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Ana Waleska Campos Pollo Mendonça
Claudia Alves
José Gonçalves Gondra
Libânia Nacif Xavier
Nailda Marinho Costa Bonato
(Org.)

História da Educação
Desafios teóricos e empíricos

Niterói, RJ - 2009
Copyright © 2009 by Ana Waleska Campos Pollo Mendonça, Claudia Alves, José
Gonçalves Gondra, Libânia Nacif Xavier, Nailda Marinho da Costa Bonato (organizadores)
Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense -
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Capa e projeto gráfico: José Luiz Stalleiken Martins
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

M534
Mendonça, Ana Waleska Campos Pollo; Alves, Claudia; Gondra, José Gonçalves;
Xavier, Libânia Nacif; Bonato, Nailda Marinho da Costa (organizadores).
História da educação: desafi os teóricos e empíricos/Ana Waleska Campos Pollo
Mendonça; Claudia Alves; José Gonçalves Gondra; Libânia Nacif Xavier; Nailda
Marinho da Costa Bonato (organizadores). – Niterói : Editora da Universidade Federal
Fluminense, 2009.
156 p. ; 21cm.
Inclui bibliografias
ISBN 978-85-228-
1. Educação. 2. História da educação I. Título.
CDD

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Renato de Souza Bravo
Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Tania de Vasconcellos
SUMÁRIO
Capa
Projeto e-books
Folha de Rosto
Créditos
Apresentação: das motivações na história da educaçãono
Rio de Janeiro
Referências
Memória, história e política
1. Memória, política e história da educação
2. História, memória e os compassos do tempo vivido
Referências
Perspectivas da produção historiográfica:apresentação
Referências
História, interdisciplinaridade e marxismo
Embates interdisciplinares: história e sociologia
Referências
Caminhos da historiografia da educação:algumas reflexões
A herança
As perspectivas
Referências
História da educação e história local
Referências
História da educação e história regional:experiências,
dúvidas e perspectivas
1ª Parte: A experiência dos Congressos Mineiros de
Ensino e Pesquisa em História da Educação
2ª Parte: O regional como unidade e como posição de
análise: proposições para história da educação
A idéia de regional no Brasil: brevíssima incursão a um
terreno minado!
Região como unidade de análise e como posição
epistemológica
Referências
Pense globalmente, pesquise localmente?Em busca de uma
mediação para a escritada história da educação
Introdução
1. A história da educação no Rio Grande do Sul: a
produção de pesquisa
2. ASPHE – Associação Sul-Rio-Grandense de
Pesquisadores em História da Educação:
compartilhando estudos e pesquisas
3. A Revista História da Educação - ASPHE/UFPEL
(1997-2007)
Finalizando
Referências
Historiadores da educação no ceará:uma experiência de
formação de pesquisadores
Referências
Acervos, preservação documental e história
O pesquisador e o desafio das fontes
1. Introdução
2. O pesquisador e os documentos: algumas reflexões
3. Acervos e preservação documental: algumas
questões
4. Palavras finais...
Referências
O historiador, o arquivo, o sigilo e a perda
1. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
O acervo DOPS
A pesquisa nos arquivos
Construindo a memória
Patrimônio sem fronteiras
Referências
Para uma história do i encontro de história da educação do
rio de janeiro
A Forma do Encontro
Adesões
As instituições
Objetos
Periodização
As fontes
A Biblioteca do I EHEd-RJ
Considerações finais
Referências
Anexo 1
APRESENTAÇÃO:
DAS MOTIVAÇÕES NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
NO RIO DE JANEIRO
O homem é impensável sem o gesto de dizer. Dizer de si, dizer do
mundo. Dizer do visível, dizer do invisível. Dizer do presente, do
passado e do futuro. O desejo de dizer e de ouvir dizer nos
aproxima, nos reúne, nos agrega. E como seres gregários
inventamos motivos e ocasiões para nos juntarmos e dizermos de
nossas vidas e das vidas alheias.
O sentido original de se iniciar um encontro regular de
pesquisadores de história da educação no estado do Rio de Janeiro,
sem dúvida, encontra-se nesse impulso tão humano. Buscamos
criar mais uma oportunidade de coesionar pessoas que possuem
um grande interesse comum em torno de certas temáticas. Daí
surgiu a proposta de organização do I Encontro de História da
Educação do Estado do Rio de Janeiro (I EHEd-RJ), cujos textos
apresentados nas mesas redondas compõem o presente livro.
Dizer “mais uma oportunidade” é também dizer de uma área de
pesquisa que, no Brasil, encontra-se organizada em entidades e
fóruns regulares que lhe dão vitalidade e reforçam identidades
coletivas e individuais, cunhadas no ato de fazer pesquisa. No caso
do Rio de Janeiro, pode-se dizer que as condições para tal
acontecimento estavam dadas há algum tempo. Primeiramente por
ser caracterizado como centro formador de intelectuais da
educação, em virtude da concentração de instituições universitárias
que, pioneiramente, abrigaram programas de pós-graduação,
beneficiadas pela posição herdada de uma história de capital do
país. Secundariamente por abrigar acervos importantes, como parte
da materialização da memória, oriunda daquela condição na história
nacional, que são referência para o conjunto dos historiadores
brasileiros e estrangeiros.
Essas condições básicas não seriam suficientes, entretanto, para
garantir alguma efervescência particular da história da educação.
Mas os levantamentos recentes da produção dessa área têm
confirmado o que se suspeitava pelas evidências apresentadas à
percepção pouco instrumentalizada, mas atenta à circulação de
textos e indivíduos nos eventos nacionais e internacionais, nas
bibliografias, nas bancas de teses e dissertações, nos catálogos das
editoras. O mapeamento sistemático demonstrou que, para além da
presença esperada da pesquisa histórica nos programas de pós-
graduação em educação, houve, na área do Rio de Janeiro, a partir
da década de 1990, um derrame das temáticas, abordagens e
operações próprias a esse tipo de pesquisa para programas de
áreas inusitadas, como os de engenharia, serviço social,
matemática, enfermagem e outros.
O espraiamento da pesquisa, que desponta ainda em iniciativas
de preservação e recuperação de memórias e acervos escolares,
que ultimamente têm se reproduzido em instituições públicas e
privadas, sobretudo de educação básica, mas também de educação
superior, está na base da resposta surpreendentemente positiva que
obteve a primeira chamada para submissão de propostas para esse
I EHEd-RJ, em que o número de inscritos superou as melhores
expectativas da comissão organizadora. O trabalho de análise
efetivado pelo comitê científico agregou um outro dado significativo:
90% das propostas correspondiam aos padrões de exigência
estabelecidos como critérios de aprovação para serem
apresentadas no encontro. Esse quadro permitiu que fosse
realizado um evento marcado por intensa troca acadêmica,
propiciada pelas sessões de comunicações tanto quanto pelas
mesas redondas.
Como todo conhecimento histórico se constrói a partir de um
esforço sistematizado empreendido sobre um alicerce de memória,
é interessante que se recorra à memória da pesquisa em história da
educação no Rio de Janeiro, como meio de se compreender os
resultados apresentados no I EHEd-RJ. Abrir o evento com uma
conferência sobre as relações entre memória e história, para além
de um aparente lugar comum, teve para nós o significado de
homenagem. Essa iniciativa revolveu o solo de memória da escrita
da história da educação no Rio de Janeiro.
Essa escrita remonta ao século XIX. A posição de sede da corte
permitiu que a cidade e seu entorno se tornassem, paralelamente,
sítios privilegiados de estabelecimento de instituições de ensino e
de geração e difusão de lugares e textos sobre a educação e sua
história ou memória. Alguns nomes emergiram em determinadas
gerações de intelectuais, dedicando-se ao registro da memória da
escola e propondo-se a tarefa de escrever a história da educação
brasileira. Por essa característica, torna-se, por vezes, perigoso
abarcar certas produções como sendo da região, já que, em muitas
delas, o caráter nacional se impõe como marca identitária de textos
escritos em lugares institucionais que ultrapassam o caráter local.
Se em qualquer debate sobre a relação entre essas duas
dimensões, a local e a nacional, esbarra-se em grandes obstáculos
para o estabelecimento de fronteiras, no caso em pauta, esses
limites aparecem ainda mais confundidos. O lugar geográfico fica,
em geral, completamente subsumido ao político que com ele arrasta
o cultural.
A leitura do itinerário de construção do campo da história da
educação no Brasil, elaborada por Vidal e Faria Filho (2003)
identificou três vertentes que contribuíram para o desenho que esse
campo adquiriu. Quando tentamos situar a posição do Rio de
Janeiro em cada uma delas, torna-se possível perceber o quanto
essas dimensões se imbricam.
Na primeira das vertentes indicadas pelos autores, a do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (VIDAL; FARIA FILHO, 2003, p. 39-
46), pode-se assinalar a forma como a situação de sede da corte
atraiu letrados vindos, por vezes, de partes distantes do território,
que se integraram nas redes de sociabilidade da capital. Por outro
lado, os acervos dos órgãos da administração central forneceram
farto material para as compilações de leis e relatórios, bem como
para os textos filiados a uma forma de escrita da história da
educação altamente comprometida com as fontes oficiais. Enquanto
permaneceu como capital da República, essa produção encontrou
abrigo nos órgãos nela sediados.
Na vertente da história da educação ligada à formação de
professores, cabe frisar que a disciplina foi introduzida no currículo
por ocasião da reorganização do curso da Escola Normal do Rio de
Janeiro, em 1928, sob a direção do paulista Fernando de Azevedo.
Nesse lugar é cunhada a matriz dos manuais de formação de
professores, publicados ao longo do século XX, aqui e alhures.
A vertente acadêmica, que se desenvolve pioneiramente na USP,
vê seu campo de possibilidades ampliado com a criação dos
programas de pós-graduação em educação, inaugurados pelas
Pontifícias Universidades Católicas do Rio de Janeiro e de São
Paulo. Na PUC-Rio, desde as primeiras dissertações de mestrado
defendidas, aparecem estudos em história da educação, e esse
programa manteve uma produção regular de trabalhos nessa área
durante as décadas seguintes.
Este livro foi pensado de forma a expressar a riqueza dos debates
promovidos pelos textos que o compõem quando apresentados
oralmente nas mesas redondas. Pudemos contar com a contribuição
de historiadores que se constituem como referências na produção
historiográfica brasileira e que aqui participam como autores. A
ordem em que se sucedem corresponde àquela em que foram
apresentados, compondo grupos temáticos construídos para
atender aos objetivos de propiciar a reflexão e o aprofundamento
sobre aspectos basilares da pesquisa histórica.
Margarida de Souza Neves apresentou, na conferência de
abertura, uma abordagem das relações entre memória, história e
política com o intuito de enfatizar a dimensão política da educação e
o compromisso ético do historiador da área que investiga os
processos de formação de sujeitos da história. Entrelaçou sua
reflexão a respeito dessas relações com o papel do I Encontro de
História da Educação do Estado do Rio de Janeiro em produzir
memória, na configuração de um projeto alinhavado à identidade
dessa área de estudos e de seus pesquisadores.
Após este capítulo de abertura, introduzem-se três conjuntos de
textos, correspondentes às temáticas das mesas redondas. A
primeira delas, intitulada Perspectivas da produção historiográfica,
teve coordenação de Ana Waleska Mendonça, que se encarrega de
apresentar os capítulos escritos por Sonia Regina de Mendonça e
por Clarice Nunes sistematizando suas posições no debate teórico
que o encontro ensejou. O segundo grupo, apresentado pelo texto
de Libânia Nacif Xavier, teve como tema os dilemas que envolvem o
binômio História da educação e história local. Três autores
comparecem à discussão posicionando-se a partir da elaboração de
suas experiências como organizadores de eventos similares ao
fluminense nos seus respectivos Estados: Luciano Mendes de Faria
Filho, Maria Helena Câmara Bastos e Maria Juraci Cavalcante. O
terceiro conjunto vem introduzido pelo texto de Nailda Marinho da
Costa Bonato referente ao assunto caro aos historiadores que é que
liga Acervos, preservação documental e história, contando com os
textos de Maria de Lourdes Fávero e Beatriz Kushnir.
Finalizando o livro, o texto de José Gondra intenta fazer um
balanço do saldo do evento, no âmbito de uma reflexão mais ampla
acerca da representatividade e do impacto na produção regional da
área, relacionados a esse tipo de iniciativa. Explora três dimensões
iniciais, a temporal, a espacial e a dos sujeitos envolvidos na
construção do evento, seja como organizadores, seja como
expositores. Detalha, posteriormente, a análise dos trabalhos
expostos, trabalhando sobre duas bases de dados: a dos resumos e
a dos trabalhos completos. Observa cinco aspectos: as instituições
a que pertencem os expositores, os objetos que estudam, as fontes
que utilizam, o período histórico em que se concentram e a
bibliografia que mobilizam.
O conteúdo reunido na presente publicação, embora fruto de um
momento particular resultante de um evento pensado e concretizado
em nível estadual, abarca preocupações de caráter abrangente, que
atravessam a pesquisa histórica. O foco na História da Educação
expressa, de maneira mais evidente, o compromisso de um coletivo
de pesquisadores com a construção da pesquisa nessa área, do
que propriamente uma especificidade do leque temático ligado a
uma filiação particular. Por esse motivo, temos certeza de que as
contribuições aqui reunidas poderão ser úteis aos historiadores em
geral. Confiamos e esperamos firmemente que isso ocorra.
Claudia Alves
Referências
VIDAL, Diana Gonçalves; FARIA FILHO, Luciano Mendes de.
História da Educação no Brasil: a constituição histórica do campo
(1880-1970). Revista Brasileira de História: o ofício do historiador,
São Paulo, v. 23, n. 45, p. 37-70, 2003.
MEMÓRIA, HISTÓRIA E POLÍTICA
Margarida de Souza Neves1
Boa noite a todos. É sempre um prazer voltar a esta casa, que foi
a minha casa por tantos anos. Mais ainda se, desta vez, a volta é
para assumir o papel, simultaneamente grato e desafiador, de ser a
primeira a tomar a palavra neste que é o Primeiro Encontro de
História da Educação do Estado do Rio de Janeiro. Trata-se de um
encontro que abriga e supõe outros muitos encontros: encontro das
várias universidades de pesquisa na organização do evento, em
primeiro lugar; encontro, em segundo lugar, de muitos esforços
individuais que evidenciam a sinergia produzida pelas iniciativas da
ANPED e da Sociedade Brasileira de História da Educação e que
fez nascer um Grupo de Trabalho reconhecido no Brasil e que
frutifica no Congresso Brasileiro de História da Educação, e no
Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação; encontro,
ainda, de latitudes acadêmicas distintas que potencializam as
perspectivas específicas de cada área ao abordarem um tema que,
por sua natureza, postula uma abordagem interdisciplinar; encontro,
também, de grupos de pesquisa e de pesquisadores de diversas
instituições e em diferentes momentos de sua trajetória acadêmica;
encontro, enfim, da perspectiva especificamente histórica com as
questões da educação no estado do Rio de Janeiro e no país.
Da multiplicidade de encontros que certamente terão lugar nesse
Primeiro Encontro de História da Educação do Estado do Rio de
Janeiro, procede, sem dúvida, o encontro entre três termos que se
postulam mutuamente e que estão presentes no título que os
organizadores propuseram para esta conversa inicial: memória,
história e política.
Meu objetivo nesta conversa inicial é propor, ainda que muito
rapidamente, duas hipóteses de reflexão: a primeira visa a indagar,
preliminarmente, já que este é o tema que atravessa todo o
Encontro, como o conceito de memória e a dimensão política se
articulam no campo da história da educação. A segunda hipótese
pretende distinguir e relacionar memória e história, uma vez que
esse duplo movimento é essencial para o que fazemos da história
da educação, em suas múltiplas dimensões, o terreno de nossa
reflexão intelectual e, por isso mesmo, de nossa atuação política
específica.
1. Memória, política e história da educação
É, certamente, muito corajoso por parte dos organizadores deste
Encontro, em tempos de desqualificação da política e de
desesperança no político, sublinhar, desde o primeiro momento
deste evento, o terceiro termo dessa tríade memória, história e
política e assumir a dimensão inequivocamente política da relação
entre memória e história, verdadeira em qualquer caso, mas
particularmente relevante quando referida à educação.
Talvez, como nunca, seja necessário lembrar, uma e outra vez, a
relação entre as diversas iniciativas, agências e agentes
relacionados à educação em suas variadíssimas formas e a
dimensão do político, a vida na polis e o exercício da cidadania.
Para fazê-lo, na perspectiva do título que me foi sugerido, pode ser
um bom começo retomar as observações feitas por três professores
que se ocupam do caleidoscópico tema da memória, sem esquecer
sua dimensão política.
A primeira é uma frase do conhecidíssimo artigo do historiador
Jacques Le Goff (1984, p. 13), escrito para o verbete “memória” da
Enciclopédia Einaudi:
A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades. Os esquecimentos e os silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.

Não caberia, aqui, analisar o artigo como um todo, leitura


obrigatória para todos aqueles que se ocupam da complexa relação
entre memória e história. Basta sublinhar que o autor assinala, neste
trecho como em todo o artigo, os entrecruzamentos necessários
entre o exercício do poder e o controle da memória, entre a escrita
da história e as leituras da memória e entre a lembrança e o
esquecimento na tessitura da memória.
A segunda é a observação perspicaz do filósofo Paul Ricoeur
(2000) em livro recente, no qual, sem deixar de reconhecer que a
mais íntima e pessoal das memórias individuais se imbrica, pela
linguagem e pelos conteúdos, com a memória coletiva, e que toda
memória coletiva postula memórias individuais e se entrecruza com
elas, postula a importância particular daquilo que denomina de “os
próximos” – a família, a escola, os grupos de sociabilidade, a
imprensa em suas várias formas, as media contemporâneas, as
igrejas, os sindicatos, os partidos políticos, os clubes e outras
esferas de socialização – como mediações necessárias entre uma
memória coletiva mais ou menos abstrata e, no mundo de hoje,
referida ao nacional e ao cultural, e à memória individual. É por isso
que todas elas têm, explícita ou implicitamente, uma dimensão
educativa, na medida em que formam, conformam ou reformam
agentes sociais autônomos – e, portanto, potencialmente
preparados para o exercício da cidadania – ou, pelo contrário,
sujeitos heterônomos, súditos acríticos e submissos dos senhores
de plantão na arena pública ou na esfera privada.
Paul Ricoeur não deixa de observar que é precisamente na
importância estratégica dessas mediações próximas e responsáveis
pela soldadura entre a memória individual e a memória coletiva que
reside sua ineludível dimensão política e seu necessário alcance
ético.
É, portanto, útil, ao iniciar os trabalhos deste Encontro, pôr em
evidência a necessária dimensão política e o alcance
inequivocamente ético dos trabalhos que aqui serão apresentados e
discutidos, uma vez que eles se referem à história e à historiografia
da educação, à coordenada regional da história da educação
brasileira e a esses particulares lugares de memória, na acepção
dada a esta noção por Pierre Nora (1984), que são os acervos e as
políticas de preservação documental, temas das três mesas
redondas que nucleiam as comunicações de trabalhos neste
encontro.
Mas, de onde arranca a dimensão política da memória e de uma
de suas formas, a história, e em particular? De que formas essa
dimensão política da memória rebate naquilo que constitui o
interesse central deste encontro, a história da educação?
A proposta do antropólogo brasileiro Gilberto Velho (1994), em
artigo breve e seminal, fornece elementos que permitem formular
uma resposta a esta questão, na medida em que postula que, nas
sociedades complexas, memória, identidade e projeto não são
senão facetas particulares de um mesmo prisma, que reflete
realidades e processos individuais e sociais. Para este autor, os três
elementos desta tríade postulam-se mutuamente e estão articulados
orgânica e necessariamente, de tal modo que toda memória constrói
identidade e encerra um projeto de futuro; da mesma forma que
toda identidade se alicerça em memórias e negocia com a realidade
por meio de projetos e que todo projeto incide poderosamente sobre
identidades e memórias e delas se retroalimenta.
Trata-se de uma formulação instigante para todos os que
trabalham com a história em geral e com a história da educação em
particular, na medida em que põe em evidência o cerne político da
história que pesquisamos, ensinamos e escrevemos, lócus
privilegiado da articulação desses três vértices, ao mesmo tempo
em que revela, em cada um deles, a imbricação entre passado,
presente e futuro que impede uma concepção de memória presa ao
passado, um entendimento presentista das identidades e uma
acepção de projetos identificada, apenas, com um horizonte de
futuro.
Minha primeira sugestão, para este Encontro, é a de atualizar
essas três referências – fazer memória, portanto – nas discussões
que hoje se abrem, de forma a que a articulação entre memória,
política e história da educação não fique relegada a esta conversa
inicial, mas desenhe o horizonte de sentido das reflexões deste
Primeiro Encontro de História da Educação do Estado do Rio de
Janeiro e suas contribuições específicas para as reflexões sobre a
história da educação no Brasil, já que é nossa dupla tarefa estudá-la
e construí-la.
2. História, memória e os compassos do tempo vivido
Os textos mais recentes sobre memória e história chamam nossa
atenção para um aspecto paradoxal de nosso tempo, ao mesmo
tempo ávido e saturado de memória.
Por um lado, muitos autores sublinham o dever de memória e
suas muitas conotações políticas, que se evidenciam, em particular,
nas memórias traumáticas do mundo contemporâneo, tais como a
tortura, os campos de prisioneiros, de hoje e de ontem, e, por
excelência, a experiência do holocausto. Esta é a clave, por
exemplo, do livro do crítico literário Harald Weinrich (2001),
intitulado Lete. Arte e crítica do esquecimento, que propõe uma
história cultural do esquecimento com base em textos clássicos da
literatura ocidental, e do livro do lingüista e filósofo búlgaro, radicado
em Paris, Tzvetan Todorov (2002), cujo título é Memória do mal,
tentação do bem. Nesse livro, Todorov, no primeiro momento do
século XXI, empreende uma reflexão sobre o pior e o melhor que o
século XX nos legou. Na primeira e mais sombria das vertentes,
estaria a experiência de regimes políticos totalitários e do que, para
o autor, são suas duas principais variantes, o nazismo e o
comunismo. Na segunda vertente, mais luminosa, o autor analisa a
vida de homens e mulheres de destino dramático e impressionante,
pela lucidez com que viveram e, em alguns casos, morreram sob
esses regimes, e são, para todos nós, marcos de exemplaridade
ética e sinais de esperança nos tempos difíceis que nos tocam viver.
Para ambos os autores, assim como para tantos outros, o dever de
memória é condição de um mundo que seja capaz de identificar nos
valores humanistas um alicerce de sua identidade e um elemento de
projetos de um futuro melhor.
Por outro lado, muitos são os autores contemporâneos que se
debruçam sobre as relações entre memória e história e que, sem
diminuir a importância do tema da memória em si mesmo, postulam,
por diferentes razões, uma certa overdose de estudos sobre a
memória no momento histórico que vivemos, e que se constitui em
um movimento de sutil viés passadista.
É nesse sentido que podemos entender a fórmula, fortemente
retórica, de Pierre Nora (1984, p. VII): “Fala-se tanto em memória
em nossos dias porque ela não existe mais”.
E é na perspectiva dos abusos da memória que se inscrevem, de
maneira muito diferente, é verdade, por exemplo, outro dos livros de
Tzvetan Todorov, publicado na França, em 2004; além de algumas
das observações do historiador da ciência italiano Paolo Rossi
(1991) em seu ensaio sobre o tempo, a memória e o esquecimento;
assim como o mais recente livro de uma das mais conhecidas
representantes da área dos estudos culturais na América Latina, a
argentina Beatriz Sarlo (2007).
História e memória são, numa primeira aproximação, ricas
metáforas mútuas. Não sem razão, utilizamos tantas vezes as duas
lexias como equivalentes e intercambiáveis em nossas
aproximações à polifonia do tempo vivido e narrado.
O discurso mitológico do mundo grego, tão denso de poesia, e por
isso mesmo tão sugestivo, encontrou uma forma particularmente
rica de expressar a proximidade e, ao mesmo tempo, a tensão entre
a memória e a história, ao personificar uma e outra. Com efeito, na
narrativa mitológica, a memória ganha a forma de Mnemosine, filha
de Urano – o céu – e de Gaia – a terra – e irmã de Chronus, o
tempo, devorador de seus filhos. Possuída por nove noites
consecutivas por Zeus, divindade maior do Olimpo, Mnemosine dá à
luz as nove musas, inspiradoras de todas as formas de criação e de
conhecimento no mundo dos humanos. Uma destas nove musas é
Clio, a musa da história, filha, portanto, da memória, uma das
herdeiras da linhagem que se origina do consórcio entre o
humaníssimo – ainda que olímpico – Zeus e de Mnemosine, e que
ascende a uma aliança carnal entre o céu e a terra, que, por sua
vez, gera também o tempo (NEVES, 1998, 2000).
Essa complexa genealogia mitológica instaura a relação e a
distinção entre memória e história no terreno da poiésis, a poesia,
forma de conhecimento que, naquele universo cultural,
diferentemente do que sucede no nosso, tinha o mesmo valor
heurístico que o logos – o conhecimento lógico-racional – ou a
techné – a precisão do conhecimento técnico.
Talvez por fazer eco – conscientemente ou não, pouco importa –
desse discurso fundacional sobre as relações entre memória e
história, Jacques Le Goff formule desta maneira, não mais no
terreno da poesia, mas no da lógica, a relação entre ambas na
conclusão de seu já mencionado artigo: “A memória, onde cresce a
história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado, para
servir o presente e o futuro” (1984, p. 47).
Se, por um lado, a poética da formulação mitológica nos ensina a
ver a distinção e a relação entre memória e história, ao estabelecer
entre ambas o mais forte e também o mais conflitivo dos
parentescos de sangue, por outro, a relação dialética entre memória
e história proposta pelo medievalista francês nos ajuda a fugir das
tentações das definições positivas, e, se formos capazes de relevar
o tropeço soteriológico presente na dupla missão de salvar o
passado e servir o presente e o futuro, perceber algo dos
compassos que marcam o ritmo da complexa dança de Mnemosine
e Clio.
É na polifonia da orquestração entre passado, presente e futuro
que a dança de Clio e Mnemosine ganha sentido. É no compasso
do tempo vivido que ambas se movimentam, e é para que os
diferentes acordes do tempo narrado possam ser executados e
ouvidos que ambas se dão as mãos ou se separam, numa
coreografia sempre renovada. Olhar para o bailado de mãe e filha
com olhos capazes de ver é tarefa ao mesmo tempo árdua e
fascinante, e é também o lugar específico em que o nosso ofício se
torna prazer e ganha sentido: aquele em que memória e história se
reúnem para enfrentar os desafios da polis e da política, ou seja, o
lugar em que a produção de conhecimento e a formação de
conhecedores – tarefas específicas da academia – se reconhecem e
são reconhecidas como um dos lugares em que se faz a história em
sua dupla acepção: a de processo das lutas e conquistas dos
agentes sociais no tempo e a de reflexão e narrativa sobre este
mesmo processo.
Que este Primeiro Encontro de História da Educação do Estado
do Rio de Janeiro possa ser uma ocasião de entrar na dança de Clio
e Mnemosyne – na festa, portanto – sem perder a dimensão política
– vale dizer, de luta – sempre sugerida por essas duas figuras
mitológicas femininas.
Muito obrigada.
Referências
LE Goff, Jacques. Memória. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. v. 1:
Memória e História. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda,
1984.
NEVES, Margarida de Souza. A educação pela memória. Teias:
Revista da Faculdade de Educação da UERJ, Rio de Janeiro, no 1:
magistério, memória, história, jun. 2000.
___________. Os jogos da memória. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de.
Ler e escrever para contar: documentação, historiografia e formação
do historiador. Rio de Janeiro: Access, 1998.
NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux.
In: NORA, Pierre (Org.). Les lieux de mémoire. v. 1: la republique.
Paris: Gallimard, 1984.
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___________. Memória do mal: tentação do bem: indagações sobre
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VELHO, Gilberto. Memória, identidade e projeto. In: ___________.
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Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994.
Weinrich, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

Professora do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro.
PERSPECTIVAS DA PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA:
APRESENTAÇÃO
Ana Waleska Mendonça2
Esse conflito de idéias entre as gerações, e dentro de uma mesma geração, é
inevitável na abertura das interpretações consolidadas e na criação de uma
atmosfera intelectual instituinte. (NUNES, 2007, p. 9-10)

Os dois textos que me proponho a apresentar integraram a mesa


redonda intitulada “Perspectivas da Produção Historiográfica”, que
abriu o segundo dia de realização do I Encontro de História da
Educação do Rio de Janeiro. Refletem duas visões diferenciadas da
temática proposta e ensejaram um debate extremamente rico.
Numa primeira aproximação, pode-se dizer que, em linhas gerais,
os dois trabalhos expressam olhares diferenciados da questão, do
ponto de vista do lugar de onde se coloca (e fala) cada uma das
duas autoras.
Um primeiro olhar, o de Sonia Mendonça, pode se caracterizar
como “externo” ao campo específico da História da Educação, o que
não implica em negar que a autora já se tenha debruçado sobre
determinados objetos que se situam dentro do campo problemático
que se está chamando de educação. O que se quer destacar com
essa observação é que não me parece ter sido uma preocupação
central da autora aplicar ao campo específico da História da
Educação a reflexão desenvolvida ao longo do texto, sobre a
relação entre história, interdisciplinaridade e marxismo. Ao menos,
essa intenção não está explícita.
Já o olhar de Clarice Nunes é o de alguém que não só se coloca
(e fala) “de dentro” do próprio campo da História da Educação, como
também se percebe como parte integrante e ativa deste processo
(ou movimento) do qual se originou, no Brasil, mas também em
outros contextos, “uma comunidade interpretativa dotada de
instrumentos próprios de cooperação e de trabalho” (NÓVOA, 1998,
p. 23): os historiadores da educação. O próprio título atribuído pela
autora ao seu trabalho já é um indicativo do lugar de onde se coloca
e fala: Caminhos da Historiografia da Educação: algumas reflexões.
Igualmente, a primeira pessoa do plural da qual se utiliza o tempo
todo na escritura do texto parece apontar para um movimento do
campo no qual a autora se insere e que tem um caráter coletivo.
Nesse sentido, Clarice abre o seu texto afirmando:
Desde as primeiras décadas de século XX estamos construindo percursos da
história da educação em nosso país que passam pela escritura de intelectuais com
diferentes perfis [...]. Se examinarmos as suas trajetórias veremos que revelam
uma mudança na implicação que apresentam com relação ao conhecimento
histórico da educação e às temáticas aí presentes, isto é, a produção desse ramo
especializado da história sai gradativamente da condição de um trabalho isolado
[...] para uma situação, tal qual vivemos hoje, na qual essa produção está
concentrada no trabalho de equipes de pesquisa nos programas de pós-graduação
em educação e se expressa massivamente através de dissertações de mestrado e
teses de doutorado. (p. 1)

A seguir, a autora chama a atenção para o fato de que esse


movimento ao qual se refere já extrapola o âmbito restrito dos
programas de pós-graduação, articulando-se em instituições de
caráter nacional e mesmo internacional que congregam os vários
pesquisadores, que, por sua vez, produzem modos de pensar e
escrever a história da educação (p. 2), configurando uma tradição
de pesquisa legitimada interna e externamente. É a partir e de
dentro desse movimento que a autora desenvolve sua reflexão.
O que me parece interessante assinalar é que, mesmo partindo
de lugares bastante diferenciados, ambas as autoras, para pensar
em termos de perspectivas e caminhos para a historiografia,
começam por ensaiar um balanço dessa produção, no sentido de se
perceber os avanços dos últimos tempos e apontar as questões
problemáticas que se colocam em termos de desafios para os
pesquisadores de hoje. É óbvio que, pelo próprio caráter mais
abrangente da análise desenvolvida, o recorte temporal, no caso de
Sonia, é muito mais amplo. Pode-se, entretanto, perceber, na
análise de Clarice, que as tendências gerais da historiografia
apontadas por Sonia, particularmente, ao longo do século XX e do
atual, também se refletem no campo específico da História da
Educação. Com efeito, foi no diálogo com as novas tendências
historiográficas, especialmente a partir dos últimos anos do século
XX – sem esquecer, como lembra Clarice, as contribuições de
outras áreas das ciências sociais e humanas, como a antropologia e
a sociologia – que a História da Educação se consolidou e se
legitimou como um campo específico de pesquisa. Pode-se, a meu
ver, desse ponto de vista, admitir com Nóvoa (1998, p. 22), que:
Os dilemas da história da educação são, no que se refere ao essencial, os
mesmos dilemas da história. Em um caso, como no outro, as interrogações são as
mesmas, embora localizadas em objetos diferentes e originando processos de
legitimação que seguem um caminho próprio.

Não é, portanto, por conta dos lugares distintos a partir dos quais
se colocam, que as autoras vão divergir quanto aos
encaminhamentos propostos para responder aos desafios que se
colocam para a produção historiográfica hoje. Essas diferenças se
devem, em parte, a compromissos que se situam para além da
esfera propriamente acadêmica (embora, também a comprometam),
que, no caso específico de Sonia se explicitam na crítica que esta
dirige a determinadas correntes historiográficas contemporâneas
que vêm construindo “uma história completamente
descompromissada com a ação” (p. 4, grifos do autor).
De certa forma, esta questão também foi posta, de maneira
diferenciada, para os historiadores da educação, por Warde e
Carvalho (2000, p. 31), ao apontarem os riscos de certos
deslocamentos conceituais, metodológicos e de objetos, que
possuem um significado político nem sempre percebido (ou
avaliado) com clareza pelos historiadores da educação, e que
podem levá-los a serem capturados nas malhas do sentido que lhes
é impresso pelas políticas governamentais.
No entanto, algumas divergências mais profundas podem ser
identificadas não só a partir dos textos das duas autoras, mas do
próprio debate que se seguiu às apresentações.
Sonia coloca uma ênfase particular na crítica ao “artificialismo das
classificações que insistem em instaurar fronteiras entre as Ciências
Sociais” (WARDE; CARVALHO, 2000, p. 7), propondo, como
alternativa para superar esta situação, não só a ação, que une o
conhecimento ao devir, o saber à transformação (grifos no
original), mas também o resgate de determinadas categorias do
pensamento marxista, atualmente meio “fora de moda”, na sua
perspectiva, pelo seu potencial (ou imperativo) totalizador (WARDE;
CARVALHO, 2000, p. 11). Sonia critica, deste ponto de vista, a
operação simplificadora (WARDE; CARVALHO, 2000, p. 12) que
consiste em evitar ou até mesmo negar o conceito de totalidade, em
nome de um pluralismo falsamente democrático. Para a autora, esta
operação tem, não só implicações práticas, mas se configura
igualmente como um risco teórico.
De um ponto de vista distinto e até oposto, Clarice afirma que a
cristalização de um novo modelo, além de não desejável, não lhe
parece nem mesmo provável. Para esta autora, a renovação da
área talvez passe menos pela adoção de novos paradigmas
historiográficos e mais pela mudança de caráter temático (WARDE;
CARVALHO, 2000, p. 7). E ela exemplifica, a partir da sua própria
experiência, fazendo um instigante convite aos pesquisadores da
área a uma operação de descentramento da instituição escolar
(WARDE; CARVALHO, 2000, p. 8), que não só pode permitir uma
ampliação da reflexão sobre os processos educativos em geral,
como até levar a uma reavaliação do papel e do significado da
própria instituição escolar. Para Clarice:
O que buscamos hoje, assim penso, é menos um paradigma global de
compreensão e mais a construção de estratégias de pesquisa cuja fidelidade se
reporta às características e necessidade da construção dos nossos objetos e não
exclusivamente às teorias que abraçamos. (p. 9)

Os distintos caminhos estão postos e o debate continua... Estão


aí os dois textos para que se possa lê-los e discuti-los.
Para concluir, gostaria de retomar a epígrafe com que se abriu o
texto, palavras atribuídas por Clarice ao mestre Leandro Konder. E
encerrar, de fato, com mais um pequeno trecho do texto de Clarice,
que, sem dúvida, remete à epígrafe:
A historiografia da educação é produzida a partir de operações intelectuais e de
convenções dos grupos de pesquisadores. Sua tendência é ampliar-se e de forma
não linear, entre avanços e recuos, mas buscando o trabalho com os matizes, o
que nos leva a transitar entre as necessidades de construção de novas hipóteses,
exige a abertura da discussão em várias frentes e a sua sustentação, o que não
significa imposição. (p. 9)

Que assim seja!


Referências
NÓVOA, António. L’histoire et l’histoire de l’éducation: réflexions à
propos de l’historiographie américaine). In: NÓVOA, António.
Histoire & Comparaison: essais sur l’Éducation. Lisboa: EDUCA,
1998, p. 13-50.
WARDE, Miriam; CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Política e
cultura na produção da história da educação no Brasil.
Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro, ano 5, n. 7, p. 9-
33, 1o sem. 2000.

Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).


HISTÓRIA, INTERDISCIPLINARIDADE E MARXISMO
Sonia Regina de Mendonça3
Embates interdisciplinares: história e sociologia
Tida durante longo tempo como “a” disciplina científica por
excelência, a história teve seu “império” contestado pela emergência
de inúmeras novas outras, surgidas no campo das ciências sociais,
as quais, lentamente e por caminhos os mais distintos, poriam em
questão seu pressuposto epistemológico até então inquestionável: a
contingência. Saber dedicado às singularidades ou personalidades
marcantes, a História chamada de “metódica” – da segunda metade
e, sobretudo, finais do século XIX – somente se preocupou em
ampliar o fosso ao redor de seu “castelo”, quando as “ciências”
recém-chegadas – como a geografia, a psicologia e, finalmente, a
sociologia – eclodiram no campo dos saberes sobre o homem,
também buscando seu lugar ao sol e disputando espaço com esta
que fora, até aí, a “ciência humana” mais proeminente.
Se o culto aos arquivos, à documentação e ao irrepetível, era a
tônica da disciplina historiadora, diante das novidades
“ameaçadoras”, ele se tornava uma armadilha, com duplo poder de
enredamento. Os historiadores de ofício oscilariam, doravante, entre
aferrar-se a essas mesmas características e buscarem uma
aproximação “condescendente” com as recém-chegadas,
preparando-se para o embate.
Da primeira opção resultaria a consolidação, na França dos anos
1870, da escola histórica “metódica”, imbricada ao campo da história
política e diplomática, organizada em torno da Revue Historique,
fundada por Gabriel Monod, e com forte e duradoura influência junto
ao ensino e à pesquisa da disciplina.
Para seus afiliados, a atividade do historiador se decompunha em
algumas etapas hierarquizadas, consistindo a principal delas, em
reunir documentos que embasassem seu relato da “verdade”. Se
esta era a tarefa inicial, o método heurístico viria logo depois, pondo
em prova a documentação, através de sua proposição crítica,
formalizada por Langlois e Seignobos. De posse da fidelidade das
fontes, os historiadores metódicos delas extrairiam seu sentido,
porém sempre enquanto “intérpretes” supostamente fiéis dos fatos,
isolados pelo método crítico e escudados por procedimentos tidos
como impessoais e neutros. Logo, para essa corrente, a
cientificidade da pesquisa histórica era assegurada pela recusa a
toda e qualquer especulação filosófica, posto que voltada para a
“objetividade”, absoluta em seus domínios.
Tal “escola”, entretanto, enfrentou inúmeros opositores no próprio
campo historiador, que consideravam ter o método crítico
incentivado dois gêneros históricos: de um lado, a História
Evenementielle e de outro, a história painel, ambas primando pelo
enquadramento de fatos eminentemente político-institucionais.
Contra a primazia dessa história política erguer-se-ia, muitos anos
depois, a voz de Lucien Febvre, em pleno século XX (1935),
denunciando o privilegiamento dos traços escritos e dos
testemunhos voluntários da história política nacional – decorrentes
da sacralização dos arquivos – em detrimento de tipos diversos de
fontes históricas. Por extensão, ele também criticaria a
supervalorização de individualidades notáveis enquanto sujeitos da
história. O lançamento dos Annalles representaria o coroamento
dessa segunda corrente do métier do historiador.
No entanto, tal cesura seria impensável sem que tivesse emergido
a “mais jovem” das Ciências Sociais, a Sociologia, cuja causa seria
abraçada por Durkheim desde a publicação, em 1895, de As Regras
do Método Sociológico, buscando subordinar à nova disciplina a
própria história. Para ele, nada justificava mais profundamente a
“divisão disciplinar do trabalho”, senão as irregularidades da história
e a diversidade das competências técnicas particulares que, mesmo
assim, eram secundárias diante do projeto científico mais amplo.
A leitura deste texto fundador da Escola Sociológica Francesa
demonstrava a complexidade de suas relações com a história, posto
que Durkheim opunha as duas tradições então vigentes de análise
do mundo social: a história cronológica e a filosofia da história.
Quanto à primeira, criticava a exacerbada contingência implícita na
singularidade absoluta dos fenômenos sociopolíticos, os quais,
exatamente por isso, tornavam-se incomensuráveis entre si. Quanto
à filosofia, voltava-se contra a análise desses mesmos fatos à luz de
modelos metafísicos e reiteradores de um princípio de natureza –
humana ou nacional – impeditivos da produção de um conhecimento
generalizante. Em suma: à história historicizante, Durkheim
reprovava sua falta de audácia e seu esforço por rechaçar a síntese.
Quanto à filosofia da História, criticava sua imprudência explicativa e
seu menosprezo pela historicidade do mundo social. Com isso, o
autor supunha abrir espaço para que a História viesse a ser feita
“sócio-logicamente”, ou seja, a partir do estabelecimento de leis.
Em seu método, Durkheim propunha instrumentos de objetivação
do social que permitissem a observação da dimensão regular e
repetitiva das atividades sociais, fazendo da generalização sua
principal característica. Assim, pôs em prática um método
experimental que autorizava a aproximação entre sociologia e
ciências da natureza resultando, em oposição à História metódica
que tanto criticara, na minimização da historicidade dos fatos
passíveis de análise. Com ele, passou-se a privilegiar a explicação
causal em detrimento da compreensão, sendo os sociólogos
convidados a neutralizar o “efeito da idade”, fazendo com que seu
território ganhasse em generalidade comparativa, aquilo que perdia
em profundidade histórica e interpretativa.
A tensão existente entre história e sociologia se acirraria a partir
das críticas formuladas por François Simiand, ao denunciar “os
ídolos da tribo dos historiadores” e defender a pretensão nomotética
contra o tipo de história praticado pela escola metódica. A erudição
não seria, a seu ver, terreno sólido o bastante para servir de esteio à
cientificidade almejada, mas, sim, a aceitação das regras mínimas
constitutivas de uma ciência positiva. Logo, a uma história
historicizante, Simiand contrapunha uma história “a la Durkheim”,
com pretensões a atingir o Social e, em especial, o Regular.
Segundo alguns autores, tratava-se menos da busca de uma
interdisciplinaridade, do que de uma a-disciplinaridade, posto que as
disciplinas se transformariam em especializações inevitáveis no seio
de um mesmo projeto conjunto.
O impacto do manifesto intelectual de Simiand desdobrou-se no
tempo, com a fundação, por Henri Berr, em 1900, da Revue de
Synthese Historique, baseada numa proposta enciclopédica de
síntese histórica dos acontecimentos, realizável dentro de um
espaço de livre confrontação entre práticas científicas que, até
então, se ignoravam. A história, território definido como o único
possível para a efetivação de tal síntese dos saberes, assumiria o
lugar da filosofia enquanto organizadora desse espaço.
Em fins da década de 1920, a questão da interdisciplinaridade –
ainda hoje tão incensada – permanecia tensa e aparentemente
insolúvel. Seria Simiand, uma vez mais, o ponto de referência para o
que Revel denomina de “abertura pragmática” (REVEL, 1998, p. 83),
inaugurada por Bloch e Febvre quando do lançamento dos Annalles
e seu projeto pluridisciplinar, conquanto marcado pela forte rejeição
à história política, por razões óbvias. Sua opção pela dita história
social e seu combate às compartimentações disciplinares
continuavam reiterando uma antiga confrontação: a que
contrapunha as abordagens do presente – ilustradas pelas ciências
sociais – às experiências do passado e à interpretação do
contemporâneo. O tempo social seria o único eixo possível para o
encontro interdisciplinar.
A tensão entre história e sociologia desenrolou-se por todo o
século XX, malgrado pontuada por conjunturas intelectuais diversas
das anteriormente vigentes. Antes de destacar os fatores
elucidativos da possível convergência epistemológica e
metodológica entre ambas as disciplinas, creio ser prudente pontuar
os aspectos negativos contidos em ambas as linhagens até aqui
abordadas.
No que se refere aos defensores da contingência histórica, vale
reter a impossibilidade da realização – face a seus postulados e
práticas – de uma história-processo alicerçada na dimensão coletiva
dos atores e sujeitos sociais, já que contingência e acaso, tornados
matérias-primas do fazer historiador, resultaram não somente no
distanciamento de toda e qualquer crítica social, como também – e
por conseqüência – no distanciamento da própria noção de devir
histórico.
Tal inviabilidade, por seu turno, resvalava para um certo
conservadorismo, preservado e defendido em nome da propalada
busca da cientificidade, tanto no que diz respeito ao trato das fontes,
quanto no que tange a episódios e atores “únicos” ou excepcionais.
Por certo, essa modalidade do “fazer historiográfico” partia da
premissa de ser impossível construírem-se individualidades dentro
da própria dimensão social, como se elas não estivessem,
necessariamente, inseridas numa dada realidade histórica.
Semelhante matriz implicava também numa história que se
supunha capaz de tornar sinônimos intercambiantes os fatos e a
realidade. Tal postulado se, por um lado, empobrecia o papel
desempenhado pela imaginação histórica, por outro – e com muito
maior gravidade – inviabilizava o fazer historiador a partir de
qualquer princípio explicativo problematizante. Tem-se, dessa feita,
uma história completamente descompromissada com a ação ou
mesmo com a elaboração de indicadores que a orientassem.
Nesse sentido, o movimento dos Annalles representou não
apenas severa crítica a essa história historicizante ao extremo, mas
também a muitos de seus pressupostos, tendo como principal arma
de combate a metodologia, já que somente a partir da pluralidade de
métodos se conseguiria superar a “escola histórica”. Os Annalles
não foram exitosos apenas ao dar consistência à chamada história-
problema. Igualmente conseguiram redirecionar o “fazer
historiográfico” no sentido da objetividade. Um dado, porém, deve
ser destacado como herança de todo esse embate: o quase total
ostracismo a que foi relegada a história política, transformada numa
espécie de “fantasma” da escola histórica de fins do século XIX.
Vale também recordar que, muito embora o grupo dos Annalles
tenha avançado consideravelmente no desenvolvimento da
disciplina, diante de sua busca por uma história total – donde a
abertura à multidisciplinaridade – ele continuava partilhando, a meu
juízo, de um mesmo ponto em comum com a escola precedente: a
restrição de suas atividades ao campo acadêmico ou científico,
como se sua produção fosse descolada da ação política em sentido
mais amplo.
Quanto à regularidade sociológica, também não se encontrou
isenta de males e mazelas, sobretudo porque arraigada ao império
das leis, donde resultariam questões como a repetição de
fenômenos – via de regra mensuráveis estatisticamente, o retorno
do mesmo, a morte do tempo, em suma, uma ciência pouco atenta à
extrema complexidade das sociedades em suas determinações
históricas concretas. Segundo Bourdieu, ele mesmo sociólogo, o afã
durkheimiano de converter a sociologia numa ciência universitária
reconhecida, a teria dotado de uma “neutralidade” sem história. Daí
sua crítica à própria disciplina residir no fato de ter sido ela, desde
as origens, uma ciência ambígua, dissimulada e mascarada, que
teve que se fazer esquecer e se negar enquanto ciência política,
para se fazer aceitar como acadêmica (BOURDIEU, 1983, p. 38-39).
A rigor, considerando-se os limites de ambas as disciplinas, tal
como até aqui tratados, o que se destaca do convívio nem sempre
fácil entre história, sociologia e demais ciências afins, é ainda o
enfrentamento de uma questão basilar: como o mundo social é
percebido e qual a teoria do conhecimento que explica o fato de
percebermos o mundo como organizado?
Mesmo em nossos dias, tais correntes continuam se digladiando,
inter e intra-disciplinarmente. Para os objetivistas, os fatos sociais –
como as classes, por exemplo – somente podem existir na realidade
se forem passíveis de mensuração objetiva. Por certo, o conceito de
classe, nesse caso, em nada se aproxima daquele do marxismo,
sendo pensado, tão-somente, no senso comum dicionarizado.
Porém, o que está implícito nesse objetivismo é a ausência de
teoria, além da suposição de que a realidade se evidencia a partir
de indicadores, sem ser preciso buscar seus movimentos de
descontinuidade ou conflito, nem tampouco origens, rupturas ou
transformações. Já para os subjetivistas ou espontaneístas, que se
opõem às leis históricas, tendo como arma o primado da intuição ou
do sujeito, a ação/consciência é o critério organizativo dos grupos e
das sociedades, para além de qualquer preceito imanente da
história.
A grande questão, ainda mal resolvida, refere-se ao fato de que a
maioria dos conceitos – tanto no campo da história, quanto no das
demais ciências sociais – são, obrigatoriamente, conceitos
históricos, construídos a partir das necessidades desta ou aquela
polêmica, datadas em momentos historicamente bem precisos.
Entretanto, na medida em que tendem a transformar-se em
instrumentos utilizados fora e além dos contextos que os geraram,
tais conceitos acabam investidos de um valor trans-histórico. O que
a ciência parece desconhecer é que ela apenas registra, sob a
forma de leis tendenciais, a lógica característica de um certo jogo de
forças, vigente num dado momento, e não uma lei eterna.
Muitos continuam a perguntar-se em que medida essa suposta
oposição – entre Teoria do Conhecimento e Ação Política – pode vir
a ser superada. Ora, se distribuíssemos numa espécie de espaço
teórico os diferentes pensadores do mundo social, segundo as
posições por eles assumidas acerca de tais problemáticas,
perceberíamos que as respostas não são independentes.
As implicações políticas dessas cesuras ou impasses são óbvias.
De um lado, situa-se a linguagem das estruturas objetivas de
dominação, as relações de força objetivadas. De outro, está a soma
dos atos infinitesimais que produzem, ao fim e ao cabo, a
objetividade das relações sociais. De um lado, determinismo; de
outro, espontaneidade. Em suma: estamos falando de disputas,
disputas o tempo todo, seja para conservar o funcionamento das
“leis”, seja para negar tal situação ou ainda para transformá-la. Daí
sua interdependência. Falar do social, estudar o social, conhecer o
social é, queira-se ou não, falar, estudar e conhecer a totalidade e
seus conflitos, nem que sejam apenas os que atravessam o próprio
campo científico (como se este também não integrasse o social).
Retomo, pois, a indagação: será que as representações sobre o
mundo social são o simples registro de divisões que existem, de
fato, na realidade – isto é, na mente de sujeitos sociais concretos –,
ou trata-se apenas de uma construção operada mediante a
aplicação de esquemas classificatórios? Ora, os próprios sistemas
de classificação são produtos sociais e, enquanto tais, são espaços
de uma luta permanente, em que cada um tenta impor a
representação subjetiva de si mesmo enquanto representação
objetiva.
Admitindo que qualquer lei só pode ser histórica, e que inexiste
indivíduo descolado da sociedade à qual pertence, a única condição
possível de superação deste “torneio de contrários” estéril e inútil, só
pode residir na assunção de que o fato científico se conquista,
constrói e se comprova, seja na história, na sociologia ou qualquer
outra disciplina, o que implica em rechaçar tanto o empirismo – que
reduz o ato científico a uma mera prova –, quanto o
convencionalismo, que só se opõe aos preâmbulos da construção.
Dizendo de outra maneira, só pode haver história se for além de
cada um e sua descrição, enquanto partes de grupos sociais,
integrados ao processo que configurou a totalidade, com seus
momentos de conflito, de inflexão e de ruptura. De igual modo, só
pode existir sociologia/antropologia, etc. para além da lei, estando
esta inserida nos processos que a geraram, na dominação em que
eles implicam e nas ações capazes de transformar o social
enquanto um todo.
Parece-me que a única ponte capaz de demonstrar o artificialismo
das classificações que insistem em instaurar fronteiras entre as
ciências sociais reside na prática, na ação, que une o conhecimento
ao devir, o saber à transformação, para além das dicotomias
passado/presente ou ideografias/nomotetismo, posto que todas elas
são tributárias, inexoravelmente, de uma mesma base empírica.
Em nossos dias, volta-se a discutir a necessidade da
reestruturação das ciências sociais, pondo-se em xeque, com
particular ênfase, a questão do passado enquanto domínio da
história e do presente enquanto âmbito das ciências sociais. No
campo historiográfico, a multiplicação de objetos, áreas de
investigação e proposições tem dado origem a tendências
centrífugas, que respondem pela proliferação de interesses
historicistas, que parecem colidir com o projeto de síntese
integradora de antes. Segundo alguns autores, os grandes
paradigmas unificadores, que serviram ao desenvolvimento da
história e das ciências sociais como um todo, desmoronaram na
contemporaneidade, tais como o funcionalismo ou a história total.
Semelhante conjuntura tem favorecido iniciativas como a de uma
“nova” convergência entre história e sociologia, por exemplo,
estimulada pela iniciativa de Alan Burguière, em 1979. Repensando
os pressupostos das ciências sociais em seu conjunto, seu objetivo
é consolidar uma “nova” disciplina denominada sociologia histórica
do político (DÉLOYE, 1996), marcada pelo suposto retorno do
“político” à história. Para além desse retorno da política como nível
pertinente e legítimo de análise histórica –, o qual, ademais, surgiu
da conjuntura comemorativa em torno da Revolução Francesa –,
parece-me oportuno discutir a adjetivação empregada: ora se trata
de um “novo” campo do saber em vias de autonomização, ora se
trata de um ramo da história conhecido como “nova” história política
(RÉMOND, 1996). Subliminarmente, no entanto, é perceptível que,
a despeito de todo um discurso legitimador que visa à convergência,
encontramo-nos diante de outro espaço de conflitividade,
reeditando-se, de modo velado, a tênue fronteira entre sociologia –
agora histórica – e história – agora sociológica e política.
Com a melhor das intenções, os cientistas sociais envolvidos na
construção desta “nova” especialidade do conhecimento,
comprazem-se em estar superando as tensões interdisciplinares,
em nome de uma história das “profundezas do político” ou, em
outros termos, da contextualização sistemática das categorias de
análise da ciência política e da sociologia. Privilegiam-se, assim,
noções como as de trajetória e estratégia, por cujo intermédio a
sociologia histórica tentaria “restituir” a ação própria dos agentes
sociais, buscando dar conta do sentido por eles investido na história,
bem como dos contextos históricos diversos a eles impostos. Da
mesma forma, a sociologia histórica do político define-se por erigir
em seu objeto específico as próprias fronteiras flutuantes e a
autonomia, sempre contestada, do espaço político, autonomia por
eles definida como fruto da articulação complexa e dinâmica entre o
político e o social, o global e o local.
Por mais meritórias que sejam iniciativas como essa, creio
procedente tecer alguns comentários sobre ela, a começar pelo
designativo “novo”, o qual sempre sugere a superação de um “ex-
novo”, tornado “velho” em função de algo que, supostamente, o teria
esgotado e ultrapassado. Digo isso, pois, os mais incautos podem
se ver diante de algo que, à maneira do “ovo de Colombo” ou da
“reinvenção da roda”, encontra-se imerso num campo de disputas,
apesar de emergir como uma “descoberta” – quando, na verdade, a
maior parte de suas questões e pressupostos já foram
desenvolvidos anteriormente e, conquanto variando de opinião em
opinião, continuam contando com validade teórica e histórico-
explicativa.
Para tanto, remeto a dois teóricos, a meu ver, ainda insuperados –
Marx e Gramsci – que já trataram, sobejamente, da relação entre
passado e presente, ou entre ideografia e nomotetismo. O primeiro,
numa afirmação já clássica apontava que
Os homens fazem a sua própria história, mas eles não a fazem a partir de seu
próprio movimento, em circunstâncias tão somente por eles escolhidas; essas
circunstâncias lhes são dadas, transmitidas pelo passado. (MARX, 1976, p. 15)

Já quanto a Gramsci, remeto a uma citação que integra As Cartas


do Cárcere, quando o autor se indaga
A quantas sociedades pertence um indivíduo? Cada um de nós não faz esforços
constantes para unificar sua própria concepção de mundo, onde continuam
subsistindo fragmentos heterogêneos de mundos culturais fossilizados.
(GRAMSCI, 1986, p. 347)

Ora, parece-me que tentativas como esta da sociologia histórica


do político, a despeito de tentar resgatar para o espaço da
interdisciplinaridade, objetos relegados a certo desprestígio nos
campos da sociologia e da história – como os regimes políticos, as
instituições, o governo ou mesmo o Estado-Nação – transplantam
para as ciências sociais, sob o epíteto de “novo”, um conjunto de
preocupações e temáticas de há muito instituintes do campo do
Marxismo, este sim, posto no limbo do esquecimento ou, quando
muito, “pinçado” de forma pragmática, sempre que se necessita de
“argumentos de autoridade” por parte de supostos atores de
“esquerda”.
Por certo não poderia afirmar, sob pena de pecar pelo exagero,
que o próprio Marx tenha dedicado fartas páginas de sua obra à
reflexão acerca das fronteiras entre a história e ciências sociais –
até porque estas fronteiras são, para ele, inexistentes –, ou mesmo
àquela entre o político e o Estado, posto que seu principal projeto
intelectual assumiu a forma de uma de análise “econômica”.
Entretanto, é certo que Marx comungava do princípio de que os
modelos econômicos, para serem úteis à análise histórica, não
poderiam ser separados de suas realidades sociais e institucionais.
Evidentemente, ninguém é obrigado a concordar com este que foi
um dos mais expressivos fundadores do pensamento ocidental
moderno, nem com suas conclusões. Porém, negligenciar a prática
deste que, mais que nenhum outro, definiu o conjunto de perguntas
históricas para as quais são atraídos, até hoje, os cientistas sociais
é, no mínimo, uma imprudência e, no limite, uma operação – esta
sim, política – de ocultamento. E me parece ser isso que a maioria
dos estudiosos dedicados ao resgate da “história da história” ou à
consolidação de uma “Nova História Cultural”, em seus múltiplos
combates, prima por fazer: produzir uma dada amnésia.
O “desenclausuramento” das disciplinas humanas, no dizer de
Gramsci, já está dado pelo próprio princípio filosófico do
materialismo histórico, em que a linguagem interroga a filosofia,
porque a filosofia do marxismo também se erige numa crítica da
linguagem. E se Gramsci, mais que qualquer outro teórico,
desenclausura as disciplinas, é porque ele pensa e pratica a política
de forma diferente, ou seja, umbilicalmente atrelada à cultura, para
além das picuinhas acadêmicas, posto não estarmos falando de um
homo academicus, mas sim do produtor de um saber militante –
logo, político – que escreveu a maior parte de sua obra
encarcerado.
De meu ponto de vista, uma das maiores contribuições do
pensamento de Gramsci reside em sua tentativa de responder a
essas questões pela simultaneidade de duas pesquisas
habitualmente separadas: aquela sobre o Estado e aquela sobre a
filosofia do marxismo e sua relação com as massas, já que a
Hegemonia deriva da Cultura e esta, por sua vez, não prescinde da
ação dos Intelectuais, os quais não se definem por especializações
eruditas, mas sim por sua capacidade de organizar a ação política,
enquanto persuasores permanentes.
O Estado integral em Gramsci pressupõe a consideração do
conjunto dos meios de direção intelectual e moral exercidos por uma
classe sobre toda a sociedade. Por isso, o Materialismo Dialético
desencapsula as disciplinas, já que a mais abrangente e importante
delas, a filosofia – para ele a história de uma época – é capaz de
transformar senso comum em bom senso, evitando que grupos
sociais tomem de empréstimo visões de mundo elaboradas por
outrem. Sob tal perspectiva, o verdadeiro filósofo é o político, porém,
não aquele dos gabinetes partidários ou das salas universitárias,
mas sim o homem de ação, o único capaz de mudar o ambiente,
justamente, por agir.
Parece-me que, em tempos ditos “pós-modernos”, a defesa de
semelhantes pressupostos pode, na visão de muitos, assumir foros
de “caduquice” ou “assintonia”, já que o mundo social é, hoje,
concebido enquanto uma bricolage de fragmentos e distinções.
Diante disso, a única unidade possível, somente emprestada pelo
conceito de capitalismo e seu imperativo totalizador, cederam
espaço a uma fragmentação integrada por múltiplas realidades
sociais, tão variadas quanto as construções discursivas tidas por
capazes de reorganizá-las. Mediante procedimentos como esses, as
próprias relações de classe, sob o capitalismo, parecem ter
“desaparecido”, subsumidas a inúmeras outras categorizações –
sobretudo a de “identidade” – perdendo, assim, sua centralidade
histórica e analítica.
O mais curioso é que os esforços empreendidos por inúmeros
historiadores contemporâneos para desagregar o conceito de
capitalismo – i.e., a noção de totalidade – convergem, quase todos,
para um denominador comum: a noção de “Sociedade Civil”, só que,
agora, transmutada em palavra “mágica”, aplicável a um sem
número de situações, desde as que a imbricam a aspirações
emancipadoras – no caso das releituras de “esquerda” –, até as que
a utilizam para promover/justificar um profundo retrocesso político.
Ambas as vertentes aferram-se à defesa das chamadas “liberdades
humanas contra a opressão do Estado” e, com isso, chegam às
raias de erigir a “sociedade civil” justamente em sentido oposto ao
de todo o esforço gramsciano: uma espécie de álibi para o próprio
capitalismo, como bem o aponta Helen Woods (1995).
O que se tem hoje, à guisa de Sociedade Civil, aponta para
mudanças teórico-políticas tão profundas, quanto dramáticas.
Vejamos o porque. Em primeiro lugar, esta nova e ressignificada
“Sociedade Civil” parece ter perdido por completo seu sentido
anticapitalista, assumindo conteúdo oposto. O conceito de
“Sociedade Civil”, hoje banalizado, é utilizado para servir a tantos
fins, que se torna difícil isolar uma só corrente de pensamento a ele
associada, ainda que em sua esteira tenham surgido alguns temas
recorrentes.
De uma maneira geral, a noção de “Sociedade Civil” é hoje
utilizada para delimitar um espaço potencial de liberdade fora do
Estado onde, teoricamente, predominariam a autonomia e a
associação voluntária e plural. A ênfase atualmente conferida à
noção passou, portanto, a residir na extrema pluralidade das
relações e práticas sociais, muito embora a “Sociedade Civil”
continue sendo definida a partir de oposições dicotômicas, tais como
Estado versus espaço não estatal (em geral regulado pelo
mercado), ou ainda, “Poder Político” versus “Poder Social”, dentre
várias outras. Nesta “nova” leitura da Sociedade Civil, opera-se uma
polarização que opõe a coerção – apanágio do Estado restrito – à
liberdade e “ação voluntária” – apanágios da Sociedade Civil.
Nesta nova leitura da Sociedade Civil, opera-se uma polarização
que opõe a coerção – apanágio do Estado restrito – à liberdade e
“ação voluntária” – apanágio da Sociedade Civil.
Logo, o “atual” conceito de “Sociedade Civil” ganha nova
roupagem, celebrando a pluralidade e a diversidade contidas num
sem número de instituições e relações sociais de tipos os mais
diversos, tradicionalmente definidas como “não contempladas pelo
marxismo”, transmutando-se, através de tal expediente, numa
“noção guarda-chuva” que a tudo é capaz de abrigar, desde ONGs
até entidades filantrópicas.
Certamente, o risco que se corre com a generalização de tais
usos e abusos não é pequeno, particularmente se reparamos que
seu produto final é a redução de todo o sistema social capitalista a
um mero conjunto de instituições e relações que, para além de
dissolverem o conceito de capitalismo, diluem o próprio conceito de
classe social, legitimando-se, no mais das vezes, em nome do
“combate” ao “reducionismo economicista”, ainda e
equivocadamente, imputado ao marxismo.
O principal desdobramento de tal operação simplificadora
consiste, a meu juízo, em evitar com destreza o conceito de
totalidade ou mesmo em promover sua completa negação, em nome
de uma série de novas situações de “dominação” e de “lutas” que
seriam, segundo seus defensores, inalcançáveis e inexplicáveis a
partir do conceito de classe. O capitalismo se volatiliza, assim, numa
miríade indiscriminada de instituições e relações “de novo tipo” o
que, não somente enfraquece a força analítica do conceito de
Sociedade Civil – tal como concebido por Gramsci – como o esvazia
de sua capacidade de organizar projetos emancipatórios, despindo-
o de seu significado de forma social específica do capitalismo, de
um ponto de vista totalizante.
Encontramo-nos, hoje, diante de um sério risco teórico: o do culto
a uma “Sociedade Civil” emasculada de seu caráter transformador
ou contra-hegemônico, que vem ganhando novos adeptos qual
mancha de óleo no oceano do liberalismo. E tamanho
amesquinhamento conceitual conta com um poderoso argumento
nesta onda revisionista: a questão das “identidades sociais”,
devidamente descoladas do conceito de classe, visto como
“restritivo” e “essencialista”.
Nunca é demais alertar para o fato de que, num mundo “pós-
moderno”, as diversidades e diferenças atuam como detergentes
das universalidades e, na mesma escala em que proliferam
movimentos baseados em identidades de raça, gênero, sexo e
etnicidade, amplia-se o que hoje é denominado de “Sociedade Civil”,
noção que a tudo engloba ou engole.
O mais perturbador é que semelhante rendição ao pluralismo tem
como álibi a suposta “aspiração democrática” nele contida. Ou
melhor, uma democracia tão idealizada e frágil que não resiste ao
teste de tentar situar, dentro dela mesma, uma outra diferença, tão
denegada: a diferença de classes. Certamente este teste deitaria
por terra esta nova “Sociedade Civil”, posto ser inimaginável ter-se
diferenças de classe, sem relações de desigualdade e de poder.
Também é óbvio que a execração da centralidade da classe nas
sociedades capitalistas decorre da suposição – para muitos, uma
certeza – de que ela já foi devidamente subsumida a concepções
difusas de “Sociedade Civil” ou a um vasto conjunto de “identidades”
– plurais, múltiplas – desagregadoras da totalidade.
Tal quadro torna-se ainda mais assustador ao percebemos que os
novos desenvolvimentos teóricos que o embasam ferem,
frontalmente, o preceito doutrinário do marxismo relativo ao papel
privilegiado da classe enquanto sujeito coletivo. Porém, ainda mais
dramático é constatar que teorias incapazes de distinguir entre um
sem-número de “instituições” e “identidades”, são igualmente
incapazes de enfrentar criticamente o próprio Capitalismo,
permitindo que ele seja soterrado sob os “escombros” de tantos
fragmentos e diferenças. É doloroso constatar que as teorias ora em
voga caminham no rumo da aceitação de um Capitalismo
“expurgado” das classes, de sua exploração e suas lutas.
Por mais óbvio que possa parecer, nunca é demais reafirmar que
o Capitalismo é constituído pela exploração de classe, ainda que ele
não se resuma a um mero sistema de opressão de classe, já que
submete toda a vida social às exigências do mercado e à
mercantilização da própria vida.
Com Marx e Gramsci, aprendemos que tudo é histórico, porque
tudo é político e tudo é político, posto que cultural. Cabe, aqui,
então, a pergunta: será que o devir histórico não é, por si mesmo,
amalgamante o suficiente para nos fazer deixar de lado as disputas
pelo monopólio das classificações do mundo social, inventadas e
reinventadas pelo próprio Campo Científico, a desdobrar-se em
“novas” disciplinas? Será que a especialização da especialização,
no âmbito das Ciências Sociais, visa a agilizar a luta em prol de uma
realidade social menos injusta? Ou será que, além de “esquecido”
ou “morto”, o marxismo foi transformado em mero “gênero literário”?
Referências
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco
Zero, 1983.
DÉLOYE, Yves. Sociologie historique du politique. Paris: La
Decouverte, 1996.
GRAMSCI, Antonio. A concepção dialética da História. 9a ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1986.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 5a
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
MARX, Karl. Le 18-Brumaire de Louis Bonaparte. Paris: Éditions
Sociales, 1976.
PROST, Antoine. Douze leçons sur l’Histoire. Paris: Seuil, 1996.
RÉMOND, René (Org.). Pour une histoire politique. Paris: Seuil,
1996.
REVEL, Jacques. História e Ciências Sociais: uma confrontação
instável. In: BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique (Org.). Passados
recompostos. Rio de Janeiro: Edufrj: FGV, 1998. p. 1-22.

Docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.


CAMINHOS DA HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO:
ALGUMAS REFLEXÕES
Clarice Nunes4
Agradeço pelo convite recebido. Meu propósito nessa mesa-
redonda é apenas indicar alguns aspectos que considero
pertinentes ao debate. Desde as primeiras décadas do século XX,
estamos construindo percursos da história da educação em nosso
país que passam pela escritura de intelectuais com diferentes perfis,
desde religiosos e leigos católicos, até médicos, técnicos
educacionais, políticos profissionais e professores universitários
(NUNES, 1996). Se examinarmos as suas trajetórias, veremos que
revelam uma mudança na implicação que apresentam com relação
ao conhecimento histórico da educação e às temáticas aí presentes,
isto é, a produção desse ramo especializado da história sai
gradativamente da condição de um trabalho isolado, pontual e
oportuno em determinadas situações – sobretudo aquelas ditadas
pela formação docente em escolas normais e institutos de
educação, instituições nas quais alguns desses autores trabalhavam
e que os motivavam a lançar esporadicamente algumas publicações
nas quais se assumiam como historiadores da educação – para uma
situação, tal qual vivemos hoje, na qual essa produção está
concentrada no trabalho de equipes de pesquisa nos programas de
pós-graduação em educação e se expressa, massivamente, através
de dissertações de mestrado e teses de doutorado. A política de
qualificação do corpo docente, que também se materializa nos
concursos públicos para professores, contribui para que se
acrescentem, a essa produção, as teses de professores titulares nas
universidades públicas federais e de livre docência em
universidades públicas estaduais.
Dos trabalhos pioneiros patrocinados por instituições oficiais,
como os de Primitivo Moacyr, com o apoio do então Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos, na década de 1940, para citar
apenas um exemplo, chegamos a um movimento de organização
não apenas dentro dos programas de formação de pesquisadores e
professores, mas em instituições de âmbito nacional, como o Grupo
de Trabalho de História da Educação da Associação Nacional de
Pós-Graduação em Educação e a Sociedade Brasileira de História
da Educação, que nos congregam. Nesse movimento, fomos
elegendo problemáticas obrigatórias, revendo temas clássicos,
renovando os aportes teóricos e metodológicos, divulgando e
debatendo nossos trabalhos em eventos e publicações. Nesse
processo, produzimos modos de pensar e escrever a história da
educação, construindo nossa identidade enquanto pesquisadores.
Do século XX ao século XXI, ampliamos consideravelmente, em
número, os trabalhos de pesquisa na área, o que justificou diversos
balanços já realizados como, por exemplo, o mais recente,
publicado em 2005, sob a organização de José Gonçalves Gondra,
Pesquisa em História da Educação no Brasil.
Construímos uma tradição de pesquisa com nuanças próprias em
cada região do país e consolidamos nossa presença nas instituições
que conferem legitimidade ao nosso trabalho, o que justificou a
existência de eventos próprios, como os congressos luso-brasileiros
e/ou ibero-americanos, além de veículos específicos que promovem
a circulação entre professores e alunos dos cursos universitários, no
país, dos nossos artigos, dos livros que produzimos, apreciados em
resenhas, dos dossiês que elaboramos. Sabemos, porém, que os
trabalhos de história da educação não são apenas produzidos e
divulgados nessas instâncias. Existe toda uma produção espalhada
por outros programas de pós-graduação, de história, arquitetura,
medicina, filosofia, ciências sociais e até engenharia. A história da
educação, também, não aparece somente nas teses acadêmicas,
mas em ensaios e livros didáticos.
Os indícios de um amplo movimento de produção da história da
educação que capturei nessa exposição insistem para o fato de que
necessitamos, antes de refletir sobre as perspectivas, tema central
desse encontro, abordar, mesmo que sucintamente, aspectos de
uma herança que nos afeta (NUNES; CARVALHO, 1993). Afinal, o
grande aumento da produção, sem a atenção ao que foi e é
produzido, não tem a relevância que desejamos, como adverte
Aróstegui (2006).
A herança
A historiografia da educação no Brasil, como também ocorreu na
Europa, desde o século XIX, vai ser produzida em instituições de
formação docente – sobretudo nas escolas normais, nos institutos
de educação e faculdades de pedagogia – que refletem, na sua
organização, a autonomização do conhecimento produzido,
reproduzindo uma das faces da modernidade ocidental sem, no
entanto, abrir mão dos vínculos tradicionais questionados por essa
mesma modernidade, tais como a família e a religião. Desse ponto
de vista, a história da educação, apesar de compor o currículo de
uma escola moderna, funcionou como freio à implantação dos
valores modernos. O caráter dessa historiografia aí produzida apaga
a diferença entre empiria e reflexão, apresenta a história da
educação num continuum que remete a uma concepção de unidade,
a um tempo linear e às temáticas do pensamento educacional e das
idéias pedagógicas. Da década de 1920 à de 1960, o objetivo da
história da educação foi, sem sombra de dúvida, formar um grande
país uno e cristão.
Tudo indicava, à primeira vista, que, a partir da década de 1970,
com a relativa diversificação que a história da educação ganhava,
ao ser produzida nos programas de pós-graduação, estariam dadas
as condições para uma ruptura com o modelo anterior. Afinal, as
reflexões que denunciavam a ditadura militar colocavam o dedo, de
forma contundente, nas chagas das injustiças e das desigualdades
sociais. Não podemos esquecer que os cursos de pós-graduação
em educação foram frutos contraditórios de uma política
educacional excludente e discriminatória conduzida pelos grupos de
trabalho agenciados pelos governos militares, política essa que foi
intensamente criticada dentro desses mesmos cursos, já que o
tecnicismo que motivava a proposta de sua implantação foi abafado
pelos aportes marxistas que se tornaram hegemônicos nas
investigações de cunho sociológico e histórico, numa clássica
performance em que a criatura atacava o criador. No entanto, a face
oculta desse processo ia tecendo uma outra teia, uma espécie de
conversão que Michel de Certeau (1994), ao realizar uma espécie
de arqueologia das representações da credibilidade, mostrou que
ocorreu na França, quando as organizações políticas, sobretudo os
partidos de esquerda, tomaram o papel das igrejas enquanto
lugares das práticas crentes. Embora de uma maneira velada, em
alguns importantes programas de pós-graduação em educação, nos
maiores centros urbanos do país, certos doutorandos, não
suportando a pressão da atmosfera acadêmica, acabaram omitindo
certos autores lidos, em suas apresentações bibliográficas, o que se
manteve como uma espécie de segredo partilhado apenas entre
aqueles pares com os quais se mantinha estreita relação de
confiança.
Essa conversão das crenças só se tornou possível por uma
apropriação dogmática e empobrecedora do marxismo, que usou a
história da educação como uma espécie de arma para produzir
consciências críticas. Se no ponto de partida existe uma
incompatibilidade entre o materialismo marxista e a fé religiosa dos
cristãos, a moral cristã plenamente vivida é diferente, mas não
antagônica, a uma ética revolucionária comunista praticada. Já tive
oportunidade de aprofundar essa discussão em artigo publicado na
Revista Brasileira de Educação (1996). Um pouco antes do período
da distensão da ditadura militar, a Igreja católica no Brasil ousou
penetrar racionalmente na cultura, usando as ciências humanas e
sociais para realizar uma crítica à sociedade, através dos seus
movimentos pastorais. É claro que não foi só a Igreja católica que
fez essa apropriação. Organizações ligadas às denominações
protestantes também a fizeram, através de convênios que levaram
pesquisadores brasileiros a serem formados no exterior, e que
acabaram escrevendo, em suas teses, uma história da educação
calcada em macro-explicações e interpretações propostas pela
sociologia do desenvolvimento latino-americano.
Nas décadas de 1980 e 1990, uma leitura simplificadora do
marxismo predominante nos cursos de pós-graduação em educação
foi responsável por uma história da educação que desprezou a
empiria, conceptualizou os objetos de estudo, sem antes tê-los
efetivamente estudado, e usou a fé na educação como símbolo do
poder de intervenção no domínio das consciências. Em outras
palavras, em alguns programas de pós-graduação em educação, o
paradigma marxista funcionou como tese integradora, que substituiu
o suporte perdido da onipresença da divindade. A abertura
democrática e a insatisfação com o conhecimento produzido, com
as interpretações globais, mas mecanizadas, levou à exploração de
novos temas, fontes e aportes teóricos, revendo-se aspectos da
produção existente e abrindo caminho para outras perspectivas
historiográficas. Significaria esse arejamento um rompimento com
as marcas anteriores? Teria criado uma nova sensibilidade ou novos
territórios de pesquisa?
Sem dúvida, o financiamento das instituições de fomento aos
programas, a ampliação dos quadros da pós-graduação em
educação, a articulação de redes de pesquisadores através de
instituições parceiras em nível nacional e internacional tiveram o
mérito de ir congregando esforços direcionados para o crescimento
quantitativo e qualitativo da nossa produção. Foi sendo gestada,
sobretudo no interior do Grupo de Trabalho de História da Educação
da ANPEd e dos estágios de intercâmbio de pesquisadores da área,
a organização de um campo, que hoje encontra-se estruturado e
consolidado.
Apesar das marcas da herança que apresentei não terem
desaparecido de todo, conseguimos forjar um outro consenso: o de
que a história da educação, que discute o sentido dos processos de
socialização e humanização via instituições e práticas educativas,
não pode deixar de levar em conta o caráter de comunicação que
caracteriza o gesto educativo, mergulhado numa cultura que
comporta códigos, códigos que orientam comportamentos e
traduzem políticas sociais demandadas pela sociedade e gestadas
no interior das organizações civis ou do próprio Estado, assim como
não pode ignorar os agentes históricos e a construção das
identidades de grupos, profissionais ou não.
As perspectivas
Se dermos uma simples olhada (não tive a pretensão de realizar
nenhum balanço), por exemplo, na Revista Brasileira de História da
Educação, podemos ter uma dimensão dos nossos avanços que, de
certa forma, espelham os rumos da pesquisa nos programas de
pós-graduação no país. Nessa publicação, aparecem desde
reflexões sofisticadas sobre arquivos escolares e tipos de fontes
(cartas, fotografias, diários), sobre o que revelam e silenciam, até
revisões elaboradas de temas e documentos clássicos da área, a
análise apurada da circulação dos modelos educativos na relação
entre educadores brasileiros, europeus e americanos, a abordagem
da relação entre tempos sociais e escolares, as relações entre a
história cultural e a história da educação. Há, ainda, uma sensível
renovação no tratamento da história das instituições e práticas
educativas, da formação docente e das representações desse ofício,
além da problematização da história da educação a partir de
questões de gênero e questões étnicas. Esses são alguns exemplos
capazes de evidenciar que, em praticamente duas décadas, fizemos
uma espécie de virada que se deve à atuação generosa (se bem
que também impulsionada pelas instâncias avaliativas dos
programas de pós-graduação) de toda uma nova geração de
historiadores da educação, que também ajudei a formar, como
alguns dos meus colegas aqui presentes, diretamente como docente
ou participante de bancas de exame.
Se tivemos conquistas, foi basicamente porque aprendemos a
interrogar a educação de uma outra maneira em nossos trabalhos,
liberando a reflexão dos modelos interpretativos constituídos,
criando uma inquietação intelectual que desenha e redesenha o
objeto de estudo, lendo de modo interessado os autores escolhidos,
sem aplicar de forma mecânica chaves interpretativas aos
problemas identificados. Aprendemos a trabalhar no horizonte dos
possíveis, já que as possibilidades parecem nos ensinar mais do
que a história reduzida ao que prevaleceu, trazendo para o primeiro
plano a responsabilidade das ações humanas e de suas
conseqüências. Já não tratamos mais a educação como mero
reflexo da ação política e, apesar de todas essas inegáveis
conquistas, não seria pertinente repousar nelas. Podemos – com o
intuito de promover o debate – apontar alguns desafios que surgem
como perspectivas possíveis, a médio prazo, para a produção na
área.
Do ponto de vista do locus da produção, sobressai a
reorganização dos programas de pós-graduação, a partir dos
critérios de avaliação da CAPES, dentre os quais, a exigência da
diminuição de prazos, para elaboração de dissertações e teses,
acaba afetando as condições da produção na área e suas
repercussões são incisivas sobre o processo de seleção. Acredito,
se se deseja cumprir os prazos, que cada vez menos serão aceitos
candidatos sem alguma experiência prévia em pesquisa histórica,
como ocorria há alguns anos, quando não era incomum a iniciação
dos estudantes nesse tipo de trabalho nos cursos de mestrado e até
mesmo de doutorado. Reforça-se a necessidade de cultivar e
ampliar o trabalho de iniciação científica junto aos cursos de
graduação em educação, como possibilidade de detectar e cultivar
talentos que se sintam atraídos para os cursos de pós-graduação
stricto sensu. O desafio será cada vez mais compatibilizar projetos
individuais e coletivos, sem cair na armadilha da competição
impiedosa ou no atendimento exclusivamente pragmático às normas
e procedimentos de avaliação, o que retiraria a força propulsora das
nossas investigações.
Do ponto de vista da produção do conhecimento, as direções
inovadoras da historiografia da educação ainda disputam terreno
com as direções tradicionais, mas tudo indica, depois de
desestabilizadas essas últimas, que a cristalização de algum novo
modelo, além de não desejável do meu ponto de vista, seja menos
provável, dada a intensidade das trocas acadêmicas que se
multiplicam, mas que também vêm ocasionando certo aligeiramento
do debate entre pares. As mudanças que a história da educação
conheceu nas últimas décadas foram, também, provocadas pela
influência das contribuições inovadoras das ciências humanas e
sociais, sobretudo da história, sem esquecer da antropologia e da
sociologia. Basta lembrar o quanto têm influído, nas interpretações
correntes das instituições escolares e dos processos de
escolarização, as concepções sociológicas de forma escolar,
habitus, poder simbólico, dentre outras, ou as contribuições da
história cultural nas pesquisas sobre a história da leitura e da
escrita, dos livros e da alfabetização.
A multiplicação de trabalhos sobre temas comuns em várias
partes do país como, por exemplo, a modernidade pedagógica,
pode estimular, a partir da pluralidade de fontes e de textos de
fôlego já existentes, análises refinadas que evidenciem, pela
comparação, a singularidade dos processos de escolarização
relacionados aos processos de urbanização numa mesma região ou
em regiões diferentes, contribuindo, assim, para expurgar das
interpretações a homogeneização violenta dos espaços sociais e
culturais e o esmagamento de tempos e experiências históricas
diferentes. Esse movimento pode trazer à tona, com maior clareza,
o processo contraditório de gestação do moderno, e captar com
certo detalhamento as aproximações e afastamentos entre os
modos de fazer educação escolar no Brasil.
Suspeito que haverá uma atenção maior para estudos que lancem
luz sobre situações educativas não-escolares, e que ainda não
foram suficientemente valorizadas, sobre as culturas e sujeitos
regionais e sobre os processos de apropriação locais de políticas
educacionais nacionais. O foco nas trajetórias de sujeitos, grupos e
comunidades em temporalidades próximas e nos sentidos que
atribuíram ao que viveram, pode modular a historiografia da
educação brasileira que, ainda hoje, permanece aglutinada em
alguns dos grandes centros urbanos do país. Nesse sentido, é
oportuno advertir para a necessidade de dar visibilidade, nas
publicações nacionais, à produção de uma historiografia fluminense
de educação que, rarefeita e dispersa, é obnubilada pelos estudos
que se concentram sobre a cidade do Rio de Janeiro, capital do
estado.
Creio que a renovação da nossa área talvez passe menos pela
adoção de novos paradigmas historiográficos e mais pela mudança
de caráter temático. Um exemplo dessa afirmação está explicito
num número especial da Revista Brasileira de Educação (2000), que
organizei com os professores Antonio Flávio Moreira e Maria Alice
Nogueira, tendo em vista as comemorações dos “500 anos de
Brasil”. Esta publicação simultaneamente se opunha e
complementava uma outra publicação anterior, que comemorava os
500 anos de educação escolar no país, organizada por Luiz Antonio
Cunha, Dermeval Saviani e Marta Maria Chagas de Carvalho
(2000). Neste segundo número, os organizadores justificavam a
centralidade da educação escolar, pelo fato de que a escola, a partir
da época moderna, acabou se tornando a forma principal e
dominante de educação, e o número foi organizado a partir dos
níveis básicos em que foram se organizando os sistemas de ensino
nos diferentes países, através das histórias da educação infantil, da
escola primária, da escola secundária, de formação docente, da
universidade, do ensino industrial e manufatureiro e da
escolarização de jovens e adultos.
No número que organizamos, justificávamos nossa proposta pelo
propósito de repensar a memória construída e celebrada na herança
pedagógica, com o intuito de nos apropriarmos dela de uma outra
forma, ou seja, a partir dos desafios do presente. Entendíamos que
a crise da instituição escolar estaria, também, denunciando a nossa
crise de compreensão dos processos de transmissão e apropriação
dos saberes, que passa pela escola, mas não exclusivamente por
ela. Nosso movimento foi o de operar o descentramento da
instituição escolar para que, na tessitura que cruza a cultura, a
história e a pedagogia, pudéssemos realizar uma reflexão mais
ampla dos processos educativos e até surpreender, através dela, a
instituição escolar em ângulos que nos oferecessem uma
perspectiva matizada dos seus problemas. Privilegiamos vozes não
reconhecidas, desqualificadas ou silenciadas pela nossa memória e
pelas políticas educacionais: as crianças, as mulheres, os índios, os
negros, os imigrantes, os trabalhadores foram tratados como
sujeitos de fazeres, saberes e sentidos. Usamos relatos de
viajantes, livros didáticos, romances, ao lado de periódicos e livros
de ciências humanas e sociais, e o que notamos numa visão de
conjunto dos textos produzidos é como certas questões se cruzaram
na trama da constituição de diferentes objetos.
Não foi por acaso que o feminismo, como movimento de
educação política da mulher, que buscava sua participação na
esfera pública e ganhava consciência dos problemas sociais,
reapareceu num feminismo negro, quando se discutia estratégias
educativas que criticavam a exclusão de negros pobres em nossa
sociedade. Ou, ainda, que diferentes estratégias de organização e
afirmação criassem associações culturais das quais faziam parte
propostas de mobilização dos jovens, o jornalismo militante e
projetos de educação que reapareciam, quer se tratasse da questão
das mulheres, dos negros, dos índios ou dos imigrantes. Não foi,
também, por simples coincidência que, quando o foco foi dirigido
para políticas públicas, também entraram em cena os dispositivos
pedagógicos, como os diários de classe, a confecção e o uso de
materiais didáticos, práticas de leitura e escrita e formação docente.
O que apareceu com o descentramento escolar no entremeio das
discussões propostas pelos artigos foi uma escola plural, assumida
por organizações militantes, lideranças laicas e/ou religiosas, ou
mesmo associações de pais, que chamaram a si a tarefa de educar
e escolarizar as gerações mais jovens. Emergiram escolas com
estratégias autoritárias de controle sobre a população trabalhadora,
com práticas pedagógicas violentas de despersonalização, como no
caso das escolas paulistas para menores infratores e órfãos, ou
estratégias inovadoras como as escolas da floresta. Os
testemunhos reunidos, de viajantes, literatos, pensadores,
educadores e divulgadores da cultura, obrigaram-nos a interrogar as
formas de classificação voltadas para nós mesmos e para os outros
como exercício de poder, de reconstrução de uma atmosfera mental,
de produção de representações de mundo e convenções
autorizadas da qual partilharam (ou não) Brasil e Portugal. Os
artigos traziam novas informações, mas, sobretudo, novas
perguntas. As bibliografias funcionaram como bússolas para leituras
de complementação e enriquecimento.
Os dois números especiais sobre história da educação sinalizam
não só o vigor que ganhou o Grupo de História da Educação dentro
da ANPEd, mas também a virada na produção que já se desenhava
no final da década de 1990, e que passou a trabalhar com a
perspectiva de que ação e estrutura são realidades co-implicadas.
Revelam que a geração da qual faço parte como pesquisadora, ou
pelo menos boa parte dela, renunciou à ilusão que reduzia os
processos educativos a processos escolares, ousou penetrar em
territórios alheios, entendendo que a compreensão histórica da
educação e da pedagogia é fruto de esforços provenientes de
diálogos interdisciplinares que permanecem ainda mais fortes no
desejo do que na prática. O que buscamos hoje, assim penso, é
menos um paradigma global de compreensão e mais a construção
de estratégias de pesquisa cuja fidelidade se reporta às
características e necessidades da construção dos nossos objetos, e
não exclusivamente às teorias que abraçamos.
A historiografia da educação é produzida a partir de operações
intelectuais e de convenções dos grupos de pesquisadores. Sua
tendência é ampliar-se, e de forma não-linear, entre avanços e
recuos, mas buscando o trabalho com os matizes, o que nos leva a
transitar entre a necessidade de construção de novas hipóteses,
exige a abertura da discussão em várias frentes e a sua
sustentação, o que não significa imposição. Não pretendi fazer
qualquer inventário da historiografia da educação ou predizer seu
futuro, mas, de um ponto de vista mais modesto e tático, perceber
algumas direções numa rede que não paramos de tecer, fios que
puxei para não me perder no labirinto da diversidade. Ao tentar
alinhavar essas idéias lembrei-me o tempo todo das saborosas
aulas do mestre Leandro Konder, sobretudo quando insistia que o
novo não se afirma sem a luta contra o velho. Esse conflito de idéias
entre as gerações, e dentro de uma mesma geração, é inevitável na
abertura das interpretações consolidadas e na criação de uma
atmosfera intelectual instituinte.
Referências
ARÒSTEGUI, J. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP:
EDUSC, 2006.
DE CERTEAU, M. Artes de fazer: a invenção do cotidiano.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
GONDRA, J. G. (Org.). Pesquisa em história da educação no Brasil.
Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
NUNES, C.; CARVALHO, M. M de C. Historiografia da educação e
fontes. Cadernos ANPEd, Campinas, SP, n. 5, set. 1993.
NUNES, C. Ensino e historiografia da educação. Problematização
de uma hipótese. Revista Brasileira de Educação, Campinas, SP, n.
1, p. 67-79, 1996.
REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, Campinas, SP, n. 14: 500
anos de educação escolar, maio/ ago. 2000a.
REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, Campinas, SP, n. 15: 500
anos: imagens e vozes da educação, set./ dez. 2000b.

Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal


Fluminense e Professora Visitante da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/São Gonçalo.
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E HISTÓRIA LOCAL
Libânia Nacif Xavier5
A inclusão de uma mesa-redonda intitulada História da Educação
e História Local no I Encontro de Pesquisadores de História da
Educação do Rio de Janeiro (I EHEd-RJ) correspondeu à
expectativa que orientou a própria organização do Encontro, qual
seja a de dar um primeiro impulso em prol da organização do campo
de pesquisa em história da educação no estado, reunir e socializar
os trabalhos já existentes, apontar novas perspectivas de estudo,
conhecer o trabalho desenvolvido nas instituições de ensino e
pesquisa de interesse para a área, travar contato com professores,
pesquisadores e documentalistas, cujo interesse por conhecer e
revelar a história da educação – dentro ou fora da região em que
teve lugar o evento – propiciasse a potencialização dos esforços já
envidados nesse campo, e apontasse rumos e perspectivas a
seguir.
Assim, para compor a referida mesa, a comissão organizadora
convidou palestrantes que já tivessem exercido liderança em
atividades pautadas pelo intuito de reunir pesquisadores e divulgar
trabalhos, idéias e informações sobre a história da educação em
perspectiva regional. Com base nesse critério, nós contamos com a
participação de Maria Helena Câmara Bastos (PUCRS), Maria
Juraci Maia Cavalcante (UFC) e Luciano Mendes de Faria Filho
(UFMG). Em suas palestras, aqui reproduzidas sob a forma de
artigos, eles trouxeram a lume interessantes questões para o
pesquisador que reconhece a necessidade de ampliar o
conhecimento e aprofundar a compreensão sobre as idéias, práticas
e políticas educacionais em suas manifestações locais, isto é,
particularizadas de acordo com as especificidades das diferentes
(sub)culturas, que compõem essa totalidade aparentemente
homogênea que denominamos região ou localidade.
Luciano Mendes de Faria Filho divide o seu texto entre o relato de
experiência de alguém que tem participado da organização de
vários encontros de pesquisadores mineiros que estudam a história
da educação em sua região e a reflexão sobre a construção da
própria idéia de região. Analisa, ainda, a contribuição que a análise
crítica da categoria região pode prestar ao desenvolvimento da
pesquisa educacional. Interessante destacar que o critério
estabelecido pelo grupo de pesquisadores quanto à participação nos
Congressos Mineiros de Ensino e Pesquisa em História da
Educação define como seus integrantes aqueles que,
simultaneamente, pesquisam sobre e vivem na região.
Filiada à Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em
História da Educação (ASPHE), Maria Helena Câmara Bastos
apresenta um balanço da produção em História da Educação
proveniente dos programas de pós-graduação da região sul. No
universo analisado, o critério de pertencimento à região aparece
combinado ao interesse pelo estudo da realidade local/regional.
Porém, diferentemente do grupo mineiro, esse não parece ter
funcionado como um critério fechado, passível de excluir
pesquisadores ou estudos que, tendo sido produzidos localmente,
se voltam para a análise de questões educacionais do ponto de
vista nacional ou internacional.
Por sua vez, Maria Juraci Maia Cavalcante define a cadência de
seu texto a partir do relato da experiência de formação do Núcleo de
História e Memória da Educação (NIHME) do Programa de Pós-
Graduação da Universidade Federal do Ceará, discorrendo sobre os
primeiros trabalhos que despertaram a importância desta temática,
até chegar à descrição de sua reprodução e, conseqüentemente, do
aumento de sua produção. Destaca-se a preocupação com a
divulgação da pesquisa por meio da realização de eventos
acadêmicos, com base na regularidade (anual), na itinerância e na
interiorização pelo estado do Ceará.
Como o leitor poderá conferir, os três textos apresentam, como
ponto comum dos relatos, a organização dos encontros regionais de
historiadores da educação e, a partir destes, a perspectiva de
divulgar os estudos já existentes e, ao mesmo tempo, promover o
desenvolvimento de novos estudos sobre a história da educação em
nível regional. Como resultado, tais ações oportunizam o
intercâmbio acadêmico e a própria consolidação da área pela
articulação entre pesquisadores e instituições locais, bem como pela
valorização de temáticas particulares às respectivas regiões,
divulgando os trabalhos apresentados nessas ocasiões, tanto no
âmbito regional quanto em escala nacional e internacional.
Outro aspecto comum abrange a formação de novos
pesquisadores, bem como o estímulo ao desenvolvimento de novas
pesquisas sobre o tema. Aliam, dessa forma, ações voltadas para o
ensino e a pesquisa em história da educação, e também para as
atividades de extensão, na medida em que o próprio trabalho de
difusão acaba por atuar na formação de uma consciência histórica –
difusa ou explícita – sobre os pesquisadores do campo, com
certeza, mas, também, sobre os demais pesquisadores que
estudam a educação sob outros pontos de vista e formas de
abordagem. Tal operação ganha relevância na medida em que
contribui para legitimar as linhas de pesquisa que privilegiam o
estudo das realidades educacionais em que se encontram
instalados os programas de pós-graduação e os centros
universitários, de cultura e/ou de pesquisa. Influenciam, ainda, os
demais atores regionais que, ao tomarem conhecimento das
histórias de sua região, por meio das publicações resultantes
desses encontros, apropriam-se das experiências passadas, o que
lhes permite perceber sentido no patrimônio material e nas práticas
culturais e especificamente educacionais que lhes são afetas,
adquirindo elementos para formular um novo olhar sobre as
particularidades da cultura na qual se inserem.
No que tange às reflexões de ordem teórica, destacamos a idéia
de que a pesquisa em história da educação, em suas manifestações
regionais, deve estar aliada a uma reflexão sobre o significado da
opção por utilizar a categoria local ou regional ao lado da recusa por
trabalhar tal categoria de forma unidimensional. Pelo contrário, eles
enfrentam os riscos e abraçam a complexidade que tal opção
compreende, problematizando a questão sob vários pontos de vista.
Assim, dentre outros aspectos, Maria Helena Bastos lembra que a
opção pelo estudo da história regional representa, muito mais, uma
postura metodológica do que um recorte temático, na medida em
que oferece um contraponto a narrativas homogeneizadoras tais
como a narrativa da nação (HALL, 1997 apud BASTOS). Luciano
Mendes chama a atenção para a percepção do regional como
unidade de análise, como posição de análise e lugar epistemológico,
enquanto Juraci Cavalcante assinala a preferência pelo estudo do
regional, entendido mais como lugar de trânsito de idéias
educacionais e de ações políticas do que como unidade político-
administrativa.
Creio que a seleção de certos pontos desenvolvidos pelos
referidos autores nos permite apontar algumas perspectivas no
sentido de estabelecermos, no âmbito do Rio de Janeiro, uma ação
conjunta, com vistas a promover o avanço das pesquisas em
história da educação, aqui produzidas, bem como de potencializar
as incursões sobre o conhecimento das realidades locais que dizem
respeito ao campo de pesquisa da história da educação, em nossa
região. Como bem observaram os palestrantes, há que se fazer uso
da noção, de forma crítica e consciente, explicitando os motivos e os
artifícios por meio dos quais optamos pela posição de análise a que
estamos chamando de regional (FARIA FILHO). Ainda assim, a
recusa em se fazer um uso acrítico da noção de região –
comumente aceita como sinônimo de unidade político-administrativa
– não invalida a aceitação desse critério de definição, desde que
combinado a outras possibilidades inscritas na perspectiva de
perceber a região como lugar de trânsito de idéias (CAVALCANTE),
como lugar epistemológico (FARIA FILHO) ou, ainda, como fonte
para a análise de apropriações singulares (BASTOS), dentre outras
possibilidades, sempre que o objeto e as questões que orientam a
pesquisa requisitarem.
Com base na leitura dos textos reunidos nesta seção,
entendemos que a formulação de um programa de ações e de
estudos, a partir dos quais pretendamos desbravar a história da
educação no Rio de Janeiro, deveria passar por algumas etapas. Os
primeiros passos nesse sentido já estão em curso, embora nem
sempre de forma articulada e perceptível a olho nu. Explicando
melhor, acredito que a realização do IEHEd-RJ representa um
avanço nessa direção, como já foi dito anteriormente. Mas, também,
reconheço a existência de uma produção dispersa, formada
particularmente por teses e dissertações defendidas nos últimos
anos, cujo foco em experiências locais, no âmbito da pesquisa em
história da educação, já se faz notar.
Nesse universo, ganham destaque os estudos que se remetem à
cidade do Rio de Janeiro – ex-sede da Colônia e do Império, ex-
município neutro, ex-capital da República e atual capital do estado.
Sobre essa unidade político-administrativa – que, ao longo de sua
história, absorveu tantas funções e atributos, ocupando, ainda hoje,
certa centralidade nacional e internacional – existe uma razoável
quantidade de estudos, muitos dos quais são dotados de expressiva
qualidade. Mesmo assim, continua sendo extremamente importante
que se dê continuidade às linhas de investigação que se voltam
para esse universo, haja vista a sua complexidade e relevância.
Contudo, no que se refere à produção de estudos sobre aspectos
particulares da história da educação, tal como esta se manifesta nas
diferentes regiões culturais do estado do Rio de Janeiro, ainda há
muito para avançar. Muitas questões ainda estão à espera de novos
estudos para serem elucidadas. Dentre essas, citamos, a título de
exemplo, as seguintes: como se deu o processo de escolarização
da população nas cidades do interior do estado? E nas regiões
suburbanas? Que relações os atores escolares têm estabelecido
com as comunidades locais? O que sabemos sobre as relações
historicamente estabelecidas entre poder público e interesses
privados na história da educação fluminense? Que funções e
atribuições os professores vêm desempenhando nas diferentes
instituições de ensino da região? O que se tem esperado deles?
Seria possível reunir um banco de experiências educativas
relevantes na região? Como têm se dado a circulação e a
apropriação de idéias, modelos e práticas pedagógicas em certas
escolas da região, em épocas e em contexto particulares? Que
histórias se encontram materializadas nos prédios e nos mobiliários
escolares? Que sentidos carregam os nomes atribuídos a certas
escolas da região?
Acredito que estas e muitas outras questões ainda não foram
suficientemente exploradas. Porém, não podemos deixar de
registrar que os programas de pós-graduação em educação do Rio
de Janeiro já contam com estudos instigantes que demonstram o
interesse crescente por conhecer esse lado ainda um tanto obscuro
da nossa história. Vamos citar apenas algumas dissertações e teses
que foram selecionadas aleatoriamente e não com base em um
levantamento sistemático e abrangente.
Dentre essas, há uma dissertação de mestrado que versa sobre
os professores da Escola Normal Sarah Kubitscheh, instalada no
chamado sertão carioca, na década de 1960 (CARDOSO, 2007).
Cito, também, uma tese, depois publicada em livro, que versa sobre
a experiência da Escola Regional dirigida pela pioneira Armanda
Álvaro Alberto, na antiga região de Meriti, hoje Duque de Caxias
(MIGNOT, 2002) e, ainda, uma dissertação sobre o tradicional Liceu
de Humanidades de Campos (FAGUNDES, 2004), e mais outras
duas, uma, sobre uma escola de fábrica (OLIVEIRA, 2004) e a
segunda, sobre uma escola experimental (SANTOS, 2005),
localizadas na cidade de Nova Friburgo. Citei, apenas, aquelas
dissertações e teses que me vieram à memória, nesse momento, e
as quais eu conheço por ter tido algum vínculo com seus autores,
seja como orientadora ou como membro de banca avaliadora ou,
ainda, como parceira de reflexões. Quero, com isso, dizer que um
passo importante na organização de um campo de pesquisas sobre
a história da educação no Rio de Janeiro consiste em partir para o
levantamento das dissertações e teses em educação, defendidas
nos últimos anos, cujo foco se coaduna com a idéia de região, seja
do ponto de vista político-administrativo, geográfico, cultural ou de
qualquer outro ponto de vista aplicável a essa noção.
O estado da arte dessa produção nos indicaria as regularidades,
as vicissitudes e imprevisibilidades contidas no universo de estudos
identificados, permitindo-nos olhar para essa produção em seu
conjunto, de modo a montar um quadro coerente ou divergente –
não é possível prever – mas, de qualquer modo, indicativo das
questões mais exploradas, das lacunas a preencher, dos caminhos
a trilhar, no sentido da construção/organização de um campo de
trabalho relevante, instigante e reconhecido em sua legitimidade
acadêmica, social e política.
A partir daí, estaremos avançando para dar o passo seguinte,
mais complexo e refinado, buscando responder individual e
coletivamente às questões que se seguem: o que queremos
conhecer? Em que sentido avançar? Que orientações teórico-
metodológicas poderão melhor responder às nossas questões?
Qual seria a relevância e o impacto das pesquisas que
desenvolvemos no âmbito da história da educação e de suas
manifestações locais? Que implicações a sua divulgação pode
trazer, não só para o desenvolvimento da pós-graduação e da
legitimação da pesquisa em história da educação no interior dos
programas já existentes, mas, sobretudo, para os atores que
freqüentam as escolas da região – professores e gestores, alunos e
comunidade?
Referências
CARDOSo, Luciana Felipe. Somos semeadores: transações
identitárias na Escola Normal Sarah Kubitschek. (Dissertação de
Mestrado)-Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Fagundes, Pedro Ernesto. A reconstrução educacional: uma análise
do Liceu de Humanidades de Campos. (Dissertação de Mestrado)-
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Campos
dos Goytacazes, 2004.
MIGNOT, Ana Crhystina Venâncio. Baú de memórias, bastidores de
histórias: o legado pioneiro de Armanda Álvaro Alberto. Bragança
Paulista: EDUSF, 2002.
Oliveira, Neli Ferreira de. A educação entre fios e rendas: escola
fábrica de rendas Arp. (Dissertação de Mestrado)-Faculdade de
Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.
Santos, Pablo Silva Machado Bispo dos. O Colégio Nova Friburgo
da Fundação Getúlio Vargas: mergulhando em sua memória
institucional. (Dissertação de Mestrado)-Faculdade de Educação,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2005.

4 Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


HISTÓRIA DE EDUCAÇÃO E HISTÓRIA REGIONAL:
EXPERIÊNCIAS, DÚVIDAS E PERSPECIVAS6
Luciano Mendes de Faria Filho7
Imagino que o convite para participar desta mesa-redonda deve
ter como “suporte” o fato de eu participar, junto com vários outros
colegas, da organização dos Congressos Mineiros de História da
Educação, o último dos quais, o IV, teve lugar, muito recentemente,
na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Se essa circunstância, a experiência de organizar congressos
parecidos com este, me ajuda a entender o convite, não me autoriza
a responder sobre o que falar, já que não poderia apenas “relatar a
experiência”, e numa mesa em que eu me sabia acompanhado de
duas colegas cuja reflexão sobre o tema é notória.
Para recobrar um pouco o conforto, comecei a pensar nas
questões que sempre estiveram presentes na organização dos
nossos diversos congressos e que pudessem ter algum interesse
aqui. Assim, dentre as minhas (pessoais) reduzidas opções, dentro
de um tema tão vasto, além de fazer um pequeno relato de
experiência, resolvi aventurar-me, não sem receio, a uma breve
reflexão sobre a “questão” do regional na pesquisa em história da
educação no Brasil. São, pois, estes dois tópicos que apresento a
seguir.
1ª Parte: A experiência dos Congressos Mineiros de Ensino e
Pesquisa em História da Educação
Há pouco mais de seis anos, em Belo Horizonte, um grupo de
professores, pesquisadores e estudantes de história da educação,
vinculados a diversas instituições, públicas e privadas, resolveu
organizar um evento que congregasse os interessados na discussão
sobre o ensino e a pesquisa na área. Organizava-se, assim, aquele
que seria o I Congresso de Ensino e Pesquisa em História da
Educação em Minas Gerais, evento que veio a se realizar na
Universidade FUMEC, instituição em que trabalhavam alguns dos
integrantes do grupo.
O Congresso já nascia com algumas características: em termos
de organização, seria interinstitucional; em termos de financiamento,
seria de responsabilidade das instituições promotoras; em termos de
temática, seria tão abrangente quanto os congêneres do país,
decidindo-se, ainda, que sempre haveria um eixo sobre o ensino de
história da educação, mesmo que este não aglutinasse número
expressivo de pesquisadores.
No momento de avaliação do I Congresso, as instituições
presentes, boa parte das quais de fora da capital mineira,
verificando a positividade da experiência, decidiram que os próximos
congressos teriam periodicidade de dois anos, e que seriam
sediados pelas diversas instituições de ensino superior espalhadas
pelo estado. Do mesmo modo, a assembléia final, reunindo
pesquisadores e instituições, asseverou a importância de se buscar
manter a sistemática da organização interinstitucional e o
aproveitamento dos pesquisadores das várias instituições nas
etapas de organização do evento e na realização dos mesmos.
Assim, o II Congresso foi realizado na UFU, em 2003, o III na
UFSJ, em 2005, e o IV na UFJF, em maio de 2008. De todos os
congressos resultaram anais impressos ou eletrônicos e livros com
as conferências proferidas. Há, de todos nós, a avaliação de que
tais eventos têm funcionado, não apenas como lugar de
socialização e discussão da produção, mas, também, de espaço de
inserção de novos pesquisadores na área.
No decorrer desse período, trabalhamos para que a articulação
entre os grupos de pesquisa não estivesse limitada ao congresso.
Em 2005, buscamos apoio da FAPEMIG para a realização de um
Projeto Interinstitucional de Pesquisa que reunia três instituições –
para o qual obtivemos apoio – e, no ano seguinte, do CNPq,
reunindo agora sete instituições. Este último, no entanto, apesar de
bem avaliado no mérito, não veio a ser apoiado pela agência.
No interior de ambos os projetos apresentados às agências, está
a proposta de montagem de um Portal Mineiro de História da
Educação, reunindo o conjunto das informações disponíveis sobre a
área. Este portal já está em fase adiantada de organização e
disponibiliza desde dissertações e teses até resenhas de livros e
programas de curso de história da educação ministrados nas
instituições mineiras, dentre muitos outros materiais.
A partir das discussões preparatórias para o IV Congresso,
realizado em Juiz de Fora, e da experiência do Projeto
Interinstitucional de Pesquisa financiado pela FAPEMIG, demos
início às discussões para a constituição de uma Rede de Pesquisa
em História da Educação, modalidade de articulação de grupos de
pesquisa incentivada e apoiada pela FAPEMIG. Esta rede seria uma
das responsáveis por organizar os próximos congressos, e por dar
continuidade às nossas articulações. Dentre as atividades
programadas estão, além dessas já citadas, a publicação de livros e
a organização de dossiês temáticos para os Cadernos de História
da Educação, publicação do Núcleo de Pesquisa em História e
Historiografia da Educação (NEPHE), da UFU.
2ª Parte: O regional como unidade e como posição de análise:
proposições para história da educação
Vocês devem ter notado que eu nada disse sobre quem,
especificamente, nos propusemos reunir nos Congressos Mineiros
de História da Educação. A este respeito, cabe perguntar: o que (e a
quem) um congresso como o nosso (e este aqui), de âmbito
estadual, inclui? O que (e quem) ele exclui? Esta tensão tem
perpassado todas as nossas discussões em Minas Gerais, sendo,
inclusive, objeto de análise dos grupos de pesquisa no planejamento
do próximo congresso, em 2009, na cidade mineira de Montes
Claros.
A resolução que demos a essa questão é, ainda, precária e não
agrada a todos. Temos colocado, como critério (de inclusão), que o
Congresso Mineiro de Ensino e Pesquisa em História da Educação
reúne os pesquisadores mineiros (i.e. de instituições mineiras) que
se dedicam ao estudo da história da educação mineira; algumas
vezes dirigimos o convite também àqueles que, não sendo mineiros,
se dedicam ao estudo da história da educação mineira. Assim, por
este critério, excluímos todos aqueles que, sendo mineiros, não se
dedicam ao tema, o que, de antemão, exclui, por exemplo, qualquer
pesquisador que, porventura, se dedique ao estudo de algum tema
anterior ao século XVII, por exemplo, ou, o que é pior, ao estudo de
outras “regiões” do país.
Estou tentando chamar a atenção para o fato de que, ao não
aprofundar a questão regional, no caso, o estado de Minas Gerais, a
sua utilização como critério de classificação é muito precária e
produz efeitos, no mínimo, indesejáveis. E é a partir desta
constatação, que organizei a minha exposição que, como vocês
vêem, tem a pretensão de buscar exorcizar os meus próprios
fantasmas, também!
A idéia de regional no Brasil: brevíssima incursão a um terreno
minado!
Como todos sabemos, há séculos a idéia de região tem sido
mobilizada para ajudar no entendimento do país, seja no plano da
ação política, econômica ou cultural, seja por meio do olhar que, ao
longo do século XX, as chamadas ciências humanas e sociais
lançaram sobre o país com o intuito de melhor conhecê-lo e de criar
melhores condições para as mesmas ações políticas, econômicas e
sociais citadas anteriormente.
Assim, a ação política, pelo menos desde a independência, não
pode ser entendida sem que enfoquemos a importância que a idéia
de regional adquire na retórica e no léxico daqueles que elaboram
projetos para o Brasil. A idéia de região é sempre e sempre
mobilizada como elemento produtor de identidade e, dessa forma,
como componente de uma plataforma política que continuamente
produz as “outras regiões” como inimigos a serem combatidos ou
cooptados. De toda forma, o que estou querendo salientar é que
não é possível entender os projetos de Brasil sem que entendamos
o lugar ocupado pela “região”, dentro desses mesmos projetos.
Do mesmo modo, as propostas de ações econômicas e sociais,
sobretudo no terreno do planejamento de Estado, sempre tiveram,
como elemento norteador e/ou justificador, a idéia das “diferentes
regiões do país”.
Esse viés, presente nas práticas sociais, acabou por ser assumido
sem grandes problemas, também, por aqueles que se propuseram a
entender criticamente o Brasil, fossem eles cientistas sociais ou não.
Há, é evidente, distâncias acentuadas na forma como os
“pensadores sociais” brasileiros trouxeram para dentro de suas
obras, a questão da região como um modo de entender o país. Mas
não é possível deixar de perceber que, fosse na forma mais clássica
de um Euclides da Cunha – para quem o Brasil arcaico se articulava
fortemente ao Brasil moderno, mesmo que pelo avesso, já que
denunciava que o país moderno estava de “costas” para o país
arcaico – fosse na forma não menos clássica e muito mais refinada
de um Gilberto Freire, ou, ainda, na antropologia militante de Darcy
Ribeiro, em todas elas a idéia do fracionamento do país em distintas
regiões é um pressuposto analítico que as obras acabaram por
demonstrar, reafirmar e reproduzir.
A idéia de regional parece ser mais forte – por isso mesmo, mais
estudada e, por vezes, combatida – no terreno da história e da
crítica literárias. Neste campo, há, desde o nascimento da crítica
literária no século XIX, o esforço por produzir um cânone literário
brasileiro, esforço este que se volta, também, para o entendimento
das distintas manifestações literárias nacionais, sendo um dos
traços distintivos da mesma o critério de sua ancoragem ou
abrangência regionais. Como se disse, é também neste campo de
estudos que, há muitos anos, vem-se fazendo a crítica ao uso
excessivamente largo e a-histórico da idéia do regional, chegando
mesmo à explicitação da idéia de que a chamada literatura regional
é um modo de classificação cultural inventado pela crítica literária.
Tal fato não estaria nem um pouco destituído de intencionalidades
políticas, pelo contrário, alimentaria, ele também, a elaboração e a
defesa de projetos para o Brasil.
Em texto recente sobre o tema, as professoras Dilma Castelo
Branco Diniz e Haydée Ribeiro Coelho utilizam as reflexões de uma
estudiosa da literatura norte-americana, Marta Banta, para dizer que
“os textos dos ‘homens brancos e urbanos’ são, freqüentemente,
julgados como realistas, enquanto outros, pertencentes a quem se
encontra fora dos centros de poder, isto é, os habitantes do meio
oeste, os negros, os imigrantes e as mulheres, são classificados
como regionalistas” (BANTA, 1988 apud DINIZ; COELHO, 2005, p.
431).
Parece-me que tal crítica poderia ser dirigida a boa parte da
história e da crítica literárias no Brasil que, desde o final do século
XIX, insiste em chamar a literatura que não se refere ou não é
produzida nos centros urbanos, notadamente Rio de Janeiro e São
Paulo, de literatura regional. É óbvio que não passa pela cabeça
destes sujeitos a idéia de classificar os grandes centros urbanos,
também eles, como uma região!
No terreno da educação escolar, o debate se fortalece, sobretudo,
a partir do Ato Adicional de 1834. Sendo por demais conhecidas as
diversas formas como este “Ato” comparece à escrita da história da
educação brasileira, gostaria apenas de chamar a atenção para o
fato de que ele nos remete continuamente às possibilidade e limites
de articular o regional e o nacional nos projetos de educação para o
Brasil.
Talvez a forma mais institucionalizada, mas, também, não menos
problemática, de aparecimento da questão do regional, no âmbito da
educação escolar no Brasil, seja no Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais e nos seus centros regionais articulados. Como nos
mostram vários estudos (XAVIER, 1999; FREITAS, 2001), ao
institucionalizar o centro nacional na articulação de diversos centros
regionais, Anísio Teixeira trouxe para o centro da discussão, e da
disputa, os projetos político-educacionais que, há anos, eram
acalentados e praticados em diversas unidades da Federação. A
dinâmica do centro nacional, a despeito dos esforços de Anísio, foi
dada pela dinâmica dos centros regionais, dinâmica esta que era
estabelecida por variadas formas de entender a posição do regional
na produção de um projeto nacional de educação para o país.
Nesse caso, como nos mostra Marcos C. Freitas, talvez seja
interessante lembrar que a noção de região foi convertida em
“fração de temporalidade”. Ou seja, a noção de regional acalentada
pelos centros regionais, ao termo, disseminou a idéia de que “mais
do que em regiões” o país estava dividido em “tempos históricos”
diferentes. Isso tornou-se patente em dois projetos: o de realização
dos mapas culturais (verificadores do tempo histórico de cada
lugar), e o de estudo das cidades-laboratório (exemplares de
lugares-regiões “congelados” no tempo) (FREITAS, 2001).
Esses vários modos de mobilizar, com maior ou menor
tranqüilidade, a noção de região como forma de mobilização
político-cultural e/ou como forma de entendimento do país, aqui
apontados, são apenas uma amostra de como a questão aparece
nos mais diversos domínios da vida social brasileira, inclusive na
educação escolar. Em quase todos eles, há o pressuposto de que a
região existe, a despeito da enorme diversidade de entendimento do
que seja isto e, portanto, de sua definição.
Foi, sem dúvida, Gilberto Freire quem deu ao regionalismo o
estatuto de problema social, acadêmico e político por excelência. O
“movimento regionalista”, por ele organizado, buscava mostrar o
entrelaçamento dessas várias dimensões da vida social, na
dinâmica histórica de constituição do Brasil. Buscava, no limite,
mostrar os fundamentos não apenas histórico-geográficos, político-
culturais e socioeconômicos da questão regional, mas, também,
identificar a sua ancoragem ontológica, ao chamar a atenção para a
importância da experiência regional na própria constituição do
humano. Afirmava, por exemplo, que nenhum ser humano realiza a
sua humanidade na generalidade do universal, mas sim na
particularidade de sua experiência numa região determinada.
Punha, assim, de ponta-cabeça, as perspectivas que advogavam o
limite imposto pela experiência particular à realização da vocação
universalista do sujeito humano, e fundava um plano de ação que
deveria atravessar e articular todos os domínios da vida societária
(FREIRE, 1947). Mas, também, ele partia do suposto da existência
da região, e de que a dificuldade estava em defini-la e aquilatar a
sua importância na dinâmica das sociedades, notadamente da
sociedade brasileira. É justamente essa certeza que quero aqui
problematizar.
Se entendermos que a idéia de região faz parte de estratégias de
mobilização política, de homogeneização cultural, de produção de
identidades e, por fim, de classificação social, é preciso que nós,
pesquisadores, nos aproximemos com mais cautela da mesma. Ou,
dizendo de outra forma, quando todo o léxico mobilizado para
adjetivar (e, geralmente, contrapor) as distintas “regiões”, tais como
arcaicas/modernas, rurais/urbanas, centrais/periféricas,
atrasadas/adiantadas, dentre outras, é, ele mesmo, objeto das
nossas mais apaixonadas discussões, então, o substantivo que elas
adjetivam não pode ficar de fora de nossa inquirição.
Assim, entendo que talvez devêssemos lidar com a noção de
região, não como uma realidade a qual vamos estudar, mas como o
processo e o resultado de operações políticas e, por que não,
acadêmicas, que fundam essa mesma realidade e condicionam o
modo de seu entendimento. Ou seja, a região é, ela também, uma
representação e uma prática cultural por meio das quais (e nas
quais) determinados fenômenos e posições são produzidos, os
sujeitos são identificados e ganham visibilidade e as nossas
instituições são criadas e mobilizadas para a ação social e política.
Ou seja, a região é, de certo modo, uma invenção.
Região como unidade de análise e como posição epistemológica
As reflexões até aqui expostas não advogam, no entanto, a
impossibilidade do uso da noção de região nas pesquisas em
história da educação. Mesmo porque, a história da educação é, na
maioria das vezes, um inventário de representações sobre pessoas,
tempos e instituições. Antes, defendem o uso crítico da mesma.
Nessa perspectiva, penso que, como vários colegas têm feito, a
região pode constituir-se numa boa unidade de análise em história
da educação. Entretanto, talvez seja preciso perguntar mais sobre
qual é o sentido de mobilizar a noção de região para estudar cada
objeto em particular, ou seja, seria necessário perguntar sempre e
sempre: o que torna possível falar de uma história regional de um
objeto particular, seja ele uma instituição, uma disciplina escolar, um
movimento social ou uma política educacional?
Estou advogando que, em última instância, o que torna possível a
realização de uma história regional é a maneira pela qual eu
produzo teórica e metodologicamente o meu objeto de pesquisa.
Mas, também aqui, como em todo trabalho historiográfico, o regional
será o resultado de minhas operações, e a pertinência de sua
utilização, seja como substantivo seja como adjetivo, deve ser
demonstrada.
Desse modo, não seria porque estudo Minas Gerais, ou porque
estudo uma de suas muitas “regiões” ou, sobretudo, porque estudo
uma de suas inúmeras cidades do “interior” que eu estaria fazendo
história regional, aqui entendida como história de um objeto numa
determinada região. Ou seja, apenas os critérios geográfico, político
ou, mesmo, cultural, se é que eles existem, não justificariam, per se,
o meu recorte. O objeto, a sua produção teórico-metodológica, as
suas temporalidades e dinâmicas próprias, as suas relações com os
demais fenômenos sociais e, por fim, as fontes mobilizadas
deveriam comparecer ao tribunal da história, como diria E. P.
Thompson, para produzir a justificativa da possibilidade de uma tal
história regional. Como vocês vêem, também aqui o regional é o
produto da operação historiográfica, e não o seu pressuposto.
Se é possível, hoje, entender o regional como uma unidade de
análise, não me parece fácil, à primeira vista, articulá-lo a noções,
também hoje, bastante utilizadas como circularidade cultural,
mediadores culturais, difusão e distinções culturais, dentre outras,
pois as mesmas tornam difícil, mas não impossível, evidentemente,
pensar numa especificidade regional de um determinado fenômeno
educativo-escolar.
Por essa razão, mas não apenas, eu gostaria de aludir a uma
outra possibilidade de utilização da noção de regional na história da
educação: aquela que entenderia a região como uma posição de
análise e, portanto, como um lugar epistemológico. Já são bastante
conhecidas as reflexões de Jacques Revel e de um grupo de
pesquisadores por ele reunido para debater as relações entre as
abordagens micro e macrossociais, reflexões estas publicadas no
Brasil, no livro Jogos de escala (REVEL, 1998). Na introdução,
Revel defende que as distintas abordagens não são excludentes e,
muito menos, que existiria uma superior às outras. Pelo contrário,
tais perspectivas deveriam funcionar como um jogo de escalas em
relação ao fenômeno estudado, podendo inclusive ser – as escalas
– conjugadas num mesmo esforço analítico.
Penso, desse modo, que os planos local, regional, nacional e
internacional, dentre outros, poderiam, também, ser entendidos
como posições, como escala analítica a ser produzida, justificada e
utilizada pelo pesquisador em história da educação. Assim, o
regional seria uma posição, às vezes com estatuto próprio, às vezes
funcionando como mediadora em relação às outras posições, no
desenvolvimento de nossos projetos de investigação. Nessa
perspectiva, o regional seria uma das maneiras pelas quais eu
busco entender e dar inteligibilidade a objetos que, em outras
escalas e de acordo com minhas pretensões (ou possibilidades),
não dariam o resultado que espero alcançar. A pretensão não seria
de circunscrever um objeto a uma região e mostrar a forma como
ele se realiza ali, em sua particularidade, mas qual inteligibilidade é
possível produzir para aquele fenômeno quando me disponho a
“observá-lo” de determinada posição, ou escala, em sua
universalidade.
Também aqui, o regional, ou qualquer outra posição, é processo e
produto, é método e resultado de operações epistemológicas postas
em ação pelo pesquisador. Também aqui, não podemos nos furtar
de justificar a escolha feita e qual o sentido emprestado à noção de
regional. Também aqui, devemos explicitar as implicações do uso da
noção e, sobretudo, os artifícios pelos quais estamos “inventando” a
posição a que estamos chamando de regional.
Para terminar, gostaria de falar que as duas utilizações das
noções de regional, aqui expostas, não são as únicas possíveis e,
muito menos, legítimas. Do mesmo modo, não me parece sensato
advogar que os usos das noções de regional como unidade de
análise e como posição de análise sejam excludentes e não possam
ser articulados. Pelo contrário, a maestria estaria justamente em
conseguir articulá-los e conseguir mostrar, talvez como quisesse
Gilberto Freire, que a universalidade somente se realiza na
particularidade e que o estudo desta, por sua vez, é a única forma
de compreendermos a universalidade da experiência humana. Não
seria este, justamente, um dos maiores desafios da história da
educação?
Referências
DINIZ, Dilma Castelo Branco; COELHO, Haydée Ribeiro.
Regionalismo. In: FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e
cultura. Juiz de Fora: EdUFJF; Niterói: EdUFF, 2005. p. 415-434.
FREIRE, Gilberto. Interpretação do Brasil. Rio de Janeiro: J.
Olympio, 1947.
FREITAS, Marcos C. de. História, antropologia e pesquisa
educacional. São Paulo: Cortez, 2001.
GOMES, Ângela M. de Castro. Regionalismo e centralização
política. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
REVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da microanálise.
Rio de Janeiro: FGV, 1998.
XAVIER, Libânia Nacif. O Brasil como laboratório. Brangança
Paulista: EDUSF, 1999.

O formato final e algumas das idéias expostas neste texto devem muito às sugestões de
Marcos Cezar de Freitas e de José G. Gondra, dois amigos com quem sempre aprendo
coisas boas e cujas brilhantes idéias, infelizmente, nem sempre consigo traduzir com a
devida clareza no papel. A eles o meu agradecimento especial.
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
PENSE GLOBALMENTE, PESQUISE LOCALMENTE?8
EM BUSCA DE UMA MEDIAÇÃO PARA A ESCRITA
DA HISTORIA DA EDUCAÇÃO9
Maria Helena Camara Bastos10
Introdução
A questão colocada para a mesa-redonda – História da Educação
e História Regional – é bastante complexa, pois envolve aspectos
teórico-conceituais sobre a compreensão das conexões entre o local
e o global, o particular e o geral, a parte e o todo. O tema e sua
problematização não são recentes. O campo da história tem
analisado a questão há algumas décadas, a partir de diferentes
abordagens da história: história em migalhas (DOSSE, 2003), micro-
história (GINSBURG, 1991). O processo de globalização, as
posturas de fragmentação e de uma afirmação da diversidade
cultural têm levado às diferentes teorizações dos pares acima
assinalados.
Ao colocar a temática, creio que os organizadores do evento
reconhecem
a efetiva dificuldade e complexidade da realidade e de suas representações. A
complexidade reside no fato de a história regional possuir características
universais e particulares, simultaneamente; assim, reconhecer fenômenos
históricos como regionais é muito mais uma postura metodológica do que de
recortes temáticos. (DIEHL, 1999, p. 12)

Reckziegel (1999, p. 15), ao analisar o aumento dos estudos


sobre história regional e o crescimento das pesquisas de caráter
monográfico, que decorrem do “esgotamento das
macroabordagens” identificadas a projetos iluminista-universais,
ressalta que esse avanço resulta dos estudos de história cultural,
em uma perspectiva antropológico-cultural.
Burke (2006, p. 103), ao falar sobre hibridismo cultural, nos dá
pistas para compreender as questões de estudos do regional/local.
Ao analisar a “diglossia cultural, como uma combinação de cultura
global com culturas locais”, nos permite expandir a idéia para a
compreensão da história regional como uma combinação de história
global com histórias locais, isto é, como o processo de
contextualização local da forma global. O processo de
homogeneização de uma história global, que reduz e, muitas vezes,
elimina as diversidades, leva pesquisadores a exaltar o narcisismo
das pequenas diferenças, demarcando fronteiras, que, na realidade,
se encontram em toda parte.
Analisar a questão do regional leva necessariamente à
compreensão de espaço. Santos (1977, p. 41) considera que o
espaço total e o espaço local são aspectos de uma mesma realidade – a realidade
total – à imagem do universal e de seus particulares. A sociedade global e o
espaço global se transformam através do tempo, num movimento que, embora
interessando igualmente às diversas facções da sociedade e do espaço, é o
resultado da interação entre sociedade global e espaço global e de suas diversas
funções. (apud RECKZIEGEL, 1999, p.17)

É importante ressaltar que não estou tomando espaço no sentido


geográfico do termo, mas como espaço vivido, como um sistema de
relações, como referência identitária.
A perspectiva regional visa demarcar diferenças e/ou
semelhanças com uma “narrativa da nação” (HALL, 1997, p. 56),
inventando uma tradição (HOBSBAWM; RANGER, 1997) para cada
realidade. Funciona como dispositivo discursivo para marcar
particularismos e/ou identificações globais. No entanto, devemos ter
cuidado tanto com as visões macro como micro da realidade, pois,
como nos alerta Bourdieu e Wacquant (1998, p. 17), “o imperialismo
cultural repousa no poder de universalizar os particularismos
associados a uma tradição histórica singular, tornando-os
irreconhecíveis como tais”. Essa “universalização aparente”,
“dificulta a tarefa de teorização de uma sociedade histórica
particular, muitas vezes constituída como modelo e medida de todas
as coisas” (BOURDIEU; WACQUANT, 1998, p. 18).
Caruso (2003, p. 1) analisa a circulação dos saberes escolares na
perspectiva “da história da internacionalização do saber pedagógico
e dos modelos educativos, com vistas a oficialização de uma ordem
escolar e de saberes pedagógicos modernos”. Essa perspectiva
leva a tomar o estado liberal como um “estado homogêneo
universal”. No entanto, trabalhando no campo das idéias, é
importante analisar a “produção de diferenças, a partir do processo
de recepção, interpretação e rearticulação de idéias e instituições”.
Isto é, “a tensão entre difusão generalizante do saber pedagógico e
sua apropriação de ordem específica e cultural”. Assim, os estudos
locais são fonte imprescindível para a análise das apropriações
singulares.
Na perspectiva da história cultural, devemos atentar para os
perigos de uma busca de unidade ou consenso cultural (BURKE,
2000, p. 237), que desvia, muitas vezes, o pesquisador, das
contradições sociais e culturais de cada tempo e espaço. O
importante é problematizar a tensão entre unidade e variedade, local
e global, diversidade e particularismos, fragmentação e
homogeneidade, singular e plural. Em síntese, devemos abordar a
cultura e a educação, em diferentes perspectivas temporais e
espaciais, de forma polifônica, isto é, “têm de conter em si mesmas
vários pontos de vista” (BURKE, 2000, p. 267).
Para a história da educação, os estudos na perspectiva de uma
história local intentam pontuar a diversidade de apropriações dos
discursos e das práticas educativas e escolares, de acordo com as
particularidades de tempo e espaço e as implicações econômico-
socioculturais de cada lócus pesquisado. Isto é, contribui para
problematizar o conceito de cultura escolar (JULIA, 2001), em uma
abordagem plural (CERTEAU, 1995), e das identidades culturais,
especialmente, nos estudos sobre etnia e raças (HALL, 1997).
Capistrano de Abreu (1853-1927) já afirmava que não era
possível uma história geral do Brasil, sem antes estarem
devidamente estudadas as questões regionais, pois os estudos
particularizados, embasados “na segurança dos dados”, é que
permitiriam uma compreensão da história. José Honório Rodrigues
(1969, p. 197), ao incluir a história da educação no gênero “história
cultural, intelectual e das idéias”, alertava que, até então, a história
da educação no Brasil não havia sido escrita. O que havia sido
publicado eram estudos muito gerais, que careciam de pesquisa
documental, sem referência às fontes e, muitas vezes, eram mera
compilação dos fatos. Um exemplo esclarecedor poderia ser a obra
de Primitivo Moacyr, cujos três primeiros volumes abrangem a
“Instrução no Império”, em uma perspectiva geral, e os outros três
enfocam a instrução nas províncias, em uma perspectiva regional.
Muitas das análises da produção historiográfica na área têm
privilegiado uma abordagem em dimensão nacional, geralmente
sem realizar recortes para identificar os estudos que abarquem
universos educacionais e escolares regionais/locais. O avanço da
produção em vários estados brasileiros, a partir do fortalecimento da
pesquisa, com os programas de pós-graduação, especialmente de
dissertações de mestrado e teses de doutorado, evidencia a
necessidade de analisar essa produção a partir das
“diversidades/singularidades regionais” para melhor compreender “a
leitura, a interpretação e o uso da história nas escritas recentes da
história da educação” (BARREIRA, 1995, p. 6). Cada região, cada
estado apresenta particularidades quanto aos objetos de estudo,
quanto à história, às interrogações, às predileções de pesquisa. O
conhecimento dessas singularidades é importante para nos
interrogarmos sobre a história da produção acadêmica em história
da educação. No entanto, o desafio que temos é procurar aproximar
as abordagens globalizantes com as particularidades locais; isto é,
como Geertz (1986, p. 65) alerta, sobre os usos que fazemos da
diversidade, pois a “história, tanto dos povos em separado, como
dos povos em seu conjunto e inclusive o de cada pessoa
individualmente, tem sido a história das mudanças de mentalidades”
(GEERTZ, 1986, p. 80).
Tomando como premissa que a história regional é também uma
perspectiva de análise, em termos culturais, simbólicos e
semióticos, Noronha (1999, p. 26-27) recomenda alguns cuidados
do pesquisador que adentrar nessa abordagem:
a passagem de fenômenos e de uma história social de caráter
macrossociológico não pode ser feita a partir de princípios gerais de
racionalidade; em decorrência, variáveis exógenas sofrem detrimento em
relação às variáveis endógenas;
a região se constitui à medida que se alcança um nível denso de
entrelaçamento entre laços socioculturais e laços físico-geográficos, que
são seu suporte primeiro;
a contribuição do procedimento é o da complexificação da passagem de
uma história macrossocial para o de uma história microssocial;
a abordagem pela via do regional e do local complexificam as visões do
nacional e do global, servindo de verdadeiras formulações no âmbito da
linguagem e da interpretação.

A partir dessas premissas, analiso a contribuição dos


pesquisadores sul-rio-grandenses e a atuação da ASPHE para o
incremento da pesquisa em história da educação global/local,
nacional/regional. Busco apoio na definição de Carlos (1996, p. 16)
– “o lugar se apresenta como ponto de articulação entre a
mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade
concreta, enquanto momento”. Uma história regional/local deve
estar sempre articulada, simultaneamente, com o que é universal e
com o que é particular, destacando as diferenças, a multiplicidade.
1. A história da educação no Rio Grande do Sul: a produção de
pesquisa
No estado, a produção na área tem apresentado um significativo
incremento. Isso se deve, em parte, à organização dos
pesquisadores em grupos de pesquisa vinculados aos programas de
pós-graduação em educação.11 Em Pelotas, há o CEIHE – Centro de
Estudos e Investigações em História da Educação –, centro de
documentação e pesquisa criado em 2000, e vinculado à linha de
História da educação e movimentos sociais, do Mestrado em
Educação da UFPel,12 com a coordenação do Dr. Elomar C.
Tambara, e o HISALIS – História da alfabetização, leitura, escrita e
dos livros escolares13 –, sob a coordenação da Dra. Eliane T. Peres.
Em São Leopoldo, o Programa de Pós-graduação em Educação da
UNISINOS congrega os grupos – História, política e gestão da
escola básica, sob a coordenação da professora Flávia O. Werle;
Currículo, diferenças étnico-culturais, formação do estado-nação e o
desafio da interculturalidade, sob a direção do professor Lúcio
Kreutz. Em Santa Maria, há o grupo Clio, sob a coordenação do
professor Jorge Luiz da Cunha. Em Porto Alegre, na UFRGS –
Faculdade de Educação/PPGEDU – tem o grupo Mnemosyne –
Núcleo de ensino, pesquisa e extensão em Memória, História e
Educação, sob a coordenação da professora Maria Stephanou. Na
Pontifícia Universidade Católica, a professora Maria Helena Menna
Barreto Abrahão coordena o grupo de pesquisa “Profissionalização
docente e identidade – narrativas na primeira pessoa”. As
professoras Maria Stephanou (UFRGS) e Maria Helena C. Bastos
(PUCRS) coordenam o grupo de pesquisa interinstitucional
“Histórias e Memórias da Educação Brasileira e da Cultura Escolar”
(CNPq).
Em 2002, ao realizar estudo sobre o estado da arte da produção
em história da educação no Rio Grande do Sul, localizaram-se
aproximadamente 323 títulos. Desse universo, constata-se que a
maioria é de artigos (21,6%) e dissertações de mestrado (21%),
seguidos de capítulos de livros (16,4%) e livros (14,2%). A
divulgação em eventos científicos é significativa, havendo 54
trabalhos completos publicados em anais (16,7%). Os dados
expressam uma preocupação com a difusão do conhecimento, não
ficando restrito às dissertações e teses.
Quanto à análise da produção de dissertações e teses, constata-
se que em história da educação o número ainda é pouco
expressivo: sessenta e duas (62) dissertações e vinte e duas (22)
teses, no universo total de produção dos programas de pós-
graduação (4%). As teses apresentam um percentual superior ao de
dissertações (12% do total de teses sobre 3,2% do total de
dissertações). Os novos programas de pós-graduação – UNISINOS,
UFPel e UPF – apresentam os percentuais mais altos de
dissertações defendidas na área – 12%, 9% e 15%
respectivamente. Nesses últimos anos, esse quadro apresenta
alterações decorrentes da expansão da área no âmbito regional,
nacional e internacional.
Nunes e Carvalho (1993, p. 10) dizem que, para entender como o
campo da história da educação é produzido, devemos ter duas
preocupações associadas: o conteúdo dessa história e a
organização institucional que lhe dá suporte, “já que o exame dos
produtos não exclui a análise dos lugares e das práticas que os
instituíram”. Assim, é importante o mapeamento dos grupos de
pesquisa e dos pesquisadores gaúchos, uma análise da sua
produção individual e coletiva. Quem são, afinal, os “novos”
historiadores da educação brasileira e rio-grandense no Rio Grande
do Sul? Para melhor configurar o campo de produção da pesquisa
em história da educação no Rio Grande do Sul, analisou-se quem
orienta as dissertações e teses nos programas de pós-graduação.
Para o total de 84 pesquisas, o universo de orientações esteve
assim distribuído: para 62 dissertações, identificamos 38
orientadores, o que dá uma média de 1,6 dissertações por
orientador; para 22 teses, identificamos 18 orientadores, o que dá
uma média de 1,2 teses por orientador. Para melhor visualizar esses
dados, o quadro 1 identifica os professores orientadores com maior
número de produtos na área. Nesse conjunto, cinco professores
orientadores têm atuação e produção significativa na área de
história da educação.
Quadro 1 – Professores orientadores e formação
FORMAÇÃO
ORIENTADORES D T TOTAL
GRADUAÇÃO MESTRADO DOUTORADO
Lúcio Kreutz 7 0 7 Filosofia FAFINC, Filosofia da Educação, PUC/SP, 1985.
(UNISINOS) 1966; Pedagogia, Educação.
FAFINC, 1967. Fundação
Getúlio
Vargas,
1979.
Guacira Louro 5 2 7 História, UFRGS, Educação, Educação, UNICAMP,
(UFRGS) 1969. UFRGS, 1986.
1976.
Nilton Fischer 3 3 6 Ciências Educação, School of Education-
(UFRGS) Econômicas, UFRGS, Stanford University, 1982
UNISINOS, 1970. 1977.
Maria Helena 4 1 5 História Educação História e Filosofia da
Camara Bastos UFRGS, 1972 UFRGS, Educação
1984 USP – 1994
Balduino 2 1 3 Filosofia e Educação, Educação, U.C.L, Bélgica,
Andreola Teologia UFRGS, 1985.
(UFRGS) 1977.
Tomaz T. da 1 2 3 Matemática, Educação, International Development
Silva (UFRGS) UFRGS, 1973. UFRGS, Education, S.U., Estados
1977. Unidos, 1984.
Ricardo Rossato 3 0 3 Teologia, Demografia, Demografia, U.P.I, Paris,
(UFSM) UNISINOS, 1970. U.P.I, Paris, 1978.
1976.
Elomar C. 2 0 2 Ciências Sociais, Sociologia, Educação, UFRGS, 1992.
Tambara UFRGS, 1978. UFRGS,
(UFPEL) 1981.
Jorge L. Cunha 2 0 2 História História, História medieval e
(UFSM) UFPR, moderna contemporânea,
1988. U.H., Hamburg 13, 1994.

A reflexão sobre quem produz em história da educação no Rio


Grande do Sul também permite compreender a circulação dessa
produção. Identificar quem produz e orienta na área possibilita uma
análise geracional e uma análise da modelagem teórico-
metodológica da produção de pesquisa. Ensaiando a elaboração de
uma árvore genealógica dos pesquisadores na área, poderíamos
afirmar que a primeira geração, cuja formação se processou no
início dos anos 1980, é integrada pelos professores: Lúcio Kreutz e
Guacira Louro, que desenvolveram estudos vinculados às temáticas
de gênero, etnias, raça. O segundo contingente está constituído por
aqueles que tiveram sua formação concluída na primeira metade da
década de 1990, no qual se destacam: Elomar Callegaro Tambara,
Flávia Obino Werle, Jorge Cunha, Maria Helena Camara Bastos. O
terceiro grupo é constituído por aqueles que concluíram o doutorado
nos anos finais da década de 1990 e início dos anos 2000, muitos
deles orientados por pesquisadores da primeira e segunda geração,
e que já orientam dissertações e teses em suas instituições na área:
Maria Stephanou, Eliane Peres (dissertação orientada por Guacira
Louro), Beatriz Fischer, Giana Lange do Amaral (dissertação
orientada por Elomar Tambara, tese orientada por Maria Helena
Camara Bastos), Elisa Vanti (tese orientada por Maria Helena
Camara Bastos).
2. ASPHE – Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores
em História da Educação: compartilhando estudos e
pesquisas14
Além dos grupos, cabe salientar a ação da ASPHE – Associação
Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação – na
produção e socialização do conhecimento, realizando encontros
anuais e publicando a revista História da Educação –, com artigos
de pesquisadores regionais, nacionais, internacionais, e com uma
seção dedicada a publicar documentos inéditos para a história da
educação do Rio Grande do Sul e do Brasil.
A ASPHE foi a primeira associação de pesquisadores em história
da educação a constituir-se no Brasil, desempenhando significativo
papel na criação da Sociedade Brasileira de História da Educação
(setembro de 1999), através da efetiva contribuição de seus
associados, especialmente dos professores Dr. Lúcio Kreutz e Dr.
Jorge Luiz da Cunha que compuseram, inclusive, a primeira diretoria
da SBHE.
Em 11 de dezembro de 1995, na Universidade do Vale dos Sinos
(UNISINOS, São Leopoldo), reuniu-se um grupo de pesquisadores
em história da educação no Rio Grande do Sul, para criar, em
caráter provisório, um grupo de trabalho na área, com os seguintes
objetivos: articular as iniciativas de pesquisa do campo; socializar a
produção da investigação histórica em educação no estado; abrir
canais de acesso aos diversos acervos existentes no Rio Grande do
Sul e aos bancos de dados em processo de construção; promover
encontros regionais de pesquisa em história da educação para
apresentar e discutir a produção histórico-educacional e refletir
sobre as tendências teórico-metodológicas da historiografia
educacional. A iniciativa partiu dos professores Lúcio Kreutz e Flavia
Obino Werle (UNISINOS), e contou com a presença de Jaime Giolo
(UPF), Beatriz T. Daudt Fischer (UFRGS), Julieta Beatriz Ramos
Desaulniers (PUCRS), Berenice Corsetti (UFSM), Elomar Tambara
(UFPel), Maria Helena Camara Bastos (UFRGS). Nesse encontro,
foi decidida a realização de uma nova reunião, visando à
constituição de um GT permanente.
O grupo reuniu-se em 8 de maio e em 7 de junho de 1996,
novamente na UNISINOS, com o objetivo de constituir formalmente
a associação e planejar um encontro regional de história da
educação. Nessa reunião optou-se, entre outras decisões, por
constituir uma Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em
História da Educação, que buscasse enfrentar as demandas locais
no campo da pesquisa historiográfica, com liberdade e pluralismo
ideológico e metodológico e sem vinculações diretas às redes
nacionais.
Após esses dois encontros preliminares, em 2 de setembro de
1996, em São Leopoldo, foi oficialmente fundada a Associação Sul-
Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação
(ASPHE), como sociedade civil com personalidade jurídica própria,
sem fins lucrativos, de caráter científico-cultural, atuando na área de
pesquisa em história da educação no Rio Grande do Sul. Nesse
encontro, confirmou-se, ainda, a realização do primeiro encontro de
pesquisadores da associação em abril de 1997, e criou-se um
periódico de divulgação da entidade, cujo primeiro número foi
lançado no encontro programado. O título de consenso foi História
da Educação e a editoria foi assumida pelo professor Dr. Elomar
Tambara (UFPel). A primeira diretoria eleita para o período de 1996-
1997 foi assim constituída: Dr. Lúcio Kreutz, presidente (UNISINOS);
Dr. Elomar Tambara, vice-presidente (UFPel); Drª. Flavia Obino
Werle, secretária (UNISINOS). A sede da ASPHE, nesse período,
permaneceu na cidade de São Leopoldo.
Os objetivos da ASPHE são: incentivar e realizar a pesquisa e a
divulgação na área de história da educação, prioritariamente do Rio
Grande do Sul; congregar os pesquisadores e os estudiosos na área
e manter intercâmbio com entidades congêneres. Atualmente, tem
65 associados, aproximadamente. Realiza encontros anuais de seus
sócios, com temática e sede escolhida em assembléia geral, com
indicação prévia de pesquisadores de outros estados para
comporem mesas-redondas. Já ocorreram treze encontros, que
tiveram apoio institucional das IES do Rio Grande do Sul e alguns
foram financiados por agências como FAPERGS, CAPES e CNPq.
Cada evento privilegia uma ou duas temáticas para as conferências,
painéis, mesas-redondas ou mini-cursos, e são publicados anais
com os resumos e/ou os trabalhos completos apresentados nas
sessões de comunicação das pesquisas.15
Quadro 2 – Encontros da ASPHE
Trabalhos
Encontros Ano Temática Participação
apresentados
I -São 1997/1 A pesquisa em história da educação: 20 30
Leopoldo acervos e fontes de pesquisa.
UNISINOS
II -Santa 1997/2 Memória e história da educação: - 30
Maria questões teóricas e metodológicas
UFSM
III - Santa 1998/1 A imprensa pedagógica 5 40
Maria A história da educação do Rio Grande
UFSM do Sul
IV -Santa 1999/1 Estado atual e perspectivas 14 35
Maria metodológicas para a pesquisa em
UFSM história da educação
V -Passo 1999/2 História das instituições escolares 17 40
Fundo A escola elementar e a instrução
UPF pública no século XIX
VI -Santa 2000 Educação, religião e etnia 10 21
Maria Processos educativos e identidades
UFSM profissionais
VII -Pelotas 2001 Limites e possibilidades de pesquisa no 21 60
UFPel campo da história da educação
comparada.
Perspectivas para um intercâmbio
internacional na área de história da
educação
VIII - 2002 Iconografia e pesquisa histórica 26 35
Gramado
UFRGS
IX -Porto 2003 Literatura e história da educação. 37 70
Alegre Memória e estudos autobiográficos
PUCRS
Trabalhos
Encontros Ano Temática Participação
apresentados
X -Gramado 2004 História da cultura escolar: escritas e 27 50
UFRGS memórias ordinárias
XI - São 2005 História da educação na formação do 59 80
Leopoldo educador.
UNISINOS A contribuição dos 10 anos da ASPHE
XII - Santa 2006 História, infância e educação. 51 55
Maria
UNIFRA
XIII - Porto 2007 Guardar para mirar. Acervos e história 69 120
Alegre da educação
UFRGS
TOTAL 355 656

Nos eventos da ASPHE, há participação das diversas instituições


de ensino superior do Estado,16 com significativa participação de
professores e alunos, de graduação e pós-graduação. Cabe
assinalar a participação de professores e pesquisadores de Santa
Catarina (UDESC, UNESC, UNOESC, UFSC), do Paraná (UFPR),
do Rio de Janeiro (UERJ), de Sergipe (UFSE), de São Paulo
(UNICAMP, PUCSP), muitos deles alunos de programas de pós-
graduação em instituições gaúchas.
Para a análise das temáticas dos trabalhos apresentados nos
encontros, utilizamos como referência as quatro tendências da
pesquisa em história da educação assinaladas por Nóvoa (1994, p.
91): história dos atores educativos, aqueles estudos que trazem
para o retrato histórico os alunos, os professores, as famílias etc.;
história das práticas escolares, em face de um novo conceito de
cultura, abordando a história das disciplinas escolares, a história do
currículo, a história da leitura e do livro escolar, a história da
alfabetização; história das idéias pedagógicas e a construção social
do discurso, na perspectiva de explorar a construção, reconstrução,
transmissão e recepção das idéias através do tempo e do espaço,
com atenção especial às práticas discursivas, particularmente nos
momentos de ruptura e de conflito; história dos sistemas educativos,
na perspectiva de uma educação comparada em sintonia com as
transformações do político em uma dialética entre o local e o
regional. Observa-se o privilegiamento de duas temáticas – história
dos atores educativos e história das práticas escolares –, o que
evidencia uma análise mais sintonizada com as tendências da
história cultural (BASTOS; BENCOSTTA; CUNHA, 2005, p. 247).
Cabe ainda assinalar que os trabalhos apresentados têm, como
foco central, temas e objetos ligados à história da educação do Rio
Grande do Sul, o que permite o avanço do conhecimento sobre a
realidade educacional e escolar, local e regional. No entanto,
constata-se um número significativo de estudos com temáticas em
âmbito nacional. Os poucos estudos sobre a história da educação
universal traduzem uma tendência da área de pesquisa em âmbito
nacional. Isto é, nas últimas décadas, os pesquisadores brasileiros
têm centrado esforços de pesquisa para conhecer sua realidade
local, regional e nacional.
Quadro 3 – Foco dos estudos no contexto
do Rio Grande do Sul, do Brasil ou Geral
TEMÁTICA/
RS BRASIL GERAL TOTAL
EVENTOS
1997/1 13 4 3 20
1998/1 5 - - 5
1999/1 12 2 - 14
1999/2 15 - 2 17
2001/1 13 4 3 20
2002/2 21 3 2 26
2003/1 25 8 4 37
2004/1 20 6 1 27
2005/2 40 18 1 59
2006/2 45 6 - 51
2007/2 37 26 6 69
TOTAL 246 87 22 355

O recorte temporal apresenta uma centralidade no século XX


(75%), sendo ainda limitado o interesse por pesquisas que
abarquem outros períodos da história da educação universal e
brasileira. Esse fato expressa uma tendência da produção da
pesquisa em história da educação no Brasil (GONDRA, 2005).
Quanto às fontes utilizadas, constata-se que a produção
analisada se apóia em farta documentação primária, na perspectiva
de abarcar distintas e variadas fontes de pesquisa. A idéia que
perpassa esses estudos atrela-se à posição defendida por Le Goff
(1993, p. 28-29) de que há uma “ampliação do campo do
documento, substituindo a noção fundada essencialmente nos
textos, nos documentos escritos, por uma história baseada numa
multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos,
documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas,
documentos orais, etc”. Há um predomínio de fontes impressas em
relação às fontes orais. No conjunto dos impressos, os documentos
(leis, decretos, regulamentos, relatórios, projetos, estatísticas,
questionários etc.) e os periódicos (jornais, revistas, boletins,
almanaques etc.) têm a preferência dos pesquisadores em relação
às fontes classificadas como escritas ordinárias/escritas pessoais
(diários, cartas, autobiografias etc.), imagéticas (fotos, cartões
postais). No entanto, isoladamente, os livros e manuais escolares
têm sido também objetos de estudo privilegiado pelos
pesquisadores.
O enfoque teórico é bastante diversificado e abrangente, mas
reflete os avanços que têm sido desenvolvidos na área e na
pesquisa histórica.17 De maneira geral, é possível afirmar que os
temas se direcionam para a nova história, com abordagens na
perspectiva de uma história cultural.18 Há uma interlocução com a
produção recente da área de história da educação. Por exemplo, a
presença significativa de referências à produção do professor
Antonio Sampaio Nóvoa, da Universidade de Lisboa (Portugal).
Também se destacam os referenciais teóricos embasados em
Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Paul Thompson, Roger Chartier e
outros. A perspectiva foucaultiana está muito presente nas
abordagens que enfatizam as idéias de formar, conformar, modelar
homens/ mulheres/ trabalhadores para a aceitação das relações e
das condições capitalistas de trabalho, e os espaços de resistência
e emancipação/transformação, as continuidades/singularidades.19
Cabe ainda destacar o expressivo diálogo dos pesquisadores com
seus pares da França, Espanha, Portugal, Argentina e
pesquisadores locais e nacionais, com aproximações temáticas e
teórico-metodológicas, possibilitando avançar em uma perspectiva
de história comparada da educação. A presença de autores
nacionais (Nunes; Bosi; Freire; Carvalho; Nagle e outros) e,
especialmente, do Rio Grande do Sul (Tambara; Bastos; Peres;
Werle; Louro e outros), como referência aos trabalhos
desenvolvidos nos eventos da ASPHE, permite analisar o regime de
apropriação de referenciais teórico-metodológicos e tendências de
pesquisas. Muitos dos referenciais adotados estão diretamente
vinculados à área de história da educação, como pesquisadores e
orientadores de dissertações e teses, mas também há um frutífero
diálogo com outras áreas do conhecimento.
3. A Revista História da Educação - ASPHE/UFPEL (1997-2007)20
A Revista da ASPHE/UFPel - História da Educação, de
periodicidade semestral, foi a primeira revista brasileira
especializada no gênero, cujo primeiro número foi lançado em 28 de
abril de 1997, por ocasião do I Encontro da associação, ocorrido em
São Leopoldo. Além de artigos de pesquisadores da área e
resenhas, tem uma seção dedicada a documentos inéditos para o
estudo da história da educação do Rio Grande do Sul e do Brasil.
Teve um número temático – O oral, o escrito e o digital em história
da educação –, que integrava o foco do IV Congresso Luso-
Brasileiro de História da Educação, realizado em Porto Alegre, em
abril de 2002. Apesar de não ter números temáticos, traz sempre
artigos referentes à temática dos encontros da ASPHE: Memória e
História da Educação: questões teórico-metodológicas (1997);
Pesquisa em História da Educação: perspectivas comparadas
(2001); Iconografia e Pesquisa Histórica (2002); Literatura e História
da Educação; Memória e Escritos Autobiográficos (2003); História
da Cultura Escolar: escritas e memórias ordinárias (2004); A História
da Educação na formação do educador (2006).
Atualmente, a revista tem 23 números publicados. De 1997 a
2006, editou dois números anuais – abril e setembro – com um
número médio de 200 páginas e com tiragem de 300 exemplares,
sendo que 150 são distribuídos pelas bibliotecas das universidades
e IES nacionais e internacionais. A partir de 2007, passou a ser
quadrimestral, com três números anuais, o que evidencia a pujança
da produção na área e a qualificação do periódico. A revista
mereceu uma resenha de Anne-Marie Chartier publicada na Revue
de Histoire de l´Éducation – Service d´Histoire de l´Éducation/INRP
– França (n. 77, jan./mars 1998).
Nos 23 números, foram publicados 204 artigos relacionados ao
campo da história da educação. Colaboraram com a revista 232
autores-pesquisadores, sendo 55 estrangeiros (15 da França, 11 de
Portugal, quatro da Argentina, dois dos Estados Unidos, três do
México e da Espanha, um do Canadá, um da Alemanha, um do
Chile). Do total nacional – 177 autores –, 48% são do Rio Grande do
Sul e 52% de outros estados brasileiros (São Paulo, Minas Gerais,
Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Goiás, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Ceará, Sergipe). A maioria dos pesquisadores está
ligada a IES federais, estaduais ou privadas, na condição de
professores, pesquisadores, alunos de programas de pós-
graduação. A produção publicada resulta de projetos de pesquisa
desenvolvidos em IES e/ou financiados por agências de fomento à
pesquisa e de dissertações de mestrado ou teses de doutorado
defendidas em programas nacionais ou estrangeiros. Como
periódico de uma sociedade local, há uma centralidade na
divulgação da produção do conhecimento vinculado a essa
realidade, mas que evidencia uma coexistência entre os diferentes
espaços.21
Quanto ao recorte temporal, constata-se uma centralidade dos
artigos publicados no século XIX (30%) e XX (64%), sendo ainda
limitado o interesse por pesquisas que abarquem outros períodos da
história da educação universal e brasileira. São poucos os
pesquisadores da área de história da educação que pesquisam o
período do Brasil colônia. Poderíamos destacar a questão de
acesso aos documentos, mas tal premissa não parece verdadeira,
tendo em vista os excelentes estudos produzidos pelos historiadores
de ofício.
Quanto à temática, constata-se uma maior incidência de textos
que problematizam a pesquisa na área: aspectos metodológicos,
fontes variadas, questões de historiografia. Também têm uma
presença significativa estudos sobre a formação e profissão
docente, imprensa de ensino e educação; livros e práticas de leitura;
de gênero, etnia, raça, imigração. A esses temas, segue-se uma
pluralidade de focos de pesquisa, que evidenciam um olhar
multifacetado, confirmado pela variedade de palavras-chave
adotadas. Ragazzini (1999, p. 34) considera que se
trata de perda de um centro temático unificante e definido, seja da clareza ainda
insuficiente dos quadros interpretativos. O problema da variedade das pesquisas e
da possível dispersão temática é certamente o mais aparente, mas, na realidade, o
menos relevante. O problema mais importante é aquele da necessidade de uma
historiografia e de uma teoria histórica diferenciada da educação como variável
social.

Cabe, ainda, assinalar a preocupação recente com a história do


ensino de história da educação, tema do Encontro da ASPHE, em
2005, que resultou em um dossiê temático publicado no número 19
(abr. 2006). No entanto, encontram-se lacunas importantes: ensino
rural e/ou agrícola; imprensa de alunos; agremiações discentes e
docentes; festas escolares; clubes escolares; estatísticas escolares;
manuais/livros didáticos das disciplinas do currículo, história da
adolescência, história dos processos educativos de outros setores
da sociedade etc.
Pode-se afirmar que os artigos publicados na revista da ASPHE
têm colaborado significativamente para as discussões
historiográficas, seja em relação a novas temáticas e objetos de
pesquisa, seja em relação a fontes e categorias de análise. Os
estudos têm, por um lado, recolocado em pauta algumas antigas
questões da pesquisa histórica (relação entre história e memória,
por exemplo) e, por outro, problematizado e colaborado na
construção dos novos objetos de interesse crescente da história da
educação (currículo, profissão docente, livros e manuais escolares,
leitura etc.) (PERES; BASTOS, 2001). Por exemplo, Eliane Peres
(2005) destaca a contribuição do periódico para o fomento da
produção e circulação da pesquisa no campo da história da
alfabetização, campo ainda timidamente desenvolvido no Brasil.
Nesse sentido, vale ressaltar que a revista História da Educação
tem servido como um veículo singular de divulgação de estudos no
campo historiográfico educacional e, também, uma fonte importante
de consulta dos pesquisadores da área. Em função desse trabalho,
a revista foi avaliada pelo Qualis da CAPES, em 2002, com conceito
A, e classificada como sendo de âmbito nacional. Em 2003, a revista
obteve conceito B, mantendo a classificação de nacional. Em 2007,
novamente foi avaliada como A nacional.
Finalizando
Os grupos de pesquisadores, a ASPHE e a revista História da
Educação têm sido espaços privilegiados de socialização das
pesquisas, de dinamização da produção historiográfica e de
importantes debates no campo da investigação histórica. Espaços
construídos coletivamente com a participação de todos os
associados, o que confere uma significação histórica singular.
Ao longo desse período, o grupo consolidou-se; projetou-se
regional, nacional e internacionalmente; ampliou suas propostas;
constituiu-se como espaço de acolhimento para os iniciantes –
“aprendizes de feiticeiro” – e como espaço de formação profissional.
Na consolidação dessa trajetória, os programas de pós-graduação
em educação e em história também têm significativa contribuição,
constituindo grupos de pesquisas na área e orientando dissertações
e teses.
No painel “Asphe: o que temos sido e o que queremos ser”,
realizado no XI Encontro (2005), as manifestações dos associados
foram no sentido de: retomar a promoção de mini-cursos como parte
da programação dos próximos eventos; procurar avançar na
integração dos professores de ensino de história da educação da
IES do estado com a associação; buscar um diálogo com
pesquisadores da América Latina; estabelecer diálogo com o grupo
de trabalho da Anpuh/RS que trata do ensino de história; manter um
comitê científico para seleção de trabalhos para os encontros;
buscar apoio de agências financiadoras para a promoção dos
encontros; procurar agregar, cada vez mais, todos os que trabalham
com história da educação no Rio Grande do Sul (por exemplo,
integrar as Escolas Técnicas e os Centros Federais de Educação
Tecnológica, já que desenvolvem atividades relacionadas com a
história da educação profissional); propor um projeto de
levantamento de fontes; manifestar-se, politicamente, diante da
redução do número de horas da disciplina história da educação;
promover uma ação para constituir um quadro de associados mais
permanente; criar e manter, no site, um banco de dados sobre os
trabalhos relacionados com história da educação; manifestar-se pela
preservação do patrimônio educacional e pela preservação dos
arquivos do Rio Grande do Sul (Ata nº11, de 29 de agosto de 2005).
Para finalizar, é importante problematizar: em que medida os
estudos locais, regionais, particulares têm permitido avançar a
compreensão da educação no Brasil e contribuído para a solução de
seus problemas crônicos? Qual a nossa participação e contribuição
hoje, como produtores de conhecimento sobre a educação
brasileira, para a formulação de políticas educacionais e ações
escolares? Mesmo considerando que nossas questões partem do
presente, que ressonância têm tido nossas “respostas” para a
mudança do quadro de referência? Ou, em que medida contribuem
para exaltar “narcisismos” regionais, idealizando-os, reificando e
legitimando processos de hegemonia?
Há uma sensação de que estamos fazendo uma “arqueologia” da
nossa história da educação para (re)escrevê-la e para conservá-la
tão-somente (repertório de fontes, dicionários). Viñao Frago (2003)
sinaliza para a necessidade de “mostrar o passado nos debates,
questões e problemas educativos de seu tempo; não só fazer a
genealogia do presente, mas também desvelar os usos incorretos
do passado, e, sobretudo, as apropriações, mitificações e
manipulações do mesmo”. Apropriando-me da classificação que
Viñao Frago (2003) faz das audiências possíveis para a produção
em história da educação – audiência oficial, audiência social,
audiência profissional vinculada à formação de professores,
audiência profissional da comunidade científica –, considero que
somente na última temos evidenciado um enorme avanço nos
últimos 20 anos. Isto é, temos falado para nós mesmos e, para não
ser muito dura, em alguns outros fóruns de circulação do
conhecimento (área de literatura e leitura, da história cultural,
história oral).22 Tambara (1998, p. 81) também assinala a
necessidade de um caráter teleológico da pesquisa em história da
educação, isto é, sua inserção na contemporaneidade.23 Essa
situação foi importante para a consolidação do campo de
investigação, a partir dos anos 1970, mas precisamos avançar
nossas perspectivas de circulação do conhecimento, como condição
sine qua non para o fortalecimento da disciplina e para a conquista
de novos espaços de produção de pesquisa.
Para Nóvoa (1997, p. 7), diante da especialização do
conhecimento, é necessária a compreensão global dos problemas,
não em direção a um sentido único, mas, sobretudo, na perspectiva
de reconstrução de múltiplos sentidos a partir das histórias de que
os diferentes grupos são portadores/construtores. Assim, devemos
tentar superar as polarizações entre local/nacional,
individual/coletivo, micro/macro, singular/plural, buscando circular
entre os diferentes eixos, com análises mais refinadas, em um
esforço de comparação, que partam das singularidades históricas
de cada realidade. Para Le Goff (2007, p. 112),
é por meio da comparação dos fenômenos e dos sistemas históricos que o
historiador pode aproximar, ao mesmo tempo, as generalidades que formam a
ossatura da história e reconhecer a especificidade, a originalidade de cada época,
de cada sociedade, de cada cultura.

Uma perspectiva que avance da visão dualista poderia ser a


busca de novas combinações de espaço-tempo, que atenuem a
tensão entre o global e o local, sem levar a uma fascinação com as
diferenças e com os enclaves, isto é, nem o triunfo do global nem a
persistência do local (HALL, 1997, p. 80, 106).
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FAPERGS, 2005. CD-Rom.
PERES, Eliane T.; BASTOS, M. H. C. A Associação Sul-Rio-
grandense de Pesquisadores em História da Educação – ASPHE: a
trajetória de uma rede de pesquisadores. Educação em Revista,
Belo Horizonte, n. 34, p. 221-227, dez. 2001.
RAGAZZINI, Dario. Os estudos histórico-educativos e a história da
educação. In: SANFELICE, J.; SAVIANI, D.; LOMBARDI, J. (Org.).
História da educação: perspectivas de um intercâmbio internacional.
São Paulo: Autores Associados: HISTEDBR, 1999.
RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. História regional: dimensões teórico-
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p.15-22, jun. 1999.
RODRIGUES, José Honório. Teoria da história do Brasil. São Paulo:
Ed. Nacional, 1969.
TAMBARA, Elomar. Problemas teórico-metodológicos da história da
educação. In: SAVIANI, D; LOMBARDI, J.; SANFELICE, J. (Org.).
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São Paulo: Autores Associados, 1998. p. 79-87.
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XXI: tensiones, retos y audiencia: etnohistoria de la escuela. XII
Coloquio Nacional de Historia de la Educación. Burgos, Universidad
de Burgos y Sociedad Española de Historia de la Educación, 2003.
p. 1063-1074.

Trocadilho a partir do título da entrevista com Bill McKibben, “Pense globalmente, compre
localmente” (Revista Época, p. 72-73, 23 abr. 2007).
Este estudo integra o projeto de pesquisa “Educação Brasileira e Cultura Escolar: análise
de discursos e práticas educativas (séculos XIX e XX)” (CNPq/PUCRS).
Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Presidente da
Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação.
Sobre a produção dos programas de pós-graduação na região sul, ver Bastos; Bencostta;
Cunha (2004); Gondra (2005).
O CEIHE desenvolve os seguintes projetos de pesquisa: Histórias da educação: processos
escolares e profissão docente no Rio Grande do Sul (séculos XIX e XX); Imprensa
estudantil em Pelotas: produção e circulação de jornais de alunos de escolas pelotenses;
Análise da gênese, constituição e metamorfose de uma escola de formação de
professores: a história da Fae – UFPel; Sobre a ordem imperial: educação e cultura em
Pelotas no século XIX (1845-1889); Cartilhas escolares: ideários, práticas pedagógicas e
editoriais. Construção de repertórios analíticos e de conhecimento sobre a história da
alfabetização e das cartilhas (MG/RS – 1870-1980); Repertório de livros escolares da
escola elementar no Brasil no século XIX.
Sobre a produção do HISALES, ver Cadernos HISALES, n. 1, jul./ dez. 2006.
Versão revista e ampliada do texto publicado por PERES, Eliane T.; BASTOS, M.H.C. A
Associação Sul-Rio-grandense de Pesquisadores em História da Educação – ASPHE: a
trajetória de uma rede de pesquisadores (2001).
Os anais publicados encontram-se nas referências bibliográficas desse texto.
UFRGS (Universidade do Rio Grande do Sul); UNISINOS (Universidade do Vale dos
Sinos); PUCRS (Pontifícia Universidade Católica); ULBRA (Universidade Luterana do
Brasil); UFPEL (Universidade Federal de Pelotas); UFSM (Universidade Federal de Santa
Maria); FURG (Fundação Universidade do Rio Grande), UPF (Universidade de Passo
Fundo); UNIJUÍ (Universidade do Noroeste do Estado); FAPA (Faculdades Porto-
Alegrenses); UNICRUZ (Universidade de Cruz Alta); UCPEL (Universidade Católica de
Pelotas); URI (Universidade Regional Integrada), UNILASALLE (Centro Universitário La
Salle), UNIFRA (Centro Universitário Franciscano), URCAMP (Universidade da
Campanha), UNISC (Universidade de Santa Cruz do Sul).
A obra Pensadores Sociais e História da Educação (FARIA FILHO, 2005) evidencia a
necessidade de análises que enfoquem de que forma determinados autores e/ou “os
clássicos” das Ciências Sociais têm sido mobilizados pelos pesquisadores da história da
educação.
Para Chartier (1990), a história cultural pode ser definida pela conjugação de três
elementos não dissociáveis: “uma história dos objetos em sua materialidade, uma história
das práticas nas suas diferenças e uma história das configurações, dos dispositivos nas
suas variações”.
Sobre a apropriação de Michel Foucault na pesquisa em história da educação, ver Gondra
(2005b).
Versão ampliada de Bastos (2006).
Gondra (2007), em estudo quantitativo da procedência geográfica dos autores de artigos
da Revista Brasileira de História da Educação (SBHE), mostra a centralidade na região
sudeste em uma periódico de representatividade nacional.
Como exemplo, assinalaria a recente obra de Gomes (2004), que faz referência explícita a
dois livros – Refúgios do eu (2000) e Destinos das Letras (2002) – organizados por
pesquisadores da área (MIGNOT; BASTOS; CUNHA, 2000).
Para Le Goff (2007, p.121), “toda história é uma história contemporânea. A atual é, com
certeza, o presente vivido, transformado em história, mas é também a indicação de que
fazer-se história do passado se valoriza tornando esse passado atual em relação ao
momento em que ele existiu, tal como os homens e as mulheres então o viveram e que
alguns o escreveram, mas atual também porque as conseqüências ainda mexem conosco
e estão sempre presentes, reinterpretadas à luz do presente”.
HISTORIADORES DA EDUCAÇÃO NO CEARÁ:
UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DE
PESQUISADORES
Maria Juraci Maia Cavalcante24
A experiência de formação do Núcleo de História e Memória da
Educação(NHIME) do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Ceará teve início no chão da sala de
aula, quando coordenávamos um seminário de Educação Brasileira,
no ano de 1996. Como carro-chefe da nossa proposta curricular,
esse seminário tinha na história educacional o seu eixo principal,
com base na literatura nacional já consagrada, na qual a
especificidade local estava, naquela, subsumida, faltando-nos fontes
historiográficas para um detalhamento da história educacional no
Ceará, além daquelas organizadas por iniciativa de membros do
Instituto Histórico do Ceará, como é o caso do livro de Plácido
Aderaldo Castelo, História do Ensino no Ceará, editado pelo
Departamento de Imprensa Oficial do Ceará, em 1970, e uma série
de artigos publicados em sua revista, em fases anteriores, sobre
capítulos da história colonial e o ensino jesuítico, organização das
primeiras instituições escolares no século XIX e a reforma
educacional de 1922. Afora isso, tínhamos um estudo sobre o
Sistema educacional cearense, de autoria de Joaquim Moreira de
Sousa, realizado a pedido do Centro Regional de Pesquisas
Educacionais do Recife/INEP/Ministério da Educação, em meados
do século XX.
Após esse levantamento preliminar de fontes historiográficas
locais, realizamos uma releitura da Reforma Educacional de 1922,
conhecida como Reforma Lourenço Filho, inspirada nas idéias da
Escola Nova. Através dela, salientamos a contribuição dos
intelectuais e educadores cearenses para o delineamento daquela
importante reforma da instrução pública, cuja interpretação corrente,
no nível local e nacional, considerava-a um resultado da ação
iluminada e solitária do missionário paulista. Por meio de jornais da
imprensa fortalezense da época e do arquivo privado do então
diretor da Escola Normal do Ceará, o médico e professor João
Hippólyto de Azevedo e Sá, pudemos localizar um movimento local
em prol da reforma da instrução, que antecedeu e inspirou o convite
encaminhado pelo governo estadual de Justiano de Serpa ao de
São Paulo, solicitando a vinda de um pedagogo com experiência na
reforma ensaiada ali por Sampaio Dória. Essa primeira empreitada
resultou em tese apresentada ao concurso público de professor
titular da nossa universidade, em 1998, cujos examinadores
externos foram as historiadoras Clarice Nunes, do Rio de Janeiro, e
Marta Carvalho, de São Paulo, em função da repercussão positiva
do trabalho por elas realizado e divulgado na área, por ocasião dos
encontros anuais da ANPED e publicações de circulação nacional.
Aprovada naquele exame, essa tese foi publicada sob o título João
Hippolyto de Azevedo e Sá – O Espírito da Reforma Educacional de
1922 no Ceará, pelas Edições UFC, em 2000. Crescia, ainda mais,
o nosso propósito de continuar investigando a história educacional
do Ceará, sabendo que se tratava, na realidade, de um programa de
pesquisa que necessitaria de um grupo consolidado para que
tivesse maior amplitude e continuidade.
Começamos a acolher projetos de pesquisa voltados para a área
de história educacional, nos cursos de mestrado e doutorado da
nossa Faculdade de Educação. O primeiro deles foi recebido em
1996, e concebido por Milton Ramon Pires de Oliveira, professor da
Universidade Federal de Viçosa, que resultaria na tese Formar
Cidadãos Úteis: os patronatos agrícolas e a infância pobre na
Primeira República, estudo pioneiro, publicado em 2003, pela
editora da Universidade de São Francisco. Com a orientação desse
trabalho, ficávamos com a percepção clara de que a história
educacional que precisávamos privilegiar não deveria ficar restrita
ao território cearense, vendo-o, a partir dali, muito mais como lugar
de trânsito de idéias educacionais e ações políticas do que como
unidade político-administrativa da federação brasileira.
Outros projetos de tese e dissertação, por nós acolhidos,
mostravam, também, a necessidade de sairmos a perseguir as
marcas de nossa história educacional para além da capital,
Fortaleza, que, ao ter abrigado a criação do Liceu e Escola Normal
do Ceará, no século XIX, ficara como centro das nossas atenções,
desde o primeiro momento. Em muito contribuiu para a
interiorização dos nossos interesses de pesquisa a experiência da
nossa, então, mestranda Maria das Graças de Loiola Madeira, que,
ao concluir a sua dissertação Uma incursão na memória da
educação cearense: a experiência da Escola de Aprendizes Artífices
do Ceará (1910-1918), em 1997, deixou Fortaleza, para percorrer os
sertões nordestinos, em busca de pistas sobre a ação educativa do
Padre Ibiapina. Dessa empreitada, resultou a tese Entre orações,
letras e agulhas: a pedagogia feminina das Casas de Caridade do
Padre Ibiapina – Sertão cearense (1855-1883), defendida em 2003.
Encontramos abrigo inicial no núcleo de Política Educacional do
nosso programa, onde permanecemos, nos primeiros anos, por falta
de um número maior de docentes na área. Em 2001, com a
cooperação do professor Gerardo Vasconcelos, da Faced/UFC, cuja
tese de doutorado versara sobre a memória de familiares de presos
políticos no Ceará, pudemos criar o Núcleo de História e Memória
da Educação. Contávamos já com um grupo de mais de uma
dezena de pesquisadores, quando a mestranda e historiadora
Silvana de Sousa Pinho – atraída que fora, por nossa experiência,
para tratar sobre o papel da imprensa local na reforma educacional
de 1922, e escrevia sobre Política e Espetáculo: a reforma da
instrução de 1922 através da imprensa cearense, defendida em
2004 – sugeriu, numa reunião do nosso grupo de pesquisa, que
realizássemos um encontro em que os projetos de pesquisa já
concluídos e em andamento pudessem ser apresentados e
apreciados por um público de pesquisadores das áreas de
educação e história. Realizado em 2002, no auditório da biblioteca
do Centro de Humanidades da UFC, no campus do Benfica, o I
Encontro Cearense de Historiadores da Educação teve cerca de
uma centena de inscrições e contou com a participação do
historiador Jorge Nagle, como nosso palestrante convidado e
observador externo. As palestras e as quase duas dezenas de
experiências de pesquisa dos nossos alunos de mestrado e
doutorado ali apresentados, foram reunidos no livro História e
Memória da Educação no Ceará, publicado pela Imprensa
Universitária da UFC, em 2002. O conjunto dos trabalhos rastreava
a ação do poder público e da igreja católica na edificação do
sistema educacional cearense, em Fortaleza e no interior, nos
séculos XIX e XX.
O fato de que recebíamos, em nosso grupo de pesquisa, alunos e
alunas oriundos de instituições de ensino superior das regiões Norte
e Nordeste do país, diversificava o alcance temático, temporal e
espacial de nossos estudos. Ilustrativos disso são a experiência de
dissertação de mestrado de Lucélia de Morais Braga Bassalo, vinda
do Pará, onde iniciara a sua preocupação de pesquisa, para ampliá-
la, com base na localização de um conjunto expressivo de manuais
afetos à área estudada, na Biblioteca Nacional, sobre Os saberes
em torno da Educação Sexual na primeira metade do século XX no
Brasil, defendida em 1999, e a tese de António de Pádua Carvalho
Lopes, professor da Universidade Federal do Piauí, sob o título
Superando a Pedagogia Sertaneja: Grupo Escolar, Escola Normal e
Modernização da Escola Pública Piauiense (1908-1930), concluída
em 2001.
Ao lado da orientação de dissertações e teses, procurávamos
garantir uma oferta regular de seminários e disciplinas de formação
em teoria e metodologia de pesquisa histórica, acompanhando o
debate epistemológico contemporâneo, em especial, aquele relativo
às diferenças entre Velha e nova história, História nacional e local,
Historiografia local, nacional e internacional; História educacional
comparada, Biografia e autobiografia, História e memória, Tempo e
narrativa, História de longa duração e história do presente.
Atentávamos ainda para a questão do alcance das recomendações
metodológicas contidas nos autores europeus, em face da situação
específica de conservação e uso dos nossos arquivos; da lida e
leitura das fontes de pesquisa em história, fazendo a distinção e o
entrelaçamento entre fontes escritas, orais, jornalísticas e
iconográficas. A escrita da história nos interessava sobremaneira
como etapa de consolidação de resultados e configuração narrativa
e interpretativa das pesquisas realizadas pelo grupo.
As reuniões semanais do nosso núcleo de pesquisa, como ocorre
até hoje, foram sendo perfiladas de modo a abarcar atividades
diversificadas, que envolviam apresentação e discussão de projetos
e problemas de pesquisa, palestrantes convidados, defesas de
dissertações e teses, encaminhamento de comunicações para
apresentação em encontros locais, regionais, nacionais e
internacionais; organização de nossas publicações e do nosso
evento anual. A participação e envolvimento em tantas atividades
contribuía para a formação de um sentimento de pertença grupal em
nossos pesquisadores, constituído por professores, alunos
matriculados no nosso Programa de Pós-Graduação, alunos
especiais, alunos da graduação em pedagogia e história, bem como
de ouvintes. Entre os nossos alunos, estavam professores das
demais universidades cearenses: UECE (Universidade Estadual do
Ceará), UVA (Universidade do Vale do Acaraú) e URCA
(Universidade Regional do Cariri). Com a ajuda deles, como é o
caso de José Edvar Costa de Araújo e Zuleide Fernandes de
Queiroz, pudemos partir para uma estratégia de interiorização de
nossos encontros de pesquisa, e de incentivo à abertura de novos
núcleos de pesquisa em história educacional nas citadas
universidades.
A partir do primeiro encontro, tivemos a entrada de mais dois
professores no Núcleo de História e Memória Educacional: José
Arimatea Barros Bezerra e Rui Martinho, o que nos reforçou com
relação ao aumento da oferta de vagas nas seleções anuais para o
mestrado e doutorado, bem como em potencial de trabalho.
Pudemos sentir um maior envolvimento dos nossos alunos, tanto
com a realização de suas pesquisas pessoais, como nas atividades
do próprio núcleo, mostrando-se eles mais autônomos e seguros,
fazendo-nos perceber a força pedagógica daquele evento. O II
Encontro Cearense dos Historiadores da Educação foi realizado
novamente no campus do Benfica, em Fortaleza, em maio de 2003.
Nele, houve uma duplicação do número de comunicações e de
participantes em relação ao ano anterior. O encontro teve como
palestrante convidada a professora Carlota Boto, da USP. As
palestras e comunicações ali realizadas foram publicadas no livro
Biografias, Instituições, Idéias, Experiências e Políticas
Educacionais, pelo Selo Diálogos Intempestivos, da Editora da UFC,
no mesmo ano. As comunicações se referem ao tema de pesquisa
de teses e dissertações, bem como a achados paralelos relativos à
história educacional do Ceará.
Algumas dissertações e teses desenvolvidas no nosso núcleo
naquele período, com o apoio financeiro da CAPES, CNPQ e
FUNCAP, merecem ser destacadas, a começar pela tese de
Francisca Argentina Góis de Barros, professora da Universidade
Federal de Sergipe, tratando de Pedro Américo de Figueiredo e
Melo: o pensamento educacional do artista, que veio a ser
defendida em 2006, cuja pesquisa de fontes documentais envolveu
busca no Arquivo Nacional e em Florença, na Itália, onde viveu o
protagonista enfocado, professor da Escola Imperial de Belas Artes,
no Rio de Janeiro; a tese de doutoramento de Valéria Maria
Sampaio Mello sobre a Intervenção e influência norte-americana
sobre a cultura e educação japonesa e brasileira no pós-Segunda
Guerra Mundial: o despertar da memória pela oralidade, também
concluída em 2006, que exigiu consultas a acervos documentais e
fontes orais, em São Paulo e Tóquio, no Japão. As duas teses foram
vinculadas a uma de nossas linhas de pesquisa, no caso, Educação
Comparada, e contaram com o apoio financeiro do CNPQ, FUNCAP
e de uma instituição japonesa.
Outras teses mereceriam destaque, no âmbito da história das
instituições escolares: a de Francisco Ari de Andrade, sobre O
ensino superior no itinerário político do Aciolismo: a ação
pedagógica da Faculdade Livre de Direito do Ceará, no período de
1903 a 1912, defendida em 2005; a de Zuleide Fernandes de
Queiroz, sob o título Em cada sala um rosário, em cada quintal uma
oficina: o tradicional e o novo na história da educação tecnológica
do Cariri; a de Vanda Magalhães Leitão, sobre Narrativas
silenciosas de caminhos cruzados: história social de surdos no
Ceará, ambas concluídas em 2003. Algumas dissertações de
mestrado enfocaram a história das instituições escolares mais
antigas do Ceará: o Liceu do Ceará e a Escola Normal. Francisco
Sales da Cunha Neto analisou Práticas de disciplinamento no Liceu
do Ceará, nos anos 1937 a 1945, defendida e publicada, em
Fortaleza, em 2005; Júlio Filizola Neto tratou do Liceu do Ceará e as
políticas educacionais: a desconstrução de uma referência do
ensino público (1960-1975), concluída em 2000; Maria Goreth Lopes
Pereira abordou A Escola Normal do Ceará: Luzes e modernidade
contra o atraso na terra da seca (1884-1922), finalizada em 2001; e
a de José Nunes Guerreiro, Instituto de Educação do Ceará e a
Reforma Lauro de Oliveira Lima (1958-1962), defendida em 2003.
O III Encontro Cearense de História Educacional ocorreu em
Sobral, no campus universitário da Universidade Vale do Acaraú, em
2004. Envolveu apoio integral daquela universidade em cooperação
institucional com a UFC e a Prefeitura de Sobral. Sob o tema
“Instituições, Protagonistas e Práticas”, recebeu comunicações
relativas à história educacional do Ceará e, em particular, da região
do Vale do Acarau. Contou com a presença de três palestrantes de
expressão local, regional e nacional: Francisco Sadoc de Araújo,
historiador local e criador da UVA; Maria do Amparo Borges Ferro,
uma das primeiras historiadoras da educação do Nordeste e
professora da Universidade Federal do Piauí; e José Gonçalves
Gondra, então coordenador do GT de história da educação da
ANPED. Os trabalhos ali apresentados foram reunidos e publicados
no livro História da Educação: instituições, protagonistas e práticas,
pela Coleção Diálogos Intempestivos, das Edições UFC, em 2005. A
sistemática dos encontros e livros deles resultantes possibilitaram
uma maior divulgação de nossas pesquisas, e favoreceram uma
crescente aproximação interinstitucional das universidades
cearenses e nordestinas. Em função disso, cresceu a demanda nas
seleções de mestrado e doutorado do nosso núcleo, que passou a
atrair candidatos do Ceará e regiões Norte e Nordeste. Os
encontros passaram a receber, ainda, inscrições de pesquisadores
de outras áreas, interessados em vincular as suas temáticas ao
campo da história educacional, como é o caso de Movimentos
Sociais, Currículo e Afrodescendência. Essa última faceta propiciou
aos nossos eventos uma maior abertura para questões relativas ao
âmbito da história cultural brasileira, que, além do mais, eram
necessárias para que examinássemos a educação dos iletrados,
não contemplada pela escola.
Desse período, as propostas de algumas teses merecem ser
destacadas: Educação e conservadorismo – as cartas pastorais de
Dom Aureliano Matos para a Diocese do Vale do Jaguaribe (1940-
1965), de Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Junior, concluída
em 2005; a de José Edvar Costa de Araújo, sobre a atuação da
Igreja católica na criação de instituições escolares no Vale do
Acarau; a de Josier Ferreira da Silva, que enfoca a influência da
Igreja católica na educação do Cariri; a de Júlio Filizola Neto, sobre
as idéias filosóficas e percurso biográfico do professor cearense
Farias Brito, entre os séculos XIX e XX, que estão em andamento,
ao lado de outros projetos de pesquisa. Essas investigações
mostram o papel do ensino religioso e das idéias filosóficas e
pedagógicas na edificação do meio e do sistema educacional
cearense e de sua convivência com a ação do Estado e do ensino
laico; evidenciam, ainda, a necessidade de um cruzamento de
fontes documentais e orais para a reconstrução de nossa história
educacional, quando diz respeito ao século XX.
O IV Encontro Cearense de Historiadores da Educação ocorreria
na cidade do Crato, mas, por motivos de organização política interna
da Universidade Regional do Cariri, no ano de 2005, foi realizado
novamente no campus do Benfica, no auditório da biblioteca do
Centro de Humanidades da UFC, sob a coordenação do professor
José Arimateia Barros Bezerra. Teve um volume considerável de
trabalhos e participantes inscritos e contou com a presença de um
palestrante convidado da Universidade Federal da Paraíba, o
professor Wojciech Andrzej Kuleszka. O livro do encontro ainda não
foi publicado, em razão de dificuldades de financiamento e de
reorganização interna do nosso núcleo, conforme já foi relatado no
livro História da Educação no Nordeste Brasileiro, publicado pelas
Edições UFC e organizado por José Gerardo Vasconcelos e Jorge
Carvalho do Nascimento, que reuniu as palestras do V Encontro
Cearense de Historiadores da Educação. Este evento foi realizado
na cidade serrana de Guaramiranga, em 2006, juntamente com o I
Encontro Norte/Nordeste de História Educacional, a pedido da
Sociedade Brasileira de História da Educação. Nele, retomamos o
propósito de itinerância e interiorização que nos movera quando de
sua realização em Sobral, dois anos antes, por razões diversas e
relevantes, tanto do ponto de vista político, quanto pedagógico e
científico. A adesão das prefeituras e de seus órgãos de educação e
cultura, ao sediarem os nossos encontros, favorece a sua
realização, pelo apoio logístico, e nos estimula a descobrir e
pesquisar mais ricamente as suas histórias educacionais,
propiciando um contato mais direto com os seus patrimônios
históricos consubstanciados na arquitetura, acervos documentais do
poder público, cartorial e paroquial. Permite a identificação e
formulação de iniciativas de pesquisa histórica local, estudos e
publicações de memorialistas, aproximação dos professores e
alunos das redes municipais de ensino, bem como a formação de
grupos de preservação da memória local e regional; formação de
redes de pesquisadores das diversas universidades cearenses e
entre outras universidades nordestinas.
Em 2007, realizamos o VI Encontro Cearense de Historiadores da
Educação, juntamente com o I Colóquio Internacional de História da
Educação, na cidade do Aracati. O evento reuniu quase 800
participantes e dezenas de palestrantes convidados, do que resultou
o livro Interfaces Metodológicas na História da Educação,
organizado pelos professores e pesquisadores José Gerardo
Vasconcelos (NHIME/UFC), Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos
Júnior (UECE), Zuleide Fernandes de Queiroz (URCA) e José Edvar
Costa de Araújo (UVA) que foi publicado na Coleção Diálogos
Intempestivos, pela Edições UFC, no ano de 2006,
antecipadamente, para ser lançado por ocasião de sua realização,
juntamente com um CD-Rom com o conjunto de comunicações
inscritas no evento. Teve, entre os seus palestrantes convidados, os
pesquisadores Justino Pereira de Magalhães (Universidade de
Lisboa/Portugal), Teresa Laura Artieda (Universidad Nacional del
Nordeste/ Chaco/Argentina), Elizeu Clementino de Souza
(Universidade Estadual da Bahia), Jorge Carvalho do Nascimento
(Universidade Federal de Sergipe), Shara Jane Holanda Costa Adad
(Universidade Estadual do Piauí) e Almir Leal de Oliveira
(Departamento de História da UFC). Os demais palestrantes
integram o NHIME e sua rede interinstitucional de pesquisadores no
Ceará.
Os eventos de Sobral, Guaramiranga e Aracati viram chegar
algumas caravanas de mestrandos e graduandos/pesquisadores da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Universidade
Federal do Piauí, integrantes do grupo de pesquisa da historiadora
Maria do Amparo Borges Ferro; da Universidade Regional do Cariri,
integrantes do grupo de pesquisa organizado pela historiadora
Zuleide Fernandes de Queiroz e da Universidade do Vale do
Acaraú, do grupo de pesquisa organizado por José Edvar Costa de
Araújo. Esse fato indica a crescente ampliação da área de história
educacional no Ceará e a aproximação de diversos grupos de
pesquisadores das universidades nordestinas, além da procura de
novos alunos atraídos pela área, programas de pós-graduação da
UFC e de outras universidades da região. O VII Encontro Cearense
de Historiadores da Educação realizado na cidade de Barbalha, no
sul do Ceará, em maio de 2008, foi aberto à participação dos
pesquisadores da área no Rio de Janeiro e outros lugares, que
queiram participar conosco da alegria que nos traz esse movimento
em prol da história e memória da educação, que tem brotado, entre
períodos secos e invernosos, no Ceará, porque, certamente, lhe
fazia falta e, quem sabe, deixou aqui uma rica semente o historiador
do Brasil, Capistrano de Abreu, nascido em Maranguape, no século
XIX.
No começo, quando dávamos os primeiros passos no campo da
história educacional, nossos trabalhos voltavam dos comitês
científicos da ANPED com pareceres negativos que apontavam para
a nossa fragilidade teórica e metodológica. Por essa razão,
entendemos, naquela altura, que, se não tínhamos a “qualidade”
esperada para aquele importante evento de envergadura nacional,
deveríamos investir mais na nossa formação como pesquisadores
da história social e cultural. Ao completar dez anos de percurso, o
NHIME nos mostra que tudo tem valido demais a pena. Quando
deixamos de nos ocupar com a lamúria ressentida das dificuldades
que encontrávamos, para ter os nossos trabalhos aceitos na
ANPED, investimos em nossa participação nos seus encontros
regionais (EPENN) e criamos um evento local e regular, no qual
pudéssemos discutir e publicar os resultados de nossas pesquisas e
inserir essa dinâmica no processo de formação de pesquisadores
dos nossos cursos de graduação, mestrado e doutorado. Colocar
iniciantes e pesquisadores mais experientes na organização dos
nossos encontros de pesquisa e sentá-los, lado a lado, em nossos
mesas de comunicação e debate de pesquisa, tem acelerado em
muito o crescimento intelectual, refinamento metodológico,
envolvimento com a área e desenvolvimento de uma auto-estima
positiva em todos eles. Trata-se, assim, de um evento que, se por
um lado, tem o sentido pedagógico de um rito de iniciação ao
mundo da pesquisa social e histórica, por outro lado constitui mais
do que um acontecimento científico, pelo seu contorno de
“movimento social”, por estimular a colaboração solidária, quantas
vezes voluntária, entre pesquisadores e instituições várias e ter na
sua itinerância e interiorização dois mecanismos que lhe imprimem
um atraente dinamismo.
O fato de que essa construção tenha agora algum
reconhecimento de nossos pares e entidades de associação muito
nos honra. Estarmos aqui hoje, nesta mesa-redonda, como
palestrantes convidados, comunicando a nossa experiência no
interior do I Encontro de História da Educação do Estado do Rio de
Janeiro, ao lado de Maria Helena Camara Bastos, do Rio Grande do
Sul, e Luciano Mendes de Faria Filho, de Minas Gerais, é motivo de
grande satisfação. Para encerrar este relato, gostaria de agradecer
o convite que nos foi endereçado, através de José Gonçalves
Gondra e Claudia Alves, e congratular os organizadores deste
evento por tão importante iniciativa, cujos desdobramentos irão, sem
sombra de dúvidas, fortalecer os laços institucionais entre os
historiadores da educação do Rio de Janeiro, bem como atrair
novos pesquisadores e olhares sobre suas reconhecidas tradições
históricas, culturais e científicas. Quem sabe não haveremos de nos
encontrar novamente com alguns dos presentes, daqui a algum
tempo? O convite está feito e a nossa acolhida será mais do que
certa. A todos vocês, o nosso muito obrigada!
Referências
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História, São Paulo, n. 17, p. 63-201, nov. 1998.
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história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 93-102.

Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.


ACERVOS, PRESERVAÇÃO
DOCUMENTAL E HISTÓRIA
Nailda Marinho da Costa Bonato25
É fato que, desde a cultura oral aos registros em pedra, bronze,
cerâmica, pergaminho, papel, até o surgimento do registro da
imagem através de meios técnicos, como a fotografia e o filme, e
hoje, com as novas tecnologias do CD-Rom, do DVD, do disco ótico,
entre outros formatos e suportes, o homem vem tentando deixar
suas marcas no mundo. Esses registros, se preservados, tornam-se
fontes da, ou para a história. No I Encontro de História da Educação
do Estado do Rio de Janeiro,26 não poderíamos deixar de discutir a
temática. Assim, ela foi trazida, de forma mais sistemática, na mesa-
redonda intitulada: Acervos, preservação documental e história, por
mim coordenada.
Na perspectiva de contribuir para a discussão em torno da
preservação e uso das fontes documentais nas pesquisas no campo
da história da educação, apresento, neste pequeno ensaio, algumas
considerações sobre a realização da referida mesa. Inicialmente,
digo que o construí a partir da exposição dos palestrantes, tendo em
vista a competência de cada um sobre a temática proposta. Mas sua
construção também se pauta numa formação acadêmica e numa
experiência trazida de longos anos no trato da documentação de
toda espécie em instituições de memória por onde passei,27 bem
como no trabalho de pesquisa no campo da história da educação28 e
na orientação de monografias de graduação pertinentes à temática29
e dissertações de mestrado que têm um corpus documental como
referência.30 Essa trajetória levou à publicação de alguns artigos
sobre essa temática.31
Assim, coordenar a mesa-redonda intitulada Acervos,
preservação documental e história, no I Encontro de História da
Educação do Estado do Rio de Janeiro, ocorrido na UFF, foi um
presente a mim concedido. A referida mesa-redonda aconteceu em
6 de junho de 2007, às 9 horas, no Auditório Florestan Fernandes
da Faculdade de Educação, localizada no campus do Gragoatá,
bloco D, da mesma universidade. A mesa foi abrilhantada com a
seguinte composição, aqui colocada na ordem de apresentação dos
palestrantes: professor Dr. Jaime Antunes, diretor do Arquivo
Nacional; professora Dra. Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero,
pesquisadora 1A do CNPq e Coordenadora do PROEDES –
Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade – da
Faculdade de Educação da UFRJ, e professora Dra. Beatriz
Kushnir, diretora do AGCRJ – Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro.
O primeiro a expor foi Jaime Antunes, funcionário de carreira do
Arquivo Nacional, que vem resistindo às trocas de governo, estando
à frente dessa instituição de memória há anos. Sendo a mais
importante instituição de acervo arquivístico do país, antes ligada ao
Ministério da Justiça, é hoje ligada diretamente à Casa Civil da
Presidência da República. De início, não posso deixar de mencionar
o destaque dado pelo diretor do AN para o recente concurso público
realizado na instituição, fato raro, possibilitando parte da reposição
de pessoal necessário ao bom andamento dos trabalhos nela
desenvolvidos. Esse fato contribuiu para dar uma dinamicidade aos
trabalhos de recolhimento, preservação, conservação, arranjo,
guarda e descrição desse rico acervo.
Jaime Antunes apresentou à platéia o AN e seu acervo, de modo
bastante didático, destacando o seu potencial para a pesquisa e nos
reportando à instituição como se nela estivéssemos. O acervo é
composto de documentos, provenientes de órgãos e entidades do
poder público de âmbito federal, bem como de instituições privadas
e de particulares; e do tipo textual, iconográfico, sonoro e de
imagem em movimento, cartográfico e outros. A iconografia, por
exemplo, inclui os acervos do jornal Correio da Manhã, com
fotografias produzidas entre as décadas de 1930 e 1970, e da
Agência Nacional, referente ao período de 1935 a 1979.32 Segundo
Antunes, a instituição recebeu recentemente o acervo da
repressão.33
A segunda palestra foi proferida pela professora Maria de Lourdes
de Albuquerque Fávero, intitulada por ela de “O pesquisador e o
desafio das fontes”. A pesquisadora traz para discussão o trabalho
do pesquisador com as fontes documentais e se, num primeiro
momento, se preocupa em afirmar que essa relação deve se
constituir em “um diálogo permeado de questões”, destacando que
para o avançar da “historiografia à História há dificuldades que
pressupõem o debate teórico-metodológico sobre as relações entre
memória e história”, em um segundo momento passa a discutir
sobre “os desafios e as dificuldades que acompanham o esforço de
associar pesquisa e documentação em uma universidade”, visando
apresentar a história de criação do PROEDES e de seu
funcionamento. É bom que se diga que essa divisão, na exposição
de Fávero, é apenas para efeito de construção desse artigo, pois um
momento e outro de sua fala se articulam, considerando seu foco de
discussão primeiro: o uso das fontes pelo historiador.
Quanto ao que denomino de primeiro momento de sua exposição,
Fávero lembra que a temática memória e história foi desenvolvida
na conferência de abertura do I EHEd-RJ intitulada “Memória,
história e política” e proferida brilhantemente pela professora Dra.
Margarida de Souza Neves, por isso não precisava se ater a essa
discussão de forma minuciosa. Seguindo em suas reflexões sobre o
que se propôs a discutir, Fávero nos alerta sobre a realização de
“práticas de pesquisa sem o rigor científico que se faz necessário” e
de como deve ocorrer a “construção do objeto de estudo” por parte
do historiador ao trabalhar com as fontes. Tendo em vista a
problemática colocada, Fávero vai tecendo sua exposição,
apoiando-se em autores como Jacques Le Goff, Pierre Nora, Miriam
Limoeiro Cardoso, Eduard H. Carr, Michel Foucault, entre outros.
Já no segundo momento de sua exposição, a pesquisadora se
reporta mais especificamente ao PROEDES. De acordo com
Fávero, o PROEDES teve sua origem em janeiro de 1987, quando
um grupo de pesquisadores da Faculdade de Educação da UFRJ
“iniciou uma pesquisa sobre a Faculdade Nacional de Filosofia –
FNFi, instituída como modelo padrão para as demais faculdades de
filosofia, ciências e letras do país”. Nesse processo de pesquisa, os
estudiosos se depararam com uma grande massa de documentos
em situação precária, sem nenhuma organização, sujeita a toda
sorte de destruição, apresentando danos físicos muitas vezes
irreversíveis, causadores de perda de informações. Recuperar essa
massa documental foi o desafio colocado à equipe para que a
pesquisa fosse viabilizada, considerando se tratar de uma
documentação “de grande relevância para a história das instituições
educacionais e científicas no país”.
Fávero cita, ainda, outro grande problema para os pesquisadores,
que foi constatado através de depoimentos: “a destruição ou o
desaparecimento de importantes fontes documentais da Faculdade
Nacional de Filosofia, após o Golpe Militar de 1964”. Assim, as
perdas documentais podem ocorrer tanto pela ação do tempo
quanto por destruição intencional e criminosa, entre outras
possibilidades.
Para realizar a pesquisa (1987-1990), a equipe se viu obrigada a
organizar o valioso acervo e a dialogar com outros profissionais. Em
decorrência de todo esse trabalho, em setembro de 1990, é
aprovado, na UFRJ, o PROEDES, inicialmente como Projeto de
Estudos e Documentação Educação e Sociedade. Depois, em 1994,
é institucionalizado como Programa. Neste caminhar, em relação ao
trato da documentação, a professora lembrou que, por várias vezes,
pediu socorro ao amigo Jaime Antunes.
Na exposição, Fávero apresentou ainda as finalidades, os
objetivos e as linhas de pesquisa do PROEDES, que completou 20
anos em setembro de 2007, constituindo sua história como centro
produtor, catalisador e organizador de acervos, visando propiciar a
produção em história da educação brasileira.
A riqueza de sua exposição para os historiadores da educação
também está no que ela nos traz da área arquivística, termos
próprios da ciência arquivística, tais como: princípio da proveniência
ou princípio de respeito aos fundos; fundo arquivístico; arquivo
permanente, arranjo e descrição; arranjo estrutural ou funcional;
série, subsérie, preservação e conservação, higienização, arquivo,
coleção, acervo, instrumentos de pesquisa, usuário, avaliação são
mencionados e apresentados, sendo esse mais um motivo que nos
convida à leitura de seu artigo, exposto nesta coletânea, e produzido
a partir de sua fala no evento.
E se, por um lado, lamenta a falta de recursos humanos e
financeiros, por outro, é com satisfação que informa sobre o trabalho
de informatização do acervo, viabilizado com o apoio do CNPq, da
FAPERJ e da FUJB/UFRJ, um acervo constituído de
aproximadamente 300.000 documentos, distribuídos em 32 fundos
arquivísticos.
O PROEDES não atende apenas à demanda de pesquisadores
da Faculdade de Educação e da UFRJ, mas, também, propicia o
acesso de pesquisadores externos à instituição, atividade que
sabemos demandar mais trabalho – o de atendimento ao público.
Atualmente, tenho uma orientanda consultando o arquivo do Asylo
dos Meninos Desvalidos. Então, agora é ir à leitura do artigo da
pesquisadora, publicado neste mesmo livro.
Fechando a sessão, a terceira e última palestrante, professora
Beatriz Kushnir, nos brindou com a palestra “O historiador, o
arquivo, o sigilo e a perda”, em que, de forma abreviada, traçou um
histórico do AGCP até suas competências hoje, informando que, em
2008, a instituição completou 155 anos. Apresentou o acervo e os
procedimentos de consulta aos documentos, informações cruciais
para os historiadores da educação, principalmente para aqueles que
trabalham com a história da cidade do Rio de Janeiro.
Tendo em vista a “história do tempo presente”, Kushnir deu
destaque para os seguintes acervos: “Gabinete do Prefeito”, datado
a partir de 1975 e composto por 29 mil documentos de autógrafos
de leis e/ou decretos, destinados ao público; “Secretaria Municipal
de Saúde” e “Ouvidoria Central” que, de acordo com ela, estão
sendo pensados na perspectiva de propiciar o acesso à informação
preservando a identidade dos sujeitos envolvidos, conforme o
atendimento da legislação em vigor. Legislação apontada por ela,
como a Lei 8.159/91, que dispõe sobre a organização dos arquivos
brasileiros e o acesso às informações neles contidas, também
conhecida como Lei dos arquivos; o Decreto no 2.134, de 24/1/1997,
que regula a classificação, a reprodução e o acesso aos
documentos públicos de natureza sigilosa e o Decreto no 2.182, de
20/3/1997, que estabelece normas para transferência e
recolhimento de acervos arquivísticos públicos federais para o
Arquivo Nacional.
Foi dado destaque para a trajetória do acervo do DOPS –
Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara
(DOPS/GB) e do órgão congênere de São Paulo (DEOPS), até seu
recolhimento aos arquivos públicos. Há mais de 10 anos a
historiadora elegeu, como tema de suas pesquisas, avaliar a
organização e a disponibilidade dessas informações, levando em
conta todas as implicações dessa escolha.
Para desenvolver sua fala, tendo em vista os arquivos da
repressão, nos traz autores como Vianna, Lissovsky e Sá e Étienne
François, diretor do Centro Marc Bloch – Berlim, entre outros. Ela
chamou a atenção para a dificuldade do trabalho de classificação
dos documentos em ultra-secreto, secreto, confidencial, reservado,
como dispõe a Lei dos arquivos, e, também, sobre a preocupação
com o trabalho de indexação, no sentido de não “ferir a
suscetibilidade das pessoas envolvidas”.
Por fim, a pesquisadora nos fala sobre as condições de
salvaguarda dos acervos das instituições de memória, sejam
arquivísticos, bibliográficos ou museológicos, um patrimônio cultural
e público, e o papel do Estado nesse sentido.
Termina sua exposição solicitando a leitura e adesão a uma carta
intitulada “Patrimônio sem fronteiras” com os seguintes signatários:
AAB – Associação dos Arquivistas Brasileiros; AAERJ – Associação
dos Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro; AAL – Arquivo de
Política Militar Ana Lagoa/Departamento de Ciências
Sociais/Universidade Federal de São Carlos; AEL – Arquivo Edgard
Leurenroth/Centro de Pesquisa e Documentação
Social/IFCH/Unicamp; ANPUH – Associação Nacional de História;
CIEC – Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade/IFCH/Unicamp;
IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ; SBPC –
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. A carta se refere
aos furtos ocorridos, entre os anos de 2005 e 2006, em instituições
de memória, fato que, conforme o teor do documento, vem
dilapidando o patrimônio cultural. No final do evento, a carta recebeu
a adesão de mais um signatário, da SBHE – Sociedade Brasileira de
História da Educação. Parte do conteúdo do documento é
encontrada no artigo publicado neste livro, produzido a partir da
participação da diretora do AGCRJ no evento.
Como fechamento deste relato, posso dizer que Fávero e Kushnir
destacaram, em suas exposições, a necessidade do historiador
conhecer as regras de constituição de um acervo e de um arquivo,
enquanto instituição de memória, e “não apenas um lugar de
reunião de documentos ou o locus de trabalho do arquivista”
(KUSHNIR), para, dessa forma, poder intervir no processo de
organização e constituição dos acervos em prol da pesquisa. Ainda
em consonância com Fávero e diversos outros historiadores,
Kushnir diz que os arquivos não falam por si sós, devem ser
“submetidos a uma crítica exigente das fontes”, por parte do
historiador.
No meu olhar, talvez o que ainda ficou para ser explorado pela
mesa, de forma mais veemente, com exceção da professora Maria
de Lourdes, tenha sido as potencialidades dos acervos para o
campo da história da educação, assim como as questões que
emperram as pesquisas e o porquê delas existirem, pontos para os
quais chamamos a atenção no debate. Sabemos que muitas
pesquisas são prejudicadas em seu andamento pelo fato de,
durante o seu desenvolvimento, o pesquisador ter o acesso ao
acervo fechado pela instituição de memória.34 Sabemos dessa
necessidade, mas é preciso discussão entre técnicos e
pesquisadores, para não sermos surpreendidos no meio de uma
pesquisa por uma atitude que venha a prejudicar um trabalho de
anos do pesquisador.
Outro ponto para o qual chamo a atenção é para que seja
considerada, pelos expositores, a possibilidade de enriquecimento
de sua exposição, trazendo exemplos de séries documentais
existentes nos acervos, que dizem respeito aos interesses
específicos do historiador da educação como, por exemplo, a Série
Educação, parte integrante do acervo do Arquivo Nacional, entre
outras possibilidades documentais existentes no acervo das
instituições de memória.
Professora da Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO).
Realizado de 4 a 6 de junho de 2007, na Faculdade de Educação da Universidade Federal
Fluminense. O evento foi organizado de forma interinstitucional por representantes da UFF,
UNIRIO, UFRJ, UERJ e PUC-RIO.
Arquivo Nacional, Museu da Imagem e do Som, Fundação Casa de Rui Barbosa, entre
outras.
Atualmente desenvolvo o projeto de pesquisa “Concepções da Federação Brasileira pelo
progresso feminino sobre educação feminina” que tem como fonte privilegiada o Fundo
FBPF, contido no acervo do Arquivo Nacional.
Especificamente do curso de graduação em Arquivologia da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Como por exemplo, as monografias de graduação
elaboradas por Rodrigo de Oliveira Albernaz, intitulada “A organização do acervo
arquivístico da cidade do Rio de Janeiro considerando suas transformações político-
administrativas” (1999); por João Cláudio Parucher da Silva, intitulada “Arquivos
fotográficos: o caso do Museu da Imagem e do Som – RJ” (1998); e por Fabiane Ricardo
de Negreiros, intitulada “Os arquivos fotográficos do Museu Histórico Nacional: sua
organização e importância como fonte de pesquisa” (1998) e outras que se seguiram. No
segundo semestre de 2004, orientei a monografia intitulada “O perfil do pesquisador
acadêmico da Sala de Consultas do Arquivo Nacional e suas necessidades de informação”
elaborada por Mara Luci Silva de Araújo, que discutiu a importância de estudar o usuário
para criar sistemas de informação e serviços adequados às suas necessidades de
informação. Hoje, a ex-aluna é funcionária do AN, aprovada no último concurso público,
mencionado pelo diretor do Arquivo em sua exposição.
Encontra-se em andamento a pesquisa de Maria Zélia Maia que estuda o “Asilo de
Meninos Desvalidos” (1875-1894). A mestranda vem consultando os acervos do Arquivo
Nacional, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional e Proedes
/FE/UFRJ – Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade.
Os artigos são os seguintes: “O uso das fontes documentais na pesquisa em história da
educação e as novas tecnologias” e “O Fundo Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino: uma fonte múltipla para história da educação das mulheres”, ambos publicados
na revista Acervo do Arquivo Nacional; “Os arquivos escolares como fonte para a história
da educação”, publicado na Revista Brasileira de História da Educação; “Memória da
educação: preservação de arquivos escolares”, publicado na revista Dimensão
Pedagógica; “Documentação fílmica e iconográfica como ferramenta para a história da
educação”, publicado no CD-Rom comemorativo dos 20 anos do Grupo de Estudos e
Pesquisas HISTEDBR. Além de alguns instrumentos de pesquisa arquivística como o
Inventário do Arquivo Augusto Meyer, este em parceria com a museóloga Beatriz Folly,
entre outros trabalhos.
Ver site <http://www.arquivonacional.gov.br>.
Conforme consta no site do AN, a COREG – Coordenação Regional do Arquivo Nacional
no Distrito Federal, em dezembro de 2005, “recebeu para a guarda permanente os acervos
dos extintos Serviço Nacional de Informação – SNI, Conselho de Segurança Nacional –
CSN e Comissão Geral de Investigações – CGI”, sendo garantido o acesso a esses
documentos.
Isso aconteceu comigo durante o desenvolvimento da pesquisa com o Fundo FBPF/AN.
Fui surpreendida com o fechamento do arquivo à consulta sob a alegação de
reorganização do arquivo. Sabemos dessa necessidade, mas o andamento de uma
pesquisa, e se financiada o fato se torna mais grave, não pode ser prejudicado dessa
maneira. Essa é uma questão que temos de enfrentar e levar para a mesa de discussão.
O PESQUISADOR E O DESAFIO DAS FONTES
Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero35
1. Introdução
O trabalho com as fontes documentais, a nosso ver, deve
constituir, para o pesquisador, um diálogo permeado de questões,
de dúvidas, cujo resultado pretendido nem sempre decorre de
análises bem arrematadas. Embora tenha como preocupação
conhecer os fatos e tentar responder a necessidades, para
apreender uma realidade histórica, esse conhecimento não pode ser
entendido como um dado definitivo e acabado.
Trata-se de um conhecimento produzido, em contínua
aproximação do real, podendo ser revisto, acrescido e até
substituído por novos conhecimentos. Portanto, o que origina e
fortalece o empreendimento da pesquisa, com vistas à produção do
conhecimento, o que se aplica também ao campo da história da
educação, é a carência que os homens têm de saber, de explicar, de
entender os fatos e seu próprio mundo. Se tal situação responde a
necessidades, importa não perder de vista que esse conhecimento
não se produz de forma neutra, distante e fria; estaria, antes,
profundamente enraizado na vida dos homens, em determinado
momento histórico e, conseqüentemente, o saber produzido sobre
determinados fatos não se esgota em si mesmo.
Vale ressaltar ainda que, para se avançar da historiografia à
história, há dificuldades que pressupõem o debate teórico-
metodológico sobre as relações entre memória e história. Será
pertinente lembrar, também, que a construção de um objeto em
História da Educação exige do pesquisador um exercício de reflexão
conseqüente a propósito das dificuldades epistemológicas do
trabalho de investigação científica, não perdendo de vista que, sob a
chancela de trabalho interdisciplinar, multiplicam-se, às vezes,
práticas de pesquisa sem o rigor científico que se faz necessário.
Quanto à exigência de uma sólida experiência disciplinar, o cientista
político Luiz Eduardo Soares traz importante subsídio para uma
análise mais acurada, ao assinalar que:
[...] os avanços continuarão a provocar surpresas [...]. Também por isso é preciso
formar profissionais adestrados nos cânones disciplinares: exatamente para que
tenham as condições de saltar as cercas quando as exigências desafiadoras do
conhecimento exigirem. Apenas a competência faculta a verdadeira liberdade, que
não se confunde com ecletismo ou inconsistência teórica. (SOARES, 1991, p. 272)

Uma segunda questão relevante que se coloca é a da construção


do objeto de estudo. “Admitindo que há construção, diremos que o
comando é do teórico” (CARDOSO, [19--], p. 11). E o problema
principal estaria em sua condução, como produzir as categorias e/ou
conceitos-chave (Idem, ibidem). Sob essa ótica, um aspecto
fundamental, no caso da pesquisa histórica, será o diálogo com
outros autores, diálogo com as fontes, que poderão ajudar a refletir
e elaborar a construção de categorias. Assim sendo, o saber
produzido não é indiferente à história e ao lugar social que
possibilita, e mesmo demanda, sua produção, através dos
“aparelhos” sociais que oferecem condições para que este saber
seja construído (CARDOSO, 1994, p. 3).
Será pertinente observar, também, como já assinalava Santos,
nos anos 1980, que a historiografia brasileira nem sempre discute
“seu próprio campo de trabalho, isto é, os estudos de história, seus
pressupostos e resultados” (SANTOS, 1986, p. 5). Acrescentando:
“[...] há entre nós certa timidez no debate teórico e metodológico,
como se a escrita da produção do conhecimento pertencesse
unicamente à esfera dos filósofos da história” (SANTOS, 1986, p. 5).
Diante do exposto, indagamos: como se colocaria essa questão no
âmbito da pesquisa em história da educação? Haveria sempre a
preocupação de analisar e não apenas descrever o passado, em
função do presente?
A respeito do conceito de memória, verifica-se que tem assumido
“proporções renovadas quando examinado criticamente pelos
historiadores e discutido à luz da própria história” (SANTOS, 1986,
p. 6). No entanto, observam-se ainda impropriedades nesse terreno,
como alerta Afonso Marques dos Santos, “onde memória e história
são tomadas muitas vezes como sinônimos” (SANTOS, 1986, p. 6).
E complementa, levantando algumas questões:
Qual será, portanto, o papel da memória no debate teórico e metodológico de uma
historiografia que se pretenda crítica e renovadora? Em que medida a reflexão
acerca do tema da memória pode acordar os historiadores e fazê-los duvidar dos
seus objetos e marcos periodizadores? (SANTOS, 1986, p. 6)

São questões e análises que continuam abertas a outros debates,


a outras leituras. Entretanto, não podemos deixar de assinalar que a
memória não consiste apenas em recordar o que passou, o que se
deve ter em mente sobre determinados fatos e acontecimentos. A
memória não prescindiria da reconstrução, através da crítica e da
reinterpretação do passado, sob um novo olhar, uma nova
perspectiva. Nessa ótica, memória e história não constituem
sinônimos, como bem observa Pierre Nora:
A memória é a vida, sempre trazida pelos grupos vivos e, por esta razão, ela está
em evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, suscetível de longas latências e freqüentes revitalizações. (1993, p.
9)

Complementando: “a história é a reconstrução sempre


problemática e incompleta do que não existe mais [...] é uma
representação do passado”. Por constituir uma operação intelectual,
“demanda análise e discurso crítico” (NORA, 1993, p. 9).
Reforçando essa linha de reflexão, Le Goff adverte que:
O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto
da sociedade que o fabricou, segundo as relações de força que aí detinham o
poder. Somente a análise do documento, enquanto monumento, permite à
memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com
pleno conhecimento de causa. (1992, p. 545)

Vale observar, no entanto, que “a história da história, pensada


enquanto história crítica, tem na relação memória-história um campo
fértil de trabalho” (SANTOS, 1986, p. 12). Nesse sentido, uma
questão se coloca: a de não apenas contrapor memória e história,
mas entender que, “a necessidade de memória é uma necessidade
da história e que os lugares da memória nascem e vivem do
sentimento de que não há memória espontânea”. Daí a necessidade
de se “criar arquivos como registros mais concretos” (NORA, 1993,
p. 13).
Acreditamos que essa preocupação de associar memória e
história será, decerto, uma das preocupações que deverão nortear
os centros e programas de pesquisa e documentação, em geral,
quando se propõem tornar-se um espaço de estudos, de
investigação, de memória e de acervos documentais.
2. O pesquisador e os documentos: algumas reflexões
Se o documento é ponto de partida para se conhecer um fato
histórico, é, também, por meio dele, que podemos revisitar o
passado e reinterpretá-lo sob novo olhar. Para tanto, faz-se
necessário não perder de vista que:
A história se faz com documentos escritos, sem dúvida, quando estes existem.
Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem
[...]. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem,
serve ao homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos
e as maneiras de ser do homem. (LE GOFF, 1992, p. 540)

Em outras palavras, como adverte Le Goff, citando Samaran: “Há


que tomar a palavra documento no sentido mais amplo, documento
escrito, ilustrado, transmitido pelo som, imagem, ou de qualquer
outra maneira” (apud LE GOFF, 1992, p. 540). É essa maneira de
entender e definir documento que traz embutida uma outra
preocupação, igualmente importante para esse historiador: a noção
de movimento. Segundo ele,
A concepção do documento/monumento é, pois, independente da revolução
documental e entre seus objetivos está o de evitar que essa revolução necessária
se transforme num derivativo e desvie o historiador do seu papel principal: a crítica
do documento — qualquer que ele seja — enquanto monumento. (LE GOFF, 1992,
p. 545)
Nessa perspectiva, endossamos Margarida Neves, quando
assinala:
O historiador não é um arqueólogo da documentação, mediador neutro entre a
verdade da fonte e a verdade da História, mas sim aquele que é capaz de formular
uma problemática e de construir uma interpretação em que reconhece o encontro
entre duas historicidades: a sua própria e a da documentação que utiliza. (1985, p.
34-5)

Apoiando-nos nessas percepções, diremos que os fatos e os


documentos não falam por si. Falam apenas quando o pesquisador
os aborda e os interpreta, procurando compreender o pensamento
que está por trás deles. É o pesquisador, assinala Carr, quem
decide quais os fatos e os documentos que vêm à cena e em que
ordem ou contexto. Não é por estarem nos documentos que os fatos
ocorreram exatamente daquela forma. Nenhum documento, por si
só, poderá nos dizer mais do que o autor achou que aconteceu, o
que gostaria que acontecesse, ou o que ele esperava que
acontecesse, ou, talvez, ainda, o que ele queria que outros
pensassem que ele pensava (CARR, 1976, p. 14).
Visto sob essa perspectiva, verificamos que os fatos, mesmo
quando registrados em documentos, ainda têm de ser processados
pelo pesquisador, antes que se possa fazer uso deles, ou seja, trata-
se de “colocar o processo em desenvolvimento” (CARR, 1976, p.
18). Nesse sentido, o papel do pesquisador é ver o passado através
dos olhos do presente e à luz de seus problemas; seu principal
trabalho não é registrar, mas avaliar ancorado numa base teórica.
Por outro lado, se ele não avalia, como pode saber o que merece
efetivamente ser registrado? Logo, o passado que é estudado não é
um passado morto, mas um passado que, em algum sentido, está
ainda vivo no presente.
Com essas ponderações, não deixamos de reconhecer que
alguns acontecimentos históricos apresentam a mesma feição para
todos os que se dedicam à pesquisa. Daí entendermos que, para o
pesquisador em geral, “a exatidão é um dever, não uma virtude”,
considerando, ainda, que os fatos, os documentos são essenciais e
constituem, sem dúvida, matéria-prima para o pesquisador; mas não
podem se converter em fetiches (CARR, 1976, p. 20). Por si
mesmos, não constituem a história. São filtrados pela visão do
pesquisador e por ele inseridos em uma realidade concreta.
Analisando essas questões, Foucault declara que os problemas
da história, em síntese, consistem no “questionar o documento”
(1987, p. 8), acrescentando:
O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e
de pleno direito, memória; a história é uma certa maneira de uma sociedade dar
estatuto e elaboração a uma massa documental de que não se separa
(FOUCAULT, 1987, p. 8).

Sob essa ótica, tentaremos, ainda, refletir um pouco sobre os


desafios e as dificuldades que acompanham o esforço de associar
pesquisa e documentação em uma universidade. Temos presente
que não se trata de uma percepção acabada. Trata-se de articular o
trabalho de investigação com o de resgate, recuperação e
organização de fontes documentais, procurando reagrupá-las,
tornando-as pertinentes, colocando-as em relação, até constituírem
um conjunto mediante o qual a memória coletiva passa a ser
valorizada, instituindo-se em patrimônio cultural.
Com essas preocupações, em janeiro de 1987, um grupo de
pesquisadores da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) iniciou uma pesquisa sobre a Faculdade
Nacional de Filosofia (FNFi), instituída como modelo para as demais
faculdades de filosofia, ciências e letras do país. Buscava-se
conhecer os fatos e as razões que contribuíram para os caminhos e
descaminhos dessa faculdade, de sua criação, em 1939, até sua
fragmentação, entre 1967 e 1968, quando foi extinta e deu origem a
unidades da UFRJ, que existem até hoje: Escola de Comunicação,
Faculdade de Educação, Faculdade de Letras, Instituto de Biologia,
Instituto de Física, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Instituto
de Geociências, Instituto de Matemática e Instituto de Química.
Nosso esforço, de 1987 a 1990, centrou-se, sobretudo, no
propósito de selecionar e integrar os vários dados a respeito dessa
faculdade. Não somente a análise de documentos foi
exaustivamente realizada, mas pessoas — ex-professores, ex-
alunos e funcionários — deram depoimentos, e pelo testemunho de
sua vivência na Faculdade Nacional de Filosofia trouxeram ao
presente, os fatos ocorridos e como ocorreram. Alguns se revelaram
polêmicos, outros contraditórios e outros, ainda, persistem obscuros.
Quando iniciamos a pesquisa sobre a história dessa faculdade,
não tínhamos idéia precisa da situação do acervo. Deparamo-nos
com uma grande massa de documentos, sem nenhuma organização
arquivística, muitos deles estragados, com perda de informações,
outros acidificados pela falta de climatização ou danificados pela
ferrugem de clipes e grampos de ferro, além de outros ainda
incompletos. O acesso e o contato direto com essas fontes nos
deixaram preocupados e perplexos em relação ao estado
lamentável de conservação do arquivo, mas, ao mesmo tempo, não
perdíamos de vista que se tratava de um acervo de grande
relevância para a história das instituições educacionais e científicas
no país.
Um dos problemas mais desafiadores, por nós enfrentado, e
confirmado, posteriormente, através dos depoimentos, foi a
destruição ou o desaparecimento de importantes fontes
documentais da Faculdade Nacional de Filosofia, após o Golpe
Militar de 1964, quando militares passaram freqüentemente a
“visitar” a faculdade. Tais “visitas” não nos surpreendem, pois
constituem uma das formas dos regimes de arbítrio atingirem a
memória das instituições.
O trabalho com essa documentação nos fez intuir com maior
clareza que a preservação e a valorização da memória educacional
e cultural brasileira constitui tarefa a desafiar permanentemente a
intervenção lúcida e diligente da iniciativa pública, como também da
particular. É sabido, de longa data, o pouco apreço, no país, pela
preservação dessa memória. A propósito das fontes documentais e
da memória em pesquisa histórica, há problemas que persistem e
que não podem ser escamoteados. Analisando-os, o historiador
Edgar Carone, já em 1976, assinalava que o “descaso ou aversão à
documentação constituem problemas básicos para os estudiosos”,
acrescentando: “não há dúvida de que a destruição criminosa de
documentos traz graves prejuízos a todos, pois esta é uma maneira
de exterminar a memória nacional” (1976, p. 25).
No trabalho com as fontes documentais, a partir de 1987,
aprendemos ainda que, ao nos familiarizarmos com os arquivos, ao
dialogarmos com os documentos e conseguirmos apreender o não
dito, ou aquilo que foi esquecido ou silenciado, há uma sensação de
fascínio e de descoberta. Nossa experiência como pesquisadora
permite entrever, ainda, que os arquivos não guardam apenas
desejos, aspirações e sonhos imprevisíveis; constituem também
produtos da sociedade que os configurou, segundo as relações de
força dos que aí detinham o poder. É a propósito dessas relações
que, mais uma vez, retomamos a advertência de Le Goff:
O documento é um monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas
para impor ao futuro [...] determinada imagem de si próprias. Daí ser preciso
começar por desmontar, demolir essa montagem, desestruturar essa construção e
analisar as condições de produção dos documentos/monumentos. (1992, p. 548)

É, ainda, esse historiador que chama a atenção para a


necessidade do “inventário dos arquivos do silêncio”. Nessa
perspectiva, o pesquisador precisa ir um pouco além, procurando
questionar as lacunas, ou os “esquecimentos” existentes nos
acervos, bem como os espaços em branco da história. Tal
procedimento traz implicações ao historiador, que poderá intuir a
história não apenas a partir dos documentos, mas, também, de suas
ausências, interrogando-se sobre esses problemas e limitações no
trabalho com as fontes.
À medida que desenvolvíamos a pesquisa “Da Faculdade
Nacional de Filosofia à Faculdade de Educação: resgate de uma
história (1987-1990)”, e éramos compelidos a organizar o acervo
dessa faculdade,36 nossas reflexões se ampliavam em dupla direção:
de um lado, a certeza da necessidade de se dominar um conteúdo
teórico para intervir na realidade, admitindo que a teoria é
indispensável para se lidar com os fatos, para se dialogar com as
fontes; de outro, a necessidade de se criar um espaço que
favorecesse o diálogo teórico-metodológico, de forma consistente e
conseqüente, com a percepção clara de que a produção científica
não se faz isoladamente. Surgiu, então, a idéia de realizar
seminários com a participação de pesquisadores de outras áreas,
abertos a todos que se interessassem em discutir, entre outras
questões, a construção do objeto do conhecimento na pesquisa em
educação, assim como nas ciências humanas e sociais; a crise dos
paradigmas nessas ciências; história e memória.
Com essas preocupações, tornou-se, também, indispensável, a
definição de estratégias institucionais que possibilitassem a
integração dos estudos, pesquisas e documentação, mediante a
elaboração de projetos com objetivos claramente formulados. Em
decorrência de um intenso trabalho, em setembro de 1990, é
aprovado o PROEDES – Projeto de Estudos e Documentação
Educação e Sociedade, como um projeto integrado pela SR-
2/UFRJ. Em agosto de 1994, é oficializada sua institucionalização
como Programa pela Congregação da Faculdade de Educação e,
em 1995, pelo Conselho de Coordenação do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas (CFCH) e pelo CEPG – Conselho de Ensino
para Graduados e Pesquisa da UFRJ.
O Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade
foi instituído com as seguintes finalidades: desenvolver estudos e
pesquisas; resgatar, recuperar e organizar fontes documentais
referentes à educação brasileira, tendo presente que essas fontes
poderão oferecer importantes subsídios para estudos e abordagens
diferenciados sobre a história da educação, bem como sobre
instituições educacionais e científicas no país.
Enquanto Programa, o PROEDES tem por objetivos: a) realizar
estudos e pesquisas referentes a temas de educação, abrangendo
instituições educacionais e científicas e seus atores; b) contribuir
para a formação de pesquisadores e c) constituir-se em centro de
documentação em educação brasileira. Para viabilizá-los, vem
procurando centrar seus estudos e investigações em duas linhas de
pesquisa: a) História das Instituições Educacionais e Científicas no
País e b) Construção do Pensamento Educacional Brasileiro.
Não será demasiado assinalar que esse trabalho é exaustivo e
complexo, exigindo uma equipe multidisciplinar. Apesar das
dificuldades — falta de pessoal e de recursos financeiros — vem
sendo desenvolvido, de modo que estudos e pesquisas sobre
instituições educacionais e científicas, sobre educadores e assuntos
temáticos que constituem os acervos são realizados por
pesquisadores de seu quadro ou de fora, contribuindo
significativamente para subsidiar o arranjo e a descrição dos
documentos.
Entre as atividades típicas dos arquivos permanentes, temos
conferido destaque ao arranjo, à descrição e à conservação de
documentos (MACHADO; CAMARGO, 2000, p. 3). O arranjo aqui é
tomado na acepção de “disposição física dos documentos de
arquivo, com base em sua classificação” (MACHADO; CAMARGO,
2000, p. 3), mas considerando que cada arquivo e/ou coleção
constitui um fundo distinto e individualizado.
Outro ponto a salientar em relação ao trabalho com a
documentação refere-se à informatização dos fundos. Com essa
preocupação, e graças ao apoio do CNPq, da FAPERJ e da
FUJB/UFRJ, foram dados os primeiros passos, visando a: a)
intensificar o trabalho de avaliação dos novos acervos adquiridos e
de reavaliação dos já existentes; b) elaborar um plano estrutural
para cada acervo, que permita agrupar os documentos em espécies;
c) classificar os documentos segundo essas espécies; d) digitar os
inventários em planilhas do Microsoft Access, revisando a digitação;
e) projetar o banco de dados em planilhas do Microsoft Access e f)
elaborar o folder do arquivo ou coleção.
Atualmente, o PROEDES abriga um acervo com cerca de 300.000
documentos, distribuídos em 32 fundos, entendidos como “conjunto
de documentos de uma mesma proveniência” (ARQUIVO
NACIONAL, 2005, p. 97). A preocupação do PROEDES de trabalhar
e divulgar as informações levantadas nos acervos que estão sob
sua guarda, demonstra a necessidade de devolver ao arquivo suas
funções de elemento de suporte à pesquisa, bem como de
estabelecer as concepções de acesso, organização e preservação
de fontes documentais.
3. Acervos e preservação documental: algumas questões
Entendemos que o trabalho com fontes documentais deve apoiar-
se em algumas concepções de história, memória e documentação,
que precisam ser discutidas e amadurecidas, desde que se refletem
na organização dos acervos e nos estudos produzidos. Assim
sendo, no tratamento dos fundos arquivísticos, os documentos
textuais devem passar por uma fase de higienização, para depois
serem organizados em séries estruturais ou funcionais e em
subséries, de modo a processar-se sua descrição. A análise do
documento é que dirá se o mesmo poderá ou não ser incluído nas
séries e subséries definidas. Tal exame eventualmente poderá
suscitar, também, a necessidade da criação de outras subséries não
incluídas, inicialmente, no plano estrutural.
Cabe reiterar que esse é um paciente trabalho, exigindo a
participação de uma equipe multidisciplinar. Será pertinente
ressaltar que é imprescindível um trabalho de avaliação (no caso de
fundos novos) e de reavaliação dos acervos existentes num centro
de documentação, incluindo mesmo aqueles já abertos ao público
para consulta. A decisão de reavaliar os acervos conviria ser
tomada com base no pressuposto de que, se não existe pesquisa
acabada, conseqüentemente, o trabalho com os fundos
permanentes, num Centro de Estudos, Memória e Documentação
deverá também ser visto como um processo em permanente
construção e aperfeiçoamento, havendo sempre a possibilidade de
novos documentos serem incluídos, bem como sugestões e críticas
dos usuários a respeito do arranjo e classificação das fontes
documentais que, se procedentes, deverão ser atendidas.
Quanto aos arquivos permanentes, recomenda-se dar destaque
ao arranjo, à descrição e à conservação de documentos. O arranjo
aqui é tomado, segundo Machado e Camargo, no sentido da
“disposição física dos documentos de arquivo, com base em sua
classificação” (2000, p. 33), mas tendo presente que cada arquivo
e/ou coleção constitui um fundo distinto e individualizado, como, por
exemplo, os arquivos do Asylo dos Meninos Desvalidos, do Colégio
de Aplicação/UFRJ, entre outros, que se encontram no PROEDES,
e que refletem as funções e atividades que lhe deram origem. No
arranjo dos fundos, consoante essas autoras, importa assinalar,
ainda, dois princípios básicos: o da proveniência, também conhecido
como princípio de respeito aos fundos, segundo o qual “os arquivos
originários de uma instituição ou de uma pessoa devem manter sua
individualidade, não sendo misturados aos de origem diversa”; [e o]
“do respeito à ordem original” (MACHADO; CARMARGO, 2000, p.
33-34).
Para que um arquivo e/ou coleção permanente cumpra, de forma
adequada, a função de atendimento ao público, de colocar à
disposição do usuário o conteúdo de seu acervo, é necessário que
se processe, de forma clara, a descrição dos documentos que
poderá resultar em diferentes instrumentos de pesquisa. Apoiando-
nos, ainda em Machado e Camargo, observamos que essa
descrição, quando feita de forma apropriada, tem condições de vir-
a-ser fator decisivo para estreitar os vínculos entre o usuário e o
arquivo qualquer que seja o objeto de pesquisa a que se propõe
(MACHADO; CARMARGO, 2000, p. 33-34).
Visando dar continuidade ao trabalho de avaliação e/ou
reavaliação dos fundos, entendidos segundo “Norma geral
internacional de descrição arquivística” como “conjunto de
documentos, independente de sua forma de suporte, organicamente
produzido e/ou acumulado e utilizado por uma pessoa física, família
ou instituição no decurso de atividades e funções” (CONSELHO
INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2001, p. 5). Acolhidos esses
documentos num centro de memória e documentação, torna-se
indispensável a elaboração de um glossário ou de um quadro que
contenha alguns conceitos básicos.37 A definição desses conceitos
visa mostrar que um trabalho de organização de acervos de caráter
permanente não é tão simples. Trata-se de um empreendimento que
implica recursos humanos com experiência nesse campo. Esse
trabalho de identificação, localização, agrupamento em série das
fontes documentais, com a preocupação do controle e do acesso ao
acervo, pressupõe a presença de uma equipe de especialistas, além
de um período de tempo considerável. Outro ponto que merece
destaque, em relação ao trabalho com a documentação, refere-se à
informatização dos fundos. Na era da informática, não podemos
esquecer que os recursos tecnológicos exercem importante papel:
servir ao homem, especialmente ao pesquisador, em suas
necessidades.
4. Palavras finais...
Trabalhando há duas décadas na condição de pesquisadora num
Centro de Pesquisa e Documentação, como é o PROEDES, ocorre-
nos a advertência de Heráclito: “Ninguém se banha duas vezes nas
águas de um rio”. E, neste caso específico, temos a percepção de
que, a cada nova atividade, há um campo inesgotável de
reformulações, toda uma realidade, como um rio que corre, em vir-
a- ser.
Referências
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arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
CARDOSO, Miriam Limoeiro. Para o conhecimento dos objetos
históricos: algumas questões metodológicas. [19--]. Mimeo.
___________. Reflexões sobre ética e construção do conhecimento.
In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 17., 1994, Caxambu. Anais...
Caxambu: ANPEd, 1994. Mimeo.
CARONE, Edgar. A destruição dos documentos. Cadernos de
Debate, [S.l.], n. 1, p. 24-26, 1976.
CARR, Eduard H. Que é História? Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. ISAD (G): norma
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Comitê de Normas de Descrição, Estocolmo, Suécia, 1999. Rio de
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MACHADO, Helena Corrêa; CAMARGO, Ana Maria de A. Como
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In: IRMAN, P.; BOMENY, H. (Org.). As assim chamadas Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: UERJ: Relume Dumará, 1991. p. 265-277.

Coordenadora do PROEDES/UFRJ e Pesquisadora 1A do CNPq.


O Arquivo da Faculdade Nacional de Filosofia, sob a guarda do PROEDES/UFRJ, contém,
atualmente, cerca de 100 mil documentos e está sendo reavaliado, graças a um convênio
realizado entre o PROEDES/FE/UFRJ e a Casa de Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo
Cruz.
. A propósito, consultar: Arquivo Nacional (2005).
O HISTORIADOR, O ARQUIVO,
O SIGILO E A PERDA
Beatriz Kushnir38
1. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
O Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ) tem sua
origem na refundação da cidade, em 1567. Preservando a
documentação gerada e acumulada pela Câmara, acolhe um acervo
de uma cidade que foi capital, em parte do período colonial, no
Império e na República até 1960. Em 1975, com a fusão dos antigos
estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, a cidade tornou-se a
capital do novo estado do Rio de Janeiro, regressando à condição
de município. A competência original do AGCRJ não se concretizou
naquela época, mas com o Decreto nº 20.113/2001, que o definiu
como Gestor da Política de Arquivos e do Sistema de Memória da
Cidade. A partir de janeiro de 2003, coube ao AGCRJ, as
competências de: elaborar, implementar e acompanhar a execução
da Política Municipal de Arquivos Públicos e Privados, no âmbito do
Poder Executivo municipal. Tal diretriz garante a gestão, a
preservação e o acesso aos documentos públicos municipais e a
proteção especial dos arquivos privados de interesse público.
Composto por acervos que remontam à Colônia, o AGCRJ se
tornou o Arquivo da Prefeitura do Distrito Federal em 5/8/1893. Está,
portanto, às vésperas de completar, em 2008, seus 115 anos. Por
seu caráter municipal, pode atribuir uma legislação própria para a
consulta aos documentos. As flexibilidades possíveis nesse âmbito
permitirão outras regras de acesso à História do Tempo Presente.
Em especial, ao acervo “Gabinete do Prefeito”, datado a partir de
1975 e composto por 29 mil documentos de autógrafos de leis e/ou
decretos, destinados ao público. Nesse conjunto, a questão de sigilo
não se aplica. Outros, como o acervo da Secretaria Municipal de
Saúde e o da Ouvidoria Central, estão sendo pensados na
perspectiva de dar acesso à informação preservando a identidade.
O acervo DOPS
Há mais de dez anos, tornou-se tema de minhas pesquisas
avaliar a organização e a disponibilidade das informações nos
acervos do Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara
(DOPS/GB) e do órgão congênere de São Paulo (DEOPS). Meu
objeto de reflexão centrou-se nos mecanismos da censura e nos
pactos da grande imprensa com os órgãos de repressão. Mapeei,
entre outros aspectos, os colaboradores, no interior das empresas
de comunicação, que optaram pelo expediente de autocensura
(KUSHNIR, 2004).
Como se vê, trata-se de uma questão delicada, em que limites
tênues parecem separar o que deve ser permitido e o que deve ser
considerado ilegal; o que é público para o corpo social e o que fere
a dimensão privada da história de cada cidadão. Esse é o aspecto
central da discussão, quando se tem um acervo policial como fonte
de pesquisa. Assim, os pesquisadores se encontram em uma
encruzilhada: por um lado, dependem da informação produzida pelo
Estado, que – sob a égide da segurança da nação – se entende no
direito de “conhecer” os atos dos seus cidadãos; por outro, se
encontram limitados em suas pesquisas pelas pessoas-alvo dessa
vigilância, que desejam preservar sua vida pessoal, sua intimidade e
honra.
Eis algumas reflexões iniciais acerca das fontes comuns aos
historiadores que se debruçam sobre a história do tempo presente,
sendo, por isso mesmo, crucial analisar as políticas de formação
dos acervos arquivísticos em geral. A dificuldade está em que,
muitas vezes, desconhecemos exatamente como lidar com a
classificação dos documentos − secreto, confidencial etc. −, como
também não temos a noção exata daquilo que pode ser mencionado
sem ferir a suscetibilidade das pessoas envolvidas. Além disso, não
sabemos quanto do conjunto original se manteve intacto após a
doação às instituições de guarda, ocorrida com a extinção legal das
agências repressivas.
O arquivo não é apenas um lugar de reunião de documentos ou o
locus de trabalho do arquivista. O historiador precisa conhecer suas
regras de formação para intervir nesse processo, reconhecendo-lhe
definitivamente a importância no desenvolvimento do seu ofício. No
caso dos arquivos do DOPS, há que se ressaltar uma peculiaridade:
durante a sua vigência, funcionaram como acervo interno de um
órgão de segurança; após a sua extinção, assumiu o caráter de
arquivo público. Esse perfil concede ao acervo uma característica
própria. Se, num primeiro momento, ele é um instrumento restrito de
um órgão público, “vivo” e constantemente realimentado, numa
segunda fase ele é deslocado para a seara pública, e as
informações ali contidas passam das mãos de poucos para um
acesso, a princípio, irrestrito.
A pesquisa nos arquivos
Ao refletir acerca da formação do acervo em arquivo, Henry
Rousso (1996) sublinhou as características do trabalho de cientistas
sociais europeus na abertura dos arquivos da antiga URSS.39 A
problemática era semelhante à brasileira: transformar o acervo em
um instrumento de pesquisa, manter sua organização original e
estabelecer critérios para a sua consulta pública. Igualmente,
preocupava-se com a seara dos direitos civis, com a manutenção da
privacidade dos indivíduos fichados e, principalmente, com o que
realmente se poderia esperar daquele tipo de fonte.
Nesse contexto, Rousso ponderou sobre as funções e os limites
dos arquivos para a tessitura da história. Sendo ele um estudioso
preocupado com a “história do tempo presente”, suas análises
mostram que, mais do que as fontes escritas, o tema em questão
amplia o conceito de “vestígios do passado”, ao incluir a história oral
na metodologia de trabalho. O cerne da preocupação é o
questionamento da “verdade histórica”. Ou seja, em que situação o
historiador se sente mais seguro: no registro escrito ou no
depoimento a posteriori.
No Brasil, quanto ao acesso ao acervo do DOPS e a possibilidade
de consultá-lo como fonte histórica, não podemos esquecer que,
entre a sua formação e a sua constituição como arquivo, transcorreu
um longo período de abandono. Em São Paulo, assim como no Rio
de Janeiro, as tentativas de organizar esse material aconteceram
somente a partir da posse dos governadores eleitos, em 1982, e do
fim da censura − determinada na Constituição de 1988.
Em São Paulo, contudo, até 1991, a coleção do DEOPS
continuava sob a tutela da Polícia Federal, e, mesmo depois de
transferida para o Arquivo Estadual, continuou vedada à consulta
pública (COUTO SOBRINHO, 1997). No Rio, o Arquivo Público do
Estado somente recebeu o material em 1/9/1992. Em 1986, em
meio ao processo de recolhimento da documentação, deu-se a
instituição do habeas-data. Essa norma jurídica buscava resolver a
situação civil de muitos familiares de desaparecidos políticos, assim
como de indivíduos que sofreram a repressão do Estado ditatorial
brasileiro pós-1964. Essa medida e a necessidade de consulta do
material do DOPS apressaram a liberação do acervo, inicialmente
para um público restrito, fato que, de algum modo, resultou na
liberação desses documentos e permitiu que fossem consultados de
forma mais ampla.
Se essa via legal possibilitou aos pesquisadores o acesso à
documentação, permaneceu a dúvida sobre como ordenar a
consulta ao material como pesquisa histórica. Durante esse debate,
foi promulgada, em 1991, a Lei de Arquivos, a qual legisla sobre os
fundos documentais. Mas, antes disso, já haviam sido criados
instrumentos jurídicos que viabilizaram o acesso a essa fonte de
pesquisa. No início da década de 1990, com a transferência do
acervo do DEOPS, de São Paulo, para o Arquivo do Estado, foi
editado o Decreto no 34.216, de 19/11/1991, que instituiu uma
comissão especial encarregada de receber a “papelada” do extinto
órgão. Naquele mesmo ano, promulgava-se a Lei 8.159/91, que
dispõe sobre a organização dos arquivos brasileiros e o acesso às
informações neles contidas. Outro exemplo nessa mesma direção é
o decreto editado pelo governo federal, no início de 1997, que, entre
outras medidas, alterava a classificação e as formas de
arquivamento de papéis sigilosos.40
Data, também, de 1991 a tentativa de se implementar uma
legislação regulamentando o Conselho Nacional de Arquivos
(Conarq) e definindo a política nacional de acesso à informação.
Nesse sentido, comissões especiais e câmaras técnicas produziram
normas com vistas ao trabalho arquivístico e à consulta dos
pesquisadores. Entre janeiro e março de 1997, foram publicados
dois dispositivos legais relativos a esse tema:
Decreto no 2.134, de 24/1/1997, que regula a classificação, a
reprodução e o acesso aos documentos públicos de natureza
sigilosa, apresentados em qualquer suporte, que digam respeito à
natureza da sociedade e do Estado, bem como à intimidade do
indivíduo,41
Decreto no 2.182, de 20/3/1997, que estabelece normas para
transferência e recolhimento de acervos arquivísticos públicos
federais para o Arquivo Nacional. Esse dispositivo legal co-
responsabiliza os órgãos e entidades da Administração Pública
Federal no processo de preservação dos documentos de valor
permanente, uma vez que a transferência e o recolhimento de
qualquer acervo ao Arquivo Nacional exigirão prévia avaliação,
organização e acondicionamento, o que exigirá a agilização na
recuperação das informações.
Para Vianna, Lissovsky e Sá (1986, p. 62-76), da esfera do
jurídico à da constituição de um acervo, o arquivo é, basicamente,
um locus privilegiado de construção de memória. Para os autores,
existem dois processos que transformam um “amontoado de papéis”
em “arquivo”. O primeiro é realizado pelo arquivador e o segundo
pela instituição de guarda que recebe, organiza e torna disponível o
acesso. O arquivador é um colecionador. Sua função é instituir uma
memória, sempre de maneira positiva. Organiza e coleciona os
papéis pensando a posteriori. Assim, o arquivador
[...] constitui a sua coleção de documentos segundo critérios que lhe são precisos
− precaução, vigilância, pragmatismo político ou administrativo (economia,
eficiência etc.), orgulho, fantasia e, até mesmo, senso histórico. De qualquer
forma, o arquivador constitui sua coleção como parte de si, segundo um
movimento que é, em primeiro lugar, um exercício de controle sobre os eventos e
que pode ainda estar erigindo sua eternidade enquanto indivíduo, cujo único
critério de aferição, e sólida garantia, é exatamente a memória. (VIANNA;
LISSOVSKY; SÁ, 1986, p. 67)

Quem seria esse personagem, no caso do acervo do DOPS? O


arquivador, o acumulador de informações, ali, era o chefe da seção
de arquivo – o seu organizador, enquanto se tratava de um arquivo
vivo da polícia. Essa pessoa é que realizava as funções acima
descritas. Para os autores mencionados, existem quatro modelos de
arquivos:
Caótico: aquele que chega aos centros de documentação de
maneira desordenada e exige que os profissionais da área
encontrem uma lógica que permita a sua consulta;
Centrífugo: em que os documentos, geralmente de caráter
administrativo, giram em torno da atuação do titular, no seu sentido
amplo. Permitem, assim, perceber tanto as atividades do titular nas
instituições da qual fez parte, como percorrer a trajetória desses
órgãos;
Centrípeto: neste tipo, os documentos, geralmente de caráter
político, estão voltados para as questões do Estado, possibilitando
esboçar um quadro do momento histórico, visto a partir da ótica
privilegiada de seu organizador;
Monumental: no qual os documentos são acumulados seguindo a
lógica de conferir ao seu titular um papel histórico, o qual,
certamente, ele teve, mas cuja pintura se acha carregada nas tintas.
No caso dos DOPS, os acervos caracterizam-se por uma tipologia
mista, centrífuga e centrípeta. Se, por um lado, têm como objetivo
identificar o “fichado” no mundo social, por outro, trata-se de um
arquivo que explicita o universo do outro a partir da lógica interna de
seu titular. Ou seja, da perspectiva da polícia. O acervo permite
tanto reconstituir uma trajetória do “fichado”, a partir da perspectiva
do agente policial, como a do “fichador”.
Quando esses acervos passam ao domínio público, certas
nuanças se explicitam. O material chega desorganizado aos
arquivos estaduais. Certamente houve uma “limpeza” realizada por
ex-agentes do órgão, o que nos leva a crer que a sua lógica interna
tenha sido muitas vezes deliberadamente manipulada. Uma
característica, contudo, lhes é marcante: contêm informações sobre
determinadas pessoas, mas não são arquivos privados. Por
pertencerem a um órgão público, sua documentação é de domínio
da sociedade, sendo esta situação um nó difícil de desatar. Outro
aspecto importante diz respeito à hipótese de um pesquisador que
se interessar, daqui a 100 anos, pelo assunto, e for consultar o
arquivo do DOPS. Nesse caso, não terá a metodologia da história
oral ao seu alcance e não poderá cotejar os dados documentais
com depoimentos verbais dos personagens.
Outra forma de apreender o conteúdo dos arquivos do DOPS é
verificar as premissas que ditaram sua acumulação. As informações
ali contidas foram recolhidas sob a orientação do olhar da polícia.
Há, portanto, que se levar em conta a distância entre as atividades
políticas outrora realizadas e o conteúdo das fichas policiais
elaboradas, compreendendo-se que foi a lógica da desconfiança de
um Estado autoritário que produziu o acervo. Por outro lado, foi a
lógica da democracia da informação que os transformou em
arquivos públicos, abertos à consulta. Essa abertura é uma forma
positiva de falar de um “silêncio”, como também de permitir ao
pesquisador rediscutir a constituição de uma memória.
Construindo a memória
A disputa em torno da memória esteve presente, por exemplo, na
adaptação do romance autobiográfico de Fernando Gabeira, O que
é isso, companheiro?, para o cinema. Instaurou-se, nesse caso,
uma polêmica acerca da apropriação e ficcionalização de fatos
históricos, expondo nos jornais e na TV uma ferida que ainda
sangra. Em resposta a essa manipulação do passado, Daniel Aarão
Reis Filho (1997, p. 31-45) questionou a perspectiva que tenta impor
aos anos de 1960 uma “memória da conciliação”. Para ele, “seria
como recordar esquecendo, esquecendo a dor” (REIS FILHO, 1997,
p. 35). A volta ao passado, para alguns, é um ato de abrandamento
e de eliminação das arestas e das diferenças, é um redesenhar que
deve respeitar uma lógica da harmonia e que dispensa tensões e
atritos.
Na análise de Étienne François (1998, p. 155-161), diretor do
Centro Marc Bloch-Berlim, há que se redimensionar o fascínio que
os arquivos das polícias políticas despertaram na comunidade
acadêmica, quando a esse fascínio se contrapõem as dificuldades
do seu manuseio. Centrando seu foco na especificidade da
República Democrática Alemã (RDA), François nos expõe as
exigências que a documentação da Stasi − a polícia política da
Alemanha Oriental − demandou dos pesquisadores que se
aventuraram a trabalhar ali. O deslumbramento de poder consultar
um material secreto em um momento de liberdade política gerou,
segundo o autor, a sensação de que todo o segredo do passado
seria finalmente liberto. Todavia,
[...] muito rapidamente [...] renuncia-se a essas pretensões e começa-se a
perceber que tudo não é assim tão simples, que os novos arquivos não falam por
si só, que, como todos os outros arquivos, eles devem ser submetidos a uma
crítica exigente das fontes, que seu manuseio só pode ser feito se forem
respeitadas as preocupações éticas e metodológicas elementares, e que mesmo
bem utilizados, e interrogados a partir de questões pertinentes, não dispensam o
historiador de seu trabalho habitual de reconstituição e de interpretação − e não
têm resposta para tudo. (FRANÇOIS, 1998, p. 157)

A apreciação de François dimensiona o potencial desses arquivos


de polícia política. Ao perceber a onipotência com que alguns os
encaram e a decepção que tamanha expectativa pode gerar,
François reafirma que tais arquivos são apenas mais uma fonte para
as pesquisas. Uma fonte rica e que não pode ser negligenciada,
mas – sublinha o autor – as informações ali contidas necessitam do
eterno cotejar com outras para melhor se compreender aquele
período da história. Sem dúvida, o mais importante é que, com a
liberação desses acervos, houve um “chamado ao trabalho, à
exigência metodológica e ética, à modéstia, à humildade, ao
requestionamento das certezas adquiridas” (FRANÇOIS, 1998, p.
161).
Os arquivos – em especial os que contêm informações de caráter
pessoal, como os dos serviços de segurança – lembra Camargo
(1993), possibilitam duas constatações: a de que lá se encontram
também informações improcedentes, inexatas e enganadoras; e a
de que lá se inscreveu a história de um órgão de Estado. Os
documentos do DOPS não devem ser tomados como a verdade da
vida dos indivíduos neles registrada, mas sim como a expressão da
lógica da desconfiança que permeava um órgão com características
ditatoriais. Conforme lembra o cientista social francês Henry
Rousso, inspirado por David Lowenthal, ao decifrar o ofício do
historiador e sua relação com os dados, “acessíveis ou fechados, os
arquivos são sintomas de uma falta, e a tarefa do historiador
consiste [...] em tentar suprimi-la de maneira inteligível, a fim de
reduzir o máximo possível a estranheza do passado”.
Patrimônio sem fronteiras42
As notícias sobre os numerosos furtos de bens culturais, ocorridos
entre 2005 e 2006, trouxeram perplexidade aos pesquisadores e à
sociedade como um todo. Foram subtraídas as fotos da Coleção
Thereza Christina Maria, doada pelo imperador D. Pedro II à
Biblioteca Nacional;43 os quadros de Matisse, Monet e Dali do Museu
da Chácara do Céu; as medalhas do Museu da Cidade; as fotos de
Augusto Malta, as revistas semanais, e as gravuras de Debret do
Arquivo Geral da Cidade; os quadros e dois castiçais de madeira
folheados a ouro, do século XVII, da capela da Colônia Juliano
Moreira.
As colunas dos jornais nos surpreendem, a cada semana, com
uma lista infinda de peças que desapareceram sob nossos olhos. O
fato sugere que não estamos sabendo preservar o patrimônio
público, a herança cultural dos que nos precederam e que, assim,
pouco deixaremos para as futuras gerações.
De um lado, a fragilização do Estado brasileiro, visível através das
privatizações e desmonte de suas instituições, praticadas nas
últimas décadas. De outro, a ganância que atravessa a sociedade, o
individualismo que deseja particularizar, que pretende, para si,
determinados bens de natureza intrinsecamente coletiva. Objetos de
grande significado vão perdendo o sentido histórico, para se
tornarem bens de valor monetário e de mercado.
Sabemos que quase sempre os furtos de documentos de valor
histórico, assim como as peças sacras retiradas de igrejas, são
ações que atendem a encomendas feitas por pessoas
conhecedoras do assunto e com bom grau de instrução, o que
tipifica essa forma de delito.
Nossos acervos culturais, que pertencem ao cidadão, precisam da
guarda do Estado. É patrimônio público, transcendendo as esferas
municipal, estadual ou federal. Esses bens, tombados ou não, pelo
IPHAN, devem ser objeto de eficaz ação administrativa, porque é
dever do Estado prover a coisa pública e garantir a sua integridade
física.
Desde que os crimes se intensificaram, os poucos recursos
recebidos por essas instituições como dotação orçamentária, que
vêm diminuindo ano a ano, e que deveriam ser canalizados para o
tratamento dos acervos, têm outro destino: as câmeras de circuito
interno, os controladores de acesso, os planos de segurança, os
detectores de presença. Precisamos trancar, vigiar e afastar o
perigo que parece conhecer cada detalhe dos prédios e de seus
bens mais valiosos.
Além da ausência de uma política de investimento nas carreiras
de museólogo, bibliotecário, historiador, restaurador, arquivista, boa
parte das instâncias de cultura do Estado brasileiro se comportam
como agências meramente burocráticas, nas quais aqueles que as
dirigem muitas vezes parecem desconhecer a importância das
peças originais, e acreditam que cópias substituem o que
desapareceu. Desconhecem o tempo que se leva para formar um
profissional nessas áreas, para identificar um acervo, e construir a
memória de uma instituição.
Serviços especializados são terceirizados, além daqueles de
vigilância e de limpeza, o que faz circular um número grande de
estranhos nesses ambientes, desrespeitando uma regra básica de
segurança, ao permitir o acesso de pessoas sem qualificação ao
lugar onde são depositados tesouros culturais.
Sem concursos e sem investimento no aperfeiçoamento dos seus
quadros, o Estado brasileiro acaba por consentir que imposições
políticas determinem a direção de equipamentos, em que técnicos
deveriam pôr em prática anos de estudo. Assim, os arquivos, as
bibliotecas, os museus, as igrejas brasileiras deixam sair pela porta
da frente, sem sinais aparentes de arrombamento, um patrimônio
que jamais retornará às estantes, mapotecas, altares e reservas
técnicas.
É preciso que se invista na consolidação de políticas culturais
efetivas e articuladas entre as diferentes instâncias públicas, e na
organização de mecanismos de segurança adequados, que ponham
fim a esses crimes contra o patrimônio público. Exemplo dessa
desarticulação é que, após anos de roubos, desaparecimentos e
perdas no acervo do Rio de Janeiro – capital da Colônia, do Império
e da República, e que, portanto, detém o maior número de
instituições de memória do país – e de outras cidades, poucas têm
sido as soluções para esses furtos.
São Paulo, por exemplo, registrou eficiência. Duas semanas após
o furto na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a polícia sabia
quem havia praticado o roubo, estabelecendo as conexões com
leiloeiros cariocas e permitindo a devolução das peças.
No Rio de Janeiro, a recente intervenção no leilão das aquarelas
do pintor alemão Friedrich Hagedorn sinaliza a possibilidade de
reversão desse quadro de impunidades. É imprescindível, portanto,
que se estabeleçam ações para o fortalecimento das condições de
salvaguarda dos acervos e de cooperação entre os agentes
envolvidos na proteção, segurança e comercialização de bens
culturais. Isto porque a Delegacia de Repressão a Crimes contra o
Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico da Polícia Federal no Rio
teve três delegados ao longo de 2006.
Referências
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Informação, documento e
arquivo: o acesso em questão. Boletim [da] Associação dos
Arquivistas Brasileiros, São Paulo, no 11, 1993.
COUTO SOBRINHO, Fausto. Apresentação. In: CARNEIRO, Maria
Luiza Tucci, Livros proibidos, idéias malditas: o DEOPS e as
minorias silenciadas. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.
FRANÇOIS, Étienne. Os “tesouros” da Stasi ou a miragem dos
arquivos. In: BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique (Org.). Passados
recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ: Ed. FGV, 1998. p. 155-161.
KUSHNIR Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à
Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.
LOWENTHAL, David. “Como conhecemos o passado”. Projeto
História. São Paulo, no 17, Nov./1998.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Um passado imprevisível: a construção
da memória da esquerda nos anos 60. In: REIS FILHO, Daniel
Aarão et al. Versões e ficções: o seqüestro da História. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 1997. p. 31- 45.
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO,
Janaína, FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 93-102.
VIANNA, Aurélio; LISSOVSKY, Mauricio; SÁ, Paulo Sérgio Moraes
de. A vontade de guardar: lógica da acumulação em arquivos
privados. Arquivos e Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, no 2, p.
62-76, 1986.

Professora convidada e visitante do Departamento de História da Universidade Federal


Fluminense. Desde abril de 2005, dirige o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Uma reunião desses estudos encontra-se no número 35, intitulado “Pour une nouvelle
historiographie de l’URSS”, do Les Cahiers de l’Institut d’Histoire du Temps Présent,
organizado por Nicolas Werth.
A classificação dos documentos é a que se segue, sendo possível dobrar o tempo de
interdição apenas uma vez. Assim temos: Reservados: cinco anos depois; Confidenciais:
dez anos depois; Secretos: passarão à categoria de público vinte anos depois de sua
produção; Ultra-secretos: trinta anos depois, só podendo receber esta classificação com a
assinatura dos presidentes da República, do Senado e dos Tribunais Federais, evitando-se,
assim, a proliferação de documentos com essa marca.
Decreto que regulamenta o artigo 23 da Lei nº 8.159, de 8/1/1991, e que dispõe sobre a
categoria dos documentos públicos e o acesso a eles, e dá outras providências. Disciplina
a consulta à documentação que esteja sob a guarda de arquivos públicos e foi estabelecida
a partir da grande procura às fontes dos DOPS. Tentando adequar as diretrizes da
Constituição Federal à pesquisa histórica, essa legislação, embora estabeleça o livre
acesso aos documentos tutelados por arquivos estaduais, ressalta a excepcionalidade da
consulta aos que ponham em risco a segurança nacional e/ou violem a imagem do
cidadão.
Corroborado pelas entidades: AAB – Associação dos Arquivistas Brasileiros, AAERJ –
Associação dos Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro, AAL – Arquivo de Política Militar
Ana Lagôa/Departamento de Ciências Sociais/Universidade Federal de São Carlos, AEL –
Arquivo Edgard Leuenroth/Centro de Pesquisa e Documentação Social/IFCH/Unicamp,
ANPUH – Associação Nacional de História, CIEC – Centro Interdisciplinar de Estudos da
Cidade/IFCH/ UNICAMP, IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ, SBPC –
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Constituída de obras que pertenceram às imperatrizes D. Leopoldina e D. Thereza
Christina Maria, a coleção recebeu este nome por condição imposta pelo seu doador, D.
Pedro II. Possui partituras em primeira edição de Beethoven, Haydn, Mozart, Weber, dentre
outros, além de livros raros e exemplares do periódico Brasil Musical, dedicado à imperatriz
do Brasil, com partituras para piano e canto-piano. Durante a greve dos servidores do
Ministério da Cultura, entre abril e junho de 2005, a Área de Iconografia da Fundação
Biblioteca Nacional sofreu um furto. O acervo mais atingido foi o de fotografias brasileiras
do século XIX, principalmente a Coleção Thereza Christina Maria, doada pelo Imperador D.
Pedro II. Esta coleção foi tombada em outubro de 2003, como Memória do Mundo pela
UNESCO.
PARA UMA HISTÓRIA DO I ENCONTRO DE
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO44
José Gonçalves Gondra45
Pensar um acontecimento ainda sob seu calor e das inúmeras
vozes e expectativas que o mesmo mobiliza não é das tarefas mais
simples e fáceis. Diante disto, eu gostaria de propor uma escavação
desse acontecimento, de modo a fazer aparecer camadas distintas
que, conectadas, permitem compreender as várias dimensões que
se encontram articuladas na realização de um evento como foi o I
Encontro de História da Educação do Rio de Janeiro.
Inicialmente, gostaria de explorar três condições que ajudam a
compreender a emergência desta iniciativa. Trata-se de observar a
data, o espaço e as instituições e sujeitos envolvidos neste
acontecimento.
Desse modo, parto da afirmação de que este evento não poderia
ter ocorrido antes. Em outras palavras, cabe indagar: o que levou
esta iniciativa a ser efetivada entre 4 e 6 de junho de 2007?
Responder a esta questão supõe reconhecer o modo como a
pesquisa educacional está atualmente organizada e, no seu interior,
observar o desenvolvimento da história da educação.
Todos os balanços feitos recentemente na área possuem um
ponto em comum: o reconhecimento da expansão da pesquisa
histórica em educação, seja pelo crescimento da malha da pós-
graduação em educação, seja pela presença da problemática
educacional e da perspectiva histórica presentes em programas
vizinhos.46
De modo equivalente, há que se registrar a expansão de grupos
de pesquisa que têm voltado sua atenção para a questão da
educação, em diferentes instituições, como é o caso da
universidade, mas também em arquivos, centros de memória e
documentação, centros de referência e museus temáticos, para
enumerar alguns. Nessa linha, deve-se considerar a organização de
sociedades de história da educação (de caráter regional e nacional),
com seus eventos e periódicos específicos, para fazer uma
referência a iniciativas desenvolvidas no Brasil. Estas, no entanto,
só são compreensíveis se consideramos as redes internacionais de
produção e difusão do saber no campo: os lusos,47 os iberos48 e o
ISCHE49 são bons exemplos dessas iniciativas. Ao mesmo tempo, a
circulação dos pesquisadores não tem se dado apenas por ocasião
dos grandes acontecimentos. Há, também, os projetos bilaterais, os
estágios de pesquisa de doutorado e pós-doutorado que,
certamente, também têm contribuído para o desenvolvimento dos
estudos históricos. Sem a pretensão de esgotar a lista das ações
que atestam o funcionamento do campo da pesquisa histórica,
considero que esses são elementos fortes que, pensados de modo
articulado, ajudam a compreender, ainda que parcialmente, o
nascimento do I Encontro de História da Educação do Rio de
Janeiro.
Disse parcialmente, porque agora passo a explorar a questão do
espaço onde o evento se realiza: Niterói, e, particularmente, na
Universidade Federal Fluminense.
Os pesquisadores do Rio de Janeiro não assistiram passivamente
aos movimentos do campo da história da educação. Foi no Rio,
precisamente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio), que tivemos o primeiro núcleo institucionalizado em
termos de pós-graduação que trabalhou de modo mais regular com
a perspectiva histórica. Nesse programa, atuaram vários
professores, e nele também muitos colegas obtiveram seus títulos
de mestrado e/ou doutorado, com pesquisas no campo da história
da educação. Ao lado da PUC-Rio, temos os programas de pós-
graduação em educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
Universidade Federal Fluminense (UFF) e, mais recentemente,
registramos o aparecimento de grupos de pesquisa em história da
educação na Universidade Católica de Petrópolis (UCP),
Universidade Estácio de Sá (UNESA), Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade Estadual do
Norte Fluminense (UENF), para indicar outras instituições. Ao lado
disso, há uma dispersão da produção em história da educação em
outros programas, como demonstra o importante estudo de Alves
(2005).
Considerando esse quadro, é possível compreender a realização
do encontro preparatório para criação da Sociedade Brasileira de
História da Educação no Rio de Janeiro, nas dependências da
UFRJ; local, aliás, que, em 2000, sediou o I Congresso Brasileiro de
História da Educação. Também não é por acaso que, nas diretorias
da SBHE, temos contado com representantes do Rio de Janeiro,
ocupando postos na tesouraria (1a gestão), vice-presidência e
secretaria, na 2a e 3a gestões, assim como na diretoria da região
sudeste, na 4a gestão.50 A representação de pesquisadores do Rio
de Janeiro também pode ser observada nas coordenações do GT
de História da Educação da ANPEd, em que dois pesquisadores do
Rio ocuparam a coordenação do mesmo.51
Esses são alguns dos indícios da organização da pesquisa no
plano estadual e da participação de pesquisadores fluminenses nas
instâncias de organização da área. Evidentemente, aqui, também
estou longe de fazer uma ressonância profunda da área. No
máximo, temos uma radiografia imprecisa.
No que se refere à instituição-sede da primeira edição do evento,
trata-se de uma universidade que possui programa de pós-
graduação importante e de larga tradição na pesquisa em história e
em história da educação, como podemos perceber no quadro de
professores da UFF, mas também no quadro de colegas que aqui
concluíram seus estudos em nível de mestrado e doutorado.
Portanto, a escolha da UFF pode ser explicada nesses termos,
mas esta seria também uma explicação parcial. O evento realizou-
se aqui porque a instituição fez parte do pool de universidades que
foram envolvidas nesta edição e contou com a disponibilidade e
competência da professora Claudia Alves para organizar, com
professores e alunos desta universidade, este evento, com todas as
grandezas e miudezas que um acontecimento como este exige para
que ocorra com sucesso. Ao lado disso, também contou com a
colaboração das universidades parceiras (PUC-Rio, UERJ, UFRJ e
UNIRIO) que se ocuparam de tornar possível outras ações.
Outro elemento que concorreu para que esta edição tivesse se
processado na UFF foi o fato de a mesma não se situar na capital
do estado. A idéia é de que o evento seja itinerante, e realizá-lo em
uma universidade fora do Rio nos pareceu ser um bom indicativo
desta vontade de envolver e atingir o estado do Rio de Janeiro como
um todo.
Nesta arqueologia do evento, já comecei a me referir às
instituições e pessoas, mas gostaria de ressaltar algo que todos nós
sabemos. Um evento implica uma agenda relativamente longa e a
suspensão da vida pessoal e institucional por longas horas.
Evidentemente, um acontecimento como este não se dá sem o
envolvimento político e pessoal dos organizadores,52 dos dirigentes
institucionais, dos pareceristas,53 das instâncias de financiamento,
dos grupos de apoio nas diferentes instituições, mas, sobretudo, da
anfitriã. Mas para que um congresso se realize, é necessária a
adesão da comunidade a este tipo de fraternidade que um evento
pretende ser. Aqui vou me permitir pensar as pessoas afetadas pelo
evento, mas também o efeito dessa prática na difusão da pesquisa e
na proposição de uma agenda para a mesma.
Sabemos que não se faz boa ciência sem uma divulgação eficaz
e regular do saber que se produz. Nesse sentido, há vários veículos
empregados para disseminação e popularização do saber em
história da educação. Já nos referimos à importância dos periódicos,
mas também há os livros, os jornais, as revistas, sítios na internet,
literatura e, em alguma medida, TV, cinema, teatro e rádio, para
citar, talvez, as formas mais conhecidas. Poderíamos dizer que são
formas concorrenciais e os eventos aí devem ser considerados.
Na tentativa de pensar as formas concorrenciais de disseminação
do saber que produzimos, gostaria de chamar a atenção para as
características do evento. Em um tempo no qual vibramos com as
possibilidades abertas pela informática, isso tem proporcionado uma
espécie de novo fetiche em torno da tecnologia. Finalmente,
segundo os publicitários das novas tecnologias, ter-se-ia encontrado
um bálsamo, uma nova panacéia para todos os males da
humanidade. No caso dos eventos, incluindo as aulas, eles seriam
melhores e mais democráticos se fossem feitos via rede, pela
internet, de modo “interativo”. Portanto, como uma espécie de aula
expandida, os eventos também não mais teriam razão de ser, posto
que se constituiriam em uma face da velha e ineficaz forma de
difusão não interativa.
Considerando que produzimos ciência humana e social, creio que
o debate presencial, das trocas diretas e indiretas, da luz lançada
por meio do encontro de homens e mulheres comprometidos/as com
a expansão da inteligência disponível sobre o objeto maior de nosso
interesse, a educação, não pode ser substituído por nenhuma das
outras formas de disseminação. A importância dos outros veículos
não deve implicar uma minimização ou desprezo pelo regime de
trocas que se dá presencialmente, em eventos que cumprem
protocolos de avaliação e de validação do saber, e que produzem
memória por meio dos suportes que um acontecimento como este
proporciona.
Tendo me referido ao tempo, ao espaço e aos sujeitos que
permitem compreender a emergência do I Encontro de História da
Educação do Rio de Janeiro, passo a trabalhar com a forma deste
acontecimento.
A Forma do Encontro
Pensado como um mecanismo institucional para organizar a área
localmente, fora dos espaços dos diferentes programas de pós-
graduação que discutem história da educação (seja na educação,
história, ciências sociais, etc...), o encontro também funciona como
uma espécie de censo mais minucioso da produção no (e sobre o)
Rio de Janeiro. Consideramos, igualmente, que a participação em
nível local tende a estimular a presença de sujeitos envolvidos com
a pesquisa em história da educação no plano regional, tornando
mais possível identificar os fóruns de reflexão sobre história da
educação fluminense existentes, posto que eventos nacionais e
internacionais tendem a privilegiar a participação de grupos mais
estruturados.
Como já dissemos, o encontro também se constitui em
oportunidade para discutirmos mais coletivamente nossas agendas
de pesquisa e problemas comuns, para divulgar e identificar acervos
de interesse para a pesquisa em história da educação e promover
articulação entre as instituições de pesquisa, acervos e unidades
escolares dos 93 municípios do estado do Rio de Janeiro.
No que se refere à agenda, ela pode ser evidenciada na
programação geral pensada para o encontro que acabamos de
experimentar. Como vimos, e como se segue, ele foi pensado em
torno de cinco momentos gerais, com uma abertura e um
encerramento e três mesas-redondas, concentradas nas manhãs e
noites. As tardes foram reservadas para a comunicação dos
trabalhos e pôsteres.
Dia 4/6 (segunda- feira):
18 h: Mesa de Abertura
19 h: Conferência Memória, História e Política
Prof. Dra. Margarida de Souza Neves (PUC-Rio)
Dia 5/6 (terça-feira):
9 h: Mesa-Redonda Perspectivas da produção historiográfica54
Profa. Dra. Sonia Regina Mendonça (UFF)
Profa. Dra. Clarice Nunes (UFF/UERJ)
14 h: Sessão de Comunicações
16 h: Sessão de Comunicações
18 h: Sessão de Pôsteres
19 h : Mesa-Redonda História da Educação e História regional
Prof. Dr. Luciano Mendes Faria Filho (UFMG)
Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos (PUC-RS)
Profa. Dra. Maria Juracy Cavalcanti Maia (UFCE)
Dia 6 (quarta-feira):
9 h: Mesa-Redonda Acervos, preservação documental e História
Prof. Dr. Jaime Antunes – Arquivo Nacional
Profa. Dra. Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero –
PROEDES/UFRJ
Profa. Dra. Beatriz Kushnir – Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro
14 h: Sessão de Comunicações
17 h: Mesa de Encerramento – Prof. José Gonçalves Gondra
(UERJ)
Como consta na Apresentação deste evento, a participação de
estudantes de graduação e pós-graduação, professores da
educação básica, tanto do interior do estado do Rio de Janeiro
quanto de outros estados, evidenciou a abrangência do interesse
despertado. Nessa direção, constatamos que o I Encontro de
História da Educação do Estado do Rio de Janeiro (I EHED-RJ)
recebeu a inscrição de 235 propostas de trabalhos. Desse total, o
Comitê Científico aprovou 207, sendo que 22 delas sob a forma de
pôsteres, e as outras 185 integrando as sessões de comunicações.
O quadro abaixo apresenta a distribuição nos 10 eixos temáticos
em que foram agrupados os trabalhos:
Distribuição dos trabalhos aprovados no I EHED – RJ
EIXOS TEMÁTICOS Comunicações Pôsteres Parcial %
1 Movimentos sociais e luta pela escola 20 3 23 11
2 Imprensa, impressos e educação 13 1 14 6,8
3 Profissão docente 24 2 26 12,6
4 Intelectuais e idéias pedagógicas 13 1 14 6,8
5 Historiografia da educação e fontes 18 3 21 10
6 História da infância e da educação infantil 15 0 15 7,4
7 História das disciplinas escolares 18 1 19 9,2
8 Políticas educacionais 33 6 39 18,8
9 Instituições escolares, culturais e científicas 18 4 22 10,6
10 Cultura escolar e práticas educativas 13 1 14 6,8
Sub-Total 185 22 - -
Total 207 100

Um comentário sobre os eixos de distribuição de trabalhos em


qualquer evento deve levar em consideração que, via de regra, se
constitui em uma auto-atribuição do proponente que, por vezes,
duvida de sua própria classificação, dado o caráter arbitrário das
grades propostas. Podemos encontrar trabalhos inscritos em um
determinado eixo que certamente poderiam estar em outro.
No caso do I EHED-RJ realizamos uma experiência um pouco
distinta, e que gerou um trabalho adicional. A partir dos resumos é
que se pensou um distribuição dos mesmos em eixos mais amplos
que enfeixassem um certo conjunto, aglutinado a partir de objetos
mais ou menos comuns. Trata-se, portanto, de considerar a grade
proposta como um sinal do modo como os organizadores pensaram
a possibilidade de classificar a produção em história da educação
em estratos mais específicos. Nessa linha, os eixos devem ser
tomados como um esforço no sentido de se tentar promover uma
identificação dos objetos explorados nos trabalhos encaminhados
para este evento.
Com esta lente, é possível observar uma leve concentração dos
trabalhos aprovados no eixo das políticas educacionais, nas
comunicações e pôsteres, sinal da permanência de um objeto
bastante tradicional nos estudos históricos, e que se mantém no
horizonte dos pesquisadores de história da educação. Como
problema, restaria conhecer o tratamento que vem sendo
dispensado aos trabalhos inseridos nesse eixo, o que não vai ser
possível nos limites deste balanço. Nos demais eixos, observa-se
uma distribuição mais ou menos equilibrada, cabendo registrar a
inexistência de pôsteres no eixo 6 – História da infância e da
educação infantil –, fato que pode indicar pouca coisa, tendo em
vista a quantidade de pôsteres no I EHED-RJ. Já a distribuição mais
ou menos equilibrada no conjunto dos 10 eixos ajuda a pensar os
recortes com que os pesquisadores têm trabalhado, sinaliza suas
ênfases, indica as seleções e escolhas. Tudo isto fortalece o
princípio de que a compreensão do fenômeno educativo exige
alargamento do campo de visão, sem cair em uma angulação única
que, pretendendo falar de tudo, produz uma história como se este
modo de pensar o homem pudesse ser feita sob a forma de uma
metonímia.
Adesões
Tendo contado com uma adesão expressiva da comunidade
fluminense,55 gostaríamos de pôr acento em cinco pontos: as
instituições às quais os pesquisadores presentes no I EHED-RJ se
encontram vinculados, os objetos, as fontes, a periodização e a
bibliografia mobilizada pelos autores dos trabalhos aqui
apresentados. Gostaria de sublinhar que esta é uma possibilidade
de decomposição do evento que, deste modo, dá visibilidade a
algumas coordenadas necessárias da operação historiográfica.
Antes de passar aos comentários desses aspectos, chamaria a
atenção para as bases com as quais trabalhamos. Exploramos duas
bases: uma a dos 235 resumos de comunicações e pôsteres e,
outra, a dos 161 trabalhos completos. Cabe, portanto, observar a
diferença expressiva entre uma base e a outra,56 o que nos levou a
operar com uma e outra, de modo bem específico. No caso das
instituições, trabalhamos com o conjunto dos resumos (pôsteres e
comunicações) para dar uma idéia mais geral da divulgação do
evento, da mobilização que o mesmo foi capaz de imprimir e da
adesão efetiva dos pesquisadores de instituições fluminenses, mas
também de outras regiões, como veremos. No caso dos demais
itens, mudamos de base, pois entendemos que um levantamento
mais preciso dos objetos, periodização, fontes e bibliografia seria
feito por meio dos textos completos. Neste caso, privilegiamos o
conjunto dos 161 trabalhos completos remetidos.57
As instituições
Observar as instituições representadas se constitui em indício da
adesão ao evento, ao mesmo tempo que funciona como atestado de
sua capilarização e dos lugares de produção da pesquisa histórica
em educação. Como procedimento, fiz um mapa com base na
listagem dos trabalhos aprovados, por entendê-la como mais ampla,
visto que alguns dos que obtiveram aprovação, por motivos vários,
podem não ter remetido o trabalho completo. O quadro foi feito a
partir dos pesquisadores, posto que há casos de trabalho de dupla
autoria com pesquisadores de uma mesma instituição, mas também
há casos em que os autores pertencem a instituições distintas.
Tomando esses cuidados, o que este levantamento dá a ver?
Como era de se esperar, a produção se encontra fortemente
vinculada às universidades, sobretudo às que possuem programas
de pós-graduação em educação. No entanto, há uma dispersão que
merece ser levada em consideração, como pode ser observada na
tabela seguinte.
Lugares de produção da história da educação no Rio de Janeiro
Instituições Número Instituições Número
UERJ 69 Colégio Militar do Rio de Janeiro 1
UFF 57 Instituto de Educação Prof. Moysés 1
Henrique Santos
UFRJ 27 UFAC 1
UNIRIO 16 CEP Escola da Floresta 1
PUC-Rio 10 UEFS 1
UENF 7 UCAM 1
UCP 6 UFMG 1
SME- Rio 6 UNIVERSO 1
UFRRJ 4 FAETEC 1
SEE-RJ 4 ETEFEV 1
CEFET- Rio 4 CPDOC 1
CP II 4 UVA 1
UFU 3 UNISO 1
UFJF 3 MSB 1
MAST 3 UNIFLU 1
UNICAMP 2 UNIGRANRIO 1
UFPR 2 SME – Caxias 1
UTP 2 UNESA 1
CEFET – Campos 2 ISEPAM – SARE 1
ISERJ 2 PUC-SP 1
FASS 2 UCB 1
FAMATH 2 UFMS 1
Santa Dorotéa 1 FME Niterói 1
Universidade de Aveiro – 1 UNESA 1
Portugal

No exterior da malha de ensino superior, cabe observar a


participação de pesquisadores vinculados a instâncias
governamentais (secretaria estadual e secretarias municipais),
assim como a colégios e ao Museu de Astronomia. Também cabe
destacar a presença de universidades fora dos limites do estado do
Rio de Janeiro, sinal de que a educação fluminense também tem
interessado a pesquisadores localizados em outras regiões. Tal
presença, também, pode ser atribuída ao tipo de trabalho proposto,
de caráter mais teórico, em que a questão da região pode não ter
sido fundamental.
Objetos
Os problemas de pesquisa presentes no I EHEd-RJ encontram-
se, em alguma medida, representados nos 10 eixos do evento. No
entanto, como já assinalamos, essa classificação exibe
possibilidades de reconhecimento das ênfases dos trabalhos, mas
também de suas interfaces. Deste modo, uma forma adicional de
observar os objetos privilegiados e os pontos de contato entre os
mesmos pode ser vista no modo como as sessões de comunicação
foram elaboradas. Essa distribuição mais detalhada, visível nas 29
sessões, também pode ser compreendida como um exercício de
classificação por meio do qual se procurou agrupar os trabalhos por
aquilo que os aproxima, isto é, pelos objetos a que se referem.
Considerando esse exercício de classificação, feito com muito
cuidado no I EHED-RJ, ele também demonstra um esforço de
nucleação dos trabalhos por meio de seus objetos que, de certa
forma, desdobra, nas 29 sessões, os dez eixos propostos pelo
evento. Ao mesmo tempo, também sinaliza para os limites da
classificação, quando arranjos novos aparecem, combinando
objetos distintos. Um único exemplo para pensar essas novas
combinatórias. O objeto “formação de professores” é examinado por
meios distintos, com ênfase nas fontes orais, nas instituições de
formação, no movimento social, na ação da intelectualidade, nos
saberes específicos e nas políticas públicas voltadas para esta
questão. Portanto, onde localizar esta questão?
Como podemos ver, o objeto “formação” não pode ser buscado
unicamente no eixo a ele destinado. Para ser mais preciso, o
rastreamento deveria ser mais alargado, de modo a poder acessar a
variedade do questionário, isto é, das formas de indagação a que
este problema vem sendo submetido, condição para se produzir
uma ciência de seu estado e, ao mesmo tempo, para se poder
pensar outras interrogações, de modo a não repetir o já sabido, de
modo a ultrapassar o estado atual da pesquisa de uma determinada
problemática. Este nos parece ser o grande desafio: observar o
pensado, o sabido, para tornar possível pensar o que ainda não foi
pensado e aquilo que ainda não sabemos.
Desse modo, cabe observar os objetos, mas também os modos
pelos quais eles estão sendo trabalhados, tomando os eixos como
uma ferramenta que possibilita uma localização inicial dos objetos.
Localizados, cabe ainda observar o tratamento dado aos mesmos.
No sentido de contribuir para esse esforço, vamos observar a
periodização, fontes e bibliografia mobilizada pelos autores em seus
trabalhos, o que, em alguma medida, ajuda a pensar os objetos e o
modo como os mesmos vêm sendo examinados pelos
pesquisadores de história da educação.
Periodização
Do ponto de vista da periodização, trabalhamos com cinco
períodos largos para testar a concentração das temáticas deste
evento.
a. 1500-1800 – 3
b. 1800-1850 – 2
c. 1850-1900 – 19
d. 1900-1950 – 28
e. 1950-2000 – 34
f. 2000-2007 – 10
g. Sem indicação precisa – 13
h. Dois ou mais períodos – 20
Este mapa indica uma concentração de trabalhos no período
republicano, com um total de 72 trabalhos, isto é, cerca de 50% dos
mesmos. O século XIX comparece com 21 trabalhos, sendo a maior
parte deles concentrada na segunda metade. Cabe, ainda, observar
a presença de cinco trabalhos que operam com um período extenso,
procurando recobrir uma questão por mais de 100 anos e a
rarefação de estudos sobre o período colonial. Curioso notar que a
experiência fluminense acompanha, de modo muito aproximado, a
concentração dos estudos nas mesmas faixas temporais
observadas em outros eventos da área, como a que pode ser
observada nos Congressos Brasileiros de História da Educação.58
Outra observação que caberia fazer diz respeito à existência de
13 trabalhos em que a periodização não fica clara. Em alguns dos
casos, isto é compreensível dado o caráter do trabalho. Por
exemplo, alguns trabalhos que discutem o estatuto de determinadas
fontes, como a memória. Essa reflexão é feita apanhando mais o
debate sobre esta modalidade de fonte, fazendo com que a
periodização não apareça. De qualquer modo, tomando esta como
uma das coordenadas necessárias para a prática da pesquisa
histórica, chama a atenção a pouca clareza deste aspecto em cerca
de 10% dos textos completos.
As fontes
No que se refere ao núcleo documental necessário para se fazer
a pesquisa histórica, podemos observar que se encontra
profundamente associado aos objetos e períodos em exame, como
seria de se esperar. Cabe atestar, contudo, uma ampliação das
fontes, com a manutenção de corpus documentais tradicionais,
como o são os de caráter administrativo. No entanto, ao lado deles,
acompanhando o debate sobre o estatuto do documento, na linha
da reflexão já proposta desde Marc Bloch, no século passado,
também evidenciamos uma nova forma de tratar os documentos
mais tradicionais, mas, também, a presença e o incremento de
novas fontes.
Esta evidência demonstra que os historiadores da educação
descobriram efetivamente a necessidade dos arquivos, públicos e
privados, para o desenvolvimento de suas reflexões, o que tem
implicado uma renovação da história da educação, cujos efeitos
ainda não conseguimos avaliar com o rigor necessário.
Para efeito deste balanço, ao fazer um levantamento geral das
fontes com as quais os pesquisadores trabalharam, é possível
demonstrar o que acabamos de apresentar de modo genérico. Do
ponto de vista de uma maior recorrência, encontramos as fontes
legislativas, orais, projetos, planos e estatutos institucionais. Ao lado
destas, aparecem as revistas, jornais, imagens, livros, manifestos e
relatórios. De um modo mais disperso, temos, também, o recurso à
literatura, cadernos escolares, banco de dados, diários, planos de
aula, guias de viagem, provas, anuários, livros de freqüência,
biografias, quadros de matrícula, históricos escolares, diplomas,
convites de formatura, atas e materiais escolares.
No levantamento, também foi possível observar um sistema de
remissão às fontes utilizadas feito de um modo bastante genérico.
Alguns trabalhos fazem referência ao uso de fontes primárias e
secundárias, sem especificar quais, menos ainda, sem desenvolver
uma reflexão acerca do estatuto das mesmas. Há outros que
indicam o acervo com o qual trabalharam, sem oferecer ao leitor
uma identificação mais detalhada acerca da massa documental
encontrada e com a qual operaram na pesquisa.
Nos limites desta comunicação, cabe assinalar a impossibilidade
de se analisar o tratamento dado à fonte na série dos trabalhos
aceitos e remetidos em sua forma completa ao I EHED-RJ. No
entanto, este é um investimento necessário para se discutir a velha
e necessária função do documento na narrativa histórica, de modo a
superar o uso da fonte como algo secundário e, no limite,
desnecessário. Do mesmo modo, cabe superar o outro extremo que
afirma ser a fonte uma transparência do real e que ela exprimiria
toda a verdade. Neste sentido, uma reflexão acerca dos usos da
documentação na pesquisa histórica ainda é algo que merece e
precisa ser feito, como forma de teorizar acerca da história que
estamos fazendo. Creio que investimento semelhante precisa ser
feito em relação à bibliografia que manejamos para compreender e
interferir no debate relativo aos problemas que estamos explorando
no campo da pesquisa histórica. Com isto, passamos a este último
elemento.
A Biblioteca do I EHEd-RJ
Pensar os autores citados em um evento se constitui em uma
experiência de ingresso na biblioteca dos pesquisadores e na
intimidade de suas leituras. Tal experiência permite observar o
conjunto dos autores que vêm comparecendo como fonte para as
pesquisas, mas, também, como caixa de ferramentas para as
reflexões desenvolvidas. Uma primeira aproximação permite
identificar estes dois usos e, do mesmo modo, possibilita perceber
que os trabalhos utilizam uma base de autores estrangeiros menos
extensa do que a de brasileiros.
A seleção dos autores, como já era previsível, se encontra
articulada aos objetos, período, modo de indagação e perspectiva
historiográfica. Ainda no campo da previsibilidade, também
observamos que a biblioteca dos historiadores da educação é
heterogênea em virtude dos critérios de seleção adotados, como
acabamos de assinalar. No caso do I EHED-RJ, o que podemos
acrescentar é a extensa variedade da biblioteca dos autores que
remeteram seus trabalhos completos.
No caso dos estrangeiros, totalizamos referência a 153 autores.
Neste caso, é possível observar a concentração de alguns autores.
A título de exemplo, vamos indicar apenas os que estiveram
presentes em, no mínimo, 10% do universo pesquisado, isto é, que
apareceram no mínimo 13 vezes. Com este critério, temos a
presença de Antonio Nóvoa, com 20 referências, Roger Chartier,
Jacques Le Goff e Michel Pollak, todos com 19 referências e Michel
Foucault com 17. Todos os demais tiveram menos que 13
indicações, sendo um grande número com apenas uma indicação, o
que também ocorre no caso das referências aos brasileiros. Ao
observar esta lista dos mais referidos, chama a atenção a exclusiva
referência a autores europeus, sendo apenas um deles de Portugal
e todos os demais da França.
Evidentemente, este pode ser um sinal fraco, mas, de qualquer
modo, funciona como um indício da tradição da historiografia
francesa e de autores associados ao movimento de renovação da
mesma. No caso do autor português, sua presença pode ser
compreendida pelo objeto de que trata de modo mais específico: a
questão dos professores. Ela, também, poderia ser compreendida
pela participação do mesmo em redes de pesquisa em que
brasileiros estão envolvidos e, evidentemente, pela facilidade da
língua. No caso dos demais, isso não se constitui em barreira, dado
que todos os livros referidos são os que já se encontram traduzidos
para a língua portuguesa.
No caso dos brasileiros, a heterogeneidade e a dispersão são
ainda maiores, se considerarmos o total de 731 autores brasileiros
presentes na bibliografia até agora trabalhada. No entanto, no que
se refere à regularidade de algumas presenças, adotando-se o
mesmo critério empregado no caso dos estrangeiros, temos a
seguinte freqüência: Clarice Nunes e Diana Vidal com 19
indicações, cada uma; José Gondra, com 15 e Luciano Mendes
Faria Filho, com 14 e Marta Maria Chagas de Carvalho e Heloísa de
Oliveira Santos Villela, com 13 cada uma.
Deste conjunto, o que poderíamos destacar? A presença de
autores fora dos limites fluminenses, como é o caso de
pesquisadores de São Paulo e Minas Gerais. Também é possível
observar que tais autores pertencem a programas de pós-graduação
com grupos de história da educação consolidados. Ainda poder-se-
ia pensar esta recorrência agregando dois elementos adicionais: os
objetos por eles trabalhados e a participação dos mesmos nas
instâncias de organização da área, como o GT de História da
Educação da ANPEd e da Sociedade Brasileira de História da
Educação. No primeiro caso, a hipótese é a de que esses autores
trabalham com objetos variados e consagrados na área e, a
segunda, é a visibilidade proporcionada pela presença dos mesmos
nas instituições referidas.
No caso dos 731 referidos, mantém-se um expressivo número dos
que aparecem uma única vez, mas há também um bom número de
autores que aparecem mais de uma vez no universo até agora
trabalhado.
Neste breve exercício, há limites e problemas não enfrentados.
Por exemplo, não cruzamos os autores com as obras, para ver se
há a concentração de um ou outro livro dos autores citados. Creio
que isso nos forneceria uma informação de outra qualidade para
pensar a biblioteca dos historiadores do I EHED-RJ. Ao mesmo
tempo, pensar as formas de consumo dessa literatura, também não
foi possível neste momento, mas o estudo desse aspecto
certamente forneceria indicadores preciosos para se analisar a
leitura e a apropriação que os historiadores da educação estão
fazendo de uma determinada bibliografia e seu efeito na
compreensão de seus problemas de pesquisa.
No tratamento desta informação, dois outros pontos merecem ser
discutidos. Como considerar a freqüência dos autores referidos em
seus próprios textos? Como contabilizar a concentração de uma
referência de várias obras de um mesmo autor em um único artigo?
Estes são dois problemas adicionais para se poder analisar a
biblioteca que esteve presente no conjunto das comunicações e
pôsteres apresentados no I EHEd-RJ.
Considerações finais
O término de um evento nos coloca diante do desafio de se
perguntar sobre sua validade e sobre sua continuidade. No nosso
caso, a inimaginável adesão ao I EHED funciona como um
termômetro do interesse da comunidade fluminense em constituir e
legitimar uma tribuna regular para disseminar o que é feito
localmente, e que também pode funcionar como espaço para pautar
a pesquisa que ainda precisamos fazer.
Neste sentido, há um indicativo de seqüência e este me parece
ser o primeiro desafio a ser lembrado/enfrentado. Este, no entanto,
para seguir de modo conseqüente, supõe outros desafios, como o
da consolidação de núcleos de pesquisa e de redes de
pesquisadores no território fluminense. Ousaria pensar, inclusive,
fora das universidades e/ou a elas articulados.
Creio que a capilarização da pesquisa histórica consolida essa
forma de interrogar a educação e, com isto, possibilita a dilatação de
nosso saber e de nossa experiência relativa a essa matéria. Creio
que a consolidação deste modo de pensar a educação pode vir a
constituir núcleos sólidos de reflexão no que se refere à história da
educação, o que pode estimular, por exemplo, a construção de
acervos documentais nos 93 municípios fluminenses e mesmo na
imensa malha das escolas públicas e privadas.
Acoplado à consolidação dos núcleos de pesquisa em história da
educação no Rio de Janeiro, cabe pensar as formas de visibilidade
e difusão da documentação e de nossa produção. Desse modo,
pensar os acervos documentais pode estar associado à construção
de acervos virtuais, de modo a tornar mais disponível a
documentação e a produção organizada pelos diferentes núcleos.
Outro desafio que imagino, a exemplo do que já se faz no Rio
Grande do Sul, é a organização de um periódico de história da
educação do Rio de Janeiro. A forma e o suporte poderiam ser
discutidos, mas talvez seja possível pensar em um veículo
interinstitucional que funcione como elemento de ligação das
diversas instituições de pesquisa e ensino de nosso estado e, ao
mesmo tempo, como uma ferramenta de difusão da história da
educação fluminense em um intervalo regular e próprio.
Outro desafio se constitui em enfrentar temas rarefeitos e/ou
ausentes do I EHED-RJ. Um deles, para exemplificar, refere-se ao
ensino de história da educação. Creio que observar o que se ensina
em nome da história da educação nos cursos de graduação e nas
demais licenciaturas, bem como nos programas de pós-graduação,
pode ser um instrumento bem fértil para avaliar o grau e o tipo de
relação que vem sendo estabelecido entre a reconhecida renovação
da pesquisa e seus efeitos nas salas de aula da graduação e da
pós-graduação.
Estes são alguns desafios para os quais gostaria de chamar a
atenção neste momento de encerramento. Encerramento que só
pode ser feito sob o signo da comemoração e da alegria, inclusive
pela possibilidade de identificar alguns problemas e de se pensar
em uma agenda de trabalho.
Devemos comemorar a possibilidade do encontro, do encontro
que ultrapassou a forma do papel e tinta e das telas dos
computadores. Nesses três dias de trabalho, pudemos perceber que
este tipo de encontro é insubstituível e, como os demais,
profundamente necessário.
Referências
ALVES, Claudia. A escrita da história da educação na pós-
graduação no Rio de Janeiro (1972-2001). In: GONDRA, José
(Org.). Pesquisa em História da Educação no Brasil. Rio de Janeiro:
DP&A, 2005. p. 113-155.
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1991.
GONDRA, José (Org.) Pesquisa em História da Educação no Brasil.
Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

Como todos os textos, este também contém algumas assinaturas invisíveis. No entanto,
uma delas merece ser iluminada e esta é a forma que encontrei para agradecer ao José
Cláudio Sooma da Silva pelas leituras cuidadosas e generosas que fez de versões
anteriores a esta.
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Um mapa importante da produção recente da história da educação no Brasil pode ser
conferido em Gondra (2005).
Trata-se do Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, cuja sétima edição
ocorreu na Cidade do Porto, em 2008.
Trata-se do Congresso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana, cuja
oitava edição aconteceu em 2007, em Buenos Aires.
Trata-se da International Studyng Conference for History Education, cuja 29ª edição
ocorreu em 2007, em Hamburgo.
A professora Ana Waleska Mendonça (PUC-Rio) ocupou a tesouraria e vice-presidência e
a professora Libânia Nacif Xavier (UFRJ), a secretaria da Sociedade Brasileira de História
da Educação. Na última gestão, a regional Sudeste da SBHE foi coordenada pela
professora Claudia Alves (UFF).
Trata-se da professora Clarice Nunes (UFF/UERJ) e do professor José Gonçalves Gondra
(UERJ).
Profa. Dra. Ana Waleska Pollo Campos Mendonça – PUC Rio, Profa. Dra. Claudia Alves –
UFF, Prof. Dr. José Gonçalves Gondra – UERJ, Profa. Dra. Libânia Nacif Xavier – UFRJ e
Profa. Dra. Nailda Marinho da Costa Bonato – UNIRIO.
Chrystina Venâncio Mignot – UERJ, Ana Lúcia Cunha Fernandes – UFRJ, Ângela Maria
Souza Martins – UNIRIO, Dácio Tavares Lobo Junior – UFF, Heloisa de Oliveira Santos
Villela – UFF, Lígia Martha Coimbra da Costa Coelho – UNIRIO, Luiz Reznik – PUC-
RIO/UERJ, Mirian Waidenfeld Chaves – UFRJ, Silvia Alicia Martinez – UENF, Sônia
Câmara – UERJ, Tereza Fachada Levy Cardoso– CEFET e Yolanda Lobo – UENF
Inicialmente convidado, o professor Manoel Luís Salgado Guimarães (UFRJ/UERJ) teve
imprevisto pessoal e não pôde comparecer a essa sessão.
Até o início do evento, contabilizamos 49 inscritos como ouvintes no evento.
Dos 207 resumos aprovados, foram 185 na modalidade Comunicação e 22 na modalidade
Pôster. Quarenta e seis autores não remeteram trabalho completo (comunicações orais e
pôsteres) no prazo solicitado, de modo que os mesmos pudessem ser incorporados ao CD-
Rom do I EHED-RJ.
Agradeço o auxílio de Madison Oliveira Moraes (bolsista IC-CNPq) e Kelly Pereira Pinho
(Bolsista EIC- UERJ) na realização deste levantamento. No CD há 161 trabalhos, mas até
o momento deste levantamento só dispunha de 133. Para uma visão dos trabalhos
completos e de sua distribuição pelos eixos, cf anexo 1.
Para acessar os trabalhos apresentados nas edições do Rio de Janeiro (2000), Natal
(2002), Curitiba (2004) e Goiânia (2006), cf. <www.sbhe.org.br>.
ANEXO 1
Do total de 207 trabalhos aprovados, foram para o CD 161 textos
completos, considerando as comunicações e pôsteres, com a
seguinte distribuição por eixo temático:
- Eixo 1 (Movimentos sociais e luta por escola): 17
- Eixo 2 (Imprensa, impressos e Educação): 10
- Eixo 3 (Profissão docente): 21
- Eixo 4 (Intelectuais e idéias pedagógicas): 11
- Eixo 5 (Historiografia da Educação e fontes): 16
- Eixo 6 (História da infância e da Educação infantil): 12
- Eixo 7 (História das disciplinas escolares): 15
- Eixo 8 (Políticas educacionais): 29
- Eixo 9 (Instituições escolares, culturais e científicas): 19
- Eixo 10 (Cultura escolar e práticas educativas): 11

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