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Sonhos do Coração Jeanne Rose

Sonhos do coração (Série Ouro 5)


Heart of Dream
Jeanne Rose

Revelações dos sonhos...


Mara Fitzgerald não conseguia tirar Lucas Naha de seus sonhos. Noite após noite era assaltada por imagens
assustadoras, embora eróticas, desse homem... Imagens que a deixavam sem fôlego e excitada. Ainda mais
desconcertante era a alegação do misterioso, reservado e sexy índio de que ele andava tendo sonhos com ela. E
ambos não estavam apenas partilhando sonhos, mas também lembranças de um remoto passado... Lucas conhecia
tanto o prazer quanto à dor em entrar nos sonhos de outra pessoa. Mas achava que, com seu poder, causara um erro
irreparável no seu passado, e não podia se permitir perder o controle novamente. Ainda assim, em seu coração,
pressentia que a felicidade em seus sonhos com Mara mascarava um mal oculto... Um mal que ameaçava destruir a
ambos.

PRÓLOGO
Uma invasão de luz a fez mexer-se e apertar mais os olhos. Ela virou a cabeça para o lado para bloquear a
intensidade da luz, mas esta prosseguiu como se estivesse dentro de sua mente... Implacável... Persistente...
Desistindo de lutar, abriu os olhos. A claridade da manhã quase a cegou, fazendo-a encolher-se e cobrir a
cabeça com o lençol. Um momento se passou antes que se desse conta do que acabara de ver. Foi dominada por uma
estranha confusão que a obrigou a espiar por um vão no lençol listrado que a envolvia.
Estava deitada no solo de um amplo cânion. Pedras pressionavam-se de encontro às suas costas, e um vento
uivante soprava por seu corpo; ainda assim, mal os sentia, como se a terra e os elementos fossem fragmentos da sua
imaginação. Um assustador pressentimento a fez engolir em seco e respirar fundo em seguida. Sua garganta parecia
obstruída, a boca, ressecada. Mal podia falar.
— Céus, onde estou?
E, principalmente, como chegara até ali se havia adormecido numa cama?
Um fluxo de adrenalina percorreu-a ao se pôr de pé. Sentiu-se um tanto zonza, o pulso muito acelerado.
O lençol listrado que a envolvia dos pés à cabeça era a única barreira entre ela e aquele ambiente. Nua sob o
fino tecido, ajeitou melhor o lençol ao seu redor, como se fosse um escudo, e espiou pelo estreito vão.
Ao longe, o sol brilhava intenso nos topos das montanhas, lançando seu colorido flamejante sobre a terra
avermelhada, como que com um pincel de fogo. Mais perto, achavam-se fileiras de pequenos arbustos ressecados. A
meio caminho entre os majestosos picos azulados das montanhas e a terra árida em que ela estava, erguiam-se
antigas formações rochosas, grandes penhascos rubros que pareciam... Oscilar.
Tentou não entrar em pânico.
— Olá! — gritou. — Há alguém aí?
As palavras ecoaram até o ponto em que os penhascos oscilavam e retomaram como sussurros sobrenaturais
que a envolveram e chegaram a seu íntimo com uma perturbadora certeza. O temor foi se alastrando na medida em
que o silêncio se prolongava.
Não havia resposta.
Estava sozinha.
Apavorada, estreitou mais o lençol ao seu redor, tentando se proteger do vento forte que ameaçava
arrancar-lhe sua única proteção. As pontas do tecido esvoaçavam com as bruscas rajadas, como se o ar fosse
alguma criança levada tentando puxá-las. Ela o segurava com toda a firmeza, até que seus dedos doessem.
Correu os olhos pelo local.
Desolado... Intimidante... Fantasmagórico... Rochas gastas, cheias de sulcos, dispostas em sucessivas
camadas em variados tons de marrom-avermelhado... O fim do mundo... Inadequado para a habitação humana.
Mas espere..., pensou. Uma pequena figura surgiu ao longe. Estava em cima de um tipo de pequena colina
avermelhada, com o topo plano e as laterais íngremes.
Antes de sequer pensar em se mover, suas pernas a impeliram para a frente. Apesar, da aridez da terra e
das pedras sob seus pés descalços, o contato parecia leve como o de plumas. Ao seu redor, os paredões do cânion

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passavam cada vez mais depressa, até que não passassem de meros borrões. A respiração acelerada confundia-se
com o vento e ressoava em sua cabeça.
A pequena figura aumentou de tamanho, até que ela pôde identificá-la como sendo a de uma mulher sentada
de pernas cruzadas, o rosto passivo como que mergulhado em meditação, os cabelos pretos esvoaçando ao redor de
seu colo moreno. E, ainda assim, a mulher parecia um tanto irreal.
Acima, o céu revolveu-se. Nuvens grossas e cinzentas avançaram, encobrindo o sol. Um raio faiscante cortou
o ar e atingiu uma rocha por detrás da aparição. Seus traços eram claramente indígenas, e os olhos se abriram de
repente, refletindo horror. Ouviu-se o estrondo de um trovão.
— Quem é você? — gritou a Índia, a voz cavernosa carregada pelo vento.
Quem...?
A pergunta paralisou-a e, ainda assim, de alguma forma, ela já havia percorrido o caminho até o topo da
colina vermelha. Pelo vão do lençol que lhe ocultava a cabeça, olhou para a mulher que parecia real e ao mesmo tempo
não era. Sentiu uma opressão no peito e tentou falar, dar uma resposta, mas as palavras não saíam.
Os cabelos esvoaçando, os traços distorcidos, a índia avançou para a frente, as mãos erguidas num gesto de
quem tentava se defender.
— Quem é você? Qual é o seu nome?
Ela moveu os lábios, mas não emitiu nenhum som.
Não conseguia falar, nem responder.
Não sabia.
Raios cortaram o céu e atingiram a terra. O vento se intensificou, tentando lhe arrancar o lençol dos dedos
apertados. A índia gritou com ela sem parar, exigindo que lhe dissesse seu nome. Um súbito terror a fez recuar da
ameaçadora aparição, sabendo que seu nome a salvaria... Mas, ainda assim, sem ter uma resposta.
Em pânico, virou-se para correr dali e logo foi envolvida pelo vazio da espera...

CAPÍTULO I
—Aahhh! — Mara Fitzgerald ergueu-se abruptamente na cama, pernas e braços enroscados no lençol, uma
camada de suor frio cobrindo-lhe a pele. O sol intenso de verão banhava o quarto. Seu coração batia num ritmo
alucinado. Mais um pesadelo estranho... Diferente dos outros.
Pior.
Não ter sabido seu próprio nome a fez sentir-se como se estivesse perdendo sua identidade.
Enrolou-se no lençol e saiu da cama, como se o gesto de deixar o local físico onde tivera seu sonho dissipasse
o medo que acelerava sua pulsação. Mas as imagens assustadoras não se dissipavam. E o cenário do pesadelo era, de
alguma forma, familiar...
Mal se sustentando nas pernas trêmulas, saiu do quarto para a penumbra no corredor de seu apartamento.
Recostou-se na parede fria e forçou-se a relaxar, a respirar normalmente. A boca e a garganta estavam secas, como
no sonho.
Quando seus olhos se adaptaram à penumbra, deu-se conta do quadro na parede oposta. Céus... Era aquilo!
Ansiosa para observá-lo melhor, acendeu a luz e aproximou-se.
Relâmpagos na Colina Vermelha, pintado por Lucas Naha. O quadro que ela comprara vários anos atrás,
quando ainda trabalhara na galeria de arte em São Francisco. Embora pequena, a pintura e sua assombrosa beleza
continham um poderoso apelo. Fora por essa razão que a pendurara ali, no corredor estreito, onde podia admirá-la
por escolha própria, em vez de num cômodo onde não pudesse evitá-la.
Observou cada detalhe da pintura, desde as montanhas distantes, encimadas por nuvens cinzentas, até o
solo árido e desolado do cânion. Prestou atenção à ramificação de relâmpagos que cortavam o céu e ao raio faiscante
que atingia um ponto da ampla colina avermelhada, em cujo topo plano sentava-se uma figura pequena e quase
indefinível.
Sentiu um imenso alívio. Este pesadelo, ao menos, tinha uma explicação. Apesar de ainda não conhecê-lo,
Lucas Naha vinha dificultando com sua atitude o novo emprego dela como gerente da galeria de arte Sol Goldstein,
em Santa Fé. Sem dúvida, a ansiedade gerada por esse problema com o artista causara-lhe o pesadelo.
Apenas um detalhe ainda incomodava Mara... Por que não soubera responder quem ela própria era?

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Uma onda de temor acompanhou Isabel Joshevama, enquanto despertava de seu transe. Abriu os olhos
cegos para uma parede de luz e sombras indistintas. Mas, em sua mente, ainda podia ver a paisagem que a
circundava com a nitidez com que a enxergara por sete décadas antes de perder a visão. Todas as rochas e trechos
de terra de tons avermelhados dessa colina estavam gravados em sua memória.
E vira cada detalhe quando mergulhara em seu transe. Não era cega em suas visões.
Nem ficava alheia ao perigo...
Pois agora houvera a invasão do desconhecido, talvez pondo em risco o que restava desta sua frágil vida. Ela
teve um ligeiro estremecimento, com plena consciência de sua própria mortalidade.
— Você já está comigo? — perguntou-lhe a amiga que a acompanhava.
Isabel estendeu a mão para segurar o braço de Rebecca Harvier, sentada a seu lado.
— Não estou mais em segurança.
— O que você viu?
— Um estranho enrolado num tecido listrado.
— Ele a ameaçou?
— Perguntei-lhe o nome, mas o espírito foi esperto e não respondeu. Escondeu-se deliberadamente de mim,
cobriu-se dos pés à cabeça para que eu não pudesse ver seu rosto. Nem mesmo pude definir se era "ele" ou "ela". —
A anciã cega levantou-se, amparando-se no braço da mulher que se tomara seus olhos em seu mundo terreno. —
Exigi que me respondesse. — E não fora uma ordem fácil de se recusar, uma vez que Isabel possuía todo o poder de
uma "pessoa pronta", uma sábia do clã siki. — Mas o espectro permaneceu em silêncio, recuou e desapareceu. — A
velha mulher respirou fundo. — Rebecca, alguém entrou no meu "lugar de sonhos", alguém com poder o bastante
para me enfrentar.
— Algum ancião?
— Com certeza, não. Ou o espírito teria se identificado.
— Charlie Mahooty? — sussurrou Rebecca, soando horrorizada.
Um calafrio percorreu Isabel ante a menção de um agressivo kisi que desejava mal ao próprio povo. Pela
primeira vez, ela não pôde responder ao certo.

Mara começou a atravessar a Aspen Plaza, logo passando pelas antigas árvores que adornavam o centro da
praça. Uma brisa quente de verão fazia com que os cabelos castanho-claros lhe esvoaçassem sobre os ombros. O
sussurro do vento soprava ligeiramente de encontro às folhas das árvores. Apesar do calor, estremeceu, sentindo
como se o vento trouxesse uma mensagem destinada só para ela.
Uma sensação de algo sombrio e assustador a acompanhava. Sentia-se com os nervos à flor da pele... Os
efeitos do pesadelo.
Esforçou-se para afastar a inquietação. Tentou dizer a si mesma que apenas estava se deixando influenciar
pelo misticismo do Estado do Novo México, com todas as crenças de suas variadas culturas e origens... Em especial a
indígena e a espanhola.
Procurou se recobrar, tentando relaxar em sua costumeira caminhada matinal para o trabalho. Em São
Francisco, na época em que cursara a faculdade de belas-artes e fizera uma especialização em terapia através da
arte, trabalhara como assistente do proprietário da Galeria Sol Goldstein. Agora, após um período de seis anos
trabalhando como "arte-terapeuta", uma profissão que combinava arte e psicologia ao usar variadas formas de
expressão artística como recurso para tratar pacientes com distúrbios mentais, ela estava de volta ao ramo de
galerias de arte. Desta vez, era a nova gerente da filial da Sol Goldstein na cidade de Santa Fé.
A galeria situava-se na Avenida East Palace, a cerca de um quarteirão da praça principal. A Aspen Plaza era
parte de um trazo, uma seqüência de construções em estilo colonial espanhol, com pátios internos e paredes em
comum, formando uma fachada única e contínua ao longo da rua. A bem-sucedida e refinada Sol Goldstein ocupava
toda o primeiro andar da ala norte.
Enfim, Mara passou pelo amplo pórtico, saindo do calor da manhã para o ar condicionado da galeria. O salão
principal era alegre e convidativo com seu piso cerâmico avermelhado e uma agradável área de recepção, onde se
destacavam elegantes estofados em torno de uma lareira de mármore branco. Quadros e gravuras adornavam as
paredes; estatuetas e demais objetos de arte decoravam pequenas mesas e vários nichos nas paredes.
Estranhamente, o lugar estava deserto. Ela ainda se perguntava onde sua assistente, Felice Paquin, teria ido,
quando a mulher de traços exóticos, de repente, surgiu detrás da mesa da recepção.

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Mara teve um sobressalto, de seus lábios escapando uma exclamação surpresa.
— Ei, não quis assustá-la. — Sorrindo, Felice afastou os cabelos negros do rosto. — Eu estava verificando a
tomada do telefone debaixo da mesa.
— Acho que estou um pouco tensa — explicou ela, sentindo-se tola com sua reação exagerada.
— Ainda não se desligou do estilo agitado da cidade grande, certo?
— Acho que não. Tive um pesadelo ontem à noite.
De qualquer forma, não fora como um dos aterrorizantes sonhos que Mara começara a ter quando criança.
As vívidas perseguições, que inúmeras vezes a tinham feito acordar gritando no meio da noite, haviam-na levado a se
dedicar à busca pelo auto-conhecimento. Tal busca acabara por conduzi-la a desejar uma profissão que combinasse
expressão criativa com psicologia.
Nem tampouco este sonho fora mais um macabro pesadelo com cadáveres. Esses tipos de sonhos tinham
começado a invadir suas noites após o suicídio de um doente mental que estivera tratando. Arrasada e dominada por
uma incontrolável culpa, ela desistira da carreira depois de seis anos como "arte-terapeuta". Fora, então, que
recorrera à Sol Goldstein para pedir de volta seu antigo emprego em galeria.
Mas o pesadelo desta manhã fora assustador a sua própria maneira e, por um momento, Mara não podia
deixar de se perguntar se não estaria à beira de alguma crise nervosa.
— Sonhei que estava numa das pinturas de Lucas Naha — disse a Felice.
A bonita morena, cujos traços eram uma harmoniosa combinação de três origens, britânica, espanhola e
indígena, sacudiu a cabeça.
— Não é de admirar, considerando toda a dor de cabeça que estamos tendo com aquele arrogante.
Mara assentiu, absorta. Embora soubesse que alguns artistas eram difíceis de lidar, em geral porque
trilhavam um árduo caminho até o sucesso, não podia evitar de ficar aborrecida quando alguém se tornava
temperamental demais.
O trabalho de Naha estava atrasado, e nem seu preocupado agente fora capaz de apressá-lo. Nem mesmo
com advertências sobre eventuais multas, um possível processo por quebra de cláusulas contratuais ou, inclusive, a
hipótese de ser substituído por outro pintor na elite artística da prestigiada Goldstein. A galeria programara e
anunciara uma exposição de Lucas Naha para a semana seguinte. E até o momento não havia nenhuma garantia de que
haveria muito para ser vendido.
Encaminhando-se juntas para o amplo e ventilado depósito dos fundos, Mara e Felice detiveram-se em
frente a Amanhecer, uma enorme tela de uma paisagem do Novo México. Estava reservada para a exposição, sendo
a única que dispunham de Naha no momento. Montanhas distantes erguiam-se ao fundo de um pequeno vilarejo, que
se situava numa região de terra árida e avermelhada, banhada por um sol brilhante.
Aquele céu, a terra... Subitamente pareciam familiares, percebeu Mara, com a respiração em suspenso,
enquanto observava a pintura.
— Você já ouviu a respeito do misticismo que envolve as pinturas de Naha, não é? — indagou Felice.
Um calafrio subiu pela espinha de Mara.
— Misticismo?
A morena apontou para a pequena figura próxima ao vilarejo, o único ser-humano na paisagem.
— Muitos colecionadores acreditam que esses pequenos seres retratados têm vida própria. Supostamente,
eles se movem, a cada vez ocupando diferentes partes na tela.
E seriam capazes também de entrar nos sonhos de alguém?, perguntou-se Mara, com um novo calafrio.
— Dentre os pueblos, os kisis especificamente são chamados de "os amaldiçoados" por outros índios do
sudoeste — prosseguiu a assistente. — E eles têm a reputação de praticar feitiçaria, como os yaquis.
— Quer dizer que são considerados maléficos?
— Não, claro que não. Feitiçaria pode tanto ter a ver com o bem quanto com o mal, dependendo do propósito
de quem a usa. E dizem que o clã Kisi é amaldiçoado por algo que aconteceu no passado.
Tomando a olhar para o quadro, Mara notou que a pequena figura estava no mesmo lugar onde sempre
estivera. Transcendentais, ainda assim dotadas de um realismo quase mágico, as pinturas de Naha sempre a haviam
tocado a fundo... Mas nem por um instante permitiria que a assombrassem!
Nem tampouco deixaria que um artista temperamental tornasse seu trabalho mais difícil do que já era.
Frustração e ansiedade a haviam levado a abandonar a carreira de "arte-terapeuta", uma profissão na qual investira

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tanto de si mesma. Esse novo trabalho jamais poderia ser tão estressante quanto o anterior. Faria com que as
coisas funcionassem, ainda que ela tivesse que pessoalmente arrancar mais algumas pinturas de Naha à força.
Ao menos, não havia uma vida humana em jogo... Ainda se lembrava de cada detalhe da última sessão que
tivera com o paciente suicida. Ele quisera que ela entrasse em seus sonhos e que o salvasse de um monstro. Mara lhe
pedira que o desenhasse ou pintasse, como uma forma de se livrar do tal monstro, e lhe assegurara que ninguém
conseguia entrar nos sonhos dos outros... Outra vez, os calafrios. Não queria particularmente acreditar em
misticismo, quanto mais em feitiçaria...
Lucas Naha criava imagens de tamanho poder que haviam entrado em seu subconsciente, que podiam afetá-la
mesmo quando dormia. De repente, deu-se conta do quanto ansiava em conhecer um artista capaz disso. Talvez ao
conversar com ele pudesse ter algum entendimento dos seus terríveis sonhos; talvez conseguisse entender o que,
afinal, a fazia tão suscetível a tê-los.
Mais uma vez, repassou os detalhes de seu recente pesadelo, a índia que parecera tão viva, o local de
aspecto tão familiar... E decidiu enfrentá-los enquanto estivesse acordada.

A região situada cem quilômetros a noroeste de Santa Fé era vasta e possuía um ar intocado. Mara sentiu-se
instantaneamente atraída pela paisagem, da mesma forma como lhe acontecia com as pinturas de Naha. Era quase
como se tivesse alguma ligação com aquele lugar.
O que a confundia e a deixava apreensiva.
Ou talvez estivesse receosa em conhecer o artista, que tinha reputação de ser anti-social. Mas como "arte-
terapeuta" numa unidade de um hospital de cidade grande, Mara lidara com administradores difíceis e psiquiatras
exigentes, como também com paranóicos e esquizofrênicos. Com certeza, em comparação, um artista recluso com
inclinações místicas não representaria uma missão das mais intimidantes.
Apenas lhe faria algumas perguntas e o lembraria com firmeza, embora com diplomacia, sobre seu contrato
com a galeria. Mas, principalmente, Mara iria satisfazer sua curiosidade e se livraria de seus próprios medos. Da
mesma maneira que pacientes superavam ansiedades ao representá-las e ao falarem a seu respeito num contexto de
arte, ela enfrentaria o homem cujas imagens haviam desempenhado um papel chave no seu pesadelo, o reconheceria
por seu talento, embora ciente que devia ser uma pessoa comum, e o baniria com suas pinturas de quaisquer outros
sonhos estranhos.
Sentindo-se mais confiante em relação a sua decisão impulsiva de visitar a Reserva Kisi naquela mesma
tarde, Mara relaxou um pouco no assento de seu carro. Atenta ao volante, ia lançando olhares ao redor para
inspecionar a paisagem. Parecia estar sozinha na estrada que serpenteava por entre colinas avermelhadas. Ao longe,
erguiam-se as imponentes montanhas azul-acinzentadas, outrora o lar dos antigos anasazis. Esses índios haviam
construído seus povoados em penhascos, quase mil anos antes dos espanhóis terem chegado à América do Norte.
Como todos os pueblos, os kisis tiveram suas raízes nos anasazis, mas desde então haviam mesclado seu
sangue com nômades como comanches e navajos, em especial depois de quase ter sido dizimado em 1691. Mara lera
que um capitão espanhol, chamado Francisco Castillo, fora particularmente cruel com os kisis, que conseguiram
sobreviver por um bom tempo. Um subseqüente massacre fora a razão pela qual as outras tribos haviam dito que a
dos kisis era amaldiçoada.
Meia hora depois, quando subia a estreita estrada de cascalho que conduzia à reserva, ela viu tristes provas
de que os índios ainda não estavam prósperos. Havia uma praça central com uma velha igreja e um agrupamento de
casas simples, entre arbustos esparsos e umas poucas árvores secas. Ao tocar a buzina, um cachorro magro saiu da
estrada e correu para se esconder atrás de uma caminhonete de aspecto abandonado.
Onde morava Naha? Uma vez que parecia não haver números, nem qualquer identificação nas casas, decidiu
pedir informações na mercearia. Parou o carro em frente à construção térrea de tijolos e desceu. No momento em
que seu pé tocou o solo, uma outra sensação de familiaridade percorreu-a. Mas dissipou-se com a mesma rapidez
com que surgiu. Mara entrou.
Dois homens estavam envolvidos numa discussão acalorada junto ao balcão; o dono da mercearia, magro, de
uns trinta e cinco anos, e o freguês, corpulento e talvez na casa dos quarenta.
— Você não pagou sua conta, Mahooty. — O proprietário mexia nervosamente em seus óculos. — Não posso
lhe vender mais nada fiado até que pague o que já deve.
— Quero um maço de cigarros. — O homem corpulento esmurrou o balcão. — Agora.
— Ei, não pode ao menos pagar uma parte da dívida. Afinal, este negócio é o meu ganha-pão.

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— Não tenho que pagar. Eu comando esta reserva.
— Se eu não receber, terei que fechar as portas.
Com um grunhido, Mahooty tirou uma nota do bolso.
— Está certo. Aqui tem cinco dólares. Agora me dê os cigarros.
O comerciante pegou o dinheiro e entregou-lhe o maço. Quando se virou para sair, Mahooty estreitou os
olhos ao notar Mara e, então, deixou a mercearia abruptamente.
Ela se aproximou do balcão.
— Poderia me dar uma informação? Estou procurando Lucas Naha.
— Humm, Naha? — Os olhos do homem exibiram um brilho de curiosidade por trás das lentes dos óculos. —
É colecionadora de arte?
— Sou a gerente da Sol Goldstein.
Continuando a encará-la, o dono da mercearia exibiu um largo sorriso e estendeu a mão por cima do balcão
para cumprimentá-la.
— Também sou um artista, um escultor. Tom Chalas. Está à procura de um novo talento? Seria um prazer
mostrar-lhe alguns dos meus trabalhos.
Se Chalas tivesse mesmo potencial para uma galeria renomada como a Goldstein, algum agente
provavelmente já o teria descoberto. Mas Mara acreditava que o talento existia em todos e tinha compaixão por
uma pessoa que lutava para vencer no competitivo mundo da arte.
— Entrevistamos artistas com hora marcada. Para esculturas, pedimos fotos e slides. — Ela entregou-lhe
seu cartão com um sorriso amável. — Monte um dossiê com exemplos de seu trabalho e me telefone. — Não havia
mal em dar uma chance ao homem. — Bem, agora quanto a Lucas Naha... Onde ele mora?
Tom Chalas, então, deu-lhe as instruções de como encontrá-lo.
Mara dirigiu por um desvio estreito na estrada de cascalho e foi descendo até que logo avistou uma casa
espaçosa, de aspecto confortável. Um jipe comanche empoeirado achava-se à sombra de um arvoredo lateral. Mara
estacionou ao lado do veículo, desligou o motor e observou a casa por alguns momentos. Notou que parecia
agradável, mas não tinha nada de incomum.
Ainda assim, seu coração estava disparado. O que, afinal, lhe acontecia?
Respirando fundo, disse a si mesma para se acalmar e, então, desceu e foi bater à porta.
Momentos depois, uma mulher atraente, de meia-idade, de rosto e corpo ligeiramente arredondados,
apareceu.
— Em que posso ajudá-la?
— Olá. Sou Mara Fitzgerald, da galeria Goldstein, em Santa Fé. Gostaria de falar com Lucas Naha. Ele está?
— Ela sabia que devia estar. O agente comentara que o artista raramente saía da reserva indígena.
A mulher ergueu as sobrancelhas.
— Luke? Bem, hã... Não tenho nada a ver com seus negócios, sabe. Sou a mãe dele, Onida Naha. — Ela
afastou uma das poucas mechas grisalhas em seus cabelos negros. — Meu filho está trabalhando no pátio e pediu
para não ser interrompido.
— Trabalhando em suas pinturas? — Isso soava promissor e também fascinante. — Eu realmente gostaria de
conversar com ele por um momento.
— Bem, não vou bater a porta na cara de ninguém, não importa o quanto Luke insista em se isolar.
Onida convidou-a a entrar e, então, conduziu-a por um longo corredor. Surpresa, tendo pensado que seria
deixada a espera enquanto Naha fosse avisado, ela seguiu a mulher. Ia olhando de relance para a mobília ao
passarem.
O bem-sucedido artista não vivia cercado de luxo, embora sua casa tivesse ambientes amplos e parecesse
confortável. Havia uns poucos quadros pendurados aqui e ali, tapeçarias coloridas recobrindo os pisos. Pequenas
estatuetas entalhadas em madeira, representando divindades indígenas, e imagens de santos católicos ficavam lado
a lado em nichos na parede, num evidente sincretismo religioso. Na espaçosa cozinha, Onida abriu a porta dos
fundos, revelando um grande pátio de revestimento cerâmico e um amplo gramado, cercados por muros.
No momento em que Mara avistou o pintor trabalhando à sombra de uma árvore próxima, deteve-se de
imediato. Mais uma vez a sensação de familiaridade deixou-a ansiosa.
— Luke? — chamou Onida timidamente.

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O homem alto continuou trabalhando, absorto; tubos de tinta espalhados ao redor de seus pés. Parecia não
ter notado as duas, como se estivesse tão concentrado na pintura que nem mesmo um terremoto fosse capaz de lhe
desviar a atenção,
— Por favor, não o interrompa — pediu Mara a Onida, antes que mulher tentasse chamar o filho outra vez. —
Vou esperar até que ele faça uma pausa.
Até lá, ela própria tentaria ordenar seus pensamentos confusos.
Onida assentiu e entrou na casa.
Mara adiantou-se um pouco, contornando uma mesa redonda que havia no pátio. O pintor estava traçando
uma faixa branca no fundo azul da ampla tela. Luke. A versão abreviada de seu nome era tão forte quanto ele mesmo
parecia ser. Os músculos de seus ombros largos flexionavam-se sob a malha da camiseta preta, e suas mãos eram
grandes e firmes. Os quadris estreitos e as coxas fortes estavam moldados por um jeans manchado de tinta, e
tinha os cabelos negros e lustrosos presos num rabo-de-cavalo.
Desligando-se estranhamente do imediatismo da situação, Mara imaginou-se soltando-lhe os cabelos,
afundando seus dedos por aquelas mechas negras, enquanto lhe caíssem pelos ombros largos e despidos. Podia
imaginar a cena acontecendo... Quase como se fosse uma lembrança. As emoções que a invadiram deixaram-na
assustada. Estremeceu e cruzou os braços em torno de si para afastar um súbito calafrio.
Nesse exato momento, encontrou o olhar de Naha, quando se virou subitamente da tela. Seus olhos negros
pareceram perscrutadores, os lábios mantiveram-se apertados numa linha tensa. Ele se aproximou.
— Quem diabos é você? O que está fazendo aqui?
Sem poder evitar, Mara viu-se recuando um passo. O tom de Naha era acusador, sua expressão hostil. Uma
onda de medo percorreu-a, ao mesmo tempo em que notava os traços marcantes daquele homem. Era másculo e
atraente, com as maçãs do rosto um tanto salientes, nariz reto, queixo forte e lábios de formato sensual. Os olhos
negros eram expressivos, destacando-se em seu rosto bronzeado, e continham um brilho enigmático. Ela imaginara
mesmo alguém com aquela aura de poder, mas pensara que o artista pueblo seria mais velho, não um tipo musculoso e
viril de trinta e poucos anos.
Ele fitou-lhe os olhos com insistência e elevou a voz.
— Eu perguntei; quem é você?
— Sou Mara Fitzgerald. — Por alguma razão, o tom exigente dele a fez lembrar-se da mesma pergunta que
lhe fora feita várias vezes no estranho sonho. Aliás, sentia-se como se estivesse sonhando agora. — Estava
querendo conhecê-lo. Sou a nova gerente da Goldstein e...
— A galeria? — Luke jogou o pincel de lado e avançou mais, sua postura ameaçadora. — Você deveria tratar
com meu agente. É para isso que eu o pago.
A pulsação um tanto acelerada, Mara retrucou:
— Sei disso.
Ele parou a uma distância de meros centímetros, continuando a encará-la.
O instinto impelia Mara a recuar mais, porém obrigou-se a manter-se firme no lugar. Não adiantara dizer a
si mesma que não o temia; a pele arrepiada em seus braços era prova que sim. Sentia que esse homem poderia ser
um obstinado e perigoso inimigo... Ou amante.
— O que está tentando provar? Acha que pode me pressionar a terminar os quadros mais depressa?
Mara teve que forçar uma resposta.
— Não exatamente.
Respirou fundo e soltou o ar devagar. Duvidava que alguém pudesse obrigar esse homem a fazer qualquer
coisa contra sua vontade. Ele de fato possuía uma presença forte, uma postura intimidante.
— Terminarei quando tiver terminado. Gilbert Armiyo deveria ter lhe dito isso.
— E disse. — Determinada a não deixá-lo perceber que se sentia intimidada, Mara endireitou os ombros e
ergueu o queixo, sustentando-lhe o olhar. — Sei que estou ultrapassando um pouco os limites vindo até aqui — Como
poderia lhe perguntar o que de fato queria saber...? Onde ele buscava sua inspiração? Suas próprias imagens o
obcecavam? — Bem, quero que saiba o quanto seu trabalho é importante para a galeria... Suas pinturas apresentam
uma visão única e fantástica desta região do país e...
— Tentando me lisonjear? Ótima estratégia, mas não vai lhe servir de nada.
— Não são elogios vazios — retrucou Mara, um tanto indignada. — Estou sendo sincera. E não sou a única
pessoa que aprecia seu trabalho. Você tem uma leal legião de admiradores. — Ela tentou ignorar que estava tendo

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dificuldade para respirar normalmente, que havia uma camada de suor frio em sua espinha. — Os colecionadores
ficam tão fascinados com a sua arte que alguns até acreditam que as figuras nas suas pinturas são místicas e se
movem pela tela.
De ameaçadora, a expressão de Luke passou, de repente, para surpresa.
— Figuras que se movem?
— Me disseram que elas trocam de lugar de tempos em tempos na pintura. — Relaxando um pouco por tê-lo
afetado de alguma forma, Mara prosseguiu. — Há uma espécie de mito envolvendo sua arte, uma aura de mistério...
Mas ele estava franzindo o cenho novamente. Seu tom soou ríspido, tornando a intimidá-la.
— Poupe as palavras bonitas. Não dou a mínima para o que as pessoas acreditam sobre o que há nas minhas
pinturas. E quero que se retire daqui. Neste minuto.
Que desperdício de tato e sinceridade, pensou Mara. Mas antes que pudesse objetar, Luke pegou-a pelo
braço e conduziu-a, não muito gentilmente. Levou-a em direção a um portão num dos muros, que dava para o
arvoredo lateral, dando a impressão que a grande casa era em L. Ela mal podia acreditar que estava sendo expulsa
daquela forma.
— Me solte! — A raiva dominou-a, sobrepujando qualquer receio anterior. Tentou libertar-se e o contato
entre ambos fez com que ela tornasse a se arrepiar. Porém, desta vez, a sensação nada tinha a ver com medo. Um
senso de intimidade e um inexplicável desapontamento a deixaram ainda mais furiosa. — Como se atreve!
Luke de fato a soltou quando se aproximavam do portão.
— Como você se atreve! Eu não a convidei a vir até a minha casa. — Ele fez um gesto para além do muro —
Seu carro está lá fora e a estrada principal fica a poucos minutos. Presumo que possa encontrar o caminho de volta
para Santa Fé.
Ela não se deu ao trabalho de responder, apenas virou-lhe as costas e aproximou-se mais do portão, a
cabeça erguida.
Mas Luke ainda não terminara.
— Ei, não vai me avisar sobre possíveis multas, um processo judicial, uma quebra de contrato?
Mara virou-se, fuzilando-o com o olhar.
— Quer que eu o ameace?
— Gostaria de um pouco de sinceridade, para variar.
Era óbvio que aquele homem não acreditava que alguém pudesse ser agradável ou sincero. Ela se aproximou
um pouco, sustentando-lhe o olhar, mas cautelosa para não se deixar arrastar pelo brilho poderoso que continha.
— Você merece ser levado ao tribunal se não cumprir os termos do seu contrato.
— Oh, é mesmo? — Luke cruzou os braços sobre o peito largo. — E você está preocupada com a possibilidade
de perder seu emprego, talvez? Foi isso que a fez vir até aqui?
Agora Mara estava desconfortável demais para mencionar suas verdadeiras razões... Não que ele fosse
acreditar.
— Não creio que se importe comigo, ou com meus motivos para vir aqui — respondeu, ríspida. —Da mesma
forma que não se importa com seus muito admiradores, as pessoas que colecionam seus quadros. Mas deveria. E se
você não produziu material o suficiente para manter os colecionadores interessados, ele comprarão obras de outros.
— Faço minhas pinturas para mim mesmo, não pelo dinheiro. — Descruzando os braços, Luke avançou mais um
pouco, olhando-a do alto, tornando-a mais uma vez consciente de sua aura de masculinidade. — De fato não me
importo com colecionadores.
Talvez não. Engolindo em seco, Mara olhou de relance para a casa confortável que, embora despretensiosa,
era, sem dúvida, muito mais bonita do que qualquer construção que tivesse visto por ali.
— Se não se importa com o dinheiro para si próprio, por que não usa algum para beneficiar outras pessoas da
reserva? Poderia mandar vários adolescentes para a faculdade, ajudá-los a encontrar um caminho positivo na vida.
O semblante de Naha endureceu.
— Minha família e meu povo não são assuntos seus.
Novamente, pegou-a pelo braço. Mas seu toque foi menos brusco, diferente desta vez. Surpresa, Mara o
encarou. De repente, era como estar hipnotizada pela proximidade de ambos. Os olhos negros de Luke Naha
continham mistérios em que ela poderia mergulhar. Cada um de seus dedos firmes parecia queimar em contato com
sua pele. Enquanto o hálito quente dele soprava-lhe os cabelos, como a carícia de uma pluma de encontro a sua

8
Sonhos do Coração Jeanne Rose
garganta, o coração de Mara disparava com uma ligação invisível que era primitiva e potente e tão especial quanto
uma vívida lembrança...
Ela desejava Luke e ele também, a queria.
Mara sabia disso até o fundo de sua alma.
Era como se ambos estivessem em suspenso no tempo. Uma eternidade pareceu passar antes que qualquer
um pudesse falar ou agir, pudesse se recobrar da corrente eletrizante que os envolvia. Enfim, uma expressão
estranha surgiu no rosto dele e a soltou tão abruptamente quanto se estivesse tocando ferro em brasa.
— Leve seu coração desapontado de volta para Santa Fé — disse, áspero, e se afastou.
Entre ofegante, confusa e perplexa, Mara lutou para readquirir a compostura. E o controle de seu corpo.
Uma espécie de calor continuou a percorrê-la por inteiro, embora Luke não estivesse mais tocando seu braço. Numa
inquietante combinação de inconveniente desejo e justificada hostilidade, tomou a se virar para o portão. |
— Espere! Luke, sua avó gostaria que sua visita ficasse.
Mais uma vez Mara deteve-se. Virou-se a tempo de ver Onida acenando e aproximando-se depressa pelo
pátio.
— O quê? — O pintor franziu o cenho e lançou um olhar inquiridor para a mãe. — Ela não é minha visita e não
quer ficar.
Obviamente embaraçada, Onida alternou olhares persuasivos entre ambos.
— Mas acabei de preparar um chá. Podemos tomar um pouco na mesa do pátio.
Mara estava surpresa com a nova virada dos eventos. Começou a elaborar suas próprias desculpas para sair
da situação constrangedora, quando notou a mulher de ar frágil e cabelos brancos, sentando-se numas das cadeiras
do pátio.
— Ela deve ficar, Luke — disse a velha mulher, sua voz forte e autoritária chegando até os três.
Outra vez, Mara foi invadida por aquele estranho senso de familiaridade... E uma compulsão para aceitar o
convite para o chá quase tão irresistível quanto à urgência em ter pegado o carro e ido até ali.

CAPÍTULO II
Enquanto se servia de um biscoito caseiro, Mara lançou um olhar para a avó de Luke. Por que a mulher
quisera que ela ficasse?, perguntou-se, intrigada. Logo notou que Isabel Joshevama era cega e que seus olhos
pareciam estar sempre direcionados para alguma cena distante em seu íntimo. Digna e bonita, apesar de sua idade
avançada, ela obviamente passará sua postura orgulhosa e a elegante ossatura de herança para o neto.
Mara também notou a polidez com que Luke entregava um prato de biscoitos à avó. Mas considerando que
ele era um kisi, de origem puebla, que pertencia a um povo que honrava e reverenciava os idosos, sabia que não
deveria ficar surpresa em ver que tratava a anciã com o devido respeito. Ele, em seguida, puxou uma cadeira para
perto do grupo, mas permaneceu em silêncio. Aliás, de tão absorto, sua companhia era um tanto desconcertante.
Mara não sabia o que esperar dele... Ou de si mesma.
Ninguém jamais a afetara tão depressa ou a nível tão profundo quanto Luke Naha fizera. Era algo que
transcendia o fato de ele ser um artista difícil de lidar; ou de estar zangada com seu comportamento rude.
Tratava-se de algo muito mais pessoal. Mais perturbador. Ela não podia explicar. Sua reação àquele homem
era intensa... E, de alguma maneira, assustadoramente familiar.
Onida sorria e servia o chá, enquanto falava um pouco sobre a culinária indígena e a espanhola. Ela parecia
ter uma personalidade mais expansiva e alegre do que sua mãe e seu filho, mas não possuía a presença marcante dos
dois.
— Você já esteve aqui antes? — perguntou Isabel a Mara, subitamente.
— Na reserva? Não.
— Eu quis dizer nesta região.
Sentindo-se como se Luke estivesse enxergando através dela, Mara fixou o olhar na velha mulher. Talvez
com algum esforço pudesse ignorar o poderoso efeito que ele lhe produzia.
— Não. É a primeira vez que visito esta região.
A resposta pareceu não satisfazê-la. Sua expressão circunspecta a fez parecer-se ainda mais com o neto.
Mara sentia-se como se estivesse sendo investigada sem muita sutileza.
— O que acha da mais recente pintura do meu neto?
As pinturas... A razão de ter vindo até ali.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Com o pulso se acelerando, Mara lançou um olhar para a tela no cavalete a alguns metros.
— A que ele está criando? Como suas outras pinturas, essa é surpreendente... Misteriosa, impressionante...
O tipo de imagem que aparece em sonhos.
Isabel franziu o cenho.
— Em sonhos?
Com uma expressão indecifrável, Luke dirigiu sua total atenção a Mara.
— Agora minhas pinturas fazem as pessoas sonharem? Pensei que tivesse dito que o mistério estava no fato
das figuras mudarem de lugar na tela quando ninguém está olhando.
— Segundo minha assistente na galeria.
Mas Isabel e Luke pareceram em alerta. O clima ficou carregado com tensão renovada.
Parecendo alheia a isso, Onida sorriu e disse ao filho:
— Sempre acho que cada pintura é ainda mais bonita que a anterior. Eu não saberia qual guardar e qual
vender, se dependesse de mim. Fico contente que seja você a tomar essas decisões. — Para Mara, acrescentou: —
Visito a Goldstein sempre que meu filho expõe uma nova coleção. Já faz algum tempo... Mas, claro, Luke tem andado
ocupado com os murais no centro comunitário.
— Murais?
— Ele está tentando tornar o centro um lugar mais bonito...
— Não leve em conta os murais — interrompeu Luke. — Sem desculpas. Se ela quiser me processar por
infração de contrato, ainda pode.
— Infração de contrato? — repetiu Onida, preocupada.
— Na verdade, não estou processando ninguém. Ao menos não ainda... — murmurou Mara, querendo voltar ao
assunto das pinturas e dos sonhos.
Mas Onida ficara visivelmente tristonha.
— Meu filho tem andado tão ocupado... E ainda houve a morte de Victor Martinez. Ele era um ancião do
nosso clã.
— É o bastante. — Luke tocou o braço da mãe com gentileza para suavizar o tom de sua ordem.
— Não, não é — retrucou Mara. Virando-se para Onida, disse: — Lamento por sua perda. — Depois tornou a
virar-se para o pintor. — Eu quero desvendar esse... Mistério em torno de seus quadros. Era sobre isso que eu
realmente queria conversar. As imagens que você retrata têm algo a ver com o misticismo do clã kisi? Elas se
tornam uma espécie de obsessão para você, entram nos seus sonhos?
Mais uma vez, ela atraiu a atenção de Isabel e do neto. Pareceram atônitos, em especial Luke. E de repente
Mara se perguntou se ele também andara tendo pesadelos semelhantes aos seus. Seria essa a razão de se manter
tão isolado e pouco amistoso? Era por isso que ela sentia aquela misteriosa ligação?
Luke levantou-se.
— Não quero falar sobre sonhos... Nem sobre qualquer outra coisa. — Lançou um olhar de relance a Isabel.
— Acho que até minha avó vai concordar comigo que já é hora de você partir.
A velha mulher não disse nada. Onida amassou um guardanapo de papel e largou-o na mesa.
— Você está sendo grosseiro, meu filho.
— E não é grosseria aparecer na casa dos outros sem ser convidado?
Desapontada, uma vez que mal falara sobre o assunto que tanto a intrigava, Mara não estava disposta a
discutir mais. A tensão realmente a apanhara. Colocando a alça da bolsa no ombro, afastou sua cadeira para trás.
— Está ficando tarde. Devo mesmo ir andando. — O sol começava a se pôr no horizonte. Dirigiu-se a Onida:
— Obrigada por sua hospitalidade.
— Você voltará aqui? — indagou Isabel inesperadamente.
— Não sei ao certo. — Embora Mara não tivesse certeza que aquilo fosse um convite, fez questão de
acrescentar: — Agradeço por ter perguntado.
Ela odiava ter que descer ao nível de hostilidade de Luke Naha, mas não pôde contar um comentário áspero,
enquanto a acompanhava pelo portão e em direção ao carro.
— Não precisa me expulsar pelo braço desta vez.
—Não tenho a menor intenção de tocar em você — retrucou ele, embora sua expressão tensa parecesse
negar as palavras.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Quase estremecendo ante a idéia daquela mão forte tocando-a novamente, Mara deteve-se à sombra do
arvoredo.
— Você tem pesadelos estranhos, não é?
Luke parou abruptamente e a encarou. Ela pôde ouvir-lhe a respiração um tanto acelerada e soube que
tocara num ponto fraco.
— Pois eu lhe digo — prosseguiu, num tom casual, apesar do coração disparado. — Também tenho pesadelos.
Foi essa a verdadeira razão de ter vindo aqui. Sonhei com uma de suas pinturas. E foi algo tão vívido, tão forte...
Bem, fiquei assustada.
— Esqueça.
— Não consigo esquecer.
— Precisa ter cuidado, mulher branca — disse ele, com uma expressão indecifrável. — Há coisas no Universo
que não se encaixam em suas normas certinhas.
Em seguida, Luke virou-se abruptamente e deixou-a sozinha nas sombras, a pulsação veloz. Estava ainda mais
assustada... A reação que aquele homem quisera lhe produzir, claro. Olhou ao redor antes de entrar no carro. Uma
brisa suave sussurrava por entre as folhas das árvores, e as colinas ao longe cintilavam com cores vibrantes. A luz
natural parecia ainda mais límpida e brilhante ali do que em Santa Fé.
Enfim, sentando-se ao volante, perguntou se Luke Naha seria assim tão rude e hostil quanto queria fazê-la
acreditar. Ela não chegara a se sentir ameaçada fisicamente, mas ele desempenhara um excelente papel em brincar
com seus temores mais íntimos.
Embora aliviada pela luz do dia e por seu estado consciente, a bizarra atmosfera de seu sonho a havia
seguido até o território kisi... Um clima misterioso que a assustava e fascinava ao mesmo tempo.
Como o próprio Luke.
O pensamento a levou a ponderar sobre a estranha química que surgira entre ambos. Era algo que ia além do
físico. Suas emoções pareciam ter vindo à flor da pele. Como podia ser tão emotiva a respeito de um completo
estranho.
Absorta, foi dirigindo rumo à entrada da reserva, passando pela mercearia de Tom Chalas, agora fechada,
seguindo pela praça central. Como de costume em áreas montanhosas, não demorou a escurecer. Os faróis não
seriam má idéia; ainda assim, hesitou em ligá-los antes de chegar à estrada principal.
Vários metros abaixo, os fachos de luz iluminaram algo branco, à beira da estrada sinuosa, e Mara pisou nos
freios, seu coração disparando. Algum animal que fora atropelado? Detestava acidentes. Mas sentiu-se impelida a
olhar, de qualquer maneira. Observando pela janela ao passar, viu que tratava-se de uma ovelha... Com a garganta
dilacerada.
Na certa, um coiote, em vez de um carro, matara a pobrezinha. Mas à luz do dia? E tão perto da reserva
indígena?
Tomou a acelerar e prosseguiu, procurando apagar de sua mente à cena lamentável que acabara de ver e dar
outro rumo aos pensamentos.
Por serem belíssimos, além de rentáveis, esperava que os quadros de Luke continuassem a ser negociados
pela Goldstein. Mas pessoalmente, ela já tivera mais do que o bastante de mistério e misticismo kisis para o resto
da vida, sem mencionar do próprio Lucas Naha...
Só esperava que suas pinturas ficassem bem longe de seus sonhos.

No início da noite, uma lua crescente elevava-se sobre as Montanhas Nascimiento, enquanto ele chegava a
seu destino: uma cabana construída junto à lateral de uma colina rochosa. À frente, havia uma fogueira crepitante, o
brilho alaranjado de suas chamas parecendo um presságio do mal que ele buscava controlar.
Lançando um olhar para as luzes do povoado kisi, alguns quilômetros ao longe, estacionou seu veículo na
estrada de terra que levava à cabana. Desceu depressa e aproximou-se da fogueira.
— Olvera! — chamou.
Um índio yaqui, com o rosto marcado de cicatrizes, surgiu por detrás das chamas que estava avivando com
um pedaço de madeira.
— Então... Você voltou.
— Quero aprender tudo.
Olvera riu.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Tem dinheiro o bastante para "tudo". O poder não custa barato.
— Tenho dinheiro, feiticeiro, não se preocupe.
O yaqui tomou a rir.
— Terei grande satisfação em trabalhar com um kisi. Eles vivem se vangloriando de sua antiga sabedoria.
— Não quero ir tão longe. Levaria tempo demais. — Não que ele não tivesse alguma habilidade. — O que
quero é destruir meus inimigos antes que eles me destruam. — Como também lidar com invasores como a mulher
branca que viera se intrometer ali hoje. Tirou uma nota de cem dólares do bolso. — Aqui está o primeiro pagamento.
— Combinado. — Os olhos do yaqui brilharam ao pegar o dinheiro. Guardou-o no bolso e tirou dali alguns
gomos de cactos, fazendo-os rolar em sua palma. — Você tem a ira necessária. Tudo o que precisa é dos meios para
conseguir o que quer.
— E isso aí resolverá? — indagou ele, observando os gomos de mescal, potente alucinógeno usado em rituais
primitivos.
— Um coiote não consegue matar uma ovelha?
Ele acompanhou o yaqui na risada desta vez. Tinha confiança na sua escolha para mestre... Olvera era
conhecido como um perigoso feiticeiro, capaz de dominar as forças do mal.
Embora tivesse um medo justificável dele, não se sentia culpado por usar os conhecimentos de Olvera como
um atalho para dominar a magia dos kisis. Por que não escolher o caminho mais fácil? Não se importava nem um
pouco com sonhos de sabedoria e espíritos ancestrais. Sua raiva e revolta haviam dissipado essas bobagens.
Olvera tomou a guardar os gomos de cactos no bolso.
— O momento para isto chegará em breve. A feitiçaria é mais poderosa quando a lua está cheia. — Sentou-
se em frente à fogueira. — Enquanto isso, posso lhe dar outras sugestões.
O kisi assentiu e sentou-se ao lado do yaqui, observando as chamas, ouvindo com atenção, enquanto o outro
índio lhe dizia o que fazer.

Anoitecera há muito quando Luke despertou de um sono agitado. Levantando-se, deixou suas dependências
pessoais na grande casa em L e saiu para o ar fresco. Tendo pintado desde o amanhecer daquele dia, estivera
exausto e recolhera-se a seu quarto ao entardecer para um cochilo. Agora era tarde da noite. Obviamente dormira
mais que o planejado, perdendo o jantar. Não que sua mãe não tivesse deixado alguma coisa a sua espera no forno,
estando acostumada aos seus horários irregulares. Ele atravessou o pátio murado em direção ao portão.
Sonhos. Não podia acreditar que Mara Fitzgerald tivesse mencionado esse assunto durante a visita daquela
tarde. Tinha certeza que haviam sido a insistência e a estranha percepção dela que o tinham intrigado e provocado-
lhe o sono agitado... Embora, tomara, não tivesse feito mais nada enquanto dormira.
Do outro lado do portão, seu jipe comanche estava estacionado no mesmo lugar. Ao menos, pelo que podia
dizer, ele não se levantara para dirigir o veículo até algum lugar, em sonambulismo, ou em algum bizarro estado
mental da magia kisi... Algo que já acontecera algumas vezes antes.
Pesadelos. Nem queria pensar a esse respeito. Saindo, passou pelo pequeno arvoredo e andou mais um pouco,
inalando o ar puro da noite, suas botas ressoando na estradinha de cascalho. Ao longe, avistou um facho de luz na
direção do centro comunitário. Devia ser algum tipo de reunião. Não que tivesse sido convidado. Quando concordara
em pintar os murais para o centro, por insistência de sua avó, os outros moradores da reserva haviam se mostrado
amistosos por um certo período. Mas, então, algumas pessoas haviam insistido em tentar ajudar, e a crescente
exasperação dele o livrara desse inconveniente. Agora trabalhava sozinho no projeto, como gostava.
Não era do tipo sociável, nem tinha inclinação para seguir normas tribais ou de um clã. Não se identificava
com a comunidade kisi, e esta se ressentia com ele por ser um recluso inveterado.
Aliás, se soubessem o que o trouxera de volta à reserva, sentiriam bem mais do que mero ressentimento.
Teriam pavor de Lucas Naha se fizessem idéia do porquê de ter deixado o Arizona... Talvez fosse o responsável pelo
fogo que destruíra seu lar lá, há vários anos.
Refletindo a esse respeito, começou a caminhar de volta para casa e passou em frente a um vizinho. Um
rosto perplexo espiou de uma das janelas, avistou-o e as cortinas foram fechadas depressa. Eram azul-turquesa,
uma cor destinada a afastar o mal.
Talvez a comunidade o temesse, afinal.
Às vezes, Luke se perguntava por que voltara para seu povo. Adorava sua mãe e sua sábia avó, mas, como
muitos jovens que partiam da reserva, não desejava levar um estilo de vida tradicional kisi.

12
Sonhos do Coração Jeanne Rose
Talvez tivesse retomado simplesmente porque precisara de um lugar para se refugiar.
Luke entrou em casa de volta pelo pátio, seguindo diretamente para a cozinha, que era pegada ao quarto da
avó. Uma vez que Isabel se recusara a abandonar seu antigo lar, ele mandara construir a nova e espaçosa casa em L
a partir desse cômodo e cozinha originais.
Sendo uma viúva que estivera vivendo num trailer, sua mãe apreciara ter uma casa de verdade com que se
ocupar novamente, e Luke reservara uma ala da ampla construção para seu próprio uso. Ficava satisfeito com o fato
de poder sustentar sua família com sua arte, embora não estivesse disposto a lamber as botas de ninguém para
receber o dinheiro por suas pinturas... Nem mesmo as botas pertencentes a uma linda mulher.
Ainda estava zangado com o fato de Mara Fitzgerald ter vindo até sua casa e perturbado a todos, em
especial a ele.
Ficava furioso consigo mesmo por ter se sentido tão atraído por aquela mulher.
Lembrava-se com desconcertante nitidez da intensidade dos olhos dela, tão azuis quanto o céu do Novo
México; do rosto, cujos traços perfeitos e delicados seduziam um artista a querer reproduzi-los numa tela; dos
cabelos castanho-claros, uma cascata de mechas sedosas caindo-lhe até os ombros, como num convite ao toque.
Ainda agora, podia sentir a urgência que fizera querer beijá-la, estreitá-la em seus braços...
Droga! Por que aquela estranha era capaz de lhe despertar sentimentos tão fortes e confusos? Fora quase
como seja a conhecesse, como se tivessem partilhado de um passado juntos...
O desejo que continuava percorrendo suas veias, como uma espécie de febre, parecia algo mais poderoso do
que a mera atração física por uma mulher sexy e bonita.
Com um profundo suspiro, forçou-se a tirar a perturbadora beldade de sua mente, ao menos por um pouco.
Pensaria nela bem mais tarde, quando tivesse se recolhido outra vez a seu quarto.
No momento, os convidativos aromas da cozinha o deixavam com água na boca. Encontrou um assado no forno
e, estando prestes a se servir, ouviu vozes vindo da sala de estar.
Encaminhando-se até lá, viu que havia dois visitantes. Rebecca Harvier estava sentada no sofá ao lado de sua
avó, as mãos torcendo-se no colo, enquanto sua mãe achava-se numa postura um tanto tensa na cadeira de balanço,
de frente para as duas senhoras.
Charlie Mahooty estava de pé, próximo ao centro da sala, obviamente tendo aparecido sem ser convidado,
uma vez que ninguém na casa gostava dele.
— Vou ser o novo líder dos kisis. Todos vão votar em mim, em especial com todas essas coisas estranhas
acontecendo.
— Coisas estranhas? — Luke franziu o cenho. Se havia alguém com quem antipatizava na reserva, era esse
brutamontes. Como o sujeito ousava vir até ali e dar ordens? — Se por estranhas, está querendo dizer ruins, eu
culparia a você.
Mahooty apertou os lábios.
— Eu não faço luzes de feitiçaria flutuarem acima da igreja à noite, Naha. Nem hipnotizo um grande coiote
amarelado com olhos brilhantes. Ele matou uma ovelha hoje, em plena luz do dia. — Ele lançou um olhar a Isabel e
Rebecca. — Alguém está praticando magia negra.
— Anciões sábios não praticam o mal — respondeu Isabel. — Apenas buscam mais sabedoria. Tentam curar.
— Bem, talvez vocês duas estejam velhas demais para conseguirem se controlar — retrucou Mahooty.
— Talvez fosse melhor aposentarem os seus poderes.
Rebecca o fuzilou com o olhar por trás das lentes de seus óculos.
— Que sacrilégio! Ninguém nunca é velho demais para ser uma "pessoa pronta". — A voz dela tremia de
indignação. — Nem você, nem as pessoas que o seguem têm respeito pelas tradições kisis. Não é de admirar que não
aconteçam mais cerimônias no nosso templo.
Referia-se à câmara subterrânea onde as mais sagradas estatuetas, simbolizando espíritos sábios e
divindades, eram mantidas; o templo sempre fora o santuário supremo dos kisis, como acontecia em todos os clãs
derivados dos pueblos.
— Além do que, ninguém pode ser tomar um líder sem a aprovação dos anciões — acrescentou Isabel.
Mahooty não se abalou.
— Talvez as leis estejam prestes a mudar. A polícia da nossa reserva me nomeou capitão. E vou promover
uma votação amanhã ao meio-dia. As pessoas vão revisar as velhas leis e dizer quem deve ser o líder. Elas vão dizer.
Isabel levantou-se para enfrentar o homem. Sua voz soou ríspida.

13
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Porque temem você, Charlie Mahooty. Mas seu poder é pervertido...
Embaraçado, ele interrompeu-a de imediato.
— Não me diga o que fazer, velha. E você não sabe nada sobre meu poder.
— Ora, você é um velho corvo decadente que...
Foi tudo o que conseguiu dizer antes que Luke o pegasse pelo colarinho.
— Não fale com desrespeito com minha avó, nem com Rebecca — ordenou-lhe, olhando-o de cima, sendo o
outro um pouco mais baixo do que ele. — Ou vai se ver comigo.
— Sossegue, Naha. — Mahooty desvencilhou-se, embora houvesse medo em seus olhos. — Por que se importa
com o que os kisis decidem fazer? Você é rico... Pode se mudar para Santa Fé.
— Mas não é o que quero. Vamos ficar aqui. — Luke apontou para a porta. — E você vai sair desta casa agora
mesmo.
Ele seguiu-o, enquanto o pesado homem se afastou pelo corredor, a segunda pessoa que conduzia para fora
de sua propriedade naquele dia.
Ao sair, Mahooty virou-se para acrescentar:
— E melhor olhar por sua avó, Naha, prestar atenção para que não se afaste muito daqui. Ela poderia cair de
uma colina numa noite dessas... — Ele riu.
Furioso, Luke avançou para o outro. Ao mesmo tempo, Mahooty se afastava depressa e Onida vinha correndo
até a porta.
— Por favor, meu filho, nada de brigas!
— O sujeito ameaçou minha avó. — Ele se deteve; tinha a respiração acelerada, os punhos cerrados. — Eu
devia lhe quebrar as pernas. — E talvez o pescoço também.
— Mahooty é um tolo. Não vale a pena se enfurecer por causa dele. Por favor, não quero perder mais
ninguém numa briga.
Onida estava se referindo à forma como o pai de Luke havia morrido num bar em Phoenix. Ele atendeu ao
tom de súplica da mãe. Respirando fundo e soltando o ar devagar, virou-se e tornou a entrar na casa. Precisava
aprender a controlar seu temperamento explosivo.
Quem saberia do que era capaz quando estava com raiva ou fora de si? Nem mesmo ele...
Um pouco mais tarde, Rebecca saiu; Luke acompanhando-a pela estrada escura até a casa situada perto da
sua. Ao voltar, ele deu uma boa olhada ao redor, não vendo nem coiotes, nem luzes flutuando, como bolas de fogo
criadas por feitiçaria.
Não que precisasse vê-las para acreditar que havia algo errado acontecendo na comunidade ultimamente.
Podia não ser arraigado aos costumes kisis, mas o treinamento de "busca" pelos sonhos, na sua infância, e os
poderes de sua avó, haviam lhe mostrado que existiam vários níveis de realidade.
Níveis que não tentava mais entender e que esperava não terem nada a ver consigo mesmo.
Retomando à casa, seguiu direto para a ala de suas dependências. Sentou-se no ateliê e deteve-se a
contemplar sua mais recente pintura. Um ruído no corredor anunciou a aproximação de alguém. Ele soltou um suspiro
de alívio quando viu Isabel surgindo à porta.
— Parece cansada, avó — disse-lhe, no instante em que ela sentou a seu lado no sofá. — Tem passado tempo
demais em seu "lugar de sonhos", quando deveria estar descansando.
— Alguém tem que fazer isso, Mestre da Tempestade. — Apenas Isabel o chamava pelo nome sagrado que
ele adquirira em sua cerimônia kisi de maioridade.
— Mahooty estava certo sobre o fato dos antigos costumes estarem desaparecendo. Rebecca e eu somos as
únicas sacerdotisas que restaram, as únicas "pessoas prontas". E não há mais nenhum sacerdote, agora que Victor
Martinez está morto.
— Talvez os velhos costumes devam desaparecer — murmurou Luke. Não que quisesse que alguém como
Mahooty os destruísse.
— Você deixaria que o mal acabasse com o bem, Mestre da Tempestade? Tem que haver um equilíbrio. Os
espíritos confiaram a nós responsabilidades sagradas — declarou Isabel, solene. Respirou fundo ao revelar: —
Alguém invadiu meu "lugar de sonhos".
O local sagrado que Isabel via quando meditava, em busca da sabedoria, que era inspirado num lugar real que
ela sempre amara... A Colina Vermelha. Apenas o povo kisi sabia como "transportar-se" nos sonhos.
Somente uma "pessoa pronta" deveria ter o poder para entrar nos sonhos ou nas visões dos outros.

14
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Quem?
A voz da anciã tremeu.
— Quando exigi um nome, o intruso não respondeu. — A expressão dela se anuviou. — Não acredito que
Victor Martinez tenha morrido de causa natural.
Um calafrio percorreu a espinha de Luke e seus músculos ficaram tensos.
— Não acredita que ele tenha tido mesmo um ataque cardíaco durante o sono?
— Acredito que Victor tenha sido apavorado até a morte... Por alguém com poder para entrar em seu sonho e
criar imagens horrendas. Talvez Charlie
Mahooty.
Agora Luke estava de fato preocupado. Se alguém com o péssimo caráter de Mahooty tivesse essas
habilidades kisis e as guiasse para o mal, ninguém estaria a salvo. Lembrou-se da ameaça de sua avó poder cair de
alguma colina...
— Por que não me contou isso antes? — indagou, contrariado.
— Eu queria encontrar as palavras certas para lhe pedir o que devo.
Luke sentiu uma opressão no peito. Sabia o que a avó iria lhe pedir.
— Quero que volte a "buscar" nos sonhos, Mestre da Tempestade. Sempre teve essa habilidade. Você
próprio poderia ser um sacerdote se quisesse.
— Eu nem sequer possuo um "lugar de sonhos".
Sem mencionar que ele tinha um grande problema com a fé. Não "buscava" um sonho, uma visão, desde a
adolescência... Quando vira algo sombrio e apavorante dentro de si mesmo. Na época em que se mudara da reserva
com sua família, afastando-se da tradição kisi, ficara imensamente aliviado.
Mas durante toda sua vida, sonhos estranhos o acompanharam. Pesadelos dos quais nem sempre fora capaz
de se lembrar. Pesadelos, como também incidentes, envolvendo fogo, violência e destruição...
— Mestre da Tempestade, a mulher que esteve aqui hoje...
— Mara Fitzgerald? — O maxilar de Luke se retesou enquanto o nome instantaneamente evocava a imagem.
— Veio aqui sem ser convidada. Estava apenas tentando apressar minhas pinturas.
— Havia algo mais nessa visita, algo oculto. E isso me preocupa. Eu pressenti... Foi por isso que lhe pedi que
ficasse, embora você parecesse contrariado com a presença dela. Mas essa moça falou com tanta veemência sobre
sonhos. Por quê? Será que ouviu sobre as lendas dos kisis?
— Não faço idéia. Não sei nada a respeito dela. Aliás, hoje foi a primeira vez que a vi. — O estranho era que
algo em seu íntimo contrariava a verdade dessa última afirmação.
— Acha que ela tem alguma ascendência indígena?
Uma nova incerteza dominou-o, mas ele disse:
— Não creio. Tem a pele muito branca.
— Sua mãe comentou que Mara é muito bonita.
Sim, linda, pensou Luke. E tinha que admitir que se sentira atraído, mesmo não gostando dela.
— Tem olhos castanhos?
— Azuis. Essa mulher não tem uma única gota de sangue indígena, estou certo disso. — Não estava?
Isabel suspirou.
— Mais um mistério... Bem, Mestre da Tempestade, você é bem-vindo ao meu "lugar de sonhos". Você é do
meu próprio sangue. Não podemos perder tempo.
Mais um calafrio. A ameaça de Mahooty ainda preocupava Luke. Passou um braço pelos ombros de Isabel;
eram tão delgados e frágeis. Seu espírito era forte, mas ela não viveria para sempre. Contudo, ninguém que
tentasse levá-la antes de sua hora!
— Ninguém lhe fará mal, minha avó. A menos que queiram se ver comigo.
— Então, vá até Colina Vermelha e busque por alguma informação em seus sonhos — disse ela. Como o neto
não respondesse, ficou um tanto agitada. —Vai fazer o que lhe pedi?
Luke suspirou.
— Sim.
Concordou, apesar de não fazer idéia do que pudesse acontecer. Abraçou sua avó e observou-a saindo.
Depois olhou pela janela mais próxima para a noite silenciosa. Talvez também acabasse olhando para sua própria
alma.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Um recanto escuro e misterioso que estivera evitando há anos. Não tinha certeza se queria descobrir o que
havia exatamente dentro de si, que coisa terrível talvez o tenha levado a destruir sua esposa e seu filho pequeno.
Nunca tivera a habilidade para controlar seu poder interior. Se o mal pairava sobre o povo kisi, ele só esperava que
não fosse causado pela escuridão que vivia dentro de si.

Um raio de luz insistente fez com que Mara abrisse os olhos. Descobriu-se deitada no chão de um amplo
cânion. Novamente. Pois já havia estado ali, enrolada no mesmo lençol.
Ao menos desta vez estava usando uma camisola.
Levantou-se, o coração aos saltos, embora lutasse para controlar a sensação de pavor que a invadia.
O sol estava se pondo. As montanhas ao longe eram azuladas, os arbustos e outros tipos de vegetação
rasteira escurecendo-as em alguns trechos com gradações de verde-acinzentado. O solo do cânion era árido, de
terra vermelha. Tornou a olhar em volta em crescente nervosismo.
A noite não demoraria a cair. Não queria estar naquele assustador cânion quando escurecesse por completo.
Penhascos íngremes circundavam o lugar, como predadores à espreita. A brisa soprava como medonhos sussurros.
— Olá? — gritou ela. — Há alguém aí?
Onde estaria a índia?
A pergunta ecoou em sua mente como que por vontade própria. Começou a andar, hesitante, os arredores
oscilando de forma incomum. De repente, corria para longe, seus pés vencendo a terra e os pedregulhos com uma
velocidade que a deixava sem fôlego, os arbustos rasteiros ao redor passando como borrões.
Uma colina avermelhada de repente ergueu-se à sua frente e, no instante seguinte, estava em seu topo
plano, olhando para a paisagem abaixo. O sol continuava a se pôr. Uma estrela cintilou no céu que escurecia, mas sua
luz distante era fraca demais.
— Olá! — gritou, desesperada.
E, subitamente, passos atrás de si a fizeram congelar no lugar. Virou-se depressa, o coração aos saltos.
Deparou com o peito desnudo de um índio, cabelos soltos e lustrosos caindo-lhe até os ombros largos.
Embora fosse alto e bonito, sua expressão sombria a assustou, os olhos de veludo negro enxergando através dela.
— Você — bradou ele, a única palavra contendo tanto reconhecimento quanto acusação. — Venha até aqui.
Mara recuou.
— Pare — ordenou ele. — Tenho esperado por muito tempo.
Tempo demais.
Havia um anseio... Profundo, pungente... Que sobrepujava o medo. Os olhos dela ficaram marejados. Os
lábios se entreabriram, mas não conseguia falar.
O estranho, que ao mesmo tempo não o era, aproximou-se. Mantinha-se silencioso, os músculos dos braços e
peito ondulando. Os lábios um tanto trêmulos com emoção contida.
— Você — repetiu antes de puxá-la para si.
Estreitando-a de encontro a seu corpo, ele percorreu-lhe o corpo com mãos possessivas, como se ela lhe
pertencesse, como se quisesse memorizar cada centímetro de pele. Mara não resistiu. Não conseguia. A
familiaridade que sentia em relação àquele homem a impedia de lutar. Ele pousou a mão em sua nuca de forma que
erguesse o rosto.
Os dedos eram tão fortes que ela soube que poderia torcer-lhe o pescoço e matá-la num instante se
quisesse.
Mas em vez disso, ele se apoderou de seus lábios num beijo sôfrego, impetuoso.
De repente, Mara se deu conta de que não se tratava de um índio qualquer, sem nome. Reconheceu-o. Estava
nos braços de Lucas Naha.
Mas Luke era também um... Um outro alguém... Seus pensamentos ficaram confusos, na medida em que a
própria paixão tomava conta de seu ser, vindo à tona com incrível intensidade. Suspirando, acompanhou-os nos
movimentos eróticos de seus lábios e língua, abraçou-o pelo pescoço, puxando-o mais para si. Sob o tecido fino da
camisola, seus mamilos se enrijeciam em contato com o peito desnudo dele, fazendo-a mergulhar num misto de
sensações.
Luke soltou um gemido abafado, afastou-lhe o lençol das costas, jogando-o de lado. Depois ergueu-lhe a
camisola de seda e renda branca até a altura dos ombros. Deslizou as mãos por sua pele nua. Mara podia sentir-lhe a

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
prova do desejo de encontro a seu ventre, a peça de tecido que ele usava em torno da cintura a única barreira entre
ambos.
Ela o queria, o desejava com todas as suas forças, de coração e alma. Afastou-se um pouco do abraço para
que Luke pudesse afagar seus seios. Acariciou-os demoradamente, massageou-lhe os mamilos com os polegares.
Mara estremeceu de prazer, ofegando, seus joelhos fraquejando.
Entendendo sua urgência, ele a fez deitar no chão, continuando a beijá-la com ardor, a acariciá-la. Suas
línguas se entrelaçavam, o peito de cada um arfando. Ele, então, afagou-a com intimidade, até que Mara lhe
suplicasse para que a possuísse.
Ele entendia, embora ela sussurrasse palavras estranhas e incompreensíveis. Respondeu-lhe no mesmo
idioma desconhecido e começou a remover o tecido ao seu redor para que pudessem se tomar apenas um...
Um idioma estranho.
Um homem familiar.
Mas familiar agora?
Ela se afastou um pouco, ergueu a parte superior do corpo e apoiou-se no cotovelo para estudar o rosto
dele... De Luke Naha. Mais uma vez teve a forte sensação de que se tratava também de um outro alguém... E de que
ela própria era outra pessoa... Alguém que não podia se lembrar de seu verdadeiro nome.
Impaciente, ele tornou a deitá-la no chão, murmurando mais palavras ininteligíveis, num tom rouco e
ardoroso.
Um súbito medo invadiu as brumas de paixão em que Mara se encontrava. Luke era tão forte, tão dominador
que ela se retraiu.
— Espere.
Ele a ignorou até que ela empurrou-lhe o peito para afastá-lo.
— Eu pedi para esperar. Isto está indo depressa demais.
Embora Luke permitisse que o afastasse, um brilho furioso cintilava em seus olhos negros. Então, levantou-
se, e parte da tensão que se apoderava de Mara dissipou-se... Até que ele deu um passo atrás e depois outro,
recuando rapidamente enquanto sua imagem começava a se desvanecer.
— Espere! — gritou Mara, desta vez com desespero para sentir de novo o toque dele. Como que furioso com
a própria relutância dela em vê-lo se afastando, Luke desapareceu nas sombras projetadas na colina.
— Não me deixe!
Mas era tarde.
Após olhar ao redor freneticamente por alguns momentos, ela se encolheu no chão e não pôde conter um
pranto convulsivo. Porque estava confusa, assustada.
E tão sozinha...
Mara acordou soluçando, o coração disparado, lágrimas rolando em abundância por suas faces. A camisola
branca estava embolada ao redor de seus ombros. Tinha o corpo banhado em suor e também sentia-se
embaraçosamente excitada.
Estaria enlouquecendo?
Erguendo-se da cama, ajeitou a camisola de seda de volta sobre o corpo e levantou-se com pernas trêmulas.
Este sonho fora ainda mais impressionante do que o anterior, com pensamentos confusos e emoções fortes...
Desejo, medo, paixão, sofrimento.
Sofrimento?
Mara não tinha certeza de onde viera esse sentimento em específico, nem tampouco o idioma
incompreensível.
Por outro lado, estava certa de que fora com Luke Naha que quase fizera amor.
Primeiro fora a pintura dele... E agora o próprio artista invadia seus sonhos. E Mara o quisera, ansiara por
seu toque.
Um amante de sonhos.
Pois ela sabia que teria sucumbido se o homem em sua tórrida fantasia noturna tivesse prosseguido com sua
sedução, se não tivesse ficado tão furioso quando lhe pedira que esperasse que até desaparecera de seu raio de
visão.
Ansiava por um estranho... Pelo familiar e desconcertante mar de sensações que lhe despertava.
Que poder esse homem exercia sobre ela?

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Sonhos do Coração Jeanne Rose

CAPÍTULO III
Luke despertou de seu transe ao amanhecer, com o sol surgindo acima das montanhas ao longe. Respirando
fundo, inundou os pulmões com o ar puro e fragrante da manhã e tentou ignorar o desconforto físico causado pelo
desejo não saciado.
Que grande sábio era... Enviado para ir em busca de uma visão elevada, a fim de ajudar sua avó, acabara
tendo um sonho erótico de adolescente.
O único progresso era que agora podia dizer a Isabel quem invadira o "lugar de sonhos" dela. E tal revelação
certamente a deixaria atônita.
Ele mesmo ficara perplexo, além do misto de outras sensações e lembranças formando um turbilhão em sua
mente...
Mara Fitzgerald deitada sob seu corpo, a pele macia e acetinada arrepiando-se com o contato de suas mãos,
os lábios cheios e rosados se entreabrindo para receber seus beijos...
Bastava. Já precisava de um banho frio.
Com os músculos tensos por ter ficado sentado na mesma posição por tanto tempo, levantou-se, atravessou o
topo da Colina Vermelha e desceu facilmente por uma trilha, numa das laterais íngremes. Seguiu depressa de volta
para casa. Planejava entrar diretamente em suas dependências. Não queria conversar com ninguém até que tivesse
se acalmado e ordenado as idéias.

Como Luke esperara, a avó demonstrou puro choque quando se reuniram mais tarde naquela manhã para
conversarem, em seu ateliê.
— Então, era essa mulher branca que estava no meu "lugar de sonhos". — A mão de veias azuladas da anciã
apertava o braço do sofá. — Eu... Bem que tive uma impressão incomum em relação a ela, mas não achei que isso
fosse possível.
Luke tocou o ombro frágil da avó, tentando confortá-la.
— Eu a vi. Mara Fitzgerald estava usando até o tal lençol listrado que você descreveu. — Lençol que ele havia
lhe arrancado.
— Uma mulher branca... O que isso significa? Apenas os kisis são capazes de se "transportarem" nos sonhos.
E somente os sábios... Ou, então, os espíritos muito espertos do mal... Feiticeiros — declarou Isabel, com voz
trêmula.
Mara não era nenhuma feiticeira; disso Luke tinha uma instintiva certeza.
— Não senti nenhum mal nela — respondeu, com franqueza. Apenas medo e paixão.
— Me conte sobre a visão, cada detalhe.
Bem, isso precisaria de certa elaboração, ponderou Luke, recostando-se em sua cadeira.
— Ela... Apareceu na Colina Vermelha, com o lençol listrado ao seu redor...
— E então?
— Também estava usando uma camisola branca. — Uma peça delicada de renda e seda que ele quase retirara
por cima da cabeça de Mara. De qualquer forma, contemplara-lhe todo o corpo curvilíneo... Seios perfeitos, quadris
arredondados, pernas bem-torneadas e longas. O desejo se renovou e tratou de reprimi-lo. — Ela me viu... E pareceu
surpresa.
Parecera tão atônita quanto ele se sentira e também estranhamente familiar, como se já tivessem se visto
mais de uma vez antes.
— Mestre da Tempestade! — O tom severo de Isabel tirou-o das divagações. — A mulher disse alguma
coisa?
— Sim, mas nada que eu pudesse entender. Na verdade, parecia estar falando um dialeto kisi.
No qual ele não era nenhum especialista. Sempre se sentira com sorte quando pudera entender as palavras
ditas por sua avó ou outros anciões durante cerimônias religiosas.
— Kisi. — Isabel inclinou-se para a frente, o cenho mais franzido. — Ainda assim, você não acredita que ela
seja uma feiticeira? Luke, você está me omitindo algo. Posso sentir.
Ele não estava propenso a entrar em detalhes mais vívidos com sua avó.
— Não sei por que essa mulher entrou no meu sonho — insistiu, sabendo que soava na defensiva. — E nem sei
como. Simplesmente apareceu lá. Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Bem, uma coisa é certa. Você deve ir procurá-la. — anunciou Isabel. Sentindo que o neto iria protestar,
prosseguiu num tom autoritário: — Devo falar com essa Mara Fitzgerald. Traga-a até a reserva.
— E se ela não quiser vir?
— Use os meios de persuasão que tiver que usar a fim de trazê-la para falar comigo.
Luke olhou para uma tela sua apoiada de encontro à parede, um plano começando a se formar em sua mente.
— Está bem. Eu vou trazê-la aqui... Ao menos para tentarmos esclarecer essas dúvidas.
Talvez uma conversa com Mara ajudasse sua avó a decidir como superar os perigos que a preocupavam,
pensou ele.
Mas para trazê-la até ali, sabia que teria que barganhar; perspectiva que não o agradava nem um pouco.

Mara forçou um sorriso para Tom Chalas, tentando ocultar o aborrecimento. No dia anterior, dissera-lhe
claramente que ele precisaria marcar uma entrevista para apresentar seus trabalhos, mas o homem acabava de
aparecer ali sem avisar meras vinte e quatro horas depois.
Ela sabia que poderia lidar melhor com a situação se ainda não estivesse se sentindo tão abalada com seu
mais recente sonho.
— Tenho alguns slides e fotos — dizia Chalas — assim, não quis perder tempo em trazê-los para você.
Os dedos dele tremiam um pouco ao abrir o zíper de sua pasta. Embora inconveniente, o escultor era
também vulnerável e estava obviamente desesperado. O aborrecimento em Mara dissipou-se, dando lugar a uma
onda de simpatia. O problema era ser encorajadora em relação às esculturas nas fotos que Chalas espalhou na
mesa...
— Humm, interessantes. — Na verdade, o aspecto das esculturas era mais para hostil, com partes
pontiagudas ou retorcidas e máscaras carrancudas de metal. As peças abstratas de bronze não tinham nenhum
apelo artístico para Mara, mas mesmo que tivessem, em seu conceito básico, o desenho e a confecção eram um tanto
grosseiros. O que iria dizer?
— Algo nessas peças me faz lembrar da guerra... Capacetes, espadas, lanças.
— Guerra. Essa era exatamente a idéia que eu queria dar — declarou Chalas com entusiasmo. — Sempre
houve tantos conflitos no Novo México, o choque de culturas. — Mostrou-lhe uma foto em específico. — Este é o
meu trabalho mais recente.
A peça era um tanto diferente das outras, embora tampouco tivesse técnica. Lembrava uma figura toda
acorrentada.
— Essa me faz lembrar de... Bem, de escravidão. — E lhe dava calafrios, pensou Mara. Mas esforçou-se para
manter a opinião numa perspectiva mais profissional.
Chalas estava se empenhando para impressionar.
Em vez de desapontado, parecia satisfeito.
— A maioria de nós está acorrentado neste mundo... Era o que eu estava tentando expressar. Você tem uma
percepção incrível.
Mara procurou usar de diplomacia.
— Você tentou conseguir com que outras galerias representassem seu trabalho, ou já vendeu algumas de
suas esculturas por conta própria?
O semblante de Chalas endureceu.
— Algumas.
Pelo tom do homem, ela podia dizer que não tivera uma boa aceitação, nem por parte das galerias e nem de
compradores em potencial. E não era de admirar...
Mas sua formação em terapia através da arte a levava a acreditar que havia criatividade positiva em todos.
— Talvez você devesse redefinir suas idéias — aconselhou-o, com todo o tato. — Poderia tentar desenvolver
a idéia da guerra a um nível mais profundo, representando o horror e a agonia que a humanidade vem sofrendo ao
longo dos séculos, mas de uma forma que manifestasse o quanto é terrível matar um ao outro.
Ela duvidava que a solução fosse assim tão simples. As mudanças tinham que vir do íntimo do próprio artista
antes que seu trabalho pudesse ter um efeito mais positivo no apreciador. As esculturas de Chalas pareciam ser
uma lembrança de algum terrível conflito, mas não se manifestavam contra.
O homem começou a recolher as fotos e os slides à pasta.
— Então, está querendo dizer que não vai representar estas esculturas?

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Não creio que ainda esteja preparado para uma grande galeria no momento, sr. Chalas. Mas continue se
aperfeiçoando...
— Até quando? — interrompeu ele, a raiva visível em sua voz e em seus olhos. — Venho trabalhando nisto há
vinte anos.
— Eu sinto muito, mas...
Sem deixá-la terminar de falar, Chalas deixou o escritório abruptamente, quase trombando com Felice
Paquin.
Mara levantou-se e espiou pela porta para ter certeza de que o homem estava saindo. Foi, então, que avistou
um outro visitante inesperado.
Luke Naha estava sentado próximo à mesa de recepção, os braços cruzados sobre o peito forte. Havia
algumas telas apoiadas de encontro ao sofá a seu lado. Com uma expressão impassível, observou Chalas, que olhou de
volta ao passar por ele, com a fisionomia carregada de ressentimento... E talvez ódio.
Em seguida, Luke dirigiu seu olhar indecifrável às mulheres no escritório, sua atenção concentrando-se em
Mara. Ainda se recobrando da surpresa, ela começou a recuar de volta à mesa, as lembranças do sonho erótico
daquela noite retornando com desconcertante nitidez e tingindo-lhe as faces de um violento rubor.
Fechando a porta atrás de si, Felice seguiu-a, sua expressão preocupada.
— O que está acontecendo? Você está bem? Lucas Naha veio até aqui para trazer algumas pinturas e disse
que quer falar com você. É inacreditável! O que fez a ele lá na reserva?
A questão era o que aquele homem quase fizera a ela. Mas fora apenas um sonho, argumentou o lado racional
de Mara. E teria que esquecê-lo se queria enfrentar Luke com algum senso de dignidade.
— Não lhe fiz nada — respondeu, tentando não entrar em pânico. — Apenas conversei um pouco com ele.
Talvez tenha recuperado o bom senso por conta própria.
— Puxa! — Felice a fitava com visível admiração em seus olhos azuis.
— Me dê um minuto. — Mara endireitou os ombros, alisou a saia ampla de seda estampada, enquanto tentava
acalmar o ritmo de seu coração. Fez um gesto na direção da porta. — Diga-lhe para esperar um pouco. Eu aviso
quando deve acompanhá-lo até o escritório.
A assistente saiu, fechando a porta atrás de si, e Mara afundou-se na cadeira.
Esperar. Ela não lhe pedira que esperasse em seu sonho?, ponderou. Estaria mais uma vez tendo um déjà vu?
Os caminhos entre a realidade e a fantasia pareciam estar se cruzando loucamente.
Fechando os olhos, respirou fundo várias vezes, tentando relaxar. Mas quando abriu a porta e fez um gesto
de assentimento para Felice, ainda não se sentia preparada para Luke Naha.
Será que algum dia estaria?
Fez questão de manter a sólida mesa entre ambos quando ele entrou e sentou-se à sua frente. A sala
pareceu diminuir com sua presença forte. Talvez fosse aquele magnetismo irresistível que o tornava tão assustador,
refletiu Mara. Sentia o rubor queimando suas faces mais uma vez e se odiou por isso.
Olhou-o de relance, depois desviou o olhar para uma caneta em sua mesa. Luke usava uma camisa branca,
aberta no colarinho, e um jeans com um cinto de couro azul-marinho. Suas mãos... Fortes, de dedos longos,
artísticas... Repousavam nos braços da cadeira.
Mara lembrava-se com exatidão da sensação daquelas mãos quando a tocaram, acariciaram, exploraram em
seu sonho...
Limpou a garganta.
— Parece que trouxe algumas de suas telas, certo?
— Apenas quatro. Dê uma olhada nelas, se quiser.
— Tenho certeza que são maravilhosas — disse ela, ainda mexendo distraidamente com a caneta. — Fico
muito contente que tenha decidido trazê-las para que a galeria as negocie na exposição. E presumo que deva ter
ainda mais pinturas em andamento.
— Correto.
Mara forçou-se a fitá-lo e o viu estreitando o olhar.
— E, então, sobre o que gostaria de me falar?
— Você precisa voltar à reserva — declarou ele depressa, mas com firmeza.
Agora, atraída pela intensidade do olhar dele e pela urgência em seu tom, Mara o encarou.
— Como disse?

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Disse que você precisa vir à reserva.
— Por quê? Para que você possa me servir mais chá e, depois, me expulsar pela segunda vez de sua
propriedade? Está maluco.
— É importante.
— Foi o mesmo que Isabel falou ontem. — E Mara já estava farta de tanto mistério.
Luke enrijeceu o maxilar e emitiu um som baixo de frustração. Inclinou-se para frente, fitando-a por sobre
a mesa.
— Olhe para mim, Mara. Olhe bem para mim.
A voz dele era persuasiva, seus olhos pareciam hipnóticos. Ela quase podia se deixar levar por aquele olhar
tão profundo. Já se sentira hipnotizada por esses olhos antes, tinha certeza, mas quando?
Luke repetiu sua exigência.
— Você virá à reserva.
Mara parecia vê-lo através de uma névoa, escutar-lhe a voz como que através de um eco.
— A reserva.
— Vamos sair agora mesmo. Minha avó precisa falar com você.
Automaticamente, ela abriu a gaveta onde guardava a bolsa.
— Vou à reserva e vamos sair agora?
Ele assentiu e levantou-se, seu corpo alto e forte irradiando uma aura de poder.
A proximidade física a fez recuar na cadeira giratória.
E isso quebrou o encanto.
Emergindo daquela espécie de névoa, Mara franziu o cenho.
— O que está acontecendo aqui? Está tentando me hipnotizar? Não vou a lugar algum...
Não conseguiu dizer mais nada quando ele lhe segurou o queixo com suavidade, erguendo-lhe o rosto para
fitá-lo.
— Olhe para mim.
Era quase impossível resistir, parte de si queria obedecer, mas a raiva dela permitiu-lhe afastá-lo.
— Pare. Tire suas mãos de mim!
Luke pareceu contrariado, mas endireitou as costas, dando-lhe um pouco mais de espaço.
— Não era o que você queria ontem à noite. Você não apenas queria que eu a tocasse, como também ficou
suplicando para que a possuísse.
Mara ficou boquiaberta. Afastou a cadeira para trás bruscamente até batê-la de encontro à parede, o que a
sobressaltou.
— D-Do que você está falando?
— Sabe do que estou falando. Do nosso sonho compartilhado.
O coração dela disparou. Céus, ele sabia...!
Sentia-se como se tivesse sido despida. Outra vez. E deu-se conta da enormidade da revelação de Luke.
— N-Não poderíamos ter tido o mesmo sonho. É impossível.
— Na filosofia do homem branco, talvez. Não na dos kisis. — Olhos a percorrê-la com desconcertante
familiaridade, Luke perguntou: — A propósito, onde conseguiu aquela pequena tatuagem no seu ombro esquerdo?
Uma serpente azul? Não me parece do tipo que faria uma tatuagem.
Aquele homem a vira nua, sem dúvida.
— E-Eu a fiz... Quando estava na faculdade. — Num impulso. Mas o assunto ali não era sobre tatuagens. Ela
levantou-se, — Como ousa! Não pode ir entrando aqui e fazendo exigências. E muito menos...
— Entrar nos seus sonhos? — Luke exibia um sorriso calmo. — Pense bem, mulher branca. Foi você quem
entrou no meu sonho, meu território. O que estava fazendo na Colina Vermelha?
Mara não tinha nenhuma resposta para o fato, nenhuma explicação sobre como alguém podia entrar nos
sonhos dos outros. O próprio conceito lhe parecia absurdo, incompreensível... E ao mesmo tempo era fascinante.
— Eu... Eu não entendo.
— E por isso que precisa conversar com minha avó. Ela vai lhe explicar tudo sobre a habilidade de um kisi de
se "transportar" nos sonhos. — Luke pegou-lhe o braço com gentileza, fazendo-a contornar a mesa. — Vamos indo.
O medo era inevitável, embora Mara não soubesse ao certo se temia aquele homem, ou o que poderia
aprender.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Tire suas mãos de mim.
Uma expressão de raiva surgiu no rosto de Luke.
— Já estou farto de ouvir isso. Você gosta das minhas mãos — disse-lhe. Puxou-a para si, estreitando-a de
encontro a seu corpo viril. — Admita.
Não havia como negar, pensou Mara, com a respiração em suspenso. Tentou ignorar as sensações
abrasadoras que a percorriam, fingir que não o queria com todas as suas forças.
Apenas a porta se abrindo tirou-a do que, sem dúvida, acabaria em mais do que um beijo ilusório.
Felice deteve-se junto ao batente, os olhos arregalados.
— Mara?
O que sua assistente estaria pensando, vendo-a abraçada à Lucas Nana? Ela libertou-se depressa daqueles
braços fortes, sua mente trabalhando freneticamente.
Ficou surpresa com o rumo que suas idéias estavam tomando.
— Vou até a Reserva Kisi nesta tarde para dar uma olhada em mais algumas telas de Luke, Felice — declarou,
tentando não pensar na decisão de ceder à vontade dele. — E vou precisar que tome conta da galeria na minha
ausência.
— Claro.
— Algo inesperado aconteceu.
Lançando um olhar para Luke, Felice ergueu as sobrancelhas.
— Estou vendo. Não se preocupe. Eu cuido de tudo e fecho às seis.
Mara virou-se para Luke.
— Vamos indo?
Embora o temesse e não gostasse dele, ela argumentou consigo mesma que ansiava desesperadamente em
descobrir tudo que fosse possível sobre aquela história de "transportar-se" em sonhos.
Queria isso com quase tanto fervor quanto desejava Lucas Naha.

Mara não fez objeção em entrar em seu jipe, notou Luke, satisfeito. Mas ela continuou a mostrar as garras
assim que entraram no veículo.
— Se tornar a me pegar pelo braço daquela forma ou ficar me dando ordens, ou me ameaçando, eu juro que...
Que atiro em você!
Luke lançou-lhe um olhar curioso, enquanto dava a partida. Notou-lhe os olhos azuis faiscantes, as faces
coradas que a faziam parecer ainda mais bonita do que quando estava calma.
— Você tem uma arma?
— Não ainda, mas vou comprar uma especialmente para meter uma bala nessa sua cabeça!
Embora ele admitisse que ela parecia zangada o bastante para isso, não pôde conter um sorriso. A mulher
tinha coragem, como também uma tremenda força interior. Tentara hipnotizá-la com uma ordem kisi no escritório, e
ela resistira. Ou talvez ele não dominasse totalmente a técnica de hipnose, uma vez que a aprendera de um
sacerdote quando garoto e raramente tentara usá-la ao longo dos anos. Ainda assim, aquela mulher era alguém com
que devia ter cautela, mesmo que ela não parecesse ter nenhuma idéia de como era capaz de "se transportar" nos
sonhos.
Mara fuzilava-o com o olhar, enquanto Luke contornava a praça central de Santa Fé.
— Nada mais de ameaças, nem de ficar me segurando — insistiu. — Quero sua promessa antes de irmos para
a reserva.
Ele quase respondeu que era tarde demais agora que ela se achava em seu jipe. Mas estava tão furiosa e
indignada que achou melhor ser mais cooperativo.
— Está certo. Manterei as mãos afastadas de você. — O que não seria fácil. A química entre ambos era
avassaladora. Não havia como fugir. — E talvez eu tente controlar minha boca — acrescentou, sarcástico.
— Assim está melhor. — Seguiram por algumas ruas em silêncio e, então, ela apontou para frente. — Moro
depois da próxima esquina. Quero passar pelo meu apartamento antes de prosseguirmos, para vestir algo mais
confortável e pegar um agasalho. Faz frio naquelas montanhas.
De fato, em especial após o anoitecer. De qualquer forma, Luke esperava que ela não ficasse até à noite.
Podia ser linda, desejável, incomum e fascinante, mas a menos que Mara quisesse aquecer sua cama por algumas
horas, planejava trazê-la de volta da reserva o mais rápido possível.

22
Sonhos do Coração Jeanne Rose
Entrou pela rua indicada, diminuindo a velocidade ao se aproximarem de um condomínio novo e refinado.
Era um prédio de dois andares, de tijolos aparentes; em sua extensa fachada horizontal enfileiravam-se
sacadas em estilo espanhol, com gradis de ferro.
— Aqui?
— Exatamente. Volto num minuto.
— Não vou esperar aqui. Vou entrar com você.
Mara virou-se para fitá-lo com uma expressão surpresa e temerosa em seus grandes olhos azuis.
— Não quero você no meu apartamento.
Por alguma razão isso o aborreceu. E mais uma vez o medo dela o deixou zangado. Não era nenhum maníaco,
nem assassino... Bem, ao menos nunca tentará matar ninguém intencionalmente.
Esforçou-se para controlar sua raiva.
— Foi tratada com hospitalidade na minha casa. Não pode fazer o mesmo por mim na sua?
— Hospitalidade, pois sim! Foram sua mãe e avó que me ofereceram chá, não você. E, no final, ainda me disse
para ir pegando a estrada.
— Não lhe farei nenhum mal. — Luke queria entrar, ver o lugar onde ela morava, descobrir o que pudesse a
seu respeito. — Não vou tocá-la. Já lhe prometi que não o faria.
— Está bem — concordou ela, com um suspiro.
Os dois entraram no prédio em silêncio e subiram as escadarias até o segundo andar.
Luke manteve uma boa distância entre ambos enquanto chegavam ao corredor.
Mara parou em frente a uma porta e a destrancou, lançando-lhe um olhar com ligeira apreensão ao segui-la
para dentro do apartamento.
— Vou me trocar — declarou, indicando-lhe o sofá na sala de estar. — Sente-se. Não vou demorar.
Mas tão logo desapareceu por um pequeno corredor, fechando uma porta atrás de si, Luke começou a andar
pela sala, curioso para ver se os pertences de Mara dariam algum indício de sua incomum habilidade de
"transportar-se" nos sonhos.
O apartamento era organizado e bem iluminado. Aquele cômodo em que se achava era amplo, dividindo-se em
dois ambientes, salas de estar e de jantar. Grandes portas de vidro de correr dominavam parte de uma parede,
dando para a sacada. Havia uma lareira de mármore numa outra parede e uma cozinha funcional interligava-se com a
sala de jantar através de um balcão. O corredor, na certa, conduzia ao banheiro e a uns dois quartos. A mobília de
estilo moderno e confortável era clara e de bom gosto e tinha aspecto novo.
Mas Luke deteve-se a examinar objetos mais pessoais, tocou um pote cerâmico pueblo numa prateleira da
estante e, em seguida, verificou rapidamente os títulos dos livros.
Em meio a romances variados, havia muitos livros sobre terapia através da arte, um método inovador de
tratar doentes mentais usando recursos artísticos. Luke já ouvira falar a respeito. Na prateleira mais baixa,
encontrou mais de uma dúzia de livros sobre interpretação dos sonhos, incluindo volumes bastante manuseados de
Carl Jung e manuais mais modernos que abordavam visualização criativa.
Então, Mara vinha se interessando por sonhos já há algum tempo... Afastando-se da estante, verificou uma
pilha de revistas numa mesinha de canto ao lado do sofá. Um livrete sobre os mitos dos índios do sudoeste norte-
americano chamou-lhe a atenção.
Mas, ainda assim, Mara não poderia ter aprendido a se "transportar" nos sonhos com nenhuma combinação
daqueles materiais que possuía. Ele se aproximou da cozinha planejada, passando as pontas dos dedos pelos balcões.
Parou para observar um pequeno desenho emoldurado sobre a mesa. Era o retrato de uma mulher feito em tons
pastel, o rosto tinha uma expressão etérea, o fundo parecia explodir em cores. As iniciais M.F. num canto do
desenho evidenciavam que a própria Mara o fizera. Não ficou surpreso... Pessoas com ocupações relacionadas à arte
geralmente tomavam parte no processo de criação.
Estando com sede, tirou um copo de um dos armários e decidiu verificar a geladeira. Quase vazia, exceto
por algumas latas de soda, frutas e vegetais. Optando por um refrigerante em vez de água gelada, Luke tomava um
gole e inspecionava uma coleção de canecas de café penduradas acima da pia quando Mara apareceu.
— O que está fazendo? — perguntou-lhe da porta da cozinha, seu tom pouco amistoso.
Luke virou-se para fitá-la, seus olhos percorrendo-lhe as curvas, emolduradas agora por um jeans e uma
blusa de um vívido azul. O tom realçava-lhe a pele alva, os cabelos castanho-claros, e fazia seus olhos parecerem
ainda mais intensos.

23
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Eu estava com sede.
— E, claro, foi se servindo.
— Polidez não é uma de minhas virtudes.
— Quer dizer que tem alguma?
Ele se deu conta que gostava de vê-la reagindo às suas provocações.
— Sou um bom artista. Você mesma já admitiu. E isso deve contar como uma virtude, acho eu.
— Pode ser. — Mara deixou o suéter que carregava sobre o encosto de uma cadeira. — Eu tenho que...
Pentear meu cabelo antes de sair.
O que provavelmente significava que ela planejava visitar o banheiro.
— Tudo bem — disse Luke e agiu como se estivesse voltando para a sala de estar.
Mara afastou-se na frente e logo ele ouviu a porta do banheiro se fechando. Agora teria a chance de
investigar o quarto, pensou, encaminhando-se em silêncio pela penumbra do corredor. O conhecido lençol listrado,
estendido rapidamente sobre a cama, foi a primeira coisa que lhe chamou a atenção.
Interessante... Às vezes, uma pessoa que se "transportava" nos sonhos visualizava objetos de seu dia-a-dia e
os levava consigo.
Inalando vestígios suaves de perfume, recordando-se de seu sonho novamente, Luke aproximou-se da cama.
Enfim, notou a camisola de seda branca perto de um dos travesseiros. A camisola que quase despira de Mara. Pegou-
a, mais uma vez apreciando o sensual detalhe de renda na parte de cima.
Mas fora o corpo curvilíneo sob a camisola que de fato o havia excitado. O corpo sedutor de uma estranha...
Que, ainda assim, lhe parecera tão familiar...
Com a onda de desejo renovada, não pôde evitar de levar a camisola até seu rosto para sentir o incitante
perfume de Mara.
— Largue isso!
Ela o apanhara em flagrante outra vez. Luke se distraíra, em especial no quarto, ou sua aguçada audição
teria dado conta dos passos no corredor.
O rosto de Mara ardia em rubor.
— Eu disse para largar isso.
Casualmente, ele deixou a camisola na cama.
— Está bem, mas você não vai apagar o que aconteceu nesta madrugada, por mais que queira. — Não sabendo
exatamente a razão de ter ficado com raiva, foi se aproximando dela com sua expressão intimidante. — E uma
pessoa com habilidade para entrar nos sonhos dos outros jamais faria algo numa visão que não fizesse na vida real.
Você gosta de mim... Beijou-me com paixão. Reagiu às minhas carícias como se estivesse me querendo muito.
Mara recuou.
— Pare.
Luke deteve-se de imediato, percebendo que estava agindo de forma ameaçadora outra vez.
— Tem alguma coisa contra índios? Algum preconceito?
Ela respirou fundo, tentando recobrar-se das lembranças tórridas e desconcertantes daquele sonho.
— Nenhum. Sua origem étnica não tem nada ver com o assunto, Luke. Tenho visto vários indígenas muito
atraentes. Simplesmente não gosto da sua personalidade.
— Não estou em busca de nenhum envolvimento.
— Oh, está apenas interessado numa aventura de uma noite? Bem, esqueça. Você é machão e rude, sem
mencionar que deve possuir um dos temperamentos mais difíceis de lidar de todo o planeta. Agora saia do meu
quarto.
— Devemos mesmo ir andando. — Luke seguiu-a pelo corredor, não resistindo à urgência de alfinetá-la. —
Sabe, você deve achar que alguém que é "machão e rude" tem lá seus atrativos de certo modo...
— Quer parar de falar sobre esse maldito sonho! Eu senti desejo, está bem? Atração física... Ou seja, lá
como quiser chamar. Não sei de onde veio, mas não posso ser totalmente responsabilizada por minhas emoções
inconscientes. E, com certeza, não vou lidar com elas. Estou muito mais interessada em descobrir como foi possível
termos o mesmo sonho.
Enquanto a seguia, Luke subitamente deu-se conta do quadro pendurado no corredor. Mal podia crer em seus
olhos. Esqueceu-se por completo sobre o que estavam discutindo, a surpresa quase substituindo a tensão sexual que
pairava no ar.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Relâmpagos na Colina Vermelha? Onde foi que conseguiu essa pintura?
— Eu a comprei na galeria Goldstein de São Francisco. Havia trabalhado lá em meio período durante os anos
em que cursei a faculdade.
Luke acendeu a luz do corredor e deteve-se em frente ao quadro. Iluminada, mais uma vez a pintura ganhava
vida, exatamente como acontecera durante sua criação.
— Fiz isto há muitos anos, quando morei no Arizona. — E um pouco depois que sua esposa e seu filho haviam
morrido. — Vi esta imagem num sonho e ela me chamou de volta para casa. Eu sabia que o Novo México era o único
lugar que restava para mim.
Mas o que o quadro estava fazendo nas mãos de Mara Fitzgerald?, perguntou-se, intrigado.
— Chamou-o de volta para casa? — murmurou ela, contemplando o quadro. — Você também sonhou com esta
pintura?
— E onde obtenho algumas das idéias para minhas criações, nos sonhos. — Quando ele não estava tendo
pesadelos... — Uso qualquer poder de visões que eu possa ter como fonte de inspiração para minha arte.
— Visões? Esse processo de "transportar-se" nos sonhos é feito quando você está dormindo, ou é algum tipo
de meditação?
— Acontece de ambas as maneiras. Embora os sábios o usem intencionalmente. Assim, acho que se pode
dizer que está mais próximo de ser uma forma de meditação.
— Os sábios?
— "Transportar-se" nos sonhos é uma habilidade passada de geração a geração pelos kisis.
— Então, como eu...?
— É o que precisamos descobrir. Nunca soubemos de ninguém que dominasse a capacidade de "transportar-
se" nos sonhos de uma forma espontânea. As pessoas têm que aprender como fazer isso... E é algo usado pelos
sábios para curar ou buscar mais sabedoria, oferecer proteção. Claro que qualquer poder também pode ser usado de
maneira errada, controlado por aqueles que querem fazer o mal.
Seguiu-se um prolongado silêncio, enquanto ambos se detinham a observar a pintura. Luke notou que pequena
figura que pintara há anos parecia realmente estar numa posição diferente no quadro agora. Um calafrio percorreu-
lhe a espinha. Seriam os mitos em torno de sua arte verdadeiros?
— Não quero fazer nenhum mal — disse Mara, enfim. — Não creio que tenha sido por isso que entrei no seu
sonho.
— Sei que você não está ligada ao mal.
— Sabe?
— Eu seria capaz de sentir algo se fosse o caso. — Sobre si mesmo, no entanto, Luke não tinha certeza. —
Mas vamos indo. Minha avó poderá lhe dar melhores explicações.
— E... Devo ter medo?
Como alguns desses sonhos já não o haviam aterrorizado..., refletiu Luke, mas acabou respondendo:
— Creio que não. Deve haver algum tipo de explicação para o que houve com você.
— Me sinto tão confusa. — Ela fez um gesto em direção à pintura, no olhar uma expressão angustiada. —
Como sabe, estive aí duas vezes. Vi uma mulher índia na primeira e, depois, você. Havia tantas emoções. Acordei
aflita, desesperada, como se tivesse perdido alguém, algo...
Luke podia sentir-lhe a dor, enquanto um estranho e profundo pesar também o invadia. Era como se tivesse
sentido mais do que a atração instantânea. Como se ambos já houvessem se conhecido antes.
Mas não queria tentar entender, ao menos não no momento. Tocou o ombro de Mara para que prosseguissem,
mas, então, deu-se conta que prometera manter as mãos afastadas.
— Eu esqueci — desculpou-se.
Mas ela não protestou. Na verdade, seu estado de espírito mudou por completo. Tinha um olhar sonhador ao
se virar para fitá-lo, ergueu as mãos com suavidade para lhe tocar o peito. Surpreso, Luke permaneceu quieto. As
mãos de Mara detiveram-se no rosto dele, lágrimas marejando-lhe os olhos azuis.
Mais uma vez, a estranha tristeza invadiu-o, misturada a um tremendo anseio. Sentiu-se impelido a reagir, a
estreitá-la em seus braços. Mara soltou um gemido abafado quando subitamente a puxou para si.
Entreabriu os lábios rosados para receber seu beijo.

CAPÍTULO IV

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Luke estreitou Mara de encontro a si, intensificando o beijo, afundando seus dedos nos sedosos cabelos
castanho-claros. Parecia tão certo tê-la junto a seu corpo; era como se o lugar dela fosse em seus braços.
Moldavam-se um ao outro com perfeição. Seu coração bateu mais forte quando ela o abraçou pelo pescoço e
entrelaçou a língua na sua, retribuindo com idêntico ardor. O beijo era lânguido, sensual, com incrível poder de
excitação. Os mamilos rijos de Mara de encontro a seu peito, entre a barreira das roupas, confirmavam que o
prazer era mútuo.
Poucos minutos atrás, mantivera a guarda fechada em relação àquela mulher. Agora estava alheio a tudo
mais, exceto às sensações de tê-la em seus braços, do calor de seu contato, do erotismo daquele beijo. Ela era tão
receptiva, tão sedutora e ardente... Queria erguê-la em seus braços e carregá-la até o quarto. Seriamente tentado
a isso, puxou-a ainda mais para si, num abraço possessivo, enquanto suas mãos começaram a deslizar pelas curvas
macias do corpo dela.
Mara soltou um suspiro deliciado, mas se esquivou um pouco, impedindo-o de ir mais longe. Pousou as mãos no
peito dele e recuou. Parecia zonza... E um tanto horrorizada.
A súbita interrupção do abraço foi como um jato de água fria.
— Não — declarou ela, a expressão subitamente se fechando.
Luke lutou contra a frustração e soltou-a por completo.
— Droga... — disse num murmúrio quase inaudível.
Mara recuou mais um pouco, seu peito arfando com a respiração ofegante.
— Não sei o que... O que nos levou a isto.
Luke também estava tendo dificuldade em recobrar o seu fôlego. E em controlar a raiva que lhe aflorava tão
facilmente.
— Culpe a mim, claro, o sujeito que não mantém as mãos longe de você, conforme o prometido.
— Não. Eu... Percebo que a culpa foi minha. Só não sei o que me deu.
Bem, ao menos ela não o responsabilizava totalmente por aquilo, pensou Luke. Mesmo com a raiva se
dissipando, franziu o cenho.
— O que há com você? É maluca, tem algum problema de dupla personalidade, ou algo assim?
— Bem, se tivesse, eu seria um caso único. Afinal, só troco de personalidade em meus sonhos.
— E está sonhando agora?
— Não. Mas o fato de estar falando sobre sonhos é que me colocou nesta... Situação. — Mara adiantou-se
até a cozinha para pegar seu suéter marrom e azul. Deixara a bolsa num aparador na sala e apanhou-a. — Podemos
ir? Acho que preciso mesmo falar com Isabel.
Minutos depois, ao volante de seu jipe, Luke ainda tentava decifrar o enigma sobre a mulher sentada a seu
lado. Não entendia a razão de suas habilidades especiais. Tudo o que sabia era que ela era capaz de vencer suas
barreiras com a doçura de seus lábios, com o contato de suas curvas macias de encontro a seu corpo. Mara exercia
um grande poder sobre ele.
Gostaria de não ser tão suscetível aos encantos dela manter sua distância quando quisesse. Detestava
sentir-se como algum adolescente dominado pela libido perto daquela mulher, razão de sua raiva e frustração.
Mantendo um silêncio desconfortável, seguiam pela rodovia que conduzia ao norte de Santa Fé. Mara sentia
uma estranha euforia dentro de si, crescendo junto com uma onda de ansiedade. Ao deixaram os limite da cidade e
avistarem as antigas e imponentes montanhas à distância, uma ponta de apreensão era inevitável. Lançou um olhar
para Luke, seu perfil másculo permanecia sério em contraste com o brilhante sol da tarde que banhava a estrada.
Será que fora uma insensatez ter concordado em acompanhá-lo?
Apesar do mútuo e aparente antagonismo, não podia deixar de sentir que suas ações foram justificadas. E
estar na companhia daquele homem a satisfazia além de um mero plano físico.
Mas por quê? Pelo fato daquela história de "transportar-se" em sonhos talvez poder resolver seus
problemas com pesadelos? Será que o misticismo poderia explicar algo que a ciência não podia? Afinal, depois que
soubera que havia compartilhado do mesmo sonho com Luke, tivera que admitir que havia algo de sobrenatural em
tudo aquilo...
— Então, não acha que é maluca, certo?
A voz possante despertou-a dos pensamentos, lembrando-a da presença física e bem real daquele homem.
Gostaria de poder tratar a estranha e fulminante atração entre ambos com a mesma casualidade de Lucas
Naha. Ele parecera mais irritado do que abalado quando ela se afastara de seus braços. Por sua vez, Mara sentira-

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
se prestes a entregar-se com total abandono, a esquecer-se do bom senso, da realidade e afastara-se como uma
forma de se proteger. O que não fora fácil.
— Não sei se sou maluca ou não. Mas jamais li nada sobre partilhar o mesmo sonho com alguém em nenhum
livro de psicologia.
— E que tal parapsicologia?
— Nunca fiz nenhum curso a respeito. Não era uma exigência para meu currículo. Além do mais, é algo que
de certa forma me assusta.
— Por quê?
O medo era instintivo, algo que ela não queria examinar muito de perto.
— Não há realmente explicações para habilidades mentais especiais como telepatia e coisas assim.
— Então, só quer saber do que seja fácil de entender.
— A psicologia não é necessariamente fácil — disse Mara, irritada com a acusação. Luke sempre parecia
estar no ataque. — Mas ao menos tenta nos explicar as coisas. Por exemplo, eu costumava ter pesadelos terríveis de
tempos em tempos quando era criança. Eu acordava gritando e chorando. Meus pais tentavam ajudar, mas tudo que
podiam fazer era me confortar. O que acabou me ajudando de fato foram os anos de terapia.
— Com o que você sonhava?
Um calafrio percorreu Mara ao recordar.
— Algo estava me perseguindo e eu tentava correr, mas não conseguia escapar.
— Um sonho com perseguição parece bastante comum.
— Os detalhes eram incomuns. O chão parecia tremer e era tão quente, meus pés queimavam. Acho que
estavam descalços. E eu ouvia uma respiração alta, ofegante. Algo imenso e terrível bloqueava o sol, mas eu mal
podia me mover. Eu sabia que ia morrer.
Ela respirou fundo. Mesmo agora, após anos de terapia, a imagem a incomodava... Uma grande sombra letal a
encobrir o sol, avançando para destruí-la. Acabara concluindo que o sonho recorrente devia ter representado algum
nível profundo de ansiedade, mas nunca descobrira a causa.
Silencioso, Luke mantinha os olhos atentos na estrada.
— Não existe nada no misticismo kisi para interpretar um sonho desses? — perguntou ela, esperançosa.
— Pesadelos podem não ser nada além de pesadelos. Teria que perguntar a minha avó se quisesse saber algo
assim. Ela é a especialista.
— Você também deve entender algo de sonhos. Afinal, esteve no meu.
Luke lançou-lhe um olhar significativo em resposta.
— Ou melhor, eu estive no seu — corrigiu-se Mara, os sensuais anseios que sentira retomando de repente. —
Como quiser.
—Não quero discutir sobre esse sonho. Eu preferiria relembrar de cada detalhe...
Droga. E ela própria tivera que trazer o assunto à tona. A mera sugestão dele a fez repassar cada cena em
sua mente, sentir a mesma antecipação, o estranho medo...
Decidiu mudar o rumo da conversa de imediato.
— Eu costumava desenhar meus pesadelos na infância. Eu achava que ao colocá-los no papel os tiraria da
minha cabeça como em algum passe de mágica.
— E dava certo?
— Às vezes. Os desenhos ainda me assustavam, embora fossem abstratos. Ao menos eu podia amassá-los e
jogá-los fora. Acho que foi todo esse processo... Fazer os desenhos, querer entender os tais pesadelos, enfim, creio
que foi isso que me levou ao interesse pela terapia através da arte.
— Você estudou esse método?
— Eu me especializei. Tornei-me "arte-terapeuta" e trabalhei nessa área.
— Então, por que está gerenciando uma galeria de arte agora?
— Desisti da profissão — respondeu Mara de forma sucinta. Não estava disposta a contar-lhe sobre aquilo.
Mudou o enfoque do assunto. — Acha que pintar é uma espécie de terapia?
Como Luke demorasse a responder, ela percebeu que havia lhe atingido algum ponto fraco. Como era recluso
e hostil demais para se abrir em relação a qualquer coisa, ficou surpresa quando ele admitiu:
— Eu tenho que pintar.
— É uma compulsão?

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Algo assim.
— E você retrata imagens de seus sonhos.
— Só de alguns. Se eu tivesse escolha, eu preferiria apenas pintar em vez de sonhar na maioria das vezes.
Luke não admitiria, ponderou Mara, mas devia ter pesadelos horríveis. Mas mesmo que ele se mostrasse
reticente, percebeu que gostaria de ajudá-lo. Não suportava ver ninguém em sofrimento psicológico.
— Talvez sentisse algum alívio de seus pesadelos se você também os pintasse — sugeriu.
— Se meus pesadelos fossem retratados em telas, ninguém iria querer pendurá-las numa galeria de arte. As
pessoas dariam uma simples espiada e sairiam correndo.
O tom sombrio de Luke a fez estremecer. As pinturas que ele fazia já continham mistério o bastante.
Mara olhou ao redor, enquanto o jipe subia pelas curvas estreitas nas colinas. Não demorariam a chegar.
— E essa habilidade de "transportar-se" nos sonhos não ajuda você a lidar com os pesadelos? Nesses sonhos
especiais, você pode reagir, tomar decisões, fazer o que quer?
A linha tensa nos lábios dele suavizou-se, um sorriso malicioso curvou-lhe os lábios de formato másculo. Pelo
canto do olho observou-a de alto a baixo.
— Se eu pudesse ter feito o que queria com você nesta madrugada, nos dois teríamos acordado muito mais
relaxados pela manhã.
Mara corou. Devia ter previsto. Luke gostava de intimidá-la e usava qualquer arma que estivesse à mão,
incluindo sua própria sensualidade.
Bem, podia intimidá-lo em contrapartida.
— Eu fiz o que queria no sonho... Disse a você para dar o fora. — Na verdade, pedira a ele que esperasse,
mas Luke desaparecera. Contudo, o homem real ao seu lado não discordou da constatação.
Mara não pôde evitar de sentir a mesma inexplicável tristeza de quando ambos haviam se separado no sonho.
De qualquer forma, sabia que devia sentir algum senso de triunfo. Afinal, podia exercer algum controle.
O problema principal seria superar a avassaladora atração que sentia por esse kisi misterioso.

Isabel indicou a Mara que se sentasse, quando Luke a levou ao pequeno quarto pegado à cozinha. Era
mobiliado com simplicidade. Além de duas confortáveis cadeiras ladeando a janela alta, havia uma cama de solteiro
na parede oposta e um armário. Algumas estatuetas entalhadas em madeira encimavam uma cômoda, destacando-se
a de uma serpente azul, enfeitada com penas.
— Você entrou no meu quarto, como também havia entrado no meu "lugar de sonhos". Desta vez foi
convidada.
Mara dirigiu total atenção à anciã, sua curiosidade e senso de triunfo rapidamente se desvanecendo, dando
lugar ao temor que sentira quando soubera que alguém podia entrar nos sonhos dos outros. As palavras dela a
intrigaram. Lançou um olhar para Luke, uma presença forte e silenciosa enquanto se recostava na parede, ao lado de
sua cadeira.
— Foi o sonho do seu neto, não foi? Não o seu.
— Estou falando da outra noite, quando você se aproximou de mim, ocultando o rosto.
Ela ficou atônita. Então, tivera duas experiências de "transportar-se" nos sonhos?
— Você? Mas a índia que vi no meu sonho era bem mais jovem...
— Porque é dessa forma que ainda me vejo nas minhas visões. Forte, cheia de vitalidade, não uma velha cega.
Mara mal podia acreditar. Luke soubera disso? Por que não comentara nada?
— Como algo assim pode acontecer comigo?
— Sim, como? Onde aprendeu a se "transportar" nos sonhos?
— Eu... Não aprendi.
— Quer dizer que não teve nenhum treinamento?
— Eu nunca nem sequer tinha ouvido falar que alguém podia se "transportar" nos sonhos... Até hoje, quando
seu neto me falou sobre o assunto.
Isabel virou o rosto na direção de Luke.
— Por que deu qualquer explicação, Mestre da Tempestade? Pedi a você que a trouxesse à reserva, não que
lhe desse idéias.
Mestre da Tempestade?

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Ela não teria vindo de outra forma. — Ele endireitou-se de encontro à parede, cruzando os braços sobre o
peito largo. — E existem leis contra carregar uma mulher à força. Não creio que quisesse que eu parasse atrás das
grades.
— E por que seu neto não poderia me dar algumas explicações? — indagou Mara, zangada. Na verdade, podia
ter explicado muito mais. — Ele tentou me hipnotizar.
Isabel ergueu as sobrancelhas grisalhas.
— Controle kisi pela voz, minha avó. Mas não funcionou. Você sabe que não sou assim tão habilidoso nisso.
A exasperação de Mara aumentou.
— Intimidação não vai adiantar. Vim até aqui por minha própria vontade. Jamais tive a intenção de causar
mal. Apenas estava chocada com os sonhos que tive, morta de medo, para ser sincera.
Luke interrompeu.
— Não tem com que se preocupar, avó. Ela não é uma feiticeira.
— Uma feiticeira? Que absurdo. — Mara podia ter tido dúvidas momentâneas a respeito do sobrenatural
quando haviam conversado em seu apartamento, mas nunca havia estudado nenhum tipo de magia. — Se alguém está
praticando feitiçaria são os kisis, não eu.
— A única feitiçaria que pratico é destinada a curar doentes, a buscar sabedoria dos espíritos ou dos nossos
ancestrais. Ou a tentar proteger meu povo — explicou Isabel.
— Bem, o fato é que quero muito entender porque andei entrando nesses sonhos de vocês. Se puder me dar
mais detalhes a respeito, talvez eu possa entender como consegui fazer isso.
Como Isabel parecesse hesitar, Luke insistiu:
— Mara não tem nenhuma ligação com o mal.
A velha mulher inclinou-se para a frente e colocou uma das mãos sobre a dela por alguns momentos. Estaria
testando vibrações, ou algo assim?, perguntou-se Mara. Tinha certeza que pôde sentir um ligeiro formigamento de
energia antes que Isabel afastasse a mão e tornasse a se recostar na cadeira.
— Meu neto tem razão. Não há nenhum mal em você. As habilidades de "transportar-se" e "buscar" nos
sonhos são dons passados de um sábio kisi para o outro. Ninguém sabe de onde elas vêm ou quando começaram. O
termo "buscar" é o ato de ir procurar por uma visão ou um sonho e sondá-los, "tanto dentro de você mesmo quanto
de outro alguém”. O de "transportar-se" significa o ato propriamente dito de entrar nos sonhos de outra pessoa.
— E como isso é feito? Como pode ser controlado?
— É melhor e mais eficaz ter um recanto sagrado, um local que você conheça tão bem que possa vê-lo de
olhos fechados... Um "lugar de sonhos".
— Um "lugar de sonhos". — Mara lançou um olhar para Luke e mais uma vez se lembrou do último sonho,
pensando que o tivera de onde deveria ter sido a privacidade de sua própria cama. — Nunca tive nenhum lugar assim.
E esse processo de "transportar-se" nos sonhos é usado para curar as pessoas?
— Ou para lhes fazer mal. Mas tradicionalmente os kisis têm evitado treinar os fracos e os egoístas;
pessoas que poderiam ficar tentadas a praticar feitiçaria. Somos cautelosos. Somente os sábios devem ter o poder.
— Minha avó é uma "pessoa pronta" — explicou Luke. — Uma sábia.
— Ou uma sacerdotisa, se ainda praticássemos as cerimônias. Restaram poucos anciões. As tradições
começam a ser esquecidas. — Isabel soltou um suspiro preocupado. — E talvez o mal esteja sendo conjurado. Foi por
isso que fiquei apreensiva com a sua aparição na minha visão, Mara. A princípio, cheguei a pensar que você fosse o
espírito de um ancestral que viera me procurar para me transmitir alguma mensagem.
— Você pode falar com os espíritos dos ancestrais?
— De tempos em tempos. Ou com os mais grandiosos... Se você souber os nomes aos quais chamar...
O olhar de Mara foi atraído pelas pequenas estatuetas sobre a cômoda. Simbolizavam animais na maioria,
como a da serpente azul.
— Esses são especialmente sagrados. — Apesar de sua cegueira, Isabel parecia saber exatamente o que
despertara a atenção de sua visitante. — Os espíritos sagrados de animais, nuvens e montanhas são evocados
quando os kisis estão em grande necessidade.
— E eles protegem vocês?
— Ou protegemos a nós mesmos — interveio Luke. Parecendo inquieto de repente, encaminhou-se para a
porta. — Vou sair. Quando voltar, levo você para Santa Fé — disse a Mara.
Ela o observou fechando a porta atrás de si e sentiu um estranho vazio sem sua proximidade.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Meu neto devia mesmo ser o Mestre da Tempestade, um sacerdote provocador de tempestades. —
declarou Isabel, seu tom de reprovação.
Mara sabia muito pouco para perguntar se Luke quisera ou não seguir sua vocação kisi.
— Um "provocador de tempestades"?
— Ele deveria ser capaz de chamar a chuva, os trovões e os raios. Se necessário, atirar bolas de fogo nos
inimigos.
— Bem poderoso. — Mas devia acreditar naquele misticismo?, perguntou-se Mara. Sonhos eram uma coisa,
mas bolas de fogo...
— Qualquer tipo de feitiçaria kisi pode ser poderosa. Podemos ajudar as plantas a crescer, controlar os
animais e, às vezes, até pessoas por breves períodos de tempo. Podemos criar ilusões, tanto na vida real quanto nos
sonhos.
— Os sonhos é que me intrigam.
— Mas você não sabe como acabou se "transportando" nos sonhos. E eu receio já ter partilhado tudo o que
podia... Com alguém não kisi.
Desapontamento e uma nítida sensação de rejeição apoderaram-se de Mara.
— Não pode me contar mais nada? Eu esperava ter alguma idéia do que está me acontecendo. Acha que eu
poderia ter algum poder paranormal? Haveria essa possibilidade?
— Mas se fosse o caso, por que você voltaria seus poderes paranormais para nós? Tem absoluta certeza que
não há uma única gota de sangue kisi nas suas origens?
— Sim, tenho certeza. Numa ocasião, minha mãe encomendou a um especialista a elaboração da árvore
genealógica da nossa família. Não havia nenhum ancestral indígena, nem na dela, nem na do meu pai.
— E não acha que alguém poderia ter enviado você ao meu "lugar de sonhos"?
— Me enviado?
— Ordenado você a ir no lugar dele, ou dela.
Mara nem sequer havia pensando nessa possibilidade. Mas lembrou como havia pedido a Luke para esperar,
efetivamente banindo-o de seu sonho, em como resistira à espécie de hipnose que ele tentara. E, além do mais, deu-
se conta de que fora capaz de desaparecer quando Isabel gritara, exigindo seu nome.
— Não creio que ninguém exerça controle sobre mim — respondeu com uma convicção que vinha de seu
íntimo. — De alguma forma e por qualquer que tenha sido a razão, eu sei que fiz o que fiz por conta própria.
Isabel assentiu, as mãos repousando no colo, uma expressão pensativa em seu rosto elegante e marcado pelo
tempo.
— Devo lhe ordenar que fique fora dos meus sonhos de agora em diante.
Novamente o senso de rejeição. E de.. Certa mágoa.
Mara engoliu em seco. Estava sendo colocada de lado.
— Eu espero poder obedecer... Não faço idéia de como aconteceu da primeira fiz. Simplesmente estava
adormecida na minha cama, como faço todas as noites. — Ninguém podia controlá-la, mas também era óbvio que não
conseguia controlar a si mesma.
— Entendo. Mas minhas visões são sagradas para os kisis. Não são para estranhos. Não conte a ninguém mais
sobre elas.
— Se eu contasse, as pessoas achariam que sou louca.
— Nossa conversa terminou. — Isabel levantou-se de sua cadeira. — Agora eu gostaria que você conhecesse
alguém... Minha velha amiga Rebecca Harvier. Onida está servindo um chá lá fora novamente. Podemos nos juntar a
elas.

Mara podia dizer que Onida estava intrigada com sua segunda visita consecutiva, mas a mulher agiu com a
mesma simpatia e hospitalidade da tarde anterior. Rebecca Harvier, uma senhora robusta e grisalha, na casa dos
sessenta, lançava olhares desconfiados a ela por trás das grossas lentes de seus óculos, enquanto fazia tricô.
Frustrada e com quase nada esclarecido em sua mente, Mara esforçava-se para conversar sobre
amenidades. Rebecca pareceu relaxar, falando com orgulho sobre a neta que estaria prestar a entrar na faculdade.
— Luke freqüentou a faculdade no Arizona — comentou Onida, num determinado momento. — Fez o curso de
belas-artes, mas não chegou a terminá-lo.
— Onde está ele? — indagou Isabel do lado oposto da mesa.

30
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Eu o vi indo de jipe em direção ao centro comunitário. Talvez esteja trabalhando nos murais.
Nos murais?, pensou Mara, surpresa. Pensara que ele estava planejando voltar logo para levá-la até Santa
Fé. Começava a ficar ansiosa.
— Está ficando tarde — comentou, olhando para o relógio de pulso. — Preciso ir andando. Onde fica o centro
comunitário? Vou procurar Luke.
Obtendo a orientação adequada, agradeceu às mulheres. Antes de se despedir, vestiu o suéter marrom e
azul e apanhou sua bolsa. A tarde avançara e o ar começava a esfriar. O sol se punha, e as montanhas ao longe
escureciam num tom violáceo.
A confusão sobre aqueles sonhos especiais voltou, e sentiu-se absorta demais para apreciar a beleza da
paisagem ao redor. Na verdade, era quase como se estivesse caminhando num de seus sonhos.
Depois de passar em frente à mercearia de Tom Chalas, logo avistou o centro comunitário. Era uma
construção grande, situada uns cinqüenta metros além. Apenas um quadro de avisos na frente do prédio baixo
chamou-lhe a atenção, com vários de seus papéis pendurados.
Ao se virar, pensou ter ouvido alguns ruídos. Passos no cascalho? Desconfortável, teve a estranha impressão
de que alguém a observava...
Tratou de entrar logo no centro comunitário. Tinha portas duplas e várias janelas encortinadas, todas
fechadas. Esperou até que seus olhos se ajustassem à penumbra. Certamente, as luzes apagadas evidenciavam que
ninguém estava se reunindo ali naquela tarde. Luke também não se achava trabalhando nos murais. Quando
encontrou os interruptores, avistou as pinturas no lado oposto do salão principal do prédio.
Seguiu pelo chão cerâmico, como que atraída por alguma força magnética, contornando cadeiras e uma ampla
mesa.
Espetacular... Delimitado por seqüências de desenhos abstratos tradicionais e retratando as mesmas
paisagens fascinantes das habituais pinturas de Luke, o primeiro mural exibia pequenas figuras de deuses ou
espíritos emergindo de um mundo subterrâneo. Os outros eram obviamente destinados a dar continuidade a história
e as lendas dos kisis.
Pois os murais não estavam terminados. De encontro a um esplêndido cenário montanhoso e um céu
brilhante, uma dança sagrada de máscaras acontecia numa das pinturas. Figuras dançando ao redor de uma vívida
fogueira que parecia ter vida própria. No mural ao lado, fora pintado um povoado indígena incrustado na lateral de
um penhasco. Ficou na ponta dos pés para observá-lo melhor, quando de repente ouviu uma porta batendo.
Virando-se no mesmo instante para olhar, deparou com dois índios a encará-la. Um era o homem corpulento e
hostil que vira na mercearia de Tom Chalas, na tarde anterior; Mahooty. Ele se aproximou em largas passadas, mas
parecendo um tanto cambaleante.
— Este centro não é aberto a turistas.
— Não sou turista. Vim até aqui com Lucas Naha.
Mas Mahooty continuou avançando, o amigo a acompanhá-lo. Os dois tinham expressões ameaçadoras e
cheiravam a álcool. Bebidas alcoólicas não podiam ser vendidas legalmente na reserva, mas as haviam conseguido em
algum lugar.
— Não quero saber se é ou não conhecida de Naha— declarou Mahooty, com a voz pastosa, cutucando-lhe o
braço em advertência. — São dez dólares para entrar no povoado e trinta e cinco para olhar para esses murais.
— Quarenta e cinco dólares? Já disse que não sou turista.
— Vá pagando, moça. Não quer passar a noite trancafiada, quer?
— Não pode estar falando serio.
— Como lhe falei, conheço Lucas Naha. Ele me trouxe aqui hoje. Se falar com a avó de....
— Não preciso falar com ninguém. Sou Charlie Mahooty, o líder deste lugar. Não dou a mínima para Naha.
— E nem eu para você, Mahooty — disse Luke, de repente, como que surgindo do nada. — Deixe a moça em
paz.
Com um grunhido. Mahooty avançou com um punho cerrado na direção dele.

CAPÍTULO V
—Você está bêbado. — Com uma expressão de frieza, Luke esquivou-se facilmente de Mahooty, que deu um
golpe no ar e acabou indo de encontro a uma parede. Quando este fez uma nova tentativa de atacá-lo, Luke deu-lhe
um violento empurrão que o fez cair sentado numa cadeira próxima.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Não pode tratar o líder assim — protestou o amigo de Mahooty. — Você está preso.
Luke manteve-se numa posição agressiva, seu rosto duro.
— Oh, é mesmo, Delgado? Vá em frente... Dê-me um pretexto para amassar a sua cara.
A intensidade de Luke fazia sua raiva parecer muito mais poderosa do que a simples exasperação dos outros
dois homens. Obviamente intimidado, o sujeito recuou, esbarrando em algumas cadeiras antes de bater em retirada
pela porta.
Ele, então, concentrou-se em Mahooty. Ergueu-o da cadeira pelo colarinho e sacudiu-o com força.
— Nunca mais ameace a mim ou aos meus, ouviu bem, Mahooty!
Em crescente fúria, Luke lembrava um perigoso predador prestes a desferir um golpe fatal.
— Nunca mais me tire do sério, ou acabo com você. Eu...
— Luke!
Ele levantou o olhar, soltando Mahooty. O índio corpulento caiu de volta na cadeira, sua cabeça pendendo
para o lado. Acabara perdendo a consciência em sua bebedeira.
— Por favor. — Mara tocou-lhe o braço com suavidade. — Não quer mesmo machucá-lo, não é?
— Na verdade, quero... Mas não vou.
— Ele está bêbado. Não sabe o que está fazendo. Deixe-o aí dormindo. Você disse que me levaria de volta a
Santa Fé.
Luke murmurou algo ininteligível, mas afastou-se de Mahooty, lançando-lhe um último olhar de desprezo.
Mara soltou um suspiro de alívio enquanto se encaminhavam até a porta. Quando estavam quase saindo, uma das
portas duplas se abriu e depararam com Tom Chalas.
— Há alguma coisa acontecendo aqui?
— Nada que seja do seu interesse — respondeu-lhe Luke.
O homem recuou, segurando a porta aberta para lhes dar passagem. Pareceu surpreso em ver Mara ali, mas
cumprimentou-a com um gesto de cabeça, embora com uma expressão fechada. Na certa estaria ressentido com o
resultado da entrevista na galeria, pensou ela. Conteve um suspiro, afastando o pensamento. A desagradável
discussão de há pouco já fora aborrecimento o bastante.
De repente, lembrou-se do aviso que Luke dera a Mahooty para não ameaçar a ele nem aos seus. Será que a
considerava sua?
A idéia fez com que um calor se expandisse por seu corpo. Este pareceu se alastrar ainda mais no momento
em que Luke segurou seu braço para ajudá-la a subir no jipe. E ao soltá-la, as costas de sua mão roçaram-lhe a
lateral do seio, deixando-a com a respiração em suspenso. Por alguns momentos, deteve-se a fitá-la, sua expressão
intensa. Enfim, observando-o contornar o veículo e sentar-se ao volante, Mara procurou dissipar a poderosa reação
que ele lhe despertava... O fato daquelas sensações lhe parecerem tão familiares era o que mais a assustava.
Enquanto se afastavam do centro comunitário no jipe, disse a si mesma que o primeiro impulso de Luke não
fora o de protegê-la de Mahooty. Era mais provável que a situação simplesmente tivesse despertado sua acalorada
raiva. Aliás, parecia estar sempre fervendo sob a fachada circunspecta. Ela não tocou no assunto da briga até que já
haviam descido pela estrada por mais de meia hora, estando a meio caminho de Santa Fé. Até então, já começara a
pensar na repercussão.
— Você será mesmo preso quando retomar ao povoado? Onida comentou que Mahooty foi eleito como o líder
hoje.
— Não serei preso. Ele sabe que saiu da linha.
Pessoalmente, Mara achava que o sujeito não servia como líder.
— Não parece muito bem, não é, o fato de um líder estar quase caindo de tão bêbado?
— Na certa, ele e os cupinchas deviam estar comemorando a vitória.
— Aquele homem com Mahooty é o representante da polícia da reserva? Estava bêbado também. Isso não é
perigoso?
— Delgado não estava em serviço — respondeu Luke com ironia.
— E felizmente não estivera portando uma arma. Mas me diga uma coisa. Os kisis realmente querem que
homens desse tipo tenham a autoridade no povoado?
— Quantas perguntas mais você tem... Quarenta? Mil?
Ela ignorou o sarcasmo.

32
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Não posso evitar a curiosidade a respeito, nem a preocupação. Não gosto de pessoas que abrem seu
caminho à força até o poder. — E fora o que, durante o chá, Rebecca comentara que Mahooty havia feito. — Como
você pode permitir que isso aconteça?
— Como eu permito? Ora, eu não me intrometo nos assuntos do povoado.
— Mesmo com sua mãe e sua avó preocupadas a esse respeito?
Luke lançou-lhe um olhar exasperado.
— Você veio à reserva para falar sobre sonhos, não para se envolver na política de lá.
Sonhos? O incidente no centro comunitário desviara-lhe temporariamente o assunto de sua cabeça. Mas
agora havia um novo ângulo na questão.
— Sua avó é uma sábia de seu povo. Ela não pode deter um tirano como Mahooty?
— Ela sempre se preocupou com a sabedoria e a cura. Nunca praticou nenhum outro tipo de feitiçaria. E
nunca tentaria... A menos que o que resta do povo kisi lhe implorasse que o fizesse, eu suponho. Ou sua família
precisasse de proteção.
— Os kisis a respeitam.
— Alguns, sim.
— Apenas alguns? Uma mulher capaz de "transportar-se" nos sonhos?
— Nem todos acham que visões e sonhos são importantes, que servem para fins práticos. O ato de
"transportar-se" nos sonhos não arranja emprego para ninguém, por exemplo.
Talvez não, mas significava muito para Mara.
— Eu acho que esses poderes são verdadeiros milagres.
Embora os anos de terapia tivessem ajudado a superar boa parte do trauma, seus problemas com pesadelos
não haviam sido resolvidos por completo. Mas agora que tomara conhecimento desses dons kisis com os sonhos,
achava que talvez pudesse haver uma solução.
Ao pensar na possibilidade, um peso pareceu se aliviar em seu coração, um fardo que estivera carregando há
um longo tempo. A conversa com Isabel fora frustradora, e a velha mulher sequer havia tocado em suas perguntas
mais profundas, mas, ainda assim, Mara aprendera coisas incríveis.
Olhou para o deserto, para as colinas ao longe se desvanecendo sob o crepúsculo, e observou o mundo com
novos olhos. Muito mais coisas do que jamais havia acreditado eram possíveis.
Embora existam possibilidades tanto para o mal quanto para o bem, alertou-lhe a voz em sua mente.
Uma nova preocupação surgiu de repente.
— Não são todos os kisis que podem se "transportar" nos sonhos, certo? Sua avó disse que apenas os sábios
são treinados. Sendo assim, Charlie Mahooty não deve ter nenhum poder.
— Espero que não. Na verdade, ele fala constantemente sobre feitiçaria. Mas usa o assunto para intimidar
outros índios. Vem prometendo proteger os kisis. Por essa razão o elegeram.
— Proteger os kisis do quê?
— Do que quer que seja.
Obviamente, Luke não queria revelar nada. Inquieta, Mara olhou para a paisagem ao redor outra vez, havia
escurecido por completo.
— Tenho certeza que ninguém na sua família votou no sujeito. E ficou evidente que Rebecca também não
gosta dele.
— Mahooty não tem o menor respeito pelos mais velhos.
— Rebecca é uma sábia como sua avó?
—Sim.
— O que quer dizer que também pode "transportar-se" e "buscar" nos sonhos?
— Exato. Ela foi treinada.
— E quanto à sua mãe?
— Ela não levou jeito para isso, não teve a concentração necessária. Para essa habilidade, não há meio termo.
Ou a pessoa a tem ou não. Além do aprendizado, também é necessário possuir o dom.
Seguiu-se um novo silêncio, até que algo ocorreu a Mara.
— Já que Mahooty odeia você e não tem respeito por Isabel, realmente se sente seguro circulando pela
reserva? Hoje, por exemplo, você havia estado no centro comunitário sozinho?

33
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Eu apenas havia saído para dar uma volta de jipe, para... Espairecer um pouco e resolvi passar por lá. E
quanto à minha avó, ela é capaz de proteger a família, se necessário.
— E quanto a você?
— Você me viu colocando Mahooty no seu devido lugar.
— Com sua força física — lembrou-o ela, sem querer ofendê-lo. — Mas por que você não tenta desenvolver
suas outras habilidades, seus poderes mentais? — Os quais Isabel insinuara que ele não usava. — Sem dúvida, sua
avó pode ajudá-lo a confrontar seus pesadelos...
— Você não sabe nada sobre meus pesadelos.
Ele estava ofendido.
— E ninguém pode me ajudar — acrescentou Luke com amargura, num tom cortante.
Mara não soube mais o que dizer. Os pesadelos dele deviam ser ainda mais medonhos do que qualquer um que
ela já tivesse tido... E, ao que parecia, Luke não tinha nenhuma esperança de superá-los.
Mas ela estava determinada a não se sentir tão sem esperança. Em especial agora que não temia mais que
estivesse enlouquecendo, que se dera conta que pudera tomar alguma atitude em seus sonhos. Afinal, recusara as
investidas de Luke e fugira de Isabel.
Simplesmente acreditaria que haveria mais oportunidades de reagir, que podia vencer seu terror, que seria
capaz de se cuidar em situações bizarras, mesmo ameaçadoras. Procurou se assegurar disso repetidas vezes,
enquanto prosseguiam em silêncio pelos quilômetros finais do percurso.
A lua surgira, e o céu límpido ficara salpicado de estrelas. Luzes cintilavam abaixo, na medida em que o jipe
chegava ao topo de uma colina com vista para Santa Fé.
Ao se aproximarem da cidade, Luke ainda não fez nenhuma tentativa de retomar a conversa. Mas ao menos
respondera as perguntas que ela lhe fizera e não retrucara com rispidez durante o trajeto. E mostrara-se um pouco
menos reservado.
Qual a razão? O relacionamento entre ambos estaria mudando?
Refletindo a respeito, Mara deu-se conta de que sentia ter alguma espécie de laço com Luke. Era algo
estranho, inexplicável, embora similar com sua ligação ao quadro Relâmpagos na Colina Vermelha. A pintura a
impressionara demais para que a pendurasse na sala de estar, mas a quisera assim mesmo. Era uma obra tão
misteriosa quanto seu criador.
Afastando os pensamentos intrigantes, viu que chegavam aos limites da cidade. Luke foi seguindo pelas ruas
iluminadas sem se incomodar em perguntar onde ficava o prédio dela.
Mas, sem dúvida, lembrava-se do endereço, virando nas ruas certas e parando o carro em frente ao seu
condomínio, alguns minutos depois.
Por alguma razão, Mara hesitou em afastar-se da companhia dele. Parecendo sentir isso, Luke ofereceu-se
para acompanhá-la até a porta do apartamento.
Ela tinha plena consciência da presença marcante do homem a seu lado, enquanto subiam as escadarias em
silêncio. Mas como não se sentir afetada por alguém com aquela postura confiante, o corpo musculoso irradiando
uma incrível virilidade, uma aura de poderoso magnetismo a seu redor?
As mãos que criavam pinturas e haviam ameaçado Mahooty também a haviam segurado e acariciado com
paixão. Só de pensar nisso já sentia uma onda de desejo a percorrê-la. Sim, Lucas Naha era enigmático e poderoso,
com ou sem feitiçaria. Havia lançado seu próprio tipo de encantamento sobre ela.
Afinal, qual seria outra razão que a levou a virar-se para fitá-lo quando chegaram à porta, a esquecer-se de
pegar as chaves na bolsa, a erguer o rosto para ele em expectativa?
Entreolharam-se por longos momentos antes que Luke deslizasse as mãos por sua cintura esguia e a puxasse
para si possessivamente. Não demorou a cobrir-lhe os lábios com os seus num beijo ardente.
Mara não se surpreendeu, nem protestou pelo fato de ele não estar cumprindo a promessa de não tocá-la.
Com os dois as coisas pareciam acontecer assim, as emoções vindo à tona numa espécie de combustão instantânea.
Beijaram-se langorosamente, numa mútua exploração de línguas e lábios. Ele introduziu uma mão sob o
suéter dela, afagando-lhe as costas. Ela arqueou-se, sentindo uma corrente eletrizante em resposta ao calor dos
afagos sobre a malha de sua blusa. Abraçou-o pelo pescoço, deliciou suas palmas com o contato dos ombros largos,
das costas musculosas. Ao tocar-lhe os cabelos, acabou soltando-os da pequena tira de couro, que os prendia.
Afundou as mãos nas mechas negras e lisas, achando-as ainda mais sedosas do que havia imaginado.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Seus mamilos se enrijeceram em contato com o peito viril de Luke, que a estreitava mais de encontro a si, o
roçar de seus corpos como que uma erótica carícia. Depois, segurou-a pela cintura e, sem deixar de beijá-la, foi
conduzindo-a mais para as sombras ao final do corredor. Recostou-a na parede, continuando a estreitá-la junto a
seu corpo, a rija masculinidade evidenciando o quanto a desejava. Afagou-lhe um dos seios sob o suéter e
massageou-lhe o mamilo por cima do fino tecido da blusa. Deslizou os lábios pela garganta alva dela, mordiscou-lhe o
lóbulo, arrepiando-a por inteiro.
Mara sentia-se inebriada num misto de sensações excitantes, cada parte de seu ser respondendo às carícias
de lábios e mãos experientes. Quis protestar quando Luke ergueu a cabeça subitamente.
— Vamos lá para dentro... Para a cama.
As palavras diretas dele quebraram o encanto. Mara abriu os olhos, consciente da espécie de febre que
continuava a percorrê-la, do coração acelerado. Ainda assim, esforçou-se para resistir, para tentar se distanciar do
homem que a seduzia de forma tão instantânea.
O que estava fazendo, afinal? Não conhecia Lucas Naha o bastante para que fizessem amor. E algo mais
profundo a preocupava... Não tinha certeza se podia confiar naquele homem.
— Não acho que irmos para a cama seja uma boa idéia — respondeu, ofegante.
— A idéia é perfeita. Você me quer, eu quero você.
— Mas é apenas atração física. — As incertezas de Mara a fizeram reunir todas as forças para negar seu
próprio desejo. — Acho mesmo que não devemos...
Com um profundo suspiro, ele a soltou tão de repente que Mara cambaleou e se apoiou na parede.
— Está me enlouquecendo, mulher.
Com isso Luke se afastou. Lembrando-se de como o mútuo sonho de ambos terminara, ela o observou
desaparecendo nas sombras das escadarias. Desta vez não o chamou de volta. Não demorou a ouvir o ronco do motor
do jipe lá fora, os pneus cantando.
Então, o estava enlouquecendo? Pois ele fazia o mesmo com ela... E, pela primeira vez, o significado de
enlouquecer não tinha nada a ver com estado de saúde mental.

Por volta de uma da madrugada, ele entrou pela rua silenciosa de Mara Fitzgerald. Parou seu veículo,
tomando a precaução de ocultá-lo nas sombras de uma grande árvore. Olhou para o prédio de dois andares, avaliando
a altura até a sacada do apartamento dela. Para além do gradil, as portas de vidro projetavam uma tênue
luminosidade.
Será que a bisbilhoteira tinha medo de dormir no escuro? Gostaria de poder entrar na mente dela e
realmente fazê-la gritar de horror...
Mas isso seria difícil e o levaria a perder muito tempo, quando já tinha tantas coisas a fazer. Teria que se
contentar em assustá-la num plano físico.
Pegou a sacola do banco de trás e saltou depressa do veículo. Olhando ao redor para se certificar que não
haveria testemunhas, posicionou-se debaixo da sacada e, então, tirou de dentro da sacola o boneco feito de couro
cru, agora todo ensangüentado.
Pegando a coisa repulsiva pelo pescoço, imaginou que estivesse com as mãos na garganta de Mara Fitzgerald.
Odiava aquela intrometida de nariz empinado; desprezava-a tanto que era como se a conhecesse há um longo tempo.
O índio yaqui dissera-lhe que essa mulher branca podia ser perigosa, havia lido isso nas entranhas da galinha que
ambos tinham aberto.
Bem, ela poderia examinar a mensagem por si mesma... Se conhecia entranhas.
Rapidamente, apertou melhor um cordão ao redor do pescoço do boneco, cuja barriga fora aberta e forrada
com as mal-cheirosas e sangrentas vísceras da galinha. Depois, certificou-se que os fiapos de lã marrom e azul,
recolhidos do suéter dela, estavam firmemente presos no lugar com espinhos de cactos.
— Dor! — grunhiu, espetando melhor um espinho na cabeça do boneco. — Medo! — Esperava que a mulher
sofresse grandes doses de ambos.
Embora coisas muito piores pudessem esperá-la se não fosse esperta o bastante para se manter longe da
reserva kisi, se não saísse até do estado.
Apontando cuidadosamente o boneco para a sacada, arremessou-o e escutou dois baques surdos enquanto
ele batia de encontro ao vidro e, em seguida, caia no chão da sacada. Esperava que o sangue tivesse se espalhado
por todos os lados.

35
Sonhos do Coração Jeanne Rose
E que o barulho a acordasse. Querendo saborear o terror dela, esperou alguns minutos, oculto nas sombras
de alguns arbustos, para ver se aparecia na sacada. Como isso não acontecesse, praguejou baixinho, mas afastou-se,
voltando para seu veículo. A noite não duraria para sempre. Ele precisava concentrar toda a sua energia, reunir um
poder antigo e elementar...

Mara acordou de forma tão repentina que quase saltou do sofá.


O fogo estava quase extinto na lareira de mármore.
A luz do corredor continuava acesa, projetando uma suave luminosidade na sala. O relógio de parede
marcava uma hora da madrugada.
Tudo parecia calmo. Não havia nada de errado.
Exceto pelo latejo em sua cabeça.
Levantou-se devagar, seguindo até o armário do banheiro para pegar uma aspirina. Simplesmente não fora
capaz de se deitar na sua cama, na completa escuridão, naquela noite. Isso seria o mesmo que esperar pelos sonhos...
Dos quais precisava de uma pausa.
Mas teria sonhado algo? O que a fizera despertar de repente? Ouvira algum tipo de barulho incomum?
Parecia lembrar-se de ter ouvido algo, mas talvez houvesse sido apenas o latejo incômodo em suas
têmporas.
Ainda assim, continuou a olhar ao redor, enquanto deixava o banheiro. Deteve-se na entrada do quarto e
acendeu a luz. Vazio. Seguro.
Embora preferisse não estar sozinha.
A imagem de Luke povoou-lhe a mente, quisesse evitá-la ou não. Apagou a luz do quarto e retomou pelo
corredor. Preencheu um copo de água na cozinha para tomar a aspirina. Em seguida, colocou mais lenha na lareira.
Como proteção contra a noite?
Lançou um olhar para o retângulo escuro de vidro das amplas portas de correr que davam para a sacada,
perguntando-se se deveria verificar se estavam trancadas. Não era necessário; afinal já verificava duas vezes
antes de ter se deitado no sofá.
Mexeu na lenha com o atiçador até as labaredas se reavivarem, crepitando. Olhou para o brilho acobreado...
O calor do fogo.
Como o que sempre parecia estar fervendo em Luke.
Infelizmente, a imagem era tão perturbadora que não a fez querer voltar a dormir.

Fogo!
A fumaça densa pairava ao redor, obstruindo-lhe as narinas, provocando ardor em seus olhos. Sufocando,
tentou encontrar uma saída. Mas foi impedido pelas vigas que caíam. Todo o lugar parecia estar em chamas!
Chamas que alimentaram sua raiva.
A fúria crescia, alastrando-se... Até que ele avistou a sombra deslizando para a escuridão além do fogo.
Chocado, percebeu que zombava dele, rindo, desejando que morresse...
O mal!
Um mal muito pior do que qualquer fogo.
Lutando para reprimir seu medo, ele soltou um grito de guerra, depois praguejou alto, enquanto novas vigas
flamejantes continuavam caindo ao seu redor...
— Maldito seja! — Luke acordou sobressaltado, as cobertas e os travesseiros embolados no chão.
Um outro pesadelo.
Não tinha nenhum há algum tempo. E concluiu que esse sonho devia ter sido provocado pela frustração
sexual, combinado com as cervejas e as apimentadas tortillas que engolira em vez de um jantar apropriado.
Raramente tomava algo alcoólico e agora estava com o estômago embrulhado.
Praguejando, sentou-se na beirada da cama, detendo-se alguns momentos antes de se levantar. Foi quando se
lembrou da sombra em seu sonho... Um novo e sinistro elemento... E ouviu o alvoroço lá fora.
Alguém gritou e bateu uma porta. Passos apressados ecoaram pela casa.
Mas que diabos?

36
Sonhos do Coração Jeanne Rose
Levantou-se para pegar seu jeans da cadeira e, então, deu-se conta de que já estava vestido. Saiu depressa
do quarto e deparou com a mãe vindo, aflita, ao seu encontro.
— Há um incêndio, Luke!
— Aqui?
— Não, mas, oh, pode estar acontecendo na casa de alguém!
— Vou dar uma olhada lá fora.
Ele encaminhou-se rapidamente para a porta da frente. Sim, havia fogo! Podia senti-lo no vento, acre, letal...
Um clarão parecia vir da vizinhança da mercearia de Chalas e do centro comunitário.
Começou a correr, os pés descalços vencendo o chão duro e frio. Ignorando o dolorido atrito com o cascalho,
manteve o olhar fixo nas pessoas se aglomerando logo mais adiante.
Ao se aproximar, viu que a equipe de combate a incêndios do povoado tinha uma mangueira apontada para o
centro comunitário. Uma fumaça negra vinha de lá.
Ao menos não fora em nenhuma casa. Ninguém corria risco de vida. Soltando um profundo suspiro de alívio,
parou ao lado de uma mulher com duas crianças abraçadas às suas pernas.
— O que aconteceu?
Ela lhe lançou um olhar e continuou a prestar atenção à movimentação.
— Não sei. O prédio está queimando por dentro.
— Foi um curto-circuito, eu aposto — opinou, alguém que estava por perto.
— Duvido — disse uma mulher de meia-idade, com os cabelos divididos em duas grossas tranças. — Só pode
ter sido feitiçaria. Houve uma bola de fogo que flutuou diretamente pela porta...
Com um calafrio a percorrê-lo, Luke olhou para a mulher.
— Você a viu?
— Mattie Stolla me contou. Ela estava na janela da cozinha. Há um terrível mal à solta...
Ou feitiçaria mal-direcionada.
Ignorando que a mulher de tranças o estava encarando como se fosse o responsável, Luke se afastou.
Feitiçaria? Uma bola de fogo?
Apesar da onda de náusea, ele se aproximou da equipe que combatia o fogo, oferecendo-se para ajudar. A
preocupação era a de que a pressão da água da principal bomba do povoado não fosse suficiente.
Mas dez minutos depois, Delgado emergiu do prédio, sua camiseta enegrecida pela fumaça e a fuligem.
O homem se recobrara da bebedeira, notou Luke.
— O fogo foi dominado.
— Sim, e apenas arruinou algumas paredes internas. — Delgado sorriu ao perceber com quem estava falando.
— Seus murais já eram, Naha. Não pudemos fazer nada para salvá-los.
Os murais.
Luke não esboçou a menor reação. Na verdade, não se sentia assim tão mal a respeito, embora tivesse
dedicado laborioso tempo ao centro comunitário, e houvessem se perdido pinturas originais que nunca poderiam ser
totalmente recriadas.
Ao menos, nenhuma vida se perdera.
Podia dizer que os outros homens ficaram surpresos quando ele continuou prestativo, ajudando-os na
limpeza.
Mas o alívio dele foi breve. Sua mente ficou num turbilhão... Uma bola de fogo destruíra os murais? Não
estivera zangado por causa deles há dias e dias.
Estivera zangado com... Mara Fitzgerald.
Num fluxo de adrenalina, largou o que estava fazendo e correu em direção ao telefone público próximo à
mercearia de Chalas. Deviam ser umas quatro da madrugada, mas não se importava. Obtendo o número de Mara
através do serviço de auxílio à lista, discou-o freneticamente. Sua preocupação aumentou na medida em que o
telefone tocava e tocava.
Enfim, Mara o atendeu, a voz sonolenta.
—Alô?
Luke soltou um profundo suspiro de alívio. Felizmente, ela estava viva; a salvo, pelo que tudo indicava.
— Alô? Quem é? — insistia Mara, irritada, do outro lado da linha. — Droga, não estou com paciência para
ficar escutando sua respiração ofegante, seja lá quem for.

37
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Sou eu, Luke. Volte a dormir.
— Luke...
Mas ele já estava recolocando o fone no gancho.
Embora precisasse falar... Confiar em alguém.
E gostasse ou não, sabia que teria que ser em Mara.

CAPÍTULO VI
Às sete horas da manhã seguinte, Mara acordou com o rádio-relógio que havia trazido do quarto. Levantou-
se devagar, a cabeça ainda latejando. Percebeu que o pescoço estava dolorido. Devia ter dormido de mau jeito no
sofá.
Lembrou-se do inesperado telefonema de Luke por volta das quatro da madrugada. Por que ele teria ligado
naquele horário e, especialmente, sem dizer mais nada além de se identificar?
Ainda intrigada, apanhou o robe do encosto de uma cadeira e começou a se encaminhar para a cozinha, onde
deixara o vidro de aspirinas. Porém, ao passar em frente às portas envidraçadas da sala, banhadas pelo sol brilhante
da manhã, algo chamou sua atenção. Havia algumas manchas escuras no vidro, como se algo tivesse escorrido ali. E
não estivera manchado ontem... Franzindo o cenho, aproximou-se e destrancou as portas de correr.
Levou a mão aos lábios para abafar uma exclamação de horror ao avistar algo assustador na sacada.
Havia sangue espalhado no chão. Era uma trilha espessa e viscosa, misturada a... Vísceras e conduzia a um
amontoado repulsivo, caído junto ao gradil.
Mara sentiu uma onda de náusea; reprimiu a urgência de soltar um grito. Seu coração disparou, uma camada
de suor frio brotou-lhe na fronte.
Mas precisava olhar mais de perto... Tremendo, abriu mais a porta e saiu para a luz do sol. Aproximou-se e
estudou o que parecia ser um boneco, feito de couro cru. Estava aberto no meio, de onde saíam mais entranhas.
Espinhos de cactos estavam cravejados em algumas partes... Mas o que lhe chamou mais a atenção foi um tufo de lã,
preso por um desses espinhos na cabeça do boneco. Lã marrom e azul... Um tufo de seu próprio suéter!
Céus, seria algum tipo de boneco de vodu?
Ela recuou, calafrios a percorrerem sua espinha.
Alguém devia ter jogado aquilo da calçada. E batera de encontro ao vidro das portas com um baque... O que,
sem dúvida, devia ter sido o ruído que tivera a impressão de ouvir do sofá na noite anterior.
Mas quem faria uma coisa dessas? Luke?
Fora por isso que lhe telefonara de madrugada; para saber se ela havia descoberto sua repugnante
surpresa?
Devia ter ficado mesmo furioso quando se recusara a ir para a cama com ele.
Mais do que furioso... Se aquilo era um trabalho dele, Lucas Naha era muito mais do que um homem de
temperamento explosivo, torturado por pesadelos. Devia ser alguém seriamente perturbado; na certa, até perigoso.
Nem amoníaco, nem esfregão haviam removido todas as manchas de sangue da sacada. Mara chegou atrasada
ao seu trabalho.
Com os olhos sonolentos, os cabelos num coque frouxo que mal tivera tempo de fazer, o conjunto de calça e
blusa de seda, que vestira às pressas, um tanto amarrotado, ela sabia que sua aparência não devia estar das mais
impecáveis.
Mas Felice não fez qualquer comentário, enquanto trabalhavam juntas no depósito da galeria. Decidiam o
estilo das molduras a serem encomendadas para as novas pinturas trazidas por Luke e planejavam como distribuí-las
pela galeria no dia da exposição.
Mara mal podia olhar para as imagens misteriosas nas telas. Estremecia a cada vez que deparava com a
assinatura do pintor. Oh, como gostaria de poder esquecer facilmente a noite anterior... O estranho telefonema, a
"surpresa" que ele lhe deixara na sacada.
Massageou o pescoço dolorido pela noite mal-dormida no sofá. Ao menos, as aspirinas haviam amenizado sua
dor de cabeça.
— Com estas quatro pinturas e a Amanhecer, que já estava aqui, temos cinco obras de Naha — comentou
Felice. — Mas o que aconteceu com as outras que você foi ver na reserva ontem?
Mara havia se esquecido que usara esse pretexto.
Agora teria que mentir pela segunda vez.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Estão em andamento. Naha só queria me mostrar a direção que está tomando. É possível que ainda nos
entregue mais algumas pinturas antes da inauguração da exposição. — Na verdade, era provável que tivessem que se
contentar com aquelas cinco. Representado por um número tão reduzido de quadros, o trabalho de Luke mal
preencheria a sala principal. Mas teriam que se arranjar. E, no momento, essa a menor das preocupações de Mara.
— Ele deve gostar de você.
— Tanto quanto gosta de qualquer pessoa. — Ela tentou soar casual. Felice os vira abraçados no escritório,
mas não tinha a menor intenção de falar sobre a estranha atração de ambos. E não podia mencionar as habilidades
de "transportar-se" nos sonhos.
— Sabe, fiquei surpresa quando o vi — prosseguiu a assistente, sem dúvida, esperava que a chefe
comentasse algo mais pessoal. — Jamais imaginei que ele fosse tão sexy e bonito.
— É uma pena que a personalidade não seja das mais... Fáceis.
A chegada de um cliente salvou Mara de maiores comentários. A assistente dirigiu-se à área de vendas para
atendê-lo, retornando dez minutos depois. Foi, então, que ela percebeu que Felice poderia ajudá-la a entender
melhor o que lhe acontecera. De qualquer forma, tomou o cuidado de abordar o assunto de forma impessoal.
— Você sabe se os índios desta região fazem espécies de bonecos de couro cru?
— Espetados com espinhos de cactos? Sim. É algo relacionado à superstição... É um tipo de boneco com uma
maldição indígena.
— Como no vodu?
— Similar. — Havia um brilho curioso nos olhos azuis de Felice. — Viu algum na Reserva kisi?
Um boneco contendo uma maldição indígena... Nervosa, Mara esforçou-se para manter a expressão
inalterada.
— Apenas ouvi falar a respeito. Dizem que são recheados com vísceras sanguinolentas.
A assistente fez uma careta em aversão.
— Credo! Talvez as vísceras sejam para algum feitiço especial. Eu sei que fios de cabelo da vítima ou aparas
de unhas são colocados nesses bonecos às vezes.
— Ou fiapos de roupa? — Como os tufos de lã que Luke poderia ter encontrado no assento do jipe.
— É provável que também sirvam.
— Claro que uma maldição não tem o menor efeito sobre uma pessoa que não acredite nessas coisas.
Felice encarou-a, parecendo captar sua tensão.
— Está preocupada que algum índio fique com raiva de você e lhe lance alguma maldição? Como Lucas Naha?
Pelo que percebi, ele de fato parece gostar de você.
— Era mera curiosidade. Tudo que envolve a cultura indígena me fascina.
— Bem, eu ouvi dizer que você pode proteger a si mesma e à sua casa enterrando um saquinho com turquesa
em pó, misturada a alguns grãos de milho, junto à sua porta de entrada. Já que mora num apartamento, poderia
enterrá-lo num vaso de plantas ao lado da porta principal.
Mara forçou um sorriso, tentando aparentar naturalidade.
— Obrigada pela sugestão. Se eu começar a temer a magia negra, pensarei a respeito.
Magia negra?
Arrepiada, ela mudou de assunto e ambas continuaram trabalhando. Fez anotações, enquanto a assistente
media as telas. Durante todo o tempo, sentia-se desesperada por dentro, não apenas pelo fato de uma pessoa odiá-
la tanto para mandar-lhe um "recado" tão medonho e furioso, mas também por ter sido, provavelmente, um homem
pelo qual se sentia tão atraída.
Um homem com quem compartilhara um sonho tórrido... E beijos arrebatadores.
Não deixou de lhe ocorrer que Isabel Joshevama também tinha razões para tentar assustá-la. A anciã lhe
ordenara que ficasse longe de seus sonhos. Talvez achasse que um repugnante boneco de couro cru pudesse
amedrontá-la a ponto de partir de Santa Fé...
Bem, não se intimidaria, nem porque Luke desejasse tirar sua desforra, nem porque sua avó a quisesse fora
do caminho. Só precisava de tempo para refletir sobre o que acontecera. Ao menos era sexta-feira. Exceto pela
manhã de sábado em que pretendia vir à galeria para colocar em dia a papelada, teria o fim de semana para se
recobrar da fadiga. Para tentar pensar com clareza sobre o que faria... E se haveria como encontrar fontes "menos
diretas" para obter informações sobre a feitiçaria kisi e os bizarros sonhos.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Na volta para casa, ao final do dia, Mara respirou fundo, apreciando o ar puro e morno de verão e relaxou um
pouco. Embora a maioria dos moradores da cidade preferisse dirigir, ela gostava de andar, apreciando uns saudáveis
seis ou sete quarteirões de caminhada.
Nesse final de sexta-feira, a parte histórica da cidade estava mais movimentada do que o costume, com
turistas disputando vagas de estacionamento e grupos conversando animadamente, enquanto aguardavam em frente
de badalados restaurantes.
Ansiando por um pouco de tranqüilidade, ela decidiu seguir por um caminho alternativo para casa. Várias
valas cortavam a cidade; canais para escoamento de água, quando neve em excesso derretia nas montanhas ao redor.
Uma das mais largas e profundas passava perto de seu prédio, um conveniente atalho.
Já apreciando a serenidade, ela desceu pela vala; as paredes de terra que a ladeavam sendo altas o bastante
para permitir-lhe pensar que estava sozinha com a natureza. Uma vegetação escassa e rasteira ia estalando de
encontro aos seus sapatos.
Após alguns minutos de caminhada, um som estranho às suas costas deixou-a em alerta. Não vendo nada,
disse a si mesma para relaxar e continuar andando. Estava um pouco mais à frente quando ouviu novos sons.
Ruídos característicos... Como garras arranhando pedras...
Uma ligeira arfagem.
Parou abruptamente e tornou a virar-se. Algumas figuras surgiram de detrás de uma formação de arbustos,
definitivamente caninas na silhueta.
Coiotes?
Esses animais de fato vinham até a cidade de vez em quando, mas as pessoas raramente os viam. Embora
perplexa, Mara recusou-se a entrar em pânico. Coiotes não eram perigosos, disse a si mesma. O fato de estar sendo
rastreada, no entanto, era bastante assustador.
Prosseguiu pela vala, apertando o passo. Seu sapato enroscou numa grossa raiz incrustada na terra e por
pouco não perdeu o equilíbrio. Tomou a se virar para trás.
Desta vez, contou seis ou sete coiotes, mais animais do que a vegetação esparsa podia ocultar. Todos
pararam, seus olhos amarelos cintilando sob as sombras do anoitecer.
Gelando, ela sentiu o coração acelerado. Os animais estavam se multiplicando? E por que a seguiam?
Sairia daquela vala agora mesmo!
Felizmente, avistou um viaduto de concreto mais à frente. Significava que estava perto de casa.
Olhou ao redor, pensando na melhor maneira de escalar as paredes laterais. Sabia que havia uma parte bem
mais baixa, que já usara antes para subir até sua rua. Não estaria longe, mas achou melhor não se arriscar em
correr até lá, já que a falta de claridade a impedia de calcular a distância ao certo. De repente, viu por perto uma
grande formação de raízes que a ajudaria a subir. Avançou depressa, mas acabou parando com um sobressalto,
quando um enorme coiote surgiu das sombras, bloqueando-lhe a passagem.
Não pôde evitar um grito desta vez. Mas deu um passo à frente e sacudiu a mão.
— Vá embora!
O animal mostrou os dentes e rosnou, seus olhos amarelos cintilando.
Mara ficou mais apreensiva. Aquele não era em absoluto o comportamento característico de um coiote.
— Xô! — gritou. — Vá embora.
No momento seguinte, olhou em volta, dando-se conta que o restante dos animais a estava rodeando.
Pareciam observá-la em expectativa, dentes à mostra, posição de ataque.
Feitiçaria!
Mara lembrou-se de Isabel dizendo que feiticeiros podiam controlar animais.
O coiote que era maior que os outros e o amarelado começou a avançar.
— Droga! Eu disse para se afastar!
Ao mesmo tempo, ela agachou-se depressa e pegou algumas pedras do chão. Não eram muito grandes, mas
quando as atirou serviram para que os animais fossem recuando.
Mara relaxou um pouco.
Mas o coiote maior tornou a avançar em sua direção.
Agora mais depressa.
Horrorizada, ela gritou a plenos pulmões e atirou uma pedra com toda a força que pôde. O projétil acertou
em cheio a cabeça do animal, e ela pensou tê-lo visto cair. E, então, estava correndo, agarrando-se às raízes na

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
parede de terra, escalando e escorregando para baixo em puro pânico. Num fluxo de adrenalina, lutou para subir e,
num impulso final, conseguiu chegar ao topo.
Ocupada em se levantar e correr, não viu o homem no caminho acima até que trombou com ele. Mãos fortes
seguraram-lhe os ombros, enquanto ela tentava recobrar o fôlego. Com o coração aos saltos, ergueu os olhos e
deparou com um rosto grave e familiar.
— Luke!
— Era você fazendo toda aquela gritaria?
Nova onda de apreensão assaltou Mara. Se os coiotes haviam sido orientados por feitiçaria, Luke era o único
kisi na vizinhança...
— Me solte! Você tem mesmo muita audácia, seu... Seu brutamontes?
Franzindo o cenho, ele a soltou.
— O que há com você, afinal?
— Coiotes!
— Você viu algum?
— O que está fazendo aqui? — Será que ele a seguira do trabalho? — Tentando praticar mais um pouco da
sua perversa feitiçaria? Bem, pois pode pegar seus feitiços e voltar à reserva!
Luke podia muito bem estar fingindo aquele ar de surpresa, pensou ela, apontando para a vala.
— Não finja que não sabe do que estou falando. Havia pelo menos uma meia dúzia de coiotes ali em baixo. E
não estavam agindo de modo normal.
Do passeio, Luke espiou para baixo. Foi se aproximando e desceu pelo exato lugar por onde ela havia subido.
As luzes da rua se acenderam no instante em que ele desapareceu na escuridão, o fundo da vala submergindo nas
sombras. Mara escutou o som abafado de passos abaixo.
Acreditava mesmo em feitiçaria?, perguntou-se. Será que Luke, ou qualquer outra pessoa, tinham o poder de
controlar os animais?
Não pôde evitar que as dúvidas assustadoras tomassem a acelerar seu coração ao ouvir alguém, ou algo,
subindo de volta pelas raízes. Instintivamente, recuou.
Luke apareceu de repente.
Parecia um homem comum, não um maléfico feiticeiro. Ao menos seus olhos não continham nenhuma luz
sobrenatural.
— Ainda está com medo? Há algumas pegadas lá em baixo, mas nada mais.
Pegadas. O que significava que os animais eram reais.
— Os coiotes se foram?
— Claro que sim. Podem ser encontrados em qualquer lugar deste estado, mas nunca ferem ninguém e...
— Sei disso. Mas esses estavam atrás de mim — interrompeu-o ela, aborrecida. — Havia um bem maior que
os outros, que mostrou os dentes e avançou para mim. Então, atingi-o na cabeça com uma pedra. Não pude evitar em
achar que fosse... Feitiçaria. Isabel me disse que algumas pessoas conseguem controlar animais.
— E está deduzindo que tenha sido eu?
Ela não pôde conter a raiva, não depois dos últimos acontecimentos.
— Ouça, algum maníaco jogou um boneco de couro cru na minha sacada ontem à noite... Uma coisa nojenta e
ensangüentada, recheada de vísceras, espetada com espinhos de cactos e com fiapos do meu suéter! Depois recebi o
seu telefonema estranho por volta das quatro da madrugada. Você estava querendo saber se eu já tinha visto sua
pequena "surpresa" na sacada? É por isso que está aqui?
Uma expressão cautelosa e quase angustiada passou pelo rosto de Luke.
— Viu alguém atirando o boneco?
Mara notou que ele não estava tentando se defender.
— Não vi nada. Tive a impressão de ouvir um som estranho. E deve ter sido nesse momento que a coisa foi
jogada na minha sacada, mas só a descobri pela manhã.
— E a que horas ouviu esse som?
— Me lembro de ter olhado ò relógio de parede. Era uma da madrugada.
— Uma. — Luke assentiu, por alguma razão parecendo satisfeito. — Eu estava no meu ateliê pintando a essa
hora.
Mas ela não estava satisfeita.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— É o que diz. Mas mesmo que você tivesse alguém para comprovar o seu "álibi", ainda assim poderia ter
enviado outra pessoa para entregar sua "encomenda".
— Gosto de trabalhar por conta própria.
Com relutância, Mara assentiu. Provavelmente devia ser verdade. Embora aliviada por não ter sido Luke a lhe
enviar o repulsivo aviso, estremeceu ao pensar que havia algum estranho tentando assustá-la.
— Não sou responsável pelo tal boneco — assegurou Luke. — Nem pelos coiotes. Além do que, se eu tivesse
tal habilidade com os animais, se quisesse usá-la contra você, agora não estaríamos aqui conversando calmamente.
Eles teriam pegado você.
Uma cena nada agradável de se imaginar. E uma que dificilmente aliviava as dúvidas que ela estava tentando
afastar. Ele deu mais um passo à frente, sua proximidade envolvendo-a por completo.
— Meu jipe está estacionado um pouco mais adiante. Vamos indo.
— Para onde?
— Até um restaurante que conheço. Estou com fome. E, na certa, um jantar também vai fazer bem a você.
Mara soltou um riso um tanto nervoso.
— Jantar? — Certamente ele não estaria tentando ser amistoso... Nem romântico. Se bem que pensar nessa
segunda possibilidade produzia-lhe uma onda de expectativa. — Está maluco.
— Não está com fome?
— Não consigo pensar em comida depois do susto que passei.
— Então, tome um drinque. Está precisando relaxar.
— É um tanto difícil mudar de estação assim... Passar de feitiçaria para drinques e comida num estalar de
dedos.
— Podemos combinar uma coisa. Falaremos sobre feitiçaria enquanto jantamos.
Ele tornou a apontar para o jipe. Mara notou que estava estacionado em frente a seu prédio. Sentiu que
havia uma espécie de urgência em Luke, mas não fez nenhum gesto para tocá-la. Poderia confiar nele ou não? Sua
mente clareara um pouco e lembrou-se que ela fora até a Reserva kisi e voltara sem que nenhum mal lhe
acontecesse.
— Vim para ver você, conversar — prosseguiu ele, enfim oferecendo uma explicação para sua presença. —
Calculei mais ou menos o horário que viria para casa da galeria. Estava à espera no jipe quando a gritaria vindo da
vala me chamou a atenção. Bem, quem sabe, podemos ter agora aquela conversa que não houve às quatro da
madrugada. Algo estranho aconteceu.
Algo estranho. Uma explicação para o telefonema.
Contra a vontade, Mara se sentiu sucumbindo mais uma vez. Fascinação sobrepujou a desconfiança. Uma
poderosa poção quando misturada à atração entre ambos.
— Está bem. Vamos jantar.
Enquanto se encaminhavam para o jipe, Mara ponderou que, de qualquer forma, não teria sido capaz de se
aquietar. Teria ficado andando de um lado ao outro do apartamento, nervosa, olhando para as paredes, tentando
entender o que acontecera.
Luke podia ser assustador, suas atitudes misteriosas, ainda assim a fazia sentir-se menos solitária.

CAPÍTULO VII
— Onde você aprendeu o dialeto kisi? — perguntou Luke a Mara, enquanto ambos saboreavam um prato de
nachos num tradicional restaurante mexicano, numa parte menos freqüentada da cidade. Ele detestava os novos
lugares com sua comida requintada e turistas.
— Kisi? Do que está falando?
— Eu ouvi você gritando "cuidado" em dialeto, quando estava dentro da vala.
— Pois não sei uma palavra sequer em kisi. Eu estava apenas gritando desesperada.
Embora o próprio Luke não fosse um especialista no assunto, reconhecia certas palavras de poder, das do
tipo que ouvira sendo usadas em cerimônias que assistira na infância. Além do que, tinha uma audição das mais
aguçadas. De qualquer forma, Mara agia como se estivesse dizendo a verdade. Resolveu deixar o assunto de lado,
ouvindo enquanto ela continuava a relatar os perturbadores detalhes do que passara naquele dia.
Só fez um comentário quando Mara manifestou sua suspeita em relação à Isabel.
— Minha avó jamais seria capaz dessas táticas.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Nem tampouco ele... Ao menos não quando estava em seu estado mental consciente. Mas se por um lado
ficava aliviado em saber que não era responsável nem pelo incidente do boneco de couro cru, nem pelo dos coiotes,
por outro havia a preocupação sobre o fato de alguém ter sido. Mas quem?
— Isabel me disse para ficar longe dos sonhos dela...
— E o que fez de mim um suspeito?
— Eu me recusei a ir para a cama com você.
Luke quase sorriu.
— Certo. E eu me vingaria de uma forma asquerosa dessas, como se não pudesse encontrar uma mulher
"disponível" quando quero uma.
— Me perdoe pela dedução. — Mara sentia o rubor subindo-lhe às faces, mas não pôde evitar o sarcasmo: —
E eu não percebi que você estava procurando qualquer coisa que usasse saias.
O comentário sarcástico atingiu o alvo em cheio...
Ele quisera Mara, sim, e ninguém mais, assim como ainda a queria agora. Nesse instante. Não que estivesse
disposto a admitir.
As faces dela continuavam coradas, enquanto mantinha os olhos fixo no menu.
— Vamos fazer o pedido. Você prometeu falar sobre o telefonema desta madrugada, e eu não quero ficar
fora a noite toda.
Luke fez um sinal para chamar a garçonete, que anotou os pedidos e perguntou-lhes se queriam uma outra
bebida.
Mara entregou à mulher seu copo de margarita.
— Uma é suficiente para mim.
Luke pediu mais um refrigerante, e ela virou-se para fitá-lo, quando tornaram a ficar a sós. Passou as pontas
dos dedos pelas têmporas.
— É estranho, mas o álcool parece ter dissipado a dor de cabeça que tive desde ontem à noite. Esses
bonecos de maldições podem causar dores físicas?
— Nunca tive o azar de receber algum.
De qualquer maneira, ele ouvira dizer que algo assim era possível. Não que Mara precisasse saber. Ou que
pronunciar uma palavra de poder kisi era um modo de afastar tal dor. Decidiu esquecer o assunto antes que ele
próprio começasse a se sentir mais confuso.
Quando a garçonete retornou com o outro refrigerante, Mara perguntou:
— Você não bebe?
— Não. Meu pai era um alcoólatra que morreu numa briga de bar. Sempre procuro evitar bebidas alcoólicas.
— As cervejas que tomara na noite anterior haviam sido suas primeiras em anos.
— Uma briga? Que tragédia. Deve ter sido muito difícil para você e sua mãe.
Apesar de ter estado aborrecida com ele há questão de poucos minutos, ela parecia sincera. Tinha que
admitir que Mara provavelmente era uma boa pessoa. Na verdade, quanto mais a conhecia, mais se dava conta de que
aquela mulher possuía integridade, além de uma calma determinação, uma íntima serenidade que comprovava que não
era maluca. Em algumas maneiras, até o fazia lembrar de sua avó.
Se bem que Mara não tinha o treinamento de Isabel, nem sua sabedoria de anciã. Não a culpava por estar
desconcertada com o boneco de couro cru e os coiotes de comportamento estranho.
Pelo que ela lhe descrevera, o grande coiote amarelado parecia com aquele que algumas pessoas haviam
afirmado estar rondando o povoado. Poderia tratar-se de alguma ilusão produzida por feitiçaria? Ou o animal fora
mandado cem quilômetros ao sul no encalço de uma vítima específica?
Não fazia idéia do por que um feiticeiro quisesse perseguir Mara. Bem, mas afinal, estava confuso a respeito
de uma porção de coisas... Uma mulher branca invadindo sonhos kisis, um ancião do clã assassinado em seu sono...
Uma bola de fogo no centro comunitário.
— Você comentou que iria falar sobre algo estranho que aconteceu — lembrou-o Mara, interrompendo-lhe os
pensamentos. — Que iria me explicar a razão do seu telefonema.
Estranho que o assunto fosse mencionado no exato momento em que ele pensava a respeito. Mais uma vez
ponderou as razões que o impeliam a confiar naquela mulher. Talvez fosse principalmente a intuição.
Parecia haver um elo invisível entre ambos.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Houve um incêndio no povoado ontem de madrugada — contou-lhe. — No centro comunitário. Os murais
foram destruídos.
— Aquelas maravilhosas pinturas? Céus, mas como isso foi acontecer?
Luke lembrou-se da sombra sinistra em seu sonho, fugindo do seu alcance.
— Uma mulher no povoado estava comentando que uma vizinha tinha visto uma bola de fogo. Do tipo criada
por feitiçaria. De qualquer forma, apenas algumas paredes internas foram queimadas.
— Mas você não chegou a ver a tal bola de fogo. Assim, não pode ter certeza se o incêndio não foi causado
por um acidente ou por maldade humana, em vez de por magia, não é?
— Eu não tenho nenhum problema em aceitar o sobrenatural — disse ele, com impaciência. — Ao menos no
que diz respeito à magia kisi. Já vi pessoas chamando o vento, evocando relâmpagos e trovões. Eu mesmo deveria ser
capaz disso, se quisesse seguir o treinamento adequado.
— Por isso recebeu o nome de Mestre da Tempestade?
— Sim. Mas não vou ficar aqui tentando convencer você. Cada pessoa já tem suas próprias crenças.
— Bem, então acho que podemos voltar ao telefonema. Exatamente por que quis falar comigo?
— Tive um pesadelo. Foi sobre um lugar pegando fogo.
— Algum tipo de premonição?
— Pior. — Luke hesitou antes de partilhar de algo que nunca revelara a ninguém mais. — Eu estava dormindo
entre as três e as quatro da madrugada, que foi quando o fogo começou. Como comentei há pouco, nunca desenvolvi
meus poderes kisis, nunca aprendi como evocar raios, nem a criar bolas de fogos. — Fazendo uma pausa, ele concluiu
que ainda não estava preparado para admitir que temia a escuridão dentro de si, algo desconhecido que poderia,
sabia-se lá, ser destrutivo e até maléfico se saísse de seu controle. — E em algumas pessoas, essas habilidades em
estado bruto poderiam fugir-lhes ao controle ou, então, serem usadas de forma abusiva.
Ela permaneceu em silêncio por longos momentos.
— Você acha que causou o fogo?
— Existe a possibilidade... Enquanto eu estava dormindo. Talvez eu tenha criado uma bola de fogo com meu
pesadelo.
— Você teme tanto assim o seu subconsciente? Mas essa hipótese não faz sentido. Por que você iria querer
destruir seus próprios murais?
— Quem sabe? Tenho sentimentos conflitantes em relação a várias coisas.
Mara continuou pensativa, enquanto a garçonete se aproximava com os pedidos do jantar. Não estava com
fome e pedira apenas algumas tortillas.
Luke não queria que ela pensasse que suplicava por sua simpatia e prosseguiu:
— Você me perguntou sobre meus pesadelos antes, assim estou lhe contando. Liguei de madrugada para ver
se você estava bem, para saber se também estava sonhando com um incêndio. — E principalmente quisera se
certificar que ela não estivera num incêndio.
— E como sabe que eu não estava sonhando com isso?
— Eu teria percebido pelo tom de sua voz. Já partilhamos de um sonho. Estamos ligados de alguma forma. —
Não havia como negar.
Mara sacudiu a cabeça.
— Você é melhor do que eu nessas coisas. O misticismo faz minha mente rodopiar.
Obviamente, ela não sabia o quanto era especial. Branca ou não, tinha poder.
— Você possui habilidades incomuns. — E gostasse ou não, a exemplo dele mesmo. — Pode "transportar-se"
nos sonhos. Seria bom começar a se acostumar com a idéia.
— Posso me "transportar" nos sonhos — repetiu Mara, seguindo a sugestão. — Posso entrar nos sonhos dos
outros.
Certo. E ao menos ela não precisava se preocupar com a possibilidade de abusar de suas habilidades. Pelo
que Luke sentira desde o início, não havia nenhuma escuridão dentro de Mara.
Tendo aliviado umas poucas coisas em seu peito, ele concentrou-se na comida. Começou a saborear seu
jantar, um prato típico a base de carne assada com temperos acentuados. Em contraste, Mara mal tocava nas suas
tortillas. Perguntando-se por que ela não estaria com fome, Luke levantou os olhos para fitá-la.
Flagrou uma lágrima rolando por sua face alva.
Detestava ver uma mulher chorando.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— O que há com você?
Mais lágrimas afloraram-lhe aos olhos, e Mara enxugou-as com a ponta do guardanapo. Droga, ele esperava
que não tivesse sido nada do que havia dito.
— Acho que o estresse e o cansaço de hoje estão me atingindo — murmurou ela. — Mas não posso parar de
pensar na habilidade de entrar nos sonhos dos outros. No fato de poder mesmo fazer algo assim. Eu... Não havia me
dado conta do significado disso. Eu deixei... Uma pessoa morrer.
Luke franziu o cenho.
— Ninguém morreu. — Exceto Victor Martinez, mas ela nem sequer chegara a conhecê-lo.
— Você não entende. Aconteceu antes de eu ter vindo para Santa Fé. — Mais lágrimas. Mara continuou a
enxugá-las, enquanto se esforçava para se recompor.
— Eu... Tinha um paciente... Que me pediu para que entrasse nos sonhos dele e o salvasse de um monstro. Eu
disse que não podia...
— E o monstro o matou?
— Um monstro... Algo dentro de si. Ele cometeu suicídio logo depois que saiu do hospital. — Havia uma
expressão torturada no rosto dela. — E ironicamente eu posso me "transportar" nos sonhos... É como se ele tivesse
me pedido para entrar em seu sonho, mas eu o tivesse deixado morrer.
Agora não podia mais conter os pequenos soluços, seus ombros tremiam.
Incapaz de ficar indiferente, Luke passou um braço ao seu redor, puxando-a para si. Forçou-se a conter sua
atração física para apoiá-la naquela crise mais imediata. A dor de Mara era profunda, intensa, palpável o bastante
para que ele também a sentisse.
— Você não sabia que tinha essa habilidade de entrar nos sonhos de alguém na época. Nem sequer pode
controlá-la agora. Não havia nada que você pudesse fazer.
— Não posso ter certeza.
— Claro que pode. A única razão pela qual foi capaz de entrar no meu sonho e no da minha avó foi porque nos
também temos essa habilidade.
Ao menos, era nessa explicação que ele iria insistir, já que não via nenhuma outra para esclarecer esse
fenômeno que acontecera com alguém não kisi. Afastou-lhe algumas mechas finas da fronte, aninhou-a o máximo que
pode junto a si, considerando as cadeiras separadas.
Sabia que aquela química entre ambos era mais do que atração sexual. E Mara era mais do que boa, mais do
que íntegra. Era inteligente, linda, especial... Apaixonante.
Precisou fazer um tremendo esforço para resistir à vontade de levá-la dali naquele instante. Queria estar
sozinho com ela. Sem dúvida, precisaria apelar ainda mais para seu autocontrole quando a levasse para casa, pois
haveria uma urgência em acompanhá-la até o apartamento e passar a noite ao seu lado, tentando protegê-la tanto da
dor em seu íntimo quanto das ameaças externas.
Ambos podiam se envolver com grande facilidade.
E era exatamente o que ele não poderia se permitir.
Não era o responsável pelo boneco de couro cru nem pelos coiotes, mas isso não eliminava a possibilidade de
que poderia ser muito mais perigoso.
Se de fato se importava com Mara, teria que se manter afastado.

Mara concluiu que se alguém possuía uma personalidade múltipla esse era Lucas Naha.
Havia um lado seu que podia ser rude, frio e até intimidante.
Mas havia outro em que provava que também sabia ser perfeitamente civilizado, gentil e atencioso. Ficara
surpresa quando a confortara no restaurante, mostrando-se solidário com sua dor.
Tocada, sentira-se confusa em seguida, quando ele parecera se fechar em si mesmo. Mas talvez ainda
estivesse se sentindo exposto após ter admitido seu medo ante a possibilidade de ter causado o incêndio. Não era
de admirar que tivesse relutado antes em falar sobre seus pesadelos. Luke achava que não podia controlá-los e, na
certa, estaria carregando um pesado fardo de culpa.
Um sentimento incontrolável que ela conhecia muito bem.
Assim, não o pressionou a conversar no percurso até seu apartamento, embora a costumeira tensão
continuasse pairando entre ambos.
O próprio Luke acabou rompendo o silêncio.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
—Você não viu quaisquer estranhos na sua vizinhança?
— Não moro aqui há tempo o bastante para saber quem é ou não estranho.
— Notou alguém seguindo você, rondando o seu prédio? Um índio?
— Apenas você. — O tom de Mara soou espirituoso.
Luke lançou-lhe um olhar de lado.
— Precisa ficar bem atenta. Ficou evidente que alguém não gosta de você.
— Não gosta é pouco.
— Poderia ser pior. Até aqui você só recebeu avisos, nada realmente grave.
— É o que parece. — Do contrário, os coiotes não a teriam deixado escapar... — O que não consigo entender
é o porquê. Quem teria algo contra mim?
— Talvez tenha algo a ver com sua capacidade de "transportar-se" nos sonhos.
— Alguém mais sabe a esse respeito?
— Uma pessoa com poder costuma reconhecê-lo quando este existe em outras.
— Poder? Pois sim, até o momento essa habilidade de entrar em sonhos só me trouxe problemas.
Além de uma incrível experiência em forma de fantasia erótica compartilhada com Luke, uma que gostaria
de repetir na vida real, pensou Mara. E, ao pararem em frente a seu prédio, o rosto dele sério, ela se perguntou se
estaria tendo os mesmos pensamentos. Mas notou que o jipe continuou com o motor ligado.
Assim, fez menção de descer, sentindo-se fraca e esgotada.
— Espere um minuto.
Ele não estaria prestes a sugerir em acompanhá-la até a porta, certo?
Mara não tinha certeza se poderia lidar com um outro beijo tórrido de boa-noite. Acabaria desfalecendo, e
Luke teria que carregá-la nos braços até o interior do apartamento...
Mas ele permanecia com uma expressão grave, o olhar perdido na escuridão da noite.
— Você não precisou de treino para usar suas habilidades... Ao menos nas formas mais simples. Deve prestar
atenção a tudo em torno de si, aguçar os ouvidos, ficar alerta. Se caso se sentir inquieta ou cismada com algo, leve a
sério.
— Enfim, está me dizendo para confiar na intuição?
— Você precisa se cuidar.
Luke abriu o porta-luvas e remexeu em seu conteúdo, retirando algo.
Era um saquinho de couro, amarrado com um cordão. Passou-o a ela, e seus dedos se roçaram, renovando o
clima de sensualidade. Mas ele afastou a mão depressa, o semblante permanecendo indecifrável.
— O que é isto?
— Uma espécie de amuleto. Coloque-o debaixo do seu travesseiro quando for dormir nesta noite.
— Isto vai me proteger?
— Mal não fará.
— O que há aqui dentro? Turquesa em pó?
— Entre outras coisas.
Ótimo. Mara guardou o saquinho de couro em sua bolsa, pensando que toda a ajuda era bem-vinda. Se bem
que estava esgotada demais, física e emocionalmente, para sentir medo.
Aliás, sentia-se mais consternada em relação ao seu paciente, o homem perturbado que poderia ter salvado,
do que a algum lunático jogando-lhe bonecos repulsivos, ou mandando coiotes no seu encalço.
Ou criando bolas de fogo...
Não queria acreditar que Luke fosse culpado de provocar incêndios, de forma consciente ou não. Na
verdade, deu-se conta de que, no fundo, nunca quisera crer que ele fosse capaz de qualquer atitude mais reprovável
de que seu jeito rude e seus beijos roubados.
— Pode descer agora. Preciso pegar a estrada.
E falando em jeito rude...
— Não acha que um "boa-noite" seria mais cortês?
— Fui reprovado no curso de etiqueta.
Contendo a exasperação, Mara tratou de descer do jipe.
— Bons sonhos para você também — disse-lhe, irônica.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Entrou em seu prédio, sentindo o olhar que a acompanhava. Só quando espiou pelas portas de correr na sala
de estar, viu Luke se afastando pela noite em seu veículo.
Nesse momento, ela sentiu um imenso vazio em seu íntimo. De repente, lembrou-se do amuleto na bolsa e o
pegou, pretendendo colocá-lo debaixo do travesseiro, conforme recomendado.
Não que estivesse disposta a deixar algo, ou alguém, impedi-la de dormir naquela noite.
Nem mesmo Luke. Nem se por um milagre ele voltasse e surgisse à sua porta num atípico comportamento
charmoso e sedutor.

Ela trabalhava com a pedra sem cessar, a tarefa de moer o milho, familiar e relaxante. Ao menos a poupava
de ficar pensando em seu dilema...
Levantou os olhos quando ouviu alguém entrando na habitação. A anciã usava o costumeiro traje, um vestido
preto com um cinto verde e vermelho trançado, mocassins claros e um colar de turquesa.
— Sabemos o que você tem feito — disse-lhe, num tom de censura.
A jovem índia continuou a moer o milho, mantendo os olhos baixos em respeito.
— Não é apropriado — prosseguiu a mulher. — E nestes tempos, é muito perigoso. Você deve parar. Todos
nós concordamos nesse ponto. Você está arriscando as vidas do nosso povo.
Parar? Fazer isso seria o mesmo que desistir da sua própria vida...
E eram esses mesmos pensamentos que a invadiam quando esperava numa parte mais elevada do penhasco ao
entardecer, fora dos limites do povoado. Ela o vira se aproximando, sabia que nesse exato momento estaria subindo
para encontrá-la.
Uma forte saudade fazia com que se esquecesse de parte da culpa. Quase, gritou em alegria ao ouvi-lo vindo
a seu encontro. Mas precisava permanecer quieta. Devia ter cautela.
Enfim, a figura vigorosa de um guerreiro surgiu por detrás de uma grande rocha avermelhada. Conhecia
aqueles ombros largos, os braços fortes, as pernas musculosas.
Ele não sorriu ao vê-la, mas o brilho de paixão em seus olhos negros era evidente. Tinha o peito desnudo,
acima da tanga; os cabelos longos e lustrosos estavam soltos, e usava neles uma pena de águia, a prova de sua
coragem.
— Venha cá — ordenou-lhe, num tom quase zangado. — Já faz tempo demais.
— Tem sido perigoso. — Mas ela esqueceu-se disso, da necessidade de se esconder dos inimigos, enquanto
seu bravo guerreiro a abraçava. — Não precisa ter nenhuma dúvida sobre minha devoção. Você nunca sai dos meus
pensamentos, do meu coração.
— Então, parta daqui comigo.
Mas mesmo dividida, ela não podia fazer nenhuma promessa. Em vez disso, conduziu-o para um recanto
protegido por uma formação de pequenos arbustos e indicou uma manta que havia estendido previamente sobre o
chão de terra avermelhada. Sem hesitar, ele retirou-lhe o vestido por cima da cabeça e jogou-o de lado. Percorreu-
lhe o corpo exuberante com um olhar faminto. Deitou-a com gentileza sobre a manta, despiu a própria tanga
depressa e abraçou-a, o peito roçando-lhe os seios num sensual contato.
Ela retribuiu com todo ardor aos lábios que se apossaram dos seus. Entreabriu-os para a língua que lhe
invadia a boca, da mesma forma como lhe abrira seu coração.
O guerreiro deslizou as mãos por sua pele macia; eram grandes, fortes e calejadas pela caça e pelas lutas.
Afagou-lhe os seios, provocando os bicos rosados com as pontas de seus dedos e com os lábios quentes. Ao
mesmo tempo, afastava-lhe as pernas para acariciá-la com intimidade.
Ela estremeceu em crescente prazer, soltou gemidos abafados, mordendo o lábio inferior para não fazer
barulho. Quando não podia mais suportar a deliciosa tortura, puxou-o para si.
— Agora — sussurrou.
Ele não hesitou em atender-lhe à súplica. Tornou a deitar-se sobre seu corpo macio e possuiu-a.
Ela o acompanhou nos movimentos ritmados, arqueando os quadris instintivamente, sentindo seu espírito
elevar-se no sopro do vento.
Disse o nome de seu bravo guerreiro, abriu os olhos para observar-lhe o rosto transbordando de paixão. Os
traços fortes eram tão adorados e familiares quanto à terra selvagem em que ambos haviam nascido.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Ele acelerou os movimentos de seu corpo, numa cadência frenética, até que ambos foram arrebatados, como
que subindo vertiginosamente até as alturas, o corpo inteiro vibrando num intenso êxtase, e, enfim, flutuando de
volta num estado de puro contentamento.
Permaneceram abraçados por longos momentos, agora envolvidos pela manta.
Ela acariciou-lhe o rosto másculo com infinito carinho.
— Luke.
— Mara — murmurou ele, continuando a estreitá-la em seus braços.
Aquele homem a conhecia, assim como também o conhecia.
Estavam juntos, de corpo e alma, como traçara o destino, não importando quem dissesse que era errado.
Mais uma vez, o cenário ao redor mudou... Oscilando como numa miragem... Lentamente tornando-se o solo
amplo e avermelhado de um cânion.
Ela estava sozinha, exausta, com muito calor e sede. Cada parte de seu corpo doía. Tinha os lábios rachados,
a boca seca, os pés ardiam.
Faltava-lhe o fôlego.
A cabeça pendia para a frente e mal podia mover as pernas pesadas, nem mesmo quando ouviu o som
retumbante.
Tum, tum, tum.
Algo terrível vinha em sua perseguição!
Tentou correr. A terra tremeu. Seu perseguidor era cruel, implacável; podia ouvir-lhe a respiração alta,
ofegando numa espécie de fúria. Uma sombra surgiu acima dela, bloqueando o sol.
Iria morrer!
Merecia morrer, pensou, desolada, caindo ao chão tão lentamente quanto num sonho.
Um sonho?
Sim... Um sonho! As palavras ecoaram por sua mente, flutuaram ao longe, carregadas pelo vento, ressoaram
pelas montanhas ao redor como uma batida triunfante.
Com grande dificuldade, Mara Fitzgerald lutou para se pôr de pé e, enfim, virou-se para enfrentar seu
inimigo.
— Isto não terminou! — gritou-lhe.
Assim como também não havia terminado entre ela e Luke.

CAPÍTULO VIII
Luke certamente invadira seu sonho, pensou Mara, sem conseguir tirá-lo da cabeça, enquanto terminava de
organizar a papelada da galeria no sábado.
E que sonho... Um cenário realista o suficiente para tirar o fôlego de qualquer um. Começara com algo
envolvendo índios e, depois, progredira para uma erótica cena de amor. Contivera emoções tão fortes... Saudade,
paixão e uma espécie de melancolia. As sensações que a tinham dominado haviam parecido tão reais que, enfim, a
haviam levado a uma imensa satisfação física.
Até o seu antigo pesadelo de infância sobre perseguição havia sido afetado. Lembrava-se que, de repente, o
cenário mudara e se vira correndo por uma terra árida e quente outra vez. Mas agora fora diferente. Ela se virara e
desafiara seu perseguidor, mesmo não o tendo visto em foco. Depois disso, dormira profundamente, num sono
tranqüilo e repousante, e acordara cheia de esperança.
Embora não tivesse certeza com esperança do que em específico.
Mara ainda ponderava a respeito, enquanto passava numa livraria próxima antes de ir para casa. Comprou
vários livros novos sobre sonhos e religião dos índios do sudoeste, e começou a caminhar de volta à galeria, onde
deixara seu carro.
Após o incidente dos coiotes, concluíra que seria mais seguro dirigir.
Enquanto atravessava a praça central da cidade, teve uma sensação estranha e lembrou-se do aviso de Luke
para confiar nos seus instintos. Inquieta, olhou ao redor e qual não foi sua surpresa quando deparou com um jipe
comanche preto estacionado do outro lado da praça, junto a vários outros carros.
Seu pulso acelerou-se ao deparar com Luke. Estava sentado ao volante, olhando em sua direção. Será que a
estivera espionando? Mas por qual razão? E se fosse o caso, era evidente que ele não fizera a menor questão de ser
discreto.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Com a adrenalina a percorrê-la, Mara aproximou-se do jipe em determinação. Estava cansada dos jogos
daquele homem, que a deixavam inquieta e ainda mais confusa. O olhar dele era intenso e indecifrável. Ela forçou-se
a ignorar o friozinho em seu estômago e sorriu.
— Você me disse para prestar atenção a índios rondando por perto. Estava se referindo a sonhos também?
— Antes de lhe dar chance de responder, algo a fez acrescentar: — Foi tão bom para você quanto foi para mim
ontem à noite?
Uma expressão de genuína surpresa passou pelo semblante de Luke, mas se recobrou depressa.
— Sim, foi sensacional.
Era a confirmação de que realmente haviam partilhado do mesmo sonho...
E iria corar!, pensou Mara, zangada consigo mesma. Sentindo um calor expandindo-se por seu corpo,
procurou manter a expressão inalterada e dar outro rumo ao assunto.
— Você se lembra da parte sobre os índios? Da habitação no penhasco?
— Tudo o que me lembro é que subi por uma espécie de caminho longo e íngreme. Você estava me esperando
no topo do penhasco com uma manta e nós...
— Fizemos amor — acrescentou Mara depressa.
Houvera sentimentos verdadeiros envolvidos, embora esperasse que fizessem apenas parte do sonho e não
da realidade. Que desastre isso seria...
— E, então, o que quer agora? — Uma das mãos fortes dele deslizava pelo volante do jipe. Ergueu uma
sobrancelha espessa e sua voz soou rouca e sugestiva. — Uma repetição daquela cena tórrida?
Ela deveria saber que Luke não daria a devida importância à situação. Reprimiu seu desapontamento,
recusando-se a admitir que aquilo magoava.
— Não tente vulgarizar as coisas. Partilhamos de uma bela experiência. — Não resistiu a acrescentar: —
Provavelmente porque pensei que você fosse um outro alguém.
Com isso virou-se e começou a caminhar. A porta do jipe batendo foi o indício de que ele descera para segui-
la. E de fato alcançou-a em poucos instantes. Segurou-a pelo braço, virando-a para si. Seus olhares se encontraram,
e Mara sentiu sua pele se arrepiando em sensual resposta.
— O que quer dizer, eu era um outro alguém?
Mas Luke fora outro alguém, pelo menos a princípio.
— O amante do meu sonho usava uma típica tanga indígena e tinha uma pena de águia presa aos cabelos. Era
alguma espécie de bravo guerreiro.
— Não importa o que eu estivesse usando. Você sabia que era eu.
— Só percebi no final. — Logo depois que ela alcançara um êxtase arrebatador. Apenas em lembrar sentia as
pernas fraquejando, — Mas, então, já era tarde demais.
— O que está tentando fazer... Deixar-me com ciúmes?
— E por que você deveria ter ciúmes? — Mara lançou-lhe um olhar divertido, satisfeita em vê-lo descendo
um pouco do pedestal. — Exceto pelo jantar de ontem, nunca tivemos sequer um encontro de verdade. Ou é por isso
que está na cidade outra vez... Para reparar a situação?
Mara tentou dar um ar de indiferença às palavras, mas no fundo sabia que se importava. Só de pensar em
passar mais algumas horas na companhia de Luke já sentia sua mente rodopiando.
— Acha que estou na cidade porque quero um encontro? Bem, para seu governo, não estou sozinho. Trouxe
Rebecca e minha avó às compras.
— Oh. — Embaraço acrescentou-se ao desapontamento, embora Mara se empenhasse ao máximo para não
demonstrá-los.
— Não creio que seja seguro para você. Sermos vistos assim juntos.
— Como queira.
Agora ela estava insultada! Virou-se para retomar a caminhada, mas ele tornou a segurar-lhe o braço.
— Você precisa ter toda a cautela.
— Estou ciente — declarou Mara, libertando seu braço. — Até logo. E não precisa perder seu sono por minha
causa — acrescentou, sarcástica, e começou a se afastar. Ao olhar para os lados para atravessar a rua, avistou
Rebecca ajudando Isabel a sentar no jipe.
A mulher sorriu-lhe e assentiu, agindo como se não houvesse nada errado.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
E talvez não houvesse. Exceto que o mundo de Mara estava repleto de feitiçaria, perigo, sonhos
sobrenaturais e um homem que parecia determinado a manter sua distância.

Luke dirigia de volta à Reserva kisi num humor que não era dos melhores. Estava ainda mais obcecado por
Mara depois do último sonho erótico que haviam partilhado. Sentira o fogo do desejo se alastrando por suas veias
quando a vira atravessando a praça em direção a seu jipe. Não que tivesse deixado transparecer isso.
Ainda podia sentir-lhe o gosto dos lábios, a fragrância de sua pele macia e todas as demais sensações tão
reais daquele sonho. Também se lembrava do ligeiro tremor da decepção na voz dela, na praça, ao pensar que a
estava rejeitando. Odiara a si próprio por fazer isso e precisara reunir um esforço sobre-humano para não puxá-la
para si lá mesmo e apossar-se de seus lábios com um beijo de tirar o fôlego. Mas soubera que fora necessário agir
daquela forma, continuar mantendo sua distância.
Não fora?
Ponderando a situação, prestou pouca atenção à conversa de sua avó e Rebecca durante o percurso. Quando
estavam quase chegando à reserva, no entanto, Isabel disse-lhe:
— Fizemos a cerimônia do milho ontem. — Referia-se a um método kisi de ler o futuro e obter conhecimento
sobre o presente. Consistia no ritual de execução de um intrincado e extenso desenho na terra avermelhada com
grãos de milho previamente coloridos em variados tons. — O desenho fazia menção a um espírito ancestral. Rebecca
e eu acreditamos que devemos conversar com todos no povoado, até com a criança mais nova. Uma grande mudança
está para acontecer. E envolve um imenso perigo.
— Perigo? — Apreensivo, Luke pensou na sombra no seu pesadelo, uma presença maligna como nunca sentira
antes.
— Charlie Mahooty não vai gostar se falarmos com todos no povoado — disse Rebecca. — Ele já acha que
estamos causando problemas.
— Não importa. Temos que cumprir nosso dever — declarou Isabel. — Também vimos uma mulher branca no
desenho — disse ao neto. — Com olhos da cor do céu.
Isso despertou a total atenção dele.
— Olhos azuis?
— Não comentei nada até agora, mas posso sentir a força da ligação entre você e Mara Fitzgerald. Pude
ouvir nas vozes de vocês nas vezes em que falaram um com o outro.
— Também percebi isso pela forma como estavam agindo na praça — acrescentou Rebecca.
Luke estacionou o jipe em frente de sua casa antes de fazer qualquer comentário.
— Nós apenas compartilhamos de alguns sonhos — respondeu, evasivo, enquanto ajudava as senhoras a
descer. Não queria entrar em maiores detalhes sobre seu ainda confuso relacionamento com Mara.
— Sonhos? Houve mais do que um? — indagou a avó, surpresa.
— Para ser exato, houve dois — respondeu Luke, começando a descarregar alguns pacotes de novelos de lá
que as duas haviam comprado em Santa Fé.
— Uma forte ligação, sem dúvida — assentiu Isabel.
— E Mara tem poder, embora não esteja desenvolvido. Nunca ouvi sobre algo assim no caso de uma mulher
branca, mas acredito que ela deva ter algum tipo de ligação com os kisis. Tenho usado toda a habilidade que possuo
para buscar por uma visão da verdade. E vi a serpente.
— Palolokon. — Rebecca falou o nome sagrado da divindade com grande reverência. — O espírito da
sabedoria.
— Uma serpente azul. — Um tanto desconcertado, Luke lembrou-se do que vira durante seus sonhos. —
Mara tem a tatuagem de uma serpente azul no ombro.
Rebecca arregalou os olhos.
— Ela sabe o significado do símbolo? — perguntou Isabel.
Grato mais uma vez por não estar sendo questionado sobre como exatamente vira a tatuagem, Luke
respondeu:
— Não creio que Mara saiba o significado de nada do que tem lhe acontecido.
— Um poder não desenvolvido — repetiu Isabel, pensativa. — E quem sabe, um sinal. Talvez ela seja um
espírito ancestral.
Parecendo subitamente chocada, Rebecca protestou:

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Mas ela nem sequer é índia.
— Deus... Os santos, os espíritos agem de maneiras que nem sempre entendemos — disse a anciã cega. —
Mais coisas do que podemos imaginar são possíveis.
— Mas nossos ancestrais sempre renasceram como kisis — declarou Rebecca, permanecendo aborrecida. —
Precisaríamos de um conselho de anciões, vários sábios com capacidade de "buscar" nos sonhos, para avaliarmos algo
tão importante. No mínimo, precisamos do poder reunido de homem e mulher. — Ela olhou para Luke. — Você nasceu
para ser um sacerdote. Tem grandes poderes a serem desenvolvidos. É jovem e forte. Por que não está assumindo
suas responsabilidades?
A acusação fez com que Luke se retraísse de imediato. Não estava disposto a revelar-lhe seus sentimentos
e temores mais íntimos.
— Nunca escolhi trilhar esse caminho. Você já sabe disso. Também sabe que eu precisaria de anos de
treinamento. — Com um sacerdote ancião, uma tradição que terminara com a morte de Victor Martinez.
— Não dispomos de tempo, mas temos que nos empenhar. Você deve fazer o que estiver ao seu alcance para
nos ajudar. Vou reservar algumas horas amanhã para tentar orientá-lo a desenvolver ao menos parte de seus
poderes. Venha até a minha casa às seis da manhã.
O tom autoritário de Rebecca irritou-o. Nem mesmo sua avó o pressionara a isso.
— Creio que não.
— Você tem que fazer isso.
— Ninguém me diz o que fazer, Rebecca. — Virando-se para Isabel, acrescentou: — Levarei suas coisas para
dentro. Depois tenho que trabalhar nos meus quadros.
Seu refúgio e salvação no momento. Trabalhando por horas a fio, ele completara uma pintura há duas noites
e estava prestes a acabar mais uma.
Mara ficaria surpresa quando as levasse à galeria.
Se sua avó achava que ela podia ser uma ancestral, ponderou, talvez a misteriosa pessoa que estava
tentando amedrontá-la com bonecos e coiotes tivesse sentido isso também.
Sem dúvida, coisas estranhas demais andavam acontecendo...
Ainda se lembrando da insistência até exasperante de Rebecca, não pôde deixar de sentir uma onda de
culpa.
Mas se pudesse fazer algo para ajudar sua avó, seu povo, se não temesse que poderia causar mais mal do que
bem, ele já teria que ter tomado uma atitude muito tempo atrás.

Luke virava-se de um lado ou outro na cama naquela noite, cansado demais para pintar, mas sem conseguir
conciliar o sono. Imaginava Mara adormecida na própria cama, usando alguma camisola sensual. Adoraria estar
acariciando sua pele macia, cobrindo-a de beijos, o sonho da noite anterior mal tendo saciado seu desejo.
Impaciente, levantou-se e observou o céu estrelado pela janela. A lua cheia brilhava, majestosa. O mesmo
luar prateado estaria banhando Santa Fé, filtrando-se pelo apartamento de Mara, a cem quilômetros dali.
Certamente, ela sentia a ligação entre ambos. Tentou se concentrar, enviando-lhe seus pensamentos.
A questão era, será que essa ligação representava um perigo?
Mas no estado de espírito em que estava, Luke não tinha forças para evitar o risco. Suas emoções e seu
corpo governavam sua mente. Se dormisse nessa noite, tomaria a encontrá-la? Ambos fariam amor de novo?
Infelizmente, não tinha uma resposta. Não podia controlar seus sonhos prazerosos... Assim como não podia
controlar os aterradores.

A lua cheia era como um imenso rosto transfigurado. E parecia aumentar ainda mais de tamanho, como se
quisesse engolir o céu.
Alucinação.
Ele piscou e tentou manter a visão em foco, lutando contra a onda de náusea. Ainda não se acostumara ao
mescal. Pelo menos, este era tudo o que o índio yaqui lhe prometera. Combinando-o às suas próprias habilidades,
estava ganhando poder em questão de dias, não de anos.
De qualquer forma, o yaqui podia oferecer apenas auxílio limitado quando se tratava de sonhos. Ele próprio
tivera que se ajudar nesse sentido, tivera que praticar muito. Hoje à noite queria usar suas novas habilidades para
fazer mais do que produzir bolas de fogo acima do povoado ou hipnotizar alguns coiotes.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Preparou-se para a exaustiva missão que destinara a si mesmo, sabendo que teria que conservar energia.
Deitou-se na escuridão, concentrando-se, focalizando em sua mente as imagens do lugar que havia memorizado como
sagrado...
Logo estava flutuando acima da casa, elevando-se com o vento, até que pudesse ver todo o povoado do alto.
Tinha um objetivo específico em mente. Precisava acabar com aquelas anciãs. Isabel seria mais difícil de
destruir, então começaria com a outra. Imaginou seu corpo de sonhos descendo até o povoado, flutuando até a casa
de Rebecca.
Podia senti-la dormindo. Não estava sonhando ainda, mas ele se preparou para o momento oportuno...
Foi numa questão de minutos. Então, entrou no sonho como uma sombra; depois camuflou-se como um
espírito sagrado, completo com máscara, movimentos lentos de dança e armas de rituais, incluindo uma faca longa e
afiada.
Percebeu que ao contrário de Victor Martinez, Rebecca não temia a morte para si mesma, mas que era
super-protetora em relação à neta.
Concentrando-se, ele evocou a imagem da bela jovem, trazendo-a ao sonho da mulher. Segurando-lhe os
cabelos pretos, puxou-lhe a cabeça para trás. Expôs sua garganta, riu alto, girou em seu ritual e agitou a faca no ar,
preparando-a...
— Não! — gritou a Rebecca de sonhos.
Quando ele sentiu o auge do desespero no coração da mulher, disse-lhe.
— Esta é a verdadeira Ginnie, não apenas sua imagem! Isto é real!
Então, cortou a garganta da jovem, o sangue rojando às lufadas e continuou rindo, rindo, enquanto o coração
de Rebecca ia batendo com violência... Ficando descompassado... Enfraquecendo... Falhando.
Com uma perversa gargalhada final por seu triunfo, ele foi se afastando, seus pensamentos já se voltando
para outros a quem poderia afetar. Sim, havia outros com poder.
A mulher branca, por exemplo. Que tipo de poder ela possuía, afinal?
Como desejava tê-la matado quando tivera a chance, não ficar lhe fazendo apenas ameaças!
Mas agora teria que se recobrar, reunir mais forças, preservar sua energia.
A mulher branca ficaria para uma outra vez.

CAPÍTULO IX
Luke despertou com um sobressalto na manhã seguinte. Apesar do sol que se filtrava pela janela de seu
quarto e os pássaros cantando lá fora, ainda podia ver em sua mente as trevas de seu pesadelo... Sonhara com uma
mulher sendo degolada por um espírito mascarado, rindo em cruel escárnio enquanto a assassinava. E tinha quase
certeza que a vítima fora uma índia.
A simples idéia já o banhou em suor frio, pois, no segundo sonho que compartilhara com Mara, ela estivera
trajada como uma indígena. E se por alguma razão obscura dentro de si tivesse entrado no sonho dela desta noite,
para matá-la? Lutando contra seu medo, buscando a coerência com a claridade da manhã, respirou fundo até se
controlar e, enfim, levantou-se.
De repente, deu-se conta de uma espécie de choro vindo de alguma parte da casa. Em pânico, pensando que
algo tivesse acontecido com sua avó, vestiu depressa o jeans. Deixou o quarto e seguiu o som de lamento até a
cozinha. Lá encontrou Onida colocando um cobertor em tomo de Isabel, ainda vestida com a longa camisola. Depois
as duas se abraçaram.
— O que está acontecendo?
— Rebecca está morta — respondeu-lhe a mãe, lágrimas escorrendo em abundância por seu rosto.
— Rebecca? — Não fora Mara. Luke não esperara por isso; sentiu-se perplexo, confuso? — Como...?
— Ele a matou — declarou Isabel, com tanta convicção que seu frágil corpo estremeceu. — Durante a noite,
entrou nos sonhos dela e levou-lhe a vida.
— Quem?
— O espírito do mal, a pessoa que está ameaçando a segurança deste povoado. Acordei pensando que havia
sentido a presença dele nesta manhã. Corri até a casa de Rebecca com um pressentimento. Mas ele havia estado lá
antes de mim. Ela estava dando seu último suspiro de vida.
Horrorizado, a mente rodopiando, Luke lembrou-se da imagem de Rebecca no dia anterior, da pequena
discussão que haviam tido ao chegarem de Santa Fé. Ficara exasperado com a insistência dela...

52
Sonhos do Coração Jeanne Rose
Será que Rebecca havia sido a vítima em seu sonho?
— Como alguém poderia matar uma anciã kisi, uma sábia? — perguntou Onida, inconformada.
— Sendo esperto o bastante para aterrorizá-la a ponto de que a vida a deixasse. — Isabel estremeceu,
ajeitando melhor o cobertor ao seu redor. — Rebecca era idosa e não tinha ninguém que a protegesse. — Seu rosto
se contraiu em sofrimento — Eu deveria ter imaginado. Deveria ter percebido que o maldito está ficando mais
forte. Nunca devia tê-la deixado sozinha... Juntas poderíamos ter lutado contra ele.
A dor da avó só acentuava a de Luke. Sentira grande afeição por Rebecca, desde a infância. Fora como uma
tia. Ela tentara exigir sua ajuda ontem, e ele lhe dera as costas. Agora estava morta.
E a culpa era sua...
Onida conduziu a mãe cega até a mesa.
— Sente-se. Vou lhe preparar um leite quente e umas torradas.
— Não posso comer.
— Tem que se alimentar, minha avó — insistiu Luke. — Não pode se descuidar.
— Ele me levará em seguida. Para que comer?
Luke nunca a vira tão pessimista e derrotada. Lançou um olhar preocupado para a mãe.
— Ninguém vai levar você — prometeu ele a Isabel. — Eu mato quem tentar.
Incluindo a si mesmo, se tivesse sido o maldito que...
Mas com certeza não seria capaz de fazer mal à sua própria avó. De qualquer forma, se ele descobrisse que
possuía a menor inclinação assassina, que fora de alguma forma o responsável por essa tragédia, saltaria do primeiro
penhasco antes que tivesse a chance de ferir mais alguém.
— A última coisa que Rebecca disse antes de morrer, foi "Ginnie", o nome da neta.
Luke lembrou-se do rosto da jovem. Não morava na reserva, mas costumara visitar a avó com freqüência. Em
seu sonho, uma índia fora assassinada... Jovem, com longos cabelos negros e um rosto inocente. Atônito, de repente
compreendeu que fora Ginnie a quem vira morrendo.
Em poucos minutos, Onida colocou um copo de leite quente e algumas torradas diante da mãe.
— Por favor, tente comer. — Virou-se para o filho. — Sente-se também e tome o café da manhã. Vou
telefonar para o restante dos parentes de Rebecca. — Nenhum deles tampouco morava na reserva. — Já liguei para
Ginnie e os pais dela. Estão todos bem.
— Ginnie? — repetiu Luke, aliviado. Ao menos a jovem estava viva.
— Sim, achei que a família deveria saber o mais depressa possível.
Luke sentou-se à mesa, a mente ainda em turbilhão. O alívio em saber que Ginnie estava viva foi temporário.
Assim como sabia que fora a jovem a quem vira em seu pesadelo, agora também sabia o que havia matado
Rebecca. E segundo sua avó, ela dissera o nome da neta antes de morrer. A velha mulher havia tido a mesma visão
macabra que ele vislumbrara em seu pesadelo. Uma vívida e poderosa ilusão criada para assustar Rebecca até a
morte.
Mas quem produzira essa ilusão? Ele mesmo? Ou um outro alguém? Uma sombra o assustara em seu sonho
com fogo. Alguém tentara amedrontar Mara com um boneco amaldiçoado e coiotes.
Mara. Precisava ter absoluta certeza que ela estava bem... E que continuaria assim.

Naquela manhã de domingo Mara acordou descansada, mas muito deprimida. Tinha a sensação de que havia
algo terrivelmente errado. Após ler por várias horas na noite anterior, mergulhara num sono tranqüilo e
ininterrupto. Então, qual seria o problema?
Mais uma vez, lembrou-se de Luke lhe dizendo para confiar nos seus instintos. Por essa razão, quando o
telefone tocou na mesinha-de-cabeceira, ficou em alerta. Afastou o lençol que a cobria e sentou-se na beirada da
cama, sua mão trêmula ao tirar o fone do gancho.
— Alô?
— Mara?
— Luke? O que foi agora? — Havia uma tensão pairando na linha. — Não vá desligar outra vez sem dizer
nada.
— Não vou desligar. Mas não posso falar muito... Estou num telefone público perto do mercado do povoado.
As coisas pioraram. Só quero pedir a você para tomar ainda mais cuidado.
— O que piorou? — Ela sentiu uma onda de ansiedade. — Não está me contando tudo.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Rebecca morreu.
Mara sentiu um nó na garganta ao se lembrar da simpática senhora fazendo tricô e falando com orgulho da
neta prestes a entrar na faculdade. Mal podia crer...
— Como? Onde?
— Ela morreu dormindo.
— Estava doente?
— Não. A causa da morte na certa será dada como ataque do coração.
— E pelo seu tom, você acha que não foi isso, certo?
— Esse problema não é seu. Apenas estou lhe pedindo para ser cautelosa.
Por que ele insistia?, perguntou-se Mara. Se importaria tanto com ela? Foi invadida por uma sensação
reconfortante. E mais uma vez pensou no que havia acontecido entre ambos no sonho em comum, nos reais
sentimentos que iam muito além da atração física.
— Estou sendo, na medida do possível. E quanto à morte de Rebecca, acho que o problema também é meu,
sim. Desde que descobri sobre essas habilidades relacionadas a sonhos, percebi que estou envolvida com todos
vocês kisis. — De repente também sabia por que Luke soava tão tenso. — Você acha que Rebecca foi assassinada,
não é? Ela usava alguma medicação em que alguém pudesse ter mexido...
— O que quer que a tenha matado veio de dentro.
— Você não está falando de um... Sonho, não é?
O silêncio dele foi a comprovação.
— Alguém entrou no sonho de Rebecca? Essa tal pessoa que mexe com feitiçaria, a mesma que tem me
mandado avisos?
— Possivelmente. Ninguém sabe ao certo, incluindo minha avó.
— Isabel é a única anciã sábia que restou — murmurou Mara. Não era à toa que Luke estivesse preocupado.
— Ela sente que está em perigo também?
Um novo silêncio foi o bastante para fazer Mara anunciar que estava a caminho da reserva. Seguindo sua
intuição, desligou o telefone antes que ele objetasse e começou a se arrumar depressa para sair.
Dirigiu no limite máximo de velocidade até o povoado, vencendo os cem quilômetros que subitamente
pareciam mil. Ao chegar à casa de Luke, foi prontamente recebida por uma desolada Onida. Conduziu-a até a sala,
onde já havia um grupo de pessoas conversando com Isabel. Ela estava muito pálida e tinha um ar desanimado, de
profundo cansaço.
Mara ficou preocupada ao observar a última sábia dos kisis. Alguém fora capaz de matar Rebecca, e Isabel
parecia tão vulnerável...
No momento, dirigiu apenas umas poucas palavras de condolências a ela. Entre o pequeno grupo de pessoas
na sala, um padre de origem hispânica discutia com a anciã os detalhes do funeral de Rebecca, dali a dois dias. Pelo
que Mara pôde ouvir, haveria um serviço religioso seguido de uma tradicional cerimônia puebla, conduzida por
Isabel; conhecia os detalhes pelos livros que lera sobre os povos indígenas do sudoeste.
Ela não demorou a deparar com Luke vindo pelo corredor principal. Na medida em que o via se aproximando,
sentiu a inevitável resposta dentro de si, a respiração em suspenso, o prazer em vê-lo.
— Você não pode fazer nada — disse ele e conduziu-a a um canto da sala, onde poderiam conversar sem
serem ouvidos.
Mara franziu o cenho.
— Talvez sim, talvez não. Vim refletindo bastante durante todo o percurso até aqui. — Em assuntos que
nunca considerara antes, em que jamais se permitira acreditar. Mas, enfim, tivera que admitir que existiam coisas
que iam além da explicação da ciência... — Nós não podemos deixar que este tipo de coisa continue acontecendo.
—Nós?
— Se de fato eu tiver habilidades, vou desenvolvê-las. Tenho certeza que você e Isabel podem me ajudar.
— Não posso ajudar ninguém. — O semblante de Luke ficara sombrio. — E minha avó está fraca e cansada.
— Ela logo estará morta, se não fizermos nada. Prefere que isso aconteça? — Num estado emotivo, Mara não
pôde impedir as lágrimas que marejavam seus olhos. — Não posso cruzar os braços e deixar que alguém morra... Não
por uma segunda vez.
— Isto não é problema seu.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Pare de dizer isso. — Ela tirou um lençol de papel da bolsa, enxugando os cantos dos olhos. Não podia crer
que ele ainda insistia em argumentar. —Tem sido meu problema desde que entrei naquele sonho de Isabel — disse,
quase num sussurro. — Se você usasse a lógica, veria que tenho razão. Eu posso me "transportar" nos sonhos e...
Nesse momento, houve uma movimentação na sala, enquanto o padre e as demais pessoas se retiravam da
casa. Mara quis aproveitar a oportunidade para falar com Isabel.
Aproximou-se, ocupando uma cadeira ao lado da anciã e disse-lhe com suavidade:
— Sei que isto deve soar estranho, mas vim até aqui para tentar ajudar.
Isabel virou os olhos cegos em sua direção, e havia reconhecimento estampado em sua fisionomia.
Endireitou os ombros e até pareceu um pouco mais forte.
— Finalmente. Então, os espíritos não nos abandonaram.
Espíritos? Sentindo certo nervosismo e hesitação, Mara esclareceu:
— É que vocês parecem não ter ninguém mais que...
— Não há necessidade de explicar sua presença. — assegurou-lhe a anciã. — Vou treinar você, Mara
Fitzgerald.
Ela ficava surpresa que Isabel estivesse reagindo de forma tão positiva. Não podia deixar de sentir um
estranho senso de euforia pelo que estaria prestes a aprender. E a desaprovação de Luke estava evidente no olhar
de cenho franzido com que as observava.
— Eu não sei quem realmente é você — prosseguiu Isabel —, mas sei que é a pessoa certa. Você e meu neto
são minhas únicas esperanças nestas trevas. Quando pode começar?
— Ela não pode fazer isso — objetou Luke. — É perigoso demais.
Mara ignorou-o.
— Hoje? Amanhã? Quanto tempo vai levar?
— Quanto você puder dispor. Embora eu não ache que você possa agüentar mais do que três ou quatro horas
para começar — explicou a anciã. — Volte aqui a nossa casa amanhã, ao nascer do dia. Estou me sentindo fraca
demais para fazer qualquer coisa hoje. E daqui a pouco, Onida e eu também vamos para casa de Rebecca, nos juntar
aos parentes que já estão chegando.
— Entendo. — Ao nascer do dia seguinte... Calculando rapidamente, Mara soube que perderia várias horas de
trabalho na galeria na segunda-feira, mas que poderia compensá-las depois. Afinal, isto era uma questão de vida ou
morte.
— E quanto a você, Luke? — perguntou Isabel.
— Quanto a mim?
— Os kisis precisam de você. Eu preciso.
— Não sabe o que está me pedindo, minha avó. Há coisas sobre mim que você não pressente, talvez porque eu
seja seu próprio sangue. Eu morreria por você, se fosse preciso... E é provável que eu deva. Saltar do penhasco mais
alto deve ser o melhor plano de ação para mim, afinal.
Com uma expressão sombria, Luke saiu abruptamente da sala.
Abismada, Mara observou-o saindo pela porta da frente. Será que estaria mesmo ameaçando em se matar?
Lançou um olhar para Onida, sentada na cadeira oposta, e viu o quanto também estava chocada.
Isabel, por sua vez, parecia peculiarmente calma.
— Vá falar com ele — disse à Mara. — Há uma forte ligação entre vocês. Se há alguém que pode fazê-lo
abrir-se, é você.
Sem questionar o que a anciã sabia sobre a ligação com Luke, ou como a descobrira, ela levantou-se e saiu.
Ele deixara a casa, mas não havia sinal do rumo que teria tomado. O jipe continuava sob o arvoredo junto à
casa, seu carro parado ao lado. Começando a ficar temerosa pela vida de Luke, deu-se conta do verdadeiro grau de
união entre ambos.
Lembrando-se mais uma vez da paixão que haviam compartilhado no último sonho, soube que não havia como
negar que de fato partilhavam de laços muito fortes. E se não tivesse cautela, acabaria se apaixonando por aquele
homem...
Mas a questão agora era encontrá-lo, pensou, já em certo pânico. Começou a caminhar pela estrada sinuosa
de cascalho, seguindo pela direção oposta daquela por onde chegara de carro. Ultrapassou a casa que se desdobrava
em uma nova ala na curva da estradinha.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Ao virá-la, notou que havia um pasto cercado anexo ao final dessa ala. Viu um menino do lado de fora da
cerca, afagando o focinho de um cavalo.
Aproximando-se, ela perguntou-lhe se vira Luke, e o garoto indicou-lhe um novo caminho sinuoso, que levava
até uma espécie de colina. Para mais além, avistavam-se lampejos de outras colinas e, na distância, as cadeias de
montanhas.
Mara foi seguindo pelo caminho, aliviada em ter optado por uma prática calça comprida e sapatos baixos e
confortáveis. A terra seca era incrustada de raízes, desnivelada e com várias irregularidades produzidas por cascos
de cavalos.
— Luke!
Mas sua voz ecoava no vento e voltava das laterais íngremes da colina. Olhou para o topo plano, notando as
formações rochosas em torno da colina, entremeado por trilhas de terra... Prestando atenção ao formato e ao tom
avermelhado da elevação, enfim, reconheceu-a.
Relâmpagos na Colina Vermelha. Este era, sem dúvida, o local que inspirara a pintura de Luke. E, portanto, o
mesmo que aparecera no seu sonho com Isabel e no primeiro com ele.
Mas não havia sinal de que estivesse por ali...
Continuando a chamá-lo, foi seguindo por um trecho mais regular da colina e subiu até o topo achatado. De
repente, era como se estivesse isolada na natureza. Tudo parecia se confundir... Vida humana, céu e terra. Observou
a vastidão ao redor, o horizonte montanhoso ao longe era como que infinito. Sentiu-se como se fosse parte de um
plano mais elevado, algo grandioso, espetacular.
Do outro lado, encontrou outro trecho regular e foi descendo, atraída pela paisagem. Era uma terra
intocada, selvagem que, de alguma forma, parecia familiar.
O vento acariciava seu rosto, mas o tempo parecia em suspenso.
Tempo.
Minutos, dias e anos formavam um turbilhão, com Mara parada no meio...
Podia quase ver... O alto do penhasco de onde contemplara a vastidão da terra abaixo em seu sonho. Havia
outras pessoas, embora pudesse senti-las, não vê-las. Havia um caleidoscópio de emoções... Dor, medo, esperança e
resignação, amor. Ela fechou seus olhos, respirou fundo sentindo o passado e o presente, quase podendo pressentir
o futuro se aproximando...
Tum, tum, tum.
A terra vibrando, um som retumbante... Respiração ofegante. Algo estava vindo, algo grande o bastante para
lançar uma sombra.
Os pesadelos estariam prestes a se mesclar com a realidade?
Mara gritou ao se virar para ver quem ou o que vinha em sua perseguição.

CAPÍTULO X
Luke fixou o olhar na expressão chocada de Mara, enquanto galopava em sua direção. Atônito, percebeu que
ela gritava com ele em kisi.
E ao mesmo tempo em que puxava as rédeas, diminuindo a velocidade do cavalo, viu-a recuando, apavorada,
tropeçando nas rochas ao pé da Colina Vermelha.
Ele desmontou de imediato e aproximou-se.
— O que pensa que está fazendo aqui? — indagou, zangado, muito embora preferisse estreitá-la em seus
braços até vê-la se recobrando do susto. — Não deveria estar sozinha no deserto, e ainda a pé. Se os coiotes vão na
sua trilha até Santa Fé, corre o risco de deparar com coisa muito pior nesta região.
O ar assustado dela cedeu lugar à raiva.
— Não me venha com sermões! Eu estava a sua procura. Pensei que fosse se atirar do alto de um penhasco.
Como se pudesse impedi-lo. Na verdade, ele não estivera em busca desse penhasco... Não ainda. Em vez
disso, selara um dos cavalos que mantinha num pasto ao lado de sua casa e galopara pelas colinas, a procura de algum
refugio na natureza.
— Eu apenas queria ficar sozinho.
— E que história foi aquela de querer se atirar de um penhasco?
— Quem sabe não seria a solução... Eu talvez seja uma ameaça para os outros.
— Isso é ridículo. Só porque receia que possa ter causado o incêndio no centro comunitário?

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Mais do que isso. Talvez eu seja um assassino.
Luke viu as perguntas nos olhos de Mara...
Perguntas que a alarmavam.
— Vamos fazer uma caminhada — sugeriu-lhe. — Meu cavalo precisa mesmo esfriar. — Apanhou as rédeas do
animal, e começaram a andar sem um destino certo.
— O que o faz dizer tamanha tolice? — indagou Mara, perplexa. — Que tipos de coisas o restante de nós
desconhece?
— Meu sonho desta madrugada, por exemplo.
Luke contou-lhe sobre o pesadelo em que vira a ilusão que fizera o coração de Rebecca parar. Percebeu que
os detalhes da garota sendo degolada causaram calafrios em Mara.
— Como eu poderia saber dessas imagens, se não fosse o responsável por tê-las criado?
— Mas por que você criaria essa ilusão apavorante? Você não tinha nenhuma razão para querer matar
Rebecca.
— Eu gostava dela... Mas tivemos uma discussão ontem... Que me deixou furioso. Rebecca tentou me obrigar
a passar por treinamento, a fim de desenvolver mais minhas habilidades de entrar nos sonhos.
— E ficou furioso o bastante para matar? Mesmo alguém de quem gostava?
— Não teria sido a primeira vez... — declarou ele, sombrio, produzindo uma expressão atônita em Mara. —
Eu já lhe disse que não consigo controlar meus poderes. Nunca consegui. No Arizona...
Luke interrompeu-se. Nunca partilhara de seu passado com qualquer outra pessoa que não sua mãe e avó.
Não estaria falando a respeito agora se a situação atual não fosse tão grave.
— O que houve no Arizona? — indagou Mara, enquanto prosseguiam na caminhada.
— Perdi minha esposa e meu filho de apenas três anos.
— Os dois morreram?
— Sim. Seis anos atrás, num incêndio.
Ainda era difícil para Luke falar no assunto, o sofrimento não se aplacara. E talvez fosse um tolo em estar
contando, mas não podia evitar. Tinha aquela incrível ligação com Mara, e isso lhe dava o direito de saber da
verdade. E, então, talvez fosse esperta o bastante para fugir dele em disparada, para manter uma boa e segura
distância.
— Tive uma briga com minha esposa — prosseguiu. — Ela era navaja, e tínhamos muitos problemas com sua
família... Sem mencionar com meu gênio difícil. Mas ela nunca havia falado sobre divórcio antes. Fiquei possesso,
subi na nossa velha caminhonete e parti. Não me lembro para onde dirigi, ou a que velocidade. Quando acabou a
gasolina, estava muito escuro, assim parei e adormeci no banco. Tive pesadelos horríveis. Na manhã seguinte, quando
voltei, descobri que a nossa casa tinha sido destruída por um incêndio durante a noite.
— E você sonhou com fogo ao dormir na caminhonete?
— Sim. Aliás, esse é o tema central da maioria dos meus pesadelos.
— E quanto a antes do seu casamento?
Surpreso que ela não estivesse especulando sobre as mortes, ele disse:
— Se eu sonhava com fogo? Quando criança, sim.
— Alguma coisa já havia se incendiado antes... Quero dizer, na vida real?
— Não. Nunca. — O que era estranho, agora que ele ponderava a respeito.
— Você sempre foi genioso?
— Meu temperamento foi ficando mais esquentado ao longo dos anos. E atualmente, bem, quando fico
zangado com alguém... Não sei do que sou capaz, a nível inconsciente.
— Mas pelo que entendi, você sempre foi genioso. E sempre foi atormentado por pesadelos inexplicáveis,
assim como eu.
— A diferença é que seus sonhos são com perseguições, com você fazendo o papel da vítima. Os meus são
sobre fogo... — declarou ele, num tom grave. — E minha esposa e meu filho foram vítimas de verdade.
— Como pode estar certo que você teve alguma culpa? Não houve uma investigação?
— Claro. Embora o corpo de bombeiros ficasse frustrado com seu andamento. Enfim, os peritos chegaram à
conclusão que a combustão devia ter sido causada pelos panos embebidos em terebintina; os materiais que eu
estivera usando nas pinturas que criava, quando não estava fora dirigindo um caminhão para sustentar minha família.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Mas o incêndio foi tão implacável, tão fulminante, que se mostrou quase impossível apontar com exatidão o que o
causou.
— Entendo. Mas o que acredito é que você tenha assumido essa culpa como uma forma de se torturar, de se
punir, tentando se tornar o responsável... Uma típica maneira de lidar com o sofrimento e situações que fogem ao
controle. Não houve nenhuma prova que você causou o incêndio.
— Não sei por que está tentando advogar em minha causa — declarou Luke, com amargura. — Nada vai
trazer de volta aquelas duas vidas.
— Mas certamente você sabe que deve superar essa tragédia. E a culpa podia ter sido mesmo dos panos com
terebintina. Afinal, você estava a muitos quilômetros de lá quando o incêndio aconteceu.
— Já lhe disse que não tenho problemas em acreditar no sobrenatural. Eu sabia em meu coração o que tinha
se passado. Havia sonhado com um incêndio terrível, um fogo devastador. Depois da tragédia, parti como um
andarilho sem rumo, bebi muito durante meses... Virei um trapo humano. Quando, enfim, me recobrei, vi que tinha
ido parar numa cidadezinha perto de Tucson. Arranjei um emprego de lavador de pratos e voltei a pintar... A arte
era a única coisa que endireitava minha cabeça.
Chegaram a uma área mais plana, o leito seco de um rio. Mas ainda havia umidade o bastante no solo para
formações de arbustos e algumas eventuais árvores de pequeno porte. Mara caminhava pensativa ao lado de Luke, o
silêncio prolongando-se. Até que foi rompido pelo cavalo resfolgando, enquanto era conduzido pelas rédeas. Ela
lançou um olhar cauteloso ao animal, sentindo-se desconfortável. Talvez, tendo vivido em São Francisco durante a
maior parte de sua vida, não estivesse acostumada a cavalos.
Olhando para a vastidão ao redor, lembrando-se do constante senso de familiaridade com um deserto com o
qual nunca convivera, comentou:
— É estranho. Tudo que tem acontecido parece com peças de um quebra-cabeça. É como se bastasse
descobrir como juntá-las para chegarmos à verdade.
Luke assentiu e deteve-se a observá-la. Adorava a forma como o vento lhe soprava os cabelos castanhos,
como o sol lhes acentuava o tom claro, reluzindo em seus fios dourados. Apesar da seriedade da conversa, gostaria
de afundar suas mãos naquelas mechas macias... Queria o conforto de tocar uma mulher que se importava com ele.
— Não acho mesmo que você deva acreditar que seja o responsável pelas mortes de seu filho e esposa.
Assim como não deve ficar achando que causou o fogo no centro comunitário... E muito menos que criou o horrível
pesadelo que matou Rebecca do coração. Essa ilusão que a apavorou até a morte não estaria um pouco fora do
comum para você, se fosse o caso? Afinal, não teve nada a ver com fogo.
— De vez em quando, tenho outros tipos de pesadelos. Às vezes até caminho ou dirijo no meu sono. Não sei
do que sou capaz. E não sou exatamente um homem dos mais gentis.
— Ser genioso não o toma um assassino.
— E de que forma eu saberia de todos os detalhes do pesadelo de assassinato se não fui eu que o criei para
matar Rebecca? — repetiu Luke, em busca de garantias mais concretas.
—Isso eu não sei — murmurou Mara, ainda absorta.
Haviam chegado ao pé de uma outra formação de colinas e começavam a retomar pelo mesmo caminho.
— Mas não há dúvida que andam acontecendo coisas estranhas, certo? Assustadoras. Quem atirou aquele
boneco amaldiçoado na minha sacada e quem enviou os coiotes no meu encalço? E sua avó não disse que ilusões
podem ser criadas tanto em sonhos quanto na vida real? Talvez a mesma pessoa que tentou me assustar tenha
mandado aquele pesadelo com a neta à Rebecca. E, de alguma forma, você acabou captando o mesmo sonho.
A possibilidade quase fez com que Luke se sentisse melhor.
— Essa pessoa teria que ser muito poderosa.
— E suponhamos que ela tenha feito questão que você tivesse o mesmo sonho de Rebecca para fazê-lo
pensar que a culpa era sua?
— E por que teria me escolhido?
— Porque você tem habilidades especiais. Poder. A mesma razão pela qual você sugeriu que a tal pessoa
tenha decidido me ameaçar.
— Poder... Eu nem sequer quero tê-lo.
— Mas nós o temos. E devemos usá-lo para o bem. — O tom de Mara adquiriu uma evidente urgência. —
Temos que fazer o que estiver ao nosso alcance para salvar sua avó. Na certa, ela será a próxima. Quem quer que

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
esteja fazendo essas coisas horríveis está querendo destruir as tradições dos kisis. E quem sabe o que poderá
fazer depois disso...
O tom dela era tão fervoroso, expressava tamanha coragem, que tocava Luke a fundo. E, que os céus o
ajudassem, mas a queria mais ainda do que quisera antes. E por causa de Mara, da forma como o afetava em vários
sentidos, ele estava pensando na possibilidade de tentar aprender a dominar seus poderes.
— Isto poderia ser algo muito perigoso — tratou de avisá-la. Porque se ele fosse o maldito culpado... Todos
que o cercavam precisariam de cautela redobrada.
— Não me importo com o perigo — declarou Mara, com veemência. — E nem você deveria. Não preferiria
morrer tentando ajudar alguém do que fugir na direção oposta? Você é um bravo guerreiro no seu coração. Sinto
que é.
Algo bem em seu íntimo reagiu positivamente ao título de bravo guerreiro, disse a ele para não ter mais
medo de seu próprio lado obscuro.
— Também temos que nos tornar feiticeiros poderosos se vamos enfrentar esse maníaco. Não é a primeira
vez que ele mata.
Mara arregalou os olhos.
— Alguém mais morreu em circunstâncias misteriosas, além de Rebecca?
— Eu não havia me dado conta disso no início. Mas o último sacerdote ancião kisi morreu dormindo, poucas
semanas atrás. A causa foi dada como ataque cardíaco.
— Victor Martinez. Eu me lembro da primeira vez que vim à reserva e sua mãe mencionou a morte dele.
O sol do meio-dia batia de encontro ao rosto deles. Mesmo nas áreas desérticas mais elevadas, o calor
daquele horário era abrasador. Quando Mara parou para descansar à sombra de uma grande rocha, Luke sugeriu que
cavalgassem pelo restante do caminho.
Ela lançou um olhar um tanto preocupado ao cavalo. Parecia-lhe tão alto e, de alguma forma... Intimidante.
— Nunca aprendi a andar a cavalo.
— Não tem problema. Basta sentar atrás de mim e segurar-se.
Sem esperar por um assentimento, Luke montou com habilidade no animal e estendeu a mão para ajudá-la a
subir.
Mara ainda hesitou.
— Ora, vamos — disse-lhe ele, com um largo sorriso. — Onde está toda aquela coragem de que esteve
falando?
Foi o desafio necessário. Ela ergueu a cabeça e aproximou-se do cavalo. Luke ajudou-a a subir com
facilidade, sentando-a atrás de si.
— Não vai correr, não é? — perguntou-lhe, receosa.
— Fique tranqüila.
Mara abraçou-o pela cintura e sentiu-lhe o calor das costas musculosas de encontro a seus seios, as coxas
fortes circundadas pelas suas. O contato a fez reviver o último sonho tórrido nas lembranças. Parecera tão
verdadeiro, tão sensorial... Mas, ainda assim, não podia deixar de se perguntar como seria fazer amor com aquele
homem na vida real.
Respirou fundo em certo nervosismo e procurou se distrair.
— Suponho que você não saiba como vai ser o meu treinamento, não é?
— Não. Tudo o que já aprendi resume-se aos conhecimentos básicos.
— Imagino que terei que escolher um "lugar de sonhos". Aprender um pouco do dialeto kisi.
— Se já não souber. Talvez minha avó apenas tenha que reavivar suas lembranças.
— Como assim, minhas lembranças?
— Já a ouvi falando o dialeto, tanto nos sonhos quanto na vida real. Hoje, por exemplo, você gritou "quem
vem aí" quando me aproximei com o cavalo.
— Mas como...?
— Os kisis acreditam que as pessoas renascem.
— Reencarnação? — A simples idéia deixava Mara sem fôlego. Pensou na sua experiência de menos de uma
hora atrás, quando o tempo parecera ficar em suspenso. E havia aquele sentimento de familiaridade desde que
pisara em solo kisi. — Está sugerindo que já fui uma índia numa vida passada?

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Você também tem aquela pequena tatuagem no seu ombro. Uma serpente azul é o símbolo de Palolokon, a
divindade sagrada. Minha avó acredita que você pode ser uma ancestral, embora nunca tenha ouvido de falar de
nenhum kisi renascendo como branco.
Mara estava boquiaberta.
— E o que você acha?
— Sinceramente, não sei.
Os dois permaneceram em silêncio pelo restante da cavalgada. Com a mente em turbilhão, Mara continuou a
abraçá-lo com força, a proximidade física e as idéias confusas em sua mente fazendo-a até esquecer-se do receio
do cavalo.
Enfim, chegaram ao portão do pasto cercado em segurança. Luke ajudou-a a descer e desmontou.
— Então, você vai concordar com o treinamento? — perguntou ela, seguindo-o ao interior do pasto. Esperava
tê-lo convencido.
— Tentarei... Por minha avó.
E quanto a ela?, perguntou-se Mara, sentindo uma incontrolável ponta de ciúme. Depois, disse a si mesma
para não ser mesquinha.
— No que está pensando? — indagou Luke.
— Em tudo... Sonhos, visões. — E nele, claro.
— Tivemos um sonho e tanto da última vez, não foi?
Sim, sensacional... Vibrante, erótico. As lembranças, deixavam Mara ansiando por mais. Mas tratou de se
recobrar e usar de um tom mais impessoal.
— Creio que teremos que agir com toda a seriedade daqui em diante.
Ele aproximou-se dela.
— Eu estava falando sério. Ainda quero você.
Mara podia sentir o calor que Luke irradiava, e instantaneamente ergueu seus lábios para receber seu beijo.
— Você me quer? — perguntou ele, abraçando-a com possessividade, seus lábios muito próximos.
— Sim, mas...
Luke silenciou-lhe o protesto com um beijo sôfrego. A língua invadiu-lhe a boca, explorando-a com
impetuosidade. Com uma das mãos a apoiá-la pelas costas, insinuou a outra sob a blusa dela e afagou-lhe o seio. O
mamilo enrijeceu-se de encontro à sua palma, um inegável indício de desejo.
Mara pendia a cabeça para trás, absorvendo cada sensação, os lábios que estimulavam os seus, a língua que
se entrelaçava com a sua... A mão forte que lhe afastava o sutiã por baixo da blusa e tocava sua pele sensível.
Também ansiava em tocá-lo. Suas palmas deslizavam pela frente da camisa dele, sentindo o calor do peito
viril sob o tecido. Suas pernas amoleceram quando Luke deslizou os lábios por sua garganta. Foi beijando-a com
sensualidade até mordiscar o lóbulo de sua orelha, a respiração ofegante e desejosa em seu ouvido fazendo-a
arrepiar-se por inteiro.
Enfim, os lábios ardorosos foram deixando uma trilha incandescente em seu colo, descendo até o decote
discreto da blusa...
E, então, Mara deu-se conta de que se não pusesse um fim às febris carícias, acabariam fazendo amor... Em
plena luz do dia, em público. Sabia que o pasto ao lado da casa dele não oferecia a menor privacidade, podendo ser
avistado à distância ou visto com riqueza de detalhes por quem quer que passasse pela estradinha de cascalho.
— Luke — sussurrou ela, com extrema relutância, embora soubesse que não havia escolha. — Alguém poderia
nos ver.
— Não me importo.
Mas ela se importava. E não podia evitar em ansiar por uma ocasião em que pudesse confiar em Luke... Ao
menos confiar em seus sentimentos. Também gostaria que pudesse escolher outra palavra além de "querer" quando
expressava seu desejo por ela. Até mesmo "ligação" ou "laços" teriam servido. Afinal, ele admitira que sentira um
elo entre ambos nos sonhos que haviam partilhado.
Luke pareceu notar que Mara se retraíra e não estava mais se mostrando receptiva. Soltou-a, ergueu a
cabeça e fitou-a.
— Agora qual é o problema? — A irritação e a impaciência eram evidentes em sua voz. — Você teria estado
pronta para isto ontem.

60
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Mas ontem você não estava interessado. Sem mencionar que me deixou à porta de casa na noite anterior
sem sequer um beijo de boa-noite. Esse é o grande problema entre nós. Você se alterna de quente para frio como
quem só precisasse apertar um botão para isso. Qual o problema com você?
O semblante dele endureceu, a raiva retornando.
— Já lhe disse o que há de errado comigo. Não que você pareça acreditar.
Ela soltou um profundo suspiro.
— É... Parece que nos damos melhor nos sonhos.
— Mesmo sendo sacrilégio?
— Sacrilégio? O que está querendo dizer?
— Sempre me disseram que as habilidades de uma pessoa de se "transportar" ou "buscar" nos sonhos deviam
ser usadas para fins de cura e sabedoria — declarou ele. — Não foram feitas para distrações com sexo.
Sacrilégio, sem dúvida, pensou Mara, pois Luke estava se referindo ao que haviam partilhado como "sexo" e
não "fazer amor".
Zangada, sentindo-se traída pelo que parecia uma atitude de indiferença da parte dele, deu-lhe as costas e
começou a se afastar rumo ao portão.
— Vou procurar sua avó para conversar mais com ela. Depois pegarei a estrada para Santa Fé, antes que
escureça.
Luke não fez qualquer comentário, nem tentou detê-la. Quando ela olhou por sobre o ombro, viu-o de costas,
tirando a sela do cavalo.
Droga!, pensou, exasperada.
Mas precisava se lembrar que a missão à sua frente... De ambos, aliás, caso Luke já não tivesse mudado de
idéia... Era a mais importante que já escolhera assumir em toda a sua vida.

A estrada que serpenteava pelas montanhas, descendo rumo ao sul, parecia deserta de outros veículos.
Retornando à Santa Fé naquela tarde, Mara sentia-se isolada, solitária.
Rebecca morrera. Isabel estava sendo ameaçada por forças maléficas. E Luke parecia pensar que era algum
demônio encarnado.
Admitia que ele fora convincente o bastante sobre o que achava de si próprio para deixá-la com algumas
dúvidas. Será que uma vida inteira de pesadelos o havia impregnado com tanta raiva e ódio? A ponto de ser capaz de
tamanhos horrores contra sua própria gente?
Ela soltou um profundo suspiro e tratou de afastar os pensamentos negativos. Afinal, em seu coração algo
lhe assegurava que Luke não era o culpado, não importando o quanto tivesse tentado deixá-la com dúvidas.
Além do mais, Isabel lhe dissera para manter a mente clara e serena. Também recomendara que não
comesse nada antes de retomar ao povoado na manhã seguinte. Começaria seu treinamento... Esperava, enfim, poder
desvendar todos aqueles mistérios envolvendo a si mesma. Será que teria de fato algum poder para ajudar os kisis,
como julgava a anciã?
Uma coisa era provável, algo que não deixava de conter um certo alento.
Quem quer que fosse seu "oponente" parecia achá-la uma força à altura, ou do contrário não teria se dado
ao trabalho de ameaçá-la.

CAPíTULO XI
— Puxa, a exposição está sendo um sucesso! Acabei de fechar mais uma venda!
Um tanto desorientada por seu estado de espírito, além das vozes altas e do movimento ao redor, Mara
apenas assentiu com o esboço de um sorriso para a entusiasmada assistente. Não parecendo notar seu retraimento,
Felice se afastou por entre o aglomerado de pessoas para continuar recepcionando os visitantes.
Um tanto alheia às festividades, Mara refletiu sobre os vários dias que haviam se passado sem que o
treinamento de Isabel estivesse lhe surtindo algum efeito. Seguindo a orientação da anciã, ela fizera uma
tradicional vareta sagrada kisi, de madeira e penas, e pintara-a de azul. Tentara dizer palavras mágicas,
concentrara-se em sua respiração e nos seus arredores, mas não fora capaz de evocar nenhuma visão. Depois dessas
frustradoras experiências, estava longe de se sentir como uma força poderosa a ser temida no momento. Se tivesse
algum poder especial, achava-se com certeza muito bem escondido em seu íntimo.
Ela e Luke nem sequer haviam partilhado de outro sonho.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
De qualquer maneira, esforçou-se para manter o profissionalismo e tratou de circular pela galeria. O
coquetel mostrava-se animado. Entre o champanhe e os canapés, servidos pelos eficientes garçons, os convidados
praticamente disputavam as pinturas do renomado Lucas Naha.
A inauguração da exposição só teria sido melhor se o próprio artista estivesse ali para receber seus
admiradores. Mas duvidava que ele tivesse se sentido inclinado a socializar com convidados nas atuais
circunstâncias.
Na verdade, mal conseguia ser cordial com ela. Vinha agindo com maior distanciamento ainda desde o dia em
que Rebecca morrera.
Circulando pela galeria, Mara foi observando os vários avisos indicando "vendido" na maioria dos quadros de
Luke; quase todos criados desde que os misteriosos incidentes haviam começado no povoado, sabia ela. As emoções
fortes ebulindo dentro do pintor haviam afetado seu trabalho, os resultados refletindo seu turbilhão interior. Suas
obras estavam numa fase ainda mais intensa; uma que os apreciadores da arte também aprovavam, segundo
indicavam as vendas.
Ela deteve-se diante de uma das mais recentes pinturas; na sua opinião, a mais impressionante que ele já
criara. Eram habitações indígenas encravadas na lateral de um penhasco. O que impressionava era o céu turbulento
acima. O próprio ar parecia carregado, vivo, como que repleto de perigo. E algo a respeito desse povoado parecia
familiar. Talvez porque lembrasse uma antiga ruína anasazi sobre a qual Mara havia lido. Ao ler a respeito da
história da região, soubera que os kisis haviam reconstruído seu povoado nas ruínas dos antecessores anasazis; local
onde estiveram refugiados na época do massacre pelos colonizadores espanhóis, em 1691. Pelo que lera, o penhasco
situava-se numa área afastada da Reserva kisi, além dos limites para turistas.
Observando o resultado das hábeis pinceladas haviam dado a impressão de movimento a uma pequena figura
correndo, podia quase ouvir um clamor angustiado que encheu seu coração de temor... Era quase como se tivesse
estado lá quando algo terrível acontecera... Uma sensação muito mais forte do que qualquer outra que os trabalhos
anteriores de Luke houvessem lhe evocado.
Mara começava a se afastar do quadro quando um murmúrio coletivo e empolgado reinou na galeria. Virou-se
para ver do que se tratava o alvoroço.
A pequena multidão se abriu, revelando o artista em pessoa, que vinha trazendo mais duas pinturas prontas.
Com o coração aos saltos, Mara foi ao encontro dele, mas antes que pudesse lhe dizer algo, uma eufórica cliente
colocou-se entre ambos.
Era a sra. Whitman, uma riquíssima socialite que tratou de pôr as mãos nas telas que ele trazia, ambas ainda
sem moldura.
— Oh, recém-saídas do cavalete do artista! — exclamou a mulher. — Quero estas duas, srta. Fitzgerald, e
nem me importa o preço. O velho J.D. pode bancar, de qualquer modo. — acrescentou ela, referindo-se ao marido
banqueiro.
O olhar penetrante de Luke encontrou o de Mara antes que tivesse que conduzir a sra. Whitman ao
escritório. Ela acertou os detalhes da venda das telas com a mulher, mal tendo tempo de lançar-lhes um olhar antes
que fossem levadas, ainda que sem moldura. Só pôde ver que se tratavam de diferentes vistas do mesmo povoado
indígena no penhasco.
Também ficou frustrada com suas tentativas de se aproximar de Luke; por sinal, elegante numa calça social
preta, camisa de seda e os cabelos soltos e sexies, emoldurando-lhe o rosto másculo, de traços marcantes.
Várias mulheres dirigiam-lhe olhares demorados e flertavam com ele. E Mara estava perplexa em vê-lo de
fato agindo com cordialidade com os convidados, embora pouco entusiasmado com o fato de todos quererem
conversar com ele.
Da mesma forma que fora cordial, mas distante, com ela nos últimos dias...
As pessoas o monopolizaram durante a hora e meia seguinte, enquanto Felice e Mara fechavam mais vendas.
Somente quando a inauguração chegava ao fim, ela teve chance de se aproximar.
— Não pensei que você fosse aparecer, mas fico feliz que tenha vindo.
— Porque conseguiu vender mais?
O típico cinismo de Luke a irritou.
— Se é o que quer pensar.
— Desculpe — disse ele, com um ligeiro sorriso. Mas logo estragou o efeito: — Prometi a minha mãe e avó
que me comportaria.

62
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— E não iria querer desapontar a elas, certo?
— Simplesmente não sou bom com as palavras. — Luke ergueu as mãos na defensiva e tornou a sorrir, desta
vez com um pouco mais de entusiasmo.
Mara observou-lhe o rosto atraente e sentiu um calor expandindo-se por seu corpo.
Teve a súbita sensação que ele estava tendo aquele comportamento polido, que comparecera à inauguração,
por causa dela.
Mas disse a si mesma que devia estar maluca. Afinal, aquele homem demonstrava que não tinha nenhum outro
sentimento a seu respeito que não fosse mera atração física.
De qualquer forma, era impossível resistir ao que lhe parecia uma oferta de trégua. E esta durou pelo
restante da noite, até que o último convidado se foi.
Como Felice havia tido trabalho extra por sua causa, nas vezes em que se ausentara para ir à Reserva kisi,
Mara dispensou-a, oferecendo-se para ficar.
Luke permaneceu em sua companhia, ajudando-a a acompanhar a rápida e eficiente movimentação dos
funcionários do bufê contratado, enquanto estes recolhiam garrafas e faziam uma limpeza prévia.
Somente quando todos se foram e os dois ficaram totalmente a sós na galeria, abordaram, enfim, o assunto
que mais os preocupava.
— Como vão as coisas? Você fez algum progresso no seu treinamento? — indagou Mara, sabendo que Luke
estivera tendo tantas dificuldades quanto as suas para "buscar" uma visão.
— Ainda não. Medito por horas e não obtenho resultados. Não entendo como pudemos partilhar de sonhos
com tanta facilidade e, ainda assim, não termos tido nenhuma visão de sabedoria.
— Talvez você precise de alguma outra tática. — Pensando na incrível intensidade das últimas telas, ela
sugeriu. — Talvez devesse pintar as imagens de seus pesadelos.
— Eu já lhe disse que...
— Já sei. São aterradores demais para serem retratados. Mas, de qualquer forma, há algo novo e diferente
nos seus trabalhos mais recentes. São mais poderosos. Acho que talvez os pesadelos estejam tentando se
manifestar. Talvez precise soltá-los antes que possa encontrar a energia positiva necessária para fazer o que a sua
avó lhe pede.
— E quanto a você? Vai retratar seus pesadelos também?
Mara não pensara nessa possibilidade. Não dava uma pincelada numa tela há anos.
— Eu não sei... Talvez eu devesse.
Sabia que não tinha o talento nem o poder para igualar-se ao que quer que Luke pudesse criar. E, ao
contrário dele, seus pesadelos e sua culpa vinham de duas origens diferentes. Seus antigos sonhos de perseguição
nunca tiveram nada a ver com o paciente suicida, que lhe implorara para entrar em seu sonho antes que ela tivesse
conhecimento de realmente possuir a habilidade para algo assim.
Agora, ambos achavam-se no escritório e, de repente, o silêncio prolongava-se. Desapontada por não terem
mais nada a fazer na galeria, o que a privaria da companhia de Luke tão depressa, Mara abriu lentamente a gaveta
de sua mesa para pegar a bolsa.
— Obrigada pela ajuda.
— A você também.
Estudando o olhar sério de Luke, que pela primeira vez não estava hostil e nem repleto de ardente desejo,
ela soube que se referia às boas intenções em relação ao povo dele.
— Só espero poder mesmo ajudar.
Ele se aproximou; acariciou-lhe a face com uma ternura que a tocou a fundo.
— O que quer que aconteça só quero que saiba que nunca conheci pessoa tão bondosa quanto você.
Mara corou e sentiu seu pulso se acelerando. Em resposta, o desejo alastrou-se dentro de si. Queria dizer-
lhe que não parasse de acariciá-la, que a tocasse para sempre.
— Claro que conheceu. Sua avó e sua mãe são bondosas. Rebecca era — disse ela, ainda tão triste com a
morte da sábia kisi quanto estivera em seu funeral. — E tenho certeza que poderia enumerar dezenas de outras
pessoas. A maioria tem um lado bom dentro de si.
— Mas poucas são as que colocam a vida em risco pelos outros, em especial quando não lhes significam nada.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Luke a observava de forma tão aberta, com tanta admiração, que encheu o coração de Mara de esperança.
Se podia ser tão sincero agora, mesmo que alguns preciosos momentos, talvez algum dia fosse capaz de superar
toda a sua raiva interna.
— Mas os kisis significam muito para mim — as segurou, tocando-lhe o rosto másculo em retribuição à
carícia. Era um sentimento que ia além de sua compreensão. — E você também.
— Também me importo com você. — Luke envolveu-a num abraço carinhoso.
Mara perguntou-se se estaria sonhando. Estivera esperando pelo que parecera uma eternidade para aquele
homem admitir algo além de desejo físico a seu respeito. E no momento importar-se parecia a etapa perfeita nessa
direção.
Assim, quando a estreitou mais em seus braços fortes, não protestou. Abraçou-o pelo pescoço. Sua
respiração acelerou-se em antecipação pelo beijo dele. Luke não a desapontou. No instante seguinte, apossava-se de
seus lábios com sofreguidão, invadia-lhe a maciez da boca, entrelaçando suas línguas. Uma sensação febril percorreu
Mara por inteiro. Soltou um suspiro de prazer quando ele a puxou ainda mais para si, a pressão do sexo rijo por sob
as roupas, a evidência do quanto a queria. Apoiando-a de encontro à mesa, ergueu-a um pouco do chão, acentuando a
intimidade do contato.
Era como se, mesmo completamente vestidos, já estivessem fazendo amor.
E quando Luke recuou por um momento, interrompendo o beijo para que ambos recobrassem o fôlego, foi a
vez de Mara dizer:
— Quero você.
Ele fitou-a com intensidade, numa pergunta silenciosa, como se precisasse ter certeza. A resposta foi dada
com convicção, num idêntico olhar ardoroso.
Soltando um gemido abafado, Luke percorreu-lhe a garganta macia com lábios impetuosos. Deslizou uma das
mãos até a barra do vestido dela, afagou-lhe as coxas bem-feitas, insinuou seus dedos pelos contornos da calcinha
de renda. Rasgou a delicada lingerie que a separava dele... Suas carícias tornando-se cada vez mais ousadas.
Continuou a afagá-la com intimidade até que Mara repetisse seu nome sem parar. Em meio à doce tortura,
ela abriu o cinto da calça dele, o zíper... Até que não houvesse mais nenhuma barreira entre ambos.
Ansiosa, puxou-o para si, e Luke posicionou-a para recebê-lo, substituindo uma fonte de prazer pela outra,
sem um instante sequer de demora.
Houve uma sensação poderosa que penetrou pela consciência dela e se aprofundou, chamando por um lado de
si que não podia denominar... Já tivera esta experiência antes... Já fizera amor com ele... Também numa vida real...
Tinha certeza...
Mas quando?
— Mara.
Seu nome foi dito de encontro a sua garganta, um som abafado que pareceu carregado de sensualidade, uma
promessa cumprida pelos lábios de Luke ao se apossar dos seus. Continuava a possuí-la de encontro à mesa,
sentando-a na beirada, e logo ela o cingia com as pernas pela cintura.
Os movimentos de seus corpos prosseguiam numa cadência mágica, antiga como o início dos tempos.
Ambos se amavam... De corpo e alma... Ela se lembrava...
As sensações maravilhosas de agora mesclaram-se a seus pensamentos como brumas. Os dois foram se
movendo num crescendo, um ritmo alucinado a dominá-los.
Somente quando sentiu que o êxtase não demoraria a arrebatá-los, Luke fez uma ligeira pausa, querendo
prolongar aqueles momentos ao máximo. Ergueu-a por debaixo dos braços, levando-a em outra direção. Encontrou o
sofá do escritório e deitou-a, mas sem interromper o contato erótico que os unia.
— Oh, como quero você! — sussurrou quase torturado e prosseguiu com a cadência de seus movimentos.
Mara acompanhava-o, afagava-lhe os cabelos negros e sedosos, afundava os dedos em suas mechas,
acariciava-lhe a nuca. Arqueava os quadris, querendo lhe proporcionar o mesmo prazer. Guiou-lhe os lábios até seus
seios, e ele baixou-lhe o decote do vestido, sugando-lhe os mamilos com avidez.
Ela gritou, deliciada, e seus lábios tomaram a ser tomados pelo beijo voluptuoso de Luke. O êxtase, então,
arrebatou-os; os espasmos de prazer de ambos confundindo-se numa mútua e sublime realização.
E Mara permaneceu abraçada a ele... Saciada, num intenso contentamento... Mas atônita com os lampejos do
que havia parecido de fato lembranças de outros tempos.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Isabel rezou primeiro por Rebecca, depois por si mesma e por todo o povo kisi. Suplicou pela orientação e
proteção de seus ancestrais. Enfim, deitou-se em sua cama, perguntando-se se aquela seria a noite em que não
despertaria do sono. Pois o mal estava à espreita, como algo vivo, predatório. E ela sentia-lhe a presença, como que
fechando o cerco.
Talvez se não adormecesse... Mas estava velha e cansada. E por mais que tentasse, não conseguia impedir
suas pálpebras de se fecharem e seu espírito de vagar pelos sonhos...
Ela flutuava acima da Colina Vermelha, seu "lugar de sonhos". A noite logo foi dando lugar ao amanhecer, a
luminosidade do dia gradativamente propagando-se acima da terra avermelhada.
O silêncio era longo e profundo, exceto pelo sopro do vento.
Mas o vento soprava... Ou era uma voz a chamá-la?
Subitamente, nuvens ameaçadoras encobriram o céu, um raio atingiu a colina.
— Quem está aí? — A voz dela foi carregada pelo vento, seu coração batendo descompassado. — Quem é
você?
Deu-se conta de uma sombra invadindo seu espaço. De repente estava sendo impelida para a frente... Uma
força poderosa arrastando-a para longe de seu sagrado "lugar de sonhos". Ao seu redor, as paredes do cânion
passavam depressa, como borrões.
E então, sentiu-as... Mãos firmes ao redor de seu pescoço, apertando, apertando... Mas de quem seriam?
Isabel debateu-se, tentando vê-lo, ansiando por identificar o ser maligno que, com certeza, iria matá-la
primeiro e, depois, a seu povo. Mas o mal mantinha-se fora de seu raio de visão, fora de seu alcance. E continuava a
sufocá-la, a fazer com que tudo ao redor mergulhasse em trevas...
Ela era velha e não tinha medo de morrer, mas uma vez que a levassem, não poderia ajudar aos seus.
Seu coração batia com violência, e o ar começava a lhe faltar ao ver o mundo sendo destruído pelo mal, na
forma daquela sombra assustadora que ia sugando toda a vida ao redor. A pressão em tomo de seu pescoço
intensificava-se, deixando-a sem fôlego. Sabia que lutava em vão, que não poderia se salvar.
E, então, ouviu uma voz conhecida, vindo em seu auxílio:
— Isabel!
E esta deu-lhe um tênue raio de esperança...
— Isabel!

Mara acordou com um sobressalto. Uma camada de suor frio banhava seu corpo. Tremia dos pés a cabeça em
pânico. Céus... Alguém... Algo estivera tentando sufocar Isabel. De alguma forma, ela se "transportara" nos sonhos
mais uma vez e vira tudo.
— Luke?
Mas ele se fora. Trouxera-a para casa na noite anterior e, em seguida, retomara para o povoado para
proteger Onida e Isabel.
O mal se esgueirara e passara por ele sem ser percebido.
Sem parar para pensar sobre o que fazer, se devia ou não telefonar para Luke, para saber se tudo estava
bem, ela se levantou, vestiu-se e pegou as chaves do carro a fim de verificar por si mesma.

Talvez fosse o culpado de tudo, dizia a implacável voz da culpa dentro de Luke. Afinal, não fora capaz de
proteger a sua própria avó... Assim como não pudera salvar sua esposa e filho no passado.
Sim, talvez fosse o maldito... Dormira profundamente naquela noite. Quem poderia saber que mal teria
sonhado? Talvez fosse o responsável por quase ter matado a frágil mulher de quem tanto gostava.
— Tem certeza que está bem? — perguntava Mara, segurando a mão de Isabel.
Lançou um olhar encorajador para ele, mas o semblante de Luke ficou ainda mais sombrio.
Onida achava-se do outro lado da cama, a preocupação com a mãe visível em seu semblante contraído.
— Estou viva — disse a anciã cega. — E somente porque veio em meu socorro quando precisei de você, Mara.
Eu sabia que você tinha poderes. Tinha certeza.
— Por favor, me conte tudo em detalhes.
Ela havia salvo sua avó, vindo em seu socorro no pesadelo, refletiu Luke. Mas a salvara de quem? Dele
próprio? Saiu do quarto abruptamente, deixando que as três mulheres consolassem uma a outra. Três mulheres com
as quais tinha laços especiais.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Sua mãe e avó sempre haviam lhe dado seu apoio incondicional em todos os momentos, acreditando no melhor
de si. Agora Mara. Ao fazer amor com ela na vida real, houvera uma mudança no relacionamento entre ambos.
Estavam ligados de uma forma transcendental, que não entendia, nem podia explicar. Só sabia que seus próprios
sentimentos eram mais profundos do que julgara possível. E eram tão assustadores por sua intensidade quanto os
pesadelos que o haviam atormentado durante toda a sua vida.
Retomou para seu ateliê e olhou para a pintura ainda não terminada no cavalete e para uma outra já pronta,
encostada na parede. Mais visões sombrias do misterioso povoado incrustado no penhasco.
Sentou-se. Tentou se concentrar, meditar, focalizando o olhar em suas pinturas, pois parecia que ali estava
à verdade para si mesmo.
Fosse chocante ou não, teria que saber daquela verdade oculta de uma vez por todas.
De repente, deu-se conta de que só haveria uma maneira de saber se podia desvendá-la.
Levantou-se, colocou de lado a pintura inacabada, pôs uma tela em branco no cavalete.
E, então, começou a pintar seus piores pesadelos.

CAPÍTULO XII
Arrepiada com o relato completo de Isabel sobre o pesadelo que quase a matara, Mara renovou sua
determinação de buscar seus recursos internos, de encontrar o poder que a sábia anciã acreditava que possuía. O
fardo da responsabilidade era pesado em seus ombros. Não fora capaz de impedir o suicídio de seu paciente, mas
não deixaria que nenhum mal acontecesse à avó de Luke.
Tomou a se perguntar para onde ele teria desaparecido minutos após sua chegada. O que estaria pensando?
Culpando a si mesmo novamente? Depois que fizeram amor na vida real, ela sentia que a ligação entre ambos
fortalecera-se. O que haviam partilhado ia além de um relacionamento comum. Tinha que ajudar sua família e seu
povo... Por ele.
Onida acabara de deixar o quarto para preparar o café da manhã e um chá calmante para a mãe, que agora
se recostava nos travesseiros. Isabel parecia exausta e mais frágil do que o costume.
— Procure repousar — disse-lhe Mara, sentada numa cadeira junto à cabeceira da cama — Assim que se
sentir melhor, estarei aqui para continuarmos meu treinamento.
— De agora em diante, terei que dormir de dia e ficar acordada à noite. Fazendo o inesperado, talvez eu
possa enganar o feiticeiro que quer me ver morta. — Uma expressão intensa passou pelo rosto da anciã.
— Você tem o poder, como ficou provado outra vez nesta noite. Não entendo por que até o momento meu
treinamento não surtiu efeito. Você deve sair agora, nas primeiras horas da manhã, a pé e sem levar comida... Vá
para o deserto... Busque poder na natureza.
— Por quanto tempo?
— Por quanto for necessário. Deve encontrar seu "lugar de sonhos".
— Onde devo procurar? — indagou Mara, sentindo-se desorientada. E se falhasse? — Que direção devo
tomar?
— Deixe que o instinto guie você. Permita-se o desligamento do mundo real, busque num plano mais elevado.
Quando encontrar seu "lugar de sonhos", você o reconhecerá. Então, deve meditar até descobrir por que esse local
em particular é significativo para você.
O processo todo poderia levar dias, compreendeu Mara. Mas não tinha escolha, embora soubesse que sua
rotina de trabalho seria afetada. Deixaria um recado para Felice na secretária eletrônica da galeria.
Pediria à assistente que segurasse as pontas para ela e lhe asseguraria que, de alguma forma, a compensaria
pelo fardo extra.
Com novos calafrios ao pensar sobre o que poderia estar prestes a enfrentar, só esperava ser capaz de
cumprir todas as suas promessas.

Deixando seu ateliê por alguns momentos, em busca de um café forte, Luke encontrou Mara na cozinha
preenchendo um cantil com água. Quando ela lhe revelou seus planos de caminhar pelo deserto sozinha, não pôde
conter sua contrariedade.
— Quem sabe com o que terá que lidar lá? Vou com você.
— Não pode vir comigo. Sua avó acabou de me dizer que devo ir sozinha. Se estiver por perto para me
distrair, nunca vou encontrar meu "lugar de sonhos".

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Distraí-la, pensou Luke. Mesmo com as dúvidas sobre si mesmo ainda a angustiá-lo, a idéia não pareceu má. A
química entre os dois era quase palpável. Ao observá-la umedecendo os lábios em nervosismo, já sentia o fogo da
paixão alastrando-se dentro de si.
Era evidente que fazer amor com ela na noite anterior na galeria não fora o suficiente para saciá-lo. Na
verdade, tinha uma íntima certeza de que seu desejo por Mara jamais se extinguiria.
Venceu a pequena distância que os separava, fixou o olhar nos lábios dela, viu a expectativa em seus olhos
azuis, notou-lhe a respiração em suspenso. Estreitou-a em seus braços e beijou-a com sofreguidão, como se não
houvesse amanhã. O que poderia não haver se ela insistisse em vagar pelo deserto sozinha. Mas, ao mesmo tempo em
que reconhecia o perigo, ele também tinha consciência da verdade das palavras de sua avó sobre Mara ter que estar
sozinha para encontrar seu "lugar de sonhos".
E não podia negar a importância de que fizesse isso... E depressa.
Afinal, se não fizessem o supremo esforço para alcançarem um plano espiritual mais elevado, sua avó
certamente sofreria. Talvez morresse. E com ela morreriam as tradições kisis.
E Mara também corria perigo se não derrotassem o mal, disse-lhe uma voz em sua mente, ao lembrar-se dos
coiotes que alguém enviara em seu encalço através de feitiçaria.
Mas por que uma mulher branca?
Ainda não encontrara uma resposta para isso, assim como tampouco para a identidade do maldito
responsável por tudo aquilo... Talvez ele próprio.
Perdendo-se no gosto doce dos lábios dela, experiência com que teria que se contentar por enquanto, Luke
prolongou os momentos do beijo ao máximo antes de soltá-la.
— Tenha cuidado. — Ele pegou um chapéu de palha pendurado atrás da porta da cozinha. — E use isto.
— Não se preocupe. Estarei bem.
Respirando fundo, Mara checou se a vareta sagrada que confeccionara estava bem presa a seu cinto, pegou o
chapéu, o cantil cheio da pia e foi saindo, seu olhar fixo no dele.
— Vou me empenhar ao máximo.
Levando-a até a porta da frente, Luke observou-a seguir pela estradinha de cascalho que conduzia ao
deserto, para além da Colina Vermelha. Engoliu em seco, o temor de que algo lhe acontecesse dilacerava-o por
dentro, acentuando-lhe a angústia de não poder acompanhá-la. Começava a desconfiar que seus sentimentos por
Mara Fitzgerald iam além do simples bem-querer...
Somente quando ela desapareceu pela curva na estradinha, ele fechou a porta e voltou para seu ateliê,
sabendo que Onida fazia companhia a Isabel no quarto.
Munindo-se de seus pincéis e tintas, tornou a se posicionar diante da tela que estava pintando, determinado
a se concentrar com tanto empenho quanto Mara faria no deserto.
Certamente, unindo suas forças, os dois acabariam por encontrar algumas respostas.

As respostas não vinham com facilidade, nem mesmo no místico deserto.


Tendo caminhado e procurado por várias horas, Mara sentou-se debaixo de uma das árvores de pequeno
porte enfileirando-se por um regato estreito, que corria ao longo de um caminho pedregoso. A sombra fresca era
um balsâmico refúgio do sol, que, por sua posição, indicava que já devia ter passado do meio-dia.
Ela bebeu da água refrescante do cantil, pensando em tornar a preenchê-lo antes de retomar a caminhada.
Andar sem água no deserto... Mesmo naquela área mais amena e montanhosa... Seria pedir por problemas.
Recostando-se no tronco fino da árvore, olhou para a vastidão de terra avermelhada ao redor. Nunca se
sentira tão sozinha. Sozinha, mas de alguma forma, em paz, como se estivesse em perfeita comunhão com a
natureza.
O cansaço da caminhada deixou suas pálpebras pesadas, sua mente vagou,
— Está pondo a todos nós em perigo — protestou a anciã, a mesma mulher que havia lhe falado no sonho do
penhasco. — Estamos em guerra!
Ela ficou irritada com a menção desnecessária ao conflito entre os pueblos e os sanguinários colonizadores
espanhóis.
— Mas ele não é um dos malditos espanhóis — alegou. — É um comanche.
— Ainda assim, você o encontra em segredo, fora da proteção do nosso povoado.
— Eu o amo!

67
Sonhos do Coração Jeanne Rose
Mara despertou, sobressaltada. Não chegara a adormecer por completo e, ainda assim, um sonho invadira
sua mente. Teria sido mesmo um sonho? A ameaça de guerra e a de perder seu amor haviam parecido tão reais...
Quase como uma lembrança.
Suas mãos tremeram ao levar o cantil aos lábios para um longo gole de água.
Uma lembrança...
Quantas vezes se dera conta do senso de familiaridade desde que pisara em solo kisi? Com quantas coisas
tivera a impressão de se identificar?
Ela levantou-se, preencheu seu cantil e retomou a caminhada. Talvez quando encontrasse seu "lugar de
sonhos" também descobrisse a verdade sobre si mesma. Um pensamento que lhe causava um misto de alívio e temor.
Mas, até o meio da tarde, quando chegou à base de um cânion, não fora invadida por nenhuma sensação
especial.
Assim, prosseguiu, esperando, rezando para não falhar desta vez. Devia estar perto, já vira aquele lugar em
seus sonhos... O instinto a conduziu diretamente ao lado oposto do cânion de terra avermelhada, de onde parecia
não haver saída.
Ou, ao menos, parecia...
Estudou a elevação de rochas à sua frente e percebeu que talvez houvesse um caminho possível entre elas.
Aproximou-se, foi subindo por uma intrincada trilha rochosa e chegou a uma área ampla. Ali deparou com uma fenda
nas rochas, larga o bastante para que dois homem passassem cavalgando.
Cavalgando, em vez de andando....
Assustada, ela hesitou; sua crescente apreensão impedindo-a de investigar de imediato. Sentou-se a uma
sombra e sorveu um gole de água do cantil, enquanto mantinha a atenção na fenda logo à frente.
As rochas pareceram oscilar diante de seus olhos cansados...
— Você não deveria ter me seguido — disse zangada ao seu amante. — Esta passagem para o povoado é
secreta.
— E a quem eu contaria? — retrucou o comanche, irritado. Porém, sua voz suavizou-se. — Mas posso usar a
passagem para chegar até você.
— Não, é perigoso demais para você. — Os homens kisis de seu povoado certamente o matariam, julgando-o
algum espião se os vissem juntos.
— Então, venha comigo e estaremos juntos para sempre.
O coração da jovem kisi ansiou por fazer exatamente isso, mas tinha que pensar em seus pais, suas irmãs, os
filhos delas. Não suportaria se não os visse nunca mais.
— Não posso abandonar minha gente.
— Porque você não me ama.
— Não é verdade! Juro que amo você e que vou te amar até o final dos tempos...
A visão, lembrança, ou o que quer que tenha sido desvaneceu-se. Uma estranha tristeza inundou os olhos de
Mara de lágrimas. Observou a ampla fenda entre as rochas e perguntou-se o que haveria do outro lado do corredor.
Como que hipnotizada, levantou-se e foi em busca de seu presente... E talvez de seu passado. Enquanto foi
adentrando pela passagem, seu pulso acelerou-se, emoções confusas deixando-a zonza. Não experimentara
sentimentos tão fortes desde que deixara a casa de Luke para iniciar sua caminhada.
Onde ele se encaixaria, afinal?
De alguma forma, parecia ligado ao guerreiro comanche.
Estava ficando tão obcecada por Luke, quanto à índia kisi fora por seu amado comanche no passado.
Quanto mais avançava pela passagem, mais emoções a invadiam. Por Luke. Por Isabel. Pelos kisis. Pelo casal
apaixonado que Mara tinha certeza havia tido um final trágico.
Chegou ao final do longo caminho e viu uma ampla clareira avermelhada à sua frente. Sentiu uma opressão no
peito, seu coração batendo alucinado. Tentando lutar contra a apreensão, levantou os olhos.
Arregalou-os ao deparar com as ruínas de um povoado incrustado na lateral do penhasco... O mesmo local
representado nas últimas pinturas de Luke.
E foi arrebatada por um sentimento tão poderoso que não podia negá-lo.
Este a impulsionou, fazendo-a galgar pelas escarpas no rochedo, rumo a uma entrada lateral para as ruínas
do povoado.
Ali estava. Tinha certeza, como Isabel lhe garantira que teria.

68
Sonhos do Coração Jeanne Rose
Enfim, encontrara seu "lugar de sonhos".

Luke pintara o dia todo, freneticamente, achando que para ele sua arte era como uma substituição a um
genuíno "lugar de sonhos".
No entanto, as horrendas imagens que criara num estado quase hipnótico não haviam sido o bastante para
permitir-lhe sair do mundo terreno e ter uma visão. Chegara tão longe... E, então, deixara que algo o trouxesse de
volta... Medo.
— Receio que nosso destino talvez esteja nas mãos de uma mulher branca — disse a avó, que acabara de se
levantar da cama para comer algo e iniciar uma vigília noturna. — Você ainda está lutando consigo mesmo. Mestre da
Tempestade. Abra sua mente, liberte-a do que sabe e busque pelo que ainda desconhece. Mara não pode fazer isso
sozinha. Ela ainda não foi bem-sucedida. Ao menos meus sonhos deste dia não tiveram sua presença. E somente
quando homem e mulher trabalham unidos nós somos capazes de alcançar nossos poderes mais elevados. — Isabel
referia-se à crença kisi de que ambos os sexos precisavam estar envolvidos para se chegar ao grau máximo de
magia. — Você tem que encontrar uma maneira de ajudá-la.
— Vou tentar encontrá-la! — exclamou Luke, com incontida ansiedade. Notando que a avó apertava os lábios,
prometeu:
— Não vou distraí-la da missão. Só quero ver se Mara está bem.
E teria que se forçar a ficar acordado. Afinal, depois do que criara nas telas, quem poderia saber que tipo
de sonhos seria capaz de enviar a ela?

— Socorro!
Gritos de horror ecoavam por todos os lados, enquanto ela corria pela clareira. Colonizadores espanhóis
tinham invadido o povoado num ataque surpresa. Haviam subjugado os homens desprevenidos para a batalha e os
anciões que não haviam tido tempo para rituais de proteção. O cheiro da morte e de madeira queimada pairava
pesadamente no ar ao amanhecer. Mas de que forma os soldados espanhóis teriam entrado sem alertar os
sentinelas kisis? Deviam ter usado a passagem secreta... Mas como a tinham descoberto?
Continuando a correr com o filho da sua irmã mais velha nos braços, ela lançou um olhar desesperado por
sobre o ombro e o viu... Seu amado comanche. Emergindo das chamas, com seu corpo chamuscado e uma terrível
queimadura num dos braços, ele corria na direção dela, gritando seu nome, mas dois soldados o detiveram
violentamente.
— Não! — gritou a jovem índia, tanto num protesto por aquela captura, como também ao compreender
porque o povoado agora ardia em chamas.
Seu amado viera atrás dela, como ameaçara fazer, e devia ter sido seguido... Fora assim que os espanhóis
haviam passado despercebidos pelas sentinelas. Ela se recusara a desistir de seu comanche, contrariando o que os
anciões haviam aconselhado, e agora era a culpada pelo sangue derramado de seu povo.
Os espanhóis matariam a todos, exceto as mulheres mais jovens e as crianças crescidas o bastante para
trabalharem como escravas. Se a apanhassem, o bebê em seus braços seria morto.
Ela própria gostaria de morrer tamanha era a culpa oprimindo seu peito...
Lançou um último olhar para trás, continuando a correr. Mas nesse momento, viu um espanhol atravessando o
coração de seu amado comanche com uma espada. Com um grito agonizante, ele caiu de joelhos... Assim como ela
também. Segurou o bebê com tanta força de encontro a seu peito que o menino chorou.
E enquanto seu amado morria bem diante de seus olhos, ela soltou um grito de horror que nunca mais
pareceu ter fim...
Sentada em posição de meditação em meio às ruínas do povoado, Mara sentiu toda a dor daquela jovem kisi...
A sua dor. Aquilo não era um sonho, mas uma lembrança de uma vida passada... Ela vislumbrara outras vidas
anteriores, mais antigas, incluindo uma como uma índia anasazi. Mas nessa vida em específico, por volta de 1691, ela
havia traído inadvertidamente o seu povo, os kisis. Lágrimas amarguradas rolaram em abundância por seu rosto.
Isabel havia lhe dito para meditar e descobrir por que o lugar era tão importante para ela, mas não estivera
preparada para a dor lancinante que viera junto com as respostas.
Agora lembrava-se dessa vida passada com clareza.
Após o massacre, fora levada como prisioneira. Havia sido acorrentada, enquanto que o bebê fora
abandonado, deixado para morrer sob o sol do deserto. Depois, fora apresentada junto com os demais prisioneiros

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
ao capitão espanhol, Francisco Castillo, o maldito que havia sido responsável pela crueldade com seu povo e que
havia atravessado o coração do amado comanche dela com uma espada...
O coração de Luke, sabia Mara.
Não, ela havia sido a culpada indireta pelo massacre, tornou a lembrar-se, enquanto voltava a meditar...
O choro aterrorizado do bebê largado no deserto assombrava sua mente da mesma forma como o grito
agonizante de morte de seu amado comanche. Estava reunida com o que restara de seu povo, agora prisioneiro. Sua
vergonha era tamanha que não tinha coragem de sequer se dirigir a eles. Não suportava olhares acusadores que lhe
lançavam.
Num silêncio que durou alguns dias, enquanto os soldados ainda acampavam nas proximidades de onde tinham
quase dizimado os kisis, ela planejava escapar. Não tinha para onde ir, nenhum objetivo senão o de morrer sozinha.
Sua chance surgiu quando os soldados negligenciara sua vigilância, enquanto comiam e bebiam lautamente na
frente dos kisis famintos. Com os pés ainda acorrentados, fraca pela fome e sedenta, esgueirou-se por entre uma
formação de rochas até que encontrou um platô. Vendo-se livre, correu desajeitadamente, até que não suportasse
mais. Chegou ao cânion de terra avermelhada.
Sob o sol forte, a cabeça pendia para a frente e mal podia mover as pernas pesadas, nem mesmo quando
ouviu o som retumbante atrás de si.
Tum, tum, tum.
Algo terrível vinha em sua perseguição!
Tentou correr. A terra tremeu. Seu perseguidor era cruel, implacável; podia ouvir-lhe a respiração alta
ofegando numa espécie de fúria. Uma sombra surgiu acima dela, bloqueando o sol.
Iria morrer!
Merecia morrer, pensou, caindo ao chão lentamente sob os cascos certeiros. Uma dor lancinante percorreu-
a, enquanto o cavalo pisoteava suas pernas e quadris e, então, seu peito.
O capitão Francisco Castillo, montado em seu cavalo, e lançando-lhe um sorriso de escárnio foi a última coisa
que ela viu antes de morrer.
Num pranto convulsivo, Mara sentia todo o peso da culpa. Nunca quisera fazer mal a ninguém... Apenas
quisera buscar um pouco de felicidade com o homem que amara. Naquela vida trágica, ela e Luke haviam sido
involuntariamente culpados pelo massacre dos kisis e, assim, os tomado "os amaldiçoados".
De repente, outras imagens afloraram por trás de seus olhos fechados. Outras vidas, subseqüentes a de
1691, renascendo em todas como uma mulher branca. E nessas vidas, nunca encontrara o amor, sua punição pelas
vidas perdidas no massacre de seu clã. Agora compreendia que jamais havia tido um relacionamento amoroso pleno,
nem mesmo na vida atual. Estava com quase trinta anos e raramente havia pensado em se casar.
Ao longo de três séculos, ela e Luke haviam revivido seus respectivos papéis de amantes trágicos várias
vezes. Mas por quê?
Qual a razão de ainda estarem sendo punidos?
Ocorreu-lhe que a vida presente de ambos, enfim, dava-lhes a chance de se redimirem da culpa; a
oportunidade de repararem o erro do passado salvando o que restara do povo kisi e, assim, remover a maldição.
Para fazer isso, Mara teria que ser mais forte do que nunca. Não poderia ter dúvidas.
Primeiro teria que perdoar a si mesma.
O perdão não vinha facilmente depois do que havia testemunhado. Ter sido responsável por tantas mortes
era um fardo horrível de suportar. Mas fora apenas humana... Era humana. Mara concentrou-se. Rezou.
Fez uma promessa silenciosa de que, desta vez, não deixaria seu povo morrer. Embora não tendo nascido kisi
nesta vida, sabia que eram sua gente.
Perdeu a noção do tempo, mas acabou tendo consciência de um peso invisível sendo removido de seus
ombros.
— Eu perdôo a mim mesma — sussurrou para a noite.
E a noite sussurrou de volta.
— Isso é bom, Palowuti.
De alguma forma, ela soube que Palowuti significava Mulher-serpente, e que era seu nome kisi sagrado.
— Palowuti. — Repetir o nome deu-lhe uma sensação de comunhão com a natureza, com uma intensidade como
nunca experimentara antes. Comunhão e poder.— Palowuti.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Deixando sua mente vagar mais uma vez, ele se libertou de seu corpo terreno, flutuando acima do penhasco,
olhando para si mesma abaixo em estado semiconsciência. Ouviu sons de quilômetros ao redor, sentiu os animais que
habitavam o deserto, e viu o homem exausto que dormia de encontro a um rochedo no cânion.

Luke a seguira para protegê-la.


O homem a quem amava, a quem amara por mais de trezentos anos.
Novas lágrimas brotaram de seus olhos ao abri-los.
Com os músculos tensos por ter permanecido sentada na mesma posição por tantas horas, Mara levantou-se
devagar, fazendo um pouco de alongamento. Na distância, as estrelas começavam a retroceder, recolhendo-se a
espera de uma outra noite. Não demoraria a amanhecer.
Foi descendo pelas escarpas com cuidado, indo encontro de Luke. Em vez de acordá-lo, sentou-se no chão ao
seu lado e observou-o dormir. Esperava que estivesse tendo apenas sonhos bons.
Agora compreendia porque os pesadelos envolvendo fogo haviam-no atormentado durante toda a vida. O
fogo era o símbolo do povoado sendo incendiado pelos espanhóis e, principalmente, de todas as vidas perdidas por
causa de sua raiva, sua necessidade de desafiá-la e ir ao encontro dela, revelando, assim, a passagem secreta aos
soldados que o haviam seguido sem seu conhecimento. Perguntou-se quanto tempo levaria para que Luke enfrentasse
sua culpa e perdoasse a si mesmo.
Ele se mexeu e despertou de repente.
— Mara? O quê...? Está tudo bem?
Contente com sua importante conquista, ela assentiu.
— Eu consegui. Encontrei o meu "lugar de sonhos".
— Minha avó vai ficar aliviada.
Em vez de satisfeito, ele pareceu tenso, e Mara soube que não fora bem-sucedido em encontrar sua própria
visão. Preferiu não lhe contar os detalhes da sua. Em seu coração, sabia que Luke teria que descobrir sobre o
remoto passado por si próprio. Essa deveria ser a única maneira de poder lidar com o horror, de perdoar e de
acreditar em si mesmo.
Fitou-o com o olhar intenso de um amor mais antigo do que julgara possível. Afagou-lhe o rosto másculo,
soltou-lhe os cabelos negros do rabo-de-cavalo. Por um segundo, viu seu bravo guerreiro comanche.
Luke pegou-lhe o pulso com gentileza e beijou-lhe a palma da mão.
— Fico feliz que você esteja a salvo.
— Obrigada por estar aqui me protegendo.
— Eu acabei adormecendo...
Mara silenciou-o com as pontas de seus dedos para impedi-lo de ficar se culpando, algo que fazia com
freqüência. Ele puxou-a para si, estreitando-a em seus braços. Mara sentiu-lhe o coração batendo de encontro aos
seus seios... O coração de um comanche ciumento e apaixonado renascido como um intenso e genioso kisi.
E, então, começou a retribuir seu beijo faminto. Luke afagou-lhe o seio, massageando o mamilo por cima da
blusa, excitando-a de uma forma que a fez gemer de encontro aos seus lábios. Ardendo de desejo, Mara o queria
agora mesmo. Precisava dele. Sempre precisara. Quando começou a despi-la, também ansiou por livrá-lo das roupas.
Em questão de segundos, deitavam-se despidos sobre a terra avermelhada do cânion; as últimas estrelas
acima, as únicas testemunhas.
— Você não sai dos meus pensamentos — disse Luke, com fervor, segurando-lhe os pulsos acima da cabeça,
enquanto ministrava carícias inebriantes em seus seios... A língua a circundar-lhe os mamilos, dentes a mordiscá-los.
— E nem você dos meus.
Mara cingiu-o pela cintura com as pernas macias. Luke penetrou-a, ao mesmo tempo em que os lábios
sôfregos de ambos se encontravam, em mútua paixão. Ela o acompanhou nos movimentos ritmados, numa intensidade
de quem esperara durante séculos para reencontrar o amor.
Seu coração pulsou numa batida antiga, sua alma reconhecendo a dele. Só esperava que Luke pudesse fazer o
mesmo e logo, pois ansiava em poderem partilhar do passado abertamente.
Mas, por enquanto, naqueles momentos maravilhosos em que ele a conduzia rumo ao êxtase, Mara deu boas-
vindas ao novo dia amanhecendo... E a uma renovada esperança para o futuro deles.

CAPÍTULO XIII

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
A esperança de Mara diminuiu um pouco quando os dois retomaram à reserva e encontraram Isabel muito
abatida. Estava banhada em suor frio e num sono agitado, em que murmurava palavras ininteligíveis.
— Ela tem estado assim desde que adormeceu ao amanhecer — disse Onida, preocupada, enquanto pousava
um pano umedecido na fronte da mãe.
Uma onda de culpa apoderou-se de Mara ao pensar no que estivera fazendo com Luke ao amanhecer. Mas, na
verdade, havia sido mais a caminhada de volta do que o encontro amoroso no cânion que os havia mantido longe de
casa até o meio da tarde.
Luke pegou a frágil mão de Isabel na sua.
— Avó, pode me ouvir?
— Mestre da Tempestade? — Os olhos cegos da anciã abriram-se. Sua voz soou fraca, entrecortada. — Os
kisis estão condenados. Não me restam muitas forças para lutar contra o mal.
— Lutaremos por você — prometeu Mara. — Encontrei meu "lugar de sonhos". Agora pode repousar. Durma
em paz, sabendo que eu e Luke uniremos nossas forças para deter o mal.
— Bom — murmurou Isabel. — Muito bom. — Seu rosto adquiriu uma expressão serena e mergulhou num sono
instantâneo.
— Oh, felizmente! — exclamou Onida. — Temi pela vida dela.
— Todos nós tememos. — Mara lançou um olhar para Luke, que a observava em evidente raiva e
contrariedade.
— Quero falar com você lá fora.
— Talvez sua mãe precise de alguém para ficar um pouco aqui com sua avó.
— Não, eu estou bem. — Havia alívio na fisionomia de Onida. — Fico contente que sua busca no deserto
tenha sido bem-sucedida, Mara. E que suas pinturas também, meu filho.
Ele deu um tapinha no ombro da mãe, mas não respondeu.
— Antes de mais nada, tratem de comer alguma coisa — disse a mulher, num tom maternal. — Devem estar
famintos. Há uma torta de frango na geladeira, frutas e chá gelado.
Mara seguiu Luke para fora do quarto, percebendo que a estava tratando com a frieza de um estranho.
O que a deixou igualmente zangada.
Ambos comeram em absoluto silêncio. Luke contendo o que tinha a dizer, sabendo que precisavam repor as
forças após a caminhada no deserto, especialmente Mara.
Ao terminarem, ele indicou-lhe que o acompanhasse até o pátio dos fundos e, enfim, virou-se para
confrontá-la. Sua fúria se abrandara, mas era evidente que continuava zangado.
— Que diabos pensou que estava fazendo, com aquelas promessas à minha avó?
— Isabel precisava ser tranqüilizada, para poder descansar.
— Com uma mentira?
— Uma meia-verdade.
— E qual a diferença?
— Por que está discutindo comigo? Por que não dirige toda essa raiva a tentar tornar essa meia-verdade
numa inteira? Você prometeu que tentaria.
— Eu tentei.
— Não o bastante. — Mara nem queria pensar na possibilidade de estar sendo injusta. Havia muito em jogo
para que ele desistisse agora.
— Quem é você para dizer o que é ou não o bastante? Talvez minha avó tenha se enganado e eu não tenha
tantos poderes assim... Benéficos, ao menos. Talvez não haja nada para eu aprender.
Ela sentiu-se tentada a dizer-lhe o quanto estava equivocado, mas Luke teria que desvendar o passado por si
mesmo.
— Não pode estar acreditando nisso. Tem tanto medo assim da verdade? Tanto que abandonaria sua avó, seu
próprio povo?
Luke contraiu o semblante, sua expressão como que esculpida em granito. Sem dizer nada, deu-lhe as costas
e saiu do pátio pelo portão.
Ela o chamou, mas seus apelos foram ignorados. Pensou em ir atrás dele, continuar argumentando até
convencê-lo a fazer novas tentativas. Mas do que adiantaria? No momento, pensou que o melhor seria se revezar um

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
pouco com Onida, mas de repente lembrou-se do que a mulher dissera sobre as pinturas de Luke, como se achasse
que havia encontrado as respostas lá.
E de fato, as pinturas dos últimos vários dias haviam sido sobre o antigo povoado incrustado na lateral do
penhasco... A curiosidade conduziu-a ao ateliê, embora sabendo que, na certa, o deixaria furioso por entrar ali sem
sua permissão... Choque foi sua primeira reação no momento em que seus olhos pousaram nas três pinturas secando
de encontro a uma das paredes... As poderosas imagens eram assustadoras...
Fogo.
Luke seguira seu conselho e, enfim, retratara seus pesadelos.
Aproximando-se da primeira pintura, com o coração disparado, percebeu que a imagem era familiar, uma das
que presenciara na sua visão. Pois ali na tela, o antigo povoado kisi ardia em chamas. Algumas pequenas figuras
pareciam ser sido encurraladas pelas labaredas devastadoras, enquanto outras fugiam em todas as direções. Numa
clareira abaixo, havia a silhueta de uma mulher segurando um bebê de encontro ao peito.
Um nó formou-se em sua garganta. Sem saber, Luke pintara ela como parte de seu pesadelo.
Seu olhar intenso observou a segunda tela, uma imagem mais ampliada do povoado em chamas. As labaredas
retratadas pareciam tão reais que a fez respirar fundo e esfregar os braços arrepiados.
Mas a terceira pintura era a mais impressionante. Agora as imagens eram do interior do povoado. As chamas
consumiam cada superfície... Chamas, que se observadas de perto, eram na verdade, rostos... Torturados,
horrorizados... Os rostos das pessoas que haviam morrido naquele violento incêndio. Lembrou-se de seu amado
comanche, saindo do povoado em chamas, seu braço queimado. Ele fora testemunha, então, de cenas terríveis...
Sem saber exatamente o que estivera retratando, Luke pintara algo muito mais complexo do que meros
pesadelos... Na verdade, reproduzira suas macabras lembranças de uma vida passada. E tendo chegado tão perto,
como ainda não tinha se dado conta disso? Por que ainda não dera o passo definitivo?
Ele não quisera, disse-lhe uma voz em seu íntimo. O medo de si mesmo era grande demais e estava lhe
causando aquele bloqueio. A "arte-terapeuta" ressurgiu em Mara. Em vez de censurá-lo, deveria ter tentado uma
aproximação firme, mas mais positiva e com tato, a fim de ajudá-lo.
Enfim, deixando o ateliê, decidiu ir a sua procura e convencê-lo a tentar de novo. Verificou em toda a casa e
no pátio, mas ele ainda não retomara.
Assim, ofereceu-se para ficar com Isabel e velar seu sono, enquanto o aguardava, dizendo a Onida que fosse
repousar um pouco. Ela própria estava exausta por sua missão no deserto, mas a ansiedade em falar com Luke era
grande demais para que conseguisse dormir.

Ele só retornou ao anoitecer. Já tendo descansado, Onida foi avisá-la, tornando a se oferecer para fazer
companhia à mãe. Mara encontrou-o na cozinha, acabando de tomar uma xícara de café. Tinhas os cabelos molhados
e a fragrância de um sabonete almiscarado.
Continuava distante, em seu rosto havia uma expressão grave e sombria.
— Eu estava à sua espera.
— Cheguei há pouco e tomei uma chuveirada. Fui até a "Colina Vermelha". Fiquei sentado lá no alto, achando
que já que não tenho um "lugar de sonhos", talvez o da minha avó me trouxesse alguma luz... Mas, nada.
Apesar da raiva, ao menos ele fizera nova tentativa, ponderou Mara. Mas a frustração parecia ter
aumentado, e o deixado quase que inacessível.
— Entendo.
Ela sentiu-se impotente, tudo o que quisera dizer parecia redundante. Ambos estavam exaustos; talvez após
algumas horas de sono pudessem refletir com mais clareza.
— Você parece esgotada — comentou ele, parecendo ler seus pensamentos. — Por que não vai descansar um
pouco?
Mara olhou para as próprias roupas, amarrotadas e empoeiradas do deserto.
— Eu também adoraria tomar um banho primeiro. — Para tentar quebrar o clima tenso, acrescentou num tom
de gracejo. — Pena que não fiz uma mala antes de vir para cá.
— Posso lhe emprestar um short e uma camiseta.
A idéia de ter as roupas dele de encontro a seu corpo produziu um calor em Mara. E quando pensou que ele
não a tocaria, ficou surpresa ao ser estreitada em seus braços fortes. Conhecia esse homem, pensou, ao ouvir-lhe as

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
batidas do coração de encontro a seu rosto. Conhecia-o há mais do que uma vida... Talvez desde o início dos tempos.
Sabia que ele jamais lhe faria algum mal intencionalmente.
Ergueu a cabeça para lhe fitar os indecifráveis e penetrantes olhos negros e desejou que pudessem
reconhecê-la. Que Luke pudesse conhecer a si mesmo. E quando a beijou com paixão, ela entreabriu os lábios para
permitir a deliciosa invasão de sua língua, numa explosão de mútuo desejo. Enfim, quando ele interrompeu o beijo e
conduziu-a pela mão até seu quarto, Mara teve certeza de que iriam fazer amor. Quase perdeu o fôlego em
antecipação. Mas, para sua decepção, ele tirou um short e uma camiseta da cômoda e indicou-lhe a porta do
banheiro anexo.
— O chuveiro é ali. Depois do banho, procure dormir. Pode usar minha cama. Vou ver minha avó e, depois, vou
dar uma volta pela reserva para observar o que anda acontecendo.
Mara tentou reprimir seu desapontamento. Talvez fazer amor no momento não fosse a melhor idéia,
considerando as circunstâncias. Embora fosse óbvio que Luke também a queria.
— Volte logo. Você também precisa descansar. E tome cuidado. Tenho a forte sensação de que o maldito
está fechando o cerco. Ele deve estar desesperado por ainda não ter conseguido chegar à Isabel. E, de alguma
forma, também deve estar sentindo que estamos tentando unir nossas forças. Quando ele reunir todo seu poder, vai
tentar nos enfrentar. Devemos estar prevenidos.
Luke apenas assentiu, seu semblante parecendo ainda mais frustrado e sombrio ao deixar o quarto.
Entrando debaixo do chuveiro, Mara já começava a evocar suas preces. Esperava que ele espairecesse dos
pensamentos angustiantes, enquanto caminhava pela reserva, e que refletisse sobre suas palavras. Se Luke fizesse
uma nova tentativa em sondar seu lado espiritual, talvez conseguisse vencer aquela etapa final. Se pudesse perdoar
a si mesmo, ambos certamente conseguiriam combater o mal antes que alguém mais morresse. Somente assim teriam
a oportunidade de se redimir da remota tragédia acontecida por causa do amor deles; amor que fora amaldiçoado
durante várias outras vidas seguintes e que também tinha uma chance de, enfim, ser salvo.

Condenado... Era um homem condenado, a menos que agisse depressa... E de maneira radical, decisiva.
Seus últimos sonhos estavam totalmente fora de controle, assombrados por cenas horríveis de sangue, fogo
e morte...
Visões que pareciam mais com a realidade do que com feitiçaria. Acabara por temer o sono, pois este se
mostrava seu inimigo.
Mas o que fazer?
Mara Fitzgerald era a responsável por seu recente terror. Estava se tornando mais e mais forte, enquanto
ele parecia beirar o desespero. Chegara a vê-la em seus confusos sonhos e reconhecera seu verdadeiro poder.
Tentara assustá-la antes, usando magia kisi, mas fora em vão. Devia tê-la matado quando tivera chance...
E agora, se não agisse depressa, se não descobrisse um meio eficaz e diabólico para detê-la, ele próprio era
quem seria destruído.

Anoitecia por completo enquanto Luke se encaminhava ao povoado. Atento a tudo ao redor e ao mesmo
tempo consciente de seus pensamentos sombrios, ainda se perguntava se ele seria o responsável pelo perigo que
pairava no ar. Mara estivera certa em censurá-lo. O medo o impedia de sondar a obscuridade em seu íntimo. Pois, e
se fizesse isso e libertasse algum monstro? Pensando na última pintura que fizera, concluía que só um monstro
poderia ter criado aqueles rostos horrorizados em meio às chamas.
— Naha, aí está você.
Luke reconheceria essa voz em qualquer lugar.
— Está me procurando, Mahooty?
O brutamontes aproximou-se por um dos lados da praça central, acompanhado de Delgado.
— Pegamos você! Duas testemunhas estão afirmando que viram você perto do centro comunitário cerca de
uma hora antes de ter começado aquele incêndio.
— O centro comunitário? — Luke sonhara com fogo naquela madrugada, mas não pensara que havia andado
em seu sono também. Seria essa a prova de que podia se tornar uma ameaça enquanto dormia?
— Temos um mandado de prisão para você.
— Se há testemunhas, por que não se manifestaram antes?

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Medo, na certa. — Mahooty algemou o pulso direito de Luke antes que pudesse reagir. — Mas ninguém
precisa mais temer você. Está preso por incêndio culposo. — Pegando-lhe o outro pulso por detrás, acabou de
algemá-lo.
Com a mente ainda em turbilhão, Luke não queria lutar. Talvez aquela fosse a melhor solução. Talvez, enfim,
tivesse chegado o momento de ser punido por seus erros, mesmo que as paredes queimadas de um centro
comunitário não tivessem comparação com as mortes de sua esposa e filho.
Embora ainda pudesse sonhar na cadeia... Sua prisão não deixaria ninguém necessariamente seguro.
— Vamos indo. — Delgado deu-lhe um empurrão.
— Vai ficar trancafiado até que o xerife do condado chegue.
— E quanto a minha família?
— Bem, se você cooperar, talvez eu diga à sua família onde você está amanhã de manhã — respondeu
Mahooty, com uma gargalhada,
Os dois homens o ladearam, cada um segurando um de seus braços, como receando que Luke tentasse
escapar. Não tentaria. Seu único lamento era não poder se despedir da mulher a quem amava... Sim, agora tinha
certeza. Sentia-se como se tivesse amado Mara por mais de uma vida.
Absorto em pensamentos, só se deu conta do local exato para onde o haviam levado quando pararam no meio
da praça. A cadeia ainda ficava a uns cinqüenta metros dali.
— O que está havendo?
— Vamos ter certeza que não interfira mais nos nossos assuntos, Naha — declarou Mahooty.
E, pela primeira vez, ao ouvir uma arma sendo engatilhada e sentir o cano frio de encontro à sua têmpora,
Luke deu-se conta de que fora um tolo em cooperar com os bandidos sem reagir.
— Abra a câmara, Delgado.
O templo sagrado dos kisis era uma estrutura subterrânea. O ajudante de Mahooty arrastou a pesada tampa
redonda para o lado e removeu a escada de madeira que dava acesso à câmara. No instante seguinte, Luke sentiu
uma violenta coronhada em sua cabeça. Antes de perder os sentidos, só pôde perceber que o estavam empurrando
para dentro do profundo buraco.

Horas depois, Luke despertou, sentindo um forte latejo na cabeça e o corpo dolorido. Olhando ao redor da
câmara escura e sentindo as mãos algemadas, lembrou-se de imediato de como Mahooty e Delgado o haviam jogado
ali dentro. Testou seus braços, pernas e costelas como pôde e, constatou, aliviado, que não parecia ter quebrado
nada.
Perguntou-se quanto tempo teria ficado inconsciente e como sairia dali. A tampa da câmara, além de pesada,
ficava muito alta, e ainda havia o agravante de estar algemado. Sua maior aflição era a de não saber se sua avó, sua
mãe e a mulher a quem amava estariam a salvo.
Tentando ordenar os pensamentos, permaneceu deitado de costas. Fez uma prece, pedindo forças. E
sabedoria.
Gradativamente, sentiu uma outra presença no templo sagrado.
— Quem está aí?
Alguém que veio ajudá-lo; que também precisa da sua ajuda.
As palavras ecoaram na mente de Luke, em vez de realmente ouvi-las. Mas, ainda assim, quem as enviara
parecia-lhe familiar, havia sido desde sua infância.
— Victor? — Não soube ao certo por que o chamou já que Victor Martinez, o último sacerdote ancião kisi,
estava morto, assassinado pelo mal que rondava o povoado.
Nosso povo precisa de você, Mestre da Tempestade.
Você tem que reconhecer seu passado antes de poder assegurar o futuro dos kisis.
— Mas e se eu for o mal? — Ou maluco? Pois, afinal, estava falando sozinho.
Você tem que meditar e "buscar" nos sonhos.
— Já tentei.
Você recuou rápido demais da verdade.
Mara dissera-lhe o mesmo. Ele sussurrou com franqueza:
— Mas tenho medo.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Você tem que enfrentar seus maiores temores e ficar em paz com eles, ou os kisis estarão condenados. Sua
mulher não pode derrotar o mal sozinho. Tem que haver a união entre homem e mulher para que a magia mais
poderosa possa ser alcançada. Nosso povo precisa de você para ter algum futuro.
— Há uma imensa escuridão dentro de mim! — gritou Luke, com raiva.
Mas, desta vez, não houve resposta da voz ecoando em sua mente. E, então, Luke compreendeu que as
respostas estavam dentro de si mesmo. Concentrou-se e soube que teria que começar com as imagens que retratara
em suas últimas pinturas. Ao menos estava pronto para enfrentar seus pesadelos. E tinha que se permitir conhecer
toda a verdade. Dar um passo adiante do que já havia visto.
Aumentou sua concentração, pensou no fogo, nas imagens flamejantes que haviam assombrado suas noites...
Ele sentia-se consumido por emoções fortes.
Desejo, obsessão pela mulher que amava. Raiva e rejeição por ela ter se recusado a fugir com ele. Ciúme em
pensar que poderia acabar escolhendo algum outro para marido.
Mas estava decidido. Não iria esperar até que ela resolvesse vir ao seu encontro fora do povoado kisi outra
vez.
Iria até ela agora...
Encontrou facilmente a passagem secreta que já havia descoberto quando a seguira. Nada o separaria dela
agora. Iria raptá-la, se fosse preciso, e ficariam juntos para sempre, vivendo livremente seu amor.
Havia apenas uma sentinela junto à ampla fenda entre as rochas. Como era uma entrada escondida, não
requeria tanta vigilância quanto um acesso frontal. Estando o kisi distraído, dominou-o rapidamente, amarrando-lhe
as mãos e amordaçando-o... Se recobrasse a consciência logo, a sentinela não poderia alertar o clã.
Então, ele continuou correndo pela passagem secreta até chegar à clareira abaixo do povoado no penhasco.
Acabara de galgar as escarpas quando, de repente, ouviu um tumulto às suas costas. Para seu horror, viu outros
homens avançando pela passagem secreta... Soldados espanhóis!
Alguns vinham em montarias, todos armados, e vários carregando tochas acesas.
O fogo não demorou a ser ateado. Ele correu, seu coração comanche sangrando por dentro em culpa, ao
compreender que, sem saber, havia conduzido o inimigo ao povoado kisi. Continuou a correr, pensando com
desespero em salvar a mulher que amava da maldição que o seu ciúme havia lançado sobre o povo dela...
Quando as cenas chegaram, enfim, ao trágico desfecho e seu coração foi atravessado pela espada, Luke
sentou-se com um sobressalto no templo escuro. Estava chocado, sabendo que não se tratara de uma visão, mas de
lembranças...
Lembranças de sua louca paixão por Mara numa vida passada.
Se não tivesse sido por ele, não teria havido o fogo, o massacre, as mortes agonizantes... Se não fosse por
sua causa, os kisis jamais teriam sido quase dizimados.
E seu povo agora não seria amaldiçoado.
Certamente, a escuridão dentro de si era mais maligna do que havia imaginado.

CAPÍTULO XIV
Mara abriu os olhos de repente na escuridão, sem fazer idéia do que a despertara. Conseguira dormir, mas
continuava exausta ainda estava usando a camiseta e o short de Luke. Tateando o vazio na cama a seu lado,
percebeu que tivera a esperança de que ele retornasse da volta pelo povoado e se deitasse ali com ela. Mas se havia
retornado, obviamente escolhera outro lugar para dormir.
Acendendo o abajur, consultou o relógio. Quase quatro da madrugada. Apesar de ter dormido
profundamente por várias horas, estava ficando com dor de cabeça, um sintoma que indicava que precisava de mais
repouso. De qualquer maneira, dormira mais do que o planejado e não sentia mais sono. Levantou-se devagar para não
piorar a dor na cabeça.
Descalça, seguiu pelo longo corredor, planejando fazer um bom chá relaxante antes de ir ao quarto de
Isabel. Mas uma voz chamou-a:
— Mara, venha se juntar a mim.
Ela entrou na sala de estar. Achava-se às escuras, exceto por várias velas acesas. Iluminavam as imagens
sagradas dos santos católicos e das divindades kisis em seus nichos, e lançavam uma luz lúgubre sobre a figura
frágil sentada numa poltrona a um canto.
— Isabel, o que está fazendo aqui sozinha?

76
Sonhos do Coração Jeanne Rose
— Onida precisava dormir um pouco.
— Como está se sentindo?
— Melhor... Mas, ao mesmo tempo, pior. Luke... Alguma coisa está errada.
— Quer dizer que ele ainda não voltou? — Um calafrio percorreu Mara.
— Não. E temo pela segurança do meu neto.
Assim como Mara também temia. Por que não o impedira de deixar a casa sozinho? Como se pudesse impedi-
lo de fazer algo que quisesse...
Massageando a nuca para tentar aliviar a estranha dor de cabeça que se intensificava, procurou tranqüilizar
a velha mulher.
— Luke deve estar bem. — Tinha que estar...
— Então, onde estará agora?
Mara soltou um gemido abafado, sua atenção totalmente voltada para o forte latejo na nuca. Nunca tivera
uma dor de cabeça desse tipo. Com certeza, um simples chá não seria o suficiente para amenizá-la.
— Minha cabeça parece que vai explodir. Vou ver se encontro algumas aspirinas.
Mas antes que deixasse a sala, ouviu Isabel respirando fundo e soltando um suspiro trêmulo.
— Remédio de homem branco não pode curar o que está acontecendo com você.
Mara levou as duas mãos à nuca. Céus, sentia-se como se alguém estivesse perfurando sua cabeça e tentando
entrar.
— O que quer dizer?
Como que num eco, ouviu Isabel dizer:
— O mal está sobre nós.
A vareta sagrada que Mara fizera estava num dos nichos. Sem pensar, apanhou-a e tentou focalizar a sábia
anciã. Mas a sala pareceu girar. O rosto de Isabel saiu de foco. E o latejo na sua nuca intensificou-se...
O mal...
Calafrios subiram-lhe pela espinha, e um fluxo de adrenalina percorreu-a.
— O que devo fazer? — perguntou, aflita.
— Lute! — ordenou Isabel, como que muito ao longe. — Lute contra o mal usando tudo o que aprendeu!
A dor atrás de sua cabeça tomou-se insuportável.
Horrorizada, Mara foi caindo ao chão, segurando a vareta sagrada com firmeza junto ao peito. Fechou os
olhos e tentou clarear a mente. Respirou fundo várias vezes; ia soltando o ar pausada e tremulamente.
Concentrou-se em seu nome sagrado: Palowuti...
E em sua mente tornou-se a Mulher-serpente.
Estava de pé no solo de um cânion, suas paredes de um vermelho tão vivo que lhe ofuscavam as vistas. E o
vento uivava com tanta violência ao seu redor que parecia ensurdecê-la. Segurando a vareta sagrada, endireitou sua
postura, afastou as sensações de desconforto e concentrou-se em encontrar aquele, ou aquela, a cujos chamados ela
havia respondido.
Um gélido calafrio percorrer sua espinha a fez tomar consciência de uma força maligna às suas costas.
Virou-se devagar, o movimento deliberado fazendo-a ficar cara a cara com um homem de olhos vermelhos. Ele tinha
o corpo todo pintado e coberto de penas, de um modo tão intrincado quanto às estatuetas de Isabel.
O ódio que emanava daquele ser atingiu-a em cheio, como algo quase palpável disparando seu coração,
produzindo-lhe um pavor terrível que tentou reprimir.
— Quem é você? — perguntou ela, sem poder evitar o tremor em sua voz. — O que quer de mim?
— Me chame de Feiticeiro. — Ele riu, o som macabro ecoando pelo cânion deserto. — Ou talvez prefira se
referir a mim pelo meu nome kisi... Lucas Naha. Mulher tola, pensando que eu iria querer mudar o meu jeito, que
talvez amasse você.
— Luke? — Com o coração acelerado em puro terror, ela concentrou-se em enxergar através do disfarce, em
ver a verdadeira identidade daquele ser, mas era impossível.
— Devia ter ficado afastada. Traí você antes e vou traí-la novamente. E desta vez será em definitivo. Sua
morte me encherá de satisfação.
Um braço pintado ergueu-se para o céu, um punho cerrando-se num gesto de poder.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Os ventos instantaneamente formaram um rodamoinho em torno da Mulher-serpente. Acima, nuvens negras
e ameaçadoras foram avançando. Raios assustadores cortaram os céus e atingiram o chão a meros centímetros de
seus pés.
O homem a quem amava estava mesmo tentando matá-la?
Um nível profundo de desespero como jamais imaginara consumiu-a por dentro. E por alguns momentos
perdeu sua concentração.
De repente, viu-se subindo e avançando pelo ar com uma velocidade incrível. O ritmo era vertiginoso,
minando-lhe o poder. E, então, foi deixada de pé no alto de um precipício, os pés perto demais da beirada escarpada
para que se sentisse segura. Um frio subiu-lhe pelo estômago, enquanto seu corpo se inclinava para frente e para
trás numa tentativa desesperada de não se desequilibrar. Um riso de escárnio às suas costas a sobressaltou, fez
com que se descuidasse. Virou-se depressa demais, quase perdendo o equilíbrio, e viu um braço pintado vindo na sua
direção. Uma mão aberta atingiu-a em cheio no peito, sua força descomunal empurrando-a da beirada.
— Nã-ã-o!
Ela foi caindo, em prantos convulsivos pelo fato de seu amado poder ser realmente tão mau.
Mas havia outras pessoas a considerar, lembrou-lhe uma voz em seu íntimo. Outros a quem proteger.
Ao acalmar suas emoções, compreendeu que o Feiticeiro estava tentando apavorá-la para matá-la em
espírito, a fim de que o corpo tivesse o mesmo destino. E, então, não seria de ajuda para ninguém. Concentrou-se em
salvar a si mesma.
Instantaneamente estava flutuando numa brisa suave que a conduzia em outra direção, dando-lhe tempo
para se recobrar. Enfim, depositou-a nas ruínas do antigo povoado kisi incrustado na lateral do penhasco, no exato
ponto que era o seu poderoso "lugar de sonhos".
Mas as ruínas do povoado estavam submersas em trevas, o que significava que o Feiticeiro chegara ali
primeiro.
Procurou-o através da escuridão, mas encontrou coisas mais sutis e surpreendentes... Um rosto
fantasmagórico surgiu subitamente nas sombras... Um gemido de dor veio de algum lugar ao redor.
Fantasmas! As pessoas que haviam morrido no massacre.
O coração dela quase parou quando inúmeros espectros pareceram se materializar à sua frente, braços e
pernas retorcidos e ensangüentados, olhos arregalados em horror.
Os fantasmas estavam inquietos, flutuando, vagando, agrupando-se. Surgiam por todos os lados.
— Assassinos! — acusavam eles, suas vozes guturais.
A culpa se alastrou dentro da Mulher-serpente, dilacerando-lhe o coração, a alma. Começou a chorar,
soluçando alto.
Mas percebeu que não podia permitir isso. Já perdoara a si mesma. Tinha uma nova chance para reparar seus
erros. Mas será que dispunha do poder para vencer o mal desta vez?
Não tinha certeza se podia fazê-lo sozinha.
Os fantasmas começaram a se desvanecer...
Logo foram substituídos por uma voz maléfica que ecoou de cada grande fenda no penhasco.
— Terei prazer em matar você — bradava o Feiticeiro. — E também aquela velha que você protege com toda
as bobagens sobre magia kisi.
— Você mataria sua própria avó? — A avó pela qual seu amado mostrava tanta reverência, alguém a quem
com toda certeza amava? — Não acredito em você! — De uma forma ou de outra, o Feiticeiro estava mentindo. Ou
não mataria a avó... Ou não era quem afirmava ser.
A risada dele era o próprio mal.
— Quando eu acabar com os kisis, não serão mais os amaldiçoados. Serão aqueles que terão se extinguido.
Segurando sua vareta sagrada, ela rezou pela verdade e por ajuda...
Ambas vieram na forma de alguém que se aproximou subitamente, surgindo pela passagem secreta. A
Mulher-serpente observou o homem que corria na sua direção, os cabelos longos e negros esvoaçando, o rosto
coberto de sangue. Falou seu nome sagrado:
— Mestre da Tempestade!
Suspirou aliviada. Seu amado não era o Feiticeiro. Não devia ter duvidado disso! Feliz, atirou-se em seus
braços, partilhou de emoções; embora não de um abraço mais demorado.
Não tinham tempo.

78
Sonhos do Coração Jeanne Rose
O ser que se autodenominava Feiticeiro bradava em fúria. Seu rosto se desfigurou e foi se transformando.
Por trás da máscara pintada, ela de repente reconheceu o capitão espanhol que atravessara com uma espada
o coração de seu amado comanche e, depois, montado em seu cavalo, a pisoteará até a morte.
— Francisco Castillo! — gritou, furiosa.
— A quem está chamando agora? Esse Francisco não vai ajudar você!
Perplexa, Mulher-serpente deu-se conta de que o Feiticeiro não conhecia a própria identidade.
— Você é Francisco Castillo! — gritou o Mestre da Tempestade, a mão segurando a da Mulher-serpente a
seu lado, num elo que se fortalecia. — Trezentos anos atrás, você me seguiu pela passagem secreta até este
povoado e massacrou as pessoas que viviam aqui!
O Feiticeiro permaneceu imóvel, seu corpo tenso em fúria.
— Chega das suas mentiras!
— Por que quer matar novamente, Castillo? — perguntou a Mulher-serpente. — Já não tem sangue e
destruição demais na sua consciência?
Sibilando em resposta, o Feiticeiro atirou uma vareta no chão de terra vermelha e recitou algumas palavras.
A vareta adquiriu uma forma sinuosa e avançou certeira para ela. Uma cascavel... De suas presas escorrendo veneno!
— Que os espíritos me guiem! — gritou Mestre da Tempestade.
Agachou-se com agilidade e segurou a cobra pela base da cabeça. Atirou-a longe, para além do Feiticeiro e
das ruínas do povoado, fazendo-a precipitar-se até a clareira.
O Feiticeiro riu.
— Devia tê-la jogado em mim. Mas você é um tolo fraco! Não é de admirar que eu tenha matado você antes!
Agora Castillo estava se lembrando, percebeu Mulher-serpente. Mas a visão desse homem perverso não fora
chamada em nome da busca do conhecimento. O propósito era o de destruí-los!
Recitando palavras mágicas, ela atirou sua vareta sagrada na direção do Feiticeiro. Espantada, observou
enquanto a vareta de madeira, ornamentada com penas, começou a crescer e transformou-se numa enorme serpente
azul, que foi aumentando diante dele.
Os olhos da criatura cintilaram com as cores do arco-íris. Então, moveu-se numa espécie de dança e sibilou,
o som propagando-se pelas ruínas ao redor.
— Palolokon! — Reconhecendo a antiga divindade que se aproximava, o Feiticeiro foi recuando cada vez mais,
até que chegou à beirada do penhasco.
A Mulher-serpente sabia que a uma simples ordem, Palolokon mataria o mal. Mas o ódio e as mortes deviam
cessar, ou o povo kisi continuaria a ser amaldiçoado, se não destruído por completo. Ergueu a palma no ar e
exclamou:
— Palolokon! — E a vareta sagrada retomou para sua mão.
O Mestre da Tempestade abraçou-a pela cintura. Juntos tinham a força para conquistar tudo, para vencer
qualquer mal.
Fitando os olhos vermelhos do Feiticeiro, ela disse:
— Eu perdôo você pelo massacre ao meu povo... Pelo assassinato do meu amado... Pela minha própria morte.
Novamente o rosto mascarado do Feiticeiro se transformou no do capitão Francisco Castillo, e nos
momentos seguintes sua expressão se alterou, de carregada de ódio passou para pacífica, serena... E, então, de
propósito, ele recuou aquele último passo letal na beirado precipício.
Abalados, Mulher-serpente e Mestre da Tempestade olharam para a clareira abaixo. A cascavel do
Feiticeiro rastejou até seu corpo inerte, seu próprio feitiço e culpa virando-se contra ele, numa dança derradeira
com a morte.

— Mara! Volte, por favor! — suplicou Luke até que, finalmente, ela abriu os olhos.
Acariciou-lhe os cabelos, enquanto uma tênue luminosidade se filtrava pela janela. Já estaria amanhecendo?
Ela estudou o rosto dele e viu que estava ensangüentado como em sua visão. E notou-lhe algumas escoriações num
dos pulsos.
— O que aconteceu com você?
— Mahooty e Delgado pensaram que, ao me prenderem no templo subterrâneo, iriam me manter afastado.
— Mas você escapou.
— Com a ajuda de Victor Martinez.

79
Sonhos do Coração Jeanne Rose
O sacerdote ancião que havia sido a primeira vítima do mal que ambos haviam acabado de enfrentar.
— Será que conseguimos mesmo? — perguntou ela, ansiosa.
Luke assentiu e pegou-lhe a vareta sagrada das mãos. Colocou-a numa mesinha próxima e ajudou Mara a se
levantar, estreitando-a num abraço apertado.
— Sim. Juntos.
— O mal está derrotado — declarou Isabel.
— Oh, felizmente! — exclamou Onida, aliviada, lágrimas escorrendo por suas faces. — E vocês dois estão a
salvo.
Os dois continuaram se abraçando e, enquanto Mara absorvia o calor bem real e humano de Luke, sabia que
nunca mais queria se separar dele.
— O Feiticeiro já foi Castillo... Mas quem era ele... Hoje em dia? — perguntou ela. — Mahooty?
— Vamos enfrentar o maldito juntos e descobrir.
Juntos soava maravilhoso. Tinha um ar de permanência. Será que Luke estaria sentindo os mesmos laços de
união que ela?
Em questão de minutos, os dois se puseram a caminho para confrontarem Mahooty. Luke explicou a Mara
como fora algemado e jogado na câmara subterrânea. Contou que tivera as visões e sobre como, enfim, saíra, usando
magia kisi, através da orientação do espírito de Victor Martinez.
Ironicamente, encontraram Mahooty e Delgado no meio da praça. Ambos espiavam pela abertura da câmara,
e havia vários curiosos ao redor.
— Que diabos aconteceu aqui? Como Naha conseguiu escapar?
Em voz alta o suficiente para que todos escutassem, Luke respondeu:
— Com a ajuda de um dos anciões.
Mahooty virou-se abruptamente, seus olhos arregalados.
— Uma velhota cega conseguiu libertar você?
— Não. Foi a verdade e uma bola de fogo... A primeira que já criei. Victor Martinez me deu algumas
instruções.
A menção ao falecido fez com que Delgado empalidecesse.
— Qual a desculpa de vocês? — prosseguiu Luke, avançando com um olhar faiscante. — O que os fez
enlouquecer a ponto de me jogarem na câmara do templo, afinal?
— Não preciso de desculpa — explodiu Mahooty. — Sou a autoridade aqui e você está...
— Mostre-nos o mandado de prisão dele — interveio Mara.
— Ele prendeu Naha? — perguntou um dos moradores, perplexo. — Pelo quê?
— Mahooty pensa que pode fazer o que quer — disse outro homem, indignado, sem temor em se manifestar.
Embora Mara desprezasse Mahooty, soubesse o crápula que era, não tinha nenhuma sensação de
reconhecimento. Ele era o que parecia... Um mau-caráter e nada mais.
Não era o Feiticeiro.
— Não banque o esperto comigo — dizia Luke, num tom ameaçador. — Esclareça o que houve, ou vou
providenciar para que você vá parar atrás das grades.
— Ei, tirar você do caminho não foi idéia minha — protestou o brutamontes.
— Então, isso quer dizer que não existe nenhum mandado de prisão para ele — declarou Mara.
— Fui pago para prender Naha — admitiu Mahooty, acuado. — Não há nenhuma acusação contra ele.
— Quem pagou você? — pressionou Luke. Mas como o outro não se mostrasse disposto a falar, agarrou-o
pelo colarinho.
— Oh, está bem. Solte-me. Foi Tom Chalas quem me pagou para tirar você do caminho.
Um murmúrio generalizado de perplexidade ecoou ao redor, enquanto Luke e Mara trocavam um olhar
significativo.
— Vamos — disse ele, pegando-a pelo braço. — Encontramos o tal homem.
Olhando para trás, ela se deu conta de que o grupo de curiosos os estava seguindo e acenando para outros
moradores, nos quintais ou varandas, para que fizessem o mesmo.
— Faz sentido — disse, enquanto corriam em direção à mercearia, — Eu deveria ter reconhecido as peças
desse quebra-cabeças e concluído que Chalas foi o responsável por todo o mal que andou acontecendo. Ele é um
desequilibrado, cuja arte fala mais a favor da guerra do que contra. — Lembrou-se dos slides e fotos das esculturas

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
que revelavam a mente perturbada dele. — Se ao menos eu o tivesse reconhecido, enxergado quem realmente era
Chalas quando vi exemplos de suas esculturas...
O capitão espanhol, Francisco Castillo.
— Poderia ter feito o quê?
— Talvez salvado Rebecca.
Luke lançou-lhe um olhar incrédulo.
— Você nem ao menos sabia quem tinha sido em outra vida. Não pode ficar se culpando. E falo por
experiência própria. Vivi com culpa por tempo demais. Finalmente, tive que aceitar que de fato foram os retalhos de
tecidos embebidos em terebintina que causaram o incêndio no Arizona. Tive que lidar com muita raiva dentro de mim
durante minha vida, mas não sou nenhum assassino, nem incendiário.
Os dois entraram depressa na mercearia, mas pararam bruscamente. Estava vazia.
Mara fechou os olhos, concentrou-se.
— Ele está aqui.
— Vamos ver no depósito.
Passaram pelas prateleiras de mercadorias rumo à porta nos fundos da mercearia, os moradores da Reserva
Kisi vindo logo atrás.
Chalas estava estendido no chão do depósito, os dois primeiros botões de sua camisa, abertos. Enquanto
Luke se agachava para verificar-lhe o pulso, Mara notou algo rastejando por entre as sombras das caixas de
suprimentos. Uma serpente? Ou um espírito sagrado?
Agachando-se também, reconheceu as marcas na base do pescoço de Chalas... Dois pequenos orifícios, como
que deixados por presas. Verificou nas sombras apenas por cautela, embora soubesse em seu coração que essa
serpente não machucaria mais ninguém. E se realmente aparecesse, se fosse real, eles a pegariam e a soltariam no
deserto.
Murmúrios ressoaram às suas costas, enquanto as outras pessoas se aglomeravam à porta do depósito.
— Ele ainda está vivo.
No momento em que Luke fez tal pronunciamento, Chalas abriu os olhos devagar. Estavam um tanto
revirados, e respirava com dificuldade.
— Alguém chame uma ambulância — pediu Mara, lutando contra sua repulsa ao mal que sentia pairando ali
dentro.
— Não... Não é preciso. — Tom Chalas olhava diretamente para ela. — Você venceu nossa batalha... Eu jamais
chegaria vivo ao hospital...
— As coisas não precisavam chegar a este ponto — disse Mara, angustiada. — Por que tentou destruir seu
próprio povo?
— Meu povo? Pois sim! Eles me detiveram, me podaram... Os anciões me disseram que eu era fraco demais
para ser sábio ou ter visões. — O riso de escárnio de Chalas foi entrecortado pela tosse. — Mostrei a eles.
— Seu ódio pelos kisis não tinha nada a ver com esta vida — lembrou-o Luke. — É parte de um ressentimento
de trezentos anos. Você não pôde superá-lo.
— Mas tem que superá-lo agora, tem que perdoar a si mesmo — declarou Mara com urgência, receando que
Chalas pudesse desistir dos últimos resquícios de vida antes de poder fazer isso. — Do contrário, nós passaremos
um ciclo de mais três séculos repetindo a tragédia outra vez e outra, e você nunca se libertará.
Ela se deu conta de que os três vinham lidando com a culpa através de varias encarnações. A culpa a
condenara a ser uma mulher branca, e o ao seu amado comanche e ao capitão espanhol a serem kisis.
— Não quero que isto fique se repetindo... — murmurava Chalas, a cor tendo-lhe sumindo por completo das
faces.
— Então, perdoe a si mesmo.
— Sim, eu me perdôo... — As palavras foram o último sopro de vida dele.
E Mara sentiu que o mal desaparecia dali.
Chalas estava morto. Esperava que sua alma, enfim, descansasse em paz.
Luke encontrou um cobertor e cobriu o corpo. E, então, passou um braço pelos ombros de Mara e conduziu-a
até a saída. Os moradores abriram caminho, e um deles se ofereceu para receber os paramédicos quando, enfim,
chegaram.

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Sonhos do Coração Jeanne Rose
Assim que retomaram à sua casa, Luke contou o que se passara à mãe e à avó. Onida deixou a sala para
preparar um chá.
— Ele não precisava morrer — disse Mara, andando devagar de um lado ao outro da sala. — Se ao menos
Chalas tivesse enxergado a verdade sobre sua outra vida e pedido perdão antes de ter tornado a errar nesta.
— Ninguém é culpado por nada disto que aconteceu — assegurou-lhe Isabel, já parecendo mais forte,
tornando a ser a mulher poderosa de antes, — O mal existe quando nem tudo funciona em comunhão para o
equilíbrio do Universo. Haverá verdadeira paz no mundo apenas quando tudo funcionar em harmonia. Luz e escuridão,
céu e terra, homem e mulher... — Nesse ponto, a sábia anciã cega levantou-se, um sorriso significativo curvando-lhe
os lábios. — Bem, Onida precisa de mim na cozinha.
Observando a avó se retirar, Luke repetiu:
— Homem e mulher, sem dúvida. — E, então, virou-se para Mara. — Acha que poderíamos "funcionar" juntos?
Juntos. A idéia a entusiasmou. Estivera sozinha por tanto tempo...
— Para a paz no Universo?
— Dar continuidade às tradições kisis já seria um bom começo. Minha avó é a única líder espiritual que
restou, e talvez não tenha muito tempo nesta terra. Nosso povo precisa de orientação para superar de vez o
estigma da maldição.
— Eu não saberia por onde nem como começar.
— Já começamos. — Luke estreitou-a em seus braços, fitando-lhe os olhos azuis. — Poderíamos continuar
juntos... Como marido e mulher.
Ela exibiu um sorriso vindo de seu coração.
— Está me pedindo em casamento?
— Claro que sim. Venho amando você há mais trezentos anos, Mara. — Os olhos e a voz de Luke continham
incrível fervor. — Já não é tempo de você enfim, dizer que não vai me fazer esperar mais?
— Oh, nada mais de esperar, por favor! Considere aceita a sua proposta de casamento. Também te amo,
Luke. — Ela o abraçou pelo pescoço, puxando-o mais para si. Em seu coração sabia que a culpa do passado estava,
finalmente, superada. O beijo que uniu os lábios de ambos era repleto de esperança por uma vida inteira de doces
promessas. Juntos. Sempre juntos dali em diante.
Trezentos anos haviam sido tempo demais para alguém esperar pelo amor...

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