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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

JULIA MARIANNO MARQUES REZENDE

QUANDO REDES E PEDRINHAS CONVIDAM AS CRIANÇAS PARA BRINCAR:


AMBIENTE EDUCADOR MALEÁVEL E PLURAL

CAMPINAS

2022
JULIA MARIANNO MARQUES REZENDE

QUANDO REDES E PEDRINHAS CONVIDAM AS CRIANÇAS PARA BRINCAR:


AMBIENTE EDUCADOR MALEÁVEL E PLURAL

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação
da Universidade Estadual de Campinas como parte dos
requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra
em Educação, na área de concentração Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Eliana Ayoub.

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA DISSERTAÇÃO/TESE DEFENDIDA
PELA ALUNA JULIA MARIANNO MARQUES
REZENDE E ORIENTADA PELA
PROFA. DRA. ELIANA AYOUB

CAMPINAS

2022
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751

Rezende, Julia Marianno Marques, 1978-


R339q RezQuando redes e pedrinhas convidam as crianças para brincar : ambiente
educador maleável e plural / Julia Marianno Marques Rezende. – Campinas,
SP : [s.n.], 2022.

RezOrientador: Eliana Ayoub.


RezDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade
de Educação.

Rez1. Brincar. 2. Imaginação. 3. Culturas infantis. 4. Ambiente escolar. 5.


Corpo. I. Ayoub, Eliana, 1966-. II. Universidade Estadual de Campinas.
Faculdade de Educação. III. Título.

Informações Complementares

Título em outro idioma: When nets and peebles invite children to play : maleablle and
plural educational environment
Palavras-chave em inglês:
Play
Imaginnattion
Childhood cultures
Educational environment
Body
Área de concentração: Educação
Titulação: Mestra em Educação
Banca examinadora:
Eliana Ayoub [Orientador]
Guilherme do Val Toledo Prado
Juliana Scarazzatto
Marília del Ponte de Assis
Data de defesa: 14-12-2022
Programa de Pós-Graduação: Educação

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: http://orcid.org/0000-0002-5306-6236
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6986047646395346

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

JULIA MARIANNO MARQUES REZENDE

QUANDO REDES E PEDRINHAS CONVIDAM AS CRIANÇAS PARA BRINCAR:


AMBIENTE EDUCADOR MALEÁVEL E PLURAL

COMISSÃO JULGADORA:

PROFA. DRA. ELIANA AYOUB


PROF. DR. GUILHERME DO VAL TOLEDO PRADO
PROFA. DRA. JULIANA SCARAZZATTO
PROFA. DRA. MARÍLIA DEL PONTE DE ASSIS

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na
Secretaria do Programa da Unidade.

CAMPINAS
2022

Para meus avós, que me ensinaram a escrever e ver o mundo em narrativas.


Agradecimentos

Agradeço à minha orientadora, Profa. Dra. Eliana Ayoub, a Nana, por sua sabedoria,
atenção, paciência, acolhimento e envolvimento em todas as etapas do trabalho. Ao Prof. Dr.
Guilherme Prado, por sua leitura atenta e comentários precisos durante o processo de
qualificação. Às parceiras de caminhada Profa. Dra. Juliana Scarazzatto e Profa. Dra. Marília
del Ponte de Assis, pelo encorajamento e diálogo constantes. Aos meus colegas de laboratório
(Daniela, Eduardo, Isabel, Ivan, Midore e Rafael), pela partilha nos estudos e nas conversas,
em especial ao Eduardo Ribeiro, que generosamente contribuiu para a revisão do texto.

Agradeço às(aos) minhas(meus) mestras(es) Ana Angelica Albano, Ana Amélia Pereira
(Peo), Zélia Monteiro, Beth Bastos, Nichan Dichtchekenian e Tales Ab´Sáber, pelos
ensinamentos e inspirações.

Agradeço à Teca Soub e ao Gustavo Rocha, pela parceria e acolhimento.

Agradeço ao meu marido, Pedro, pela companhia, generosidade, conversas e incentivo.


Aos meus dois filhos, Caetano e João, pelo carinho resiliente. À minha família, Mario, Candu,
Helena, Ivo, Max, Sonia, Mariana, Luciano, lelê, Valentim e Manuel, pela paciência,
compreensão e ajuda.
RESUMO

Orientado pelas premissas da pesquisa-narrativa e reconhecendo as crianças como produtoras


de cultura, o processo de investigação da presente dissertação teve como objetivo compreender
e narrar como o ambiente (FORNEIRO, 1998) afeta e qualifica as brincadeiras infantis, de
maneira a potencializar as imagens de si e do mundo criadas e partilhadas pelas crianças. Para
isso, investigaram-se modos infantis de viver o cotidiano escolar, mais especificamente, jeitos
de as crianças habitarem e usarem o ambiente – entendido como espaço, tempo, materiais e
formas de organizá-los – nos contextos lúdicos e de interação entre pares. Partindo do
pressuposto de que sensibilidade e imaginação são formas legítimas de conhecimento sobre as
questões humanas e sociais (JOBIM e SOUZA, 1994), o brincar foi considerado em seu aspecto
poético, no que diz respeito à possibilidade de expressar imageticamente dimensões da
experiência humana. O trabalho de campo se desenvolveu durante oito meses, de fevereiro a
outubro de 2019, em uma escola conveniada à prefeitura da cidade de São Paulo. As
participantes foram crianças de 4 a 5 anos de idade que faziam parte de um mesmo
agrupamento. Os dados/achados produzidos durante os estudos de campo foram relacionados
a temas ancorados na experiência corporal, como peso, centralidade, expansão, encolhimento e
resistência, os quais foram associados a criações e expressões poéticas e lúdicas infantis, com
intuito de gerar as conexões encontradas entre materialidade, corpo e imaginação.

Palavras-chave: brincar, imaginação, culturas de infância, ambiente educador, corpo.


ABSTRACT

Guided by the premises of narrative-research and recognizing children as producers of culture,


the investigation process of this dissertation aimed to understand and narrate how the
environment (FORNEIRO, 1998) affects and qualifies children's play, in order to enhance the
images of self and the world created and shared by children. For this, children's ways of living
the school routine were investigated, more specifically, ways children inhabit and use the
environment - understood as space, time, materials and ways of organizing them - in playful
contexts and interaction between peers. Assuming that sensitivity and imagination are
legitimate forms of knowledge about human and social issues (JOBIM and SOUZA, 1994),
playing was considered in its poetic aspect, with regard to the possibility of expressing
imagetically dimensions of human experience. The fieldwork was carried out for eight months,
from February to October 2019, in a school affiliated to the city hall of the city of São Paulo.
The participants were children aged 4 to 5 years who were part of the same group. The
data/findings produced during the field studies were related to themes anchored in the body
experience, such as weight, centrality, expansion, shrinkage and resistance, which were related
to children's poetic and playful creations and expressions, in order to highlight the connections
found. between materiality, body and imagination.

Keywords: play, imaginattion, childhood cultures, educational environment, body


SUMÁRIO

CAPÍTULO 1. ONDE AMARREI AS MINHAS REDES ............................ 10

1.1 Pesquisa narrativa – Entrar na corda ........................................................... 10


1.2 Breve roteiro ................................................................................................ 16
1.3 Caminhos formativos – Um olhar cheio de sol ............................................ 18
1.4 Inspiração etnográfica – Uma professora café-com-leite.............................. 26
1.5 Campo da pesquisa – Convivendo com os Capogingas................................ 37

CAPÍTULO 2. PEDRINHAS E MUNDOS NA PALMA DAS MÃOS.............. 43


2.1 Ambiente educador plural e maleável – Do avesso ...................................... 43
2.2 Preparando ambientes – Frente e verso das composições ............................ 51
2.3 Brincar e criação de mundos para si – De lagartas a borboletas .................. 61
2.4 Imaginação e materialidade – Bordado encantado ....................................... 72

CAPIÍTULO 3. O BRINCAR NO AMBIENTE MALEÁVEL E PLURAL:


INTIMIDADES ENTRE AS CRIANÇAS E A MATÉRIA ............................... 83
3.1 Concavidade ................................................................................................. 83
3.2 Massa............................................................................................................. 94
3.3 Peso ............................................................................................................... 100
4.4 Compasso ...................................................................................................... 111

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 124

ANEXOS E APÊNDICES ................................................................................................. 132


Apêndice 1 – Termo de consentimento livre esclarecido – responsáveis ......... 132
Apêndice 2 – Termo de autorização – instituição ............................................. 135
Apêndice 3 – Termo de consentimento livre esclarecido – educadoras ........... 137
Anexo 1 – Parecer consubstanciado do CEP...................................................... 140
10

CAPÍTULO 1

ONDE AMARREI AS MINHAS REDES

Pesquisa narrativa – Entrar na corda

Uma das brincadeiras de que eu mais gostava quando pequena era pular corda.
Gostava de pular, de cantar e de bater a corda ritmada. A lembrança dessa brincadeira é para
mim ensolarada, por mais que eu tenha brincado tantas vezes e, com certeza, em dias nublados
também. Além da fluidez e dos raios de sol, eu me lembro das vozes femininas. Éramos todas
meninas, cantando em conjunto, sabíamos o repertório de cor. Pulei corda dos 5 aos 12 anos de
idade, em São Paulo-SP, cidade em que nasci e morei durante maior parte da infância. Minhas
companheiras eram a vizinha, a irmã, as colegas de escola e as muitas outras crianças que
encontrei em festas, em quintais e casas de amigas. Com todas elas, não era necessário ensaiar.
Bastava alguém começar: “Um homem bateu em minha porta e eu abri”, que as restantes
entoavam em coro as diversas canções, fazendo a corda girar.
Apesar da sensação de fluidez e unicidade que experimentava nessa brincadeira,
desafiadoramente ainda fazia parte dela, uma modalidade diferente, a qual chamávamos de “de
fora”. Nessa modalidade, era preciso “entrar” na corda que já estava girando, já estava em
movimento. Recordo-me que não importava quantas vezes eu treinasse, só de ver aquela corda
rodando sem mim, sabendo que eu precisaria me intrometer no meio daquele movimento,
daquela vida em andamento, eu me atrapalhava. Por fim, eu tomava coragem e me deslocava
para o centro da corda, ou melhor dizendo, para o ponto que eu projetava imageticamente como
centro, mensurando espaço e movimento. Ao me deslocar, por vezes, atingia o objetivo e, uma
vez estando bem posicionada, iniciava minha sequência de pulos com ritmo e tranquilidade.
Outras vezes, eu me antecipava, chegava cedo demais, errava o ponto, tropeçava na corda ou
deixava que ela batesse em meu ombro.
A lembrança da brincadeira de corda, nas suas diferentes modalidades, ajuda-me a
compreender os processos investigativos referentes à presente dissertação, pois, ao empreendê-
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los, alternei momentos em que me senti dentro da pesquisa, tranquila e bem posicionada, como
se cantasse em uníssono com autoras(es) e demais participantes, e momentos em que me senti
deslocada, desarmonizando com os contextos, tropeçando, caindo, ou ainda do lado de fora,
buscando coragem para entrar.
Por vezes, achei insuficiente o que eu havia registrado durante o campo, em outras,
as notações me pareceram excessivas e receei não fazer jus ao observado, ou ao que foi expresso
pelos participantes e às histórias vividas em conjunto. Nesses momentos, ao resgatar o fluxo do
vivido, era como se eu não tivesse mais permissão de adentrá-lo, como se minhas notações não
mais me pertencessem. Os textos assumiam caráter de alteridade, mesmo para mim que os
escrevera. Além disso, ora encontrava perspectivas e conceitos em comum com os autores
estudados, ora deparava-me com incongruências.
Jean Clandinin e Michael Connelly (2015) afirmam que se colocar num texto é tão
difícil para o autor, como colocar-se em uma cultura é difícil para um etnólogo. Ressaltam que,
ao entrar em campo, a(o) pesquisadora(or) está entrando em uma vida em movimento, ou
melhor, em muitas vidas, pois os participantes e as realidades estudadas estão em constante
processo de mudanças, assim como a(o) própria(o) pesquisadora(or). São vidas, caminhos, que
se entrecruzam em determinado momento, mas que já existiam antes do encontro e continuarão
a existir para além dele.
Mikhail Bakhtin (2011b, p. 272) afirma que, quando nos dispomos a comunicar
algo, estamos, de alguma forma, respondendo a enunciados anteriores, uma vez que “Cada
enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados”.

Ademais, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor


grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno
silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que
usa, mas também de alguns enunciados antecedentes ‒dos seus alheios ‒ com
os quais seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles,
polemiza com eles, simplesmente já os pressupõe conhecidos do ouvinte).

Foram muitas as vezes que interrompi a redação para inverter a ordem dos
capítulos, refazer o caminho lógico dos argumentos e revisitar os episódios narrados. Mal
escrevia uma palavra, lembrava-me de um trecho lido, um autor, uma anotação do diário de
campo, uma cena registrada pelo meu celular, uma cena registrada na memória, a fala de uma
professora e, dessa forma, o texto parava, e eu o recomeçava. As telas do meu computador se
revezavam continuamente entre a bibliografia de referência, as imagens de campo, antigos
12

textos escritos e buscas ao dicionário. Livros abertos sobre a mesa juntamente me serviam de
consulta. Cada argumentação que eu assumia parecia ter sempre mil começos, porque, ao longo
da escrita, descobria que os pontos de partida que eu havia estipulado, na verdade eram meios.
Havia sempre um começo do começo. Uma experiência, uma convicção, uma leitura, algo que
veio antes, que foi originário e que eu não podia prosseguir sem mencionar.
Além dos múltiplos inícios, durante a escrita, cada elemento do campo e da
literatura me lançava a incógnitas, sensações, observações e inquietudes, sendo difícil manejar
a frustração de não conseguir abranger todos os inícios, perspectivas e elos que se mostravam
potenciais organizadores dos diálogos.
Em texto-carta dedicado a suas(seus) orientandas(os), Eliana Ayoub (2021, p. 63)
diz: “Fico o tempo todo lidando com a ansiedade de ter de priorizar o que trago ou não para os
diálogos. Às vezes me percebo desejando trazer o mundo para cá! Doce (e amarga) ilusão: o
mundo não cabe neste livro e se quer em lugar algum...”. Neste mesmo texto, a autora aponta
para o lado prazeroso e favorecedor do aprendizado que a escrita pode proporcionar: “Curioso
reparar quão trabalhosa, difícil e, ao mesmo tempo, prazeroso está sendo esta escrita. A cada
momento tenho de fazer opções, decidir o que entra e o que não entra no texto. Demoro nessas
escolhas e aprendo muito com elas” (AYOUB, 2021, p. 63).
Neste percurso não estava sozinha. Ao compartilhar meus textos com o grupo de
pesquisa da Faculdade de Educação da Unicamp, do qual faço parte, o Laboratório de Estudos
sobre Arte, Corpo e Educação (Laborarte), por meio da leitura atenta da orientadora desta
pesquisa, Profa. Dra. Eliana Ayoub (Nana), das provocações do Prof. Dr. Guilherme Prado
(membro da banca de qualificação) e das inúmeras conversas e leituras realizadas com
amigas(os), colegas de trabalho e familiares, fui conseguindo alcançar uma escrita para além
de mim, uma narrativa com alcance de sentidos compartilhados, estabelecidos na minha relação
com as(os) pares, com as(os) demais participantes da pesquisa, com autoras(es) e com as
referências que li e com quem dialoguei. O texto fluiu, justamente, quando reconheci que,
apesar de ter participado de todo o processo de pesquisa, eu, de partida, já estava
simultaneamente dentro e fora, pois o que eu pensava, sentia e escrevia já era para além de
mim, continha um outro, muitos outros – era meu, no entanto, era de outros também.
Adail Sobral, Rosaura Soligo e Guilherme Prado (2017, p. 178) se referem ao texto
de pesquisa como a um concerto e dizem que as vozes que se tornam presentes em uma
dissertação podem ser dissonantes: “O discurso tendencialmente dialógico está voltado para
tornar presentes as vozes que o constituem, para a instauração, mais ou menos explícita, de um
13

concerto de vozes, que naturalmente podem ser dissonantes”.


Clandinin e Connely (2015) ressaltam que, em um texto de pesquisa, tornar
presentes as diferentes vozes não é uma tarefa fácil, pois, se a(o) pesquisadora(or) confere
autoria muito intensa ao texto, obscurece o campo e a voz das(os) participantes; no entanto, se
confere autoria demasiadamente fragilizada, pode deixar que outras(os) pesquisadoras(es), ou
os participantes, ou mesmo a audiência (leitoras e leitores), falem totalmente por ela(e). Por
conseguinte, a abordagem da pesquisa narrativa tem como centralidade não as histórias das(dos)
participantes, nem as histórias da(o) pesquisadora(or), tampouco a audiência e a literatura, mas
o recontar e o reviver as experiências por meio daquilo que a(o) pesquisadora(or) observa e
interpreta a partir das relações que estabelece com o contexto investigado, uma vez que “A
pesquisa narrativa nos leva a um mergulho dentro de nós e de nossas memórias, as quais serão
tocadas e ressignificadas diante das experiências experienciadas no campo de pesquisa”
(CLANDININ; CONNELLY, 2015, p. 9).
Para o referido “mergulho”, mais uma vez faço alusão à brincadeira de corda. Na
modalidade “de fora”, ao ver a corda girando, antes de entrar, para me acalmar, eu buscava
balançar o corpo na pulsação da corda, criando coragem. Respirava, sentindo o próprio corpo,
vibrando-o no ritmo das canções entoadas, assegurando-me do estabelecimento das relações
entre mim, as demais participantes e a corda que girava. O que poderia ser traduzido por retomar
a própria posição, enraizar-me e manter a abertura ao outro.
O conhecimento gerado a partir desse “mergulho” está em oposição ao
conhecimento advindo do que Clandinin e Connelly (2015, p. 70), se referem como “mente
descorporificada”. Somente uma mente generalista, não situada, sem corpo, geraria a certeza
do racionalismo técnico.
Bakthin (2011a) indica, igualmente, a impossibilidade de um saber universal, uma
vez que toda perspectiva é única, pois os lugares são únicos, o que impede que os horizontes
coincidam. Não há, portanto, uma posição que abranja todas as perspectivas, mesmo se
considerarmos o mundo de significados comuns construídos pelo conhecimento.

Porém, esse mundo único do conhecimento não pode ser percebido como o único todo
concreto, preenchido pela diversidade de qualidade da existência, da mesma forma
como percebemos uma paisagem, uma cena dramática, um edifício, etc., pois a
percepção efetiva de um todo concreto pressupõe o lugar plenamente definido do
contemplador, sua singularidade e possibilidade de encarnação; o mundo do
conhecimento e cada um de seus elementos só podem ser supostos. (BAKHTIN,
2011a, p. 22)
14

Na pesquisa narrativa, a(o) pesquisadora(o) retoma o ponto de vista próprio, está


em contato consigo mesma(o) e assumindo sua posição, não para falar unicamente sobre si, o
que geraria um texto solipsista, mas sim, para produzir novos sentidos, estabelecidos naquilo
que é vivido no campo, na relação com as(os) demais participantes e ainda com a literatura.
Assim, ao retomar a própria posição, enraizar-me, mantendo a abertura ao outro,
distancio este texto de um saber genérico, totalitário e universal, aproximando-o do
conhecimento contextualizado, advindo da experiência, do que foi vivido e interpretado por
alguém. Ou seja, de um conhecimento que carrega a marca da autoria, como indica Walter
Benjamin (2017a, p. 236-237, grifo do autor), quando compara a arte de narrar ao fazeres
artesanais, ressaltando que nos dois casos se produzem objetos marcados pela ação de seus
criadores.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar
e na cidade – é ela própria, num certo sentido, uma floresta artesanal de comunicação.
Ela não está interessada em transmitir o “O puro em si” da coisa narrada, como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida
retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do
oleiro na argila do vaso”

Jorge Larrosa (2004, p. 12-13) afirma que “El ser humano es um ser que se
interpreta y, para esa autointerpretación, utiliza fundamentalmente formas narrativas”1. Por
conseguinte, os textos, que tecemos sobre nós mesmos e que nos possibilitam dar sentido à vida
e ao que se passa conosco, referem-se à temporalidade intrinsecamente humana, que se constitui
entre o nascimento e a morte, entre princípio e fim. São formulados a partir do ponto de vista
do devir, da trajetória (LARROSA, 2004).
Tal concepção vai ao encontro do que Clandinin e Connelly (2015, p. 63)
evidenciam sobre a temporalidade dentro da pesquisa narrativa: “a temporalidade é uma
questão central, em que localizar as coisas no tempo é a forma de pensar sobre elas, ou seja,
pensar não como algo que aconteceu naquele momento, mas sim como uma expressão de algo
acontecendo ao longo do tempo”.
Benjamin (2017b) discorre sobre memória e reminiscências em “A imagem de
Proust” e se refere à narrativa de À recherche du temps perdu 2 como “tecido de rememorações”.

1
O ser humano é um ser que se interpreta e, para essa autointerpretação, utiliza formas narrativas
(tradução livre da autora)
2
Em busca do tempo perdido (tradução livre da autora).
15

O autor afirma que Proust não descreveu sua vida como de fato ela aconteceu e, sim, a vida
rememorada. Complementa a afirmação, fazendo alusão ao trabalho de tecelagem de Penélope,
ressaltando o esquecimento como elemento fundamental do tecido:

Pois o principal, para o autor que rememora, não é absolutamente o que ele viveu,
mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria
preferível falar o trabalho de Penélope do Esquecimento? Não se encontra a memória
involuntária de Proust muito mais próxima do esquecimento do que daquilo que
chamamos em geral de rememoração? E não seria esse trabalho de reminiscência
espontânea, em que a rememoração é a trama e o esquecimento a urdidura, muito
antes o oposto do trabalho de Penélope, ao invés de sua cópia? (BENJAMIN, 2017b,
p. 37)

Como na rememoração apontada por Benjamin, memória e esquecimento são


igualmente importantes na pesquisa narrativa, uma vez que, por meio daquela, não se está em
busca da descrição exata dos acontecimentos, mas sim, de como foram vividos e ressignificados
ao serem lembrados, narrados pela(o) pesquisadora(or) e demais participantes.
Referindo-se a Walter Benjamin, Gilberto Safra (2005, p. 132) indica que o lugar
da narrativa é o da reminiscência, que transmite os conhecimentos de geração em geração,
tecendo a rede que em “última instância, todas as histórias constituem entre si. Uma se articula
na outra”. Nas palavras de Benjamin (2017a, p. 256), a que Safra se refere: “[O narrador] pode
recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria existência, mas
em grande parte a existência alheia)”.
Carlos Eduardo Ferraço (2007, p. 80), citando as investigações com cotidiano
escolar, afirma que, ao empreendê-las, “estamos sempre em busca de nós mesmos, de nossas
histórias de vida, de nossos lugares, tanto como alunos que fomos quanto como professores que
somos”.
Ao longo da presente dissertação, relembrei cenas, vivências, percursos e reflexões
que fazem parte da minha história, buscando explicitar meu olhar, tema de interesse e
posicionamento, certamente marcados pelas experiências vividas, bem como me esforcei por
compreender as transformações ocorridas por meio dos estudos de campo e da literatura, que
promoveram clareza, deslocamentos e amplificações nos meus modos de compreender e agir.
Entre tropeços, desencontros e incertezas, no decorrer da escrita, fui conhecendo-
me como autora pesquisadora e, com a ajuda dos colegas e principalmente da interlocução
atenta e cuidadosa da Nana, aprendi a escutar minha voz. Consequentemente, a escrita se fez
como uma brincadeira, como se eu estivesse mais uma vez a pular corda, numa tarde ensolarada,
16

em uníssono com as cantigas e vozes da minha infância, de maneira que as experiências do


campo e a literatura foram se entrecruzando e ganhando cadência.
Na continuidade deste texto de pesquisa, brincado, cantado e emaranhado, faço aqui
uma síntese, um breve roteiro organizador, com intuito de contextualizar os capítulos e as
seções dentro de uma sequência mais abrangente.

Breve roteiro

Tendo a intenção de contribuir para o favorecimento das culturas infantis em


contextos escolares, principalmente no que diz respeito aos modos sensíveis e imagéticos das
crianças compreenderem e atuarem no mundo, investiguei como o ambiente (FORNEIRO3,
1998) afeta e potencializa o brincar. Para isso, acompanhei um grupo de crianças de 4 a 5 anos
de idade que estudavam juntas em uma escola, conveniada à prefeitura da cidade de São Paulo.
O trabalho em campo ocorreu entre fevereiro e outubro de 2019. Durante os
primeiros três meses desse período, acompanhei parte da rotina escolar das crianças, conversei
e entrevistei coordenadora e professoras(es) da educação infantil, com intuito de conhecer e
viver o cotidiano da instituição, planejando os próximos passos em conjunto com os
participantes. A partir de maio, passei a propor o que chamei de “composições”. As
composições foram encontros que ocorriam em duas etapas. Na primeira etapa (20 min), eu
entrava em sala de aula e levava, no momento da roda de conversa, imagens impressas das
crianças brincando. Essas eram situações que favoreciam que eu registrasse comentários,
perguntas e relatos feitos pelas crianças, ao contemplarem fotografias das suas próprias
brincadeiras. Na segunda etapa (50 min), todas partiam para brincar no quintal, que havia sido
preparado por mim, segundo critérios oriundos da concepção do ambiente como educador. Na
semana seguinte, eu entrava em sala de aula, no momento da roda e novamente partilhava com
a turma fotos impressas do encontro anterior. Depois, mais uma vez, meninas e meninos se
dirigiam para o quintal. Ao total, foram oito composições, as quais enumerei cronologicamente:
“composição 1”, “composição 2” e assim por diante.
No presente capítulo, “Onde amarrei minhas redes”, anuncio a adoção da pesquisa

3
Lina Forneiro.
17

narrativa como abordagem metodológica e descrevo os lugares por onde passei e de onde falo,
tendo como tema principal as experiências que acredito constitutivas do meu interesse em
pesquisar modos de compreensão e produção infantis, com ênfase nas linguagens lúdica e
corporal.
Na seção “Inspiração etnográfica – uma professora café-com-leite”, conto como a
aproximação com a sociologia e a antropologia da infância consolidaram os caminhos
investigativos do presente trabalho e me auxiliaram a entender meu jeito de estar e conviver
com as crianças. Em seguida, passo a descrever a entrada em campo e o convívio com as(os)
participantes. Com intuito de preservar a privacidade deles, usarei nomes fictícios para as
crianças e equipe pedagógica escolar4.
No capítulo 2 “Pedrinhas e mundos palma das mãos”, discorro sobre conceito de
ambiente educador, sobre brincar, baseada principalmente na abordagem winnicottiana, e sobre
a imaginação material e espacial, próprias da perspectiva bachelariana.
No capítulo 3 “O brincar no ambiente maleável e plural: intimidades entre crianças
e matéria”, descrevo como as crianças usam ludicamente elementos das composições e, com o
intuito de adentrar a zona de contato e afetação múltipla entre imaginação e materialidade,
concentro as narrativas em quatro temas – concavidade, massa, peso e compasso.
Após este breve roteiro, retomo as vozes da infância, enveredando pelos caminhos
formativos explicitados na próxima seção.

4
Projeto de pesquisa foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas e
Sociais (CEP-CHS) da Unicamp e aprovado no início de 2019. Constam anexados o parecer do CEP-
CHS (anexo 1) e os modelos dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) referentes à
presente pesquisa (anexo 2).
18

Caminhos formativos – Um olhar cheio de sol

A presente dissertação versa sobre o brincar, culturas de infância, processos


imaginativos e materialidade. Foi elaborada com base no percurso que teve como intenção
investigar como o ambiente afeta e potencializa o brincar. Partindo do pressuposto de que
sensibilidade e imaginação são formas legítimas de conhecimento sobre as questões humanas
e sociais (JOBIM e SOUZA, 1994), investiguei de que maneira as crianças habitam e usam o
ambiente (FORNEIRO, 1998), no que se refere a elementos materiais e formais, ao criarem
imagens de si e do mundo, nos contextos lúdicos e de interação entre pares.
O interesse por enveredar nesse percurso se fortificou durante e em função das
minhas experiências profissional e acadêmica, que descrevo mais adiante. Acrescento a elas as
lembranças de infância, pois, segundo a afirmação de Ferraço (2007, p. 80), “estamos sempre
em busca de nós mesmos, de nossas histórias de vida, de nossos lugares”. Meu olhar, antes
mesmo da graduação, já estava “cheio de sol”, como diz Manoel de Barros (2010, p. 445), em
seu poema “O olhar”:

Ele era um andarilho.


Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida.

Diferente do que a imagem do andarilho provocou no poeta, o meu percurso (águas,


árvores e aves) marcou a retina não pelo senso de passagem, mas sim, pela própria aldeia e pelo
sentimento de pertencimento. Como narro a seguir, vivi experiências, nos contextos de família
e comunidade, que “encheram meus olhos”, tornando-me uma profissional e pesquisadora
sensível à cultura de infância, mais especificamente às criações infantis em suas dimensões
lúdica, imagética, corporal e material.
Meus avós tiveram 7 filhos, 13 netos e, até o momento, 8 bisnetos. O casal
constituiu uma família grande, com a possibilidade de convívio de parentes de diferentes idades.
Nesse contexto, as histórias de família se mantiveram vivas, sendo recorrentemente
transmitidas entre as gerações. Eu, por exemplo, ouvi tantas vezes minha mãe e tios contarem
sobre a infância deles em Botucatu/SP, onde moravam, que já não imagino as cenas, eu as
19

recordo, como se eu estivesse estado lá, presenciando meu tio brincando de esconde-esconde e
trancado, sem querer, na geladeira que, na época, tinha trava; como se eu sentisse a textura do
colchão que era colocado na escada para virar escorregador, quando meus avós saiam à noite;
ou ainda, como se eu tivesse achado os chicletes que as crianças guardavam debaixo da cama
para voltar a mascar no dia seguinte. Essas cenas me foram narradas inúmeras vezes por minha
mãe e tios que, além das próprias vivências, contavam similarmente sobre a infância de seus
pais (meus avós). Gosto muito de “lembrar” quando minha avó, com 9 anos, já encantada por
meu avô, enviou uma cartinha a ele na escola que dizia “Eu sou aquela que dará pulinhos no
recreio”. E ela deu mesmo! Conta meu avô, que logo se apaixonou por aqueles pulinhos.
A vida de casal de meus avós se iniciou em Botucatu/SP e depois de alguns anos,
em 1962, eles foram para Cotia/SP, cidade próxima à cidade de São Paulo, na Granja Vianna,
região, na época, bem pouco urbanizada, com pequenas florestas e muitos terrenos baldios. Ao
crescerem, os filhos igualmente moraram em casas da mesma região, de tal sorte que eu passei
minha infância na Granja, com intenso convívio com primos, tios e avós. Lá, na década de
1980, era comum faltar energia elétrica e haver interrupção da linha telefônica. Lembro-me de
que algumas vezes fui com meus pais a uma fazenda próxima buscar leite de vaca,
armazenando-o em galões, e à casa de plantações comprar verduras no pé. Recordo ainda que
era preciso ficar atenta(o) ao caminho de carro, pois, atravessando a rua, havia cavalos, vacas e
carneiros e, quando a pé, tínhamos de saber onde ficavam os poços d’água que eram muitos no
bairro, já que não tinha água encanada.
Brinquei com minha irmã e primos nos quintais, morros e ruas de pouco acesso.
Fazíamos poções com flores e terra, salvávamos insetos nos lagos e piscinas, andávamos pelo
chão de pedras sem pisar nas linhas, procurávamos trevo de quatro folhas, quebrávamos as
suculentas para ver e sentir sua umidade e passávamos em frente ao canil dos cachorros só para
ouvi-los latir e sair correndo de medo.
Nós, crianças, ocupávamos e habitávamos as casas e os quintais por meio da
brincadeira. Conhecíamos os cantinhos, as melhores árvores para subir, os lugares onde se
criava lama depois da chuva, onde colher fruta no pé, em que móveis se esconder, onde havia
pó, onde cheirava a naftalina, que parte do gramado era boa para dar estrelas, os melhores
lençóis para fazer cabaninhas e os colchões mais macios para pular. Do nosso ponto de vista,
as casas, os terrenos e os quintais eram como se fossem comunitários, ou seja, eram todos
nossos. Do mesmo jeito, como eram nossas as histórias contadas pelos pais e avós.
20

Gaston Bachelard, (1993, p. 20, grifos do autor), ao se referir às lembranças que


temos da casa natal, afirma: “Nossa alma é uma morada. E, lembrando-nos das ´casas´, dos
´aposentos´, aprendemos a ´morar´ em nós mesmos. Já podemos ver que as imagens da casa
caminham nos dois sentidos: estão em nós tanto quanto estamos nelas”.
Relembrando as casas de criança, percebo como as brincadeiras, vividas e narradas
em família, fortaleceram em mim o senso de comunidade e o sentimento de pertença,
constituindo minha identidade, de tal sorte que o interesse pelo brincar me acompanhou para
além da infância, afetando, entre outros aspectos, meus percursos acadêmicos investigativos e
minha prática profissional.
Na adolescência e juventude, mantive-me conectada à experiência lúdica,
aproximando-me de meninas e meninos para brincar, fossem elas(eles) minhas(meus)
primas(os) menores, irmãs(ãos) de minhas amigas, moradoras(es) de comunidades que
encontrei em viagens que fiz pelo litoral brasileiro, ou ainda crianças com as quais interagi por
meio de diferentes práticas voluntárias.
Na 8.a série (hoje 9.o ano), escolhi o brincar como tema de monografia, mesmo tema
posteriormente aprofundado em meu trabalho de conclusão de curso de graduação em
psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que concluí no fim de
2000. Para as duas referidas monografias, usei como referência principal os estudos
desenvolvidos por Donald Winnicott (1975, 1988).
Depois de graduada, continuei aprofundando os estudos sobre a perspectiva
winnicottiana e, nessa jornada, participei de grupos investigativos coordenados pela
psicanalista Luciana Pires (dois anos) e grupo de estudos com colegas de profissão (cinco anos).
Em 2000, estagiei na Casa Redonda Centro de Estudos, escola situada em
Carapicuíba/SP, cidade vizinha de Cotia/SP, onde passei a infância. Lá, trabalhei dois anos e,
neste tempo, descobri que a proximidade da escola com minha infância não se dava apenas pelo
local.
Na Casa Redonda, as crianças chegavam às 8h30 e ficavam até às 12h. Nesse
período, podiam escolher do que, onde e com quem brincar. Não eram divididas por faixa etária
e não seguiam uma rotina preestabelecida, apenas faziam uma pausa para tomar lanche em
conjunto. O espaço da escola era vasto, com muita natureza. Havia tanque de areia, lama,
brinquedos artesanais, livros, fantasias, objetos domésticos, objetos próprios à cultura popular
brasileira, tecidos, materiais de pintura e desenho, marcenaria, tudo ao alcance de meninas e
meninos.
21

Foi lá que tive a grata oportunidade de conviver e aprender com a fundadora da


escola, Maria Amélia Pereira, a Peo – educadora referência por sua trajetória, seu jeito de estar
e conviver com as crianças, conhecimento sobre a cultura popular brasileira e visão de infância.
No documentário Tarja Branca (2014, minuto 10min e 25s), Peo afirma:

Eu encontrei um bando de crianças com uma pipa na mão e os outros atrás


dizendo “Batiza! Batiza! Batiza!”. Eu parei e disse “Gente, o que é isso? O
que vocês estão batizando?” Aí o menino disse assim “Aquela pipa”. Porque
o menino usou o fio inteiro da linha, a pipa é batizada e ninguém mais pode
cortar ela. E aí eu associei: brincar para mim é usar o fio inteiro de cada ser.
Quando você está usando o seu fio de vida inteiro, você está brincando. E é
profundamente sério isso.

Era dessa forma, por inteiro, que eu me sentia ao conviver com as crianças
brincando.
Depois da experiência na Casa Redonda, decidi seguir a carreira educacional, que
por dez anos exerci em concomitância à clínica onde atuava como psicoterapeuta. Em 2009,
formei-me em pedagogia pela Universidade Brasileira Luterana do Rio Grande do Sul (EaD) e,
em 2011, optei por encerrar a clínica, concentrando minha atuação na escola. Atualmente, faz
21 anos que trabalho nos segmentos educação infantil e ensino fundamental I, tendo exercido
as funções de estagiária, auxiliar de classe, professora polivalente, consultora pedagógica e,
atualmente, orientadora educacional. Trabalhei nas instituições: Escola Casa Redonda (dois
anos), Escola Viva (seis anos), Colégio Santa Cruz (10 anos), Escola Arapoti (1 ano) e Colégio
Visconde de Porto Seguro5 (atual), todas situadas na cidade de São Paulo.
Nesse percurso de trabalho em diferentes escolas, algumas se assemelhavam à Casa
Redonda, tendo o brincar como elemento central dos processos educativos, e outras não. Mas
em todas elas, de algum jeito, as crianças brincavam. As situações lúdicas das diferentes
instituições não eram iguais entre si, mas eu notava que carregavam traços em comum. Era
visível como nos momentos de brincar, a relação entre pares e adultos da escola se modificava.
Eu intuía, ou melhor, tinha a certeza de que nessas situações algo diferente acontecia. Quando
me refiro a acontecer algo diferente, é no sentido da experiência, apontado por Larrosa (2011,
p. 5, grifo do autor), algo que “me passa”:
A experiência é ‘isso que me passa’. Vamos primeiro com isso. A experiência

5
Colégio fundado, em 1878 pela comunidade imigrante alemã da cidade de São Paulo. A unidade em
que trabalho se situa no Panamby, zona sul da Cidade de São Paulo, SP.
22

supõe, em primeiro lugar, um acontecimento ou, dito de outro modo, o passar


de algo que não sou eu. E ‘algo que não sou eu´ significa também algo que
não é resultado de minhas palavras, nem de minhas ideias, nem de minhas
representações, nem de meus sentimentos, nem de meus projetos, nem de
minhas intenções, que não depende nem do meu saber, nem do meu poder,
nem de minha vontade.

Mais adiante, o autor complementa: “E um movimento de volta porque a experiência


supõe que o acontecimento afeta a mim, que produz efeitos em mim, no que eu sou, no que eu
penso, no que eu sinto, no que eu sei, no que eu quero, etc” (LARROSA, 2011, p. 7, grifo do
autor).
Eu notava que, nas situações lúdicas, as crianças requisitavam menos a intervenção
das(os) adultas(os), a ponto de, em algumas escolas, o recreio ser usado como oportunidade de
revezamento para as(os) professoras(es) fazerem intervalos para si. Também percebia que os
estudantes, ao brincar, pareciam viver o tempo de modo diferente. Enquanto em propostas
conduzidas pelas professoras muitas vezes experimentavam curtos períodos de manutenção de
foco, inversamente, ao brincar, eles podiam ficar longos períodos cavando com dedicação o
tanque de areia, transportando água de um recipiente para o outro, desenhando no chão e nas
paredes, subindo e descendo rampas, escondendo-se em cabanas, correndo nos gramados, ou
ainda travando compridas negociações sobre as funções e papéis desempenhados nos jogos
simbólicos. Encantavam-me a alegria, a entrega corporal e a seriedade com que brincavam,
bem como o interesse em se comunicar, que mantinham nessas situações, inclusive ao viverem
conflitos e desavenças.
Em acréscimo, eu notava que, ao brincar, as crianças habitavam os lugares e usavam
os elementos presentes no contexto escolar de maneira diferenciada, procurando
recorrentemente por espaços não intencionalmente projetados para uso infantil – como embaixo
da escada, muretas, alambrados, divisas entre chão de terra e de concreto – e escolhiam
elementos simples, transformando, por exemplo, tecido em casulo, toalha de mesa, cobertor em
cabaninha. Destarte, habitavam e se deslocavam pelos diferentes espaços escolares. Ao
ressignificá-los, contextualizavam cada cantinho, objeto e material em brincadeiras. Aqui,
retomo meus sentimentos de pertencimento e de comunidade, vivenciados em mim na infância,
quando, junto com minha irmã e primas(os), transformava as casas e quintais em lugares
“nossos”. Portanto, para além do sentimento de estar por inteira e da certeza de cotidianamente
testemunhar um acontecimento (LARROSA, 2004), o brincar me trazia encantamento por seus
aspectos materiais, sensoriais e de ocupação do espaço. Aspectos esses que, como já relatei,
23

aprendi a observar por meio de variadas experiências brincantes, mas que ganhou amplitude e
especificidades a partir da minha trajetória corporal, a qual narro a seguir.
Cresci vendo minha mãe subir em árvores, balançar-se em redes, descer dunas e
montanhas correndo. Ela nunca foi esportista nem bailarina, mas sempre apresentou vivacidade
e alegria corporal, de maneira que os cuidados maternos se apresentaram para mim
intensamente atravessados por essa linguagem. Nessa interação, eu me sentia corajosa e
habilidosa. Adorava, por exemplo, escalar as pernas dela, segurando em suas mãos, para, no
fim, dar uma cambalhota. Outra brincadeira que em casa era quase diária, era o “breque”. Minha
mãe me punha sentada em seus calcanhares e, com o impulso da perna, jogava-me para o alto
e me pegava de volta, acolhendo-me com a planta dos pés. Meu pai não tinha a mesma
vivacidade corporal, mas, nas festas, acompanhava minha mãe na pista de dança. Os dois
dançavam muito, sem parar! Uma dança “puladinha” que misturava frevo, rockabilly e valsa.
Estilos que marcaram a história do casal, que viveu alguns anos em Recife/PE, que tem próxima
descendência europeia e cuja adolescência foi nos anos 1960.
Eu, como era de se imaginar, vivia pulando também. Amava correr, fazer gestos
gímnicos como parada de mão, ponte, estrela, cambalhota para trás e para frente e girar, girar
até ficar tonta. Morei em Recife de 1984 a 1986, e lá tive contato com as danças populares. Na
“Escola Parque do Recife”, onde estudei, nós aprendíamos durante os recreios passos de
ciranda, frevo, cavalo marinho e maracatu. Nos fins de semana, havia grandes cirandas nas
praças. Lembro-me de dançar e dar as mãos para pessoas que não conhecia. Todos, adultos e
crianças, cantando alto, ritmados, ao som do ganzá e da zabumba. Eu ficava fascinada pela
sintonia dos diversos corpos em movimento e pelo diálogo alegre entre dança e música.
Déborah França (2011), ao descrever a ciranda, tendo como referência a composição do músico
pernambucano Capiba, ressalta os elementos que outrora tanto me encantaram: “Mão com
mão”; diversas faixas etárias; canto e dança imbricados.

Essa ciranda não é minha só.


Ela é de todos nós, ela é de todos nós.
A melodia principal que diz
É a primeira voz, é a primeira voz.
Pra se dançar ciranda,
juntamos mãos com mão,
Formamos uma roda,
cantando essa canção. 6

6
Letra da música “Minha Ciranda”, de Lourenço Capiba.
24

Quando tinha dez anos, fiz aulas de dança. Comecei com balé, mas meu cabelo era
crespo, não se segurava na redinha, tinha alergia ao tule e me achava horrorosa naquele colã.
Mais tarde, ingressei nas aulas da bailarina e coreógrafa Beth Bastos, voltadas para consciência
corporal, baseadas nos princípios desenvolvidos pelo bailarino e coreógrafo Klauss Vianna.
Nessas aulas, eu não precisava fazer nada muito além do que era capaz. No entanto,
os movimentos eram lentos e tão diferentes do que estava acostumada a executar no dia a dia,
que era como se eu estivesse aprendendo uma outra língua. Todas as alunas estavam. Portanto,
não havia conseguir ou não conseguir, mas sim, conhecer, aprender e criar novas possibilidades.
Não havia metas a serem alcançadas, mas um processo que gerava caminhos que, ao serem
percorridos, abriam novas possibilidades.

Insisto que mais importante do que o desfecho do processo é o processo em


si, pois normalmente somos levados a objetivar nossas ações a ponto de
fixarmos metas e finalidades que acabam impedindo a vivência do próprio
processo, do rico caminho a ser percorrido. (VIANNA,2005, p.100)

Segundo Marcilio Vieira (2015), a proposta de Klauss Vianna se destaca no cenário


brasileiro por sua originalidade dentro do contexto da educação somática, que, por sua vez, tem
a experiência corporal como ponto central dos processos terapêuticos e criativos. Alinhada à
essa concepção, Eloisa Domenici (2010, p. 75) afirma que as abordagens influenciadas pela
educação somática apresentam a metodologia que não prevê modelos previamente definidos:

Nas aulas de dança influenciadas pela educação somática, ao invés de copiar


um modelo, o aluno aprende a trabalhar com parâmetros, tais como as
posições relativas entre os ossos e as articulações, os estados tônicos dos
grupamentos musculares, a situação dos seus apoios, entre outros. Este se
tornou um princípio muito comum nas abordagens técnicas baseadas em
investigação do movimento.

Fui aluna da Beth Bastos durante toda minha adolescência e começo de vida adulta.
Por intermédio dela, conheci e me apaixonei pelo universo da dança contemporânea, tornando-
me conjuntamente aluna da bailarina Zélia Monteiro. Jussara Miller (2005) enfatiza seis tópicos
corporais trabalhados na abordagem Klauss Vianna, que compõem o que a autora cunhou de
“acordar”. São eles: presença, articulações, peso, apoios, resistência, oposições e eixo global.
Ainda segundo a autora, trata-se de percurso de auto-observação, conduzido pelos sentidos, o
25

despertar sensorial, que resulta “em uma Presença: o estar presente aqui e agora” (MILLER,
2005, p. 68).
Logo, por 20 anos vivi a dança, sintonizada com o peso dos ossos, abertura de
articulações, equilíbrio dinâmico, atenção à respiração, enrolamento da coluna, vivacidade da
ponta dos pés ao cocuruto da cabeça.
Além das aulas, fiz parte de um grupo de criação em dança por cinco anos, em
conjunto com outras alunas da Beth e da Zélia, o que me ajudou a compreender as dimensões
expressivas, estéticas e criativas que a experiência corporal e os processos investigativos,
ligados a ela, podem alcançar. Compreensão esta que se amplia nas palavras de Monteiro
(2007, n.p):
Todos os bailarinos procuram essas técnicas, mas procuram como técnicas de
fisioterapia justamente para ajudar na tal da preparação do corpo, para deixar
o corpo preparado. E do Klauss não era para deixar melhor preparado, isso é
muito importante que fique claro. Podia até ter essa função também, mas ia
muito além disso, era esse próprio trabalho de conhecimento e sensibilização
do corpo que fazia a cognição para a criação no movimento e no gesto, na
dança.

Vieira (2015, p. 141) aponta igualmente para a importância da articulação entre a técnica
e o processo criativo, dentro da perspectiva de Vianna: “Na técnica de Vianna, o viés somático
está sempre articulado às questões técnico-expressivas e criativas como um sistema dinâmico
de construção corporal para o processo criativo do intérprete-criador”.
Nessa abordagem, o corpo é entendido como uma espécie de “captador”, favorecedor
dos processos criativos. Em entrevista para o Projeto “Klauss Vianna, um resgate histórico”,
Monteiro (2007, n.p) afirma: “Era baseado também na questão do ser humano, do corpo como
um captador [...]. Um alvo sensível que é capaz de captar e dar respostas, leituras e respostas
para o ambiente, um corpo que permeava nesse sentido”.
As experiências vividas com o grupo de dança do qual fui membro me ajudaram a
compor gestos e movimentos a partir da sensorialidade, da sensação e do contato (com corpo
dos[as] outros(as) bailarinos(as), com objetos e ambiente). Nesse percurso, reativei a própria
infância. Miller (2005, p. 105) afirma que “Cada corpo é vestido de seus vestígios”, que,
segundo a autora, são memórias registradas no decorrer da vida que se expressam graças à
estrutura e à organização corporal de cada pessoa.
Esses vestígios se equiparam aos gestos/imagens que cada pessoa carrega consigo, aos
quais Ayoub (2012, p. 279) faz referência, ao discorrer sobre linguagem e compreensão à luz
26

dos conceitos bakhtinianos. Segundo a autora, da mesma forma como a palavra vai à palavra,
o gesto vai ao gesto, uma vez que: “Por mais que estejamos embotados em nossa gestualidade,
em nossa expressividade corporal, não somos seres mudos - privados de gestos. Ao contrário,
o gesto/imagem que apreendo do outro, reverbera em mim mediatizado/a pelos gestos/imagens
que trago comigo”. Nessa ótica, como bem aponta Ayoub (2001, p.56-57): “[...] a expressão
corporal caracteriza-se como uma das linguagens fundamentais a serem trabalhadas na infância.
A riqueza de possibilidades da linguagem corporal revela um universo a ser vivenciado,
conhecido, desfrutado, com prazer e alegria. [...]”.
Minha trajetória na dança foi qualificada pela experiência comunitária e a sensação de
pertencimento, de maneira semelhante ao brincar como narrei anteriormente, marcando as
retinas e enchendo meus olhos de sol (BARROS, 2010). Tornei-me, então, uma educadora
sensível às linguagens lúdica e corporal, principalmente nas suas dimensões criativa e
expressiva.
Quando, em 2018, entrei para o Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), do qual faz parte a presente
dissertação, foi como um batizado, no sentido a que se referiu Peo (2014) na história da pipa.
Foi a partir desse programa que pude tecer simbolicamente um fio por inteiro, entrecruzando
as experiências lúdicas de infância, somadas às formações profissional e acadêmica e ao vivido
em campo, ampliando e aprofundando pontos de vista no diálogo com autoras(es), nas
discussões e nas reflexões próprias às situações formativas da pós-graduação e na elaboração
do texto de pesquisa.

Inspiração etnográfica - Uma professora café-com-leite

Quando eu era pequena, se uma criança era inexperiente em um jogo e, mesmo


assim, queria participar, as(os) outras(os) jogadoras(es), normalmente mais velhas(os) ou mais
experientes na brincadeira, impunham a ela ser “café-com-leite”. Nessa condição, a criança
podia jogar, mas sem que as regras valessem para ela. Comumente, quem era “café-com-leite”
protestava e se esmerava ao máximo para conquistar um bom desempenho para, enfim, tornar-
se um participante comum.
Durante a primeira década de graduada, e alguns anos mais, considerei minha
27

atenção ao brincar, à linguagem corporal e ao imaginário, interesses “café-com-leite”, do ponto


de vista das demandas pedagógicas. Como se não valessem, ou não estivessem de acordo com
as regras compartilhadas pela comunidade escolar. Eu não vislumbrava esses interesses, e esse
jeito de estar com as crianças, como próprios da educação e das(os) professoras(es) polivalentes
ou generalistas, o que condizia com o pensamento da época, como aponta Ayoub (2001, p. 58),
ao refletir sobre a linguagem corporal na educação infantil:

Outro aspecto a ser considerado é que, muitas vezes, por existir um espaço
específico para um trabalho corporal nas aulas de educação física, nos demais
tempos da jornada cotidiana, acentua-se um trabalho de natureza intelectual
no qual a dimensão expressiva por meio da gestualidade é praticamente
esquecida.

Com aderência acrítica a essa assimetria, eu me fazia perguntas repreensivas como:


estou em busca de uma infância romantizada? Eu acredito que todas as escolas deveriam ser
como a Casa Redonda? Eu estou rechaçando a educação formal? À vista disso, quando me
percebia refletindo sobre as situações menos investidas de planejamento didático, exigia-me
explicações que fundamentassem a relevância de ficar observando por longos períodos os
modos das crianças conversarem, interagirem com os adultos, entre si e com os espaços.
Explicações essas que fossem para além do reconhecimento subjetivo de ter vivido uma boa
experiência. Enfim, eu desvalorizava minhas percepções por não identificar conhecimento
produzido a partir delas e por entendê-las como desprovidas de propósitos pedagógicos
definidos.
Venho de uma família de educadoras escolares. Minha avó materna foi professora
e diretora de ensino, na década de 1950. Minha mãe e minhas três tias maternas foram
professoras, coordenadoras e orientadoras. Minha mãe teve uma escola por 20 anos. Era
comum que, nas mesas dos almoços de domingo em família, a educação escolar fosse o tema
mais discutido e opinado. Mais tarde em ambientes profissionais e acadêmicos, continuei
participando de debates, de tal sorte que cresci aprendendo com pessoas que refletiam e
atuavam em escolas, com preocupações explícitas de promover e sustentar processos de
melhorias e transformações. Nessa trajetória, ouvi diversas vezes, frases como: “isso está
errado”, “isso é demasiadamente romântico”, “isso é demasiadamente instrutivo”, “isso é
pouco democrático”, “isso é muito maternal”, “isso é muito infantil”, “isso é descabido para a
idade”, “isso é pouco inclusivo”, “isso é demasiadamente autoritário”, “isso é espontaneísta”,
“isso é muito tradicional”, “isso não tem embasamento”. O “isso” era sempre a ação da
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comunidade adulta/educadora, que era foco das problemáticas das discussões das quais
participei. Discussões essas pertinentes ao contexto histórico e social no qual eu estava inserida,
marcado pelas problemáticas da educação moderna e da concepção moderna de infância,
apontadas por diversas(os) autoras(es) (ÀRIES, 1981; BROUGÈRE, 1998; CARVALHO;
PEDROSA, 2002; CORSARO, 2005, 2011; DELGADO, 2013; DELGADO ; MÜLLER, 2005;
FRIEDMAN, 2015, 2016; KRAMER, 2015; MÜLLER, 2006; PINTO, 1997; SARMENTO,
2002, 2004, 2008, 2011; SIROTA, 2001, 20127). Segundo esse entendimento, a infância é uma
etapa do desenvolvimento, caracterizada por inacabamento, dependência, imaturidade e
inaptidão, cabendo à comunidade adulta mostrar e pavimentar os caminhos para a saída dessa
condição. Assim, o tempo futuro, como ápice do crescimento e maturação, seria o sinal de
possível completude a ser alcançada. Solange Jobim e Souza (2015, p. 50) enumera os traços
atribuídos a esse tempo, conforme a abordagem moderna de desenvolvimento, o saber linear,
cumulativo, homogêneo e vazio:

Assim sendo, a concepção de tempo linear, cumulativo, homogêneo e vazio,


apontando sempre para seu desdobramento inexorável no futuro, parece se
constituir no alicerce ideológico mais importante para as concepções de
desenvolvimento baseadas nos princípios ditos ontogenéticos.

Sonia Kramer (2015, p. 17), ao fazer referência à sua própria formação, descreve
modos modernos de conceber a infância, que se assemelham aos que eu aprendi durante as
graduações, em psicologia e pedagogia:

[...] referenciais eminentemente psicológicos – e de uma psicologia do


indivíduo, dos dons e aptidões – que estiveram presentes na formação
acadêmica que recebíamos, e que insistiam em caracterizar a criança quer
como imatura e dependente, carente e incompleta, quer como esponja
absorvente, semente a desabrochar, quer ainda como perverso polimorfo ou
sujeito epistêmico.

Concepção que, segundo Jacinto Manuel Sarmento (2002, p. 2), está aliada à ideia
de déficit.

Esta ideia do déficit é inerente à negatividade na definição da criança, que


constitui um pressuposto epistémico na construção social da infância pela

7
Philippe Ariés, Gilles Brougère, Maria Isabel Pedrosa, Ana Maria Carvalho, Willian Corsaro, Ana
Cristina Coll Delgado, Fernanda Müller, Manuel Pinto, Manuel Sarmento, Regine Sirota.
29

modernidade: criança é o que não fala (infans), o que não tem luz (o a-luno),
o que não trabalha, o que não tem direitos políticos, o que não é imputável, o
que não tem responsabilidade parental ou judicial, o que carece de razão, etc.

Partindo desse entendimento, sobrava a nós, professoras(es), o difícil propósito de


cuidar, proteger, prover, acolher, orientar e instruir as crianças. Tarefas árduas, que exigiam
perseverança e nos impulsionavam à contínua busca por formação. Fui professora de meninas
e meninos de todas as idades da educação infantil – 1, 2, 3, 4, 5 e 5 anos – em três escolas
diferentes, de 2000 a 2018. Nesse percurso, frequentemente desejei ter mais conhecimentos
sobre a infância, mais experiência na área e mais competência para cuidar delas. Sobre a noção
de infância e sua relação com ação do adulto educador, Sarmento (2008, p. 3) afirma que “[...]
as crianças eram consideradas, antes de mais, como o destinatário do trabalho dos adultos e o
seu estudo só era considerado enquanto alvo do tratamento, da orientação ou da acção
pedagógica dos mais velhos”.
Identificada com a função de trabalhar pelas crianças, identicamente eu as entendia
como alvo do tratamento, da orientação e da ação pedagógica. Para isso, deixava de olhá-las,
focando minha atenção para a própria ação pedagógica: “Que sequências didáticas propor?
Como mediar? Como intervir? Como me comunicar? Como sensibilizar?”.
Com o intuito de responder a essas questões, eu me cobrava objetivos claros, ou
seja, buscava compreender o processo educativo das crianças, identificando de onde elas
partiam e onde era desejado que chegassem. Logo, quanto mais definida a noção de criança,
marcada pela incompletude e imaturidade, mais definidos era meu papel e a minha própria
adultez. Manuel Pinto (1997, p. 55), ao comentar o texto de Neil Postman (2012) sobre a
definição de infância, conclui “De onde podemos propor que, no processo histórico de
construção da noção moderna de criança, foi ocorrendo, concomitantemente, um simétrico
processo de construção da noção de adultez”.
A noção moderna de infância abarca abordagens diferentes entre si, mas que podem
ser agrupadas em dois grandes eixos (PINTO, 1997). O primeiro tem como metáfora central a
teoria da “tabula rasa”, de John Locke. Segundo essa perspectiva, o ser humano nasce como
uma superfície vazia, maleável, como cera, sobre a qual os adultos inscrevem a cultura,
modelando a criança da maneira que julgam necessária ao seu desenvolvimento. Esse
entendimento ressalta a importância do ambiente, que deve atuar positivamente na formação e
na instrução dos indivíduos. O segundo eixo tem como metáfora o ser puro de Rousseau que,
por sua vez, tem como base a concepção de que a criança nasce boa e pura, precisando apenas
30

ser amada e protegida. Nesse entendimento, subjaz a ideia de que o ambiente deve atuar da
maneira mais reduzida possível, preservando a inocência e a espontaneidade infantil (PINTO,
1997).
Sobre o mesmo tema, Sarmento (2004) afirma que saberes da pediatria, da
psicologia do desenvolvimento e da pedagogia se constituíram ao longo de 250 anos em torno
desse dualismo, originando outras abordagens que se contrapõem, como: rousseaunianas e
montaigneanas; construtivismo e comportamentalismo; pedagogias centradas no prazer;
pedagogias centradas no esforço; proposições ligadas à liberdade; e proposições ligadas ao
controle.
Os óculos que a maioria de minhas colegas e eu vestíamos, durante os anos 1990 e
início de 2000, permitia-nos enxergar as crianças e as infâncias vividas no contexto escolar,
somente por esse dualismo. Logo, o interesse e o encantamento que eu nutria pelo brincar se
mostravam “perigosos”, como se a proximidade com a brincadeira automaticamente me
posicionasse no centro do pensamento romântico, rechaçando a educação formal, o
aprendizado, a cultura e o contexto social. Segundo Larrosa (2004, p. 21), “O sujeito moderno
se relaciona com o acontecimento do ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade.
Sempre se pergunta sobre o que pode fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo,
consertar algo”.
É nesse sentido que Pinto (1997) observa a semelhança entre as duas pontas da
dualidade anteriormente citada, uma vez que, em todos os casos, se evidencia a intervenção do
adulto como fundamental na formação de meninas e meninos que, segundo as duas linhas de
pensamento, é um ser deficiente, que ora necessita ser protegido e salvaguardado dos riscos
impostos pela sociedade, ora necessita de instrução para ser levado a deixar de ser o que é até
se tornar um adulto.

Para lá da evidente distância entre o “ambientalismo” de Locke e o


romantismo de Rousseau, o que emerge é algo que aproxima os dois
pensadores [...]. Em ambos se detecta, de fato, o reconhecimento do caráter
decisivo da atenção e da intervenção dos adultos no processo de formação das
crianças. (PINTO, 1997, p. 41, grifo do autor)

Como eu carregava o referido propósito de fazer pelas crianças, de organizar o


mundo para elas, em função do que seria “melhor” para a formação delas, não me permitia
estudar o brincar sem que eu soubesse de antemão como me posicionar sobre a brincadeira no
contexto escolar.
31

Foi pelas lentes da máquina fotográfica do casal de pesquisadores Renata Meirelles


e David Reeks, que meu olhar começou a se transformar. Acompanhados de seus filhos,
percorreram o Brasil, visitando comunidades rurais, indígenas, quilombolas, grandes
metrópoles, sertão e litoral, e registraram em filmes, áudios e fotos o brincar de meninos e
meninos. O material é extremamente revelador e expressivo, resultando no documentário
Território do Brincar (2015). Nele, são registradas, além das crianças, cenas das comunidades
onde vivem, suas casas e a paisagem natural. É lindo assistir a meninos e meninas de diversas
partes do Brasil brincando com seus pares, fabricando os próprios brinquedos, usando
ferramentas como serrotes e facões, aprendendo no convívio com os adultos e meninas e
meninos mais velhas e participando das tradições festivas de suas comunidades.
Meirelles e Reeks (2015) aproximam o espectador do olhar infantil. O formato
como apresentam os registros, os pontos focais das imagens, as falas e os gestos registrados,
revelam cenas do nosso país “através dos olhos das crianças”. O casal não estava interessado
em buscar prescrições sobre como interagir com as crianças, que caminhos propor a elas, o que
falta a elas ou o que falta fazer, mas sim, registrar e reconhecer “o que já é”. Essa maneira de
aproximação da infância vai ao encontro do que Regine Sirota (2001, p.19) aponta como
fundamental na pesquisa com crianças: “Trata-se de inverter a proposição clássica, não de
discutir sobre o que produzem a escola, a família ou o Estado mas de indagar sobre o que a
criança cria na interseção de suas instâncias de socialização”.
Essa inversão foi decisiva para mim. As referidas imagens produzidas pelo
Território do brincar (2015) e o aprofundamento dos estudos sobre culturas infantis amainaram
em mim o questionamento sobre “o que fazer pelas crianças?” e amplificaram a pergunta “o
que posso aprender com elas?”.
No Brasil, essa nova abordagem de aproximação às culturas infantis vem sendo
proposto pela sociologia da infância desde o início da década de 1980, como afirma Ana
Cristina Delgado (2013, p. 20), ao se referir aos estudos da infância no Brasil: “até os anos de
1980, não era um tema de estudo importante no campo da Sociologia, como foi na Psicologia,
na Psicanálise, na Medicina e na Pedagogia [...]”, mas que se amplificaram a partir “do intenso
e generoso trabalho de divulgação realizado por Sarmento junto a pesquisadores brasileiros”
(DELGADO, 2013, p. 16).
Adriana Friedman (2011) ressalta que as pesquisas feitas nesse campo contribuíram
para consolidar as premissas de que as crianças são atores sociais, que formulam sentidos sobre
o mundo, constroem e acionam sistemas simbólicos, sendo, portanto, detentoras de culturas
32

próprias, o que não significa dizer que se situam à parte do mundo adulto.
Como afirmam Ana Cristina Delgado e Fernanda Müller, (2005, p. 164), as
culturas de infância não são produzidas num vazio social, e as crianças não têm completa
autonomia no processo de socialização, “as respostas e reações, os jogos sociodramáticos, as
brincadeiras e as interpretações da realidade são também produtos das interações com adultos
e crianças”. As culturas de infância se produzem dentro de contextos determinados. Nessa ótica,
a criança não é vista como um ser abstrato e universal e, sim, pertencente a grupos concretos e
contextualizados, sob os quais incidem outros fatores de diferenças, que vão além do recorte
geracional, como recortes de gênero, raça, posição social, entre outros. Delgado e Müller (2005)
se referem a essas culturas como “múltiplas infâncias”.
Sarmento (2002, p. 3) salienta, no entanto, que apesar de esses fatores de diferença
incidirem sobre as infâncias, acarretando múltiplas culturas, há uma condição comum a elas:
todas são uma “geração desprovida de condições autônomas de sobrevivência e de crescimento
e que estão sob o controlo da geração adulta”. As culturas infantis dispõem de uma
“universalidade” que ultrapassa os limites da inserção cultural local de cada criança,
apresentando formas próprias e específicas de interpretação desses contextos. Nas palavras do
autor: “Não obstante, a ‘marca’ da geração torna-se patente em todas as culturas infantis como
denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais
para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção cultural”.
(SARMENTO, 2002, p. 4, grifo do autor).
Na interação com os adultos, as crianças são expostas a crenças, valores e
conhecimentos, que são transformados, gerando juízos, interpretações infantis que favorecem
a configuração e as mudanças das formas sociais.

Assim, as crianças não recebem apenas uma cultura constituída que lhes
atribui um lugar e papeis sociais, mas operam transformações nessa cultura,
seja sob a forma como a interpretam e integram, seja nos efeitos que nela
produzem, a partir das suas próprias práticas (a arte contemporânea, por
exemplo, ilustra bem os efeitos das expressões infantis integradas no
imaginário colectivo). (SARMENTO, 2009, p. 15)

Willian Corsaro (2005), um dos pioneiros na área, já havia apontado para a maneira
própria das crianças de compreender e atuar no mundo, tornando-as capazes de provocar e
reinventar os sistemas culturais em que estão inseridas. De acordo com o autor, as crianças
produzem e partilham entre si um conjunto de atividades, rotinas, artefatos, valores e
33

preocupações – que designou como cultura de pares –, por meio dos quais atribuem sentidos às
suas experiências, modo interpretativo – o que designou como reprodução interpretativa. Ou
seja, para Corsaro (2005), as crianças são ativas nos processos de construção de conhecimento
e, para além disso, são autoras e produzem saberes compartilhados, imprimindo suas marcas.
Maria Leticia Nascimento (2016) aborda esses conceitos, afirmando que a apropriação e a
interpretação dos sistemas culturais adultos, por parte das crianças, provocam a reinvenção da
cultura, inter-relacionando os mundos sociais/culturais. “Isto é possível a partir do coletivo, da
atividade em comum, na qual as crianças negociam, partilham e criam culturas com outras
crianças e com outros adultos” (NASCIMENTO, 2016, p. 34).
Como exemplo de renovações operadas por meio da produção cultural infantil,
Sarmento (2002, p. 17) cita artistas que fizeram um esforço epistemológico para rever o mundo
humano, como Miró, Paul Klee, Dubuffet e Paula Rego, iluminando “os olhos dos adultos com
a redescoberta dos traços das crianças”.
Corsaro (2005, p. 443, grifo do autor) discute a relação do adulto pesquisador
interessado pelas culturas infantis e ressalta que se trata de aprender com as crianças e não sobre
as crianças. “Discuto como, com o tempo, passei a fazer ‘pesquisa com, e não mais sobre,
crianças’, ou seja, como meus métodos de coleta de dados acabaram se tornando gradualmente
mais abertos à contribuição direta das crianças”.
Segundo Meirelles (2015, p. 20), isso exige “[...] a liberdade de não buscar
respostas, mas nos deixar levar pelas ações e pelas expressões infantis, em uma atitude de
aprendiz das crianças”. Sim, é uma liberdade exigente. Exige deslocamentos, o abandono da
posição “adultocêntrica” e a aceitação da condição de aprendiz.
Esse seria o caminho da abordagem de investigação etnográfica, que tem sido
recorrentemente adotada pelos pesquisadores das culturas de infância, alguns dos quais citei
anteriormente (CARVALHO; PEDROSA, 2002; CORSARO, 2005, 2011; DELGADO, 2013;
DELGADO; MÜLLER, 2005; MÜLLER, 2006; PINTO, 1997; SARMENTO, 2002, 2004,
2008, 2011; SIROTA, 2001, 2012). Segundo essa ótica, para conhecer as diferentes culturas, é
necessário inserir-se no contexto e conviver com suas(seus) atrizes(atores) sociais, de forma a
se aproximar de seus modos de interpretar e viver o cotidiano, as formações de grupos, a
distribuição de poderes, papéis, etc. Isso não significa, porém, isentar-se da própria
singularidade; pelo contrário, cabe estar consciente de si, dos impactos vividos durante o
processo de investigação, tendo como base de análise a produção de dados gerados a partir do
convívio.
34

Em etnografia realizamos um trabalho de construção e tessitura que se relaciona com


nossas experiências sociais e culturais em confronto com as experiências das crianças,
estranhas e próximas, íntimas e distantes de nós adultos. Realizamos, portanto, um
duplo exercício de familiarização e distanciamento que é, no mínimo, instigante. Este
jogo tenso de estabelecer relações entre o que é estranho e ao mesmo tempo tão
próximo e íntimo é o que consideramos um desafio na produção nos estudos com
crianças. (DELGADO; MÜLLER, 2008, p. 9)

Friedman (2015, p. 42) indica que esse tipo de investigação implica em “se colocar
na pele do outro”, em constante diálogo com as percepções da(o) pesquisadora(or) e com a sua
“criança interior”. Luiza Lameirão (2015, p. 78) afirma que, no trabalho investigativo, “O
importante é chegar às perguntas que muitas vezes permanecem, por anos, como enigmas em
nossa vida” e, em seguida, cita as palavras do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (1999 apud
LAMEIRÃO, 2015, p. 344): “Não corras, vai devagar, que aonde tens de ir só cabe a ti! Vai
devagar, não corras, que a criança de teu eu, recém-nascida, eterna, não te pode seguir!”. Para
mim, ir devagar e ter comigo as perguntas que permanecem é ir por inteiro, ir batizada, como
o fio da pipa referida pela Peo (2014).
Houve um tempo em que eu estremecia ao ouvir a expressão “contato com criança
interior”. Imersa no já citado dualismo – ambientalismo x romantismo – lia essa proposta como
“em busca da infância romantizada”. Portanto, poder confiar no caminho indicado pelas
crianças e suas culturas tem sido, para mim, o grande legado das pesquisas realizadas no campo
da sociologia. Ancorada nesse ponto de vista, compreendi a escola como lugar de produção
cultural e deixei de considerar meninas e meninos unicamente como alvo de minha atuação,
vislumbrando o entendimento de que elas(eles) já estão inseridas em contextos sociais e
históricos, já possuem cultura e conhecimento de mundo, ou seja, são coautoras(es) do mundo
como o conhecemos. E é junto, é com elas(eles) e não para elas(eles) que atualmente direciono
minha ação educativa e o desenvolvimento da presente pesquisa.
À vista disso, estar com as crianças, convivendo e observando seus modos de viver
o cotidiano, não significava um afastamento da minha responsabilidade como professora, mas
o contrário, era por essa via que eu poderia conquistar elementos que me ajudariam a repensar
e aprimorar as maneiras adultas de favorecer as culturas infantis e, junto com as crianças, criar
oportunidades de avanços nas aprendizagens e no conhecimento de mundo.
Dessa forma, o termo “café-com-leite” deixou de ser pejorativo para mim. Hoje,
entendo que ser “café-com-leite” não é ser menos importante, estar de fora ou ser tutelado por
alguém. Pelo contrário, é uma oportunidade de estar junto e entrar no jogo, com tempo para
35

aprender, sendo permitido observar e experimentar, mesmo que ainda não se saiba o que fazer
ou para onde ir. O que anteriormente indicava momentos de transgressão e de desacordo com
os propósitos educacionais, hoje, para mim, significa investigar, aprender, conhecer.
Não me sinto mais uma professora café-com-leite, aquela que anteriormente
indiquei como não sendo capaz de sustentar propósitos pedagógicos, afastando-se de vez em
quando da sua responsabilidade profissional. Atualmente, entendo que sou uma professora-
pesquisadora, que se preocupa em promover contextos pedagógicos, favorecedores das culturas
infantis e dos múltiplos aprendizados e que, para isso, se concede a possibilidade de, a depender
da situação e do grau de desconhecimento sobre o assunto que deseja aprender, se tonar café-
com-leite, tendo as crianças como referência, reconhecendo que, em muitas dimensões, elas são
de fato “jogadoras” mais experientes.
Essa mudança de posicionamento, a meu ver, não necessariamente invalida os
conhecimentos produzidos nas áreas da psicologia e da pedagogia, justamente pela dimensão
de multidisciplinaridade que requer os estudos das infâncias, como expressa Kramer (2015).
Embora reconheça as contribuições dos trabalhos realizados dentro do campo da antropologia
e da sociologia da infância – como ênfase na cultura, na necessidade de pesquisar a diversidade,
na importância de se estranhar o familiar e na radicalidade da mudança de estatuto teórico das
infâncias –, ela ressalta que o conhecimento produzido por outras áreas pode continuar a
contribuir para a pesquisa com crianças, principalmente, ao se considerarem as diversas
possibilidades de leituras e de apropriação de uma teoria.

Diante dessa multiplicidade de áreas do conhecimento em face da diversidade


de linhas teóricas no interior de cada área, percebemos, então, que a infância
é um campo temático de natureza interdisciplinar. E essa consciência difunde-
se cada vez mais entre aqueles que pensam a criança, atuam com ela,
desenvolvem pesquisa e/ou implementam políticas públicas e que vão se
situando, deslocando, movendo, buscando, encontrando e desencontrando. O
campo não é uniforme nem unânime, felizmente. Diversas são as
possibilidades de leitura e apropriação das teorias; diversas são as portas de
entrada, as formas de abordagem, os posicionamentos, os temas de interesse,
as estratégias adotadas. (KRAMER, 2015, p. 25)

Nessa citação, a autora usa recorrentemente derivações da palavra diversidade.


Tendo sido menina, estudante, psicóloga, dançarina, professora polivalente, psicoterapeuta,
orientadora educacional e pesquisadora da área de educação, reconheço em mim essa forma
múltipla de olhar, compreender, estar e atuar com crianças.
No diálogo entre as áreas, no entanto, acredito serem importantes os cuidados
36

indicados por Nascimento (2016, p. 5), para que não se apaguem as especificidades do
posicionamento das diferentes perspectivas.

Ocorre que outros se equivocam quando usam, em uma relação direta, autores
da pedagogia com os da sociologia. Uma coisa é colocar áreas em diálogo,
outra é tratar da construção social da infância ou da interpretação das culturas
e, por exemplo, usar Malagguzzi. Para ser objetiva, é possível colocar áreas
em diálogo, mas às vezes parece não haver discernimento do objeto de cada
campo científico, gerando confusão e equívocos que não ocorre apenas com a
sociologia da infância.

Compartilho desse ponto de vista e localizo minha aproximação aos estudos


realizados no campo da sociologia da infância como fator decisivo para esse deslocamento. No
entanto, mantendo meu interesse no contexto escolar e suas possibilidades de reformulações e
aprimoramentos, ainda que, em função do que é aprendido e produzido juntos com as crianças,
continuo imersa no campo da educação. Almejo um diálogo entre as áreas e mantenho as(as)
autoras(es) da sociologia da infância como referência, bem como a pesquisa etnográfica como
inspiração.
Por conseguinte, ainda que tenha centralidade no que vivi e aprendi com as crianças
– considerando-as como atrizes(atores) sociais marcadas(os) pela diferença, e não pela falta,
em relação às óticas adultas –, o presente trabalho se situa no campo da educação escolar, tendo
como objetivo geral produzir conhecimento para apoiar a escolha e a composição de ambientes
favorecedores dos modos infantis de produção de cultura intimamente ligados aos aspectos
sensoriais, materiais e lúdicos do mundo humano. Objetivo esse que acredito se alinhar às
propostas de Ayoub (2005) acerca da linguagem corporal na educação infantil. Esse
alinhamento se dá do ponto de vista da temática e no como fazê-lo:

Descobrir junto com as crianças essas “outras” linguagens é um desafio a ser


superado”. Assim como é um desafio olharmos para nossas crianças
inseridas na sociedade e na cultura, o que significa pensar numa organização
do trabalho pedagógico que contemple essas diferentes linguagens em suas
múltiplas formas de expressão (sem cair nas armadilhas das hierarquizações
que insistem em valorizar algumas linguagens em detrimento de outras),
sempre levando em consideração o papel dos adultos como mediadores no
processo de apropriação do acervo de formas de representação do mundo.
(AYOUB, 2005, p. 152, grifo do autor)

Ou seja, busco processos de descobertas realizados com as meninas e os meninos,


como aponta a autora, uma vez que elas(eles) são imersas(os) e produtoras(es) de culturas, com
37

experiências em diversas linguagens. Ainda assim, identifico-me com a cruzada pedagógica,


igualmente salientada pela autora, de pensar uma organização do trabalho pedagógico. Em vista
disso, a presente dissertação se situa dentro do âmbito da educação, mais especificamente do
contexto escolar e da composição e sustentação de espaços de cuidado, aprendizado e
desenvolvimento para as crianças.

Campo da pesquisa - convivendo com os Capogingas

A escola onde realizei o trabalho de campo8 fica na Zona Oeste de São Paulo,
próxima à Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP).9 Trata-se
de uma escola experimental que atende em sua maioria crianças e adolescentes de favelas10
próximas à CEAGESP.
Desde a época da graduação, eu guardava comigo o desejo de conhecer essa
instituição que é referência no trabalho com cultura brasileira e diversidade de linguagens,
principalmente no que diz respeito às oficinas oferecidas para crianças, adolescentes e seus
familiares no campo das artes plásticas, música, literatura e dança. Essa escola é gratuita e
conveniada da prefeitura de São Paulo, tendo ainda a iniciativa privada como financiadora, em
forma de doações pessoais e por meio de um instituto, com regime de fundação.
O instituto atua na sociedade de diversas formas, considerando aspectos culturais,
de saúde e educação para as crianças, bem como para seus familiares e cuidadoras(es). Uma de
suas iniciativas que caminha ao encontro dessa premissa é o “barraco-escola”:

Em 2005, o Instituto adquiriu um barraco na Favela [...]com o objetivo de ter


uma relação direta com as comunidades. Assim, os desafios sociais e
domésticos que influenciavam as atividades educativas puderam ser melhor
compreendidos. A iniciativa originou a abertura de mais um barraco-escola,
este na Favela [...]. (INSTITUTO ACAIA, 2017)11
Francisco12, professor da turma que acompanhei durante o trabalho de campo,

8
O modelo do termo de autorização referente à instituição consta anexado à presente dissertação (anexo 4)
9
Maior central de abastecimento de frutas, legumes, verduras e flores da América Latina.
10
Optei por utilizar o termo “favela”, seguindo a mesma maneira que professoras(es) e famílias da região se
referem ao lugar onde mora a maioria dos(as) estudantes dessa escola.
11
Disponível em: https://www.acaia.org.br/ateliescola.
12
Os(as) participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e atribuí nomes
fictícios para a preservação das identidades.
38

contou-me que, por meio dessa ação “barraco-escola”, as(os) professoras(es) vão até as
comunidades, montam uma base e lá propõem atividades a meninas e meninos e,
consequentemente, passam a conhecer melhor as condições de moradia das crianças. As favelas
“Linha” e “Nove” ocupam atualmente uma área de 14 207 m2, segundo o jornal El País13 e são
constituídas por 700 famílias, ou seja, há, em média, 20 m 2 para cada uma delas. As
comunidades dessa região sofrem constantemente com enchentes e, como as paredes são
coladinhas umas às outras, há pouca entrada de luz de sol, o que favorece o mau cheiro e o
mofo. Há um Projeto de Intervenção Urbana (PIU) em vigor que pretende substituir as favelas
por moradias na própria região, mas ele está atrasado em função de negociações entre empresa
privada, poder público e vizinhança.14
A história desse instituto começou em 1997, quando uma artista plástica passou a
receber meninas e meninos das favelas do entorno da CEAGESP e do Conjunto Habitacional
Cingapura Madeirite em seu ateliê de artes. As atividades se expandiram e criou-se um espaço
de oficinas diárias oferecidas no contraturno da escola formal. Mais tarde, passou a ofertar
ensino regular para o início do ensino fundamental I, fundamental II e médio. Por fim, em 2016,
inaugurou-se o segmento da educação infantil. Atualmente, o instituto é referência pelo trabalho
realizado no âmbito da cultura brasileira e das artes, bem como por sua inserção na comunidade
local, promovendo atendimento e espaço de produção de cultura para estudantes e suas famílias.
Minha primeira tentativa de contato com a escola foi via e-mail e telefonema para
a secretaria e a coordenação, mas não obtive resposta. Segui minha jornada, solicitando ajuda
a amigas(os) que, profissionalmente, mantinham contato com a comunidade escolar, entre
elas(es) uma jornalista e um professor de música. Como resultado, consegui uma entrevista com
a psicóloga da escola, para qual mostrei meu projeto de pesquisa e contei um pouco da minha
trajetória. Lilian foi receptiva e me encaminhou para uma entrevista com a coordenadora da
educação infantil, Maria. Foram duas longas conversas tecidas por mim e Maria. Falamos sobre
a escola e o instituto, sua história, desafios e conquistas. Falamos igualmente sobre educação
no Brasil, sobre crianças, o trabalho com as linguagens e o brincar e as(os) autoras(es) que
tínhamos como referência.
Maria permitiu que eu convivesse por uma semana no ambiente escolar, para que
somente depois alinhássemos os(as) participantes, dia da semana, horário e ambiente da

13
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/20/politica/1529507034_635165.html.
14
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/01/28/
39

pesquisa. Em acréscimo, ela sugeriu que eu falasse com as(os) professoras(res), pois acreditava
que elas(es) é quem melhor conheciam o cotidiano das meninas e dos meninos e saberiam como
me ajudar. Passado esse período, reunimo-nos mais uma vez.
Nessa escola, havia três séries de educação infantil, cada qual constituída por
apenas uma turma. Na rotina desses três agrupamentos, não havia um horário fixo para o
brincar. Cada professora organizava as propostas, conforme as especificidades de seu grupo, de
tal forma que o momento de brincar poderia acontecer em horários diversos ao longo do dia. À
medida que passei a frequentar regularmente a instituição, algumas crianças se aproximaram
de mim. Primeiro, perguntaram meu nome e depois passaram a me dizer “oi” e “tchau”, ao me
verem chegando e, posteriormente, indo embora. Passado um tempo, foram me convidando
para sentar mais perto, assistir às aulas, mostrar desenhos e até me solicitavam ajuda para
resolver conflitos com colegas, amarrar os sapatos ou ir ao banheiro.
A aproximação com a equipe similarmente se deu aos pouquinhos. Algumas(uns)
se interessaram pelo projeto e, ao descrevê-lo, nós acabávamos refletindo sobre o tema. Conheci
com mais proximidade as(os) polivalentes e as(os) auxiliares da educação infantil e a professora
de educação física.
Contei à Maria o que havia observado e dialogado com as(os) professoras(res) e,
juntas, definimos que: 1) eu acompanharia o grupo de crianças de quatro e cinco anos, do
professor Francisco e da assistente Fernanda; 2) nossos encontros, que mais tarde denominei
de composições, seriam às quartas-feiras pela manhã, quando eu chegaria mais cedo para
organizar e montar o espaço; 3) antes do momento do brincar, eu teria acesso às crianças em
sala de aula, para conversar sobre as composições, mostrar fotos e registrar seus comentário,
opiniões e reflexões; 4) ao todo, organizaríamos oito composições e, no fim da pesquisa, eu
doaria para a escola os materiais utilizados. Assim, mantendo a pretensão de conduzir o
percurso investigativo distante do conhecimento genérico e descontextualizado (CLANDININ;
CONNELLY, 2015), foi a partir da vivência cotidiana que defini, em conjunto com a equipe
escolar, qual seria a turma de participantes e que momentos e contextos da rotina escolar eu
investigaria com mais regularidade e detalhamento.
Francisco foi bastante receptivo à proposta da pesquisa. Contou que, quando
menino, fora morador de favela e que, infelizmente, notava que um problema enfrentado por
ele na época somente se agravou: as crianças pobres não têm mais espaço para brincar. Explicou
que, atualmente, as casas estão cada vez mais juntas, sem terreno, as ruas perigosas e o som
alto dos aparelhos eletrônicos que se sobressaem às suas vozes. Por fim, comentou que, diante
40

desse contexto, entendia a temática do espaço como fundamental para educação infantil,
principalmente, quanto ao brincar e sugeriu que nossas composições fossem realizadas em um
espaço da escola que ficava perto da quadra central. O chão desse espaço era de terra e havia
uma torneira próxima. Francisco considerava importante que as crianças tivessem acesso à
água, e eu concordei.
A turma de Francisco se autodenominava de Capogingas. O professor tinha
formação como capoeirista. Em diversos momentos da rotina, tocava pandeiro, entoava músicas
de roda e convidava meninas e meninos para dançar, principalmente na passagem entre uma
atividade e outra, o que foi, aos poucos, se tornando um ritual identitário do grupo. Será com
essa nomenclatura “Capogingas” que me referenciarei à turma ao longo do texto.
O horário escolhido para que eu acompanhasse o grupo brincando foi 9h, às quartas-
feiras. Além dos encontros de brincar, que nomeei de composições, eu dialogava com a intenção
de conhecer a percepção das crianças sobre as brincadeiras, bem como ouvir suas sugestões e
registrar suas lembranças do vivido. Para isso, semanalmente, organizava, junto com o
professor, uma roda de conversa.
Para as referidas rodas, das primeiras vezes, selecionei algumas imagens de
fotografias que eu havia tirado das composições e conduzi a conversa, mediando os turnos de
fala para que todas tivessem oportunidade de fazer comentários e comunicar suas impressões.
No entanto, percebi que as crianças, muitas vezes, não queriam relatar suas vivências para todo
o grupo, mas sim, queriam segurar as fotos em suas mãos e se ver nelas, fazendo comentários
para as(os) amigas(os) mais próximas(os): “Olha eu aqui!”; “José! José! Vem ver você!”.
Então, decidi distribuir o material em pequenos grupos, favorecendo a aproximação de todas às
imagens e a diversidade das falas. Deixei de fazer perguntas e passei somente a anotar os
comentários, que se multiplicavam, conforme meninas e meninos se viam nas fotos e iam
revivendo as brincadeiras: “Luísa, lembra dessa?”; “Eu não gostei desse dia!”. “Hoje vai ser
minha vez de ficar com essa pá!”; “Que isso Adriano! Que cê tava fazendo?”,
Por conseguinte, o formato “roda de conversa”, que eu havia imaginado como
forma de ouvir as crianças, foi se modificando, e as situações de escuta passaram a ser uma
oportunidade para que elas se lembrassem do vivido, renegociassem papéis e objetos e
conhecessem mais sobre as brincadeiras das(os) colegas. Eu anotava e gravava o que diziam,
perdendo de quando em vez alguns pedaços, pois acabava participando do diálogo, que ainda
que, menos controlado, foi ficando cada vez mais rico. Como referido anteriormente, na seção
“breve roteiro”, eu chegava cedo na escola e, previamente, montava o espaço de brincar, ou
41

seja, criava as composições. Durante as brincadeiras, quando convocada pelas crianças, eu


interagia e participava. Em outros momentos, mantinha-me como observadora, aproveitando as
oportunidades para registrar o vivido, por meio de vídeos, fotografias e notações no diário de
bordo. Assim, fui colecionando registros meus, bem como observações feitas por meninas e
meninos, ao se remeterem às suas brincadeiras em formato de lembrança.
Ao chegar em casa, eu organizava minhas notações, falas das crianças, vídeos e
fotos da composição, no diário de bordo, que redigi no modelo digital, viabilizando, em razão
disso, que os textos escritos e visuais se complementassem e dialogassem entre si. Mais tarde,
ao produzir a presente dissertação, a consulta ao diário de bordo foi fundamental, e as conversas
entre as imagens fotográficas e registros escritos se estenderam para o texto de pesquisa, o que
resultou em uma dissertação, que, desde os primeiros capítulos, dialoga com a produção de
campo. Essa escolha proporcionou maior troca entre as vozes das autoras e autores, das
crianças, das(os) professoras(es) e da minha própria experiência como criança que fui, como
professora e pesquisadora. Isso favoreceu um texto cujos sentidos se precipitam aos
pouquinhos, principalmente em relação ao campo, que, por ser apresentado em partes, pode
parecer pouco nítido e pouco detalhado nas primeiras vezes em que faço referências a ele. No
entanto, ao longo da escrita, ele vai ganhando cores, odores e sabores.
As imagens visuais que compõem o texto são fotos que capturei durante as
composições. Igualmente usei filmagem, cujas cenas analisei e algumas delas “transformei em
fotografia”, fazendo “prints” delas, ao visualizá-las na tela do computador. Em trabalhos
anteriores, quando atuei como professora da educação infantil, eu já havia testemunhado a
potência das imagens e, portanto, desde o princípio do trabalho de campo, dediquei-me ao ofício
do registro fotográfico. Para isso, não buscava o melhor “clique”, apenas analisava o melhor
posicionamento da câmera e registrava tudo. Eu sabia que muito do que estava sendo
fotografado ou filmado não seria diretamente usado no texto, por outro, igualmente conhecia o
valor das imagens, quando sequenciadas e contextualizadas. Por isso, empenhava-me na coleta
de informações visuais e auditivas, o que, mais adiante, me ajudou a compreender as
brincadeiras e as narrativas criadas pelas crianças e, além disso, a poder escolher cenas que
melhor expressavam o meu olhar em diálogo com os seus pontos de vista.
Ao longo do texto, apresento as imagens escolhidas, na perspectiva de Etienne Saiman
(2012, p.158), qual seja, as imagens pensam e nos fazem pensar:

Se admitirmos, deste modo, que toda imagem pertence à grande família dos
fenômenos, não poderemos mais equiparar uma imagem a uma bola de sinuca
42

ou a um prego que a tábua engole quando, nela, o martelo bate. Sem chegar a
ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um
processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é
pensante.

Entendendo as imagens como componentes do fluxo da narrativa, decidi por não


legendá-las, uma vez que o próprio texto escrito já traz elementos para compreendê-las e
contextualizá-las, dialogando com elas.
A conexão entre imagem visual e texto escrito presente nesta dissertação reflete os
caminhos de análise e relações que percorri na busca de compreender e narrar o vivido. As
filmagens que fiz, de modo geral, foram caóticas. Filmei tudo por meio de um celular, sem tripé
estabilizador. Por isso, sempre que possível, estabilizei meu corpo e pouco alterei o zoom da
câmera e o enquadre. Ainda assim, sem querer, muitas vezes registrei imagens desfocadas, ou
com dezenas de minutos mostrando o vazio, o céu, o chão ou, ainda, filmei sequências com
interrupções abruptas e mudança repentina de foco. O áudio frequentemente consistia em uma
confusão de sons de vozes de adultos e de crianças, além dos ruídos próprios ao ambiente. Por
esses motivos, foi essencial que eu refletisse sobre os registros, cruzando as informações de
diferentes origens: o que observei, o que ouvi, o que me disseram, o que senti, o que filmei,
com o que me espantei e pelo o que fiquei curiosa. Considerei, igualmente, com o que as
crianças se mostravam surpresas, no que elas botavam mais atenção, em qual brincadeira
dedicavam mais tempo, de quais brincadeiras mais se lembravam, sobre o que elas conversavam
comigo e o que me pediam para registrar. Observei as feições das crianças ao brincar, quando
focavam o olhar, que sons as faziam virar o rosto, com quem compartilhavam suas descobertas,
quem chamavam para brincar e que espaço escolhiam. Essas foram as pistas que orientaram
meu olhar e escuta, ao rever os filmes, e me ajudaram a manter a confiança de que ali, naquele
emaranhado de sons, cores e movimentos, haveria “fios por inteiro”, como se refere Pereira
(2014), os quais valia a pena puxar e descobrir onde me levariam. Depois, tendo colecionado
alguns “fios”, analisei no que se assemelhavam, no que se diferenciam e como dialogavam com
a literatura, finalmente organizando-os em quatro eixos: concavidade, massa, peso e compasso.
Esse processo foi fundamental na produção de sentidos a partir do que vivi com as crianças e
que narro nesta dissertação. Assim, as imagens aqui registradas são contextualizadas no próprio
texto escrito, pois não ilustram o texto principal, mas sim o constituem, junto com as palavras.
43

CAPÍTULO 2

PEDRINHAS E MUNDOS NA PALMA DAS


MÃOS

Ambiente educador plural e maleável – Do avesso

Na escola onde estudei até os 11 anos de idade, por vezes, havia reunião de pais e,
como minha mãe e minhas tias trabalhavam na instituição, isso significava que eu, minha irmã
e meus primos ficávamos naquele ambiente até bem tarde da noite. Nessas ocasiões,
ocupávamos o espaço que de dia era habitado por inúmeras crianças, mas, de noite, era só nosso.
Como as reuniões eram recorrentes, conhecíamos os diversos espaços e estávamos habituados
àquela rotina, o que nos permitia pressupor quanto tempo duraria nossa expedição, sabendo-
nos seguros. Experimentávamos a estranheza de habitar uma escola sem crianças e ainda por
cima no período da noite, entretanto simultaneamente vivíamos aquela rotina com intimidade e
liberdade.
A escola não anoitecia de imediato, ela ia escurecendo e esfriando. Muitas vezes
vivi esse anoitecer em cima do pé de amora. Era uma árvore bem grande e de lá de cima, nos
galhos mais altos, eu percebia que as amoras iam esfriando, conforme o sol desaparecia, e o
mais impressionante é que o gosto delas também ia mudando.
Além do pé de amora, havia o tanque de areia. Ele era enorme! Eu começava
peneirando areia, fazendo bolos com formas de pudim e, durante a brincadeira, minhas pernas
iam se afundando no tanque. Quanto mais anoitecia, mais fundo meus pés alcançavam,
chegando à areia úmida. Quanto mais anoitecia, mais úmida a escola se tornava. A sensação de
afundar na areia ligeiramente molhada e sentir um leve frio me trazia ar de aventura, de
sobrevivência. Depois de peneirar, muitas vezes, começava a cavar. Cavava e cavava bem
fundo. Quanto mais fundo, mais gelado, mais areia grudada, maior a mistura e maior a sensação
de se diluir no tanque, no frio, na noite.
Lembro-me, em acréscimo, de entrar nas salas de aula e procurar vestígios sobre o
44

que havia se passado por ali, que pudessem ter escapado à nossa percepção diurna. Meu primo
e eu brincávamos de ser detetives, e cada rabisco na lousa, papel de bala no chão, inscrições
nas mesas, para nós tudo eram pistas, como se fosse possível adentrar nas experiências vividas
por meio das marcas deixadas pelas crianças. Nunca descobríamos nada, mas era gostoso
investigar. Havia uma sensação de transgressão, de invasão, que nos alegrava.
Mais tarde, quando me tornei professora, percebi que não era preciso estar de noite
ou ter a escola somente para si para que as crianças se sentissem à vontade para invadir e
transfigurar os espaços cotidianos. Na Escola Viva, onde trabalhei por seis anos (2001 a 2007),
havia uma escada que corria por fora do prédio, dando acesso ao andar de cima. Embaixo dela,
um vão. Meninas e meninos amavam esse lugar. Passavam-se anos, mudavam as turmas, e ele
permanecia sempre ocupado por uma ou mais crianças. Certamente, na brincadeira, ele era
transfigurado. O mesmo acontecia nas partes do chão, em que não havia nem grama e nem
concreto. Eram filetes de terra. E era lá que as crianças se aglomeravam. Tanque de areia,
cabanas, escorregador, barrancos, cordas, campos abertos, cantinhos com árvores, embaixo da
mesa, em cima da mesa, colchonetes, almofadas, poças d’água identicamente eram muito
procurados por elas. O que tinham de tão especial?
As maneiras das crianças de habitar e, por meio do brincar, recriar objetos e espaços
do cotidiano, são, para mim, um espanto. Apesar de um pedaço de madeira, de até mesmo um
fio de cabelo, uma sombra, ou um furo na camisa, poderem virar brinquedo nas mãos de uma
criança, intriga-me perceber que o material e o ambiente são vividos e usados de formas
diferentes por meninas e meninos, convidando-as(os) a brincar com maior ou menor grau de
adesão.
Certa vez, o grupo de estudos sobre práticas escolares, do qual eu fazia parte, estava
assistindo aos minidocumentários de publicação do Instituto Casa Redonda (2000),
mencionado anteriormente. Ninguém no grupo tinha dúvidas sobre a importância de
oportunizar às crianças tempo e espaço para brincar, mas discutíamos a brincadeira inserida no
currículo escolar, na tradicional rotina da educação infantil. Eu, que estava finalizando o estágio
na Casa Redonda, tentava contar aos colegas como era a proposta da escola, no entanto,
percebia que os deixava confusos, desacreditados dos meus relatos que descreviam
positivamente cenas de crianças de diferentes idades, brincando juntas, sem propostas dirigidas
ou padronizadas, durante longo período. Sugeri, então, que assistíssemos aos vídeos. As
imagens tiveram efeito imediato em minhas(meus) colegas. Minutos de silêncio e
encantamento! Até que apareceram na tela duas crianças correndo juntas, ora mais rápido, ora
45

mais devagar, empurrando um cabo de madeira, cuja ponta inferior era talhada com um homem
andando de bicicleta. Conforme as crianças corriam e o empurravam o brinquedo, o homem,
que vestia roupas tradicionais do nordeste brasileiro, pedalava seguindo seus ritmos. Meninas
e meninos riam muito e se olhavam com cumplicidade. Assistindo a essa cena, meu colega e
amigo exclamou: “Ah! Mas também, os brinquedos são muito legais!”
Sim, os brinquedos eram “muito legais”. Havia alguns artesanais, como esse que
citei, e havia tecidos, pregadores, caixotes, utensílios domésticos reais (usados), bichinhos de
borracha, outras miniaturas, minicaixas de areia, enormes caminhões de madeira, entre outros.
Eram brinquedos diferentes, se comparados aos da maioria das escolas que conhecíamos, que
tinham algumas bolas, bonecas de plástico, miniatura de utensílios domésticos de plástico,
jogos de encaixe de plástico, bambolê e, com sorte, alguns carrinhos de metal.
Atualmente, esse cenário mudou. No Brasil, por exemplo, há várias instituições
de ensino, algumas mais novas, outras mais antigas, como a Casa Redonda, que se preocupam
com o ambiente onde as crianças brincam (BARROS, 2018).
Quando me refiro a ambiente, estou usando a categorização utilizada por Lina
Forneiro (1998, p. 232-233), que distingue ambiente e espaço, tendo em conta, principalmente,
as relações interpessoais:

O termo espaço se refere ao espaço físico, ou seja aos locais para a atividade
caracterizados pelos objetos, pelos materiais, pelo mobiliário e pela
decoração. Já o termo ambiente, refere-se ao conjunto do espaço físico e às
relações que se estabelecem no mesmo (os afetos, as relações interpessoais
entre crianças, entre crianças e adultos, entre crianças e sociedade em seu
conjunto).

Hoje, a importância do ambiente, não apenas para o brincar, mas como recurso
educativo associado a todo currículo das instituições, é razoavelmente difundida, como aponta
Forneiro (1998, p. 229):

Nos últimos anos, foram dados muitos passos à frente e hoje faz parte da
“cultura” profissional dos professores(as) dessa etapa educacional que o
espaço de suas aulas seja um recurso polivalente que podem utilizar de muitas
maneiras e do qual podem extrair grandes possibilidades para a formação.

Essa difusão pode ser atribuída, principalmente, às pesquisas desenvolvidas nas


escolas italianas de abordagem Reggio Emilia (CEPPI; ZINNI, 2013; GANDINI, 2016;
VECCHI, 2013; 2017) que, ao narrar como foi e como tem sido a projeção dos ambientes
46

educativos das escolas emilianas, apontam os conceitos e as experiências que guiaram as suas
construções e transformações. Segundo Vea Vecchi (2017, p. 157), “Os educadores [...]
consideraram o espaço uma parte fundamental da quantidade e da qualidade das relações, das
aprendizagens e das comunicações que se desenvolvem na escola”. Já Lella Gandini (2016),
ressalta que o diálogo que vem sendo amplificado entre pedagogia e arquitetura está centrado,
principalmente, na noção de relação e aponta a sincronia entre pedagogia baseada nas relações
e arquitetura relacional.
Outros aspectos apontados pelas(os) professoras(es) de Reggio Emilia, sobre o
ambiente, são acolhimento e plasticidade. Por esse ponto de vista, explicitam que é fundamental
levar em consideração os modos como as crianças reagem aos ambientes construídos e
projetados. “Anotações cuidadosas devem então ser feitas, acerca de como as crianças agiram
com esses objetos e, eventualmente, os reinventaram” (GANDINI, 2016, p. 145).
Entendendo a ação da criança como primordial na construção do próprio
conhecimento, Gandini (2016) enfatiza a necessidade do ambiente ser flexível, o que significa
dizer que os objetos, os materiais e as estruturas são vistos como elementos que “condicionam
e que são condicionados pelas ações das crianças e dos adultos que estão ativos neles”
(GANDINI, 2016, p. 335).
Forneiro (1998, p. 250) discorre sobre essa relação entre preocupação com ambiente
educador e concepção de criança protagonista da própria aprendizagem, nas seguintes palavras:

Se eu considero que as crianças são verdadeiros protagonistas da sua


aprendizagem, que aprendem a partir da manipulação e da experimentação
ativa da realidade e através das descobertas pessoais; se, além disso, entendo
que “os outros” também são uma fonte importante de conhecimento, tudo isso
terá reflexos na organização de minha sala de aula.

Por vezes, a pedagogia centrada na “criança ativa”, na “criança protagonista” e


mesmo a expressão “escutar as crianças” podem ser confundidas com a conduta de realizar
todos os desejos da “criança rainha”. “Há um movimento discursivo, nos dias atuais, de escuta
e participação infantil que virou moda e, por isso mesmo, é muito perigoso. É importante
compreender que ouvir as crianças não significa fazer suas vontades” (FRIEDMAN, 2015, p.
40).
Vecchi (2017, p. 326) amplia essa problematização, ao afirmar que o ambiente
educacional deve ser construído a partir da escuta daqueles que “viveram nos lugares das
crianças, hoje e no passado”. Dessa forma, traz para a discussão duas dimensões do ambiente,
47

que considero importantes: presente e passado, atualidade e tradição.


Imagino que Kramer (2015, p. 66) concordaria com essa perspectiva, uma vez que
a autora ressalta a dimensão semântica que se expande nas interações do ser humano com o
mundo dos objetos.

Mas o sentido da realidade não se esgota nas interações entre olhares e


palavras que ocorrem entre as pessoas, também está presente nos objetos
inventados pelo homem e que existem ao nosso redor. O campo semântico da
realidade, embora criado a partir da linguagem, não se esgota nas interações
estritamente verbais entre os homens, mas se expande e se renova nas
interações dos homens com o mundo dos objetos criados por eles.

Giulio Ceppi e Michele Zinni (2013, p. 20, grifo nosso), ao descreverem o que seria
arquitetura relacional, afirmam: “No espaço relacional, o aspecto predominante é a relação que
ele possibilita, as várias atividades especializadas que podem ser conduzidas nele e ‘os filtros
de informação e cultura que podem ser ativados neste espaço’”.
Destaco dessa citação a expressão “filtros de informação e cultura que podem ser
ativados neste espaço”. Ou seja, os autores declaram que o contexto necessita favorecer o
contato ativo das crianças com o conhecimento e a cultura. Essa afirmação, a meu ver, vai ao
encontro da indicação feita por Vecchi (2017) sobre a necessidade de se escutarem os habitantes
do passado, e não apenas os do presente, além do que foi tantas vezes apontado pela sociologia
da infância, a respeito de as crianças não operarem em um vazio social (DELGADO, 2013),
mas sim, dentro de contextos situados, específicos e detentores de histórias.
Sendo assim, o ambiente educativo deve operar em dois sentidos opostos que se
complementam: ser marcado pelo passado – permitindo que meninas e meninos tenham acesso
à tradição e, simultaneamente, ser flexível para que elas(eles) deixem e percebam suas marcas.
A discussão sobre ambiente educativo igualmente pode ser feita, de maneira
análoga, especificamente, a brinquedos, objetos e materiais disponibilizados. Ao discorrer
sobre a “A história cultural do brinquedo”, Benjamim (2017c, p. 282) escreve:

A criança não é nenhum Robinson, as crianças não constituem nenhuma


comunidade separada, mas são partes de povo e da classe a que pertencem.
Por isso, o brinquedo infantil não atesta a existência de uma vida autônoma e
segregada, mas é um diálogo mudo, baseado em signos, entre a criança e o
povo .

No mesmo texto, o autor pontua que, ao imaginar brinquedos, como bonecas de


48

palha e berços de vidro, o adulto está tentando interpretar a “sensibilidade infantil”. No entanto,
quanto mais representativos e atraentes são os brinquedos, “mais se afastam dos instrumentos
de brincar, quanto mais eles imitam, mais longe eles estão da brincadeira viva” (BENJAMIN,
2017c, p. 283).
Nessa ótica, os brinquedos populares, inventariados por João Amado (2008, p. 88),
são diferentes, pois estão mais condizentes com a “brincadeira viva”, uma vez que se associam
às tradições da comunidade onde estão inseridos, similarmente são marcados pela abertura à
liberdade e à imaginação. “[...] de objetos tão efêmeros quanto os materiais de que são feitos,
e, em grande parte, traduzem uma espécie de miniaturização do mundo dos adultos produzida
pelas próprias crianças, mas com grande margem de liberdade, imaginação e criatividade”.
Entre os brinquedos pesquisados – adornos e adereços, brinquedos sonoros,
bonecos e bonecas, representações animais, miniaturas de utensílios domésticos, miniaturas de
alfaias e engenhos agrícolas, construções, artes e ofícios, transportes, armas, quebra-cabeças e
fantasias –, o autor identifica as seguintes características: são fabricados pelas próprias
crianças; são constituídos predominantemente por elementos naturais; têm origem assentada na
imitação e na transgressão das regras e dos valores da vida adulta; muitos são universais;
possuem característica multidimensional dos efeitos do jogo e da brincadeira, especialmente,
da produção e do uso desses brinquedos pelas crianças.
Mayumi Lima (1995, p. 188) comenta as brincadeiras tradicionais, indicando as
mesmas qualidades, que reúnem no mesmo elemento forças de conservação e transgressão:

Por isso, as brincadeiras são, num certo sentido, conservadoras, mas a


atividade lúdica é sempre inovadora para quem dela participa, porque através
do brincar é possível conhecer e questionar a realidade, satirizar os que
oprimem, inventar novos caminhos, explorar suas forças.

Por esse ponto de vista, concordo inteiramente com meu colega de grupo de
estudos: “Ah! Mas também, os brinquedos são muito legais!”, traduzindo por legais um
conjunto de características tais como: propiciam a interação entre pares, estão ao alcance das
crianças, são abertos e flexíveis em suas ações e ressignificações, são dotados de informação e
cultura.
Daniela Guimarães (2006), ao discorrer sobre os ambientes próprios à educação
infantil, usa a expressão “convite à ação e à narratividade”. Já Adriana Klisys (2015) fala em
objetos “de largo alcance” e nomeia “acervo lúdico” o conjunto de objetos e materiais
49

disponíveis às crianças nas situações de brincar.


Fernanda Roveri (2016), ressaltando a função educadora do que, por ora, chamo de
“acervo lúdico”, alerta para o enrijecimento que os brinquedos padronizados podem promover,
ao oferecerem pouco acolhimento às criações das crianças. A autora indica que os materiais
disponibilizados devem sugerir caminhos, mas sem padronizá-los, sendo simultaneamente
propositivos e maleáveis.
Marita Redin e Paulo Fochi (2014, p. 53) igualmente comparam brinquedos
industrializados ao que chamam de “materiais brinquedos”, realçando as características desses
últimos como mais abertos à imaginação, à criação e à simbolização. Como exemplo, os autores
listam: “podemos dizer que existem alguns materiais nobres, materiais naturais, como pedras,
galhos, sementes, conchas, madeira, lã de carneiro, algodão, pigmentos de plantas e da terra”.
Ao falar em material flexível, aberto à imaginação e à ação das crianças e,
simultaneamente, carregado de informação de cultura, é preciso estender esse conceito à
mediação das professoras. Como explicitei anteriormente, entender o ambiente como recurso
educador, e não apenas como cenário onde as aulas acontecem, já carrega em si a concepção
das crianças como protagonistas do conhecimento ou, dependendo do enfoque, como
produtoras de culturas. O ambiente, pensado como “terceiro educador”, é justamente uma das
formas de promover acesso ao passado e à tradição com abertura suficiente para que meninas e
meninos o façam de maneira ativa e criadora, com autoria. Há aí um jogo de pares , de opostos
entre tradição e inovação, presença e ausência, ordem e transgressão. Não à toa Vecchi (2013,
p. 18) observa que:

O ambiente é visto não como um espaço monológico estruturado de acordo


com um padrão formal e uma ordem funcional, mas como um espaço no qual
dimensões múltiplas coexistem, até mesmo as opostas. É criado um ambiente
híbrido no qual o espaço adquire forma e identidade através das relações. Um
espaço, enfim, que é construído não através da seleção e simplificação de
elementos, mas através da fusão de pares de opostos (interior e exterior,
formalismo e flexibilidade, materialidade e imaterialidade), o que produz
condições ricas e complexas.

A coexistência das dimensões múltiplas e os opostos apontados por Vecchi (2013)


me lembram do conto “Caixa de costura”, de Benjamin, no qual o autor narra como lhe
“esgotavam a paciência” os cuidados da mãe com sua roupa, ao costurar “qualquer arranjo” na
camisa dele. Segue um trecho da narrativa:
50

Nesses momentos, quando os utensílios de costura se impunham com mais


severidade, a rebeldia e a irritação começavam a dar sinal em mim. Não
apenas porque esses cuidados com a roupa, que afinal já tinha vestido, me
esgotavam a paciência - não, mais ainda porque aquilo a que eu era sujeito de
modo nenhum estava ao nível da variedade de cores das sedas, das finas
agulhas e das tesouras de diferentes tamanhos que tinha à minha frente.
Vinham-me dúvidas sobre aquela caixa, se ela se destinaria mesmo à costura.
E elas eram reforçadas pelo tormento das más tentações exercidas sobre mim
pelos carrinhos de linhas que via nela. Essas tentações partiam do buraco por
onde antes tinha passado o eixo destinado a enrolar o fio no carrinho. Agora,
esse buraco estava tapado de ambos os lados pela etiqueta, que era preta e
tinha o nome da firma e o número de referência impressos em dourado. Era
enorme a tentação de enfiar a ponta do dedo no meio da etiqueta, e demasiado
profunda a satisfação quando esta se rasgava e eu podia sentir o buraco por
baixo.
Para além da região superior da caixa, onde os carrinhos se alinhavam ao lado
uns dos outros, as carteiras pretas das agulhas cintilavam e as tesouras
descansavam nos seus estojos de couro, havia o fundo escuro, o caos onde
reinava o novelo desfeito misturado com restos de fita elástica, colchetes,
presilhas e restos de seda. E havia também botões no meio desse refugo,
alguns deles com formas nunca vistas em vestido algum. Mais tarde encontrei
alguns parecidos: eram as rodas do carro de Thor, o deus do trovão, na imagem
que dele fez um professor num livro escolar de meados do século XIX. Foram
precisos todos aqueles anos para uma pequena ilustração sumida confirmar a
minha suspeita de que toda aquela caixa se destinava a qualquer coisa de
diferente dos trabalhos de costura. (BENJAMIN, 2013, p. 102-104)

Benjamin finaliza o conto, narrando momentos em que ele pegava moldes para
bordar e, de vez em quando, cedia à tentação de se “apaixonar à rede do lado do avesso, que ia
ficando cada vez mais confusa à medida que, com cada ponto, eu me aproximava do fim do
trabalho do lado do direito” (BENJAMIN, 2013, p. 104).
Para mim, não tem melhor descrição de brinquedo/brincadeira. Quando leio o
conto, logo se faz presente a imobilidade imposta ao menino, em função do ato de costurar da
mãe, que meticulosamente repara um pequeno estrago em sua camisa. Gradualmente, no
entanto, vai ganhando força a transgressão imaginada, sonhada e realizada pela criança, que
interpreta o mundo à sua maneira, transformando os botões em rodas de carrinhos. E desse jeito,
é criado um novo sentido para a caixa de costura! Mas sem a mãe e toda a ordem sequenciada
que constituía sua caixa, não haveria a vontade de enfiar os dedos pelos buracos. Não haveria
a impaciência, a transgressão imaginada e tampouco, no futuro, os botões virando rodas para o
carrinho do Thor.
Há algo em comum entre os ambientes e os materiais defendidos e analisados pelos
diversos autores, que, usando emprestada a imagem narrada por Benjamin (2013), poderíamos
nomear de “capacidade de ser virado do avesso”.
51

Para ser passível de “ser virado do avesso”, o material, o espaço ou o ambiente


necessitam ser flexíveis e maleáveis no que tange aos modos de usá-los ou habitá-los e, ao
mesmo tempo, apontarem para uma dimensão além da criança, do ponto de vista da
coletividade, de permanência e de valores culturais e afetivos de uma comunidade. Ademais,
necessitam provocar estranheza e instigar na criança a vontade de conhecê-los e dominá-los, o
que se torna possível se estiverem regularmente ao seu alcance, de forma que inspirem
familiaridade e intimidade suficientes para que a criança se sinta segura e autônoma para
transformá-los.

Preparando ambientes – Frente e verso das composições

Retomando a narrativa a respeito da organização do material e do espaço, segui a


sugestão de Francisco, escolhendo um quintal mais distante das salas da educação infantil, que,
segundo ele, apresentava as seguintes vantagens: 1) possibilidade de uso de água – havia uma
torneira no quintal; 2) distância – os sons e os ruídos produzidos pelas brincadeiras neste quintal
não atrapalhariam as propostas feitas em sala de aula; 3) chão de terra e ambiente natural –
tratava-se de um quintal inteiro de terra e pontos com vegetação, inclusive arbustos e uma
árvores de médio porte; 4) tamanho – o quintal era comprido. Destarte, o local foi escolhido em
conjunto com equipe de professoras(es), respeitando a rotina e organização escolares.
O quintal servia de passagem. De um lado, margeava o refeitório da escola, do outro
margeava o ateliê e a quadra usada nas aulas de educação física.

Além do chão de terra batida, havia um espaço retangular de cimento com grandes
bancos de madeira, um corredor de cimento com grelha para absorver a água da chuva e uma
52

casinha de pau a pique no fundo.

Frequentei a instituição por oito meses, que abarcaram as primeiras reuniões,


acompanhamento da rotina regular, entrevistas com as(os) educadoras(es), conversas com as
crianças e os encontros para brincar, nos ambientes previamente montados, que, no total, foram
oito.
Tendo definido espaço, tempo e regularidade dos encontros, selecionei os primeiros
elementos do acervo lúdico (KLICYS, 2015) que comporiam o ambiente. Para isso, busquei
referências nos lugares em que trabalhei, como Casa Redonda, Escola Viva e Escola Arapoti,
bem como escolas que visitei, como La Casa Amarilla15, e na literatura anteriormente indicada
(AMADO, 2008; FOCHI, 2019; FORENERO, 1998; FRIEDMAN, 2015; GANDINI, 2016;
GUIMARÃES, 2006; KLICYS, 2015; LIMA, 1995; ROVERI, 2016; VECCHI, 2013; CEPPI
e ZINNI, 2013). Além disso, preocupei-me em usar materiais de fácil aquisição e preço
acessível, adaptáveis a diversos ambientes.
Para montar os ambientes, eu chegava 30 minutos mais cedo e organizava o espaço.
Nas primeiras composições, eu trazia o material no meu carro, transportando todos os elementos
e, posteriormente, levando-os de volta. No entanto, ao longo das composições algo muito
interessante começou a acontecer. Outras(os) educadoras(es) da escola se interessaram pela
proposta. A primeira professora, com quem eu mantinha diálogos frequentes, foi a de educação
física. Em um dia que estava frio, ela me advertiu, aconselhando que as crianças não brincassem
com água. Infelizmente, na noite anterior havia chovido e, mesmo que eu não permitisse o aceso
à torneira, havia muita lama no nosso espaço de brincar. Expliquei esse contexto a ela, que, em
troca, propôs que juntássemos as duas turmas: os Capogingas e as crianças menores

15
Escola situada na cidade de Lima, no Peru, que segue princípios das escolas emilianas.
53

(que faziam aula de educação física naquele momento), usando o andar de baixo coberto,
próximo ao refeitório. Aceitei sua proposta, e realizamos dois encontros dessa forma, unindo o
espaço, os grupos e o material. Em outra ocasião, as professoras das crianças mais novas me
pediram para não desmontar o ambiente, para que pudessem usá-los também com suas turmas.
Cada vez que juntávamos material, ficava mais difícil separar o que era de cada turma, até que
por fim a escola propôs que eu guardasse os elementos e os objetos da pesquisa em um
quartinho destinado a isso. Essa mistura de material se deu, à medida que eu me sentia mais
inserida na comunidade, trocando experiências, ideias e observações. De tal forma que os
ambientes das últimas composições foram montados em conjunto entre mim e as(os)
professoras(es) das três séries do infantil. Fiquei maravilhada com a porosidade da equipe que,
breve e criativamente, se apoderou dos objetos, montando ambientes de brincar, inserindo e
retirando elementos do acervo lúdico, conforme as especificidades de cada grupo.
Por esse motivo, ainda que eu tivesse previamente escolhido cada objeto e
planejado os ambientes, todos os dias as composições sofreram modificações graças às crianças
e professoras(es) da instituição. Uma composição não ficou igual à outra, a despeito de os
elementos principais se repetirem.
Ao longo das narrativas, farei referência a diversos materiais, inclusive aos que
foram sendo incorporados durante o trabalho de campo. Por ora, cito os elementos presentes
em todas as composições. Foram eles: bacias e potinhos de alumínio de diversos tamanhos,
colheres de pau, pás de plástico resistentes, redes e cabanas feitas com tecidos de diversos
tamanhos, pedrinhas, engradados, pedregulhos, elementos colhidos na natureza (galhos, frutos
e folhas), elásticos e pregadores para sustentação de redes e cabanas, bambolê e fitas de cetim.
54
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56

O primeiro aspecto que gostaria de comentar sobre o acervo foi a quantidade de


cada elemento. Segundo Fochi, (2019, p. 284), deve-se “oferecer muito do mesmo”, para que
as crianças possam realizar suas coleções e para que a interação entre elas não seja centrada
apenas em negociações e disputa por brinquedos.
O autor apresenta outras características de materiais recomendados para situações
de brincar como: 1) segurança; 2) diversidade em relação a peso, calor, maleabilidade,
transparência, densidade, coesão, elasticidade, textura, sonoridade e permeabilidade; 3)
negociabilidade, ou seja, que os elementos possam ser combinados entre si. Na foto que segue
adiante, é possível visualizar a combinação desses quatros aspectos em uma única cena de
brincadeira, uma vez que Maria tem à sua disposição boa quantidade de potinhos e pedregulhos,
de forma que ela pode colecioná-los e organizá-los enfileirados. Os recipientes são feitos de
alumínio, material. cuja textura, peso, cor, temperatura e formato se diferem da pedra. Além
disso, são materiais que combinam entre si, um se encaixa no outro.

No primeiro dia de montagem, cheguei cedo e me deparei com uma situação que não
havia previsto. Os espaços da escola, escolhidos por mim e Francisco, para serem usados no
brincar, estavam ocupados pelas crianças mais velhas, que esperavam o início de suas aulas. Eu
já tinha descarregado do carro bacias, tecidos, elásticos, pás, cestas, pedrinhas... e fiquei
preocupada: “como conseguiria montar os ambientes, se eles já estavam ocupados?”. Resolvi
esperar todas(os) entrarem nas salas de aula. Somente, então, corri para montar os ambientes.
Havia bem pouco tempo e não foi possível organizar tudo o que eu havia planejado. Consegui
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dispor pedras, tecidos e elementos da natureza, conforme desejava e, em acréscimo, fiz algumas
cabanas. Mas fiquei chateada, pois não pude armar as redes.
Quando as(os) Capogingas chegaram, logo se puseram a investigar o ambiente e os
materiais com avidez e euforia. Dessa vez, fui acometida por um sentimento de insegurança:
será que alguém se machucaria? Será que alguém se desequilibraria e cairia bem em cima da
quina da mureta? Jogariam as pedras para o alto, ou pior, umas nas outras? Enquanto eu me
desequilibrava em pensamentos temerosos, as crianças me solicitavam ajuda, perguntavam
como usar um objeto, reclamavam do comportamento de uma(um) colega ou requisitavam para
si mais colheres, mais panos, mais pedras, mais pregadores. Eu estava em uma montanha russa,
certa de que em algum momento o carrinho se descarrilharia.
Até que ouvi uma voz chamando por mim em tom muito cordial e alegre: “Julia!
Julia!”. Virei-me para procurar quem me chamava, mas não vi ninguém. Então de novo escutei
“Julia!”. Fui seguindo o som e, para minha surpresa, vi Helena sentada confortavelmente na
rede que ela própria havia amarrado para si. Nunca vou me esquecer do seu sorriso! Nem do
meu!

Como foi reconfortante vê-la tranquila na rede. Justamente a rede que eu não havia tido
tempo de montar. Helena estava visivelmente orgulhosa de seu feito. E eu claramente aliviada.
Helena construiu um ninho, um lugar para si e, simultaneamente, me reposicionou, me indicou
o meu lugar. Testemunhando a potência daquela menina, lembrei-me de que não precisaria
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cuidar de tudo, nem ofertar soluções prontas às meninas e aos meninos. Meu papel era, em
parceria com os outras(os) professoras(es), oferece-lhes determinadas organizações do
ambiente e do material. Uma vez indicado os caminhos e contando com a escuta e a mediação
dos adultos, as crianças descobririam como brincar e cuidar de si, saberiam modificar os
contextos e criar mundos de sentidos.

Ainda durante a primeira composição, ao se deparar com o material, uma menina


comentou: “É de verdade”. Outra criança, vendo a colher de pau, exclamou: “Tenho uma
igualzinha em casa”. Os adultos da escola também fizeram comentários. Por exemplo, ao ver a
grande bacia de alumínio, Mario, porteiro da escola, disse: “Essa bacia tem história!”.
Perguntei a ele que história ela tinha, e Mario me contou sobre sua infância na Bahia. A primeira
casa em que morou era rural. Seu pai saía todos os dias para a roça, Mario queria ir junto, mas
seus pais não deixavam por ele ser pequeno. Então, Mario seguia sua mãe que trabalhava como
lavadeira, lavando roupa no riacho. Mario levava a bacia de alumínio na cabeça e, ao chegarem
no riacho, a enchiam de água para tomar banho. Depois do banho de bacia, tomava sol,
esperando seu corpo e as roupas “quararem”. Mario referiu-se a essa experiência como uma
lembrança boa, ficando emocionado ao ver a bacia.
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Adianto, que nas demais composições, meninas e meninos não tomaram banho na
grande bacia de alumínio, mas o seu tamanho e resistência foram diferenciais nas composições,
de tal forma que essa foi a única bacia que foi usada em todas as composições. Durante as
brincadeiras, ela aglomerava mais de uma criança que, normalmente, tinha um projeto em
comum, como transportar pedras, lavar os instrumentos, ou cozinhar para uma grande festa.
Acredito que, de alguma forma, a grande bacia transmitia sentidos de união e intimidade,
semelhantes aos experimentados por Mario em sua infância.

Os engradados igualmente foram referidos. Um professor se lembrou do tempo em


que ajudava seus pais na feira e exclamou “Esses é que são bons para caber as mercadorias”.
As crianças usaram os engradados de diversas formas e a capacidade de continência comentada
pelo professor certamente foi observada por elas, que por vezes entravam dentro dele, outras
acumulavam objetos e em outras os usavam para transportar os colegas.
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Uma professora gostou da cortina de fita de cetim e a associou com a decoração das
festas juninas escolares e de sua infância. Depois me pediu orientações de como construí-las.
Por fim, as cabanas também foram pontos de atenção e, ao me verem montando-as,
educadoras(es) e crianças mais velhas opinavam: “Eu sei como faz”; “Prende no galho lá de
cima”; “Essa ficou boa!”, “Agora falta um teto”.

Lagarta e Borboleta

Fazendo alusão a Benjamin, Jobim e Souza (1994) fala acerca das mágicas da
criança e do “mistério que emana dos objetos”, que se situam dentro do campo semântico da
linguagem e alimentam a imaginação infantil:

Mas o sentido da realidade não se esgota nas interações entre olhares e


palavras que ocorrem entre as pessoas, também está presente nos objetos
inventados pelo homem e que existem ao nosso redor. O campo semântico da
realidade, embora criado a partir da linguagem, não se esgota nas interações
estritamente verbais entre os homens, mas se expande e se renova nas
interações dos homens com o mundo dos objetos criados por eles. [...] Nesse
fragmento, Benjamin nos permite penetrar na magia da infância e descobrir
com ela e por meio dela o mistério que emana do mundo dos objetos, pois são
eles que alimentam a imaginação da criança, dando conteúdo e forma aos
segredos que revela. (JOBIM E SOUZA, 1994, p. 66)

Ao citar a poetisa Adélia Prado, Gilberto Safra (2005, p. 128) discorre sobre o olhar
“que pressente a presença do ser nas coisas do cotidiano, nos objetos do mundo” e ressalta o
caráter cultural, marcado pela presença e pela história humana, que carrega, e correlaciona a
materialidade do mundo à experiência humana, afirmando:

Em nossa cultura, é raro poder olhar as coisas e perceber que elas são
61

encontros de relações entre vários homens, muitas vezes até de homens que
viveram em épocas diferentes. As coisas transpiram a cultura com suas
tradições, perspectivas e sabedoria de vida. (SAFRA, 2005, p. 128)

Que lindo olhar as coisas como encontros de relações humanas!


Faço aqui uma ressalva, pois, embora considere importantes as referências da
comunidade em relação aos objetos trazidos, para esta dissertação não segui a trilha dos
comentários feitos pelas crianças e educadoras(es). Não busquei compreendê-los no contexto
da história de vida de cada um e nem narrei como foram ressignificados durante o trabalho de
campo. Entretanto, o valor cultural foi logo reconhecido pelas(os) participantes, e essa
característica foi motivo de fascínio e convite para aproximação.
Minha atenção se voltou para as formas e as qualidades da matéria (peso, tamanho,
viscosidade, textura) e como esses aspectos foram usados por meninas e meninos em suas
narrativas e imagens. Isso não quer dizer que não leve em conta os contextos de vida de cada
criança como influência nas brincadeiras criadas, mas sim, que não foram foco do presente
estudo.
Gilberto Safra (2005, p. 144) afirma que o objeto tem importância em si “Não
porque, simplesmente, signifique algo, mas porque abre uma possibilidade de ser no mundo
com outros homens”. Partindo desse pressuposto, ressalto que o valor cultural dos objetos e dos
materiais escolhidos foi essencial como maneira de conexão e reconhecimento de encontro
humano.
Igualmente, não abordei a materialidade como foco de investigações das crianças,
do ponto de vista do conhecimento sobre o comportamento da matéria, do ponto de vista da
elaboração de conceitos da Física (por exemplo), ainda que acredite que esse também seria um
caminho profícuo. Em vez disso, considerei os objetos em seus aspectos favorecedores de
gestos criativos por meio do brincar. Para isso, dialoguei com a abordagem winnicottiana sobre
o brincar, e com a bachelariana sobre imaginação material e espacial, sobre as quais escrevo
nas próximas seções.

Brincar e criação de mundos para si – De lagartas a borboletas

Certa vez, quando era professora na Escola Viva, a mãe de dois meninos me relatou
a conversa entre seus filhos, que versava sobre o que queriam ser quando crescer. Na escola, a
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turma do filho mais velho, de cinco anos, estava estudando planetas; e a turma do mais novo,
de três anos, investigava a metamorfose.

Disse o filho mais velho, que estudava planetas:


– Mãe, quando eu crescer, se eu não for jogador de futebol, quero ser
astrônomo ou astronauta.
Ao que o mais novo, que estudava metamorfose, acrescentou:
– Mãe, quando eu crescer, se eu não for super-herói, quero ser lagarta ou
borboleta.

A maneira como os dois irmãos formularam seus projetos de vida tem como marca
o paradoxo que se encontra no cerne da brincadeira. As afirmações feitas pelos meninos
incluem a aceitação de que seus desejos – ser jogador de futebol e ser super-herói – podem não
se realizar. Ou seja, aceitam de partida algum grau de frustração, traduzido pela expressão “se
eu não for”. A formulação dos irmãos, portanto, não é a mesma dos contos de fadas “Era uma
vez, no tempo em que não havia tempo, quando os desejos ainda se cumpriam” (GRIMM, 1989,
p. 7). Os irmãos se situam no tempo e elaboram projeções, imaginam um futuro. No entanto,
a expressão “se eu não for” também reserva uma parcela de ilusão, de esperança, como se nela
estivesse contida a ideia “talvez eu ainda possa ser”. Ilusão e renúncia estão paradoxalmente
contidas no mesmo enunciado.
O filho mais velho guarda, cuidadosamente, a esperança de ser jogador de futebol,
mas indica caminhos mais possíveis: astronauta ou astrônomo. Já o mais novo ainda guarda a
esperança de ser super-herói, mas provavelmente considera lagarta ou borboleta algo mais real.
Winnicott (1975) afirma que a possibilidade de compreender o mundo de forma
objetiva é uma conquista do ser humano. cuja trajetória se inicia desde o nascimento. Para o
autor, não existe a realidade em si e, sim, a realidade compartilhada. Cada sujeito vai, ao longo
da vida, ampliando sua capacidade de entender o mundo (tempo, espaço, cultura) de forma
objetiva e compartilhada com sua comunidade.
Quando a criança nasce, ela se insere em um mundo que já está aí. Do ponto de
vista dos adultos, é mais uma(um) bebê que será apresentada(o) à cultura previamente existente.
Mas do ponto de vista da(o) bebê, o mundo é subjetivamente percebido como criação própria.
Uma mãe suficientemente boa, ou quaisquer outras pessoas que exerçam a chamada “função
materna”, vai ofertar o seio/alimento à(ao) bebê justamente quando ela(e) tem fome,
possibilitando a ilusão de que o seio/alimento foi criado pela(o) bebê. Nesse percurso, a(o)
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cuidadora(or)16 da recém-nascida(o) se esforça para cultivar essa ilusão, apresentando o mundo


aos pouquinhos, conforme as necessidades: calor, carinho, colo e alimento são ofertados,
quando a(o) bebê chora, sente frio, sente fome ou fica desprotegida(o) (WINNICOTT, 1988).
Mesmo contando que a(o) cuidadora(or) não vai acertar sempre, o importante é que a(o) bebê
vá adquirindo a noção de que seu movimento, a sua busca, o seu gesto (choro), gera algo
importante para si. E, por meio disso, gradualmente, ela(e) vai aprendendo a confiar no
ambiente cuidador e em si mesma(o).
Mais tarde, à medida que a(o) bebê cresce, a(o) cuidadora(or) possibilita o processo
inverso, a desilusão. Para isso, permite que a(o) bebê vá, paulatinamente, lidando por conta
própria com as adversidades da vida. Claro que a(o) bebê tentará manter o mundo
imediatamente colado aos seus desejos e, não havendo essa possibilidade, ela(e) ataca o mundo-
mãe (morde, grita, bate, não come, não dorme). Essa agressividade positiva da(o) bebê é de
extrema importância, pois, constatando que, apesar de suas investidas. o universo sobrevive à
sua volta, ela(e) percebe que existe um mundo para além de suas vontades – a(os) irmã(ãos), o
pai, a(o) cônjuge, o trabalho dos pais, a casa – e, então, começa se configurar a percepção
objetiva, que continua a ser desenvolvida ao longo da vida, recurso essencial para o convívio
em sociedade.

Minha proposição se baseia na existência de um estádio no desenvolvimento


dos seres humanos que precede a objetividade e a perceptividade.
Teoricamente, pode-se dizer, de início, que o bebê vive num mundo subjetivo
ou conceptual. A mudança do estado primário para um estado em que a
percepção objetiva é possível não é apenas questão de um processo de
crescimento inerente ou herdado; necessita, além disso, de uma mínima
provisão ambiental e relaciona -se a todo o imenso tema do indivíduo a
deslocar-se da dependência no sentido da independência. (WINNICOTT,
1975, p. 203)

No entanto, nesse processo de construção da percepção objetiva, segundo


Winnicott, é importante não perder completamente a confiança e a ilusão fundamentadas nos
primeiros meses de vida, pois elas são o alicerce para que a pessoa se sinta capaz de criar e
transformar o mundo.
Para o autor, a saúde e o sentimento de que a vida vale a pena estão intimamente

16
Escrevo no singular, mas faço a ressalva de que a “função materna” na maior parte das vezes não é
atribuída a apenas uma pessoa. Uma(Um) mesma(o) bebê, frequentemente, é cuidada(o) por diferentes
parentes e pessoas de referência, que podem assumir as funções de oferecer alimento, cuidados com
higiene etc.
64

ligados à capacidade de preservar algum grau de subjetividade, ou seja, alguma esperança de


criação e alteração da realidade por meio do próprio gesto, a partir dos paradoxos entre
ilusão/desilusão, real/fantasia, objetivo/subjetivo, realidade/desejo. Seguindo essa linha de
pensamento, acredito que o brincar é emblemático no que diz respeito à possibilidade humana
de atuar na realidade, considerando seus limites e sentidos compartilhados coletivamente, sem
perder totalmente a ilusão e o modo singular de compreendê-la e transformá-la. Quando, na
brincadeira, um pedaço de pau vira carrinho, por exemplo, a criança está usando elementos do
mundo objetivo: ela já viu um carro antes, sabe que ele se movimenta e é dirigido por alguém.
Por outro lado, ela não se atém fielmente à realidade: o carrinho, por vezes, salta obstáculos,
voa no ar e não usa combustível. Uma criança excessivamente presa à realidade não consegue
brincar. Igualmente, também não brinca alguém preso às fantasias e às ansiedades individuais.
Por essa perspectiva, entendo que imaginar e brincar são formas que as crianças
encontram para dar continuidade e acolhimento ao seu ser. No início, é essencial que a(o)
cuidadora(or) ajude a(o) bebê a dar sentido para sua ação, por exemplo ao interagir com ela(ele)
transforma o balbuciar infantil em “conversa”. Da mesma forma, os bracinhos da(o) bebê que
se mexem ao léu, no contato corporal com o outro se tornam um “toque”, e até o cocô e o xixi
podem ser recebidos e destinados para lugares apropriados. Assim, o bebê se sente acolhido por
inteiro.
Na brincadeira, a criança similarmente pode destinar seu gesto, configurando-o
como criador. Nela é possível estar por inteiro, pois é permitido competir (corridas), destruir
(castelo de areia, rasgar folhas, derrubar os blocos), agredir (lutas entre dinossauros, lutas de
espadas), pensar sobre morte (agora faz de conta que você morreu), pensar sobre as
configurações familiares, exercitar a irmandade (andar abraçados, movendo o corpo
simultaneamente da mesma forma) e se apaixonar (faz de conta que a gente é “namorados”).
Certa vez, ouvi uma menina propondo à colega “Vamos brincar que a gente é a gente?”. Para
o brincar, tudo pode, desde que tenha uma áurea de encantamento.
Durante a pesquisa de campo, pude testemunhar diversas situações em que meninas e
meninos, por meio da imaginação, e usando elementos do real, criaram mundos e modos de
acolher a si mesmas(os), como no caso que narro a seguir.
No dia da composição 8, Antonio colocou um vestido rosa e se autoproclamou “rainha
da natureza”. Para mostrar sua força e poder, como rainha, atirava pedras de um lado para o
outro. Ao ver uma das pedras passando de raspão em um dos colegas, solicitei a ele que parasse
por alguns segundos e analisasse o perigo da situação, pois uma(um) colega poderia ser
65

machucada(do). Antonio entendeu meu receio, mas ficou inconformado: “Mas eu sou ‘a rainha
da natureza’ e esse é meu poder!”. Nesse momento, me recordei de uma outra cena, quando
duas meninas brincavam de achar pedras preciosas. Lembrei que, quando a pedra era muito
bonita, elas a seguravam por um tempo estendido, com as duas mãos juntas para, segundo as
meninas, sentir sua magia. Propus o mesmo para o Antonio. Ofereci a ele a possibilidade de
segurar as pedras em suas mãos. Disse que precisava ser com muita concentração para que o
poder da pedra passasse para ele. Antonio experimentou e gostou do ritual. Ele segurava a pedra
em suas mãos, depois a soprava (etapa que ele inventou), colocava-a no chão e, em seguida,
jogava seu poder nas outras crianças.

Por meio da brincadeira, Antonio pôde deixar de lançar as pedras, o que colocaria as(os)
colegas em risco, mas, sem deixar de ser a rainha da natureza que lançava poderes, “destruindo”
seus inimigos. As características reais de força e destrutividade da pedra foram conservadas,
simultaneamente, à fantasia de que, ao segurá-las, ele absorveria seu poder e ainda poderia
lançá-lo sobre as(os) pares.
Essa brincadeira não se ancorou completamente na realidade (mundo objetivo) e
nem unicamente no espaço interior ou na fantasia. Em vez disso, fundamentou-se,
paradoxalmente, nesses dois universos.
Sarmento (2002) afirma que o jogo simbólico corresponde a um elemento nuclear
da compreensão e da significação do mundo pelas crianças, sendo a imaginação do real
essencial em seus modos de inteligibilidade e de interpretação do que experenciam, que é
coexistente com a lógica formal. O autor realça o imbricamento entre realidade e imaginário
próprios ao brincar, e se refere à expressão usada por Paul Harris “navegar entre dois mundos”:
66

A alteração lógica formal não significa que as crianças tenham um


pensamento ilógico. Pelo contrário, esta alteração, estando patente na
organização discursiva das culturas da infância (especialmente no que diz
respeita ao jogo simbólico), é coexistente com uma organização lógica formal
do discurso, que permite que a criança simultaneamente “navegue entre dois
mundos” – o real e o imaginário – explorando as suas contradições e
possibilidades. (SARMENTO, 2002, p.11, grifo do autor)

Sob a perspectiva winnicottiana, no contexto do caminho percorrido por cada ser


para a conquista da observação objetiva e da realidade compartilhada, o brincar e suas relações
com a maneira infantil de interpretar o mundo são entendidos, como referido anteriormente,
por um estágio do desenvolvimento humano. No entanto, para além disso, também é
compreendido, como modo humano de preservar uma parcela de ilusão simultaneamente `a
apreensão da realidade. Em outras palavras, o brincar é uma possibilidade de preservar a
capacidade de “navegar entre dois mundos”.
Seguindo por essa trilha, Sarmento (2002, p. 12, grifo do autor) afirma que o brincar
não é exclusivo das crianças:
De acordo com Winnicott (1975), o jogo é constitutivo do processo de
formação cultural e o espaço do jogo simbólico, que o bebé pratica e depois
dele a criança e o adulto, a “terceira área” da mediação entre o espaço
interior e o mundo objetivo. Brincar não é, portanto, exclusivo das crianças, é
próprio do homem e uma das suas actividades sociais mais significativas

Partindo desse pressuposto, Sarmento (2002, p. 11, grifo do autor) vai além e
questiona o conceito de real, sugerindo que a imbricação entre realidade e fantasia estaria na
base de toda interpretação humana, constituindo-se em uma recriação:

Poderemos de resto, justamente, interrogar-nos sobre se essa imbricação não


ocorre também no mundo dos adultos, isto é, se toda a interpretação não é
sempre projecção do imaginário e se o “real” não é, afinal, o efeito da
segmentação, transposição e re-criação feita no acto de interpretação de
acontecimentos e situações.

A reflexão que Winnicott (1975, p. 76) apresenta sobre seus próprios estudos que
relacionam o brincar e a experiência cultural parece corroborar a análise de Sarmento:

O significado do brincar adquiriu novo colorido para mim a partir de meus


estudos sobre os fenômenos transicionais, remontando-os em todos os seus
sutis desenvolvimentos, desde o emprego primitivo de um objeto ou técnica
transicional, aos estádios supremos da capacidade de um ser humano para a
67

experiência cultural. Há uma evolução direta dos fenômenos transicionais


para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado, e deste para as
experiências culturais.

Ao se referir às imbricações entre brincar e real, presentes no pensamento


winnicottiano, Sarmento (2002) ilumina derivações dele, que vão além da perspectiva
desenvolvimentista, e sua diferença em relação ao comum entre as teorias modernas que,
segundo Jobim e Souza (2015, p. 61), “sempre estiveram muito mais preocupadas em
equacionar as questões do desenvolvimento com as experiências racionais ou lógicas da criança
do que propriamente com as experiências estéticas”.
Ou seja, ainda que reforce o caminho que as(os) bebês e, posteriormente, as crianças
e adolescentes necessitem realizar para se tornarem adultas(os), ao mergulhar no tema do
brincar, Winnicott traz para o centro da discussão o modo infantil de perceber e agir no mundo,
iluminando seu valor, que transcende a infância, diz respeito à humanidade como um todo.
Afinal, como afirma sinteticamente Bachelard (1988, p. 20) “Por alguns de seus traços, a
infância dura a vida inteira”.
Sob esse prisma, ao refletir sobre o desenvolvimento humano, considerando o
brincar, a experiência cultural e o viver imaginativo, Winnicott não está realçando a falta ou o
equívoco infantil e, por esse motivo, mostra-se em consonância com o que propõe Jobim e
Souza (2015, p. 58) como possibilidade de reposicionamento da psicologia e da pedagogia
modernas:

Discutir e analisar o desenvolvimento integral da criança, sendo a linguagem


e o jogo lúdico como parâmetros fundamentais, por uma outra forma de
enfrentar e superar as limitações da psicologia do desenvolvimento,
possibilitando, assim a construção de uma nova visibilidade para os problemas
que essa área enfrenta no momento. Essa nova possibilidade talvez possa
encontrar sua expressão maior na relação entre experiência estética e o
desenvolvimento humano.

Investigar as relações entre experiência estética e desenvolvimento humano ratifica


o pressuposto expresso de Jobim e Souza (1994) de que sensibilidade e imaginação são formas
legítimas de conhecimentos sobre as questões humanas e sociais. Igualmente, aproxima-se da
abordagem pedagógica proposta por Sandra Richter, Adriana da Silva e Ana Lucia de Faria
(2017, p. 235): “abordamos a imaginação poética, a alegria e a complexidade de aprender, o
direito à beleza e à experiência linguageira que emerge do corpo sensível, para reivindicar a
emergência política de uma outra Pedagogia da infância”.
68

Essa reivindicação proposta anteriormente acarretaria na superação da atitude


filosófica-científica característica dos tempos modernos, sobre a qual escrevi anteriormente
(capítulo “Onde amarrei as minhas redes”) e que relembro nas palavras de João Francisco
Duarte Junior (2000, p. 23)

Separados pela atitude filosófico-científica que definiu os tempos modernos,


na verdade a grande maioria da inteligência, ao longo desses séculos, nunca
chegou a admitir que a dimensão sensível humana pudesse consistir numa
forma de saber; quando muito, a ele se emprestava um estatuto inferior, na
medida em que seu grau de subjetivismo não lhe permitia padronização e
confiabilidade.

Nessa mesma linha, utilizando a expressão “resgate do sensível”, Sarmento (2002,


p. 16) propõe que se realize o mesmo esforço epistemológico já empreendido no universo das
artes plásticas, que tomam como ancoragem as culturas de infância para um conhecimento e
uma interpretação humana, o que, segundo o autor, “iluminaram os olhos dos adultos com a
redescoberta dos traços das crianças”:

Não é apenas das crianças que tratamos quando tratamos das crianças. Este
esforço, que é, simultaneamente, analítico e crítico, na interpretação dos
mundos sociais e culturais da infância, e político e pedagógico, na concepção
da mudança das instituições para as crianças, tomando como ponto de
ancoragem as culturas da infância, permitir-nos-á rever o nosso próprio
mundo, globalmente considerado. Este esforço epistemológico não é, aliás,
inédito. Miró, Paul Klee, Dubuffet ou Paula Rego, para falar apenas de alguns
pintores, há muito que iluminaram os olhos dos adultos com a redescoberta
dos traços das crianças. É um mundo infinitamente mais pacífico aquele que
se desenha nesses traços...

Outro exemplo citado pelo autor, que identicamente revela esse esforço
epistemológico, são as produções cinematográficas e literárias que “brincam” com o tempo,
usando o recurso de apresentá-lo de forma não cronológica, o que, segundo o autor, se
assemelha à reiteração presente nas brincadeiras, histórias e cantigas infantis. “O tempo da
criança é um tempo recursivo, continuamente reinvestido de novas possibilidades, um tempo
sem medida, capaz de ser sempre reiniciado e repetido” (SARMENTO, 2002, p. 11).
Portanto, as produções infantis são reconhecidas e compreendidas, como quer Marina
Marcondes Machado (2007), por meio da expressão poética adulta (literatura, “nonsense” dos
desenhos animados, a mistura de tempos nos roteiros de cinema, a possibilidade de convivência
de espaços em cenários no teatro, performances e instalações nas artes plásticas). A esse
processo de transposições que leva o adulto a compreender a estética infantil, a autora, citando
69

Bachelard, usa a expressão “desamadurecer”, que, por sua vez, relaciona-se à aproximação
entre infância e poesia. Nas palavras de Machado (2007, p. 172): “Um caminho interessante
para esse encontro é a aproximação entre infância e poesia, de modo que, para rever a linguagem
da psicologia da criança, em direção a outras maneiras de dizer, convido o adulto a
desamadurecer para compreender as crianças no mundo.”
Sobre infância e poesia, Bachelard (1988, p. 20) escreve: “Nos seus devaneios, a criança
realiza a unidade da poesia”. E adiante (1988, p. 21), acrescenta: “Os poetas nos ajudarão a
reencontrar em nós essa infância viva, essa infância permanente, durável, imóvel”.
A letra da música de Arnaldo Antunes, chamada “Cultura”, a meu ver, é um
exemplo de aproximação do artista aos modos de compreender infantis, que se apoia
simultaneamente na imaginação e na realidade, produzindo uma visão singular e poética do
mundo:

O girino é o peixinho do sapo


O silêncio é o começo do papo
O bigode é a antena do gato
O cavalo é pasto do carrapato

O cabrito é o cordeiro da cabra


O pescoço é a barriga da cobra
O leitão é um porquinho mais novo
A galinha é um pouquinho do ovo

O desejo é o começo do corpo


Engordar é a tarefa do porco
A cegonha é a girafa do ganso
O cachorro é um lobo mais manso

O escuro é a metade da zebra


As raízes são as veias da seiva
O camelo é um cavalo sem sede
Tartaruga por dentro é parede

O potrinho é o bezerro da égua


A batalha é o começo da trégua
Papagaio é um dragão miniatura
Bactérias num meio é cultura17

Nessa canção, os animais ganharam, como dizem Richter, Da Silva e De Faria


(2017, 238), “existência poética”, o que, segundo as autoras, é um direito da criança: “Aqui,

17
“Cultura”, de Arnaldo Antunes, Álbum “Canções Curiosas”, Coro das primas e vários, Palavra Cantada, 1998.
Disponível em: https://www.palavracantada.com.br/musica/cultura/. Acessado em 2022.
70

talvez, a questão mais inquietante lançada pelas crianças à pedagogia: o direito a animar as
coisas e emprestar-lhes uma existência poética em sua conquista linguageira de brechas entre
vida real e vida fabulada” (RICHTER; DA SILVA; DE FARIA, 2017, p. 244)

Richter (2002 p.1) também esclarece que a dimensão poética do conhecer é


sensível e conecta o ser humano com os outros e com o mundo por meio da ação criadora:

[...] um aspecto pouco considerado, porque pouco realizado intencionalmente,


na educação infantil ou ensino fundamental: a dimensão poética do conhecer.
Dimensão sensível que caracteriza o ser humano ao encontrar sua
especificidade no sentir, imaginar, perceber, fazer, significar, portanto ao
envolver todo o sistema de afetos que organiza e redimensiona sensações
corporais e nos conecta intelectualmente com os outros e com o mundo através
de nossas possibilidades criadoras e inventivas.

No trecho anterior, a autora conecta a “dimensão sensível” às sensações corporais


que são organizadas pelo sistema de afetos. Pensando nessa conexão, relembro a brincadeira de
Antonio “rainha da natureza”, que extraía e lançava o poder das pedras. No ritual de Antonio,
era importante a parte de sentir o peso, sentir a pedra em suas mãos. Não era apenas uma pedra
imaginada, era uma pedra em suas mãos, que assumia características imaginárias de transmitir
força e poder. Como canta Caetano Veloso, é preciso segurar a pedra nas mãos para entender:

If you hold a stone, hold it in your hand


If you feel the weight, you´ll never be late
To Undestand18

A força que emana do objeto e que é encontrada pela criança, quando essa entra em
contato com ele, segurando-o e sentido-o, relaciona-se à afirmação de Sandra Richter (2004, p.
32) sobre a imaginação infantil “que vai muito além das palavras ao alcançar outros sentidos e
significados não verbalizáveis de sua experiência”. A criança apresenta uma “relação direta
com os objetos”:

Por estar desarmada de conceitos e ideias do que sejam as coisas mundanas, a criança
estabelece uma relação direta com o que a cerca. Seu olhar torna-se um olhar primal,
poético, seduzido pela admiração, encantado pela novidade. A imaginação torna-se

18 18
Canção “If you hold a stone”, de Caetano Veloso. Álbum “Caetano Veloso”, de 1971. Se você segurar uma
pedra, segurá-la em suas mãos. Se você sentir o peso, você não terá perdido o tempo de entender. (tradução livre
da autora).
71

louca vontade de ver e integrar o detalhe ordinário que, por desafiar o familiar, exige
o movimento de tornar-se operador fabuloso de sentidos. (RICHTER; DA SILVA;
DE FARIA, 2017, p. 237)

Nessa mesma linha, Machado (2007, p. 96, grifos do autor) indica que: “A criança
adere às situações; os objetos para ela possuem, sempre, ‘caracteres afetivos’. Por estar sempre
inserida, implicada, por não se distanciar, a criança ‘concilia-se com uma espécie de pré-
existência’: tudo lhe diz respeito”.
O diálogo entre a mãe e seus dois filhos, que narrei no início deste capítulo e que
retomo aqui, oferece pistas dessa maneira implicada da criança em ser, estar e conhecer o
mundo.
Disse o filho mais velho, que estudava planetas:
– Mãe, quando eu crescer, se eu não for jogador de futebol, quero ser
astrônomo ou astronauta.
Ao que o mais novo, que estudava metamorfose, acrescentou:
– Mãe, quando eu crescer, se eu não for super-herói, quero ser lagarta ou
borboleta.

Interessante constatar que os assuntos estudados pelos meninos – planetas e


metamorfose – os conduziram para questões do ser “o que eu quero ser quando crescer”, o que
me leva a imaginar que, na sala de aula, enquanto estudavam informações sobre, por exemplo,
nome e ordem dos planetas ou estágios da metamorfose, os irmãos imaginavam-se sendo esses
seres, ou algo parecido a eles. Sonhavam, habitando os mundos secretos dos jardins e do espaço
sideral.
Uma das formas de as crianças conhecerem o mundo é habitando-o, ou seja,
fazendo dele uma morada. Segundo Bachelard (2008, p. 67): “[...] mergulhar a mão na matéria
certa é mergulhar nela todo o ser”. Mergulhadas no mundo, as crianças facilmente reconhecem
a presença de si e da humanidade que se aloja em cada objeto, em cada pedacinho dele.
Relaciono esse conhecimento alojado, vivencial e sensível ao corpo, ou ao que Richter,
Da Silva e De Faria (2017, p. 241) nomearam de “raízes corporais”:

Tal abordagem acontece no âmbito dos saberes sensíveis que emergem das
raízes corporais: um saber primal, fundante, direto, anterior aos processos de
raciocínio e reflexão, que exige o encontro com as qualidades do mundo.
Sons, cores, sabores, texturas e odores nos colocam no mundo e são por nós
corporalizados
72

O saber alojado, proveniente da possibilidade infantil de habitar o mundo, das “raízes


corporais” e que reconhece nos objetos encontros humanos (SAFRA, 2005), está intimamente
ligado ao que Bachelard (1997, 2008) nomeou de “imaginação material”.

A imaginação material e a poética do espaço bachelariana guiaram meu olhar e modos


de compreender o brincar das crianças durante a pesquisa de campo e é tema da próxima sessão.

Imaginação e materialidade – O bordado encantado

Muitas vezes, na hora de dormir, meus pais, e por vezes meus avós, me contavam
histórias. As narrativas eram, em sua maioria, compridas, e eu só adormecia quando chegavam
ao fim. As cenas narradas se sucediam na minha imaginação. Mas eu não me percebia
imaginando. Para mim aquelas cenas aconteciam, tinham textura, eram encarnadas. Em
momento algum, eu suspeitava que o longo cabelo da princesa poderia ser diferente no
imaginário de outra pessoa. Assim como eu acredito que Ana Angelica Albano (2018, p. 10-
11) não suspeitava, quando pequena, que a romã poderia ser uma fruta qualquer:

Ao lado das brincadeiras coletivas, vivia meus devaneios secretos: A romã é


com certeza uma fruta de princesa, com todos esses rubis dentro! Não me
lembro de ter partilhado essa certeza com ninguém, tímida que era, a mais
nova entre tantos primos mais sabidos. Guardava em segredo o
maravilhamento diante das sementes cobertas de vermelho transparente e liso.

As narrativas ouvidas na minha infância eram como espécie de recordação. O “Era


uma vez” para mim se traduzia em “Lembra uma vez que...”. E eu ia recordando uma história
que não conhecia, como se fosse um segredo guardado e compreendido por toda a humanidade
e que, finalmente, chegava a minha vez de saboreá-lo.
Uma das narrativas mais marcantes para mim foi a de uma mulher que tinha três
filhos e fazia bordados para sustentar a família: “O bordado encantado”, de Edmir Perrotti
(1996). Essa bordadeira começava a trabalhar pela manhã e seguia até à noite, quando se guiava
pela luz tremeluzente de uma vela. Durante o ofício, ela muitas vezes chorava de cansaço, e as
lágrimas que escorriam de seu rosto caíam sobre o bordado e se entrelaçavam na trama do
73

tecido, formando rios e cachoeiras tão límpidos que chegavam a brilhar. Ao longo do tempo,
sua vista foi ficando cada vez mais cansada, a ponto de ela picar muitas vezes o dedo com
agulha, e o sangue escorrido igualmente se juntava à trama formando montanhas e vales, cujas
cores impressionavam pela beleza. Um dia esse bordado é levado pelas fadas, e a narrativa se
desenrola por meio das jornadas dos três filhos em busca do tecido, terminando com uma grande
ventania que leva o bordado por toda a redondeza e, por onde ele passa, altera o mundo,
imprimindo nele as paisagens tais quais haviam sido bordadas.
Trago esse conto como uma referência do que, a partir dos processos investigativos
desta pesquisa, entendo como imbricamento entre real e fantasia, que é presente
emblematicamente no brincar e na compreensão poética própria às crianças e, como indicado
anteriormente, também no fazer cultural e criativo dos adultos. Tal imbricamento identicamente
pode ser suscitado por outro par de palavras: matéria e imaginação, o que se aproxima do termo
“imaginação material” (BACHELARD, 1988, 1997, 2008), que, segundo Reinério Simões
(1999, p.72), “é o conceito basilar de toda a poética bachelardiana”.
Bachelard (2008, p. 22) afirma que, ao agirmos no mundo, a matéria nos toca, assim
como nós a tocamos, e “as intimidades do sujeito e do objeto se trocam entre si”. Para o autor,
entrar em contato e agir sobre a materialidade do mundo dá ao ser a possibilidade de alcançar
sua intimidade nas suas dimensões oníricas e imagéticas. Ou seja, a mão que penetra a matéria
vai conhecendo-a e transformando-a, de maneira a vislumbrar e sentir o que estava oculto no
interior dela e, nessa intimidade com a matéria, vive a própria intimidade humana: “Um
devaneio de intimidade ‒ de uma intimidade sempre humana ‒ abre-se para quem penetra nos
mistérios da matéria” (BAHELARD, 1998, p.68).
O conto “O bordado encantado” contém recorrentes imagens de penetração: a
costura feita de linha e agulha, perfurando e marcando o tecido; o sangue e a lágrima que se
infiltram na paisagem; e, por fim, o bordado que, ao passar, modifica a realidade.
Sangue e lágrimas da mãe transfiguram o bordado e, mais à diante, a própria
realidade, pois, quando os tecidos são levados pelo vento, pela segunda vez, transformam o
mundo por onde passam. Por conseguinte, em alguma medida, são a própria realidade. As
paisagens, ao se assemelharem ao bordado, se tornam mais oníricas, e o bordado, ao se infiltrar
nas paisagens, torna-se mais real.
Richter, Da Silva e De Faria (2017, p. 239), ao discorrerem sobre os modos infantis
de aprender, enfatizam que a criança vive um processo de metamorfose e torna-se aquilo que o
mundo vai se tornando para ela: “Aqui, a ação de aprender não é síntese, menos ainda processo
74

cumulativo do percebido, mas metamorfose do corpo em abertura para a experiência temporal


de tornar-se na simultaneidade o que o mundo vai tornando-se para si e para os outros”.
Portanto, a criança não apenas mimetiza o mundo. Ela vai se modificando à medida que
o transforma. Ela anima as coisas, criando e acessando múltiplas dimensões do real:

Todo pensamento que desencadeia uma transfiguração da realidade, ao


animar as coisas e emprestar-lhes uma existência poética, é transformativo do
pensamento e dos acontecimentos mundanos: na simultaneidade que engendra
pensamentos, inventa realidades. O poético emerge justamente na audácia ou
na astúcia de um pensamento que não se satisfaz representando – ou re-
produzindo – o mundo, antes regojiza-se ao improvisar outros mundos ao
tomar a iniciativa de agir ao elaborar coordenações entre ações que produzem
efeitos no real pelo poder poético de abertura à outras dimensões de realidade.
(RICHTER; DA SILVA; DE FARIA, 2017, p. 239)

Durante o trabalho de campo, pude observar, em ocasiões diversas, crianças


“trabalhando a matéria” em um estado de entrega diferenciado. Um estado de silêncio e
totalidade, dando a impressão de que haviam se metamorfoseado na própria matéria e de que
não havia distinção onde terminava seus corpos e começava o mundo material (objetos,
ferramentas, elementos da natureza, tecidos etc). Cavar a terra, muitas vezes, foi situação de
“metamorfose” e “troca de intimidades”, a que me refiro.
Utilizando pás, meninas e meninos se sentavam no chão e começavam a cavar,
cavar, cavar. Reparei que, no início, enquanto trabalhavam, conversavam com as(os)
amigas(os), olhavam em volta, faziam planos para os buracos, explicitando quanto seria sua
profundidade, por exemplo. Mas com o passar do tempo e da repetição da ação, iam ficando
cada vez mais quietas(os), sem levantar para nada, sem falar. Apesar do vigor com que
cavavam, em determinado momento, entregavam-se com tamanha alegria à ação, que o próprio
esforço parecia-lhes ser reconfortante e motivo de júbilo. O gesto de cavar ultrapassava todos
os planos elaborados pelas crianças. Em uma das ocasiões, Fernando e Rafael cavavam para
fazer um bolo de aniversário, depois se propuseram a fazer o maior bolo do mundo, em seguida
uma montanha, e os planos foram mudando, até que não existia mais um objetivo. Cavavam
apenas.
75

Bachelard (2008, p. 16) afirma que a resistência encontrada na matéria pode ser vivida
com um adversário que remete o ser para o fazer, para algo a ser feito, uma tarefa que o desperta
e o faz se sentir em companhia:

O mundo resistente nos impulsiona para fora do ser estático, para fora do ser.
E começam os mistérios da energia. Somos desde então seres despertos. Com
o martelo ou a acolher de pedreiro na mão, já não estamos sozinhos, temos
um adversário, temos algo a fazer.

Por esse motivo, a troca de intimidade, anteriormente referida, não se faz, segundo
o autor, do ponto de vista da complacência e, sim, da vontade de se tornar vitorioso diante de
um(a) adversário(a) que provoca (BACHELARD, 1997, p. 166):

Não se conhece imediatamente o mundo num conhecimento plácido, passivo,


quieto. Todos os devaneios construtivos ‒ e não há algo mais essencialmente
construtor que o devaneio de poder ‒ norteiam-se na esperança de uma
adversidade superada, na visão de um adversário vencido.

Em seus estudos, cujo tema de investigação é a imaginação material, na sua relação


com os quatro elementos – fogo, ar, água e terra ‒ Bachelard (1997, 2008) enfatiza que a
imaginação opera no reino das imagens táteis – densidade, aspereza, dureza, peso,
maleabilidade. Ele usa a expressão “poemas do tato”, quando afirma: “[...] precisamos
compreender que a mão, assim como o olhar, tem seus devaneios e sua poesia. Deveremos,
portanto, descobrir os poemas do tato, os poemas da mão que amassa” (BACHELARD, 2008,
p. 66). Em outro texto, seguindo a mesma trilha, explicita: “Também a mão tem seus sonhos,
suas hipóteses. Ela ajuda a conhecer a matéria em sua intimidade. Ajuda, pois, a sonhar”
(BACHELARD, 1997, p. 111).
76

Especialmente ao se referir às imagens da terra, Bachelard (2008, p. 8) evidencia o


valor da matéria, em formato de resistência: “A terra, com efeito, ao contrário dos outros três
elementos, tem como primeira característica uma resistência [...] Tentamos, portanto,
caracterizar, no limiar do nosso estudo, o mundo resistente” .
Logo, a imaginação material está menos ligada à forma e mais à matéria:
“Deixemos a outros o cuidado de estudar a beleza das formas; queremos consagrar nossos
esforços a determinar a beleza íntima das matérias; sua massa de atrativos ocultos, todo esse
espaço afetivo concentrado no interior das coisas” (BACHELARD, 2008, p. 6).
O conto “O bordado encantado” é repleto de imagens referentes a elementos como
o fogo e a água, apresentando-os de tal sorte, que, ao ouvi-lo, enxergo as cenas narradas,
misturadas com vívidas lembranças de infância. No conto, o bordado é tecido à luz de vela
Antes de ouvir essa história pela primeira vez, eu já tinha visto uma vela, uma não, muitas.
Morava em uma casa em cidade vizinha a São Paulo, em Cotia, afastada do ambiente urbano,
como contei anteriormente. Lá era bastante comum a luz acabar, quando chovia forte. Nesses
dias de escuridão, minha irmã e eu acendíamos velas coloridas e brincávamos de pingar a cera
em um pote com água, fazendo mandalas e esculturas. Por vezes, eu parava de pingar a cera,
somente para observar a chama da vela. Sua força contrastada com sua instabilidade era
hipnotizante. Essa mesma brincadeira com vela e pingos de cera é citada por Pereira (2019, p.
59)
O fogo e a água se associaram numa brincadeira inventada por uma criança
de cinco anos, quando resolveu experimentar o que aconteceria se pingos de
vela acesa caíssem sobre a água num pote de barro. A criança demonstrou
enorme satisfação ao descobrir que os pingos de cera eram capazes de recobrir
toda a superfície da água, tornando-se, após o resfriamento, uma matéria
sólida surpreendente.

Segundo a educadora, o caráter de risco do fogo repercute como experiência de


autocontrole, de controle dos gestos impulsivos, exigindo atenção e cuidado (PEREIRA, 2019).
A brincadeira com o fogo, por meio da vela derretida, possibilitou-me proximidade com esse
elemento e intimidade com sua potência, sua capacidade destruidora, e com sua instabilidade.
Talvez por isso, acendeu-se em mim com tanta força a imagem da concentração e do cansaço
vividos pela mãe bordadeira, que bordava à luz de velas. Eu sentia pena da mãe, mas, por outro
lado, ficava admirada com o seu esforço e a sua habilidade em driblar a inconstância da chama.
Ficava mais admirada ainda em imaginar o sangue virando montanha; e a lágrima, o brilho dos
rios e cachoeiras.
77

Na minha casa, havia no quintal um chão áspero de pedra amarelada. Lembro-me


de fazer repetidas vezes a mesma brincadeira: com as mãos em formato de conchas, recolhia
um pouco de água, jogava sobre o chão e, no segundo seguinte, deslizava a palma da mão pela
pedra. Era uma sensação estranhamente gostosa de aspereza e deslizamento. Meus olhos se
fixavam na película de água gerada, que, mesmo tão fininha, brilhava com a luz do sol. O brilho
durava somente enquanto a mão deslizava, ou seja, enquanto a água ainda não havia se
espalhado totalmente. Eu não conseguia nesta brincadeira reter nem a água, nem a sensação de
deslize e nem o brilho. Talvez por isso ficasse tão contente com a lágrima da mãe que brilhava
retida no bordado.
A lágrima da mãe, retida no bordado e fazendo brilhar as águas das cachoeiras,
brilhou em mim, fazendo vibrar a lembrança do chão de pedra molhado e cintilante da minha
casa de infância.
Ao ouvir o conto “O bordado encantado” pela primeira vez, eu não sabia o que mais
tarde tomei conhecimento, por meio de entrevista concedida pelo autor (PERROTI apud
FARIA, 2008, n.p.), que recontou uma narrativa tibetana à sua maneira: “Tomei emprestado
um argumento que, parece, vem lá do Tibete, e contei-o a meu modo. Ou melhor, recontei-
o…”. Não conhecia o autor, tampouco sabia onde ficava o Tibet. Também nunca havia bordado.
Mesmo assim, as imagens narradas no conto repercutiram em mim e depositei a mim mesma
no brilho da lágrima e na chama da vela, renovando cenas de minha infância, agora
reinterpretadas, revividas, sonhadas.
No decorrer da pesquisa de campo, notei que Pamela do mesmo modo se encantou
com o brilho da água refletida na pedra. Durante a composição 2, ela estava brincando de
cozinhar com pedrinhas, água e lama, quando percebeu que algumas delas brilhavam mais do
que outras. Pamela foi mexendo o caldo e analisando a beleza das pedrinhas, que, conforme o
movimento da água, refletiam a luz de jeitos diferentes, até que, por fim, escolheu uma e me
pediu para tirar uma foto da “pedra linda”. As palavras de Bachelard (2008, p. 232) ajudam a
compreender o valor do achado de Pâmela: “[...] beleza do mundo que se segura nas mãos:
pedras”.
78

A “pedra linda” foi tema de investigações de Pâmela por encontros subsequentes.


Ela experimentou jeitos diferentes de brincar com a pedrinha: ora a misturava em água com
terra, ora em água limpa, em bacias grandes, em pequenas, adornada por flores, junto com
folhas e frutos, como se fossem mosaicos que ela ia criando com esses elementos.

Para se referir à imagem poética, Bachelard (1993) faz analogia a uma pedra caindo
na lagoa, gerando ondas, ao que ele afirma que a imagem é a pedra, enquanto as ondas são a
repercussão do ser nessa explosão de sentido, do encontro da força e do peso da pedra com a
água. Em razão disso, não é o passado que provoca, que causa as ondas, mas ele é acionado
pela imagem, repercute a partir dela. Por conseguinte, a imagem poética é sempre nova, é
presente.

A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um


passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado
longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos
79

vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética
tem um ser próprio, um dinamismo próprio. (BACHELARD, 1993, p. 183)

É seguindo essa linha que Bachelard (1993, p. 184) aborda o tema da


transubjetividade de uma imagem, indicando que a imagem poética, mesmo sendo um
acontecimento singular e efêmero, repercute o ser e, diante disso, “pode reagir ‒ sem preparação
alguma ‒ sobre outras almas, sobre outros corações [...]”.
Discorrendo sobre a potência de “reagir sobre outros corações”, o filósofo cita,
como exemplo, o sentimento de orgulho, “pontinha de orgulho”, que nasce da adesão da(o)
leitora(or) a uma imagem que ele aprecia, como se ela(ele), leitora(or), se sentisse, mesmo que
secretamente, também autora(or) da imagem lida.

Ninguém sabe que lendo revivemos nossas tentações de ser poeta. Todo leitor,
um pouco apaixonado pela leitura, alimenta e recalca, pela leitura, um desejo
de ser escritor. Quando a página lida é bela demais, a modéstia recalca esse
desejo. Mas o desejo renasce. De qualquer maneira, todo leitor que relê uma
obra que ama sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito. (BACHELARD,
1993, p. 189)

A ênfase na transubjetividade, dada pelo autor, indica seu interesse no aspecto de


novidade e de repercussão da imagem poética, em vez de interesse na busca por suas causas ou
seus constituintes. Bachelard (1993) não se propõe a explicar as imagens pelo passado, ou pela
história de vida dos sujeitos que a criaram, nem pelas condições materiais de onde se
originaram.
A maneira como busquei me aproximar das brincadeiras, no decorrer dos processos
investigativos da presente dissertação, está em consonância com a abordagem aqui refletida.
Portanto, não procurei informações sobre a história de vida das meninas e dos meninos
participantes como fatos explicativos de suas escolhas lúdicas. Em vez disso, analisei como
suas criações repercutiam nas(os) colegas, registrei as narrativas que as próprias crianças
elaboravam no decorrer das brincadeiras e, posteriormente, como as recontavam. Observei seus
semblantes, seus gestos e movimentos e como eles se relacionavam com os objetivos e os
elementos materiais que compunham o brincar. Anotei o tempo de duração das brincadeiras,
como e quando eram interrompidas ou reconfiguradas. Igualmente, considerei o valor que
meninas e meninos davam às suas criações, quando, por vezes pediam a mim e às(aos) colegas
para guardar um objeto ou protegiam seus cenários, buscando distância dos demais ou erguendo
muralhas com tecidos e outros materiais.
80

Ao notarem Pamela brincando com a “pedra linda”, outras colegas interessaram e


se aproximaram de suas produções, colaborando com ideias e observações. Como a pedrinha
jogada na lagoa, a que se refere Bachelard, a “pedra linda” repercutiu em outros corações.
Durante a pesquisa de campo, foram inúmeras as vezes que testemunhei crianças interrompendo
o que estavam fazendo para observar uma(um) colega que brincava sozinha(o). Essas
interrupções poderiam ser breves e pontuais, ou tornavam-se frequentes e cada vez mais
duradouras, até que as crianças abandonavam o que estavam fazendo e se juntavam à(ao)
colega, inserindo-se na brincadeira como se fosse delas, mas demonstrando profundo respeito
ao que já estava sendo construído. Nessas situações a que me refiro, não houve convite verbal,
o que convocou as meninas e os meninos foi a própria brincadeira da(o) colega. Brincadeiras
que encontraram ressonância e, como uma explosão, poeticamente alcançaram as crianças.

Por exemplo, certa vez Rodrigo encheu uma bacia média de água e com potinho
pequeno começou a jogar água nas suas mãos. Com movimento lento e olhar absorto, Rodrigo
repetiu inúmeras vezes a ação de jogar a água, esperá-la escorrer e fechar os punhos,
espremendo os dedinhos. Era a precisa imagem de troca de intimidade, de fusão, entre ser e
matéria: “Na amassadura não há mais geometria, nem aresta, nem corte. É um sonho contínuo.
É um trabalho que se pode fechar os olhos. É, pois, um devaneio íntimo. E depois, ele é ritmado,
duramente ritmado, num ritmo que toma o corpo inteiro (BACHELARD, 2008, p. 66)”.
Rafael, que estava construindo cabanas, de quando em vez olhava o amigo, até que foi
em sua direção com mais alguns potinhos, pedrinhas e fitas de cetim. Rodrigo apanhou cada
elemento e o incorporou à sua mistura. Rafael foi e voltou mais de três vezes, em silêncio, sem
dizer palavra. Não requisitou para si “a sua vez” de mexer ou segurar os objetos. Parecia
81

satisfeito em participar levando elementos, contribuindo para a “metamorfose” que


provavelmente lhe fazia sentido.
A brincadeira de Rodrigo repercutiu em Rafael forças de imagem poética, de jeito
similar a como acontece o fenômeno, descrito por Bachelard (1993), sobre a(o) leitora(or) que
sente uma pontinha de orgulho ao ler seus textos preferidos. O gesto de Rafael, ao entregar os
potinhos para Rodrigo, e seu andar cuidadoso sugerem que ele compreendeu que algo
“acontecia” (LARROSA, 2011) com o amigo, e ele participava desse acontecimento, ao
observá-lo, ao compreendê-lo e enriquecê-lo com suas singelas contribuições.

Assistindo às brincadeiras durante o trabalho de campo também eu me encantei


pelas criações das crianças. Quando revistei as notações do diário de bordo, aproximei-me das
imagens e das recordações, deixando que ressoassem em mim e busquei compreendê-las como
investigações infantis que, como as imagens poéticas, dizem respeito à compreensão do mundo,
do ser, da vida, do existir. Uma compreensão sensível, enraizada no corpo, ancorada,
paradoxalmente na fantasia e na realidade, à imaginação e à matéria, concreta e onírica. Para
isso, botei reparo na recorrência e na duração das brincadeiras, bem como no movimento, nos
gestos, nas escolhas de material, nos diálogos, nos comentários, na ocupação do espaço, nos
agrupamentos, nas parcerias e no semblante de meninas e meninos.
Narro a seguir o que observei e vivi com meninas e meninos, organizando os
dados/achados em quatro temas, todos eles ligados a qualidades da matéria: concavidade,
massa, peso e compasso.
Em “concavidade”, apresento narrativas do habitar, esconder-se, alojar-se, encaixar-se.
Em “massas”, abordo narrativas do brincar ligadas às misturas de água e terra e às experiências
82

de unir, separar, moldar e transfigurar. Em “peso”, narrativas de superação, esforço conjunto,


deslocamentos, movimento e velocidade. E em “compasso”, narrativas de centro e expansão.
83

CAPÍTULO 3

O BRINCAR NO AMBIENTE MALEÁVEL E


PLURAL: INTIMIDADES ENTRE AS CRIANÇAS
E A MATÉRIA

Concavidade

Como mencionei anteriormente no capítulo “Onde amarrei as minhas redes”, no


primeiro dia de composição me surpreendi ao ver Helena feliz na rede que ela mesma havia
montado e pendurado. Ao longo dos encontros, assim como ela, outras crianças, em diversas
oportunidades, usaram os tecidos para construir lugares para si como redes, cabanas e caminhas.
Nas brincadeiras com tecidos, notei, em acréscimo, uma semelhança no olhar de
meninas e meninos, quando dentro de seus ninhos, redes, caminhas e cabanas. Por vezes,
elas(eles) se recobriam de tal sorte, que não era possível visualizar seus olhos. Em outras
ocasiões, eu até conseguia enxergá-las(los), mas se mostravam distantes, absortos, alheios ao
contato com o ambiente e as pessoas. Trindade (2016) relata que, muitas vezes, ao se enfiarem
em lugares pequenos e apertados, as crianças encolhem o corpo, fazendo uma silhueta a qual o
autor denomina de “conchinha” e, nessa posição, frequentemente elas cerram seus olhos e
voltam a sua atenção para o batimento cardíaco ou para a respiração, por exemplo. Fazendo
relação com o ato de meditar, Trindade (2016, p. 114) afirma que a “conchinha” convida à
“autoconcentragem”.

Os estímulos visuais diminuem, as pálpebras se fecham e a atenção se volta


para os processos internos do organismo, como os batimentos cardíacos e o
ritmo da respiração. A audição permanece como canal principal de contato
com o meio externo. Essa postura de flexão máxima do corpo também pode
representar um movimento de proteção, de recuo e de autoconcentragem. Em
muitas culturas, é a posição preferencial de meditação e oração. [...] Tal
imagem também sugere um estado de imersão e de interiorização: a posição
da conchinha.
84
85

Bachelard (1993) também se vale da imagem da concha e, referenciando-se nas conchas


de caracol e caramujo, ressalta sua condição de serem criadas pelo próprio animal que a habita,
o que a torna simultaneamente morada para o ser e o próprio ser, locomovendo-se com ele.
Igualmente, o autor alude aos ninhos, indicando que muitos deles são feitos por dentro. Como
os pássaros são desprovidos de braços, mãos e pés, muitas vezes, comprimem as paredes do
ninho, com todo seu corpo, por meio do peito que se expande e se recolhe, como na respiração.
Citando Michellet, o filósofo afirma:

O pássaro, diz Michelet, é um operário desprovido de qualquer ferramenta.


Ele não tem “nem a mão do esquilo, nem o dente afiado do castor”. “A
ferramenta, realmente, é o próprio corpo do pássaro, é o seu peito com o qual
ele aperta e comprime os materiais até torná-los totalmente dóceis, até agregá-
los, sujeitá-los à obra geral.” Michelet nos sugere a casa construída para o
corpo, pelo corpo, tomando sua forma pelo interior, como uma concha, numa
intimidade que trabalha fisicamente. É o interior do ninho que impõe sua
forma. “No interior, o instrumento que impõe ao ninho sua forma circular não
é outra coisa senão o corpo do pássaro. É pela ação de virar-se constantemente
e de recalcar as paredes de todos os lados que ele chega a formar esse círculo."
(BACHELARD, 1993, p. 263)

O ninho, construído por dentro, e a concha, que se locomove junto com seu habitante,
condensam as imagens da morada ajustada ao corpo, uma vez que são invólucros, aquilo que
envolve e acolhe, na medida certa. Para Bachelard (1993 p. 276), “[...] a concha do caracol, a
casa que cresce na mesma medida de seu hóspede é uma maravilha do Universo”.
Munidas de tecidos, as crianças criaram para si muitas casas que cresciam na mesma
medida de seu hóspede. Não necessariamente eram casas individuais. Por vezes, as redes e os
casulos eram habitados por mais de uma pessoa e, nesses casos, o aspecto de maleabilidade dos
tecidos possibilitava que a morada fosse continuamente reajustada a suas(seus) moradoras(es),
dando contorno a seus corpos, ou conjunto de corpos.
86

Observando as crianças envoltas nos tecidos, lembrei-me do conto “Cachinhos


dourados”, cuja personagem principal é uma menina que um dia invade a casa de uma família
de ursos. Lá, ela encontra sinais da casa habitada, como a comida recém-preparada e as camas
feitas. A menina, transgressoramente, experimenta como seria morar naquela casa e se serve do
mingau que estava em tigelas sobre a mesa, senta-se nas poltronas e até dorme em uma das
camas. Cachinhos encontra na casa dos ursos três versões de cada elemento: uma do pai, uma
da mãe e outra do filhinho. A personagem experimenta as três, preferindo sempre a do filho
que era “na medida certa”:

Primeiro provou o mingau do Urso Grande, Enorme, que estava quente demais
para ela; e ela praguejou. Depois provou o mingau do Urso Médio, mas estava
frio demais para ela; e ela praguejou por isso também. Passou então para o
mingau do Urso Pequeno, Miúdo, e o provou; e esse não estava nem quente
demais, nem frio demais, estava na medida certa; gostou tanto dele que raspou
a tigela. [...] E primeiro deitou-se na cama do Urso Grande, Enorme; mas essa
tinha a cabeceira alta demais para ela. Depois deitou-se na cama do Urso
Médio; essa tinha o pé alto demais para ela. Em seguida foi se deitar na cama
do Urso Pequeno, Miúdo; e essa não era alta demais nem na cabeceira nem no
pé, estava na medida certa. Então se cobriu confortavelmente e ficou ali
deitada até cair num sono profundo. (TATAR, 2004, p.247).
87

Como a Cachinhos dourados, algumas crianças, participantes desta pesquisa,


encontraram nas redes, nos ninhos, nos casulos e nas caminhas, um lugar “na medida certa”
para si mesmas, ajustado a seus corpos, tamanho e peso. Um lugar onde podiam se abster
momentaneamente do mundo e relaxar ou “dormir” até que o galo cantasse.
Certa vez, um grupo de meninas e meninos fez de conta que a rede era uma casa e nela
morava uma família. Os integrantes dessa família acordavam pela manhã e saíam para seus
afazeres: ir à escola, trabalhar e ir ao mercado. Depois, quando anoitecia, todos voltavam para
a rede-casa e iam dormir. Nesse momento, uma das crianças fechava a rede e eles permaneciam
em silêncio por alguns segundos, até que a mesma criança imitasse um galo dizendo:
“Cocoricó! Já amanheceu”. Então, todas saíam de casa novamente, e o dia recomeçava. Nessa
brincadeira, a rede era o ponto de união da família, lugar de morada, de intimidade,
recolhimento e de descanso.
88

Bachelard (1993, p. 263), usando o termo “casa-vestimenta”, relaciona o ajuste ao corpo


ao sentimento de proteção.

Do fundo de que devaneios se elevam tais imagens? Não virão do sonho da


proteção mais próxima, da proteção ajustada ao nosso corpo? Os sonhos da
casa-vestimenta não são desconhecidos daqueles que se comprazem no
exercício imaginário da função de habitar.

O autor alude ao refúgio dos animais, como as tocas, como lugares onde o ser se fecha
sobre si mesmo: “Fisicamente, o ser que recebe o sentimento do refúgio se fecha sobre si
mesmo, se encolhe, se esconde, se oculta" (BACHELARD, 1993, p. 257). Os abrigos
construídos e habitados pelas crianças, que foram vividos principalmente nas suas dimensões
de refúgio e de proteção, igualmente foram pequenos e apertados, propiciando encolhimento
corporal, esconderijo.
Gandhy Piorski (2016, p. 29) indica que as imagens e os mundos que as crianças criam
para si como moradas, aludindo ao encaixe e ao habitar, relacionam-se à intimidade: “A criança
cria muitos universos em suas imagens de inteireza e integralidade. Universos de habitar, de
encaixar-se, de resignar-se a viver. [...] Todas essas virtudes do brincar têm seu embrião na
imaginação de intimidade”.
No entanto, nem todos os lugares que as crianças destinaram para si tiveram o
recolhimento como característica principal. Notei que, principalmente quando feitos a partir de
outros materiais que não tecidos, como engradados e caixas de papelão por exemplo, a
dimensão “na medida certa” ficou menos evidente e, de algum jeito, meninas e meninos se
mantiveram mais conectadas ao ambiente. Nessas situações, elas não esconderam seus rostos
ou mantiveram olhar absorto, em vez disso, mantiveram-se atentas, interagindo com as(os)
colegas, por meio da fala e dos gestos.
Durante a composição 1, um grupo de crianças brincava de família, usando uma das
cabanas como casa. De acordo com a narrativa contada por meninas e meninos, os membros
dessa família brigavam muito entre si e com as(os) vizinhas(os). Em vários momentos,
chamaram a polícia para intervir, e a brincadeira se fez de forma bastante movimentada e
agitada. As crianças riam bastante, tocavam-se, puxavam-se e se empurravam. Um dos
meninos, no entanto, que depois eu soube que no faz-de-conta era o “filho”, não saía da casa,
ficava dentro de um engradado apenas olhando. Ao analisar seu semblante, estava claro que ele
acompanhava cada passo da brincadeira, sorrindo de vez em quando ao vislumbrar aquela
89

confusão de corpos e gritos. Não estava, portanto, absorto ou isolado. Não estava
essencialmente distante ou afastado, bem como não aderia a todos os movimentos e agitação.

Em outra ocasião, um menino organizou um lugar para si em cima de uma mesa, dentro
de um engradado. Em seu ombro, usava um tecido como uma capa. Ele permaneceu encaixado
no engradado por um bom período e, lá do alto, olhava as(os) colegas brincando, sorrindo de
vez em quando. Por vezes, chamava a atenção de uma(um) amiga(o) ou descia da mesa, “voava
até o chão”, passeava e voltava para sua base.
Segundo Trindade (2016), a pele é a interface do corpo com o ambiente externo,
tornando-se emblemática na delimitação da noção de dentro e fora, permite trocas com o meio,
como na transpiração, e “por sua extensão e continuidade, permite ao indivíduo perceber-se
como um todo integrado” (TRINDADE, 2016, p. 28).
Nos dois modos de uso dos engradados citados anteriormente, penso que, ao permitir
que as(os) meninas(os) se sentissem contidas(os) por inteiro, elas(eles) intensificaram a
percepção de serem um “todo integrado” e não desmembradas(os) ou dissociadas(os). Logo,
mesmo próximas à movimentação, falas e agitação das(os) colegas, dentro de suas “bases”,
essas crianças podiam se diferenciar e dar, a si mesmas e ao grupo, visibilidade para seus
contornos, mantendo-se, simultaneamente, dentro e fora dos enredos.
Bachelard (1993), ao se referir às imagens da casa e sua qualidade de proteção, quando
por exemplo abriga o ser humano durante uma tempestade, afirma que “casa e o universo não
são simplesmente dois espaços justapostos. No reino da imaginação, animam-se mutuamente
em devaneios contrários” (BACHELARD, 1993, p. 225). A aparente calmaria encontrada
pelas(os) meninas(os), ao habitarem os engradados, não se dá somente pelo ato de enfiar-se
90

em sua concavidade, mas igualmente por se encontrarem dentro deles, enquanto algo agitado
acontece fora. E por isso parece ser prazeroso contemplar o “burburinho” das(os) demais
colegas, uma vez que é ela(ele) que atesta, valida o seu contrário, ou seja, a quietude e a
tranquilidade. O “burburinho” contrasta com a imobilidade de quem está dentro da caixa. O
engradado, sendo constituído por ângulos e paredes, favorece a experiência da imobilidade, a
qual Bachelard (1993, p. 287) alude aos “cantos”.

Inicialmente, o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor de ser:


a imobilidade. Ele é a certeza local, o local próximo da minha imobilidade. O
canto é uma espécie de meia-caixa, metade paredes, metade portas. Ele servirá
de ilustração para a dialética do interior e do exterior de que trataremos num
próximo capítulo. A consciência do ser em paz no seu canto propaga, ousamos
dizer, uma imobilidade. A imobilidade irradia-se.

Dar visibilidade ao que é “dentro” e ao que é “fora” foi uma das funções principais que
as crianças destinaram aos materiais disponíveis. Conforme as narrativas criadas entre pares,
caixas, tecidos, bambolês e elásticos foram usados para definir onde eram as casas, as escolas,
a cozinha, os carros e os trens.

Diferente dos casulos, ao construírem casas, escolas, mercados e meios de transporte


para si, as crianças mantinham constante contato com as(os) colegas, partilhavam enredos,
assumiam e distribuíam papéis. Mesmo se posicionando dentro das cabanas, olhavam-se e se
comunicavam pelas “janelas”.
91

Por vezes, logo que definidos os lugares, punham-se em ação, elaborando em conjunto
as narrativas, falando e agindo como suas(seus) personagens. Em outras ocasiões, elas(eles)
passavam quase todo o tempo a enfeitar e compartimentar suas construções, enquanto
trabalhavam, contavam umas para as outras para que serviam cada compartimento e redefiniam
seus papéis e funções no enredo. Conforme um objeto que segurassem ou um espaço que
organizassem, davam a si mesmas uma nova função. Por exemplo, ao organizarem uma grande
festa para uma das colegas, uma menina, de posse da grande bacia de alumínio, exclamou: “Eu
era quem ia fazer o bolo”. Ou então, no contexto de uma brincadeira de cabana na floresta, ao
conseguir amarrar um cestinha na árvore, uma menina disse às(aos) colegas: “Aqui era o lugar
onde a gente guardava tudo o que a gente precisa”.
Organizar, enfeitar e designar foram práticas às quais, em diferentes momentos e
situações, meninas e meninos se propuseram a realizar, dedicando tempo e empenho. Potinhos,
cestas, sementes, folhas, pedrinhas, paninhos foram inúmeras vezes organizados e
reorganizados por elas(eles). Durante as brincadeiras, brincavam, variando conteúdo e
continente, ao distribuir e transpor elementos pequenos. Nessas situações, testavam tamanhos
e encaixes, faziam correspondências de termo um a um, experimentavam o excesso, buscavam
novas configurações ou retornavam à inicial. Os elementos eram locomovidos, transpostos,
agrupados, selecionados e separados.
92

Bachelard (1993, p. 91-92) aborda o tema da organização que pode ser vivida como um
“centro de ordem” contra a “desordem sem limite”, e atribui ao ato de escolher cuidadosamente
onde guardar nossos pertences o desdobrar da função de habitar.

No armário, só um pobre de espírito poderia colocar uma coisa qualquer.


Colocar uma coisa qualquer de qualquer maneira, em qualquer móvel, marca
uma fraqueza notável da função de habitar. No armário vive um centro de
ordem que protege toda a casa contra uma desordem sem limite.

Quando se dedicavam a organizar pequenos elementos, fazendo combinações diversas


entre conteúdo e continente, as crianças estavam, de algum jeito, construindo pequenas moradas
para seus pertences e para si mesmas.
Pude testemunhar, por diversas vezes, a braveza de meninas e meninos quando uma(um)
colega “mexia” ou “roubava” suas coisas. Não raro, elas(eles) designavam uma(um) colega-
guardiã(o), quando precisavam se afastar do cenário e dos materiais que haviam selecionado e
organizado para suas brincadeiras. Nessas situações, a(o) colega-guardiã(o) tomava para si a
função de cuidar da brincadeira da(o) colega com muita determinação: “Não mexe que é da(o)
nome!”. Uma brincadeira já começada, já tem uma(um) dona(o) e é sagrada para as crianças.
Nas palavras de Manoel de Barros (2010, p. XX): “Acho que o quintal onde a gente brincou é
maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o
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tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser
como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que
as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade”.
Intimidade, morada, proteção, refúgio, “autocentragem”, são dimensões e qualidades
ligas à função de habitar.

As crianças construíram, ao longo das composições, diferentes lugares para si e seus


pertences. Algumas características do material e do ambiente favoreceram essas brincadeiras,
entre elas a simplicidade. Como diz Bachelard (1993, p. 287), “Muitas vezes, quanto mais
simples é a imagem, maiores são os sonhos”. Tenho a impressão de que dentro dos potinhos e
bacias cabiam muitos mundos sonhados pelas crianças.
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Massa

No espaço usado para montar as composições, havia, ao lado do chão de terra batida,
um balcão de cimento com uma torneira. Nos dias mais quentes, meninas e meninos buscaram
água na torneira e encheram diferentes recipientes. Em volta das bacias grandes, aglomeraram-
se em grupos de três ou quatro crianças. Usando pás, colheres de pau e potinhos pequenos, elas
misturaram diversos elementos na água, como terra, frutos e galhos. A misturas, designo o
nome usado por Bachelard (1997) – “massa” –, que consiste nos compostos feitos com água e
uma substância em pó, como a terra, farinha e areia, por exemplo.

No livro A água e os sonhos, Bachelard (1997) discorre como esse elemento pode
substancializar dimensões do imaginário e das imagens poéticas, de maneiras diversas,
95

conforme o modo com que entramos em contato com ela. Nessa perspectiva, importa as
qualidades características da água. Por exemplo, a água parada se difere da água em movimento;
a água limpa, daquela misturada com os outros elementos. Para narrar as massas elaboradas
pelas crianças, durante o trabalho de campo, atenho-me especificamente à passagem que o autor
dá visibilidade para a ação da água sob as substâncias. Segundo o autor, inicialmente, esse
elemento dissolve e desmancha a matéria, sendo capaz de apagar o fogo e amolecer a terra. No
entanto, depois que consegue penetrar na sustância, torna-se elemento de ligação.

E depois, o trabalho na massa continua. Quando se conseguiu fazer penetrar


realmente a água na própria substância da terra esmagada, quando a farinha
bebeu a água e quando a água comeu a farinha, então começa a experiência
da “ligação”, o longo sonho da “ligação”. (BACHELARD, 1997, p. 109,
grifos do autor)

Por conseguinte: “Ora, a água é sonhada sucessivamente em seu papel emoliente e em


seu papel aglomerante”
Notei que, na brincadeira das crianças, as ações emoliente e aglomerante da água se
sucediam ciclicamente, pois, quando a mistura estava ficando mais líquida, à medida que
meninos e meninas despejam água sobre ela, em seguida se tornava novamente espessa,
conforme acrescentavam mais terra. O tempo parecia também ser vivenciado ciclicamente, era
sem fim. Observei que, nessa temporalidade cíclica, as crianças dificilmente se cansavam da
operação e, na maior parte das vezes, usavam todo o período do encontro para se dedicar às
suas misturas.
Segundo Bachelard (1997, p. 22), a massa possui características que a tornam emblema
do imaginário, ou em suas palavras: “timbre do imaginário”. A massa é elástica, lenta,
preguiçosa e mole.

O lento recebe assim, a seu modo, o signo do demais, próprio timbre do


imaginário. Basta encontrar a massa que substancializa essa lentidão desejada,
essa lentidão sonhada, para exagerar-lhe ainda mais a moleza. O operário,
poeta de mão modelante, trabalha docemente essa matéria da elasticidade
preguiçosa até o momento em que nela descobre essa atividade extraordinária
de fina ligação, essa alegria muito íntima dos pequeninos fios da matéria.

Ainda segundo o autor, essa lentidão traz uma duração diferenciada, um tempo contínuo
e preciso.
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Depois, a ação aglutinante começa e a amassadura, com seu lento mais regular
progresso, proporciona uma alegria especial, menos satânica que a alegria de
dissolver; “a mão toma diretamente consciência do sucesso progressivo da
união da terra e da água”. Outra duração se insere então na matéria, uma
duração sem brusquidão, sem impulso, sem fim preciso. Essa duração não é
pois formada. Não tem os diversos repositórios dos esboços sucessivos que a
contemplação encontra no trabalho dos sólidos. Essa duração é um devir
substancial, um devir pelo interior. (BACHELARD, 1997, p. 112, grifo nosso)

Destaco do trecho a frase “a mão toma diretamente consciência do sucesso progressivo


da união da terra e da água”. É a mão que toma consciência! Talvez por isso, na maioria das
brincadeiras das crianças, ainda que elas começassem usando pás e colheres, conforme passava
o tempo cíclico das misturas, em algum momento, os dedos tocavam e penetravam na massa.
Machado (2007, p. 55) indica o valor da pele para os bebês, meninas e meninos: “Mas
para falar da maneira própria de ser e de conhecer a si mesmo, ao outro e ao mundo, típica dos
bebês e das crianças pequenas... podemos escolher e dar destaque à importância de outro órgão
do sentido: o tato ‒ e o contato da pele”.

Testemunhar e sentir com as mãos a união da terra e da água, para Bachelard (1997, p.
64), pode ser vivido como uma experiência de perfeição, pois “Na imaginação de cada um de
nós existe a imagem material de uma massa ideal, uma perfeita síntese de resistência e de
maleabilidade, um maravilhoso equilíbrio das forças que aceitam e das forças que repelem”.
97

Entendo que, ao citar a mão, o autor se refira à toda extensão da pele, uma vez que
outras partes do corpo também podem tomar consciência dessa mistura ideal. Certa vez, durante
a composição 2, José estava descalço e pisou em uma parte do terreno que havia sido palco de
brincadeira com água de outras crianças. O chão era de terra e, naquele dia, tornava-se uma
lama gelada, mas não muito mole. Apenas sua superfície estava mais escorregadia.

José, primeiro, experimentou andar pela lama, depois agachou-se para tocá-la com as
mãos, até que, por fim, decidiu cavá-la e depositá-la em uma bacia branca. Ele fazia bastante
força para retirá-la do chão, curvando o corpo todo, que funcionava como alavanca. Depois,
ficava na ponta dos pés, o mais alto que podia, para despejar a lama na bacia. Juhani Pallasmaa
(2009, p. 55) relaciona a sensação da força da gravidade com o contato da planta dos pés com
o solo.

A gravidade é medida pela sola dos pés; seguimos a densidade e a textura do


chão através da sola de nossos pés. Ficar de pé e descalço sobre uma lisa rocha
glacial junto ao mar, no pôr do sol, e sentir na pele o calor da pedra aquecida
pelo sol é uma experiência muito revigorante que nos faz sentir parte do ciclo
eterno da natureza; ela nos faz sentir a respiração lenta da terra.

Acho linda a imagem de seus pés, que, posicionados bem na pontinha, estendiam o
trajeto da lama caindo na bacia. Se José estivesse apenas interessado em recolher a lama no
recipiente, não a jogaria lá do alto. Em vez disso, a transferiria do chão, subindo a pá apenas na
altura da bacia, que era baixinha. Mas ele não queria somente capturar a lama, queria vê-la cair,
primeiro escorrendo lentamente da colher, antes de, já desgrudada da madeira, cair em
aceleração.
98

Quando a lama batia contra o plástico do recipiente, espalhava-se e respingava,


parecendo que ia desparecendo, mas, aos poucos, ia descendo das laterais e se acumulando no
fundo, em movimento de aglutinação, de maneira lenta e viscosa, como aponta Bachelard
(1997).

Ao comentar sobre a importância do toque e do tato nos processos criativos ligados à


dança, Jussara Miller (2005, p.69) afirma:

É importante lembrar que o sentido pelo qual recebemos as sensações de


contato e pressão não se reduzem às mãos, mas sim ao corpo inteiro,
despertando a pele do corpo todo - distinguindo também o contato dos
diferentes tecidos da roupa, a pressão dos elásticos, enfim, a tensão se amplia
para o corpo inteiro com sua tridimensionalidade.

O pé de José durante toda a brincadeira ficou em contato com a lama, da mesma forma
que seus olhos a miravam continuamente. Desse jeito ele captava a viscosidade da massa por
meio do olhar e do tato, espalhando a sensação do toque por todo seu corpo e reunindo seu
tesouro na bacia ao seu lado.
A brincadeira de José é repleta de opostos: lento e rápido, alto e baixo, expansão,
recolhimento, espalhar e aglutinar. Essa dinâmica de forças que se atraem é sonhada com ajuda
da materialidade. Bachelard (2008, p. 61) afirma que na “massa” há cooperação, incidentes e
contrariedades: Com efeito, podemos captar uma espécie de cooperação de dois elementos
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imaginários, cooperação cheia de incidentes, de contrariedades, conforme a água abranda a


terra, ou a terra confere à água a sua consistência.
A compreensão da massa como substância detentora de incidentes e síntese do
movimento entre forças que se atraem e se repelem ampliou minha escuta para as narrativas
das crianças, pois me alertou para o fato de que os elementos naturais e outros materiais podem
exercer papel de personagens lúdicos, como super-heróis(heroínas), princesas(príncipes),
mães(pais) e animais, ainda que sejam pouco figurados e disformes. A água se une à terra e
trava batalhas com ela, a transfigura. Sendo assim, as substâncias e os elementos são passíveis
de ações e características que suscitam e acolhem a imaginação e as criações infantis.
Um exemplo disso foi a brincadeira ocorrida durante a composição 1, quando Lara,
João, Adriano e Rafael mexeram com água, terra, frutos e galinhos, misturando-os todos em
uma grande bacia. A mistura durou todo o tempo do encontro. As crianças se revezaram no
transporte de água em potinhos, na coleta de elementos pelo quintal e no uso da colher para
mexer a massa.

Na semana seguinte, levei para a roda de conversa imagens dessa brincadeira e notei
que meninas e meninos, ao se referirem ao que estavam preparando na grade bacia, não
afirmaram que era uma poção, veneno, um bolo, por exemplo. Apenas se referiram ao tempo
de preparo, aos elementos que misturaram e a como a mistura ia se transfigurando. Não havia
100

um tema que costurava simbolicamente suas ações, como brincadeira de cozinha, de casinha,
de monstros, por exemplo. Não havia personagens, tampouco cenário, mas, ainda assim, havia
narrativas. As crianças narravam a história das transformações, das junções dos materiais, da
dedicação e gesto de mexer e transportar, das colaborações entre os pares e das surpresas dos
resultados. Ao contarem sobre suas ações, mostravam como estavam envolvidas dos pés à
cabeça com suas criações.

Peso

Durante a composição 1, um grupo escolheu a maior bacia que havia à disposição


(capacidade em torno de 10 litros) para misturar dentro dela elementos da natureza como terra,
pedras, frutos, galhos e água. A torneira ficava a uns três metros de distância e, para buscar
água, meninas e meninos usavam potinhos. Assim, a mistura aconteceu gradualmente, devagar
a bacia ia se enchendo.
Para agilizar o processo, Rafael teve a ideia de usar a bacia média como recipiente para
o transporte de água. No entanto, depois de enchê-la, encontrou dificuldade para deslocá-la,
pois, pelo peso, ele não conseguia erguê-la, apenas a empurrava e, a cada passo que dava,
acabava derramando um tantinho de água. José avistou Rafael e ofereceu-lhe ajuda.
Posicionando-se do lado ao do colega, agachou-se e segurou com as duas mãos na borda da
bacia. Dessa sorte, os dois conseguiram erguê-la. José puxava a bacia, andando de costas e
Rafael a empurrava andando de frente. Por vezes, a água balançava e transbordava um pouco.
Nesses momentos, os dois paravam, esperavam a água se aquietar, olhavam-se mutuamente e
retomavam a caminhada, cadenciando o andar, de um jeito que chacoalhasse o mínimo possível.
101

João apareceu para ajudar. Com um sorriso no rosto, posicionou-se ao lado dos meninos
e foi andando de lado, dizendo: “Vai! Vai! Pode ir!”. Seu movimento era ritmado: quando suas
pernas abriam, os braços levantavam, e as mãos indicavam o caminho, no momento em que as
pernas fechavam, os braços pediam ao lado do corpo. João parecia um maestro! O tempo de
descanso de seus braços estava sincronizado com o tempo de pausa que José e Rafael usavam
para esperar a água da bacia se aquietar. Os três seguiram dessa maneira até o ponto final, onde
se encontraram com meninas e meninos que se reuniam em torno da grande bacia repleta de
pedra, lama e galhos.
102

Aproximando-se desse grupo, Rafael e José derrubaram a água de sua bacia na maior,
e todas bateram palmas.

Na semana seguinte, levei para nossa roda de conversa fotografias impressas da cena
que acabo de descrever. Ao verem as imagens, algumas(uns) colegas fizeram referências à
grande bacia e ao que colocaram nela. Identicamente, exaltaram o tempo que se dedicaram à
mistura “quase o brincar inteiro!”. José explicou que ele foi ajudar porque a “lama deles”
precisava de mais água. Rafael concordou. João disse que foi ajudar, porque estava muito
difícil, e ele queria que a água chegasse logo e imitou seu próprio gesto, reproduzindo o que
viu na fotografia. Muitos riram e repetiram a movimentação, seguindo João.
Ao comentarem sobre a brincadeira, as crianças deixaram claro que o objetivo maior
era buscar um grande volume de água para adicionar à mistura. Notei que, nessa empreitada, o
peso da bacia repleta d’água era um obstáculo para seu transporte e acabou criando
oportunidades, fazendo do trajeto uma brincadeira, uma vivência de trabalho em equipe, de
investigação e de conquista.
Rafael e José precisaram conhecer, por meio da própria experiência, o comportamento
da água ao se movimentar, alinharam seus passos e desenvolveram um tipo de comunicação
que tornava o transporte mais eficaz. João entendeu essa linguagem e a realçou, fazendo gestos
e marcando o ritmo para os amigos.
O desejo de transportar a água era compartilhado pelos três meninos, mas foi o peso da
bacia que os convocou a unir as forças, e trabalhar em conjunto, pois uma só criança não era
capaz de realizar o transporte.
Segundo Bachelard (2008, p. 293), as imagens do peso podem evocar o gosto por
transpor fardos: “Desde que goste de viver a fundo as imagens do peso, compreende-se que se
possa efetivamente gostar de carregar fardos, levantar pesos, realizar Atlas. A criança já
103

reivindica a honra de carregá-la”. Ainda segundo o autor, o alívio para esses fardos
frequentemente se dá pelo trabalho em comum, pela “ajuda mútua”, mas cada uma(um) se
dispõe a ajudar, porque acredita na própria força: “Encontraremos nessa linha todas as
metáforas do alívio, de uma ajuda mútua que aconselha carregar em comum os fardos. Mas se
ajuda porque se é forte, porque se crê na própria força, porque se vive numa paisagem da força”
(2008, p. 293).
O peso da bacia repleta de água uniu José, Rafael e João em torno de uma tarefa em
comum, para a qual os três se dedicaram com afinco e demonstrando prazer. Ao relatarem essa
experiência, eles ressaltaram o tempo prolongado que lhes exigiu a empreitada e a dificuldade
encontrada, realçando seus esforços próprios. Pareciam ter vivido, por meio da brincadeira,
experiência de honra e de crença na própria força.
Em outras ocasiões, pude observar meninas e meninos com a intenção de transportar
algo e, ao perceberem que sozinhas(os) não davam conta, aceitaram ou buscaram a ajuda
das(os) colegas, tornando o trajeto uma parte importante da brincadeira.

A água e a lama figuravam entre os materiais mais transportados. No entanto, à medida


que o mês de junho avançava, e o clima ia ficando mais frio, em conversa com as(os)
professoras(es) da escola, decidimos não mais oferecer água como elemento de brincadeira.
104

A partir desse dia, as bacias deixaram de ser os recipientes mais procurados pelas
crianças, e os engradados ganharam maior destaque. Na composição 5, José inventou um jeito
de conduzi-los que prontamente foi assimilado e repetido pelas(os) colegas. Amarrou elásticos
nas extremidades e os puxou. Nesse primeiro dia, José afirmou que era um mercador e
perguntava para as(os) colegas se queriam comprar suas mercadorias.

Observando a brincadeira de José, Fábio e Marcelo tiveram a ideia de igualmente


amarrar elásticos no engradado, mas dessa vez para puxar a si mesmos. O primeiro a entrar foi
Fábio, e Marcelo encolheu todo seu corpo, puxou com força, mas quase não conseguiu movê-
lo. Marcelo pediu ajuda à sua grande amiga Fernanda. Juntos, ele e ela, conseguiram mover o
engradado do Fábio.
O trio festejou, quando o engradado se movimentou, e eles quiseram trocar de papéis.
Cada hora era a vez de uma criança de entrar e de puxar. Comemoravam quando conseguiam e
davam risadas quando, ao usar toda a força, nada acontecia. Os três também quiseram testar
individualmente suas forças, puxando sozinhos (as)os colegas, entre outras possibilidades.
Bachelard (2008, p. 282) indica que, diante da determinação de deslocar pesos, o corpo
todo se anima “dos calcanhares à nuca”. “Os pesos caem, mas nós queremos levantá-los; e
quando não podemos levantá-los, imaginamos que o levantamos. Os devaneios da vontade de
aprumo situam-se entre os mais dinamizantes; animam o corpo inteiro, dos calcanhares à nuca”.
105

Ainda durante a composição 5, Fábio entrou em um engradado e colocou o “cinto de


segurança”, afirmando ser um bebê que passearia de carro em sua cadeirinha. Luciana se
aproximou e disse que ela era a mãe, ajeitou o “cinto” do “filho” e fez força para puxá-lo.
No começo foi difícil, porque o engradado parava em qualquer obstáculo, como a grelha
do chão de escoamento da chuva. Mas, aos poucos, “mãe e filho” foram sincronizando os
movimentos, abrindo e fechando os braços para virar o engradado, fazendo curvas.
106

Luciana buscou diversos jeitos de puxar Fábio e o engradado, mas só se movimentou,


quando os gestos de ambos entraram em sincronia, como em uma dança. Destarte, a mãe puxou
o carrinho do bebê, conduzindo-o em curvas e passagens retas, ora ganhando velocidade, ora
indo mais devagar, conforme os obstáculos e a textura do chão.
Como na brincadeira de José e Rafael, que precisavam cadenciar seus passos, para
acompanhar o balanço da água na bacia, sem deixá-la transbordar, Fábio e Luciana tal e qual
encontraram uma harmonia entre seus corpos e movimentos. O peso a ser transportado foi
vencido, neste caso, não pela união das forças, mas pela coreografia, pelo uníssono.
Nas aulas de dança de Beth e Zélia, nós, dançarinas, buscávamos o uníssono. Não eram
movimentos planejados, mas que aconteciam e se conversavam pela abertura da escuta do
corpo. Nossos corpos se comunicavam sem palavras. Miller (2005, p. 118) lembra que, dentro
da abordagem Klauss Vianna, a escuta do corpo é fundamental e é, por meio dela, que o corpo
se adapta a diversas realidades.

Buscamos ampliar a capacidade de adaptação do corpo em diversas


realidades, ou melhor, na sua realidade hoje, flexibilizando- o e não
enrijecendo-o no que supostamente possa ser considerado o "melhor''.
Escutar o corpo...lsto ja causa movimento e uma alteração no corpo. 0 corpo
presente. Aqui e agora.

Os objetos usados por Fábio e Luciana no brincar de mamãe e filhinho potencializaram


os processos de investigação de movimento e posturas. Os dois queriam deslocar o carrinho, o
peso foi o adversário, e a superação do desafio foi alcançada, quando escutaram e pesquisaram
as possibilidades de seus corpos e também da(o) colega. Diferente das dançarinas, essa
comunicação não se deu em função do intuito de criar uma dança em conjunto, ainda assim,
havia ali um processo de criação, a invenção de uma brincadeira, cujos encaminhamentos e
definições se deram pela escuta das palavras e dos gestos de seus integrantes.
Além da união e da expressão da vontade de superação, o peso suscitou outra qualidade
da matéria, que é seu contraste: a leveza. Na composição 8, o ambiente havia sido montado
pelas(os) professoras(es) da escola, que haviam preparado várias cabanas diferentes. Uma delas
era constituída por um pano branco, pendurado acima de uma escada de concreto. Como a
escada era larga, e o pano não a cobria por inteiro, era possível subir no degrau mais alto e olhar
a cabana por cima do “teto”, ou mesmo repousar a mão no teto. Meninas e meninos
experimentaram subir e descer a escada, entrando na cabana, saindo, subindo e descendo a
escada. Até que uma delas jogou uma almofada no “teto”, que afundou. Para tirar a almofada
107

de lá, as crianças balançaram o pano/teto. A almofada voou. Em alguns minutos, a brincadeira


deixou de ser “cabaninha”. As(os)participantes jogaram mais almofadas e seguravam na ponta
do tecido e o movimentavam para cima e para baixo. Era um dia de sol e, olhando por baixo do
tecido, era possível acompanhar a sombra das almofadas que subiam e desciam.

Para Bachelard (2008, p. 271), “Levanta-se vôo contra a gravidade, tanto no mundo dos
sonhos como no mundo da realidade”. Vianna (2005, p. 78) igualmente ressalta a correlação
entre peso e elevação, frisando que um não existe sem a outra:

Temos de criar espaço para as alternâncias. Uma ideia de elevação não é


transmitida somente, por exemplo, pela elevação contínua dos braços. Essa
ideia pode conter um jogo de opostos – posso conduzir meus braços (assim
como as pernas, o tronco) também para baixo, sem deixar de transmitir a ideia
108

de elevação (porque a queda também faz parte da elevação, uma não existe
sem a outra).

A abordagem Klauss Vianna, muitas vezes, refere-se à leveza que surge da experiência
de manejar o peso como uma leveza do movimento. Neste caso, o uso do peso leva ao
movimento, conquistando vivacidade na oposição à gravidade: “Portanto, o direcionamento do
peso do corpo pelo espaço possibilita a leveza do movimento. É a partir do uso do peso do meu
corpo, e não do abandono deste, que me oponho a gravidade” (MILLER, 2005, p. 66)
O voo é a expressão emblemática da oposição à gravidade. No entanto, houve outras
invenções com peso e movimento, como por exemplo, na brincadeira que narro a seguir.
Durante a composição 4, Rafael explorou a possibilidade de se movimentar por meio
do uso do peso do próprio corpo, associado a seus efeitos em uma pilha de pneus. No fim de
seu processo investigativo, ele abriu os braços e “saiu voando”. Segue a sequência da
brincadeira.
Encontrou uma pilha de pneus unidos por uma corda e decidiu empilhá-los, construindo
um tubo vertical. Em seguida, esticou-se para conseguir entrar no tubo. Percebendo que o
equilíbrio entre os pneus era frágil e que, conforme seu movimento, a pilha poderia tombar para
um dos lados, inclinou o corpo para forçar a queda. Ele caiu junto com os pneus, tentando
encostar o pé no chão e ficar ereto rapidamente. Os pneus saltaram e deslizaram, fazendo
barulho.
Rafael deu risada, afastou-se para se proteger, contemplou os pneus espalhados pelo
chão e, em pouco tempo, já estava de volta pronto para repetir a experiência.
109

Da segunda vez, foi diferente. Os movimentos de Rafael eram mais lentos, e seu
semblante estava mais sereno. Ele estava no controle da situação e dosava força e inclinação,
decidindo o momento e a velocidade da queda. Depois de entrar no tubo, antes de cair, primeiro
fez uma pausa e disse a um colega que estava de passagem: “Olha! Eu não caio!”. Em seguida,
foi controladamente inclinando corpo, até encostar as mãos no chão.

Por fim, Rafael abriu os braços e “voou” pelo espaço.

Durante o voo, observou as(os) colegas e, junto com José, encontrou um novo jeito de
manejar o peso e gerar movimento, dessa vez atingindo maior velocidade. Elas(eles)
experimentaram empurrar os engradados em vez de puxá-los. No começo, encontraram
dificuldade para empurrá-los na velocidade que queriam. O engradado parava a cada
irregularidade do chão. Até que descobriram a rampa e perceberam, que, ao ser empurrado na
110

descida, o engradado ia acelerando, ganhando bastante velocidade. Desta vez, o peso


não estava sendo usado como um obstáculo a ser superado e, sim, como um fator facilitador do
movimento.

Na rampa, os meninos deslocavam o centro do corpo, apoiando o peso no engradado.


Consequentemente, o peso do próprio corpo, somado ao peso do engradado, as “puxavam” para
baixo, acelerando o movimento.

Compasso
A composição 8 foi organizada pelas(os) professoras(es) das três turmas da educação
infantil. Um dos materiais disponibilizado por elas(es) foi um varal de roupas e fantasias.
Juliana escolheu um vestido. No decorrer da brincadeira, ela girou com seu vestido e observou
que ele fazia uma sombra no chão e que a sombra rodava e se balançava, de acordo com o
movimento que realizava. Além disso, as partes do vestido expostas ao sol brilhavam, de
maneira que, conforme Juliana rodopiava, se criava um jogo de brilho e sombras, dando maior
visibilidade e amplitude às curvas do tecido. Juliana demostrou alegria e encantamento, ao
rodopiar e observar seu vestido flutuar. Repetiu essa experiência inúmeras vezes.
111

Juliana cerrava os olhos, ao girar sua saia. Segundo Pallasmaa (2009, p 43):
o olho é o órgão da distância e da separação, enquanto o tato é o sentido da
proximidade, intimidade e afeição. O olho analisa, controla e investiga, ao
passo que o toque aproxima e acaricia. Durante experiências emocionais
muito intensas, tendemos a barrar o sentido distanciador da visão; fechamos
os olhos enquanto dormimos, ouvimos música ou acariciamos nossos amados

Fernanda, observando a colega, solicitou: “Agora é minha vez!” e, posicionando-se no


mesmo lugar, experimentou girar sua própria saia. As duas riam e diziam uma para a outra:
“Olha! Olha a minha!”. Depois paravam, esperavam a saia se recolher para, em seguida, girar
novamente. Foi desse jeito que vi Juliana e Fernanda dançando naquele dia. Elas giravam em
torno de si mesmas, e as saias giravam em conjunto, abrindo, expandindo-se e espalhando-se
no ar. As feições das meninas não demostravam esforço. Pelo contrário, esboçavam um leve
sorriso de encantamento.
112

Quando pequena, eu igualmente ficava encantada ao vestir e girar saias rodadas.


Lembro-me também de situações em que girei sem saia, mas abri os braços que, soltos,
flutuavam, descendo e subindo, com a onda de um tecido a girar. Bastavam simples giros em
tornos de mim mesma, e os braços saíam voando, quase sozinhos. Eu nem precisava comandar
que se abrissem e se movimentassem. Nessas brincadeiras, o mundo conjuntamente rodava. Eu
girava, e o mundo girava junto. Isso trazia uma sensação de potência, de onipotência. As
paisagens se intercambiavam, e a única referência de constância era meu próprio corpo, ou
melhor, meus braços, que, se tornando ponto fixo da minha visão, pareciam enormes, mal dava
para ver a ponta dos dedos.
Segundo Vianna (2005, p. 81), a pirueta consiste no retorno da energia que foi jogada
em direção ao mundo por aquela(e) que se movimenta: “A energia brinca no meu corpo e
quando faço um movimento que joga essa energia para fora há um retorno que vem em forma
de espiral: é a pirueta, o giro, tão presentes nas coreografias clássicas”.
Na semana seguinte, levei as fotos impressas dessa cena e, ao se ver nas imagens, Juliana
afirmou: “Eu estava muito linda aqui”. Em seguida, ressaltou que sua saia era enorme.
Testemunhando a dança de Juliana, a partilha de encantamento com Fernanda, ouvindo seus
comentários e lembrando o meu sentimento de grandeza nos rodopios da infância, entendi que
a expansão da saia pôde ser vivida como expansão da própria criança. A saia era como uma
continuidade, uma ampliação da beleza e da potência da criança. A saia girava, e entre a luz e
a sombra, abria-se, flutuava, ficava enorme, espalhava-se. Depois se recolhia e voltava ao eixo.
As meninas que giravam também se expandiam, espalhavam-se, sem perderem seus eixos. A
qualquer momento, elas poderiam parar e se recolher. Era como um compasso: a haste central
seria o centro do tecido que recobria o tronco, enquanto a outra haste seria moldada pelas bordas
da saia.
113

O vestido rodado, aberto embaixo e justo na cintura, junto do corpo das meninas, girava
em torno de si e desenhava, de modo ampliado. Neste caso, o desenho não se fazia no papel e,
sim, no ar. Com o compasso, é possível desenhar um grande círculo, a partir de curto
movimento de giro, pressionando a perna central. O mesmo se dava com as crianças e os
vestidos ao redor. Na extensão do tecido das saias que faziam curvas, brilhavam, ora se
mostravam, ora se escondiam, as meninas tinham a oportunidade de ver em cores e brilho os
próprios movimentos. Experiência de expansão a partir do centro.

Rodrigo e Adriano experimentaram um movimento parecido, ao galoparem nos cavalos


de pau. Os dois brincavam de fazer parte de uma família. Adriano era o pai e afirmou ir ao
mercado, mas, em vez disso, foi galopar com o amigo. Quando, posteriormente, viu as imagens
da brincadeira, Adriano afirmou: “A Luisa não queria que eu fosse no mercado porque sabia
que eu ia fugir para galopar”. E Rodrigo ressaltou: “Foi da hora, não foi Adriano?”.
Os dois galoparam por bastante tempo e, enquanto se movimentavam, comentavam o
que seus cavalos eram capazes de fazer. Interessante observar que seus cavalos corriam sempre
em círculos, lembrando o mesmo movimento do compasso. Eles percorriam toda a quadra, que
estava vazia e pronta para ser explorada, mas sempre às “voltinhas”.
Para Vianna, (2005, p. 79):

O espaço é uma coisa limitada e, paradoxalmente, sem limites. Como tudo na vida.
Ao dançar, não podemos perder de vista esta noção: somos o centro do espaço que
nos cerca e nele existimos como indivíduos, como pessoas, como seres humanos,
estabelecendo nossa relação com o mundo.
114

Na brincadeira de Rodrigo e Adriano, o cavalo de pau funcionava como a aba aberta da


saia ou a haste do compasso, desenhando o chão, enquanto os dois comandavam os
movimentos, lembrando similarmente um pião que percorre o espaço em várias direções,
sempre girando em torno de si mesmo.
Assim, o chão é usado como ponto de apoio. Nos giros do vestido e do cavalinho de
pau, há um centro, como uma linha imaginária que segue da cabeça aos pés, um eixo que tem
o chão como elemento que sofre a pressão, e a força que move a pirueta. Miller (2005, p. 78)
ressalta a importância do chão como apoio e suporte do movimento: “Os apoios são usados
ativamente, ou seja: a partir da utilização da força da gravidade, eu empurro o chão e força-
reação me projeta em sentido oposto”.
115

Ainda, segundo Miller (2005, p.67, grifos do autor), a percepção de um centro de força,
de gravidade, de sustentação, propicia uma experimentação lúdica.

Adquire-se ao final deste processo a consciência da existência de um “centro


de forças”, um “centro de gravidade”, ou seja, um centro de onde parte toda a
força de sustentação do eixo-global: a centralização do corpo. Essas
referências nos levam ao passo seguinte e fecha essa primeira etapa: o
Processo Lúdico.

Arthur seguiu por um processo lúdico que consistia em ganhar e perder seu eixo e centro
gravitacional, conforme usava simultaneamente pontos diferentes de apoio.
Fazer do corpo o centro do movimento que se expande foi uma brincadeira que pude
observar em diversas situações e modalidades diferentes durante o estudo de campo. No caso
do cavalo e da saia, a extensão do cabo de madeira e do tecido foi usada como contraposição
ao corpo centrado. Arthur inventou uma brincadeira parecida, mas usou o tecido como centro
e não como extensão. Neste dia, ao observá-lo brincar, demorei a entender o que ele estava
fazendo. Notava que ele girava, cambaleava e quase caía, mas somente pela repetição de seus
movimentos é que entendi o papel do tecido no processo de investigação e criação. Percebi que,
por mais que Arthur se movimentasse, ele fazia de um jeito que o tecido se posicionava sempre
na sua cabeça. Entendi então que ele estava usando o tecido como centro, como ponto de apoio,
e seu giro e movimento expansivo aconteciam a partir desse centro.
116
117
118

Miller (2005, p. 78) relaciona o uso do chão como apoio e expande essa forma de contato
igualmente para o uso dos objetos:

A princípio, como foco principal, utilizamos a sensibilização do apoio


oferecido pelo chão, percebendo as partes do corpo que encostam no chão e
as que não encostam. Qualquer contato que o corpo estabelece com o chão
deve ser considerado como suporte, suporte este que provem do solo, ou,
como transferência do corpo, acionando o movimento a partir da pressão dos
apoios no chão, ao espreguiçar, sentar, deitar, ajoelhar, levantar etc.
O chão tem uma função primordial para o reconhecimento dos pontos de
apoio, tanto na pausa, quanto em movimento, na passagem de uma posição
para outra. A relação com o solo vai se ampliando para a relação com objetos
que posso utilizar e, ainda, em relação ao próprio corpo e ao espaço que o
circunda.
119

Antonio experimentou brincar com esses apoios. Na brincadeira do giro no tecido,


fincava os pés no chão para rodar, mas mantinha um segundo ponto de referência: o cocuruto
no contato com o tecido. Logo, fluidez e balanço emanavam de seu movimento.
Neste caso, o menino criou uma brincadeira que borrava as fronteiras entre apoio e
desequilíbrio, conexão e desconexão, ordem e desordem, estabelecendo, assim, um equilíbrio
dinâmico. Como o tecido era mole, seu ponto de apoio variava e flutuava, seu centro se
deslocava, o que trazia uma dose a mais de desafio.
A brincadeira com tecido de Antonio foi diferente do passeio a cavalo de Rodrigo e
Adriano, bem como diversa dos giros de Juliana e Fernanda. No entanto, sob a perspectiva da
imagem do compasso, essas brincadeiras conservam pontos em comum.
Durante os percursos investigativos da presente dissertação, consolidei o entendimento
de que diversidade e unicidade podem coexistir. De tal sorte que não persegui uma correlação
direta e linear entre os elementos do ambiente onde as crianças brincavam e os tipos de
brincadeiras passíveis de serem realizadas a partir deles. Busquei, em vez disso, narrar como,
no contato íntimo com a matéria, aspectos desses elementos foram ludicamente usados por
meninas e meninos, favorecendo experimentações e criações de imagens de si e do mundo. Nas
próximas páginas em “Considerações finais” discorro um pouco mais sobre essas criações.
120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pego emprestada a expressão “composição” (mesma que usei ao me referir


simultaneamente aos encontros com as crianças e ambientes montados para as brincadeiras) e
afirmo que o presente texto de pesquisa também teve esse carácter de composição – entre escrita
e imagem, entre registros de diversas origens, entre olhares e vozes – como um caleidoscópio,
de maneira que se fosse possível tirar todas as palavras e cenas do lugar, novos sentidos se
formariam. Ou seja, os quatros eixos (concavidade, massa, peso e compasso) são apenas
algumas das possibilidades de caminhos investigativos que poderiam ser trilhados. Acredito,
no entanto, que há nesse caleidoscópio, um princípio que não se modificaria, ainda que o texto
se fizesse de maneira completamente diferente: o princípio de decantar sentidos. Ressalto que
os “achados” dessa pesquisa não se deram de imediato, mas sim, foram se condensando aos
poucos.
Compreendo que, por serem diferente da lógica formal e linear do discurso adulto, as
brincadeiras das crianças podem parecer impossíveis de serem compartilhadas, organizadas,
sequenciadas e de apresentar continuidade, em outras palavras, um cenário de brincadeiras
muitas vezes se mostra aos adultos como uma cena caótica, principalmente quando as crianças
usam pouco o discurso verbal. Por isso, para aprender com elas, pensar com e produzir sentidos
com, penso considero que é necessário tempo e quietude, como aqueles globos de neve, que
quando a gente chacoalha demora para que as partículas desçam e se acomodem.
Durante o processo de investigação, reuni minhas lembranças, notações, registros das
falas de meninas e meninos, fotografias e gravações e fui, paulatinamente, imaginando,
tateando, farejando e visualizando as narrativas. Nessa trajetória, encontrei pontos em comum
entre as experimentações das crianças, associei suas falas aos gestos, criei e identifiquei lógicas
entre as sequências de imagens, de tal sorte que pude organizar parte do vivido nos quatro temas
(concavidade, massa, peso e compasso) que, a me ver, condensam sentidos, coerentes às
brincadeiras das crianças. No entanto, ainda que relevantes ao processo de investigação, essa
organização e seleção não têm a pretensão de esgotar a totalidade de possibilidades
interpretativas e não representam sentidos únicos ou principais do vivido. Além disso, é
marcada, como referi anteriormente, por um olhar singular, pela minha subjetividade e retina
“cheia de sol”, ou seja, está dentro de referências próprias que entram em diálogo com as tantas
121

imagens e experiências vividas com meninas e meninos. Há, portanto, uma infinidade de outras
possibilidades de condensação de sentidos, que poderiam iluminar múltiplas dimensões das
produções das crianças no contato íntimo com a matéria, os objetos e o ambiente. Dito com
outras palavras, faço a ressalva de que a experiência foi, e é sempre, maior do que a cabe narrar
e interpretar dentro de um projeto de pesquisa. Ainda assim, a seleção realizada é valorosa, pois
dá visibilidade ao ambiente educador e sua capacidade de potencializar as criações das crianças,
ancoradas na ludicidade e na vivência corporal.
Retomando a pergunta inicial dessa dissertação – como o ambiente afeta e qualifica as
brincadeiras? –, digo que elementos do universo material, como textura, formato, peso e
tamanho, potencializam o brincar, nas suas dimensões poética e criativa, apoiando meninas e
meninos na formulação de compreensões sobre si e sobre o mundo nas interações umas com as
outras, principalmente quanto aos processos de criação e investigação que não se encontram
restritos ao universo verbal.
A concavidade, por exemplo, foi uma forma encontrada no ambiente oferecido, que
apoiou as crianças em suas pesquisas e formulações a respeito de dimensões da vida humana
relacionadas a temas como abrigo, agrupamento com os pares, pertencimento, entre outras. Já
o peso, favoreceu criações que abordaram a força humana, empreitada coletiva e a superação
ou canalização da gravidade pelo voo e pela aceleração do próprio movimento. Por meio da
massa, as crianças puderam investigar a dissolução e a modelagem das formas, mergulhar no
disforme, dissolver e, simultaneamente, aglutinar diversas matérias. Por fim, o compasso,
constituído pela dialética entre eixo e extensão, propiciou brincadeiras com a centralidade, a
expansão de si, levando à delimitação e à ampliação de limites.
Nessas situações, os objetos não são representações dos temas listados, como abrigo e
força, por exemplo, mas oferecem possibilidades para que as crianças criem situações lúdicas,
para se sentirem abrigadas e fortes, testando igualmente seus opostos como fragilidade e
desamparo. Essas sequências e investigações são repletas de movimento, de ações e
transformações, não resultando, muitas vezes, em uma cena com sentidos claramente
identificáveis, até porque não há garantia de sentidos, como defende Bakhtin (2011a). No
entanto, analisando a narrativa corporal, o uso dos objetos e seus efeitos, a interação entre os
pares e sua movimentação no espaço viabilizaram compreender a poética dessas produções,
que expressam dimensões do existir humano, vividas por meio da brincadeira.
122

Além dos objetos, outros elementos da experiência contribuíram para que meninas e
meninos se mostrassem provocadas(os) e convidadas(os) a brincar no primeiro dia da
montagem e nos outros que se seguiram.
Começo citando o espaço e o tempo. Já no primeiro encontro, asseguramos, a equipe
pedagógica e eu, que as crianças poderiam contar com um espaço e um tempo para brincar, que
não sofreriam influências e interrupções externas e que avisaríamos quando o tempo estivesse
por findar-se. A organização, a segurança e a higiene dos materiais e ambientes identicamente
foram essenciais. Ainda que tenhamos oferecido terra e outros elementos da natureza, afirmo
que se tratava de materiais limpos, no sentido de que não havia nada tóxico que pudesse colocar
meninas e meninos em risco e, além disso, no início de cada composição, encontravam-se
separados. Ou seja, as bacias não estavam tomadas com terra, os tecidos eram lavados
regularmente e não conservávamos nada que estivesse quebrado.
Por fim, cito a presença dos adultos, professoras e professores, que, ao mediarem
impasses entre as crianças, acolhê-las quando se machucavam e as auxiliarem ou as
supervisionarem em práticas como uso do banheiro, troca de roupas, pôr e tirar sapatos, garantiu
que pudessem atuar com segurança e conforto suficientes para a manutenção de seus interesse
e dedicação nas brincadeiras.
Espero que este trabalho possa inspirar pedagogas(os), professoras(es) e educadoras(es)
em geral na montagem e no planejamento das situações de brincar na escola e em outros
contextos. A vida é sempre persistente e resistente. A imagem de uma plantinha crescendo entre
as rachaduras de uma calçada de cimento fortalece esse entendimento. Da mesma maneira que
a natureza vai encontrando seus meios para crescer e se reproduzir, também as crianças
conseguem brincar em diferentes contextos. Há estudos sobre brincadeiras em cenários de
guerra (SARMENTO, 2002). Fui testemunha de brincadeiras protagonizadas por alunas(os)
dentro de salas de aula, repletas de mesas e cadeiras, sem espaço para sentar no chão, nem
mesmo para interagir em dupla com as(os) colegas, e apenas com brinquedos de plástico. Ainda
assim, o brincar acontecia.
Um dos motivos para se estudar e narrar o brincar é justamente sua alta capacidade de
subversão do estabelecido. Mesmo quando a sociedade segue desfavorecendo as situações em
que ele acontece, as crianças dão seu jeito, encontram brechas, subvertem, transformam o
ambiente e transformam-se. Por esse motivo, meu interesse pelas especificidades do brincar e
suas riquezas não se deve à crença de que as crianças dependam determinantemente dos adultos
para garantir esse direito, mas sim, à sua essencialidade para a vida humana e os sentidos que
123

pode alcançar e produzir a partir da experiência corporal e no contato com a maleabilidade e a


pluralidade do mundo material.
Nesta dissertação, procurei dar maior visibilidade para as dimensões poéticas das
brincadeiras investigativas das crianças pequenas, que podem ficar opacas aos olhos adultos,
uma vez que não são tecidas essencialmente por palavras. Para além da configuração dos
ambientes, espero ter contribuído igualmente para qualificar a aproximação em relação às
brincadeiras e para despertar uma maior compreensão da produção cultural infantil.
124

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Documentos audiovisuais

HISTÓRIAS de todo dia. Produção: Instituto casa Redonda. Acervo audiovisual. 2000.
Disponível em https://vimeo.com/escolacasaredonda. Acesso em: 6 de abril de 2020.

TARJA BRANCA: a revolução que faltava. Direção de Cacau Rhoden. Produção: Cacau
Rhoden, Estela Renner, Luana Lobo e Marcos Nisti. Realização: Maria Farinha Filmes. Gênero:
Documentário. País de origem: Brasil. 2014. Duração: 80 minutos.

TERRITÓRIO do brincar. Direção: Renata Mirelles e David Reeks. Produção: Estela Renner,
Luana Lobo e Marcos Nisti. Realização: Maria Farinha Filmes e Ludus Vídeos. Gênero:
Documentário. País de origem: Brasil. 2015. Duração 90 min.

Documentos sonoros

ANTUNES, Arnaldo.Cultura. In: PRIMAS, Coro das; PERES, Sandra TATIT, Paulo. Canções
Curiosas, Palavra Cantada, 1998.

CAPIBA, Lourenço. Minha Ciranda. In: ITAMARACÁ, Lia de. Eu sou Lia, 2000.

VELOSO, Caetano. If you hold a stone. In: VELOSO, Caetano, Caetano Veloso, 1971
132

Apêndice 1

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Ambiente educador maleável e plural: convites à corporalidade e ao brincar


Profa. Julia Marianno Marques Rezende (pesquisadora responsável)
Profa. Dra. Eliana Ayoub (Pesquisadora orientadora)
Número de CAAE: 06820018.4.0000.8142

Prezados senhores(as) pais e/ou responsáveis dos alunos,


Seu filho(a) (ou outra pessoa por quem você é responsável) está sendo convidado(a) a participar como
voluntário de uma pesquisa. Este documento, chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
visa assegurar seus direitos como participante e é elaborado em duas vias, uma que deverá ficar com
você e outra com o pesquisador.
Por favor, leia com atenção e calma, aproveitando para esclarecer suas dúvidas. Se houver
perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, você poderá esclarecê-las com o pesquisador. Se preferir,
pode levar este Termo para casa e consultar seus familiares ou outras pessoas antes de decidir participar.
Não haverá nenhum tipo de penalização ou prejuízo se você não aceitar participar ou retirar sua
autorização em qualquer momento.

Justificativa e objetivo:
Meu nome é Julia Rezende e sou aluna do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Educação da Unicamp. Estou realizando, sob a orientação da Profª Drª Eliana Ayoub,
uma pesquisa que busca identificar o papel do ambiente educador no desenvolvimento das linguagens
corporal e lúdica. Esse estudo se justifica pela necessidade de ampliação do conhecimento a respeito da
cultura infantil, a fim de que se possam criar contextos cada vez mais favorecedores ao seu
fortalecimento e desenvolvimento.

Procedimentos:
Participando do estudo, seu filho(a) (ou outra pessoa por quem você é responsável) está sendo
convidado a: frequentar as aulas regulares da escola em que estuda, Ateliescola Acaia, sendo
observado(a) por mim, pesquisadora responsável, nas situações especificamente relacionadas ao brincar.
Os focos de observação serão as ações interativas entre as crianças, a maneira como elas usam os espaços
e as narrativas que elaboram durante as brincadeiras. Os registros e anotações serão realizados por mim,
pesquisadora responsável, por meio de textos e imagens (fotos e vídeos).
Os dados desta pesquisa serão armazenados por um prazo de 5 anos após o final da pesquisa, de
acordo com a Res. CNS 510/16. Após esse período, serão descartados. Uma parte desse material será
publicada na dissertação de mestrado.

Desconfortos e riscos:
O presente trabalho não representará riscos físicos ou psicológicos ou desconfortos previsíveis
aos participantes. O método utilizado nessa pesquisa será a observação participante. Esse método se
caracteriza como não invasivo, uma vez que os sujeitos envolvidos na pesquisa serão apenas observados
durante as situações regulares de brincadeiras, já previstas na rotina pedagógica da instituição.

Benefícios:
Neste estudo, não há previsão de benefícios diretos aos participantes. Os benefícios indiretos
obtidos serão de ordem pedagógico científica, podendo contribuir com ações futuras em torno da
temática.
133

Acompanhamento e assistência:
A qualquer momento, antes, durante ou até o término da pesquisa, os participantes poderão
entrar em contato com os pesquisadores para esclarecimentos e assistência sobre qualquer aspecto da
pesquisa em danos decorrentes da pesquisa.

Sigilo e privacidade:
Você tem a garantia de que nenhuma informação coletada durante a pesquisa será dada a outras
pessoas que não façam parte da equipe de pesquisadores. Esclarecemos também que todas as imagens
serão utilizadas exclusivamente para fins de ordem pedagógico científica. Na divulgação dos
resultados desse estudo, o nome de seu filho (ou de qualquer outra pessoa por quem você é responsável)
não será citado.

Ressarcimento e Indenização:
A pesquisa não prevê ônus ao participantes, como deslocamentos ou alteração de rotina dos
sujeitos, não havendo, portanto, necessidade ressarcimento. Esclarecemos, no entanto, que você tem a
garantia ao direito a indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa, quando
comprovados nos termos da legislação vigente.

Contato:
Em caso de dúvidas sobre a pesquisa, você poderá entrar em contato com as pesquisadoras.

Prof. Julia Marianno Marques Rezende (Pesquisadora Responsável)


Mestranda em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp
Telefone: (11) 983729449
E-mail: juliamarquesrezende@gmail.com
Faculdade de Educação da Unicamp
LABORARTE
Av. Bertrand Russell, 801
Cidade Universitária “Zeferino Vaz”
Campinas - SP - Brasil
CEP 13083-865
Profa. Dra. Eliana Ayoub (Pesquisadora Orientadora)
Professora da Faculdade de Educação da Unicamp
Telefone: (19) 3521-5578
E-mail: ayoub@unicamp.com
Faculdade de Educação da Unicamp
LABORARTE
Av. Bertrand Russell, 801
Cidade Universitária “Zeferino Vaz”
Campinas - SP - Brasil
CEP 13083-865

Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação e sobre questões éticas do estudo, você
poderá entrar em contato com a secretaria do Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e
Sociais (CEP-CHS) da UNICAMP das 08h30 às 11h30 e das 13h00 as 17h00 na Rua Bertrand Russell,
801, Bloco C, 2º piso, sala 05, CEP 13083-865, Campinas – SP; telefone (19) 3521-8936 ou (19) 3521-
7187; e-mail: cep-chs@reitoria.unicamp.br.

O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP):


O papel do CEP é avaliar e acompanhar os aspectos éticos de todas as pesquisas envolvendo seres
humanos. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), tem por objetivo desenvolver a
regulamentação sobre proteção dos seres humanos envolvidos nas pesquisas. Desempenha um papel
134

coordenador da rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) das instituições, além de assumir a função
de órgão consultor na área de ética em pesquisas

Consentimento livre e esclarecido:


Após ter recebido esclarecimentos sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos,
benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, aceito participar:

Nome do(a) participante: ________________________________________________________

_______________________________________________________ Data: ____/_____/______.


(Assinatura do participante ou nome e assinatura do seu RESPONSÁVEL LEGAL)

Responsabilidade da Pesquisadora:
Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 510/2016 CNS/MS e complementares na
elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Asseguro,
também, ter explicado e fornecido uma via deste documento ao participante. Informo que o estudo foi
aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado. Comprometo-me a utilizar o material e os
dados obtidos nesta pesquisa exclusivamente para as finalidades previstas neste documento ou conforme
o consentimento dado pelo participante.

Data: ____/_____/______

________________________________________________
(Assinatura do pesquisador)
135

Apêndice 2

TERMO DE AUTORIZAÇÃO DO ATELIESCOLA ACAIA PARA A REALIZAÇÃO DA


PESQUISA
Título da pesquisa: Ambiente educador maleável e plural: convites à corporalidade e ao brincar
Pesquisadora responsável: Julia Marianno Marques Rezende
Pesquisadora orientadora: Profa. Dra. Eliana Ayoub
Número de CAAE: 06820018.4.0000.8142
Prezado(a) Diretor (a),
Nós, Julia Marianno Marques Rezende (mestranda) e Profa. Dra. Eliana Ayoub, professora
orientadora da Faculdade de Educação da Unicamp, solicitamos a sua autorização para a realização da
pesquisa de mestrado intitulada “Ambiente educador maleável e plural: convites à corporalidade e
ao brincar” no Ateliescola Acaia. Essa investigação tem como objetivo identificar o papel do ambiente
educador no desenvolvimento das linguagens corporal e lúdica. Esse estudo se justifica pela necessidade
de ampliação do conhecimento a respeito da cultura infantil, a fim de que se possam criar contextos cada
vez mais favorecedores ao seu fortalecimento e desenvolvimento.
Para a realização dessa pesquisa, pretende-se realizar um estudo de campo no primeiro semestre
de 2019, com duração de cinco meses. Nossa intenção é observar as brincadeiras protagonizadas por
crianças de 3 a 5 anos, sob a responsabilidade das educadoras do Ateliescola Acaia. O método utilizado
nessa pesquisa será a observação participante. Esse método caracteriza-se como não invasivo, uma vez
que os sujeitos envolvidos na pesquisa serão apenas observados durante as situações regulares de brincar
livre, já previstas na rotina pedagógica da instituição. As ações interativas entre as crianças, a maneira
como elas usam os espaços e as narrativas que elas elaboram durante o brincar serão registradas pela
pesquisadora por meio de texto e imagens (fotos e vídeos), de forma a explicitar possíveis relações entre
ambiente, gesto e imaginário.
Comprometemo-nos a utilizar e divulgar os resultados da pesquisa exclusivamente para fins de
ordem pedagógico-científica mediante as devidas autorizações dos pais ou responsáveis pelos alunos e
das educadoras envolvidas nesse estudo, por meio de Termo de Compromisso Livre e Esclarecido.
Destacamos que o Ateliescola Acaia tem total liberdade de retirar sua participação a qualquer
momento da pesquisa, se isto for de seu interesse, e que não haverá ônus de nenhuma natureza para a
instituição. As pesquisadoras ficarão à disposição para esclarecimento de dúvidas sobre o estudo durante
e após o preenchimento deste instrumento.
Seguem abaixo informações do Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp para o recebimento
de denúncias e/ou reclamações referentes aos aspectos éticos da pesquisa.

O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP):


O papel do CEP é avaliar e acompanhar os aspectos éticos de todas as pesquisas envolvendo
seres humanos. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) tem por objetivo desenvolver a
regulamentação sobre proteção dos seres humanos envolvidos nas pesquisas. Desempenha um papel
coordenador da rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) das instituições, além de assumir a função
de órgão consultor na área de ética em pesquisas. Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua
participação e sobre questões éticas do estudo, o(a) Sr.(a) poderá entrar em contato com a secretaria do
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unicamp das 8:30 às 11:30 e das 13:00 às 17:00, no seguinte
endereço: Rua Tessália Vieira de Camargo, 126. CEP: 13083-887. Campinas/SP.Telefone: (19) 3521-
8936 ou (19) 3521-7187. E-mail: cep@fcm.unicamp.br.

Contatos da Equipe de Pesquisadoras:


Prof. Julia Marianno Marques Rezende (Pesquisadora Responsável)
Mestranda em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp
136

Telefone: (11) 983729449


E-mail: juliamarquesrezende@gmail.com
Profa. Dra. Eliana Ayoub (Pesquisadora Orientadora)
Professora da Faculdade de Educação da Unicamp
Telefone: (19) 3521-5578
E-mail: ayoub@unicamp.com

Consentimento livre e esclarecido:


A direção do Ateliescola Acaia declara estar ciente do real intuito da pesquisa e tem o direito de ter em
mãos uma cópia do projeto original e cópia do termo de autorização assinado por ambas as partes.
Portanto, aceita a permanência da pesquisadora durante o tempo necessário para a realização da pesquisa
de campo.

Eu,___________________________________________________________,
RG__________________, diretor(a) do Ateliescola Acaia, autorizo a realização da pesquisa:
“Ambiente educador maleável e plural: convites à corporalidade e ao brincar”nesta instituição sob
minha direção.
Data:____/____/______

____________________________________________
Assinatura do(a) diretor(a)
137

Apêndice 3

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


PARA EDUCADORAS

Título da pesquisa: Ambiente educador maleável e plural: convites à corporalidade e ao brincar

Pesquisadora responsável: Profa.Julia Marianno Marques Rezende


Pesquisadora orientadora: Profa. Dra. Eliana Ayoub
Número de CAAE: 06820018.4.0000.8142

Prezados(as) senhores(as),
Você está sendo convidado(a) a participar do projeto de pesquisa acima citado. Este documento,
chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visa a assegurar seus direitos como participante
e é elaborado em duas vias, uma que deverá ficar com o Sr./Sra. e outra com a pesquisadora.
Por favor, leia com atenção e calma, aproveitando para esclarecer suas dúvidas. Se houver
perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, o Sr./Sra. poderá esclarecê-las com a pesquisadora. Se
preferir, pode levar para casa e consultar seus familiares ou outras pessoas antes de decidir participar.
Se o Sr./Sra. não quiser participar ou se, a qualquer momento, quiser retirar sua autorização, não haverá
nenhum tipo de penalização ou prejuízo.

Apresentação da pesquisa e Procedimentos:


Meu nome é Julia Rezende e sou aluna do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Educação da Unicamp. Estou realizando, sob a orientação da Profª Drª Eliana Ayoub,
uma pesquisa que busca identificar o papel do ambiente educador no desenvolvimento das linguagens
corporal e lúdica. Esse estudo se justifica pela necessidade de ampliação do conhecimento a respeito da
cultura infantil, a fim de que se possam criar contextos cada vez mais favorecedores ao seu
fortalecimento e desenvolvimento.
Essa pesquisa prevê uma etapa de estudo de campo no primeiro semestre de 2019, com duração
de cinco meses, a ser realizada no Ateliescola Acaia. Nossa intenção é observar as situações de
brincadeiras protagonizadas por crianças de 3 a 5 anos, sob a responsabilidade das educadoras da
referida instituição. As ações interativas entre as crianças, a maneira como elas usam os espaços e as
narrativas que elas elaboram durante o brincar serão registradas pela própria pesquisadora responsável,
por meio de textos e imagens (fotos e vídeos), de forma a explicitar possíveis relações entre ambiente,
gesto e imaginário.
Desconfortos e riscos:
O presente trabalho não representará riscos físicos ou psicológicos ou desconfortos previsíveis
aos participantes. O método utilizado nessa pesquisa será a observação participante. Esse método
caracteriza-se como não invasivo, uma vez que os sujeitos envolvidos na pesquisa serão apenas
observados durante as situações regulares de brincadeiras, já previstas na rotina pedagógica da
instituição.

Benefícios:
Este estudo não trará benefícios econômicos diretos aos participantes envolvidos e os benefícios
indiretos obtidos serão de ordem pedagógico científica, podendo contribuir com ações futuras em torno
da temática.

Acompanhamento e assistência:
As pesquisadoras ficarão à disposição para esclarecimento de dúvidas sobre o estudo durante e
após o preenchimento deste instrumento

Sigilo e privacidade:
138

O Sr./Sra. tem a garantia de que nenhuma informação coletada durante a pesquisa será dada a
outras pessoas que não façam parte da equipe de pesquisadores. Esclarecemos também que todas as
imagens serão utilizadas exclusivamente para fins de ordem pedagógico científica. Na divulgação dos
resultados desse estudo, o seu nome não será citado.
Armazenamento de material:
O material referente à pesquisa realizada contará com registro de imagens (fotos e vídeos) e
textos produzidos pela pesquisadora durante as observações das aulas. Esses registros serão
armazenados pelas pesquisadoras por um prazo de 10 anos. Após esse período, será descartado. Uma
parte desse material será publicada na dissertação de mestrado.

Caso aceite o convite de participar da pesquisa, pedimos que assine esse documento e rubrique
todas as páginas. O presente termo está sendo entregue em duas vias uma que ficará de posse do(a)
Sr.(a) e outra de posse dos pesquisadores. Caso necessite de maiores informações nos colocamos à
disposição. Seguem abaixo informações do Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp para o
recebimento de denúncias e/ou reclamações referentes aos aspectos éticos da pesquisa.

O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP):


O papel do CEP é avaliar e acompanhar os aspectos éticos de todas as pesquisas envolvendo
seres humanos. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) tem por objetivo desenvolver a
regulamentação sobre proteção dos seres humanos envolvidos nas pesquisas. Desempenha um papel
coordenador da rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) das instituições, além de assumir a função
de órgão consultor na área de ética em pesquisas. Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua
participação e sobre questões éticas do estudo, o(a) Sr.(a) poderá entrar em contato com a secretaria do
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unicamp das 8:30 às 11:30 e das 13:00 às 17:00, no seguinte
endereço: Rua Tessália Vieira de Camargo, 126. CEP: 13083-887. Campinas/SP.Telefone: (19) 3521-
8936 ou (19) 3521-7187. E-mail: cep@fcm.unicamp.br.

Contatos da Equipe de Pesquisadoras:


Prof. Julia Marianno Marques Rezende (Pesquisadora Responsável)
Mestranda em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp
Telefone: (11) 983729449
E-mail: juliamarquesrezende@gmail.com
Profa. Dra. Eliana Ayoub (Pesquisadora Orientadora)
rofessora da Faculdade de Educação da Unicamp
Telefone: (19) 3521-5578
E-mail: ayoub@unicamp.com
Consentimento livre e esclarecido

Após ter sido esclarecido(a) sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios
previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, eu,
____________________________________________________________, RG _____________,
declaro estar ciente dos objetivos da pesquisa “Ambiente educador maleável e plural: convites à
corporalidade e ao brincar”, e de que, se desejar, posso abster-me da participação no estudo sem
quaisquer prejuízos.
( ) Concordo em participar do presente estudo e autorizo a divulgação de imagens (fotos e vídeos)
registradas durante a pesquisa.
( ) Não concordo em participar do presente estudo.

Data:____/____/______
_______________________________________________________
(Assinatura do sujeito pesquisado)
139

Responsabilidade do Pesquisador Responsável:


Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e complementares na
elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Asseguro,
também, ter explicado e fornecido uma cópia deste documento ao participante. Informo que o estudo foi
aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado. Comprometo-me a utilizar os dados obtidos
nesta pesquisa exclusivamente para as finalidades previstas neste documento ou conforme o
consentimento dado pelo(a) participante.

Data: ____/_____/______

_________________________________
Assinatura do Pesquisador Responsável
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Anexo 1
Anexo 1
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