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ARTIGO DE REVISÃO

Corpo subjetivado: conceitos e


significados para a educação

Subjectivized body: concepts and meanings


for education

Djavan Antério Resumo: Este artigo fomenta uma discussão reflexiva sobre os conceitos
Mestre em Educação pelo Programa de de corpo nas perspectivas orgânicas, biológicas e estéticas. A metodologia
Pós-Graduação em Educação (UFPB). adotada foi a revisão sistemática realizada nas bases da filosofia, das artes
Professor Tutor de Educação a Distância e da educação, tomando autores de notório saber nas respectivas áreas.
(EAD) no curso de Licenciatura Plena em Esta discussão ocorreu a partir da categoria da subjetivação, processo de
Pedagogia da Universidade Federal da tornar-se sujeito. Os estudos apresentaram, apesar dos contextos teóricos
Paraíba (UFPB Virtual) em convênio com diversificados - “corpo vivido”, “corpo em movimento” e “corpo conscien-
a Universidade Aberta do Brasil (UAB). te” - similaridades do significado do corpo como ação de humanizar-se na
Membro do Grupo de Estudos e Pesqui- relação com o mundo, passando pelo estar e fazer-se perceber no meio
sas em Corporeidade, Cultura e Educa- em que se insere.
ção (GEPEC/CNPq).
Palavras-chave: Educação; Corpo; Subjetivação..

Pierre Normando
Abstract: This article promotes a reflexive discussion about the body con-
Gomes-da-Silva cepts in the organic, biological and esthetic perspectives. The methodology
Doutor em Educação pela Universidade
adopted was the systematic review on the basis of philosophy, arts and
Federal do Rio Grande do Norte (2003).
education, having renowned authors in the respective areas. This discussion
Professor adjunto da UFPB, atuando
occurred from the category of subjectivity, the process of becoming subject.
no Departamento de Educação Física
The studies showed, in spite of diverse theoretical contexts - “lived body”,
e no Programa de Pós-Graduação em
“body in movement” and “conscious body” - similarities of body meaning
Educação Física Associado UPE/UFPB.
as action of humanize in relation to the world, going through welfare and
Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas
making perceive in the environment in which it is insert..
em Corporeidade, Cultura e Educação
(GEPEC/CNPq).
Keywords: Education; Body; Subjectivation.

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Antério, Gomes-da-Silva
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Artigo de Revisão

1 INTRODUÇÃO lizam a automatização e o disciplinamento total.


O objetivo é favorecer aos educadores do corpo,
os que trabalham com a formação humana, uma
Na contemporaneidade, o corpo humano
ampliação do entendimento da relação complexa
tem recebido atenção independentemente da área
entre os processos de subjetivação e de constitui-
científica. Há elaborações teóricas sobre o corpo
ção orgânica, cognitiva e emocional. Este artigo
em quase todas as áreas, seja pelos aspectos só-
justifica-se, porque segundo Picard (1986), ainda
cio-históricos, a exemplo da “História do corpo”
persiste, mesmo após inúmeros estudos exploran-
(COURBIN; COURTINE; VIGARELLO, 20080, seja
do a temática, uma visão reducionista do corpo,
pelos aspectos biológicos, ou vitais, a exemplo
considerando-o como algo superficial e simples.
da “mente incorporada” (VARELA; THOMPSON;
ROSCH, 2003). Qualquer que seja a vertente te- Segundo Greiner (2005) é necessário que
órica os questionamentos circundam em torno de reconheçamos que “somos um corpo” e não ape-
que “o corpo é uma das nossas maiores riquezas” nas “temos um corpo”, passando a ser um “corpo
(CORRAZE, 1982). Não é mais visto como porta- vivo”. Neste corpo engloba-se a qualidade de vida,
dor da mente ou como alheio aos processos de a alegria de viver, a capacidade de superação e o
codificação cultural. reconhecimento dos limites. Katz e Greiner (2004)
consideram o corpo como nossa identidade, mes-
O corpo, segundo Foucault (1987), é simulta-
mo transitória, visto que o corpo, enquanto esta-
neamente fonte de prazer individual e alvo de dis-
do, não está acabado num determinado período e
ciplina social. As transgressões e a rotina saudável
nem é, enquanto término. De acordo com as auto-
acabam por polarizarem o contexto relacional em
ras, o corpo é “como fluxo, não estanca. O corpo
que vivemos. Assim, o autor denomina de “corpo
vive no estado do sempre presente, o que impede
dócil”, ao resultado do processo de coerção sutil a
a noção de corpo recipiente” (2004, p. 130). Até
que o corpo é submetido, mantendo-o sob disci-
porque ele encontra-se continuamente diante das
plina. “Constata-se que um corpo dominado é um
inúmeras transformações que ocorrem em dife-
corpo dicotômico submetido ao comando mental,
rentes situações da vida, a cada informação que
impedindo sua liberdade para responder às suas
nos chega e nos transforma.
próprias necessidades, como um instrumento apto
a corresponder às nossas exigências sob controle De modo que adotamos o conceito de corpo
da mente” (FOUCAULT,1987, p. 83). Percebe-se como sujeito perceptivo, ativo-expressivo e comu-
na descrição deste filósofo historiador, com a qual nicativo na inter-relação consigo e com os outros,
nos aproximamos, que o corpo não é subservien- sendo esta uma dimensão da corporeidade, que
te da mente, mas um interlocutor espontâneo de envolve o subjetivo nos aspectos orgânicos, esté-
seus sinais, suas mensagens. ticos, cognitivos, afetivos e motores (GOMES-DA-
SILVA, 2011).
Também partilhamos do entendimento de
corpo exposto pelo maior teórico da dança do sé- Ancorando-nos neste arcabouço teórico fa-
culo XX, Rudolf Laban (1978), para o qual o corpo zemos uma ruptura na lógica da separação cor-
em sua complexidade de movimento possibilita po e sujeito, na medida em que rompemos com o
constante processo de adaptação, criação e, so- primado da concretude do ser material e propo-
bretudo, transformação do sujeito. O coreógrafo mos a subjetivação do corpo. Partindo desse pres-
argumenta que, independente da área de conhe- suposto, fomentamos um diálogo reflexivo com e
cimento, o corpo sempre será dotado de comple- entre os autores da filosofia, das artes e da edu-
xas ramificações conectadas entre si, cuja com- cação. Para isso, numa perspectiva metodológica
pletude final, integradora, possibilita e estimula de revisão sistemática, analisamos três obras es-
novas trocas de relações. pecíficas, respectivamente: Merleau-Ponty (1999),
Laban (1978) e Freire (1999). Estas obras foram
Sendo assim, iniciamos este artigo, preocu-
analisadas a partir da categoria da subjetivação,
pando-nos em fomentar uma discussão que rati-
do tornar-se sujeito no mundo. Vale salientar, que
fique a superação da visão de corpo como “má-
os autores que nos ajudaram nessa tarefa foram:
quina humana”, para um entendimento como
Picard (1986), Medina (2002), Greiner (2005) e
estrutura corporal, composta de um emaranhado
Gomes-da-Silva (2011).
complexo de elementos subjetivos que obstacu-
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2 O CORPO: DIMENSÕES TEÓRICAS Eu não sou o resultado ou o entrecruzamen-


to de múltiplas causalidades que determinam
meu corpo ou meu ´psiquismo´, eu não posso
A seguir trataremos das dimensões teóricas pensar-me como uma parte do mundo, como o
simples objeto da biologia, da psicologia e da
acerca do corpo advindas do aporte literário que
sociologia, nem fechar sobre mim a inversão da
serviram como embasamentos para nosso pressu- ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo
posto epistemológico bem como para a discussão por ciência, eu o sei a partir de uma visão mi-
reflexiva da pesquisa. Buscando seguir uma or- nha ou de uma experiência do mundo sem a
qual os símbolos da ciência não poderiam dizer
dem cronológica no que se refere às áreas estu- nada (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 3).
dadas e com a intenção de construir um entendi-
mento sólido e linear do que se segue, iniciaremos Merleau-Ponty (1999) adverte que o movi-
dialogando com a compreensão do corpo próprio, mento do corpo só desempenha determinado pa-
estudado por Merleau-Ponty (1999). Em seguida pel na percepção do mundo, mas já se constitui,
abordaremos a compreensão do corpo como ele- ele próprio, em uma maneira intencional de se re-
mento subjetivo composto pelo equilíbrio entre lacionar com o mundo. Assim, o mundo, o nosso
estrutura física, imagens e sentimentos/emoções, entorno, é compreendido não como um sistema
estudado por Laban (1978). Por fim, vislumbrare- de objetos dos quais fazemos a síntese, mas como
mos a compreensão de admissão do corpo na sua um conjunto aberto de seres em direção às quais
totalidade e nas suas expressões para o mundo, nós nos projetamos. Por conseguinte, nesse con-
em Freire (1999). texto, o movimento do corpo é visto como expres-
sivo, não realiza tão somente gestos predetermi-
nados para as ações. Antes é expressão corporal,
2.1 Na Filosofia: o corpo a partir de Merleau manifesta de significações existenciais e culturais.
-Ponty O corpo é visto em sua intencionalidade perante o
mundo que o cerca.
Começaremos dialogando com a noção de Dessa forma, nossa condição é de sujeitos-
corpo próprio, proposta na obra Fenomenologia corpos, por entendermos o corpo como nossa
da Percepção1 , do filósofo francês Merleau-Ponty identidade, nossa unidade de existência, aquele
(1908-1961). Este defende que o corpo é nosso que nos dá visibilidade e acesso ao mundo. Uma
meio geral para estarmos no mundo, portanto, identidade temporal, traduzida em diversos mo-
produzimos gestos tanto para conservação da mentos, do nascimento até a morte, passando
vida, quanto para a significação existencial e cul- pelo amadurecimento e pelo envelhecimento. Tal
tural. O corpo não se limita ao entorno biológico. perspectiva nos remete à possibilidade da inferên-
Isto porque para Merleau-Ponty (1999) toda ativi- cia da constituição da psique por meio da consti-
dade reflexiva inaugura o conhecimento humano tuição corpórea (anatômica), e também à dinâmi-
a partir da experiência corporal. Assim, segundo o ca corporal (os gestos, as posturas e as atitudes),
autor, a relação existente entre sujeito e o corpo como resultado da tradução dos espaços internos
no mundo demonstra um corpo não apenas orgâ- e externos do corpo, dando-nos visibilidade. Nes-
nico, mas também existencial, um “corpo vivido” sa direção implica considerar que a percepção
(ou corpo próprio). exterior e a percepção do corpo próprio, segundo
Para Merleau-Ponty (1999), o corpo deve Merleau-Ponty (1999), variam conjuntamente por-
ser considerado como um “ponto de vista sobre o que elas são as duas faces do mesmo ato.
mundo”, porque ele é fonte sensitiva do que acon-
tece no mundo. O corpo é sujeito da percepção,
2.2 Nas Artes: o corpo a partir de Laban
e ao viver apresenta em cada ato perceptivo uma
reflexão inerente, considerada como atributo da
consciência. Nesta concepção há um privilégio da Prosseguimos na compreensão da complexi-
experiência do corpo vivido em detrimento das re- dade corporal, agora não mais pela intencionali-
lações causais estabelecidas pelo pensamento ob- dade da consciência perceptiva, mas pela pulsão
jetivo. do sujeito corporal para o mover-se, temos Rudolf
1 A referida obra teve sua primeira edição datada do ano de
Laban (1879-1958), famoso dançarino, coreógra-
1945. fo e considerado o maior teórico da dança do sé-
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culo XX, que criou um sistema de Análise do Mo- lação do movimento rígido, retraído, sem expansi-
vimento (Laban Movement Analysis - LMA). Neste vidade, muitas vezes exigido pelos educadores em
sistema, o corpo compõe-se do equilíbrio entre sala de aula. Subutilizando o movimento ao des-
estrutura física, imagens cognitivas e emoções. considerar os significados e intenções inerentes à
Trata-se do corpo que para agir no mundo, faz es- condição comunicativa do sujeito. Isto é, saben-
colhas de movimento, inventa, realiza criações ou do da potencialidade expressiva do movimento,
simplesmente repete exercícios predeterminados. é possível, intencionalmente, fazer do movimento
Laban concebe o corpo não como um instrumento uma ação comunicativa do sujeito no mundo.
a ser treinado, mas como um todo integrado com
De acordo com a teoria labaniana, quando
o pensamento, ao mover-se no mundo.
nos movemos, criamos relacionamentos mutáveis
com o mundo (pessoas, objetos, espaço). Isso por-
A extraordinária estrutura do corpo, bem como
as surpreendentes ações que é capaz de execu- que o fim do movimentar-se é satisfazer uma ne-
tar, são alguns do milagres da existência. Cada cessidade humana, de atingir um objetivo tangível
fase do movimento, cada mínima transferência ou não, de relacionar-se com algo que faça sen-
de peso, cada simples gesto de qualquer parte
do corpo revela uma aspecto de nossa vida in-
tido. Assim, cada movimento, particular ou não, é
terior. Cada um dos movimentos se origina de entendido em relação ao contexto que é afetado,
uma excitação interna dos nervos, provocada seja por uma participação harmoniosa, por uma
tanto por uma impressão sensorial imediata contraposição deliberada, ou por uma pausa.
quanto por uma complexa cadeia de impres-
sões sensoriais previamente experimentadas e Logo, entender a composição dos movimentos do
arquivadas na memória. Esta excitação tem por corpo possibilita uma maior interatividade com o
resultado o esforço interno, voluntário ou invo- meio. E isso implica na comunicabilidade do sujei-
luntário, ou impulso para o movimento (LABAN,
to com o mundo.
1978, p. 48).

De acordo com Laban (1978), o corpo está


em constante movimento, seja ele internamente, 2.3 Na Educação: o corpo a partir de Freire
por meio de seu fluxo (órgãos, respiração, líqui-
dos), ou externamente, por meio de sua expansão
no espaço. Contudo, esses movimentos (interno e Enfatizando essa discussão do corpo sujei-
externo) acabam por se correlacionarem, não são to nos aproximamos do educador Paulo Freire
vistos como extremos ou pólos distintos. Há uma (1921-1997) que denuncia uma educação que
correspondência entre corpo e mente, por meio produz uma “autodemissão” do corpo conscien-
do gestual, que se torna simbólico ao estabele- te, numa forma de violência simbólica perpetra-
cer a interação entre corpo e espaço. Para Laban, da pelo “poder da domesticação alienante” sobre
cada tensão de movimento é expressiva de um ou os corpos de homens e mulheres (FREIRE, 1999,
mais sentimentos/emoções correspondentes. p. 128). Trata-se da imposição sutil e persuasiva
do poder apresentado como fator inquestionável,
O movimento é considerado por Laban que conduz à acomodação e ao conformismo.
(1978) como o principal meio de expressão hu-
mana, visto que esta função é incapaz de reali- A “demissão do corpo consciente”, de acor-
zar-se totalmente com a palavra. Isto porque en- do com Freire (2003), reflete o domínio exercido
tende que a relação entre o verbal e o gestual, o por um modelo educacional que oprime o corpo
cotidiano e o extra-cotidiano, a vida e a arte, é do educando quando conduz este há uma sensa-
fluida e inter-relacional. Assim, o movimento hu- ção de determinismo, de conformação diante de
mano constitui-se numa forma de relacionamento uma realidade social que parece não ser passiva
do corpo sujeito com o mundo, seja entre pessoas, de mudança. Freire (1994) lançando mão da ex-
entre pessoas e objetos, entre pessoas e espaço. pressão “interdição do corpo”, afirma que histori-
camente, no Brasil, o corpo foi “proibido de ser”
Na concepção de Laban (1978), o sujeito – não foi sujeito, mas sujeitado. Daí afirmar: “so-
é o corpo em relação ao mundo, um corpo em mos vocacionados para a humanização e, temos
movimento, o que significa considerar a existência na desumanização, fato concreto na história, a
como uma motricidade que nos coloca em ação distorção da vocação” (1994, p. 99). Essa sujeição
no mundo. Tal compreensão contribui na extrapo- desumanizante que a tudo interdita tem origem

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na escola e encontra resguardo na própria edu- ban) e “corpo consciente” (Freire), é possível traçar
cação. pontos de confluência que dialogam perspectiva
do corpo subjetivado, do corpo como sujeito e do
Segundo Freire (1999), todo ser humano
sujeito como corpo. Merleau-Ponty (1999) argu-
existe para ser sujeito da história, pois a vida é
menta que não é o sujeito epistemológico que
existência na proporção que o corpo humano tor-
efetua a síntese, mas o corpo. Pois ao sair de sua
na-se corpo consciente, ou seja, na medida em
dispersão, o corpo se ordena, se dirige por todos
que o ser humano conscientiza-se do seu existir e
os meios para um termo único de seu movimento,
do existente social, permeável a mudanças. Dessa
e pelo fenômeno da sinergia realiza a intenção
forma, o corpo de que é alvo desse tipo de violên-
concebida nele.
cia, de “demissão do corpo consciente”, não pode
tornar-se espontaneamente, um “corpo apreen- Essa ação motriz de presença no mundo é
dedor” ou um “corpo transformador”, pois não foi coincidente com os pressupostos de Laban (1978)
educado a se tornar capaz de “decidir”, de “esco- e Freire (1999). Visto que Laban (1978) entende
lher” e de “intervir no mundo” (FREIRE, 1999, p. que é no movimento que corpo e mente se in-
57). terrelacionam, de modo interno, por meio de seu
impulso, e de modo externo, por meio de sua
O corpo para Freire (1999) é “peça inter-
expansão no espaço. E que esta interação entre
ventiva” na escola, porque é constituinte tanto da
mente, corpo e espaço estabelecem uma corres-
completude do sujeito, quanto da concretude his-
pondência com sentimento, emoção e intenção.
tórica. Sendo assim, o corpo consciente é aquele
Já Freire (1999), ao tratar do corpo consciente co-
que é detentor de suas próprias escolhas e atitu-
loca-o como ato de agir e interagir com o meio.
des. Desse modo, evidencia-se a importância em
Corpo que codifica e decodifica o mundo num es-
reconhecermos o corpo como essa “peça inter-
paço pedagógico, um “texto” que pode ser “lido,
ventiva” com a qual lidamos no interior da escola,
interpretado, escrito e reescrito”.
porque é por meio do corpo que socialmente o
sujeito vai se tornando atuante, consciente, falan- De modo que esses três autores, em con-
te, leitor e escritor. Faz parte da natureza do corpo sonância com Gomes-da-Silva (2011) e Greiner
o tornar-se um ser para aprender, é assim que ele (2005), nos autorizam a compreender o corpo
constitui-se histórica e socialmente. como sujeito, na medida em que é “corpo vivi-
do”: aquele que se apropria de suas experiências
A conscientização em Freire (1994) não tem
perceptivas tornando-se numa consciência motriz;
a ver com as tradicionais concepções representa-
em que é “corpo comunicativo”, que seus movi-
cionistas, mas como uma unidade implicada entre
mentos, produzem expressão e comunicação com
mente e corpo, e mais entre condição existencial
o entorno; em que é “corpo consciente”, situado
e histórico-cultural. E mais o corpo consciente não
num mundo histórico e culturalmente construído,
significa apenas conscientização histórica de fa-
no qual este corpo dispõe-se para aprender e a
zer-se presente, mas de desfrutar os prazeres. Daí
apresentar-se como aprendiz, como curioso do
para ele as escolas deveriam estimular o gosto da
conhecimento, do mundo e de si mesmo.
leitura e o da escrita, porque só assim o estudar
deixaria de se tornar um fardo opressor para ser O corpo e o ambiente ao invés de uma rela-
uma fonte de alegria e de prazer. Corpo conscien- ção de influência ativo/passivo são compreendidos
te em Freire diz respeito a paixão pelo conhecer a como contaminados mutuamente. O espaço deixa
partir das vivências pessoais como ser sensível e de ser conjunto de objetos desconectados, aleató-
crítico, simultaneamente. rio e dispostos sem significado passa a fazer parte
do corpo vivido, da consciência do entorno e da
comunicação do ser. O corpo vai habitando os es-
paços e os espaços habitando o corpo, em que um
3 DEBATES TEÓRICOS A PARTIR DAS DIMEN-
torna-se parceiro ativo dos experimentos cênicos
SÕES ELENCADAS
do outro. Os gestos assumem a circunstância de
modo crítico e sensível, tornando-se numa lingua-
A partir dos conceitos elencados, “corpo vivi- gem simbólica de superação da opressão, da não
do” (Merleau-Ponty), “corpo em movimento” (La- mecanização do ato motor, mas entendido como

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nó de significados e mais, como tensão expressiva 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS


de emoções correspondentes aos espaços.
O comum entre as várias perspectivas teóri- Este estudo apresentou, em seus mais varia-
cas do corpo está em como ele é compreendido em dos contextos, como o corpo é concebido numa
relação ao espaço como um lugar de subjetivação, centralidade dos processos de cognição, emoção
como um acesso ao “corpo subjetivado”. Nessa e movimento, para propor práticas educativas que
perspectiva, o educador opta pela superação dos considerem o ensino-aprendizagem por meio da
caminhos pedagógicos do disciplinamento, com corporeidade, ou do corpo como constituinte da
movimentos rígidos e repetitivos, pela valorização subjetivação do ser.
da liberdade intuitiva, dos movimentos comunica-
Vimos que o corpo é, sobretudo, uma evidên-
tivos com o entorno. O educador, nestes termos,
cia do processo de humanização. A subjetivação,
trabalha a partir dos princípios do corpo pulsional
ou o processo de tornar-se sujeito, está marcado
para o movimento, que visa a exploração do espa-
pelo processo de desenvolvimento ou adaptação
ço e da expressividade como um ponto primordial
corporal, que é metamorfoseado do nascimento
no processo de aprendizagem, porque vincula a
até a morte. Sendo assim, à medida que o sujeito
energia do mover-se ao impulso interno de expan-
vai se desenvolvendo, seu corpo apropria-se de
são. Outro princípio é o corpo consciente, existen-
uma conjuntura social, dos arranjos culturais, dos
cialmente situado, buscando a superação de todo
hábitos de lazer ou de alimentação, e dos contex-
processo de desumanização, caracterizando por
tos espaciais.
realizar sua vocação ontológica da dialogicidade.
Também o princípio do corpo vivido, constituído Nesse contexto, dificilmente o corpo pode
em sua totalidade vivida e convivida, no tempo e ser avaliado e/ou analisado a partir de uma úni-
no espaço a partir da integração perceptiva com ca abordagem. O corpo, como vimos, é produto
o entorno. e produtor, ao mesmo tempo, da subjetivação do
ser, do tornar-se sujeito de si e do seu momen-
Nessa perspectiva da relação corpo e sujei-
to histórico-cultural. Daí a necessidade dos edu-
to, considerarmos a subjetividade corporal, não
cadores se apropriarem de novos mapeamentos
como um modelo a ser alcançado, mas como um
teóricos, que revelem o desenho subjetivo deste
processo de subjetivação. A isso, Picard (1986),
corpo, buscando compreender, dentre outras coi-
afirma que o ser humano não possui uma sub-
sas, a constituição da identidade, a capacidade
jetividade una, mas é composto de fragmentos,
expressiva pelos gestos, postura e ocupação no
identidades, sem que haja, necessariamente, um
espaço. É preciso que os educadores corporais,
elo de coerência entre as partes. Assim a relação
particularmente os professores de educação física,
corpo-mente-espaço não é de unidade fixa e está-
entendam, aceitem e intervenham na perspectiva
vel, mas uma relação dinâmica.
de que o mover-se vai além de mudar de posição,
O corpo então aparece como “um cenário que o deslocar-se é mais complexo que transpor-
onde existem várias instâncias discursivas, réplica tar-se de um lugar a outro.
de um personagem para outro, onde diferentes
O corpo em movimento desloca não ape-
espaços semióticos são misturados constantemen-
nas volume e massa, mas informação, expressão,
te, compondo e decompondo um caleidoscópio de
sentido existencial e significado cultural. Os ges-
expressões” (PICARD, 1986, p. 227), que resultam
tos revelam o sujeito em sua completude espaço
em ressonâncias corporais. Assim, nesta esfera
temporal e oferece significados que podem ser
expressiva, consciente e existencial cada parte do
valorizados pelo educador em sua tarefa educa-
corpo ou cada movimento é, envolvido por pro-
tiva. Nas palavras de Medina (2002), o corpo não
porções variáveis: corpo e rosto, gestos e postu-
deve ser tratado apenas como um objeto inscrito
ras, olhos e mãos, tensão muscular e movimento,
na categoria do jurídico, sendo julgado como fei-
sorriso e respiração, objetos e espaços, feições e
to ou bonito, bom ou ruim, grande ou pequeno,
ambiente.
forte ou fraco. Muito menos ser peça que cumpre
sua função dentro da “engrenagem social de um
capitalismo periférico, dependente e selvagem”
(MEDINA, 2002, p. 69). O corpo é maior que tais
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delimitações, devendo ser considerado a partir GOMES-DA-SILVA, Pierre Normando. O jogo da cultura e
a cultura do jogo: por uma semiótica da corporeidade. JP:
de todas as suas dimensões (filosófica, artística e
Ed. UFPB, 2011.
educacional), sejam eles individuais, coletivas, so-
ciais e/ou políticas. GREINER, Christine. O Corpo: pista para estudos indisciplina-
res. São Paulo: Annablume, 2005.
Neste contexto do “corpo vivido”, “corpo co-
KATZ, Helena; GREINER, Christine. Corpomídia: a questão
municativo” e “corpo consciente”, perspectiva que
epistemológica do corpo na área de comunicação. Revista
cremos ser a mais completa e mais justa perante o Húmus, Caxias do Sul, n. 1., 2004.
valor do corpo, estamos sugerindo aos educado-
LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Sum-
res considerar essa ampliação. Sua significância mus, 1978.
está diretamente ligada ao processo de humani-
zação, passando pelo estar e fazer-se perceber no MEDINA, João Paulo Subirá. O brasileiro e seu corpo. 8.
ed. Campinas: Papirus, 2002.
meio em que se insere. O homem não está no
corpo, nem o corpo está no homem. Ambos é um MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção.
só elemento, o qual só pode ser compreendido Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
se considerado, tanto objetivamente, quanto por
meio de sua subjetividade. PICARD, Dominique. Del código al deseo: el cuerpo em la
relación social. Buenos Aires: SACIF, 1986.

VARELA. Francisco; THOMPSON, Evan; ROSH, Elenor. A


5 REFERÊNCIAS mente incorporada: ciências cognitivas e experiência hu-
mana. Porto Alegre: Artmed, 2003.
CORRAZE, Jacques. As comunicações não-verbais. RJ:
Zahar, 1982.

COURBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Ge-


oreges (Orgs.) História do corpo. Petropolis: Vozes, 2008

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 7. ed. Petrópolis: Vozes,


1987. _______________________________________

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 13. ed. Rio de Correspondência:


Janeiro: Paz e Terra, 1999. Autor: Djavan Antério
E-mail: djavananterio@hotmail.com
_________. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Ter-
ra, 1994.

Recebido em 09 de junho de 2011.

Aceito em 28 de junho de 2012.

Caderno de Educação Física (ISSN 1676-2533 | e-ISSN 1983-8883)


Marechal Cândido Rondon, v. 10, n. 18, p. 67-73, 1. sem., 2011

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