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Aqui não existem nuvens

Elizabeth Maggio

Uma frase. Às vezes não é necessário muito mais que isso. Uma única frase,
displicente, quase aleatória. É o bastante para que o mundo de uma pessoa vire de
cabeça para baixo, alterando para sempre o sentido das coisas e transgredindo seu
conceito de Deus, de universo e de si mesma.
Por certo que essas ideias sequer passavam pela imaginação de Karmel naquela
tarde absolutamente azul. Mas a frase veio mesmo assim.
- Aqui não existem nuvens.
- O quê? – perguntou ela, sem saber que estava se pondo no centro do vórtice.
- Aqui não existem nuvens – repetiu Gunther.
- Nuvens? Mas do que é que você está falando? O que é isso? Droga! – Karmel
interrompeu a gravação, desligando bruscamente o pequeno captador de vozes. – Você
estragou o relatório. Agora vou ter que começar tudo de novo. Gunther? Você está me
ouvindo?
Gunther mergulhara novamente em seu mundo particular. Olhava o céu à sua volta
como se nada mais existisse além da perfeição infinita do azul. Mas Karmel sabia que
seu companheiro de ronda dirigia a antiga aeronave de inspeção como um autômato, a
mente navegando por paragens bem mais inatingíveis.
- Veja aquela rocha lá embaixo. Que formato estranho ela tem... – dissera Karmel,
em sua última tentativa de estabelecer um diálogo com Gunther.
- O quê? Onde? Desculpe, eu não estava prestando atenção – respondera ele.
Karmel resmungou qualquer coisa, mas o piloto não voltou a olhá-la. Isso havia sido
há duas horas. Amuada, tratou de cuidar do relatório, e era o que estava fazendo quando
Gunther interrompeu a gravação com aquela fase desconexa. Nuvens! O que seria isso?
Karmel retirou o minúsculo módulo de gravação do captador de vozes e o jogou fora.
Por sorte havia trazido um módulo extra. Senão, ficariam em sérios apuros. Estava lá,
na página dois mil, quatrocentos e quinze do Manual de conduta: “Os relatórios não
devem conter quaisquer comentários não-pertinentes, cabendo ao infrator penalidades
previstas na seção treze”. “Ou seja, as Colônias de Reintegração Disciplinar”, pensou
Karmel.
- Aqui é a equipe zero-quinze. Relatora nível dois Karmel Glen e condutor nível três
Gunther Bel iniciando o relatório do dia. No quadrante sessenta e cinco, nenhuma
alteração no padrão delta foi detectada. O céu continua perfeitamente azul, sem sinais
de fissura...
Depois de meia hora de gravações, Karmel desligou o receptador. Arriscou mais
uma olhada para Gunther. Ele permanecia do mesmo jeito com que se mantivera o dia
todo: distante, alheio e completamente absorto. “É preciso admitir. Minha grande chance
virou um grande fiasco”, concluiu ela, desanimada.
Desde que fora designada para cobrir o quadrante sessenta e cinco, simplesmente
caíra de amores por Gunther Bel.
- Desista. Esse aí é maluco. Uma vez, durante um terremoto, ele se perdeu na região
dos rochedos. Diz que não se lembra do que aconteceu lá, mas o fato é que voltou meio
pirado. O supervisor só está esperando uma oportunidade para enquadrá-lo na seção
treze.
Karmel ouvira esses comentários pelo menos uma dúzia de vezes, sem contudo
levá-los a sério. Era do tipo que não descansava antes de comprovar por si mesma a
realidade dos fatos. E a oportunidade finalmente surgira naquele dia em que, pela
primeira vez, ela e Gunther foram designados para a mesma ronda.
- Oi! Meu nome é Karmel. Eu sou nova aqui. Vim do quadrante...
- Oi. – disse Guther, batendo a porta da aeronave antes mesmo que Karmel
terminasse de falar.
Durante a ronda, ela fez todo o possível para puxar conversa com o piloto. Gunther,
porém, ignorava sistematicamente sua existência. Aquele tratamento a irritou. Karmel
sabia que era bonita. Os cabelos negros e os olhos azuis não deixavam passar
despercebida. Mas pareciam não fazer a menor diferença para Gunther. Aliás, nada
parecia capaz de chamar a sua atenção.
A aeronave pousou tão repentinamente que Karmel quase bateu com a cabeça no
visor.
- O que aconteceu? Por que paramos?
- Vamos dar uma volta. Você não quer? – perguntou Gunther, saindo do veículo.
Karmel continuou sentada, boquiaberta. Primeiro ele a tratava daquele jeito. Depois,
sem mais nem menos, a convidava para...
- Ei! Espere por mim! - gritou, correndo para alcançá-lo.
Encontrou-o sentado num rochedo, o olhar perdido em direção ao céu.
- O que foi mesmo que você disse? Nuvens? O que são nuvens? – disse ela,
tentando resgatá-lo de seu habitual mutismo.
Gunther finalmente a encarou, com um par de olhos amendoados e penetrantes.
- Nuvens são como... pedaços de algodão. Elas costumavam ficar no céu há muito,
muito tempo...
Karmel estava perplexa. Será que era por isso que Gunther tinha fama de doido?
Desde que ela nascera, o céu sempre fora assim: azul, absolutamente azul.
- E para que serviriam essas tais nuvens?
- Eu não sei ao certo. Elas ficavam deslizando de um lado para o outro e, de vez em
quando, deixavam cair gotas de água sobre a Terra. Chuva, como chamavam os
antigos.
- Mas por que cairia água sobre a Terra? O Grande Lago nos dá toda a água de que
precisamos.
- Nem sempre foi assim. Além das nuvens, existia uma bola de fogo que nos dava
calor. Chamava-se Sol. E existiam pontos brilhantes, as estrelas, e uma esfera de prata,
a Lua. Elas só surgiam quando anoitecia. Isto é, quando o Sol sumia e o céu ficava
negro.
- Céu negro? Como é possível? Nunca ouvi dizer que o céu tivesse outra cor que
não o azul. Você parece saber demais sobre os antigos. O Manual de conduta não deixa
dúvidas quanto ao acesso a informações não-autorizadas. Na página três mil, cento e
vinte e oito diz que...
- Ora, dane-se o Manual! - explodiu Gunther. – Estou falando com uma mulher ou
com uma daquelas estúpidas declamadoras de regulamentos que costumam me
acompanhar nas rondas? Pensei que você fosse diferente, Karmel.
A irritação de Gunther a deixou assustada. Mas ele logo mudou de tom.
- Eu estava torcendo para que fizéssemos a ronda juntos. Achei que você poderia
me ajudar... – pediu Gunther, enquanto segurava a mão dela.
- Ajudar como? O que está acontecendo? - perguntou.
Não sabia o que a deixava mais desconcertada, a conversa maluca ou a pressão de
Gunther em suas mãos.
- Eu acho que encontrei uma fissura no céu.
Karmel ficou pálida. Nunca nenhuma equipe de ronda encontrara uma fissura no
céu. Alguns até achavam que isso não passava de lenda. Ainda assim, dia após dia,
inúmeras missões partiam de todos os quadrantes, vasculhando minuciosamente o céu.
Se alguns dos constantes terremotos provocasse uma fissura no céu, seria o fim do
mundo, diziam os líderes.
- Vamos avisar a base! Talvez a fissura possa ser reparada a tempo...
Gunther puxou-a pela mão, impedindo que se levantasse.
- Não. Nós não vamos avisar ninguém. Escute, vamos atravessar a fissura.
“Absurdo”, pensou Karmel. Porém os olhos de Gunther não ocultavam sua
determinação.
- O planeta pode ser destruído! Você vai deixar que isso aconteça?
- Isso é o que dizem.
- E por que diriam, se não fosse verdade? – insistiu ela.
- Para que não escapemos. Para que nunca saibamos a verdade.
- Muito bem, qual é a verdade, Gunther Bel?
- Por que você pensa que o céu está aí?
- Ora, é o céu que nos protege!
- Protege nada. Esse céu eternamente azul e imutável não passa de uma cúpula.
Uma tampa, se assim preferir, que nos encarcera como insetos num vidro.
Karmel ficou em silêncio até que as palavras de Gunther fizessem algum sentido em
sua cabeça.
- O que você está dizendo?
- O que você ouviu, querida Karmel. Nosso mundo não passa de um pequeno pote,
guardado na estante de um cientista maluco.
Gunther levantou-se e estendeu-lhe a mão.
- Venha. Vamos andar um pouco. Preciso lhe contar o que aconteceu quando estive
perdido entre os rochedos.

O acidente foi simples, podia ter acontecido a qualquer um. Gunther havia saído da
base há poucas horas quando o terremoto começou. Desestabilizada, a aeronave
espatifou-se contra uma rocha. Ferido e sem ter como avisar a base, na certa morreria
naquela íngreme e desolada região, não fosse o velho. Gunther jamais havia visto um
velho. Em seu mundo, eles não existiam. De acordo com o Manual de conduta, os
primeiros fios de cabelos brancos já eram suficientes para que a pessoa fosse mandada
à seção dezoito. E quem ia para lá nunca mais era visto.
O homem que o salvara, porém, tinha uma enorme cabeleira, inteiramente branca.
Cuidou de Gunther e tratou de suas feridas numa caverna oculta entre os rochedos, até
que ele, aos poucos, recuperasse sua consciência.
- Então não é uma lenda. Você existe mesmo – disse Gunther.
- Existo, filho. E estava esperando por você – respondeu o velho.
Diziam que, certa vez, um velho havia escapado da seção dezoito. Vivia solitário e
enlouquecido, oculto na região dos rochedos. Mas, como ninguém jamais o vira, a
história não tinha crédito maior do que o que é atribuído às lendas. A lenda, no entanto,
materializara-se na frente de Gunther. E lhe falou de um mundo há muito esquecido e
de um céu onde existiam estrelas, Lua, Sol... e nuvens.
- Veja o nosso problema – expôs o velho - eu e a elite dos cientistas do planeta
havíamos realizado o sonho de toda a humanidade: a extinção das doenças. Como as
guerras e a fome já haviam sido erradicadas, comemoramos o que seria, enfim, um
mundo perfeito.
- Então, o que saiu errado? – perguntou Gunther.
- O que saiu errado? Um erro de cálculo, eu diria. Sem fome, guerras e doenças, a
população do mundo multiplicou-se de tal forma que, em pouco tempo, estávamos à
beira de um colapso. Talvez a solução tenha sido precipitada, mas, creia-me, já estava
em formação uma guerra de proporções inimagináveis pela conquista do pouco que
restara dos recursos naturais do planeta.
- O que vocês fizeram?
- Simples. Reduzimos todo o mundo. Ou quase.
- Reduziram?
- Sim. Reduzimos. Diminuímos. Encolhemos. Se de repente o homem passasse a
medir, digamos, algo em torno de meio centímetro, haveria espaço para todo o mundo,
não é mesmo? Nós já havíamos trabalhado com um aparelho redutor antes, para
encolher certas bactérias até fazê-las desaparecer. Por que não regular a máquina e
fazê-la encolher um homem? A experiências isoladas foram bem sucedidas. Mas é claro
que as pessoas não aceitariam a resolução de bom grado. Então, não deveriam saber
que tinham sido reduzidas. Assim, criamos diversos miniuniversos, tão grandes quanto
essa tigela que você está vendo aqui. Depois começamos o programa de redução em
massa. As pessoas vinham aos milhares, fugindo da superpopulação. Dizíamos que
seriam encaminhadas para regiões inóspitas do planeta que, graças às nossas
invenções, tinham se tornado habitáveis. O aparelho redutor, com sua capacidade
ampliada, emitia um raio de longo alcance e pronto. Todos acordavam felizes em seu
novo mundo, sem sequer imaginar que viviam dentro... de um pote de vidro!
- Então você quer dizer que por aí, em algum lugar, existe um monte de potes com
pessoas menores que insetos, pensando que são grandes? – espantou-se Gunther.
- Por aí, não. Aqui. Isto que você chama de mundo não passa de um pequeno pote.
- Não é possível! Você deve estar delirando! – Gunther sentia a cabeça rodopiar. O
velho devia ser louco, só podia ser isso.
- É verdade. A primeira geração dos... digamos, reduzidos criou leis severas de
controle de população. Como a famigerada seção dezoito. E logo quiseram controlar
tudo, cirando até esse ridículo Manual de conduta. Você deve ser... vejamos... a quinta
ou sexta geração de reduzidos.
- Você tem como provar todos esses absurdos? Como espera que eu acredite
nisso?
- Tenho uma prova, sim – prosseguiu o velho. – Mas antes deixe-me contar como a
situação escapou novamente de controle. Creio que essa história de reduzir mundos e
pessoas subiu à cabeça de alguns dos cientistas que trabalhavam comigo. E eles
resolveram brincar de deuses. Acabaram reduzindo-se uns aos outros; eis por que vim
parar aqui. Por fim sobrou apenas o doutor Sontag, o mais brilhante – e mais louco – de
nós. Sua diversão é colecionar mundos em miniatura para enfeitar sua estante.
- Isso é uma brincadeira de mau gosto. Quer dizer que viramos enfeite?
- Mais ou menos. O doutor Sontag se distrai observando suas colônias. Veja, este
céu azul não passa de uma cúpula. Além dela, ele nos vigia sem ser visto. Às vezes a
pega com um pouco menos de cuidado e pronto! Causa um terremoto neste mundo. A
maior preocupação do nosso bom doutor é com o que vocês chamam de fissura no céu.
Uma rachadura na cúpula, que permitisse a fuga de suas miniaturas. Por isso introduziu
entre vocês a ideia ridícula de que o mundo vai acabar se houver uma fissura. No
máximo, o que acabaria é o conceito que vocês têm do mundo.
Gunther ficou em silêncio. Simplesmente não sabia o que pensar de tudo o que
ouvira.
- Certo. Agora quero as provas. Você disse que tinha como provar toda essa
maluquice.
- É simples. Sei de um lugar onde há uma fissura no céu. Basta pegar sua aeronave
e escapar através dela.
- Se é assim, podemos avisar todo mundo. Podemos escapar todos e...
- Você se esqueceu do planeta medíocre onde vive? Acha que iriam acreditar? Na
certa, correriam para soldar a fissura. Afinal, o mundinho em que vivemos é perfeito
para eles. Sontag só não conseguiu miniaturizar o Sol, a Lua, as estrelas... mas, para
quem acredita que o céu é eternamente azul, essas coisas não fazem falta.
- Se é isso o que pensa, por que vai me mostrar a fissura? E se eu for igual a eles?
- Só me resta arriscar. A decisão é sua, filho. Se resolver partir, saiba que o aparelho
redutor possui um controle para devolver a pessoa a seu tamanho original. É uma tecla
vermelha, que deve ser comprimida até a gradação cem. Lembre-se: cem! Só que você
deverá levar mais alguém, ou não conseguirá comprimir a tecla sozinho. E se encontrar
o doutor Sontag por lá, diga-lhe que o doutor Crull manda lembranças. Agora já disse
tudo o que tinha a dizer. Vou mostrar onde está a fissura.

Karmel nunca imaginara como seria uma fissura. Encontraram-na assim que
Gunther terminou o seu relato. Era uma fenda longa e escura, como um vidro rachado.
O traço negro e tortuoso recortava o céu, interrompendo a eterna perfeição do azul.
- O que você vai fazer se eu não quiser ir?
- Não sei. Preferi pensar que tinha encontrado alguém capaz de vir comigo –
respondeu Gunther, olhando-a fixamente.
- Você sabe que eu gosto de você?
- Sei.
- Você também... gosta de mim?
Gunther sorriu.
- O que você acha? Por que traria aqui alguém de quem não gostasse?
Estavam bem próximos agora, e os lábios de Gunther roçaram suavemente os de
Karmel. Antes que o beijo se consumasse, porém, ele a afastou tão bruscamente que
Karmel quase perdeu o equilíbrio.
- Não vou seduzi-la para que me acompanhe. Durante toda a ronda me contive para
que isso não acontecesse. Vou lhe dizer o mesmo que o velho me disse: a decisão é
sua.
Karmel olhou para Gunther, depois deteve o olhar no risco negro que cortava o céu.
Após tudo o que descobrira, não havia mais retorno. Talvez essa história não passasse
de uma invenção. Talvez se destruíssem cruzando a fissura. Mas talvez, enfim,
descobrissem a verdade. E ela decidiu:
- Eu vou com você.

A travessia foi rápida. Karmel fechou os olhos ao mergulhar na escuridão da fenda.


Quando voltou a abri-los, deparou com formas enormes, tão gigantescas que era
impossível visualizá-las por inteiro.
- Lá está ele! O redutor! – disse Gunther, apontando algo que parecia ser uma
monumental coluna metálica.
A descrição do aparelho correspondia à que o doutor Crull lhe dera. Gunther
conduziu a aeronave por entre grandes blocos coloridos até encontrar o que procurava:
o bloco vermelho.
- Então essa é a tecla vermelha? Mas é quase do tamanho de uma casa. Como
vamos pressioná-la? – perguntou Karmel, enquanto desciam da aeronave.
- Usando toda a força que temos – disse Gunther, erguendo-a em seus braços. –
Suba e comece a pular.
A tecla estendia-se como uma imensa plataforma vermelha.
- Pule! Pule! – gritou Gunther a seu lado.
Os dois começaram a saltar com toda a força que tinham.
- Mais um pouco, Karmel! Força! – pediu Gunther, ofegante, sentindo que,
lentamente, a tecla se movia.
Ouviram um zumbido, que se tornava cada vez mais forte. A luminosidade quase
cegava seus olhos, mas, ainda assim, viram quando os números surgiram no visor de
um enorme painel, sucedendo-se numa velocidade vertiginosa até parar no dez. O
zumbido aumentou de intensidade.
- Gunther, conseguimos! Precisamos ficar debaixo do raio transformador, depressa!
– gritou Karmel para se fazer ouvir em meio ao zumbido.
Gunther continuava pulando sobre a tecla.
- Ainda não. Doutor Crull disse que o mostrador deveria chegar até o número cem!
- Mas ele parou no dez e não está se movendo mais. Você deve ter entendido
errado! – O ruído estava tão forte que o aparelho parecia a ponto de estourar, tamanha
a pressão. – Gunther, pelo amor de Deus! Isso aqui vai explodir se você continuar
pressionando. Vamos embora!
A tecla estremeceu. O aparelho vibrava, descontrolado. Gunther agarrou a mão de
Karmel e os dois correram, saltando os espaços entre as teclas até penetrarem no
campo de luz, onde incidia o raio que os faria crescer. Na luz, o zumbido era tão
estridente que os dois desmaiaram, com a sensação de que seus corpos estavam sendo
esmagados pela pressão do raio.
Gunther foi o primeiro a abrir os olhos. Atordoado, percebeu aos poucos o lugar
onde estava. O local parecia um enorme laboratório, com fileiras e mais fileiras de
estantes estendendo-se até onde a vista podia alcançar. Nas prateleiras, potes e mais
potes, identificados por etiquetas. Karmel abriu os olhos lentamente, e ele a ajudou a se
levantar.
- Você está bem?
- Sim... Um pouco tonta, eu acho. Onde estamos? – perguntou ela, mas logo
compreendeu. – Gunther! Foi aqui que nós chegamos com a aeronave! Nós
conseguimos! Deixamos de ser miniaturas!
- Aeronave? Vocês estão se referindo a isso? Foi assim que chegaram aqui? –
perguntou um homem que se aproximara dos dois sem ser visto. Ele trazia na mão um
minúsculo objeto de metal. – Encontrei isso no painel de controle do aparelho redutor.
Deve ser a sua aeronave. Então vocês inverteram o raio e se desminiaturizaram! Nunca
vi isso acontecer antes. Como conseguiram?
- Espere um pouco! Quem é você? - disse Gunther, passando o braço em torno do
ombro de Karmel.
O homem vestia-se inteiramente de branco e usava óculos redondos, sem aros.
Encarava-os como se tivesse deparado com um casal de animais em extinção.
- Eu que pergunto quem são vocês. Sou o encarregado do laboratório, e ninguém
pode entrar aqui. Mas vocês, pelo que estou vendo, escaparam de alguma fissura, não?
- É isso mesmo.
- Bem, sinceramente, não sei o que fazer. É a primeira vez que isso acontece. Em
geral os próprios miniaturizados se encarregam de fechar as eventuais fissuras... para
a própria proteção deles, é claro. Mas já que vocês estão aqui... seria arriscado
miniaturizá-los e mandá-los de volta. Vocês poderiam contar o que viram por aqui, e
isso seria o caos para os universos em miniatura. E para nós...
O homem falava como se conversasse consigo próprio, quase ignorando Gunther e
Karmel.
- Nem pense em fazer algo contra nós. Aviso-o de que iremos lutar! – ameaçou
Gunther.
- Lutar? Que coisa mais bárbara! Infelizmente, muitos dos universos miniaturizados
ainda mantêm essas práticas primitivas. Mas em nossa sociedade isso foi banido há
muito tempo. Bom, o que eu posso lhes oferecer é um estágio de aprendizado e
adaptação. Depois, procurarei integrá-los a alguma atividade aqui em nosso mundo.
Talvez vocês possam me ajudar a cuidar de algum setor do laboratório – ofereceu o
homem.
- Isso não pode continuar assim. Temos que desminiaturizar os outros. Eles não
podem ficar sem saber que...
O homem de branco interrompeu Karmel.
- Minha jovem, não seja ingênua. Isso que você está vendo é apenas uma ala do
setor de miniaturas. Elas ocupam um prédio inteiro! São milhares de miniuniversos, cada
um deles habitado por milhões de pessoas. O aparelho iria estourar antes de
desminiaturizar um décimo dessa quantia. E, mesmo que fosse possível aumentar
todos, não haveria lugar suficiente. Nosso planeta já está no limite populacional.
Gunther e Karmel não tinham, até então, se dado conta da extensão do problema.
Apenas aquele laboratório onde estavam já parecia infinito, com seus intermináveis
corredores de estantes, abarrotadas de potes. Ou universos em miniatura.
- Meu nome é Gunther Bel e esta é Karmel Glen. O doutor Crull nos mandou aqui.
Você deve ser o doutor Sontag.
- Doutor Sontag? Nunca ouvi esse nome antes. Sou o doutor Sven. Mas já ouvi falar
no doutor Crull. Ele estava entre os pioneiros da redução. Então ainda está vivo?
Supúnhamos que a vida protegida nos universos em miniatura tivesse mesmo esse
poder de aumentar a longevidade.
- Você não conhece o doutor Sontag? Mas ele era o líder dos cientistas – insistiu
Gunther.
Sven mostrou-se ofendido.
- Não se trata de eu conhecê-lo ou não. A questão é que ele não existe. Sou o
especialista-chefe em miniaturas, sei tudo a esse respeito. Nunca houve ninguém,
nenhum cientista com esse nome. Não consta em registro algum. Deve tratar-se de
algum delírio do pobre doutor Crull.
- Ele me disse também que o aparelho redutor deveria ir até o nível cem.
- Impossível. Dez é o nível máximo que o redutor atinge. O mostrador só vai até
esse número e sempre foi assim. O aparelho é o mesmo desenvolvido pela equipe do
doutor Crull. Quase nunca o usamos. Já temos miniaturas de sobra. E nosso mundo
resolveu o problema populacional com simples métodos de controle de natalidade.
- Mas... – Gunther ainda tinha suas dúvidas. Sven, porém, não o deixou concluir.
- Se não acredita em mim, observe o seu tamanho. Você está igual a mim. Isso não
prova que o nível do aparelho está correto? Se fosse até o cem, você o quê? Um
gigante? Absurdo.
- Acho que ele está certo, Gunther. O doutor Crull pode ter se enganado. Já faz tanto
tempo que ele vive entre as rochas... O que me preocupa são os outros. Não é justo
que eles vivam sem saber...
- Karmel, minha cara, vamos colocar as coisas assim: se vierem outros, assim como
vocês vieram, se arriscando a enfrentar o desconhecido em busca da verdade, então é
justo que sejam aceitos entre nós. Mas quem está satisfeito onde está, que fique por lá.
Não haveria mesmo lugar para todos aqui. É o máximo que posso lhes oferecer. Agora
venham. Vou encaminhá-los para o centro de adaptação.
Assim que deixaram o prédio, Karmel não pôde conter um grito de prazer. Lá fora,
na imensidão azul, brilhava um enorme e dourado Sol.
- A bola de fogo! Era isso o que você estava me contando, Gunther? É isso que se
chama Sol?
- Exatamente, Karmel – aquiesceu o doutor Sven.
- E a Lua? E as estrelas? Também existem? – perguntou Gunther.
- É claro!
- E o céu fica escuro `a noite?
- Dia após dia.
Karmel caminhava à frente deles, totalmente maravilhada com o que via.
- E as nuvens? Aqui existem nuvens? – insistiu Gunther.
- Nuvens? Mas do que é que você está falando? Aqui não existem essas tais...
Como é mesmo? Nuvens. Deixe-me acompanhar Karmel, antes que ela se perca por aí
– disse Sven, afastando-se.
Gunther continuou a andar devagar, quase ao acaso. Tinha muito em que pensar.
Sven provavelmente nunca ouvira falar no nível cem do redutor. Nem do doutor Sontag.
Nem das nuvens. Perfeito. Sontag deveria ter se especializado nas suas miniaturas, a
tal ponto que já variava os tamanhos, criando algumas maiores para tomar conta de
outras menores, e assim por diante, quem sabe até o infinito... já era capaz de criar sóis
e luas... mas, por algum motivo, não conseguia colocar simples pedaços de algodão no
céu.
Olhou novamente o céu, de um azul límpido e perfeito, e o “Sol”, redondo e
ofuscante. Em algum lugar deveria haver uma fissura. E mais cedo ou mais tarde ele
iria encontrá-la. Afinal, era apenas mais uma cúpula azul.

(Extraído do livro As Sete Faces da Ficção Científica).

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