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Resumo: A tarefa de mensurar a escala global do tráfico de pessoas é árdua, mas estima-se, de acordo
com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que mais de 2,4 milhões de pessoas são vítimas de
trabalho análogo à escravidão resultante do tráfico humano. Dentro desta estimativa, encontram-se as
vítimas de trabalho forçado promovido por companhias internacionais e domésticas da indústria têxtil.
Apesar de ter ratificado o Protocolo de Palermo (2000), que obriga aos Estados signatários a adequar a
sua legislação ao disposto internacionalmente, só em 2016 o Brasil inclui no rol de possibilidades penais
do tráfico de pessoas a submissão de trabalho análogo à de escravo. Diante desse contexto, questiona-
se: quais os efeitos desses 12 anos de lacuna legislativa no tocante aos crimes de tráfico de pessoas
cometidos na indústria da moda brasileira? Na pesquisa, foram utilizadas fontes bibliográficas e
empíricas, destacando tratados e a legislação doméstica, bem como trabalhos monográficos acerca do
tema e analisando, através do estudo de caso, o processo judicial contra a empresa Zara. A investigação
permitiu concluir que, embora o Brasil tenha adequado a sua legislação após a ratificação do Protocolo
de Palermo (2000), tal lapso temporal isentou criminalmente companhias da indústria da moda no
tocante ao tráfico de pessoas, dificultando ainda mais quantificar as vítimas deste crime. Sendo um
problema global, o tráfico de pessoas precisa de um rígido enfrentamento por parte dos Estados, que
devem impulsionar o alinhamento de suas diretrizes legislativas com os tratados de direitos humanos.
Palavras-chave: Tráfico de pessoas; Indústria da moda; Protocolo de Palermo; Direitos humanos.
INTRODUÇÃO
METODOLOGIA
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O fenômeno do tráfico de pessoas vem se intensificando nas últimas décadas, mas é objeto
de atenção do direito internacional há 114 anos1. Estima-se que cerca de 4 milhões de pessoas
sejam vítimas do tráfico humano em uma escala global e, de acordo com a OIT, as vítimas de
trabalho forçado em virtude do tráfico de pessoas já chegam a 2,4 milhões (PIOSEVAN;
KAMIMURA, 2013, p. 107).
Se a estimativa do número de vítimas de tal crime é de difícil mensuração, o seu conceito
propriamente dito era polêmico entre os estudiosos até muito recentemente. Isto porque o tráfico
de pessoas geralmente vem mesclado com várias outras questões como crime organizado,
cárcere privado, exploração sexual, escravidão moderna2, além de problemas estruturais de
cunho econômico, racial e de gênero.
A falta de um instrumento legal internacional durante o século XX deixou as entidades
fiscalizatórias domésticas e internacionais desarmadas na luta contra o tráfico, intensificando o
problema pela falta de definição conceitual sobre o assunto (SILLER, 2016, p. 416). Surge daí
a importância de os Estados contarem com legislação consolidada para o combate ao tráfico
humano.
A definição do tráfico de pessoas tornou-se consensual após o Protocolo de Palermo
(2000), um dos frutos da Convenção contra o Crime Organizado Transnacional, adotada no
âmbito do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU) e que teve as suas assinaturas
abertas a partir de 2000 na cidade de Palermo, na Itália. A Convenção foi complementada pelo
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
1
O primeiro tratado sobre o assunto data de 1904, sendo este o Acordo Internacional para a Supressão do Tráfico
de Mulheres Brancas, firmado em Paris e assinado em 1910, que objetivava proteger as mulheres europeias da
exploração sexual.
2
De acordo com a doutrina jurídica brasileira, a caracterização do trabalho análogo à escravidão na
contemporaneidade pressupõe a existência de elementos internos, que sejam jornadas de trabalho extensas em
condições desumanas com coação, violência, ausência de liberdade, retenção de documentos pessoas e em regime
de cativeiro; e elementos externos, que se configuram a partir do desemprego, analfabetismo, baixo índice de
desenvolvimento humano (IDH) e reduzida atuação estatal preventiva e reparadora (LIMA, 2016, p. 63-64).
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relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e
Crianças (Protocolo de Palermo).
A partir de então, foi possível definir com maior precisão o termo “tráfico de pessoas”,
que requer em sua caracterização a presença de três elementos: (I) um ato, (II) um meio e (III)
um propósito de exploração. Pode-se extrair do art. 3º do Protocolo que constitui esta
modalidade normativa (I) o ato de recrutar, transportar, transferir, alojar ou acolher pessoas (II)
recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao
engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios (III) para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade
sobre outra para fins de exploração.
O Protocolo, considerado como o principal instrumento internacional no tocante ao
tráfico de pessoas, adicionando aspectos de prevenção, combate e proteção (HEINTZE; LÜLF,
2016, p. 155), inovou ao incluir no texto, para além da exploração da prostituição de outrem e
outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou serviços
semelhantes à escravidão, a servidão e a remoção de órgãos. O consentimento dado pela vítima
também é considerado irrelevante para fins de caracterização do tráfico de pessoas. O art. 5º do
Protocolo de Palermo (2000) obriga aos Estados-parte adotarem as medidas legislativas
necessárias para estabelecer como infração penal o disposto no seu art. 3º.
No entanto, desde a ratificação do Protocolo de Palermo em 2004 até a modificação do
texto penal em 2016, o Brasil permaneceu inerte a tal observação, tipificando, através do
Código Penal, o tráfico de pessoas apenas para fins de exploração sexual. Diante de tal restrição,
apenas o tráfico de pessoas com finalidade sexual seria criminalizado no Brasil, inexistindo tipo
penal que pudesse ser utilizado nos demais casos de tráfico de pessoas (DIAS, 2013, p. 324).
A inobservância do Brasil frente ao problema destacado foi alvo de recomendações feitas
pelo Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) em sua
quinquagésima primeira sessão, realizada entre os dias 13 de fevereiro e 2 de março de 2012.
O CEDAW recomendou ao Estado brasileiro que se adotasse uma lei mais abrangente contra o
tráfico de pessoas em conformidade com o Protocolo de Palermo (2000) a fim de implementar
o disposto no art. 6º, que assegura a devida punição e julgamento dos responsáveis, além da
proteção às vítimas (CEDAW, 2012, p. 5).
Neste contexto, as vítimas de tráfico de pessoas para fins de trabalho análogo ao de
escravo encontrar-se-iam desprotegidas pelos dispositivos penais domésticos. Tal fato incide
diretamente sobre as pessoas que trabalham no
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contexto do fast fashion3, caracterizado por um alto índice de consumo e produção. A
massificação produtiva de peças de roupa faz com que as grandes marcas tenham em seu corpo
laboral trabalhadores de localidades conhecidas por “perpetuarem uma condição análoga à de
escravo aos trabalhadores das produções têxteis, como Bangladesh e China” (MOREIRA;
MOTA, 2017, p. 156).
Em muitos casos, estes trabalhadores, caracterizados principalmente enquanto “pessoas
inseridas nos grupos mais vulneráveis da sociedade, em especial os trabalhadores de baixa
renda” (GURGEL, 2008, p. 109), estão inseridos no contexto brasileiro, no que diz respeito à
indústria têxtil, enquanto sujeitos estrangeiros.
Para além da proteção prevista no Protocolo de Palermo, em termos de instrumentos
legais internacionais, destacam-se a Convenção sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias (1990) e as recomendações e convenções
da OIT que buscam a proteção dos trabalhadores migrantes4. Sendo assim, independentemente
da condição migratória da pessoa, o Estado brasileiro possui como preceito a proteção desses
indivíduos frente às violações dos seus direitos.
A adequação legislativa ao Protocolo só veio com o advento da Lei n. 13.344/2016, que
incluiu os atos de remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo, submissão a trabalho em
condições análogas à de escravo ou a qualquer tipo de servidão enquanto elementos
caracterizadores do tráfico humano. Essa lacuna de 12 anos no ordenamento jurídico teve
consequências diretas em julgamentos de empresas da indústria da moda investigadas por
trabalho análogo à escravidão tendo migrantes como vítimas.
É o caso da empresa Zara, que começou a ser investigada em 2011 após uma operação do
MPT resultar no flagrante de bolivianos trabalhando em condições subumanas em uma de suas
fábricas de costura. Após uma denúncia anônima, o MPT enviou diligência, acompanhado de
auditores fiscais do trabalho, a um galpão onde se podia ouvir um barulho incessante de
máquinas de costura em que trabalhavam mais de 50 pessoas em meio a pilhas de tecidos ao
3
A expressão fast fashion pode ser traduzida para “moda rápida”, onde os consumidores compram
desenfreadamente e a produção das roupas acelera-se. De acordo com Moreira e Mota (2017, p. 157-158), o
consumo descontrolado faz com que as grandes empresas da indústria têxtil adotem uma produção de forma
terceirizada através da economia de baixo custo e pagando salários cada vez menores aos trabalhadores.
4
No âmbito da OIT, considera-se o Convênio relativo a trabalhadores migrantes (n. 97); o Convênio sobre as
migrações em condições abusivas e a promoção da igualdade de oportunidades e de tratamento dos trabalhadores
migrantes (n. 143); a Recomendação sobre os trabalhadores migrantes (n. 86); a Recomendação sobre os
trabalhadores migrantes (n. 151); o Convênio relativo a trabalho forçado ou obrigatório (n. 29) e o Convênio
relativo à abolição do trabalho forçado (n. 105) (CAMPOS, 2006, p. 48).
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lado de fios desencapados e com extintores de incêndio vazios, podendo causar um incêndio a
qualquer momento. Dos 50 trabalhadores, 46 eram bolivianos – boa parte deles permanecia no
país de forma ilegal, sem visto de permanência válida – e admitiram não conhecer a lei
brasileira, além de receberem apenas vinte centavos por peça produzida em uma jornada de
trabalho que durava até 14 horas diárias (ALMEIDA, 2013, p. 16).
A Zara propôs a Ação Anulatória de Autos de Infração n. 0001662-91.2012.502.0003
(Terceira Vara do Trabalho de São Paulo/SP) contra a União Federal postulando, dentre outras
coisas, a nulidade do relatório de fiscalização que a responsabilizou por submissão dos
empregados à condição análoga de escravo. De acordo com o relatório da sentença, a empresa
afirmou que não praticou nenhum ato ilícito e que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
extrapolou os limites das suas atribuições ao reconhecer que a Zara configurava como a
empregadora dos trabalhadores ali encontrados, tendo em vista que eles se localizavam em uma
fábrica da empresa de manufatura de roupas denominada Aha Indústria e Comércio LTDA.
Determinou-se que a inserção do nome da Aha foi usada como forma de ocultar a direta
ligação entre a Zara e os trabalhadores bolivianos, estando estes “submetidos a condições
inaceitáveis de trabalho enquanto laboravam produzindo, com exclusividade, produtos com a
marca dessa” (REPORTER BRASIL, 2014).
Os pedidos de declaração de nulidade do relatório de fiscalização do MTE e de anulação
dos Autos de Infração foram indeferidos e a Zara foi responsabilizada em 11/04/2014 por
submeter trabalhadores à escravidão contemporânea e, segundo a sentença, foi considerado que
a empresa, sendo uma das maiores corporações do mundo, não poderia ter controles tão frouxos
da conduta de seus fornecedores.
Diante da inexistência de tipificação penal no tocante ao tráfico de pessoas entre os anos
de 2011, quando se deu início às investigações, até 2014, quando foi prolatada a sentença, o
direito de acesso à justiça das vítimas foi apenas parcialmente satisfeito. O acesso à justiça
penal viabiliza a proteção aos direitos fundamentais e a reparação das violações aos direitos
humanos. O Estado é o responsável por abrir as portas de acesso à justiça penal e a ausência de
repressão legal a partir da não adequação da sua normatização com um tratado que se obrigou
a cumprir fere diretamente o direito daqueles que deveria proteger, motiva uma cultura
permissiva de práticas violadoras de direitos humanos e, por fim, perpetua a desigualdade já
consolidada nas relações de trabalho atualmente vigentes e a impunidade dos autores dos
crimes.
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CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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