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— ALICE VIEIRA

Graduada em Português e Francês pela FFLCH-USR


f
- Mestre em Literatura Portuguesa pela FFLCH-USP
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USR
r- Professora do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da USR
r~~.
JOSÉ LUÍS LANDEIRA
- Licenciado ern Língua Portuguesa pela Universidade de Coimbra (Portugal).
Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela USR
~ Doutor em Educação pela USP
Professor de ensino fundamental, médio e universitário.

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/Í/OSÓ/ÍCO

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Queridos alunos e queridas alunas

Vocês têm o privilégio de estudar numa escola salesiana, que faz da felici-
dade de seus alunos e alunas a razão da própria existência.
O seu Colégio faz parte da Rede Salesiana de Escolas. Por isso mesmo, usa livros
didáticos exclusivos, cuja qualidade os coloca entre os melhores do Brasil. Eles foram
produzidos por autores e técnicos altamente qualificados e seguem os princípios edu-
cativos sugeridos pela Unesco, bem como as normas e diretrizes adotadas pelo MEC
para a educação exigida nos tempos atuais.

n Esses livros têm o objetivo de ajudar cada um de vocês a edificar uma base
/•s sólida para a própria vida, construindo, com a orientação de seus educadores, os
saberes indispensáveis para enfrentar os grandes desafios do século XXI:
• Aprender o aprender, construindo e elaborando os conhecimentos de
que precisa agora e precisará no futuro.
• Aprendera fazer, tornando-se capaz de aplicar nas situações concretas
da vida os conhecimentos adquiridos.
• Aprendera conviver, participando dos grupos de que faz parte, reco-
nhecendo e aceitando as diferenças, convivendo pacificamente com
os outros e exercendo a cidadania, como personagem atuante na His-
tória de seu País e do mundo.
• Aprender a ser, tornando-se progressivamente uma pessoa humana-
mente mais completa e mais perfeita.
• Aprendera crer, abrindo-se para as realidades que ultrapassam as di-
-~
mensões materiais da vida.
•~-
~-
A construção desses saberes desenvolve progressivamente as competên-
cias e habilidades que ajudarão você a vencer as provas e concursos que tiver de
enfrentar ao longo da vida. A começar pelo ENEM que, a partir de 2009, ganhou
mais importância como forma de ingresso em muitas faculdades, particularmen-
te nas federais, substituindo no todo, ou em parte, o vestibular tradicional.
Aproveite bem a ajuda oferecida por esse material pioneiro, inovador.
Faça de cada livro uma ferramenta valiosa para a construção do futuro de seus
sonhos. E lembre-se:
Nas olimpíadas da vida, a vitória depende de dedicação, esforço, entusias-
mo e perseverança. Busque e você conseguirá a vitória.

Pé. Nivaldo Luiz Pessinatti


Ir. Ivanette Duncan de Miranda
Diretores da RSE

-•
Vieira, Alice.
Filosofia: ensino médio - Caderno 1. / Alice Vieira e José Luís Marques López Landeira.
4a reimpressão, Brasília: Cisbrasil - CIB, 2012.
64 p. (Coleção RSE)

ISBN n2,978-85-7741-087-3

l. Landeira, José Luís Marques López. II. Rede Salesiana de Escolas. 1. Filosofia.

Todos os direitos reservados à Editora Cisbrasil - CIB


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Copyright © 2008: Alice Vieira


José Luís Marques López Landeira
Kátia Cristina Stocco Smole
Maria Ignez de Souza Vieira Diniz
Coordenadoras: Maria Ignez Diniz
Ronilde Rocha Machado
Sônia Rolfsen Diaz
Editor: Prof. Gleuso Damasceno Duarte
Coordenador de Arte: Marcos Lourenço
Coordenador Editorial: Hermínio José Casa
Coordenador de Produção: Marcefo Martins

Assessoria Editorial: Clarisse Bruno, Ester Tertuliano Rizzo


Capa e Projeto Gráfico: Lápis Lazúli
Ilustrações: Robson Araújo
Revisão: Ana Clara Ferreira Guimarães Menezes
Marcília Vieira P. Silva
Seculus Editoração
Diagramação: Lápis Lazúli

Equipe Administrativa Equipe Pedagógica


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Impressão
Escolas Profissionais Salesianas
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como subsídio na produção deste livro, a Editora coloca-se à disposição para eventuais acertos, nos lermos
da Lei 9.610 de 19-2-1998 e demais dispositivos legais pertinentes.

Os pedidos desta obra devem ser encaminhados ao endereço da Editora Cisbrasil - CIB.

Impresso no Brasil
Printed i n Brazil

-
Apresentação da coleção

Há muitas maneiras de se pensar o ser humano, mas, em todas elas,


emerge a ideia de que os homens são capazes de desenvolver consciência
de si mesmos: podemos pensarmo-nos como sujeitos. Conseguimos lem-
brarmo-nos dos fatos ocorridos, mas, a partir dessa lembrança, formamos
--• ideias e conhecimentos. Desse modo, usamos o passado como experiên-
- cia, questionamos o presente e planejamos o futuro: vivemos no tempo. O
ser humano é, antes de tudo, criador de conhecimento.
- De Sócrates aos nossos dias, temos mais de 25 séculos de História
da Filosofia ou, melhor, História das Filosofias, uma vez que, no decorrer
dos tempos, foram inúmeras as discussões acerca do que é filosofar, seus
métodos, formas de apresentação, objetos e objetivos.
Nos diversos percursos do pensar filosófico, a Filosofia emerge como
espaço em que ela coloca todos os conhecimentos do homem, inclusive
a si mesma, como objeto de investigação. Desse modo a Filosofia pode
pensar os seus valores e o próprio pensar. Para esse fim, ela necessita de
questões: a partir de um problema, investiga o conhecimento verdadeiro,
na busca de chegar a um conceito que, de algum modo, revele-se uma
resposta, ainda que temporária.
A Filosofia faz os homens se lembrarem de si, instiga-os a buscar
compreender o mundo por meio de questionamentos, o que, em outras
palavras, significa desestabilizar a ordem dada. Em seguida, constitui-se
como caminho para o conhecimento profundo de conceitos, na maior par-
te das vezes, criados pelo próprio filósofo e que propõem uma recriação da
realidade.
Desse modo, a Filosofia cria e critica. O pensamento filosófico é, ao
•^ mesmo tempo, criativo e crítico. E, para atingir ao fim a que se propõe, deve
ser criterioso e responsável, capaz de analisar e sintetizar ideias com rigor
e método.
Método, aqui, significa a capacidade de discernir usando critérios
escolhidos, em um esforço racional de examinar minuciosamente uma
ideia, um valor, uma manifestação humana e, é claro, uma proposta me-
— todológica. Ou seja, o primeiro espaço para o pensamento filosófico é a
- própria sala de aula, espaço em que desejamos construir relações sólidas
de aprendizado. Esse é o objetivo maior desta coleção.

Os Autores
-

• Sumário
CAPÍTULO 1 - Decifra-me ou te devoro! 9
O filósofo e a esfinge , 10
Manga com leite mata? - superando o senso comum 12
'-• Os filósofos desejam perguntas! 14
^ Como os filósofos conseguem suas perguntas? 14
Em que diferem os seres humanos dos animais? 16
^
A origem da Filosofia 20
- A physis e o nomos 21
--
CAPÍTULO 2 - Pergunte à sua consciência!
Ou como funciona a mente humana ao filosofar? 25
" Você gosta de jogar xadrez? 27
-- Problemas para elaborar uma inteligência artificial 28
Pergunte à sua consciência 29
-
A consciência crítica: entre o eu e o outro 30
<~'. Como a consciência reconhece a verdade? 32
^ A inteligência, a verdade e a percepção 36
-"•
- CAPÍTULO 3 - Um ser com muitas consciências faz muitas perguntas 43

-1" A construção da verdade pelas diversas consciências do ser humano 44


A consciência mítica 45
-
A consciência religiosa 48
rv A consciência intuitiva 50
-• A consciência racional 50
Pergunta é tudo a mesma coisa? 52
Um mundo dequestionamentos 55
A importância da reflexão 57

APÊNDICE - Breve panorama da história da Filosofia 61


^

-^
-
1 - C A D E R N O S DE F I L O S O

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Decifra-me
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ou te devoro!
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*•
Os antigos gregos contavam histórias de um monstro mitológico, com ca-
rs
beça de mulher, corpo de leão e asas de águia-a esfinge. Esse mito, originalmen-
te surgido no Egito, era famoso por seus enigmas. A esfinge ficava no caminho
e lançava uma pergunta ao incauto transeunte. Ao final dessa pergunta, a cruel
- ameaça: "Decifra-me ou te devoro!". Ou seja, ou o coitado sabia a resposta à per-
<~S
gunta da esfinge ou era devorado ali mesmo, sem direito nem a se despedir da
família.
-
Esse mito ainda apresenta importância para nós, hoje em dia. A esfinge repre-
r senta o desejo humano de se conhecer a si mesmo, de questionar. Todos nós temos
• esse desejo. A cabeça de mulher da esfinge representa a intuição humana. Como
—- veremos, é pela intuição que começamos a encontrar soluções para os problemas
mais complicados da existência humana. O corpo de leão nos faz pensar na coragem
necessária para fazer perguntas, em especial numa época quando todos pensam já
ter encontrado as respostas para tudo. As asas de águia levam-nos para o alto, para a
conquista do conhecimento e da sabedoria. As asas da águia são um convite para a
•^ Filosofia.
o c:-e Lie • /j,rj
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--
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. D E R M O S DE F I L O S O F I A

Uma bela placa

E... mas as pessoas não


gostam de ler!
-^

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Você gosta de pensar?

A palavra "filosofia" certamente não é nova para você. É comum nos depa-
rarmos com expressões como "estou estudando a filosofia de Platão" ou "a filoso-
fia devida dele é fantástica" ou ainda "ela adora a filosofia oriental". De fato, ao re-
correr ao dicionário encontramos diversas acepções, procurando definir o termo.

O filósofo e a esfinge
A Filosofia relaciona-se a uma das
principais características humanas: o de-
sejo de fazer perguntas. A Filosofia enfren-
ta, portanto, o desafio da esfinge e aceita
decifrar a complexa natureza humana. Ela
impede que nossas questões devorem
nossa identidade. Questionar é parte de
nossa identidade, relaciona-se com o nos-
so desejo de saber mais, de superar nossas
limitações e "ir além". Uma questão é, ba-
sLcamentej _urna_ideiaLgue_orlenta. a nossa
curiosidade, fazendo-a procurar respostas.
Todos nós somos, por natureza, curiosos;
temos, dentro de nós, um pouquinho da
esfinge que deseja encontrar respostas, a ~
partir de suas intuições, que alça voos altos —>
~~à procura da sabedoria. O sentido básico
da curiosidade põe em movimento a maior
parte de nossos pensamentos. RODIN, Auguste. O pensador (1904).

f-iíTJ O
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P. - -
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1 - C A D E R N O S DE FILOSOFIA

- Não pense que é um exagero todo esse valor que estamos aqui dando
à capacidade humana de questionar. O contrário é que é de estranhar. É uma
pena que a curiosidade humana não seja devidamente valorizada! Todo o nosso
-~\
conhecimento sobre o mundo origina-se da curiosidade básica sobre o nosso
entorno. Sem curiosidade, os seres humanos teriam sido devorados peia iqno-

rância. De fato, o ser humano é, por natureza, perguntador. As ações mais co-
tidianas despertam a nossa curiosidade e nos levam a indagações: Com quem
vou estudar este ano? Onde vou trabalhar? Será que ela/ele irá se apaixonar por
-
mim? Qual o preço dessa camisa? Onde vou passar minhas férias?... Perguntas
•**
assim fazem a humanidade avançar. Como?
- Em primeiro lugar, é bom considerarmos que há perguntas de todos os ti-
- pos. Podemos perguntar-nos "Que horas são?" mas podemos perguntar-nos "Por
que as pessoas sofrem?" ou "Eu sou capaz de fazer isso?". Nossos interesses, ao fa-
zermos perguntas, abrangem uma variedade enorme de inquietações: desde ne-
cessidades imediatas até dúvidas universais, que inquietam toda a humanidade
desde sempre. Há também aquelas perguntas que fazemos na procura de conhe-
cermo-nos melhor. Emília, a boneca quase gente do Sítio do Pica-pau Amarelo,
de Monteiro Lobato, dá-se conta, ao iniciar as suas memórias, da importância de
"interrogar-se a si mesmo". Veja:

Emílio pensou, pensou, e por fim disse:


-
- Bote um ponto de interrogação; ou, antes, bote vários pontos de inter-
rogação. Bote seis...
O Visconde abriu a boca.
- Vamos, Visconde. Bote aí seis pontos de interrogação, insistiu a bone-
- ca. Não vê que estou indecisa, interrogando-me a mim mesma?
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1945.

-
F PAUSA PARA REFLETIR
Você se conhece?
Já vimos que conseguimos pensar sobre nós mesmos,
•*•
"interrogando-me a mim mesma", como nos lembra
'-
Emília. Também conseguimos transferir para nós, indi-
vidualmente, as perguntas Que a humanidade faz sobre
ela desde sempre. Um dos primeiros filósofos da hu-
manidade escreveu:
Todos os homens podem conhecer a si mesmos
e pensar sensatamente.

Heráclito de Éfeso. Fragmento 116. Heráclito de Éfeso.


•~


•"•
- CADERNOS DE FILOSOFIA

1. Em sua opinião, o que é necessário para "conhecer a si mesmo"?


2. Identifique uma característica sua que melhor define aquilo que
você considera importante na vida. Explique a relação.

Há perguntas que vão além do interesse pessoal de um indivíduo, envol-


vem a todos nós. Algumas dessas perguntas são: "Quem somos? O que fazemos
da vida?". A coisa muda um pouco de figura se eu perguntar algo como:"Com que
roupa vou ao aniversário do Cadu?". Tal pergunta diz respeito quase que total-
mente a mim.Na verdade, pá rã tal questão tão pessoal, basta um pouco de senso
comum para responder.
l fj i- Sí-^iç O^vv^, /féç. e.Mfà
Manga com leite mata? - superando o senso comum
Diariamente lidamos com as mais diferentes opiniões sobre um assunto.
Muitas dessas opiniões são facilmente aceitas como verdadeiras em um deter-
minado meio social, mesmo que as pessoas não saibam o porquê nem a origem
de tais noções. Trata-se de um conhecimento adquirido sem uma base crítica e
coerente, A esse conhecimento denominamos senso comum.
O senso comum é um conjunto de crenças aceitas como verdadeiras em
um determinado meio social, mas cujos membros acreditam que tais supostas
CF-
yerd a de s_sãp_cp mpartilh a d a s por todas as pessoas.
É o que se nota na tira em quadrinhos a seguir:

--
M5e, posso De jeito nenhum!
por manga na Todo mundo sabe que manga "•"•

vitamina? com leite mata, menina! ->

/•s

Manga com leite mata. No senso comum, os elementos que compõem


os conhecimentos surgem emaranhados, sem que se reconheçam exatamente
suas origens. Aparecem no cotidiano como verdades consagradas e definitivas
que devem orientar a vida prática das pessoas: ninguém deve beber manga
com leite se quiser continuar vivo! Conhecimentos provisórios e parciais são
transformados, pelo senso comum, em"verdades>'absolutas, sobre as quais não
há o que questionar.
1 - C A D E R N O S DE F I L Ó S O

*•
RELACIONANDO...
O sol se move em torno da Terra. Quem pode duvidar disso se
todos os dias ouvimos expressões como "nascer do sol" ou "pôr do

sol"? A astronomia demonstra, no entanto, desde Copérnico, que é a
Terra que se move em torno do Sol.
E que dizer, ao ouvirmos ditados como "Em briga de marido e
mulher ninguém mete a colher"? Vale a pena lembrar-se dos muitos
casos de violência doméstica para questionarmos essa doutrina "in-
questionável1.
— Os conhecimentos do senso comum revelam-se generaiizado-
res., carregados de subjetividaole e, até, de preconceito. É o que se
nota em provérbios como "Deus ajuda a quem cedo madruga", que
*- poderia sugerir que os pobres são preguiçosos ou que não foram
ajudados por Deus e que todos os ricos são trabalhadores e devotos.
- Embora a preguiça possa até resultar em pobreza, há muitas outras
- causas que explicam as diferenças sociais. Muitas vezes, o senso co-
mum deixa de ver a realidade como um todo, exagerando o valor de
alguns aspectos dessa realidade em detrimento de outros.
Observe, agora, a tira em quadrinhos a seguir:
ALGUÉM ME DISSE QUE
R4Z40 PARA QUERER SER MEMBRO DA TRIPULAÇÃO
VIAJAR EXPANDE OS
DO NAVIO DÊ HAãAK, O TERRÍVEL?
HORIZONTES.
-

."

r~*
- Hagar é um terrível, guloso e abrutalhado viking criado'pelo es-
tadunidense Dik Browne. As tiras em quadrinhos de Hagar, o horrível,
-
circulam em jornais de mais de 50 países.
3, A resposta à pergunta de Eddie Sortudo, o fiel amigo de Hagar,
("alguém me disse que viajar expande os horizontes") revela forte
r*- presença de senso comum que, dada a situação, distorce a reali-
dade, Explique por quê.
/-v

•^
Usualmente, o senso comum vê a verdade a partir de ten_dê_nçja_s ditadas
por políticos, publicitários, atores ou jogadores de futebol, por exemplo. Essas
supostas verdades, como "o importante é se dar bem" ou "siga apenas o seu co-
-—
ração" seguem a moda de um determinado momento e são, na maior parte das
•"• vezes, apenas mentiras sobre as quais a maioria concorda.

r-1
Embora nem sempre o senso comum seja mentiroso, não é dele que trata
a Filosofia. Na verdade, a origem do filosofar surge, exatamente, do desejo de
superar, questionando o senso comum.

Os filósofos desejam perguntas!


Como vemos, há vários tipos de questões. Algumas envolvem apenas pou-
cas pessoas ou mesmo uma só - são as "pequenas questões do cotidiano"; ou-
tras dizem respeito a muitas pessoas, são as chamadas "grandes questões" ou
"questões fundamentais da vida" ou, ainda, "questões filosóficas". A verdade
filosófica se constrói como exercício do pensamento e começa no desejo huma-
no de questionar e de conhecer-se melhor. --
Como os filósofos conseguem suas respostas?
Para entendermos isso, no entanto, antes temos de compreender como os
filósofos conseguem as suas perguntas...

--
Como os filósofos conseguem suas perguntas?
"-

Tem alguma pergunta


que você não sabe a Você vai pagar à vista
resposta? ou no cartão?

FILOSOfA
DE PLANTÃO

O filósofo procura a resposta às questões essenciais da vida.

Acompanhe o exemplo a seguir. Nele é possível observar como podemos,


gradativamente, avançar das perguntas do cotidiano para as filosóficas.
No dia a dia, é comum depararmo-nos com perguntas como"o que vou dar
de presente de aniversário para o meu pai?". Essa é uma pequena pergunta do co-
tidiano, mas, a partir dela, podemos chegar a uma grande questão fundamental
da vida. Se mergulharmos nela, podemos decompô-la em várias outras e abstrair
dela uma outra pergunta filosófica. Teríamos algo assim: "Meu pai vai gostar do
presente que eu vou lhe dar?";"Por que eu estou dando este presente para meu
pai: apenas porque é seu aniversário?"; "Eu quero que meu pai seja feliz com o
1 - C A D E R N O S DE F I L O S O

l—".

-

CJ
s
presente que eu vou lhe dar?"; "0 que faz meu pai feliz?"; "Disso, o que eu posso
Vi comprar ou fazer para que ele se sinta feliz?";"Por que eu quero que meu pai seja
*-t feliz?".
Nesse momento, começaríamos a avançar no campo da filosofia, com per-
f^ guntas do tipo: "Eu sou feliz?"; "Por que devemos procurar ser felizes?" Desse ra-
- ciocínio, é possível que surja, finalmente, "o que é a felicidade?" Bem, essa última
8 pergunta não diz mais respeito a você, nem a seu pai, mas a todos os seres huma-
•~
I
a
nos. 0 exercício de abstraçào permitiu que chegássemos a essa pergunta, a que
í-S /~\ t~\ f\ f l "i rv^ n r iníí-n-mi" r*f\ i-vxrt i i i-v* -* "f-t t- -\ n r-\ /-\ f-tí íf\r^--\ t-\ *-J^\ r^\íi^-í-Ai-ií«í—t Uni n-* -k « -»" rt i i *- ^ í ~*

-"- uma questão filosófica!


Como vê, é importante notarmos que podemos estabelecer uma impor-
— tante relação entre as "questões fundamentais da vida" e as "pequenas questões
docotidiano". É que o cérebro humano pode abstrair, ou seja, separar as diversas
partes que estão por detrás de uma pergunta e valorizar mais um de seus deter-
minados elementos, de caráter mais geral. Ao partirmos das perguntas cotidianas
—-
para as mais abstratas, conseguimos transferir para nós as perguntas que a huma-
nidade faz sobre si desde sempre.
Da dúvida sobre qual o melhor presente para o aniversário do pai pode
- surgir uma pergunta própria da filosofia (o que é a felicidade?). Para isso é ne-
cessário, antes de tudo, uma mente aberta e questionadora, uma mente que
não se conforma com o senso comum ou com quaisquer respostas prontas. Al-
guém que se pergunta "o que vou dar de presente de aniversário para o meu
- pai?" e responde para si mesmo "qualquer coisa, depois eu vejo!" ou "a moça da
loja me ajuda!" e para aí, terá muita dificuldade em filosofar. Dificilmente chega-
- rá a questões mais abstratas, como "o que é felicidade?" As questões filosóficas
não se preocupam com a mera informação adquirida, mas~cõrrrã"sabedoría,
algo muífõrnãis profundo. O filósofo deseja"tòrriar^ê sábio"

-
m PAUSA PARA REFLETIR.

Quem deseja tornar-se sábio?


A questão é que nenhum deus persegue a sabedoria
ou deseja tornar-se sábio, pois já o é; e ninguém mais
que seja sábio persegue a sabedoria. Nem o ignoran-
te persegue a sabedoria ou deseja ser sábio; nisso,
• aliás, a ignorância é confrangedora: estar satisfeita
consigo mesma sem ser uma pessoa esclarecida nem
inteligente, O homem que não se sente deficiente não
Platão.
deseja aquilo de que não sente deficiência,
PLATÃO, O banquete. In: MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos ao Wittgens-

tein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
-

- ' 1JM$ ,

-
DERNOS DE F t L O S O F I

--
s

Platão (428-348 a.C.) foi o grande filósofo do período grego da Filosofia.


Por meio de diálogos ele desenvolve uma profunda reflexão sobre alguns
dos principais temas de Filosofia,
4. Seguindo o raciocínio de Platão, o que é necessário para alguém dese-
jar ser filósofo?

Para compreendermos melhor a procura da sabedoria pelos filósofos, veja-


mos, a seguir, um outro exemplo.
•^
Já faz parte do nosso folclore, este famoso refrão de música: .

Eu não sou cachorro, não


Pm viver too humilhado
Eu não sou cachorro, não
Para ser tão desprezado
Waldick Soriano. Eu não sou cachorro não. •--

Essa música pode fazer-nos pensar muitas coisas. Desde "Puxa! Que bo-
bagem ele se sentir desprezado como um cachorro! Isso já era!"até"É verdade
que seres humanos e animais somos bem diferentes, mas em que realmente
somos diferentes?". Encontrar uma resposta satisfatória a essa pergunta obri-
ga-nos a sair do senso comum. É quando começamos a filosofar.

Em que diferem
:
oscseres
f
humanos
?
dos animais?
oj ?ool r v^ Gr - -
Procurando sair do senso comum, damo-nos conta de que aquilo que
muitas vezes parece óbvio, afinal não é uma pergunta tão simples de responder.
Tanto seres humanos como animais somos produtos da natureza, regidos por
princípios biológicos. Encontrar a real diferença entre uns e outros talvez não
seja tão simples assim...
Uma vespa fabrica um casulo, põe dentro um ovo, mata uma aranha, co-
loca-a junto ao ovo, fecha cuidadosamente o casulo. Quando a larva nasce, en-
contra proteção e alimento. Trata-se de uma atividade "pensada" o que a vespa
realiza?
Se pudéssemos retirar o ovo e a aranha do casulo, notaríamos que ainda
assim a vespa o fecharia cuidadosamente, como se nada tivesse ocorrido.
O que nos mostra isso? Que o trabalho da vespa não leva em conta o obje-
tivo, ou seja, a procriação da espécie, mas é algo desenvolvido instintivamente,
de forma 'cega', sem considerar a finalidade dos atos.
A observação atenta do comportamento animal acabou por confirmar
um conhecimento que, com certeza, você já tem: os animais agem motivados,
principalmente, por reflexos e instintos, transmitidos hereditariamente. Uma
teia de aranha, um formigueiro ou o ninho de um João-de-barro, embora nos
1 - CADERNOS DE FILÓS'

-
-


~-
'-"-

- O ninho do joão-de-barro é resultado de uma ação instintiva cega por não levar em
conta a finalidade a que se destina.
-

causem admiração, são efetivamente resultado dessas ações instintivas. Por


isso, podemos dizer que os instintos são "cegos" isto é, não levam em conta a
- finalidade das ações praticadas.
- Mas, nossa observação sobre esse assunto não estaria completa se dei-
xássemos de lado alguns animais situados em níveis mais altos da escala zo-
-
ológica, animais que realizam atos inteligentes. E o ato de filosofar exige que
procuremos ser o mais completos possíveis.
-
Uma experiência científica realizada com chimpanzés ilustra este ponto:
um psicólogo colocou um chimpanzé faminto numa jaula onde havia uma ba-
nana pendurada no teto. Na jaula, havia também um certo número de caixotes
e o animal deveria "pensar" que, para conseguira banana, ele precisava puxar o
- caixote e colocá-lo sob a fruta para, assim, poder alcançá-la. Caixote e banana
eram dois elementos que se encontravam separados no espaço e que preci-
savam fazer parte de uma totalidade para resolver o problema da fome. Após
diversos saltos instintivos, o chimpanzé, finalmente, resolve empilhar os caixo-
tes para alcançar a banana. O que nos mostra essa experiência? Que algumas
espécies animais apresentam uma visão de conjunto que supera o instinto e se
- localiza em um tipo de inteligênci_a_prát|ca.
Outra experiência, realizada em 1964, mostrou que alguns macacos
chegam até mesmo a sentir-se desconfortáveis diante do sofrimento de seme-
lhantes, preferindo abrir mão de sua parte de alimentação a ver outro macaco
- sofrer.
Como vê, estamos encontrando respostas para a nossa pergunta, a partir
•~ de observações e experiências feitas. Essas experiências, como retirar o ovo e a

l /IríWi/ul k^- ^ 1
--
E R N O S DE FILOSOFIA

aranha do casulo da vespa ou observar chimpanzés numa jaula, no entanto, não


surgiram do nada, foram pensadas por alguém que as planejou cuidadosamen-
te. Esse tipo de inteligência, que permite planejar experiências, é semelhante à
inteligência prática dos animais?
A inteligência animal é uma inteligência vivida apenas no momento
do problema. O animal não inventa o instrumento, como, por exemplo, o
caixote que lhe permite chegar até a banana, não o aperfeiçoa, nem sequer
o conserva para um uso posterior. Os cientistas observaram que, depois de
comer a banana, o chimpanzé abandona os caixotes que ficam ao seu redor
como objetos sem sentido. Trata-se de um gesto útil que não domina o tem-
po, pois, por não ter sequência, esgota-se no seu. movimento. O macaco não
se preocupa em investigar o que causa o sofrimento ou o que, realmente,
significa sofrer.
O ser humano dá respostas inteligentes aos problemas, superando de
forma pess_p_aj_e criativa,, a programação biológica.. Isso ocorre porque_ps hu-
manos desenvolvem uma inteligência abstrata, ou seja, uma forma de inte-
ligência que supera o momento e se projeta no tempo, tornando-se parte da
memória de um grupo, avançando no futuro.
Uma criança, em uma situação similar à do chimpanzé, mesmo depois
de apanhar o objeto desejado, examinaria os caixotes e tentaria dar-lhes um
outro sentido. A inteligência humana se projeta para além das situações de
aplicação imediata, ela problematiza o ambiente em que vive e procura apren-
der com os erros anteriores, visando a um amanhã melhor.
•- Nosso pensamento abstraio é, nesse sentido, ímpar. Ele permite-nos de-
senvolver diferentes atividades, como a abstração e a análise.
Abstrair significa isolar o que se considera essencial do todo, ou seja,
considerar à parte determinados aspectos específicos de uma totalidade,
muitas vezes indissociável, ppji causa da conexão usual de suas partes. Isso
permite observar um ou mais elementos de um todo, conhecendo e ava-
liando suas características e propriedades em separado. Analisar significa
dividir o todo em partes, examinando minuciosamente cada uma de suas
partes.
Abstrair e analisar são dois procedimentos muito importantes, ao cons-
truirmos verdades que superem o senso comum. As experiências com vespas
e chimpanzés descritas de nada adiantariam se não houvesse, além da capaci-
à dade de criá-las, a capacidade de analisar os seus resultados.
^ -. Uma outra característica de nossa mente é fazermos uso da linguagem
com o objetivo de comunicarmo-nos. A linguagem permite que superemos
as barreiras do espaço e do tempo, transmitindo os conhecimentos entre as
gerações. Você talvez esteja pensando; "mas os animais também se comuni-
cam!" --
Sem dúvidas, isso é verdade! Um cãozinho pode abanar alegremente o •—•i
rabo para o seu dono quando ouve a sua voz. Trata-se de um ato de comuni-
cação ligado ao seu instinto ou ao adestramento. A comunicação animal visa
1 - C A D E R N O S DE FILÓS'

a uma situação concreta. De forma bem diferente, a comunicação humana


distancia o ser da experiência que vive, permitindo-lhe reorganizá-la em uma
-
outra totalidade, dando-lhe um novo sentido. Por meio da linguagem, o ser
humano cultiva o seu pensamento abstrato.
É devido à nossa capacidade de pensar que construímos história e po-
demos ajustar-nos às mais diferentes situações. Pensando e fazendo uso do
conhecimento anterior, resultado da tradição acumulada, o ser humano é
capaz de habitar nas regiões mais inóspitas, superando as dificuldades que
lhe são apresentadas. Graças à nossa inteligência abstrata, tornamo-nos, ao
' mesmo tempo, seres biológicos e culturais. Dentro da biosfera (a parte do
mundo que pej.mLte_Q_gLesenVQ_|vinientp da vida) o ser humano constrói a
antroposfera (a parte do mundo que surge da ação humana sobre a natu-
reza).

P-V
Um novo Nenhuma
milénio todinho delas terá
diante de nós... importância
Que grandes sem pequenas
mudanças mudanças
-.
ocorrerão no em nós
mundo! mesmos...

Pequenas mudanças em nós mesmos exigem que nos conheçamos cada vez melhor!

O pensamento humano permite que antecipemos uma determinada si-


tuação, transformando a realidade em que vivemos. Além disso, podemos lem-
brarmo-nos de uma situação passada e, por meio dessa lembrança, organizar
-
o nosso presente, prevendo uma situação futura. Nosso pensamento também
- permite-nos imaginar situações novas, algumas delas possíveis apenas em nos-
r*~- so pensamento. E, o que mais nos interessa nesta obra, o pensamento humano
~ permite-nos filosofar!
C A D E R N O S DE F I L O S O F I A

A origem da Filosofia -fí> C L "^ c

A filosofia, tal como a conhecemos hoje no ocidente, surgiu há cerca de


3 000 anos. Para uma grande parte dos filósofos, ser sábio é ter conhecimento da
"verdade" a fim de ser guiado por ela. A verdade filosófica, no entanto, foge ao
que o senso comum considera verdade.
Sempre houve, em todas as civilizações, pessoas consideradas sábias. No
entanto, foi no século VI a.C, nas colónias gregas da Jônia, na Ásia Menor, particu-
larmente na cidade de Mileto, que apareceram os primeiros sábios que a tradição,
posteriormente, chamaria de filósofos: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Sua per-
píexidade diante do mundo levou-os a questionamentos complexos que superaram
as explicações mitológicas e religiosas de sua época.

Olbia

QUERSONESO

Heracleia» -.y

'Oflessa
Epidauro

Bizâriclo .
• Estagira
Eleia * Tarento * Ilion (Troi
Crotona MAGNA GRÉCIA
IMPÉRIO PERSA

Atenas :feso
•Miíeto
CARIA
• Rodes
Chipre

Náucratis

EGITO

Mundo grego por volta do século VI a.C.

A originalidade de seu pensamento consistiu, principalmente, em utilizar-se


das dimensões intuitiva e racional da consciência para compreender as realidades
que se manifestam aos homens. Suas explicações sobre a chuva, o raio, o trovão ou
mesmo sobre a origem do universo buscam princípios, ou seja, fundamentos para
aquilo que dá origem a todas as outras coisas. O princípio (em grego, orché}, por ex-
celência, seria aquele que não foi derivado nem deduzido do nada e do qual derivam
todas as outras coisas. Outra característica desses filósofos é a busca da verdadeira
natureza das coisas.
Observe a explicação filosófica a seguir atribuída a Anaxágoras:
Chamamos de arco-íris ao reflexo do sol nas nuvens. É, por isso, sinal de
tormenta: pois a água que está ao redor da nuvem ou produz vento ou derrama
a chuva.
(Fr. 19. BTea in itiodem 17,547)

—>
- C A D E R N O S DE FILOS<

O pensamento de Anaxágoras talvez não seja a última palavra em matéria


de ciência, mas apresenta uma característica fundamentai: abandona as consci-
-
ências mítica e religiosa das explicações sobre os fenómenos da natureza.
Esses filósofos construíram uma cosmologia, ou seja, uma explicação ra-
cional e sistemática das características do universo, abandonando a antiga cos-
mogonia, explicação mitológica sobre a origem do universo.

A physis e o nomos
Durante todo o século VI a. C. esse pensamento filosófico emergente vai
se concentrar naquilo que os gregos chamaram de physis. Physis, de onde
- se origina a palavra "Física", origina-se do verbo grego phyein (emergir, fazer
nascer, crescer) e se refere a tudo o que brota, surge, vem a ser, independente-
mente da vontade e da cultura humanas. São, então, fenómenos físicos aque-
les próprios da natureza.
-•
Em contraste com a physis, temos o nomos, ou seja, a produção cultural:
valores, leis, crenças, costumes, regras de conduta que surgem por convenção
humana e, por isso, não são parte da natureza.
Embora guiados, principalmente, pela intuição, diversos desses pensa-
- dores pré-socráticos chegaram a conclusões de grande importância filosófica.
Um deles foi Heráclito de Éfeso. Para ele, tudo o que existe é um fluxo inces-
sante, onde apenas o logos (lei) é estável e inalterável. É o logos que rege a
transformação de todas as coisas. Contrário a esse pensamento, destacou-se
-
Parmênides de Eléia. Para ele, o ser é uno, imutável e imóvel. Para Parmênides
o"ser"é aquilo que toda coisa existente verdadeiramente possui. Sua linha de
raciocínio foi impactante ao defender que nenhum ser pode vir de um não-
ser, ou seja, do nada. O que em outras palavras, equivale a dizer que há um
princípio eterno que dá origem ao cosmo, ou seja, ao universo, considerado
-
como um todo ordenado. Já antes desse filósofo, no entanto, se discutia a
-
existência de um princípio originador de todas as coisas.

-
PfiRA DESENVOLVER O OLHAR ATENTO SOBRE O MUNDO
-
Nada pode surgir do nada, dizia Parmênides. E nada que existe
pode se transformar em nada.
*
[..J
Todos conhecemos a frase 'só acredito vendo', Mas Parmêni-
des não acreditava nem quando via. Ele dizia que os sentidos nos
fornecem uma visão enganosa do mundo; uma visão que não está em
conformidade com o que nos diz a razão. Como filósofo, ele achava

que sua tarefa consistia em desvendar todas as formas de ilusão dos
sentidos.

-
-CADERNOS DE FILOSOFIA

£"553 forte crença na razão humana é chamada de racionalis-


mo. Um racionalista é aquele que tem grande confiança na razão
humana enquanto fonte de conhecimento do mundo.
GAARDER, N Jostein. O mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

5. O pensamento racionalista é comum hoje em dia? Justifique,


6, O que pensa das ideias de Pannênides?

Tales, Anaximandro e Anaxímenes já haviam filosofado sobre a existência


de uma substância que originasse todas as outras.
Para Tales, esse princípio que dava origem ao cosmo era a água, já para
Anaximandro, discípulo deTales, o cosmo origina-se do'infinito'. É difícil definir o
que Anaximandro entendia por"infinito"; talvez uma espécie de energia ou força
cósmica eterna. Para Anaxímenes, o ar ou sopro de ar era a substância básica de
todas as coisas.
Demócrito, de Abdera, não acreditava que as coisas pudessem se trans-
formar em outras, mas também não acreditava que as coisas surgissem do nada.
Ele desenvolveu a ideia de que a natureza é composta de pequenas pecinhas
minúsculas que se combinam entre si e depois se separam: os átomos. Para ele,
as únicas coisas que existem são os átomos e o vácuo. Sua teoria apoiava-se to-
talmente no "material", por isso é chamada de "materialista". Ele está de acordo
com Heráclito quando esse afirma que tudo flui na natureza. No entanto, apesar
• de que as coisas vão e vêm, há algo eterno e imutável, os átomos.
A perplexidade desses primeiros filósofos levou-os a questionamentos que
lançaram bases para uma variedade de conceitos ainda válidos hoje em dia. Uma
pergunta que eles se fizeram e que ainda é válida hoje é:
v^ O nosso cosmo é uma única coisa ou muitas coisas variadas?
Os que defendem a primeira hipótese são chamados de monistas. Os ou-
, tros, de pluralistas metafísicos.
Essa reflexão levou a outra pergunta:
V O mundo é o que parece ser ou é outra coisa diferente?
• A partir daí as perguntas filosóficas e as discussões sobre as suas possíveis
respostas não pararam mais.
Realmente, isso é o que ocorre muitas vezes com os filósofos: encontrar a
resposta a uma pergunta apenas faz com que surjam outras perguntas nas suas
—£ mentes que, igualmente, exigem resposta.
E viver parece que é também isso: encontrar a resposta para o constante
3
desafio "Decifra-me ou te devoro!"
Qual o sentido da vida?


-

•-
A
1 - CADERNOS DE FILÓS'

-
'-
-

-
- F PAUSA PARA REFLETIR

Tem um sentido a minha vida? A vida de um homem tem sentido?"Posso


responder a tais perguntas se tenho espírito religioso. Mas "fazer tais
perguntas tem sentido?" Respondo: "Aquele que considera a sua vida e
a dos outros sem qualquer sentido é fundamentalmente infeliz, pois não
tem motivo algum para viver,
EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
A
7. Concorda com o pensamento de Einsíein? Por quê?
-
8, Imagine que você tem de escrever um torpedo, desses enviados pelo
celular, sobre o que dá sentido à sua vida e por quê. Pense bem, antes,
- para quem vai enviar e o que lhe vai dizer Leve em consideração que,
n devido ao modelo do seu celular, você dispõe de apenas 120 caracteres
- para a sua mensagem.
-

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55

"-
*
- Pergunte à sua
-
-
Ou como funciona a mente

-
humana ao filosofar?
-
-
-

**
r-
-

-
'

^-
."
-
No início do século XXI, uma grande corporação desenvolve robôs mais for-
*~ tes e ágeis que os seres humanos e com igual inteligência - os replicantes. Eles são
- utilizados na colonização e exploração de outros planetas. Um grupo desses repli-
- cantes, mais evoluídos, provoca um motim, em uma colónia fora daTerra, levando
- esses robôs a serem considerados ilegais na Terra, sob pena de morte. A partir de
então, policiais de um esquadrão de elite, conhecido como Blade Runner, têm or-
dem de atirar para matarem quaisquer desses andróides encontrados na Terra...
Esse é o mundo apresentado no filme Blade Runner-o caçador de andrói-
-- des. A narrativa sugere que há uma delicada relação entre os seres humanos e
^ as suas invenções. Ao fazer isso, coloca em discussão uma das mais intrigantes
- perguntas dos cientistas e filósofos: é possível construir robôs que disponham de
- uma inteligência artificial de tão boa qualidade como a humana?
Em outras palavras:
^
J O que impede que construamos inteligência artificial tão boa como a
r* inteligência humana?
"
-
-
^

^-
-
-.


^

•••
•^
"

•"-

PARA DESENVOLVER O OLHAR ATENTO SOBRE O MUNDO


--
O que é ficção científica? ^
Uma estória estruturada em torno de seres humanos, com um problema
humano e uma solução humana que não seria viável sem seu conteúdo
científico.
FINKER, R. Ficção científica: ficção, ciência ou uma épica da época? Porto Alegre: LP&M, 1985.

1. Em sua opinião, a ficção científica pode servir cie base para filoso-
farmos? Por quê?

Para iniciarmo-nos nessa pergunta filosófica, propomos que paremos para


pensar em como funciona o jogo de xadrez. Mas o que o jogo de xadrez tem a ver
com a inteligência artificial?

n

-
Você gosta de jogar xadrez?
Conta a lenda que o Rei da índia estava muito doente, vítima de uma profunda tris-
teza, causada pela morte de sua amada esposa. Os médicos lhe recomendaram uma dis-
tração para a melhoria de sua doença. Todos na corte, então, procuraram meios para que
o Rei recuperasse a sua alegria. Um de seus súditos, quando soube, pôs-se a pensar muito
e, finalmente, elaborou o jogo de xadrez. O Rei, segundo contam, adorou o jogo e, tanto
se animou a jogar e a inventar estratégias que, distraído, logo esqueceu sua doença.
Muito grato, o rei se dirigiu ao seu súdito e lhe disse: "Peça uma recompensa, o
- que quiser eu lhe darei". O homem pediu então uma moeda de prata, um dirhem para a
primeira casa do tabuleiro do jogo que havia inventado e que fosse dobrando progres-
sivamente este número a cada uma das casinhas restantes. O Rei comentou :"A verdade
- é que eu pensava que você fosse mais inteligente. Inventou um jogo tão maravilhoso e
pede em troca uma recompensa tão fraquinha! Mas, você que sabe! Que receba imedia-
tamente aquilo que pede!". O homem limitou-se a responder; "A verdade nem sempre é o
que parece!".
- O assunto chegou rápido aos ouvidos do Vizir, que quase morreu de susto. Rapídi-
- nho, ele correu, então, para falar com o Rei e disse-lhe: "Ó Majestade, mesmo vivendo rnil
anos e recolhendo para tí todos os tesouros da Terra, não poderemos jamais pagar o que
nos foi pedido. A quantidade que resulta de dobrar o primeiro número para cada uma das
casas do tabuleiro é de 18.446.744.073.709.551.615 moedas de prata!"
Inteligente esse súdito, não? Deu ao Rei a ilusão de estar pedindo uma recom-
pensa pequena quando, na verdade, pedia uma fortuna incalculável! A verdade reve-
lou-se algo bem diferente do que parecia ser aos oíhos do rei.
O certo é que, lenda ou não, desde a sua origem, o jogo de xadrez está associado
- à inteligência humana. E, naturalmente, espera-se que alguém muito inteligente o tenha
inventado. Não é de espantar, então, que tal história circule há gerações entre as pessoas.

<-s
-

-
<->
A verdade sobre a origem do xadrez talvez nunca a consigamos saber. Para a grande
maioria de nós, contudo, interessa o fato de termos o jogo. É também pensando no jogo de
xadrez que muitos se têm perguntado o que, efetivamente, está envolvido nesse jogo.
Em outras palavras, o que faz o jogo de xadrez ser aquilo que é: as regras ou o tabu-
leiro? as peças ou as posições que elas podem ocupar?
Ou seja, eu posso jogar xadrez em um tabuleiro de papelão com peças de plásti-
co ou em um tabuleiro da madrepérola com peças de marfim, mas será sempre um jogo
de xadrez, certo? Mudar a matéria que compõe
a parte física do xadrez - o tabuleiro e as peças
- não altera o fato de que estamos jogando xa-
drez, de qualquer maneira, certo? Pensar nes-
sas perguntas pode levar-nos a compreender
efetivamente o que é a mente humana, para
depois pensarmos em como reproduzi-la arti-
ficialmente.
Para alguns filósofos, assim como jogo de
xadrez não é as regras nem o tabuleiro, embora
deles precisemos para jogar, da mesma forma,
a mente não se reduz ao cérebro. Para tais estu-
diosos, o cérebro elabora uma mente, mas essa
não é o cérebro, nem se reduz a ele. Isso permiti-
ria, de acordo com alguns cientistas, pensar em
um cérebro artificial, produzindo uma mente.
Não haveria necessidade, de acordo com tais
estudiosos, de que seja o cérebro humano a
produzir a mente humana. De forma simples,
podemos dizer que um sinal cerebral se con-
O medo de que robôs controlem seres humanos
é também o ponto de partida do filme Eu, robô. verte em um sinal mental, embora ainda tenha-
Por enquanto, no entanto, nem sequer sabemos mos inúmeras dificuldades em compreender
como o cérebro elabora uma mente. como isso ocorre.

Problemas para elaborar uma inteligência artificial


Pense em um cavalo branco!
Se nesse instante alguém lhe pudesse abrir o cérebro, o que encontraria ali?
Algum cavalo? Certamente que não! Há um espaço entre a primeira pessoa, o eu
que pensa, e a terceira pessoa, o ou-
tro que nos vê pensando, que se tem
mostrado um obstáculo intransponí-
vel, tanto para a Ciência quanto para
a Filosofia! Podemos ver um cérebro,
mas__nãp. podemos ver uma mente!
Chegar do cérebro à mente é um dos
grandes desafios para os cientistas e
filósofos dos próximos anos! A mente
é uma instância da primeira pessoa,
de uma identidade que reúne em__sj

r->
1 - CADERNOS DE Fl

-
razão e emoção. Inteligência, emoções e cérebro também fazem parte desse todo
-
que é a mente humana.
Além disso, a mente afeta o corpo que possibilitou que ela se manifestasse,
ou seja, há uma passagem entre o mental e o físico que tanto os cientistas, como
os filósofos ainda não explicaram.
Tudo isso não deixa de ser instigante. Mas, se as dificuldades apresentadas
anteriormente parecem, no entanto, instransponíveis, elas são apenas a parte me-
nor dos problemas a enfrentar. Antes de tudo, para produzirmos uma inteligên-
cia artificial, temos de compreender como funciona a consciência elaborada pela
mente humana.

- Pergunte à sua consciência


-
A palavra "consciência" origina-se do latim. A sua formação (com + sdencia)
-
sugere uma composição do tipo: com + ciência. O termo "ciência"aqui tem o senti-
do de "estar ciente", ou seja, saber algo. Consciência faz referência, então, à capaci-
-
dade humana de estar no mundo ciente de algo (com ciência de algo), ou seja, de
apreender uma dada realidade em si mesmo. A consciência humana permite fazer
a nossa inteligência ocupar-se dela mesma, para apossar-se de seu próprio saber,
- avaliando-o e desenvolvendo-o. Dessa forma, podemos afirmar que estar conscien-
te é estar com o conhecimento de algo e saber que se tem esse conhecimento.
Tomemos como exemplo a
abelha. Ela sabe produzir mel, mas
não tem consciência que sabe
produzir mel. Por isso, ela não vai
aperfeiçoar o mel que produz. É
o homem que, sabendo que sabe
como conseguir mel, o transforma
em uma vasta variedade de produ-
tos: da simples coleta à fabricação
de sabonetes, remédios e doces.
- Não é à toa que o ser hu-
mano é classificado pela Ciência O ser humano é capaz de saber e de fazer em função desse
como "homo sapiens sapiens" ou saber.
seja, homem que sabe que sabe.
-
Aconsciência humana permite-nos saber coisas e ter consciência de que as sabe-
"• mos. Aprendemos a jogar xadrez, sabemos que desenvolvemos esse aprendizado
e, por conta disso, esforçamo-nos por tornar-nos melhores.
O ser humano é um sistema aberto a si mesmo e ao outro: pode voltar-se
-~
para dentro e sondar o seu íntimo ou projetar-se para fora e sondar a alterídade
(de novo uma palavra de origem latina, alter = "outro"). Dessa forma, a conscien-
tização faz o ser humano um ser dinâmico, capaz não apenas de saber, mas de
saber que sabe e adequar_g.seufazer a. esse saber, ou seja, agir de acordo com o
que sabe.

-
- C A D E R N O S DE F I L O S O F I A

Efetivamente, é a consciência que nos distingue do que se tem chamado


de "inteligência artificial". Fazer um robô que faça tudo o que um ser humano faz
não é o grande problema da Ciência. É questão de tempo. O problema é fazer um
robô que não seja apenas um zumbi, mas que tenha consciência. Como fazer que
os sinais cerebrais se convertam em sinais mentais e como fazer que essa mente
desenvolva um processo de consciência?

PARA DESENVOLVER O OLHAR ATENTO SOBRE O MUNDO

AdjvutUaMHtVti Temos ainda uma outra questão na qual


óe «m
pensar; "saber se a consciência de alguns esta-
•-
dos mentais ou experiências pode fazer alguma
diferença no comportamento ou nos estados pe-
los quais o corpo passa".
TEIXEIRA, João de Fernandes, "Filosofia da mente". In: Filosofia: ciência e
vida. n. 9, a. I. São Paulo: Escala. ~
-
2. Imagine-se que urn filósofo da mente, elabore,
em tópicos, quais os problemas a solucionar
para construir um andróide que seja, de fato,
Um robô que desenvolve semelhante aos humanos.
uma consciência, esse é o
problema central do filme
O homem bicentenário.

Como vimos, o processo de se reconhecer como ser consciente apresenta


-"
duas dimensões complementares: a consciência de si próprio e a consciência
do outro.
-~-
A consciência crítica: entre o eu e o outro -

A consciência de si mesmo exige meditação, ou seja, concentrarmo-nos


nos nossos estados interiores (veja o comentário do filósofo Ortega y Gasset).

Palavras do filósofo: ORTEGA Y GASSET


O que é meditar?
O homem pode, de quando em quando, suspender sua ocupação direta
com as coisas, desligar-se de seu contorno, desentender-se dele e, subme-
tendo a sua faculdade de atender a uma torção radical - incompreensível
zoologicamente, - voltar-se, por assim dizer, de costas ao mundo, e meter-se


C A D E R N O S DE FILÓS

dentro de si, atender ã sua própria intimidade ou, o que é igual, ocupar-se de
si mesmo e não do outro, das coisas. [...]
Note-se que essa maravilhosa f acuidade que o homem tem, de libertar-se
transitoriamente de ser escravizado pelas coisas, implica dois poderes muito
diferentes: um, o de não atender, em mais ou menos tempo, ao mundo em
torno, sem risco fatal; outro, o de ter onde meter-se, onde estar, quando sair
virtualmente do mundo. [...]
São, pois, três momentos diferentes que
- ciclicamente se repetem, ao longo da história
humana em firmas cada vez mais complexas
e densas: I) O homem se sente perdido, nau-
fragado nas coisas; é a alteração. II) O homem,
com enérgico esforço, se recolhe à sua intimi-
dade para formar ideias sobre, as coisas e seu
- possível domínio; é o " ensimesmamento", a
vida "contemplativa" como diziam os roma-
nos, o theoretikòs híos dos gregos, a theoria.
Ill) O homem torna a submergir no mundo
-
para atuar nele conforme um plano preconce-
bido; é a "ação, a vida ativa, a práxis ",
De acordo com isto, "não se pode falar
MIRO, joan.Poitraír li (1938). Madrid: MU- de ação senão na medida em que esteja regida
seo Nacional Centro de Arte Reina Sofia. pQY uma prév{a contemplação; e VÍCC-versa, O
ensimesmamento não é senão um projetar a ação futura",
'
O destino do homem é, portanto, primariamente ação. Não -uivemos para
pensar, mas ao contrário: pensamos para conseguir perviver.
-
ORTEGA Y GASSET, José. O homem e a gente: intercomunicação humana. Rio de Janeira: Livro
- Ibero-Americano, 1973.

JOSÉ ORTEGA Y GASSET (1883-1955): nascido em Madrid (Es-


panha), filho de um jornalista, Ortega y Gasset teve
°* importante participação política na conturbada Espa-
nha da primeira metade do século XX, seja como jor-
^\ nalista, seja como professor de Metafísica na Universi-
dade de Madrid, como conferencista ou também como
autor de uma vasta bibliografia. Seu pensamento teve
importância substancial na formação do pensamento
filosófico em língua espanhola. Ortega y Gasset con-
~ sidera que o homem é forçado a ser livre, a escolher a José Ortega Y Gasset.
todo o momento aquilo que vai ser, de onde se segue uma visão de ser
humano que não é, mas "vai-sendo" de acordo com as escolhas de vida
-
que faz.

-
A consciência do outro obriga-nos a desenvolver um olhar atento, reco-
nhecendo no outro o que o faz diferente e único. De modo simples, isso equivale
a dizer que o outro não somos nós. Cuidado! Ver as coisas desse modo não é tão
fácil como parece, pois implica considerar a legitimidade das diferenças desse ou-
tro, mesmo em relação àquilo que nós consideramos correto. Surge a pergunta:
como viver em um mundo em que temos de reconhecer a legítima alteridade do
outro, mas, ao mesmo tempo, valorizar a nossa própria identidade e essência?
A consciência crítica - ou senso crítico - surge da interação entre essas
duas dimensões da consciência: refletir sobre si mesmo e olhar atentamente o
mundo. Excesso de reflexão sobre si mesmo, sem atenção sobre o mundo, conduz
ao isolamento, ao egocentrismo, à decepção e, fatalmente, à amargura de viver.
Porém, uma excessiva consciência do outro, sem a devida compensação na refle-
xão de si mesmo, pode levar-nos à perda da identidade pessoal, à falta de amor
próprio. Nesse caso, a busca do equilíbrio é fundamental.
Viver como ser humano é um contínuo processo de reconhecer-se no
mundo e reconhecer o mundo em si mesmo. A todo instante, movemo-nos do
eu ao mundo e, imediatamente, somos convidados a mergulhar do mundo ao
mais profundo do eu e, nesse mover-se, encontrar o desejado equilíbrio que nos
permita viver bem.
Bem, mas se algum dia soubermos como construir uma consciência artifi-
cial, ainda assim, teríamos que enfrentar o problema da verdade. Ou seja:

__
Ao construirmos um robô que pensasse como os seres humanos, podería-
mos, inicialmente, supor que bastaria programá-lo para reconhecer como verda-
de àquilo do qual não houvesse nenhuma incerteza e que fosse evidente e lógico
para todos, o tempo todo. Mas aí, teríamos o nosso primeiro grande problema: é
que, praticamente não há assuntos tão certos. Mesmo "dois e dois são quatro" é
uma verdade questionada por alguns filósofos da matemática por depender de
princípios que não podem ser provados (postulados) e sobre os quais não se tem
certeza de como justificar.
E o primeiro aspecto a considerar é até que ponto pode haver um conheci-
mento independente das opiniões pessoais?
Outra questão relacionada a essa é: se a verdade existir em si mesma como
forma de conhecimento independente do ser humano, ela pode ser conhecida de
forma objetiva e verdadeira por nós, seres humanos?
N'^ Repúblico, o filósofo grego Platão conta a alegoria de uma caverna
onde os habitantes, presos de costas para a fonte de luz, apenas vêem as suas
próprias sombras e as do mundo atrás de si, projetadas na parede em frente.
Assim, como desde o nascimento apenas vêem as projeções na parede e não a
realidade que elas representam, passam a considerar como realidade as som-
bras que se projetam diante deles. Um desses habitantes presos consegue li-
bertar-se dos grilhões e sair da caverna. Ao olhar a realidade iluminada pelo sol
CADERNOS DE FILÓS

-
-

compreende o fato de que até aquele momento apenas vira projeções na pare-
de. Volta ao meio dos outros habitantes na caverna, mas passa a ser hostilizado,
pois ninguém acredita na experiência que ele tivera.

-~ arede baixa que\se


ergue ao longo do
-
caminho

Sombras projetam-se
, V nesta parede

-
A caverna de Platão.

Essa alegoria permite muitas interpretações e estudos. Para nós, basta-nos, por
agora, aprofundarmo-nos no fato de que, segundo Platão, o mundo se desvelaria
para nós como sombras, mas há uma realidade superior e permanente no planp_da
verdade a que certos indivídups__p_qdem__a|cançar. A Filosofia e a Ciência permitiriam
entrever, na forma de modelos, essas ideias que chegam a nós, no nosso cotidiano,
- como projeções.
Mesmo assim não teríamos chegado ainda a uma resposta aceitável por to-
dos. Muitos chegam a questionar se, de fato, alguém consegue conhecer as ideias
"o mundo lá fora", apenas observando as sombras da realidade.

--



-

-
*i

O que as sombras nos mostram efetivamente da verdade?

-^
-
-\

Os céticos não acreditam na possibilidade de o mundo ser conhecido, ppr-


tanto concluem que não vale a pena buscar a verdade.
O ceticismo tem diversas vertentes e gradações. Na antiga Grécia, havia
professores de retórica denominados sofistas, que ensinavam a ganhar os debates
usando as palavras, independentemente de os argumentos serem verdadeiros ou
não. Protágoras (480 - 410 a.C.) era um sofista que defendia o relativismo do co-
nhecimento. Por esse ponto de vista, algo pode ser verdade para um. mas não o ser
para o outro, ou algo pode ser verdade em uma determinada época de nossa vida,
mas deixá-lo de ser em outra. Isso equivaleria a dizer que, a rigor, pada é verdadeiro
ou falso. As ideias de Protágoras, duramente condenadas por Sócrates e Platão, lan-
çam raízes em uma tendência dominante na cultura atual de considerar que todas
as posições em relação ao conhecimento da verdade são igualmente válidas.
A posição de ceticismo absoluto de Pirro (365-275 a.C.} nega toda a pos-
sibilidade de que um ser humano venha a conhecer a verdade. De acordo com o
filósofo, nossos sentidos são contraditórios e não são dignos de confiança. Muitas
vezes acontece de uma pessoa achar que aquela cor é verde e a outra afirmar que
é azul. Em uma nova terra, é comum que o visitante sinta frio ou calor enquanto os
habitantes da localidade consideram o tempo normal. O mesmo com a comida.
Um turista pode achar a comida da índia muito apimentada ao paladar, enquanto
que os habitantes do país a irão considerar normal. Afinal, nesses casos, o que é **s
verdade e o que não é? Pirro também questiona a razão. Ele diz que, se a razão
fosse confiável. não haveria tantas opiniões diferentes sobre um mesmo assunto.
Acontece que acreditar numa forma de ceticismo que defende que nada é
verdadeiro é admitir que, pelo menos, há sim uma verdade: "nada é verdadeiro".
A essa contradição somam-se as críticas de que o ceticismo absoluto é estéril, por
não levar a nada de efetivamente produtivo com suas ideias.
O dogmatismo se opõe, radicalmente, ao pensamento dos céticos, pois
defende, de forma categórica, a possibilidade humana de conhecermos a verda-
de. O dogmatismo ingénuo é uma manifestação do senso comum e defende que o
mundo é tal qual o percebemos, ou seja, não leva em conta, por exemplo, a maior
parte do avanço científico. Já o dogmatismo crítico acredita em nossa çapacida^
de de usarmos inteligência e sentidos para, em um esforço conjugado, atingir a
verdade, mas para isso devemos deixar de lado, o que não é fácil, as afirmações
f~.
lógicas que faz Pirro contra confiarmos totalmente nos sentidos e na razão.
A atitude dogmática tende a ser conservadora, ressente-se das novidades,
de tudo aquilo que ameace desequilibrá-la. Esse conservadorismo pode trans-
formar-se em preconceito que pode até prejudicar o contato intelectual entre os
seres humanos. Em especial, se o dogmatismo estiver convencido de que a sua
versão de verdade é de origem divina, de uma fonte que não deve ser contestada. "*
Nesse caso, afastam-se todas as situações que ponham em perigo tais crenças re-
veladas. Em certos casos, aqueles que sustentam opiniões contrárias a essas cren-
ças são tidos como hereges, blasfemadores ou, até, como criminosos.
O criticismo desenvolveu-se, a partir da filosofia do alemão Immanuel
Kant (1724-1804). Representa uma tentativa de superar as correntes céticas e
-

dogmáticas. Procura compreender quais as_çondjc_õe_s_que tornam possível o co-


-
nhecimento da verdade, posicionando-se criticamente diante desse conhecimen-
to. Todo conhecimento da verdade ocorre em condições específicas e é sempre
limitado. Kant afirma que a realidade a que a Filosofia e a Ciência podem chegar
não é a realidade em si das coisas, mas a realidade tal qual ela apareçe_estrutura-
• da_pej_a nossa consciên_CLa_._D_e_ssa_fo_rm_a, conhecer a verdade é conhecer o sentido
- Qy_a_sjgnificacão das_çoisj_s_t_a|_çjuâLfQrarn produzidos na nossa consciência.
Deste ponto de vista, a verdade é o conhecimento das significações cons-
*•
tituídas pela nossa consciência reflexiva. Daí a importância do ser humano ser
- orientado por princípios morais, pela sua consciência devidamente exercitada.

Diálogos literários
Observe como a compreensão dos conceitos de verdade analisa-
- dos facilita a compreensão do poema "Chove? Nenhuma chuva cai...",
de um dos mais importantes nomes da Literatura em Língua Portu-
guesa, Fernando Pessoa (1888-1935).
-
Chove? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?
- Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
- Eu quero sorrir-te, e não posso,
- Ó céu azul, chamar-te meu...
E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...
E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria Na - -»:-

Cai aos meus pés como um disfarce. Fernando Pessoa.

Ah, na minha alma sempre chove.


Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
-
A chuva, como a voz de um fim...
3. O poema de Fernando Pessoa confirma que aspectos do ceticismo de
Pirro?
- 4, No entanto, Fernando Pessoa não é uni cético. Ele se preocupa em
compreender as diferenças entre o que sente, ele deseja atingir a ver-
dade. Comente de que forma o poema "Chove, Nenhuma chuva cai..."
confirma aspectos do criticismo de Kant,
-

-
A inteligência, a verdade e a percepção
Toda essa discussão sobre apreender a verdade torna-se imprescindível ao
discutirmos a possibilidade de criarmos inteligência artifical. Fernando Pessoa,
em "Chove? Nenhuma chuva cai..." observa como é difícil para a inteligência hu-
mana a percepção da verdade. No entanto, a nossa mente percebe o mundo e a
construção de robôs ou andróides que pensem como os humanos deve levar em
conta como a inteligência humana percebe a realidade.
A palavra inteligência tem origem latina. O verbo inteligere que dá origem à
palavra "inteligência" significa literalmente "ler dentro" (intus + legere). Ler dentro
da_s coisas, descobrir_p significado que está por trás delas, isso é, de acordo com o
sentido original da palavra, fazer uso da inteligência para chegar à verdade.
A percepção, por sua vez, é a capacidade de reter as coisas em seu aspecto
exterior a partir do que nos é acessível pelos órgãos dos sentidos (visão, audição,
olfato, tato e paladar). A sensação é que nos dá as qualidades dos objetos, bem
como os seus efeitos em nós. Assim, sentimos o azul e o vermelho, o grito e o sus-
surro, o frio e o quente, o doce e o amargo, o liso e o áspero.
Sentir é ambíguo, pois o sentimento é tanto_a_q_ualidade que está no objeto
como o que essa qualidade nos provoca. Por isso, uns podem considerar algo
doce, enquanto para outros, ele é amargo. Além do que, sentimos as qualidades
como parte de objetos mais amplos e complexos. A sensação isolada raramente
existe - é o motivo pelo qual ninguém diz que tomou o quente, mas que o café
estava quente. Na maior parte das vezes, a sensação existe sob a forma de per-
cepção; sentimos e percebemos formas, ou seja, totalidades estruturadas que nos
permitem elaborar sentido e significação. Por isso Pirro podia olhar de forma tão
desconfiada para os sentidos como forma de chegar à verdade.

Palavras do filósofo: HUSSERL


Que relações existem entre percepção e realidade?
A consciência é precisamente consciência de qualquer coisa; é a sua es-
senda de detectar em si um "sentido", que é, por assim dizer, a quinta-essên-
cia da "alma", do "espírito", da "razão". [...]
O nosso olhar, suponhamos, passeia com um sentimento de prazer, por
uma macieira em flor, por um jardim, no verde macio da relva, etc. Manifesta -
que a percepção e o prazer que o acompanha não são aquilo que ao mesmo tem- ""
po é percebido e agradável. Na atitude natural, a macieira é para nós um exis-
tente situado na realidade espacial transcendente, e a percepção, assim como o
prazer, é um estado psíquico que nos pertence a nós homens reais da Natureza.
Entre uma e outra realidades naturais, entre o homem como realidade natural
ou a percepção como realidade natural, e a macieira como realidade natural,
existem relações que são igualmente unia realidade natural. [...]
-

•*

- MONDRIAN, Ptet. A árvore cinzenta ('\9'\2). Haia: Gemeentemuseun Den Haag.

O sentido da árvore, que pertence necessariamente à sua essência, foi o


ponto de partida para a obra de arte de Mondfian.
A "árvore pura e simples", a coisa na Natureza, não se identifica de
maneira alguma com este "apercebido de árvore" como tal que, em sentido da
percepção, pertence à percepção e é dela inseparável. A árvore pura e simples
pode arder, ficar reduzida a seus elementos químicos, etc., mas o sentido - o
sentido de estar, que pertence necessariamente à sua essência - não pode ser
queimado, não tem elementos químicos nem força, nem propriedade naturais.
HUSSERL. In: Filósofos de todos os tempos-4: Husserl ou o regresso das coisas [Apresentação, escolha de
textos, biografia e bibliografia de Daniel Christoff]. Lisboa: Estúdios Cor.

HUSSERL (1859-1938): filósofo alemão, iniciador da corrente filo-


sófica denominada Fenomenologia. Nasceu em Prossnitz, Moravia,
que hoje faz parte da República Tcheca.
-
-
A percepçãQ_é_sernp[e_u_ma_experiência com sentido para o ser humano, fa-
^
zendo parte de nosso mundo e de nossa vivência. O mundo em que vivemos não
é uma somatória de coisas isoladas, mas está organizado de maneira a apresentar
forma e sentido a quem o percebe.
Nós sentimos percepçõesglobais de umafprma ou de uma estrutura. Embora
* nunca consigamos ver os seis lados de um cubo ao mesmo tempo, o percebemos
-

-
- C A D E R N O S DE F I L O S O F 1 .

como cubo, ou seja, trata-se de um cubo-percebido.


A percepção do cubo como totalidade completa facilita que, na aula de
matemática, quando o pensemos, ele se nos apresente como uma figura de seis
faces, todas presentes ao mesmo tempo pela nossa inteligência abstrata, mas já
não mais como cubo-percebido. Isso ocorre porque a percepção é sempre uma
experiência carregada de significação, ou seja, aquilo que percebemos carrega
de sentido a nossa história de vida, fazendo parte de nosso mundo e de nossa
história pessoal.

Diálogos literários
5. Experimente explicar como se constrói a percepção da realidade
na experiência do filho no conto a seguir, do uruguaio Eduardo
Galeano (1940-):

A função da arte/1
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que
descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,
depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a
imensidão do mar, e tanto seu fulgor, cjue o menino ficou mudo de beleza.

BRETTJohn.Br/rannia's/?ea/m (1880). Londres: TateGallery.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao


pai:
-Me ajuda a olhar!
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: LP&M, 1997.
--
1 - CADERN

A percepção estabelece a relação entre as coisas e nós mesmos,


ré! a c i o n ando-nos com o mundo, permitindo-nos construir uma forma de
-
estar nele.
Q pensamento permite que abstraiamos aquilo que percebemos, reformu-
lando nossa realidade interior. A percepção, nesse sentido, pode facilitar a experi-
ência do pensamento abstrato.

--

A percepção não é uma soma de sensações parciais, mas trata-se


sempre da percepçãQ.d_e_uma_reaLidade completa, E isso o que nos per-
-
mite entender o texto, a seguir, como um todo, mesmo que ele apresente
algumas dificuldades parciais.
-

'
Por vezes, a nossa percepção e o nosso
pensamento levam-nos a lugares bem diferen-
tes. Isso ocorre quando a percepção nos conduz
à ilusão.
?*>• Os sentidos estabelecem a nossa interface
com a realidade. Contudo, podem também ser a ori-
gem dos
--
enganos
Um pato ou um coelho? <-|o nosso
conhecimento. Isso porque o número de
realidades não é semelhante ao número de
- olhares. O conhecimento não resulta de acor-
dos entre os nossos sentidos, mas de compa-
rações entre os sentidos e a realidade. A obra
Belvedere, do artista holandês Mauritius Es-
cher, confunde os sentidos, provocando-nos
uma ilusão de óptica.
A consciência humana apresenta
a capacidade de apreender o conheci-
mento da verdade por meio de diversos
modos que permitem construir a nos-
sa identidade individual e social. Criar
inteligência artificial, como a humana,
significaria construir individualidades
que poderiam questionar a si mesmas e
imaginar novas possibilidades para a sua
existência, a partir do que percebem do
ESCHER, Mauritius. Belvedere (1958). Haia: Geme-
mundo em que participam. entemuseum Den Haag.
Tais andróides poderiam conhecer a

-
-
DERMOS DE FILO

•~-

verdade na interação en-


tre os fatos e a sua própria
consciência. Mais ainda, -•-•
não apenas conheceriam "••
essa verdade, mas ques- •*>
tionariam, como nós, a
existência de uma verdade
e dos diversos modos de
conhecê-la.
Nós, adotando um
ponto de vista diferente
dos céticos e dos dogmáti-
cos, podemos afirmar que
o conhecimento será tanto
mais verdadeiro quanto
_.

mais interagir com todas


as suas diferentes áreas de •"N

interesse. O conhecimento
^^•M da verdade se dá de forma
global, por meio das diver-
sãs consciências que constituem o ser humano. Falaremos mais sobre isso no
próximo capítulo.

Palavras do filósofo: DESCARTES


Por que sou filósofo?
Enfim, para a conclusão desta moral, lembrei-me de fazer um exame
minucioso das diversas ocupações que os homens têm nesta vida para es-

colher a melhor; e sem que queira nada dizer das dos outros, julguei que o •
melhor que eu poderia fazer era continuar naquela em que me encontrava,
isto í, empregar toda a minha vida a cultivar a minha razão e a progredir,
tanto quanto pudesse, no conhecimento da verdade, segundo o método que
me havia prescrito. [...JTendo Deus concedido a todos alguma luz para dis-
cernir a verdade do erro, não deveria contentar-me, um só momento, com
as opiniões de outros, se não me tivesse proposto a empregar o meu próprio
juízo em examiná-las quando fosse o tempo; e não teria sabido isentar-me
de escrúpulos seguindo-as, se não esperasse perder, com isso, nenhuma
ocasião de encontrar outras melhores, caso existissem.
DESCARTES. Discurso do método. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.
-
1 - C A D E R N O S DE FILOSO

o
PAUSA PARA REFLETIR.
-
- 6, Procure, na biblioteca e na Internet, mais informações sobre Des-
cartes; Onde nasceu? O que pensava? Quais as suas contribuições
para a humanidade?
rs
7 7, João tem quase certeza de que um de seus professores é extrater-
restre, só não sabe qual, Ele precisa descobrir a verdade. Desen-
•~
volva a narrativa, coerente a estas informações, de tal maneira que
a solução encontrada desautorize essas ideias iniciais. Siga urna
das posições em relação com a verdade que estudamos: ceticis-
- mo, dogmatismo ou criticismo,
r*. 8, Explique de que forma a ilusão, em nossa percepção, contribui
O para construir a mensagem do anúncio publicitário a seguir, veicu-
n lado pelos Correios brasileiros no ano de 2007.
-
*
r\
n

r*

-

-
~
n
r
mundí

-
-
-
CADERNOS DE FILOSOFIA

•*
Um ser com muitas
-
-
- consciências faz
rs muitas perguntas
-
-
-
-
- Não é à toa que
- tenho corpo
de leão... O
conhecimento de
si mesmo exige
grande coragem
- para não se
desistir no meio
- do caminho...
-

-
-
- Sim, também É a discussão
• achavam filosófica, meu
- impossível que caro... Tudo começa
por aí... Claro,
um dia viessem a
isso motivado pelo
criar inteligência
artificial e olha desejo de conhecer
só eu aqui! quem somos!

-
*
-
fs
'-

-
-
-
--•
l - CADERNOS DE FILOSO

E verdade... A inteligência humana


permite que saibamos algo e que
tenhamos consciência daquilo que
sabemos. O ser humano sabe e sabe
que sabe!
"i
Por isso você é especial, porque
você possui tal inteligência... O
filósofo se dá conta de que esse
conhecimento de si mesmo exige
que ele faça interagir os diversos
modos como se manifesta a sua -
consciência! -~-

:
Olha só! Com essa conversa toda vou acabar atrasando o
almoço... e ainda nem terminei de varrer a sala!.

eu já vou pra cozinha


ajudar... "*•

-
^

*">

•~
-
-
-

A construção da verdade pelas diversas -~


consciências do ser humano
A consciência humana se realiza em uma pluralidade constitutiva que pode --•
ser resumida no seguinte esquema:
Consciência mítica
religiosa —^
intuitiva
racional -*- científica
r».
filosófica
1 - CADERNOS DE FIL

-
A seguir, falaremos
de cada uma dessas cons-
-
ciências que constitui o
ser humano e que difi-
- culta que construamos
inteligência artificial tão
boa quanto a humana...

-
MOHALYl, Yolanda. Abertura (1970/72). Museu de Arte de São Paulo.

A consciência mítica
A consciência mítica centra-se no.çgahecimento do mito e da_s_conse-
quências do significado desse conhecimento para o indivíduo na sua_re]ação
com ocoletivo.
- O termo "mito" significa muitas coisas em diferentes contextos. Para nós,
neste livro, mjtos__são as na__rrativas_e ritos que fazem_parte_de um povo_e que
p_ermitem_uma_expJiç_a_ção da realidade, dando sentido à vida humana. Por meio
do mito, explica-se como uma realidade passou a existir em um passado mágico
e sagrado.
Na antiga Grécia, o mito era uma narrativa proferida para ouvintes que a
aceitavam como verdadeira pela confiança que sentiam naquele que a narrava. O
narrador do mito era o poeta, visto como um escolhido dos deuses para preservar
a memória de um povo. O mito é sagrado porque se origina de uma revelação
divina.
Além disso, por meio dos mitos os antigos fixavam os modelos de todos
os s.eusjitps e atividades que consideravam significativas. A consciência mítica
-
é operativa, pois apresenta resultados, transmitindo valores para os membros de
um grupo social: os seres humanos repetem, nos ritos explicados nos mitos, as
r> ações dos deuses. Por suas ações, as pessoas deveriam imitar os deuses nos ritos
- que rememoravam os mitos primordiais para que houvesse a caça, a semente
-
brotasse, a mulher desse à luz e as estações do ano se sucedessem.
A consciência mítica é uma consciência comunitáriaj_na_q promove a valo_-
nzacjLo de discernimentos individuais. O ser humano não comanda a ação, já que
n sua experiência faz parte da experiência da comunidade e se faz por meio dela.
-
^
*
iDERNOS DE FILOSOFIA

O coletivo predomina sobre


o individual.
Hoje, embora tenha-
mos desenvolvido outros
modos de consciência, o
mito continua ocupando
um lugar importante na
constituição fundamental
da vida humana. Ainda é
o ponto de partida para a
compreensão de muitos
aspectos da existência hu-
mana. Quer seja um con-
to popular ou um astro de
No carnaval, mitos, ritos e desejos humanos dividem espaço com a
televisão ou um objeto da consciência racional.
moda, os mitos represen-
tam os anseios humanos essenciais: medo, sucesso, poder, sensualidade, etc.
Além disso, nossos comportamentos ainda incluem rituais: o nascimento, o
casamento, as datas especiais, o carnaval, entre outros, apenas revelam que mito
e razão podem complementar-se.
Contudo, a consciência mítica, hoje, divide o seu espaço com outros mo-
dos de consciência, o que permite ao ser humano escolher os mitos aos quais
deseja aderir. A consciência mítica não necessita dominar as nossas ações, mas
permite-nos dispor de uma outra forma de vero mundo, que ofereça um diálogo
produtivo ao nosso raciocínio. Os mitos funcionam como uma rica biblioteca de
conhecimentos sobre o homem e seus desejos e necessidades fundamentais.

PARA DESENVOLVER O OLHAR ATENTO SOBRE O MUNDO

Ao término da leitura deste breve texto, você será capaz de ex-


plicar por que a procura cio esclarecimento da sociedade contempo-
rânea negou o conhecimento mitológico.
"Na tradição do esclarecimento, o pensamento esclarecedor foi
ao mesmo tempo entendido como antítese e força contrária ao mito.
Como antítese, porque opõe à vinculação autoritária de uma tradição
engrenada nas cadeias das gerações a coação não coercitiva do me-
lhor argumento; como força contrária, porque deve quebrar o feitiço
das forças coletivas por meio dos discernimentos conquistados indi-
vidualmente e convertidos em fonte de motivação. O esclarecimento
contraria o mito e escapa, com isso, de seu poder, (...)
O mito, contudo, deve sua força totalizadora, com que organi-
za todos os fenómenos percebidos na superfície em uma rede de
-
correspondências, de relações, de semelhanças e contrastes, a concei-
- tos básicos, nos quais une categorialmente aquilo que a compreensão
moderna do mundo não pode mais juntar."
HABERNAS, Júrgen. O discurso filosófico do modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

1. O texto fala do "pensamento esclarecedor". A que se refere?


a) Ao pensamento produzido pela consciência racional.
- b) Aos mitos que permitem maravilharmo-nos com ávida.
c) Aos anseios humanos essenciais, como medo e poder.
- d) Unicamente ao pensamento filosófico,
e) À nomos ou seja, a produção cultural humana.
2. O texto constrói uma oposição entre a "tradição engrenada nas ca-
deias das gerações" e a "coação não coercitiva do melhor argu-
mento", que ser referem respectivamente a
a) nomos e physis (tudo aquilo que existe independemente da von-
tade humana);
b) physis e nomos (toda a formação cultural humana);
c) razão e mito (tradição ancestral humana);
d) mito e razão (em especial a capacidade de argumentação);
- e) mito e physis (em especial, a cultura humana).
3. O texto afirma que o esclarecimento é uma força contrária ao mito
porque "deve quebrar o feitiço das forças coletivas por meio dos
discernimentos conquistados individualmente e convertidos em
fonte de motivação". Com isso o texto destaca;
a) A dimensão comunitária do mito que não valoriza o discerni-
mento individual.
b) Aspectos sociais da razão humana, preocupada com o bem-
estar de todas as forças coletivas.
c) A integração harmoniosa entre mito e razão humana.
d) O aspecto modelar do mito que serve de norma de conduta
para todos nós.
e) A impossibilidade da razão humana aceitar que um indivíduo
possa realizar feitiçaria.
4. Em que sentido "O esclarecimento contraria o mito e escapa, com
- isso, de seu poder"?
-
5. De acordo com o texto,'o mito organiza os fenómenos percebidos
pelo ser humano, Você concorda com essa afirmação? Por quê?
-

-
A D E R N O S DE F I L O S O F I

A consciência religiosa
Não restam dúvidas da importância da religião na nossa sociedade. A cons-
ciência religiosa foi uma das primeiras a surgir e permanece como um forte ele-
mento na construção das identidades. Sua origem associa-se à consciência míti-
ca. Não é fácil, em certos casos, distinguir o que pertence à consciência mítica ou
à religiosa. Ambas sustentam-se na valoriza_ção_dp_ _spbre_natural__~ p poder divino.
Acompanhe o que está ocorrendo na sala de aula da disciplina de Filosofia:

A Religião conseguiu abrir-se ao


diálogo com a Ciência e a Filosofia,
o que produziu transformações na
consciência religiosa...

Nem todos, Carla!


Professor, Na verdade, o
mas os diálogo entre
cientistas a consciência
não são religiosa z racional
ateus? tem possibilitado
grandes
conquistas para a
humanidade...
f

E, ainda mais se, Muito bem, Bira... Além disso, a


a gente repara religião permite a valorização do
bem, vai ver que indivíduo e a
nem a Ciência, construção de um
nem a Filosofia relacionamento
têm todas as pessoal com o
respostas para Sagrado.
as necessidades
humanas.
--
- 1 -CADERNOS DE FILOSO

'

-
Muito bem, Carlinha,
" Professor, nisso Q
parabéns! De fato, o
-
consciência religiosa é equilíbrio entre fé e
diferente da mítica, né? razão permite uma visão
integral do ser humano

Só dá
Carlinha
e Bira no
pedaço...
-

Professor, desculpe, é
O debate entre fé e razão, somente para dar um recado:
-
no entanto, alimentou séculos Classe, amanhã, não
de disputas e
esqueçam de trazer
não está ainda
a autorização para o
completamente passeio cultural!
resolvido!

Claro, professora Cássia,


afinal, "o coração tem
razões que a razão
desconhece"*
* Pascal

- A consciência religiosa faz-nos ter uma relação pessoal com Deus, reco-
nhecendo-nos como indivíduos únicos, que podem se relacionar com uma outra
dimensão: a dimensão do Sagrado. Ao mesmo tempo, essa consciência também
permite-nos questionar a nossa relação com o outro, humano ou não, o que abre
~ uma porta para que construamos uma vida mais plena e significativa.

-
DERMOS DE FILOSOFIA

/U*
A consciência intuitiva
De repente, em dado momento do filme, o detetive tem um "palpite" cer-
teiro que o leva ao criminoso. Só em filmes, dirão alguns. No entanto, intuições
fazem parte de nossa constituição humana.
A intuição é um modo de consciência que surge como um saber imediato,
um discernimento repentino de uma_sjtuação, vista no seu conjunto, um insight.
Em seu momento inicial, portanto, a intuição é não-racional, funciona como um
estalo que nos faz ter certeza ou impressão de algo sem sabermos muito bem o
porquê. De repente, notamos algo em que nunca havíamos pensado, ao obser-
varmos o mesmo objeto ou fenómeno. Para a razão, a consciência intuitiva é mui-
to importante, pois funciona como uma verdade provisória que vamos desejar
comprovar. Ela orienta os nossos esforços em uma direção.
Muitos afirmam que a ciência experimental começa pela intuição. Isso di-
vide os cientistas, pois outros defendem que a ciência começa pela observação.
Vale a pena, no entanto, considerarmos o pensamento daqueles que consideram
que a intuição é a base fundamental dos conhecimentos humanos originados
nas ciências empíricas. Não se trata, naturalmente, de considerarmos a intuição
como o instrumento próprio para conhecer a verdade, mas de partir de uma in-
tuição, considerada como verdade provisória, para alcançar verdades científicas
por meio da construção de teorias, interpretando essa verdade intuitiva seguindo
um raciocínio lógico característico de um método científico.
A intuição aglutina uma série de elementos que, em um momento poste-
rior, podem ser analisados ou, até, demonstrados por meio de argumentos. Quan-
do essa análise ocorre, deixamos o modo da experiência intuitiva e avançamos
para o conhecimento racional.

A consciência racional

-
"-.

—•

A consciência racional é a possibilidade de andarmos por dois caminhos: de


um lado, vamos da intuição à razão; por outro, do senso comum ao conhecimento
racional.
- CADERNOS DE FILOSO

Na sua origem, a palavra razão (do latim, raivo) significa tanto cálculo, conta,
como registro, opinião, senti mento. Ter razão era, portanto, pensar e falar de modo
-
ordenado, a fim de tornar-se compreensível ao outro. Razão é, desta perspectiva,
a capacidade intelectual de pensar e expressar-se de.mpdo claro, calculado, para
que QS_sentimentps_ e o senso comum não atrapalhem aquilo que, objetivamente,
se_deseja dizer. A razão é, então, uma maneira de organizar a realidade para torná-
la mais compreensível, tanto a nós mesmos_cpmpao outro, a quem nos dirigimos.
A razão é prova viva da confiança humana de que as coisas são possíveis de
se organizar, compreensíveis nelas e por elas mesmas. Em outras palavras, a razão
acredita existir-s_e_na realidade, confiando que as próprias coisas são racionais em
si mesmas. Por isso é que podemos conhecer racionalmente essa mesma realidade.
- A consciência racional procura compreender a realidade por meio de certos
princípios estabelecidos pela razão. Um desses princípios é o da causa/consequên-
cia, ou seja, de que todo efeito deve ter uma causa que o originou. Pelo princípio
da causalidade, procuramos relações internas entre as coisas, fatos e ações. Explicar
-
uma_ causa é resolver um problema de por que se deu tal efeito, e não outro, em
determinado tempo e .lugar. Aqui, convém separar o princípio da causalidade com
o da anterioridade. Ou seja, nem tudo o que ocorreu antes é causa do que veio
depois. Por exemplo, imaginemos que numa sala de aula de 30 alunos, 15 estavam
mascando chiclete durante a prova de matemática. Desses 15,12 tiraram nota má-
xima enquanto que dos outros, apenas 4 tiraram a mesma nota. Embora mascar
chiclete seja um fato anterior à nota da prova, não pode, racionalmente, ser con-
siderado como causa das notas altas. A razão admite o acaso e os fatos acidentais,
embora, ainda assim, procure uma causa para esse mesmo acaso.

r> NASH, Paul. Opiiarea lua. (1932-42). Londres:Tate Gallery.


-
-
-
Preste atenção na letra de música a seguir:

Eu sei (Na mira)


Um dia eu vou estará toa
E você vai estar na mira
Eu sei que você sabe
Que eu sei que você sabe
Que é difícil de dizer
O meu coração
É um músculo involuntário
E ele pulsa por você
Um dia eu vou estar contigo
E você vai estar na minha
Enquanto eu vou andando o mundo gira --

E nos espera numa boa


Eu sei, eu sei,
Eu sei
Marisa Monte. "Eu sei (na mira)". ln;Mais.EM\, 1991.

6. Explique como a consciência opera na descrição a seguir: "Eu sei que


você sabe / Que eu sei que você sabe / Que é difícil de dizer".
7. Em sua opinião, essa certeza de futuro entre o eu-lírico e o ser amado,
no mundo "que nos espera, numa boa" é algo racional ou intuitivo?
Explique.
8. Você confia em sua intuição? Como ela funciona em seu caso pessoal?
Que relações ela estabelece com a sua consciência racional?

A consciência racional é de extrema importância a fim de responder-
mos às perguntas que a nossa mente faz a todo o momento, em particular
uma mente motivada a filosofar! Mas, ao falarmos durante toda esta obra da
importância das perguntas, convém perguntar:

Pergunta é tudo a mesma coisa?


A pergunta "Como fazer o carro economizar mais gasolina?"- é uma per-
gunta filosófica? O que acha?
Denominamos questões técnicas aquelas que exigem a busca sistemá-
tica de informações relacionadas a uma determinada área do conhecimento.
1 • CADERNOS DE Ft

A análise dessas informações muitas vezes exige a presença dos "especialis-


tas", pessoas que desenvolveram formas não usuais de pensar tais informa-

ções específicas. Por exemplo, a pergunta "Como fazer o carro economizar
-
mais gasolina?" pode levar-nos aos domínios da Mecânica e da Administra-
ção. As questões técnicas são, na maior parte das vezes, respondidas pela
Ciência.
Há, no entanto, alguns perigos a considerar nesse raciocínio.
O primeiro diz respeito a simplificarmos demais a nossa divisão das
-
questões e esquecermos as relações que elas estabelecem entre si. As peque-
•*
nas questões cotidianas, geralmente, levam-nos em direçÔes opostas àquelas
-
apontadas pelas questões técnicas. Assim, podemos perguntar "A que horas
- o sol se põe por aqui?" quando, tecnicamente falando, sabemos que não é o
Sol que se põe, mas a Terra que gira em torno do astro. Contudo, perguntar
"Como fazer o carro economizar mais gasolina?" só faz sentido se interessar
para alguém a pergunta "Como fazer o MEU carro economizar mais gasoli-
na?". Um outro exemplo: "Como fazer o Brasil se tornar um país de primeiro
-
mundo?". Essa pergunta é, certamente, técnica, mas interessa-nos pessoal e
- cotidianamente. Ou seja, em cada um de nós que nos interessamos em uma
questão como essa há uma outra complementar: "Como posso fazer de mim
-
um cidadão de primeiro mundo?".
-

- HAMILTON, Richard. Cftromatícsp/ra/ (19501. Londres:Tate Gallery.

-
DERMOS DE F I L O S O F I A

"-'

Um outro perigo relacionado é o de hierarquizarmos a importância das


questões. Há uma tendência dominante de considerar as questões técnicas como
mais importantes que as cotidianas e até que as filosóficas. Isso é um erro que, na
verdade, apenas difunde o senso comum como chave de conhecimento do mun-
do, deixando os assuntos "sérios" isto é, as questões técnicas, nas mãos de meia
dúzia de especialistas do assunto. E faz parte desse senso comum acreditar que
todos os problemas do mundo serão resolvidos pelos especialistas das questões
técnicas. Tal crença alimenta jogos de poder que mexem com grandes recursos
financeiros e intelectuais.
•"S

-N

-
-

"

f—
O filósofo antigo era
também o cientista,
pois Filosofia e Ciência
mantinham-se unidas.

A verdade é que o conhecimento necessita de todos os tipos de ques-


tões e que elas se entrelaçam entre si: a filosofia, a ciência e os conhecimen-
tos populares podem dialogar entre si na procura de um mundo melhor. A
questão "Podemos construir inteligência artificial?" embora técnica, apenas
é devidamente respondida quando mergulhamos também no raciocínio fi-
losófico.
De fato, a Filosofia e a Ciência se mantiveram, por séculos, unidas. Foi so-
mente no século XVII, com a revolução científica provocada por Galileu Galilei,
que começaram a separar-se. Lentamente, ocorre a fragmentação do saber cien-
tífico, ou seja, foram-se delimitando os objetos de pesquisa, o que fez surgir as
ciências particulares, como a física, a biologia, a química, a sociologia, a linguísti-
ca, etc. Além disso, o passar dos anos aperfeiçoou o método científico, ou seja,
1 - C A D E R N O S DE F I L O S O

-
um método que procura a objetividade na pesquisa, principalmente por meio do
confronto de resultados e de sua verificabilidade.

-
Um mundo de questionamentos 1L
Compreender as razões de por que o mundo é como é permite-nos fazê-lo
um lugar melhor. É essa esperança que alimenta o valor que damos aos questio-
-
namentos filosóficos, os quais, de um modo geral, podem ser classificados em
quatro tipos:

S metafísicos
S epistemológicos
-
S éticos
S políticos
As questões metafísicas dizem respeito à natureza básica das coisas,
ou seja, o que elas realmente são. A metafísica é a parte da filosofia que pro-
cura definir tudo o que existe. São exemplos de perguntas metafísicas: "O que
é o tempo?";"O que é a felicidade?";"O que é a vida?",., bem, a lista vai longe,
como consegue imaginar.
As questões epistemológicas dizem respeito a como podemos co-
-
nhecer as coisas. A epistemologia é a parte da filosofia que se preocupa em
como os indivíduos podem conhecer tudo o que existe. Deseja investigar as
- origens, fundamentos, possibilidade, dimensões e valor do conhecimento.
- Imagine que alguém lhe diz que encontrou um jeito de tirar nota máxima
- nas provas sem estudar. É natural que você lhe pergunte:"Como?" Bem, essa
pergunta, "Como?", revela uma preocupação epistemológica. A epistemolo-
gia é também chamada de teoria do conhecimento, crítica do conhecimento
ou gnosiologia.
'
As questões éticas procuram o que é correto e o que é errado na vida.
- Elas visam à construção de uma moral de vida. Algumas das questões éticas
mais atuais dizem respeito ao uso da vida. Por exemplo, é correto produzir
clones humanos para resolver problemas de transplantes de órgãos? É de
- direito os pais escolherem o sexo do filho que desejam ter? A quem perten-
ce o DNA de uma pessoa, uma vez que ele carrega a herança genética desse
-
indivíduo?

'
PARA DESENVOLVER O OLHAR ATENTO SOBRE O MUNDO

Uma senhora, com 44 anos, mãe de 5 filhos, todos do sexo mas-


• culino, solicitou a um médico que realizasse um procedimento de
inseminação artificial com prévia seleção de gametas masculinos
-
apenas com cromossomo X, isto é, que gerassem apenas embriões
-
-


ERMOS DE FILOSOFIA

do sexo feminino, com a finalidade de realizar um grande desejo


~-
e superar a profunda frustração de não ter uma filha. Os médicos
afirmaram ao juiz que nenhuma terapia havia tido sucesso em me-
lhorar o quadro depressivo desta paciente, que havia sido agrava- ~-
do pelo diagnóstico errado na sua última gestação. Nesta ocasião
informaram-lhe que estava gestando uma menina, porém nasceu o
seu quinto filho homem. A ideia de ter uma filha que a cuidasse na —
velhice tornou-se uma obsessão para ela, também de acordo com o
relato médico. Neste mesmo documento os médicos afirmavam que —
o procedimento a que a paciente seria submetida era simples e sem -•
riscos, com um único senão que era o de não poder garantir, em •*<
100% das situações possíveis, que ela gestaria uma filha,
ALONSO E. J. P. Consideraciones criticas sobre Ia reguiadon legai de Ia seiección de sexo (parte l). In: Rev.
de Derecho y Genoma Humano, 2002;!6:59-69. Disponível em: <www.ufrgs.br/bioetica/sexsel.htm>.
Acessado em: 9-5-2007.
•--
9. No lugar do juiz, você daria permissão para esse tratamento, ou não? •*-•
Por quê?

—.

/
• :'l &£**&
NASH, Paul. The Messerschmidt In Windsor Great Park [1940). Londres: Tate
Gallery.

As questões políticas procuram questionar qual a forma ideal de viver em


sociedade, ou seja, como nós humanos podemos construir uma sociedade justa
e bem organizada. São dessa natureza perguntas como: "Como conseguir uma
sociedade mais justa e pacífica?"; "O que é efetivamente um governo democrá-
tico?"; etc.
>
O que é efetivamente correto em uma guerra? Essa é uma questão ao mes-
-
mo tempo ética e política.

-
PARA DESENVOLVER O OLHAR ATENTO SOBRE O MUNDO

- 10. Elabore, para a letra de música a seguir, ciuairo questões: uma me-
tafísica, uma epistemológica, urna ética e outra política, As questões
devem fazer referência ao Nomos, não à Physis, A resposta a essas
cruestões deve permitir urna melhor compreensão do texto.

*"• Sábio
Sábia é a voz que vem de Deus
Sábia é a paz
De dentro de nós, dos olhos teus
E não se apraz
Nas bibliotecas e museus
Sábio é o sol
Sábio é o cantar do sabiá no arrebol
Quando a tarde quer dizer adeus
-- Nem ciência, nem religião
Sem explicação
•3 Puro estado de contemplação
• Vander Lee. Ao vivo. Indie Records, 2003.

A importância da reflexão
- Como vimos, todas as questões filosóficas surgem das questões cotidianas.
Isso nos leva a pensar que, em algum momento da vida, todos nós filosofamos,
- procurando ver o mundo e a nós mesmos como realmente somos, despidos de
preconceitos e do senso comum. Para isso é essencial refletir.
---
As imagens se refletem no espelho, certo? Quando nos olharmos em um
•- espelho, é como se nos desdobrássemos: estamos aqui, mas também estamos
- lá, do outro lado do espelho, Refletir é isso, transformar a nossa mente em um
espelho no qual se refletem as realidades ao nosso redor. Olhando em volta de
- nós mesmos procuramos os aspectos necessários e verdadeiros da vida humana.
'— A reflexão é, desse ponto de vista, uma procura pela verdade, a verdade filosófica.
Em latim, refletir é ref/ectere, ou seja, "voltar atrás", "dobrar", "retroceder". Refletir
é retomar o próprio pensamento, fazendo-o desdobrar-se, então dobrando-nos
-• sobre nós mesmos, pensar o já pensado e, dessa maneira, questionando o que já
-" se conhece ou acreditamos conhecer.

"
-
-
1 - C A D E R N O S DE FILOSOFIA

Refíetir é a própria essência do filosofar, mas refletir sobre o quê? Para en-
contrar objetos de reflexão que iremos espelhar em nosso pensamento, precisa-
mos de uma atitude de perplexidade.

•"•
"

ALECHISNKY, Pierre. Sem título (1975,76). Londres:Tate Gallery.

Admirados, olhamos o mundo ao redor com uma curiosidade quase in-


fantil. Tudo ao nosso redor parece ser fonte de mil ideias imaginativas e cuja
compreensão nos permitirá conhecer melhor a nós mesmos e a tudo o que
nos cerca. Se você consegue compreender a sensação de que estamos falan-
do, então você pode fazer filosofia. Fazer filosofia exige uma certa dose de
perplexidade diante da vida, uma admiração quase infantil, surpreendendo-
se com aquilo que a maioria das pessoas considera normal. É essa atitude de
surpresa e espanto que desconcerta a esfinge que nos olha inquieta e que faz
de nossa mente algo tão inigualável e difícil de reproduzir de forma artificial.

•~
l - C A D E R N O S DE F I L O S O F I A

-
PAUSA PARA REFLETIR.

- 11. Comente, a partir dos conhecimentos desenvolvidos neste livro, a


tira em quadrinhos a seguir:

-
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r*.

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--

•*•

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-*
Não devemos perder nunca nossa curiosidade infantil!
n
--
~
1 - C A D E R N O S DE F I L O S O F I A

-•
-

- BREVE PANORAMA DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA


-
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í Autor desconhecido. Filó-


"* l d=
sofo com livro, compasso e
régua de desenho (cópia de
Í
O)
original perdido) (1630-32).
í São Petersburgo:The State
2? Hermitage Museum.
<D
-D

Criação humana, a Filosofia influencia a história humana decisivamen-


I te e, além disso, apresenta a sua própria história: a História da Filosofia.
l A História da Filosofia pode ser dividida em sete períodos:
- í
1. A Filosofia Antiga (entre os séculos VI a.C. e VI d.C.): trata-se, basi-
camente, da Filosofia grega e, por sua vez, é dividida em quatro períodos:
1.1. Período pré-socrático ou cosmológico: do fina l do século VII a.C.
ao final do século V a.C. Procura compreender a origem do cosmo (o uni-
verso, visto como um todo ordenado) e os
fenómenos da Natureza.
1.2. Período socrático ou antropoló-
- gico: do final do século V ao final do século
IV a.C. Investiga as questões humanas, tais
• ~- como a ética, os comportamentos e os co-
nhecimentos humanos.
1.3. Período sistemático: do final do
século IV ao final do século III a.C. Centrado
principalmente na figura de Aristóteles, que
procura sistematizar tudo o que fora pen-
sando até então.
- 1.4. Período helenístico ou grego-ro-
mano: do final do século III a.C. ao século VI de-
Socrates.
pois de Cristo. Neste período, acompanhamos
-
-.

"•

1 - C A D E R N O S DE F I L O S O F I A

importantes transformações na cultura grega: a Grécia passa a fazer parte do


Império Romano e, mais tarde, surge o Cristianismo que terá uma decisiva
influência no desenvolvimento da filosofia posterior.
/->
2. Filosofia Patrística (entre os séculos l e Vil d.C.): surge do esforço
de conciliar o Cristianismo com o pensamento filosófico greco-latino. Preo-
cupada principalmente com questões religiosas, como a criação do mundo,
o pecado original, a ressurreição dos mortos, avançou para temas de profun-
do caráter moral, como a consciência, o livre-arbítrio e as relações entre fé e
razão. Nessas discussões estão as origens da hodierna Teologia.
3. Filosofia Medieval ou Escolástica (entre os séculos VIM e XIV):
abrange pensadores europeus, árabes e judeus. Fortemente influenciada
pelo pensamento de Platão e Aristóteles, preocupou-se com os mesmos te-
mas da Patrística. Uma contribuição importante dessa época reside no mé-
todo de disputa inventado para expor o pensamento filosófico: apresenta-
va-se uma tese que devia ser refutada ou defendida segundo argumentos
de autoridade tirados da Bíblia, de Platão, de Aristóteles ou de outros Padres
da Igreja.
4. Filosofia da Renascença (entre os séculos XIV e XVÍ): a Renascença
foi a época em que se recuperaram diversas obras de diversos autores greco-
latinos que se julgavam perdidas. Dentre essas obras encontramos alguns
escritos de Platão e Aristóteles.
A Filosofia recupera preocupações políticas e da centralidade do ho-
mem no pensamento filosófico. Passa-se de um foco filosófico Teocêntrico,
ou seja, centrado em Deus, para um Antropocêntrico, ou seja, centrado no
ser humano.

5. Filosofia Moderna (do século XVII a meados do século XVIII): é ca-


racterizada principalmente por se valorizara reflexão como ponto de partida
do raciocínio filosófico. Para os modernos, tudo o que desejamos conhecer
deve poder ser transformado em uma ideia clara e demonstrável, formula-
da pelo intelecto. A realidade é vista como algo intrinsecamente racional: a
Natureza e a sociedade são racionais em si mesmas e, portanto, inteligíveis.
Essa percepção de realidade, como sistema de realidades racionais rigoro-
sas possíveis de serem conhecidas e transformadas pelos seres humanos, dá
origem à Ciência.
6. Filosofia da Ilustração ou Iluminismo (meados do século XVIII ao
começo do século XIX): seu objetivo central é levar o ser humano às luzes
(daí o nome, Iluminismo). Essas luzes estão na razão humana, manifestada
em todas as formas de conhecimento racional. Pela razão, o ser humano
atingiria a Liberdade (política, social, de preconceitos religiosos, morais, da
superstição, etc). As luzes da razão promoveriam a civilização, entendida
como o aperfeiçoamento moral, social, técnico, político e artístico realizado
pela vontade livre dos seres humanos.

^
7. Filosofia contemporânea (de meados do século XIX aos dias atu-
ais): volta-se para o homem contemporâneo, vivendo em uma sociedade
que sofreu radicais transformações nos últimos duzentos anos, em especial
aquelas originadas pela ascensão da burguesia ao poder, pelo avanço cien-
tífico e tecnológico, pelo surgimento de inúmeros novos países, por duas
guerras mundiais, pelas ameaças de extinção de vida na terra, etc.

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