se operador fabuloso de sentidos. (RICHTER; DA SILVA;
DE FARIA, 2017, p. 237)
Nessa mesma linha, Machado (2007, p. 96, grifos do autor) indica que: “A criança
adere às situações; os objetos para ela possuem, sempre, ‘caracteres afetivos’. Por estar sempre
inserida, implicada, por não se distanciar, a criança ‘concilia-se com uma espécie de pré-
existência’: tudo lhe diz respeito”.
O diálogo entre a mãe e seus dois filhos, que narrei no início deste capítulo e que
retomo aqui, oferece pistas dessa maneira implicada da criança em ser, estar e conhecer o
mundo.
Disse o filho mais velho, que estudava planetas:
– Mãe, quando eu crescer, se eu não for jogador de futebol, quero ser
astrônomo ou astronauta.
Ao que o mais novo, que estudava metamorfose, acrescentou:
– Mãe, quando eu crescer, se eu não for super-herói, quero ser lagarta ou
borboleta.
Tal abordagem acontece no âmbito dos saberes sensíveis que emergem das
raízes corporais: um saber primal, fundante, direto, anterior aos processos de
raciocínio e reflexão, que exige o encontro com as qualidades do mundo.
Sons, cores, sabores, texturas e odores nos colocam no mundo e são por nós
corporalizados
72
Muitas vezes, na hora de dormir, meus pais, e por vezes meus avós, me contavam
histórias. As narrativas eram, em sua maioria, compridas, e eu só adormecia quando chegavam
ao fim. As cenas narradas se sucediam na minha imaginação. Mas eu não me percebia
imaginando. Para mim aquelas cenas aconteciam, tinham textura, eram encarnadas. Em
momento algum, eu suspeitava que o longo cabelo da princesa poderia ser diferente no
imaginário de outra pessoa. Assim como eu acredito que Ana Angelica Albano (2018, p. 10-
11) não suspeitava, quando pequena, que a romã poderia ser uma fruta qualquer:
tecido, formando rios e cachoeiras tão límpidos que chegavam a brilhar. Ao longo do tempo,
sua vista foi ficando cada vez mais cansada, a ponto de ela picar muitas vezes o dedo com
agulha, e o sangue escorrido igualmente se juntava à trama formando montanhas e vales, cujas
cores impressionavam pela beleza. Um dia esse bordado é levado pelas fadas, e a narrativa se
desenrola por meio das jornadas dos três filhos em busca do tecido, terminando com uma grande
ventania que leva o bordado por toda a redondeza e, por onde ele passa, altera o mundo,
imprimindo nele as paisagens tais quais haviam sido bordadas.
Trago esse conto como uma referência do que, a partir dos processos investigativos
desta pesquisa, entendo como imbricamento entre real e fantasia, que é presente
emblematicamente no brincar e na compreensão poética própria às crianças e, como indicado
anteriormente, também no fazer cultural e criativo dos adultos. Tal imbricamento identicamente
pode ser suscitado por outro par de palavras: matéria e imaginação, o que se aproxima do termo
“imaginação material” (BACHELARD, 1988, 1997, 2008), que, segundo Reinério Simões
(1999, p.72), “é o conceito basilar de toda a poética bachelardiana”.
Bachelard (2008, p. 22) afirma que, ao agirmos no mundo, a matéria nos toca, assim
como nós a tocamos, e “as intimidades do sujeito e do objeto se trocam entre si”. Para o autor,
entrar em contato e agir sobre a materialidade do mundo dá ao ser a possibilidade de alcançar
sua intimidade nas suas dimensões oníricas e imagéticas. Ou seja, a mão que penetra a matéria
vai conhecendo-a e transformando-a, de maneira a vislumbrar e sentir o que estava oculto no
interior dela e, nessa intimidade com a matéria, vive a própria intimidade humana: “Um
devaneio de intimidade ‒ de uma intimidade sempre humana ‒ abre-se para quem penetra nos
mistérios da matéria” (BAHELARD, 1998, p.68).
O conto “O bordado encantado” contém recorrentes imagens de penetração: a
costura feita de linha e agulha, perfurando e marcando o tecido; o sangue e a lágrima que se
infiltram na paisagem; e, por fim, o bordado que, ao passar, modifica a realidade.
Sangue e lágrimas da mãe transfiguram o bordado e, mais à diante, a própria
realidade, pois, quando os tecidos são levados pelo vento, pela segunda vez, transformam o
mundo por onde passam. Por conseguinte, em alguma medida, são a própria realidade. As
paisagens, ao se assemelharem ao bordado, se tornam mais oníricas, e o bordado, ao se infiltrar
nas paisagens, torna-se mais real.
Richter, Da Silva e De Faria (2017, p. 239), ao discorrerem sobre os modos infantis
de aprender, enfatizam que a criança vive um processo de metamorfose e torna-se aquilo que o
mundo vai se tornando para ela: “Aqui, a ação de aprender não é síntese, menos ainda processo
74
Bachelard (2008, p. 16) afirma que a resistência encontrada na matéria pode ser vivida
com um adversário que remete o ser para o fazer, para algo a ser feito, uma tarefa que o desperta
e o faz se sentir em companhia:
O mundo resistente nos impulsiona para fora do ser estático, para fora do ser.
E começam os mistérios da energia. Somos desde então seres despertos. Com
o martelo ou a acolher de pedreiro na mão, já não estamos sozinhos, temos
um adversário, temos algo a fazer.
Por esse motivo, a troca de intimidade, anteriormente referida, não se faz, segundo
o autor, do ponto de vista da complacência e, sim, da vontade de se tornar vitorioso diante de
um(a) adversário(a) que provoca (BACHELARD, 1997, p. 166):
Para se referir à imagem poética, Bachelard (1993) faz analogia a uma pedra caindo
na lagoa, gerando ondas, ao que ele afirma que a imagem é a pedra, enquanto as ondas são a
repercussão do ser nessa explosão de sentido, do encontro da força e do peso da pedra com a
água. Em razão disso, não é o passado que provoca, que causa as ondas, mas ele é acionado
pela imagem, repercute a partir dela. Por conseguinte, a imagem poética é sempre nova, é
presente.
vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética
tem um ser próprio, um dinamismo próprio. (BACHELARD, 1993, p. 183)
Ninguém sabe que lendo revivemos nossas tentações de ser poeta. Todo leitor,
um pouco apaixonado pela leitura, alimenta e recalca, pela leitura, um desejo
de ser escritor. Quando a página lida é bela demais, a modéstia recalca esse
desejo. Mas o desejo renasce. De qualquer maneira, todo leitor que relê uma
obra que ama sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito. (BACHELARD,
1993, p. 189)
Por exemplo, certa vez Rodrigo encheu uma bacia média de água e com potinho
pequeno começou a jogar água nas suas mãos. Com movimento lento e olhar absorto, Rodrigo
repetiu inúmeras vezes a ação de jogar a água, esperá-la escorrer e fechar os punhos,
espremendo os dedinhos. Era a precisa imagem de troca de intimidade, de fusão, entre ser e
matéria: “Na amassadura não há mais geometria, nem aresta, nem corte. É um sonho contínuo.
É um trabalho que se pode fechar os olhos. É, pois, um devaneio íntimo. E depois, ele é ritmado,
duramente ritmado, num ritmo que toma o corpo inteiro (BACHELARD, 2008, p. 66)”.
Rafael, que estava construindo cabanas, de quando em vez olhava o amigo, até que foi
em sua direção com mais alguns potinhos, pedrinhas e fitas de cetim. Rodrigo apanhou cada
elemento e o incorporou à sua mistura. Rafael foi e voltou mais de três vezes, em silêncio, sem
dizer palavra. Não requisitou para si “a sua vez” de mexer ou segurar os objetos. Parecia
81
CAPÍTULO 3
Concavidade
O ninho, construído por dentro, e a concha, que se locomove junto com seu habitante,
condensam as imagens da morada ajustada ao corpo, uma vez que são invólucros, aquilo que
envolve e acolhe, na medida certa. Para Bachelard (1993 p. 276), “[...] a concha do caracol, a
casa que cresce na mesma medida de seu hóspede é uma maravilha do Universo”.
Munidas de tecidos, as crianças criaram para si muitas casas que cresciam na mesma
medida de seu hóspede. Não necessariamente eram casas individuais. Por vezes, as redes e os
casulos eram habitados por mais de uma pessoa e, nesses casos, o aspecto de maleabilidade dos
tecidos possibilitava que a morada fosse continuamente reajustada a suas(seus) moradoras(es),
dando contorno a seus corpos, ou conjunto de corpos.
86
Primeiro provou o mingau do Urso Grande, Enorme, que estava quente demais
para ela; e ela praguejou. Depois provou o mingau do Urso Médio, mas estava
frio demais para ela; e ela praguejou por isso também. Passou então para o
mingau do Urso Pequeno, Miúdo, e o provou; e esse não estava nem quente
demais, nem frio demais, estava na medida certa; gostou tanto dele que raspou
a tigela. [...] E primeiro deitou-se na cama do Urso Grande, Enorme; mas essa
tinha a cabeceira alta demais para ela. Depois deitou-se na cama do Urso
Médio; essa tinha o pé alto demais para ela. Em seguida foi se deitar na cama
do Urso Pequeno, Miúdo; e essa não era alta demais nem na cabeceira nem no
pé, estava na medida certa. Então se cobriu confortavelmente e ficou ali
deitada até cair num sono profundo. (TATAR, 2004, p.247).
87
O autor alude ao refúgio dos animais, como as tocas, como lugares onde o ser se fecha
sobre si mesmo: “Fisicamente, o ser que recebe o sentimento do refúgio se fecha sobre si
mesmo, se encolhe, se esconde, se oculta" (BACHELARD, 1993, p. 257). Os abrigos
construídos e habitados pelas crianças, que foram vividos principalmente nas suas dimensões
de refúgio e de proteção, igualmente foram pequenos e apertados, propiciando encolhimento
corporal, esconderijo.
Gandhy Piorski (2016, p. 29) indica que as imagens e os mundos que as crianças criam
para si como moradas, aludindo ao encaixe e ao habitar, relacionam-se à intimidade: “A criança
cria muitos universos em suas imagens de inteireza e integralidade. Universos de habitar, de
encaixar-se, de resignar-se a viver. [...] Todas essas virtudes do brincar têm seu embrião na
imaginação de intimidade”.
No entanto, nem todos os lugares que as crianças destinaram para si tiveram o
recolhimento como característica principal. Notei que, principalmente quando feitos a partir de
outros materiais que não tecidos, como engradados e caixas de papelão por exemplo, a
dimensão “na medida certa” ficou menos evidente e, de algum jeito, meninas e meninos se
mantiveram mais conectadas ao ambiente. Nessas situações, elas não esconderam seus rostos
ou mantiveram olhar absorto, em vez disso, mantiveram-se atentas, interagindo com as(os)
colegas, por meio da fala e dos gestos.
Durante a composição 1, um grupo de crianças brincava de família, usando uma das
cabanas como casa. De acordo com a narrativa contada por meninas e meninos, os membros
dessa família brigavam muito entre si e com as(os) vizinhas(os). Em vários momentos,
chamaram a polícia para intervir, e a brincadeira se fez de forma bastante movimentada e
agitada. As crianças riam bastante, tocavam-se, puxavam-se e se empurravam. Um dos
meninos, no entanto, que depois eu soube que no faz-de-conta era o “filho”, não saía da casa,
ficava dentro de um engradado apenas olhando. Ao analisar seu semblante, estava claro que ele
acompanhava cada passo da brincadeira, sorrindo de vez em quando ao vislumbrar aquela
89
confusão de corpos e gritos. Não estava, portanto, absorto ou isolado. Não estava
essencialmente distante ou afastado, bem como não aderia a todos os movimentos e agitação.
Em outra ocasião, um menino organizou um lugar para si em cima de uma mesa, dentro
de um engradado. Em seu ombro, usava um tecido como uma capa. Ele permaneceu encaixado
no engradado por um bom período e, lá do alto, olhava as(os) colegas brincando, sorrindo de
vez em quando. Por vezes, chamava a atenção de uma(um) amiga(o) ou descia da mesa, “voava
até o chão”, passeava e voltava para sua base.
Segundo Trindade (2016), a pele é a interface do corpo com o ambiente externo,
tornando-se emblemática na delimitação da noção de dentro e fora, permite trocas com o meio,
como na transpiração, e “por sua extensão e continuidade, permite ao indivíduo perceber-se
como um todo integrado” (TRINDADE, 2016, p. 28).
Nos dois modos de uso dos engradados citados anteriormente, penso que, ao permitir
que as(os) meninas(os) se sentissem contidas(os) por inteiro, elas(eles) intensificaram a
percepção de serem um “todo integrado” e não desmembradas(os) ou dissociadas(os). Logo,
mesmo próximas à movimentação, falas e agitação das(os) colegas, dentro de suas “bases”,
essas crianças podiam se diferenciar e dar, a si mesmas e ao grupo, visibilidade para seus
contornos, mantendo-se, simultaneamente, dentro e fora dos enredos.
Bachelard (1993), ao se referir às imagens da casa e sua qualidade de proteção, quando
por exemplo abriga o ser humano durante uma tempestade, afirma que “casa e o universo não
são simplesmente dois espaços justapostos. No reino da imaginação, animam-se mutuamente
em devaneios contrários” (BACHELARD, 1993, p. 225). A aparente calmaria encontrada
pelas(os) meninas(os), ao habitarem os engradados, não se dá somente pelo ato de enfiar-se
90
em sua concavidade, mas igualmente por se encontrarem dentro deles, enquanto algo agitado
acontece fora. E por isso parece ser prazeroso contemplar o “burburinho” das(os) demais
colegas, uma vez que é ela(ele) que atesta, valida o seu contrário, ou seja, a quietude e a
tranquilidade. O “burburinho” contrasta com a imobilidade de quem está dentro da caixa. O
engradado, sendo constituído por ângulos e paredes, favorece a experiência da imobilidade, a
qual Bachelard (1993, p. 287) alude aos “cantos”.
Dar visibilidade ao que é “dentro” e ao que é “fora” foi uma das funções principais que
as crianças destinaram aos materiais disponíveis. Conforme as narrativas criadas entre pares,
caixas, tecidos, bambolês e elásticos foram usados para definir onde eram as casas, as escolas,
a cozinha, os carros e os trens.
Por vezes, logo que definidos os lugares, punham-se em ação, elaborando em conjunto
as narrativas, falando e agindo como suas(seus) personagens. Em outras ocasiões, elas(eles)
passavam quase todo o tempo a enfeitar e compartimentar suas construções, enquanto
trabalhavam, contavam umas para as outras para que serviam cada compartimento e redefiniam
seus papéis e funções no enredo. Conforme um objeto que segurassem ou um espaço que
organizassem, davam a si mesmas uma nova função. Por exemplo, ao organizarem uma grande
festa para uma das colegas, uma menina, de posse da grande bacia de alumínio, exclamou: “Eu
era quem ia fazer o bolo”. Ou então, no contexto de uma brincadeira de cabana na floresta, ao
conseguir amarrar um cestinha na árvore, uma menina disse às(aos) colegas: “Aqui era o lugar
onde a gente guardava tudo o que a gente precisa”.
Organizar, enfeitar e designar foram práticas às quais, em diferentes momentos e
situações, meninas e meninos se propuseram a realizar, dedicando tempo e empenho. Potinhos,
cestas, sementes, folhas, pedrinhas, paninhos foram inúmeras vezes organizados e
reorganizados por elas(eles). Durante as brincadeiras, brincavam, variando conteúdo e
continente, ao distribuir e transpor elementos pequenos. Nessas situações, testavam tamanhos
e encaixes, faziam correspondências de termo um a um, experimentavam o excesso, buscavam
novas configurações ou retornavam à inicial. Os elementos eram locomovidos, transpostos,
agrupados, selecionados e separados.
92
Bachelard (1993, p. 91-92) aborda o tema da organização que pode ser vivida como um
“centro de ordem” contra a “desordem sem limite”, e atribui ao ato de escolher cuidadosamente
onde guardar nossos pertences o desdobrar da função de habitar.
tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser
como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que
as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade”.
Intimidade, morada, proteção, refúgio, “autocentragem”, são dimensões e qualidades
ligas à função de habitar.
Massa
No espaço usado para montar as composições, havia, ao lado do chão de terra batida,
um balcão de cimento com uma torneira. Nos dias mais quentes, meninas e meninos buscaram
água na torneira e encheram diferentes recipientes. Em volta das bacias grandes, aglomeraram-
se em grupos de três ou quatro crianças. Usando pás, colheres de pau e potinhos pequenos, elas
misturaram diversos elementos na água, como terra, frutos e galhos. A misturas, designo o
nome usado por Bachelard (1997) – “massa” –, que consiste nos compostos feitos com água e
uma substância em pó, como a terra, farinha e areia, por exemplo.
No livro A água e os sonhos, Bachelard (1997) discorre como esse elemento pode
substancializar dimensões do imaginário e das imagens poéticas, de maneiras diversas,
95
conforme o modo com que entramos em contato com ela. Nessa perspectiva, importa as
qualidades características da água. Por exemplo, a água parada se difere da água em movimento;
a água limpa, daquela misturada com os outros elementos. Para narrar as massas elaboradas
pelas crianças, durante o trabalho de campo, atenho-me especificamente à passagem que o autor
dá visibilidade para a ação da água sob as substâncias. Segundo o autor, inicialmente, esse
elemento dissolve e desmancha a matéria, sendo capaz de apagar o fogo e amolecer a terra. No
entanto, depois que consegue penetrar na sustância, torna-se elemento de ligação.
Ainda segundo o autor, essa lentidão traz uma duração diferenciada, um tempo contínuo
e preciso.
96
Depois, a ação aglutinante começa e a amassadura, com seu lento mais regular
progresso, proporciona uma alegria especial, menos satânica que a alegria de
dissolver; “a mão toma diretamente consciência do sucesso progressivo da
união da terra e da água”. Outra duração se insere então na matéria, uma
duração sem brusquidão, sem impulso, sem fim preciso. Essa duração não é
pois formada. Não tem os diversos repositórios dos esboços sucessivos que a
contemplação encontra no trabalho dos sólidos. Essa duração é um devir
substancial, um devir pelo interior. (BACHELARD, 1997, p. 112, grifo nosso)
Testemunhar e sentir com as mãos a união da terra e da água, para Bachelard (1997, p.
64), pode ser vivido como uma experiência de perfeição, pois “Na imaginação de cada um de
nós existe a imagem material de uma massa ideal, uma perfeita síntese de resistência e de
maleabilidade, um maravilhoso equilíbrio das forças que aceitam e das forças que repelem”.
97
Entendo que, ao citar a mão, o autor se refira à toda extensão da pele, uma vez que
outras partes do corpo também podem tomar consciência dessa mistura ideal. Certa vez, durante
a composição 2, José estava descalço e pisou em uma parte do terreno que havia sido palco de
brincadeira com água de outras crianças. O chão era de terra e, naquele dia, tornava-se uma
lama gelada, mas não muito mole. Apenas sua superfície estava mais escorregadia.
José, primeiro, experimentou andar pela lama, depois agachou-se para tocá-la com as
mãos, até que, por fim, decidiu cavá-la e depositá-la em uma bacia branca. Ele fazia bastante
força para retirá-la do chão, curvando o corpo todo, que funcionava como alavanca. Depois,
ficava na ponta dos pés, o mais alto que podia, para despejar a lama na bacia. Juhani Pallasmaa
(2009, p. 55) relaciona a sensação da força da gravidade com o contato da planta dos pés com
o solo.
Acho linda a imagem de seus pés, que, posicionados bem na pontinha, estendiam o
trajeto da lama caindo na bacia. Se José estivesse apenas interessado em recolher a lama no
recipiente, não a jogaria lá do alto. Em vez disso, a transferiria do chão, subindo a pá apenas na
altura da bacia, que era baixinha. Mas ele não queria somente capturar a lama, queria vê-la cair,
primeiro escorrendo lentamente da colher, antes de, já desgrudada da madeira, cair em
aceleração.
98
O pé de José durante toda a brincadeira ficou em contato com a lama, da mesma forma
que seus olhos a miravam continuamente. Desse jeito ele captava a viscosidade da massa por
meio do olhar e do tato, espalhando a sensação do toque por todo seu corpo e reunindo seu
tesouro na bacia ao seu lado.
A brincadeira de José é repleta de opostos: lento e rápido, alto e baixo, expansão,
recolhimento, espalhar e aglutinar. Essa dinâmica de forças que se atraem é sonhada com ajuda
da materialidade. Bachelard (2008, p. 61) afirma que na “massa” há cooperação, incidentes e
contrariedades: Com efeito, podemos captar uma espécie de cooperação de dois elementos
99
Na semana seguinte, levei para a roda de conversa imagens dessa brincadeira e notei
que meninas e meninos, ao se referirem ao que estavam preparando na grade bacia, não
afirmaram que era uma poção, veneno, um bolo, por exemplo. Apenas se referiram ao tempo
de preparo, aos elementos que misturaram e a como a mistura ia se transfigurando. Não havia
100
um tema que costurava simbolicamente suas ações, como brincadeira de cozinha, de casinha,
de monstros, por exemplo. Não havia personagens, tampouco cenário, mas, ainda assim, havia
narrativas. As crianças narravam a história das transformações, das junções dos materiais, da
dedicação e gesto de mexer e transportar, das colaborações entre os pares e das surpresas dos
resultados. Ao contarem sobre suas ações, mostravam como estavam envolvidas dos pés à
cabeça com suas criações.
Peso
João apareceu para ajudar. Com um sorriso no rosto, posicionou-se ao lado dos meninos
e foi andando de lado, dizendo: “Vai! Vai! Pode ir!”. Seu movimento era ritmado: quando suas
pernas abriam, os braços levantavam, e as mãos indicavam o caminho, no momento em que as
pernas fechavam, os braços pediam ao lado do corpo. João parecia um maestro! O tempo de
descanso de seus braços estava sincronizado com o tempo de pausa que José e Rafael usavam
para esperar a água da bacia se aquietar. Os três seguiram dessa maneira até o ponto final, onde
se encontraram com meninas e meninos que se reuniam em torno da grande bacia repleta de
pedra, lama e galhos.
102
Aproximando-se desse grupo, Rafael e José derrubaram a água de sua bacia na maior,
e todas bateram palmas.
Na semana seguinte, levei para nossa roda de conversa fotografias impressas da cena
que acabo de descrever. Ao verem as imagens, algumas(uns) colegas fizeram referências à
grande bacia e ao que colocaram nela. Identicamente, exaltaram o tempo que se dedicaram à
mistura “quase o brincar inteiro!”. José explicou que ele foi ajudar porque a “lama deles”
precisava de mais água. Rafael concordou. João disse que foi ajudar, porque estava muito
difícil, e ele queria que a água chegasse logo e imitou seu próprio gesto, reproduzindo o que
viu na fotografia. Muitos riram e repetiram a movimentação, seguindo João.
Ao comentarem sobre a brincadeira, as crianças deixaram claro que o objetivo maior
era buscar um grande volume de água para adicionar à mistura. Notei que, nessa empreitada, o
peso da bacia repleta d’água era um obstáculo para seu transporte e acabou criando
oportunidades, fazendo do trajeto uma brincadeira, uma vivência de trabalho em equipe, de
investigação e de conquista.
Rafael e José precisaram conhecer, por meio da própria experiência, o comportamento
da água ao se movimentar, alinharam seus passos e desenvolveram um tipo de comunicação
que tornava o transporte mais eficaz. João entendeu essa linguagem e a realçou, fazendo gestos
e marcando o ritmo para os amigos.
O desejo de transportar a água era compartilhado pelos três meninos, mas foi o peso da
bacia que os convocou a unir as forças, e trabalhar em conjunto, pois uma só criança não era
capaz de realizar o transporte.
Segundo Bachelard (2008, p. 293), as imagens do peso podem evocar o gosto por
transpor fardos: “Desde que goste de viver a fundo as imagens do peso, compreende-se que se
possa efetivamente gostar de carregar fardos, levantar pesos, realizar Atlas. A criança já
103
reivindica a honra de carregá-la”. Ainda segundo o autor, o alívio para esses fardos
frequentemente se dá pelo trabalho em comum, pela “ajuda mútua”, mas cada uma(um) se
dispõe a ajudar, porque acredita na própria força: “Encontraremos nessa linha todas as
metáforas do alívio, de uma ajuda mútua que aconselha carregar em comum os fardos. Mas se
ajuda porque se é forte, porque se crê na própria força, porque se vive numa paisagem da força”
(2008, p. 293).
O peso da bacia repleta de água uniu José, Rafael e João em torno de uma tarefa em
comum, para a qual os três se dedicaram com afinco e demonstrando prazer. Ao relatarem essa
experiência, eles ressaltaram o tempo prolongado que lhes exigiu a empreitada e a dificuldade
encontrada, realçando seus esforços próprios. Pareciam ter vivido, por meio da brincadeira,
experiência de honra e de crença na própria força.
Em outras ocasiões, pude observar meninas e meninos com a intenção de transportar
algo e, ao perceberem que sozinhas(os) não davam conta, aceitaram ou buscaram a ajuda
das(os) colegas, tornando o trajeto uma parte importante da brincadeira.
A partir desse dia, as bacias deixaram de ser os recipientes mais procurados pelas
crianças, e os engradados ganharam maior destaque. Na composição 5, José inventou um jeito
de conduzi-los que prontamente foi assimilado e repetido pelas(os) colegas. Amarrou elásticos
nas extremidades e os puxou. Nesse primeiro dia, José afirmou que era um mercador e
perguntava para as(os) colegas se queriam comprar suas mercadorias.
Para Bachelard (2008, p. 271), “Levanta-se vôo contra a gravidade, tanto no mundo dos
sonhos como no mundo da realidade”. Vianna (2005, p. 78) igualmente ressalta a correlação
entre peso e elevação, frisando que um não existe sem a outra:
de elevação (porque a queda também faz parte da elevação, uma não existe
sem a outra).
A abordagem Klauss Vianna, muitas vezes, refere-se à leveza que surge da experiência
de manejar o peso como uma leveza do movimento. Neste caso, o uso do peso leva ao
movimento, conquistando vivacidade na oposição à gravidade: “Portanto, o direcionamento do
peso do corpo pelo espaço possibilita a leveza do movimento. É a partir do uso do peso do meu
corpo, e não do abandono deste, que me oponho a gravidade” (MILLER, 2005, p. 66)
O voo é a expressão emblemática da oposição à gravidade. No entanto, houve outras
invenções com peso e movimento, como por exemplo, na brincadeira que narro a seguir.
Durante a composição 4, Rafael explorou a possibilidade de se movimentar por meio
do uso do peso do próprio corpo, associado a seus efeitos em uma pilha de pneus. No fim de
seu processo investigativo, ele abriu os braços e “saiu voando”. Segue a sequência da
brincadeira.
Encontrou uma pilha de pneus unidos por uma corda e decidiu empilhá-los, construindo
um tubo vertical. Em seguida, esticou-se para conseguir entrar no tubo. Percebendo que o
equilíbrio entre os pneus era frágil e que, conforme seu movimento, a pilha poderia tombar para
um dos lados, inclinou o corpo para forçar a queda. Ele caiu junto com os pneus, tentando
encostar o pé no chão e ficar ereto rapidamente. Os pneus saltaram e deslizaram, fazendo
barulho.
Rafael deu risada, afastou-se para se proteger, contemplou os pneus espalhados pelo
chão e, em pouco tempo, já estava de volta pronto para repetir a experiência.
109
Da segunda vez, foi diferente. Os movimentos de Rafael eram mais lentos, e seu
semblante estava mais sereno. Ele estava no controle da situação e dosava força e inclinação,
decidindo o momento e a velocidade da queda. Depois de entrar no tubo, antes de cair, primeiro
fez uma pausa e disse a um colega que estava de passagem: “Olha! Eu não caio!”. Em seguida,
foi controladamente inclinando corpo, até encostar as mãos no chão.
Durante o voo, observou as(os) colegas e, junto com José, encontrou um novo jeito de
manejar o peso e gerar movimento, dessa vez atingindo maior velocidade. Elas(eles)
experimentaram empurrar os engradados em vez de puxá-los. No começo, encontraram
dificuldade para empurrá-los na velocidade que queriam. O engradado parava a cada
irregularidade do chão. Até que descobriram a rampa e perceberam, que, ao ser empurrado na
110
Compasso
A composição 8 foi organizada pelas(os) professoras(es) das três turmas da educação
infantil. Um dos materiais disponibilizado por elas(es) foi um varal de roupas e fantasias.
Juliana escolheu um vestido. No decorrer da brincadeira, ela girou com seu vestido e observou
que ele fazia uma sombra no chão e que a sombra rodava e se balançava, de acordo com o
movimento que realizava. Além disso, as partes do vestido expostas ao sol brilhavam, de
maneira que, conforme Juliana rodopiava, se criava um jogo de brilho e sombras, dando maior
visibilidade e amplitude às curvas do tecido. Juliana demostrou alegria e encantamento, ao
rodopiar e observar seu vestido flutuar. Repetiu essa experiência inúmeras vezes.
111
Juliana cerrava os olhos, ao girar sua saia. Segundo Pallasmaa (2009, p 43):
o olho é o órgão da distância e da separação, enquanto o tato é o sentido da
proximidade, intimidade e afeição. O olho analisa, controla e investiga, ao
passo que o toque aproxima e acaricia. Durante experiências emocionais
muito intensas, tendemos a barrar o sentido distanciador da visão; fechamos
os olhos enquanto dormimos, ouvimos música ou acariciamos nossos amados
O vestido rodado, aberto embaixo e justo na cintura, junto do corpo das meninas, girava
em torno de si e desenhava, de modo ampliado. Neste caso, o desenho não se fazia no papel e,
sim, no ar. Com o compasso, é possível desenhar um grande círculo, a partir de curto
movimento de giro, pressionando a perna central. O mesmo se dava com as crianças e os
vestidos ao redor. Na extensão do tecido das saias que faziam curvas, brilhavam, ora se
mostravam, ora se escondiam, as meninas tinham a oportunidade de ver em cores e brilho os
próprios movimentos. Experiência de expansão a partir do centro.
O espaço é uma coisa limitada e, paradoxalmente, sem limites. Como tudo na vida.
Ao dançar, não podemos perder de vista esta noção: somos o centro do espaço que
nos cerca e nele existimos como indivíduos, como pessoas, como seres humanos,
estabelecendo nossa relação com o mundo.
114
Ainda, segundo Miller (2005, p.67, grifos do autor), a percepção de um centro de força,
de gravidade, de sustentação, propicia uma experimentação lúdica.
Arthur seguiu por um processo lúdico que consistia em ganhar e perder seu eixo e centro
gravitacional, conforme usava simultaneamente pontos diferentes de apoio.
Fazer do corpo o centro do movimento que se expande foi uma brincadeira que pude
observar em diversas situações e modalidades diferentes durante o estudo de campo. No caso
do cavalo e da saia, a extensão do cabo de madeira e do tecido foi usada como contraposição
ao corpo centrado. Arthur inventou uma brincadeira parecida, mas usou o tecido como centro
e não como extensão. Neste dia, ao observá-lo brincar, demorei a entender o que ele estava
fazendo. Notava que ele girava, cambaleava e quase caía, mas somente pela repetição de seus
movimentos é que entendi o papel do tecido no processo de investigação e criação. Percebi que,
por mais que Arthur se movimentasse, ele fazia de um jeito que o tecido se posicionava sempre
na sua cabeça. Entendi então que ele estava usando o tecido como centro, como ponto de apoio,
e seu giro e movimento expansivo aconteciam a partir desse centro.
116
117
118
Miller (2005, p. 78) relaciona o uso do chão como apoio e expande essa forma de contato
igualmente para o uso dos objetos:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
imagens e experiências vividas com meninas e meninos. Há, portanto, uma infinidade de outras
possibilidades de condensação de sentidos, que poderiam iluminar múltiplas dimensões das
produções das crianças no contato íntimo com a matéria, os objetos e o ambiente. Dito com
outras palavras, faço a ressalva de que a experiência foi, e é sempre, maior do que a cabe narrar
e interpretar dentro de um projeto de pesquisa. Ainda assim, a seleção realizada é valorosa, pois
dá visibilidade ao ambiente educador e sua capacidade de potencializar as criações das crianças,
ancoradas na ludicidade e na vivência corporal.
Retomando a pergunta inicial dessa dissertação – como o ambiente afeta e qualifica as
brincadeiras? –, digo que elementos do universo material, como textura, formato, peso e
tamanho, potencializam o brincar, nas suas dimensões poética e criativa, apoiando meninas e
meninos na formulação de compreensões sobre si e sobre o mundo nas interações umas com as
outras, principalmente quanto aos processos de criação e investigação que não se encontram
restritos ao universo verbal.
A concavidade, por exemplo, foi uma forma encontrada no ambiente oferecido, que
apoiou as crianças em suas pesquisas e formulações a respeito de dimensões da vida humana
relacionadas a temas como abrigo, agrupamento com os pares, pertencimento, entre outras. Já
o peso, favoreceu criações que abordaram a força humana, empreitada coletiva e a superação
ou canalização da gravidade pelo voo e pela aceleração do próprio movimento. Por meio da
massa, as crianças puderam investigar a dissolução e a modelagem das formas, mergulhar no
disforme, dissolver e, simultaneamente, aglutinar diversas matérias. Por fim, o compasso,
constituído pela dialética entre eixo e extensão, propiciou brincadeiras com a centralidade, a
expansão de si, levando à delimitação e à ampliação de limites.
Nessas situações, os objetos não são representações dos temas listados, como abrigo e
força, por exemplo, mas oferecem possibilidades para que as crianças criem situações lúdicas,
para se sentirem abrigadas e fortes, testando igualmente seus opostos como fragilidade e
desamparo. Essas sequências e investigações são repletas de movimento, de ações e
transformações, não resultando, muitas vezes, em uma cena com sentidos claramente
identificáveis, até porque não há garantia de sentidos, como defende Bakhtin (2011a). No
entanto, analisando a narrativa corporal, o uso dos objetos e seus efeitos, a interação entre os
pares e sua movimentação no espaço viabilizaram compreender a poética dessas produções,
que expressam dimensões do existir humano, vividas por meio da brincadeira.
122
Além dos objetos, outros elementos da experiência contribuíram para que meninas e
meninos se mostrassem provocadas(os) e convidadas(os) a brincar no primeiro dia da
montagem e nos outros que se seguiram.
Começo citando o espaço e o tempo. Já no primeiro encontro, asseguramos, a equipe
pedagógica e eu, que as crianças poderiam contar com um espaço e um tempo para brincar, que
não sofreriam influências e interrupções externas e que avisaríamos quando o tempo estivesse
por findar-se. A organização, a segurança e a higiene dos materiais e ambientes identicamente
foram essenciais. Ainda que tenhamos oferecido terra e outros elementos da natureza, afirmo
que se tratava de materiais limpos, no sentido de que não havia nada tóxico que pudesse colocar
meninas e meninos em risco e, além disso, no início de cada composição, encontravam-se
separados. Ou seja, as bacias não estavam tomadas com terra, os tecidos eram lavados
regularmente e não conservávamos nada que estivesse quebrado.
Por fim, cito a presença dos adultos, professoras e professores, que, ao mediarem
impasses entre as crianças, acolhê-las quando se machucavam e as auxiliarem ou as
supervisionarem em práticas como uso do banheiro, troca de roupas, pôr e tirar sapatos, garantiu
que pudessem atuar com segurança e conforto suficientes para a manutenção de seus interesse
e dedicação nas brincadeiras.
Espero que este trabalho possa inspirar pedagogas(os), professoras(es) e educadoras(es)
em geral na montagem e no planejamento das situações de brincar na escola e em outros
contextos. A vida é sempre persistente e resistente. A imagem de uma plantinha crescendo entre
as rachaduras de uma calçada de cimento fortalece esse entendimento. Da mesma maneira que
a natureza vai encontrando seus meios para crescer e se reproduzir, também as crianças
conseguem brincar em diferentes contextos. Há estudos sobre brincadeiras em cenários de
guerra (SARMENTO, 2002). Fui testemunha de brincadeiras protagonizadas por alunas(os)
dentro de salas de aula, repletas de mesas e cadeiras, sem espaço para sentar no chão, nem
mesmo para interagir em dupla com as(os) colegas, e apenas com brinquedos de plástico. Ainda
assim, o brincar acontecia.
Um dos motivos para se estudar e narrar o brincar é justamente sua alta capacidade de
subversão do estabelecido. Mesmo quando a sociedade segue desfavorecendo as situações em
que ele acontece, as crianças dão seu jeito, encontram brechas, subvertem, transformam o
ambiente e transformam-se. Por esse motivo, meu interesse pelas especificidades do brincar e
suas riquezas não se deve à crença de que as crianças dependam determinantemente dos adultos
para garantir esse direito, mas sim, à sua essencialidade para a vida humana e os sentidos que
123
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TARJA BRANCA: a revolução que faltava. Direção de Cacau Rhoden. Produção: Cacau
Rhoden, Estela Renner, Luana Lobo e Marcos Nisti. Realização: Maria Farinha Filmes. Gênero:
Documentário. País de origem: Brasil. 2014. Duração: 80 minutos.
TERRITÓRIO do brincar. Direção: Renata Mirelles e David Reeks. Produção: Estela Renner,
Luana Lobo e Marcos Nisti. Realização: Maria Farinha Filmes e Ludus Vídeos. Gênero:
Documentário. País de origem: Brasil. 2015. Duração 90 min.
Documentos sonoros
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Curiosas, Palavra Cantada, 1998.
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VELOSO, Caetano. If you hold a stone. In: VELOSO, Caetano, Caetano Veloso, 1971
132
Apêndice 1
Justificativa e objetivo:
Meu nome é Julia Rezende e sou aluna do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Educação da Unicamp. Estou realizando, sob a orientação da Profª Drª Eliana Ayoub,
uma pesquisa que busca identificar o papel do ambiente educador no desenvolvimento das linguagens
corporal e lúdica. Esse estudo se justifica pela necessidade de ampliação do conhecimento a respeito da
cultura infantil, a fim de que se possam criar contextos cada vez mais favorecedores ao seu
fortalecimento e desenvolvimento.
Procedimentos:
Participando do estudo, seu filho(a) (ou outra pessoa por quem você é responsável) está sendo
convidado a: frequentar as aulas regulares da escola em que estuda, Ateliescola Acaia, sendo
observado(a) por mim, pesquisadora responsável, nas situações especificamente relacionadas ao brincar.
Os focos de observação serão as ações interativas entre as crianças, a maneira como elas usam os espaços
e as narrativas que elaboram durante as brincadeiras. Os registros e anotações serão realizados por mim,
pesquisadora responsável, por meio de textos e imagens (fotos e vídeos).
Os dados desta pesquisa serão armazenados por um prazo de 5 anos após o final da pesquisa, de
acordo com a Res. CNS 510/16. Após esse período, serão descartados. Uma parte desse material será
publicada na dissertação de mestrado.
Desconfortos e riscos:
O presente trabalho não representará riscos físicos ou psicológicos ou desconfortos previsíveis
aos participantes. O método utilizado nessa pesquisa será a observação participante. Esse método se
caracteriza como não invasivo, uma vez que os sujeitos envolvidos na pesquisa serão apenas observados
durante as situações regulares de brincadeiras, já previstas na rotina pedagógica da instituição.
Benefícios:
Neste estudo, não há previsão de benefícios diretos aos participantes. Os benefícios indiretos
obtidos serão de ordem pedagógico científica, podendo contribuir com ações futuras em torno da
temática.
133
Acompanhamento e assistência:
A qualquer momento, antes, durante ou até o término da pesquisa, os participantes poderão
entrar em contato com os pesquisadores para esclarecimentos e assistência sobre qualquer aspecto da
pesquisa em danos decorrentes da pesquisa.
Sigilo e privacidade:
Você tem a garantia de que nenhuma informação coletada durante a pesquisa será dada a outras
pessoas que não façam parte da equipe de pesquisadores. Esclarecemos também que todas as imagens
serão utilizadas exclusivamente para fins de ordem pedagógico científica. Na divulgação dos
resultados desse estudo, o nome de seu filho (ou de qualquer outra pessoa por quem você é responsável)
não será citado.
Ressarcimento e Indenização:
A pesquisa não prevê ônus ao participantes, como deslocamentos ou alteração de rotina dos
sujeitos, não havendo, portanto, necessidade ressarcimento. Esclarecemos, no entanto, que você tem a
garantia ao direito a indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa, quando
comprovados nos termos da legislação vigente.
Contato:
Em caso de dúvidas sobre a pesquisa, você poderá entrar em contato com as pesquisadoras.
Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação e sobre questões éticas do estudo, você
poderá entrar em contato com a secretaria do Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e
Sociais (CEP-CHS) da UNICAMP das 08h30 às 11h30 e das 13h00 as 17h00 na Rua Bertrand Russell,
801, Bloco C, 2º piso, sala 05, CEP 13083-865, Campinas – SP; telefone (19) 3521-8936 ou (19) 3521-
7187; e-mail: cep-chs@reitoria.unicamp.br.
coordenador da rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) das instituições, além de assumir a função
de órgão consultor na área de ética em pesquisas
Responsabilidade da Pesquisadora:
Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 510/2016 CNS/MS e complementares na
elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Asseguro,
também, ter explicado e fornecido uma via deste documento ao participante. Informo que o estudo foi
aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado. Comprometo-me a utilizar o material e os
dados obtidos nesta pesquisa exclusivamente para as finalidades previstas neste documento ou conforme
o consentimento dado pelo participante.
Data: ____/_____/______
________________________________________________
(Assinatura do pesquisador)
135
Apêndice 2
Eu,___________________________________________________________,
RG__________________, diretor(a) do Ateliescola Acaia, autorizo a realização da pesquisa:
“Ambiente educador maleável e plural: convites à corporalidade e ao brincar”nesta instituição sob
minha direção.
Data:____/____/______
____________________________________________
Assinatura do(a) diretor(a)
137
Apêndice 3
Prezados(as) senhores(as),
Você está sendo convidado(a) a participar do projeto de pesquisa acima citado. Este documento,
chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visa a assegurar seus direitos como participante
e é elaborado em duas vias, uma que deverá ficar com o Sr./Sra. e outra com a pesquisadora.
Por favor, leia com atenção e calma, aproveitando para esclarecer suas dúvidas. Se houver
perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, o Sr./Sra. poderá esclarecê-las com a pesquisadora. Se
preferir, pode levar para casa e consultar seus familiares ou outras pessoas antes de decidir participar.
Se o Sr./Sra. não quiser participar ou se, a qualquer momento, quiser retirar sua autorização, não haverá
nenhum tipo de penalização ou prejuízo.
Benefícios:
Este estudo não trará benefícios econômicos diretos aos participantes envolvidos e os benefícios
indiretos obtidos serão de ordem pedagógico científica, podendo contribuir com ações futuras em torno
da temática.
Acompanhamento e assistência:
As pesquisadoras ficarão à disposição para esclarecimento de dúvidas sobre o estudo durante e
após o preenchimento deste instrumento
Sigilo e privacidade:
138
O Sr./Sra. tem a garantia de que nenhuma informação coletada durante a pesquisa será dada a
outras pessoas que não façam parte da equipe de pesquisadores. Esclarecemos também que todas as
imagens serão utilizadas exclusivamente para fins de ordem pedagógico científica. Na divulgação dos
resultados desse estudo, o seu nome não será citado.
Armazenamento de material:
O material referente à pesquisa realizada contará com registro de imagens (fotos e vídeos) e
textos produzidos pela pesquisadora durante as observações das aulas. Esses registros serão
armazenados pelas pesquisadoras por um prazo de 10 anos. Após esse período, será descartado. Uma
parte desse material será publicada na dissertação de mestrado.
Caso aceite o convite de participar da pesquisa, pedimos que assine esse documento e rubrique
todas as páginas. O presente termo está sendo entregue em duas vias uma que ficará de posse do(a)
Sr.(a) e outra de posse dos pesquisadores. Caso necessite de maiores informações nos colocamos à
disposição. Seguem abaixo informações do Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp para o
recebimento de denúncias e/ou reclamações referentes aos aspectos éticos da pesquisa.
Após ter sido esclarecido(a) sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios
previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, eu,
____________________________________________________________, RG _____________,
declaro estar ciente dos objetivos da pesquisa “Ambiente educador maleável e plural: convites à
corporalidade e ao brincar”, e de que, se desejar, posso abster-me da participação no estudo sem
quaisquer prejuízos.
( ) Concordo em participar do presente estudo e autorizo a divulgação de imagens (fotos e vídeos)
registradas durante a pesquisa.
( ) Não concordo em participar do presente estudo.
Data:____/____/______
_______________________________________________________
(Assinatura do sujeito pesquisado)
139
Data: ____/_____/______
_________________________________
Assinatura do Pesquisador Responsável
140
Anexo 1
Anexo 1
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143
144
145
146
147
148
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