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De Fernando Arrabal
Escuridão.
Fídio: Eu disse que a partir de hoje nós seremos bons e puros, como os anjos
Lilibé: Nós?
Fídio: Sim
Fídio: Você tem razão, será muito difícil. Mas vamos tentar
Lilibé: Como?
Lilibé: Sim.
Fídio: Da bíblia?
Lilibé: Sim.
Fídio: (ENTUSIASMADO) – “No princípio Deus criou o céu e a terra.” Como é bonito!
Fídio: (LENDO) “Deus disse: faça-se a luz, e a luz se fez”. “Deus viu que a luz era boa e separou
a luz das trevas. Deus chamou a luz do dia, e as trevas de noite. Assim foi feito o dia e a noite,
surgindo o primeiro dia.”
Lilibé: É.
Fídio: “E o Deus eterno fez o homem da poeira da terra, e dando-lhe um sopro, o Deus eterno
fez a mulher da costela que tirou do homem”. (FÍDIO E LILIBÉ SE BEIJAM)
Fídio: Não.
Fídio: É, muito.
Fídio: Não.
Lilibé: E matar?
Fídio: Não.
Fídio: Vamos.
Fídio: Você não percebeu o que é preciso fazer para ser bom?
Fídio: Não muito bem. (PAUSA) – Mas eu tenho o livro e com ele saberei.
Fídio: Sempre.
Lilibé: Os dois?
Fídio: Brincaremos.
Lilibé: Sempre?
Fídio: Sempre.
Fídio: Por que Deus é todo poderoso. Deus faz coisas impossíveis: Milagres.
Fídio: Ouça o que diz a bíblia: “Foi levado um cego até Jesus, e pediram que o tocasse,, ele
pegou o cego pela mão e o levou pra fora da aldeia, depois ele colocou saliva sobre os olhos,
colocou as mãos e lhe perguntou se via algo. Ele olhou e disse que via os homens como árvores
que andam. Jesus colocou de novo, a mão sobre os olhos, e quando o cego olhou fixamente,
estava curado e viu tudo claramente.”
Lilibé: É difícil.
Fídio: Tentaremos.
Fídio: E além disso, foi tão sem graça o que fizemos até agora.
Fídio: É. Vai.
Fídio: Não.
Lilibé: Ah, me parece tão impossível! Eu gostaria que você dissesse isso outra vez.
Fídio: Os outros não vão para o céu. Os outros são demônios e vão para o inferno.
Fídio: Demais.
Fídio: É.
Lilibé: Ninguém vai perceber.
Lilibé: Certeza?
Fídio: Também.
Fídio: Deus marca com letras de ouro, num livro lindo, tudo o que você faz de bom. E num livro
muito vil, com uma letra muito feia, todos os seus pecados.
Lilibé: Eu serei boa. Eu quero que ele escreva sempre com letras de ouro.
Fídio: Claro.
Lilibé: É.
Lilibé: Tudo?
Fídio: É. Tudo.
Lilibé: E também que você me despe para que os seua amigos durmam comigo?
Fídio: Inclusive.
Fídio: É verdade.
Fídio: É.
Lilibé: Se a gente tentar ser bom, não vai ser a mesma coisa?
Fídio: Sim. Você sabe como nasceu o filho de Deus? (PAUSA) – Aconteceu há muito tempo. Ele
nasceu em uma manjedoura muito pobre de Belém, e como ele não tinha dinheiro para
comprar agasalho, uma vaca e um burro o aqueceram com sua respiração. E como a vaca ficou
muito contente de servir a Deus, ela fazia muu, muu e o burro relinchava. E a mãe da criança,
que era a mãe de Deus, chorava. E seu marido a consolava.
Fídio: Ela não tinha nada, ainda que fosse Deus. E como os homens eram maus, não lhe deram
nada de comer.
Fídio: Mas um dia, num reino muito distante, reis que eram muito bons viram uma estrela que
caminhava no céu e a seguiram.
Fídio: Sim (PAUSA) – E eis que eles seguiam... seguiam... seguiam... a estrela, até que chegam
um dia à manjedoura de Belém. Então eles ofereceram à criança, tudo o que traziam em seus
camelos: muitos brinquedos e balas e chocolate. (PAUSA. ELES SORRIEM COM ENTUSIASMO)
Fídio: Depois a criança ajudou seu pai, que era carpinteiro, a fazer mesas e cadeiras. E como
ele era bem comportado sua mãe o beijava sempre.
Lilibé: É verdade...
Fídio: E o que era bom, é que nessa época ele não fez nenhum milagre para comprar roupas
caras ou comer melhor.
Lilibé: E depois?
Fídio: Depois ele se fez homem e eles o mataram: eles o crucificaram com pregos nas mãos e
nos pés. Já pensou?
Fídio: Não. De jeito nenhum. Ele se continha. Aliás, para humilhá-lo mais ainda eles o
colocaram entre dois ladrões.
Fídio: E não é que um dos sois não era ladrão, era um impostor. Um indivíduo que enganava
todo mundo.
Fídio: Sim. Ele tinha feito todo mundo pensar que ele era mau e de repente descobriram que
ele era bom.
Lilibé: Foi?
Fídio: Eu também.
Lilibé: Imediatamente.
Lilibé: Ocarina?
Fídio: Sim.
Fídio: Você vai entender. Se a gente percebe que alguma coisa incomoda alguém, você não a
faz. Quando você percebe que alguma coisa dá prazer a alguém, você a faz. Se você ver um
pobre velho paralítico, que não tem ninguém no mundo, aí você vai visitá-lo.
Fídio: Não.
Fídio: Mas você não entende que a gente não pode mais matar?
Lilibé: Continue.
Fídio: Se você vê que uma mulher carrega um fardo pesado, você a ajuda. (VOZ DE JUIZ) – Se
você ver que alguém comete uma injustiça, você a repara.
Lilibé: As injustiças também?
Fídio: Também.
Lilibé: Vai ser entediante. (SILÊNCIO) – Vai ser como todo o resto. (SILÊNCIO) – E vai ser
penoso. (SILÊNCIO)