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2009 © Terésio Bosco

Título original: Don Rua. Leumann-Turim, Editrice LDC, s/d.


Tradução: Fausto Santa Catarina

EDITORA DOM BOSCO


SHCS CR – Quadra 506 –
Bloco B
Sala 65 – Asa Sul 70350-525
Brasília (DF)
Tel.: (61) 3214-2300
www.edbbrasil.org.br

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“Nós dois faremos tudo meio a meio”

Um rapazinho pálido. Oito anos e uma fita preta


no braço esquerdo, indicando luto. Havia dois meses que
seu pai tinha morrido. Um padre rodeado de meninos
barulhentos, com um gesto, o convida a se aproximar:

– Pegue, Miguel, pegue!

Pegar o quê? O estranho padre nada lhe oferece.


Apenas estende-lhe a mão esquerda; com a direita, finge
cortá-la em duas. O rapazinho levanta os olhos, nos quais
se desenha um ponto de interrogação. E o padre lhe diz:

– Nós dois faremos tudo meio a meio.

O menino chama-se Miguel Rua e mora na Real


Fábrica de Armas de Turim, em que seu pai trabalhava.
O padre é Dom Bosco, que nesse tempo promove ver-
dadeira revolução entre jovens da periferia de Turim.

Na Fábrica de Armas, que é, afinal, um grande


quartel, Miguel frequenta as duas primeiras classes ele-
mentares. Espiando pela janela, entre uma aula e outra,
Miguel vê os operários, sujos pelo trabalho, derramar
o ferro fundido nas formas de canhões. Em seguida, os
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grandes e brilhantes canos são acomodados em carro-
ças tiradas por cavalos agitados.

***

Tempos depois, no colégio dos Irmãos das Esco-


las Cristãs ele frequenta o terceiro ano elementar. Fica
surpreso de encontrar Dom Bosco novamente, que aos
domingos vem confessar e rezar missa.

Os meninos estão nos bancos, em ordem e silêncio.


Mas assim que chega o padre parece o fim do mundo.
Todos se levantam, correm ao seu encontro, puxam-lhe
a batina. Ele a todos cumprimenta e para todos tem uma
palavra e um sorriso. Não há carranca de irmão capaz de
devolver a calma. A agitação continua.

Miguel confessa-se com ele o ano inteiro. Tor-


nam-se amigos.

Mas nesse tempo o terceiro ano elementar é o


último de escola obrigatória. Num domingo de maio,
Dom Bosco diz a Miguel:

– Queria falar com você depois da missa. Você


me espera na sacristia?

Miguel o espera. Dom Bosco tira a casula e a


alva. Reza demoradamente de joelhos. Depois, apro-
xima-se dele:

– Que é que você pensa fazer no ano que vem?


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O menino de 10 anos, já bastante alto e sempre
pálido, responde:

– Minha mãe falou com o diretor da Fábrica de


Armas. Eles me darão trabalho nos escritórios e assim
poderei ajudar minha família.

– Eu também falei com seus professores, disse-


ram-me que Nosso Senhor deu-lhe uma bela inteli-
gência e que seria um crime se você não continuasse a
estudar. Disseram também que você é um rapaz esper-
to e que poderia ser um padre e tanto. Você estaria dis-
posto a continuar os estudos?

– É claro, Dom Bosco, mas minha mãe é pobre.


Onde irá arranjar dinheiro para me mandar ao colégio?

– Nisso pensarei eu, ou melhor, pensará a Pro-


vidência divina. Você apenas deve perguntar para sua
mãe se ela deixa você vir estudar comigo.

***

Dona Giovanna Maria olha longamente o filho,


agora um rapaz, alto, que lhe fala com entusiasmo do
colégio e de Dom Bosco, e responde:

– Eu ficaria muito contente, Miguel, mas sua saú-


de aguentará? Nosso Senhor já levou para si quatro de
seus irmãos e você é ainda mais fraco do que eles. Diga
a Dom Bosco que não deixe você muito agarrado aos
livros, senão ficarei com muito medo...
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Um padre e 500 meninos

Dom Bosco era um jovem sacerdote que vinha


do Monferrato. Também perdera o pai quando tinha
poucos anos e tivera de trabalhar como pastor, campo-
nês e garçom, antes de poder frequentar uma escola.
Quilômetros de estradas poeirentas percorridos todos
os dias para entrar numa sala de aula.

Animara-o um estranho sonho que tivera aos


9 anos e que se repetira aos 16 anos: num vale cheio
de meninos, aparece-lhe uma senhora e lhe diz: “Este
é o campo de seu trabalho. Torne-se humilde, forte e
robusto, e a seu tempo tudo compreenderá”.

Assim que se ordenou sacerdote, Dom Bosco viu


abrirem-se diante de si muitos caminhos para uma bri-
lhante carreira. Mas nas praças e ruas de Turim encon-
trara os meninos do sonho. Meninos pobres, meninos
operários que chegavam de Valsesia, dos Vales de Lan-
zo, do Monferrato, atraídos pela cidade grande que vi-
via pela primeira vez uma grande expansão no ramo de
construções. Via-os subir nos andaimes dos pedreiros,
procurar emprego de garçom nos bares, vagar pelas
ruas apregoando seus préstimos de limpa-chaminés.
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Surpreendia-os ainda a jogar a dinheiro pelas es-
quinas, com a fisionomia dura e decidida de quem está
disposto a tentar tudo para vencer na vida. Dom Bosco
encontrou alguns nas prisões, em escuros porões, com
olhar revoltado e sorriso zombeteiro.

Aqueles pobres rapazes tinham necessidade de


um teto, de um trabalho garantido e de escola, para que
tivessem uma chance num futuro diferente do presente
vivido nas ruas, extorquindo dinheiro onde conseguis-
sem. Precisavam de espaço para correr e saltar, e de
uma igreja para encontrar-se com Deus.

Dom Bosco renunciou a carreiras brilhantes e


colocou-se à disposição daqueles rapazes. Na periferia
de Turim, no bairro de Valdocco, reformou uma casa e
comprou um prado.

Abriu uma escola, montou oficinas, foi aos bares


e aos lugares de construção para discutir com os pa-
trões, a fim de conseguir contratos mais humanos para
seus meninos.

No Oratório que fundara em Valdocco (assim


chamava sua casa, escolas e oficinas), reunia-se uma
multidão de 500 meninos. Sozinho não lhe era mais
possível atender a todos. Um ministro do governo, Ur-
bano Rattazzi, disse-lhe certa vez:

– Faço votos para que o senhor viva ainda por


muitos anos, mas se viesse a faltar, o que seria de sua
obra? Já pensou nisso? O senhor deveria escolher al-
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guns leigos e eclesiásticos de confiança e com eles for-
mar uma sociedade.

Dom Bosco já pensara no caso. Porém, não ha-


veria de escolher pessoas adultas para ajudá-lo, mas
alguns jovens.

Miguel Rua, por exemplo. Tão inteligente e traba-


lhador, logo haveria de dar-lhe a mão.

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Garantia por cinquenta anos

Terça-feira de Páscoa. O céu de Turim é um


amontoado de nuvens escuras. Chove há uma semana.
Francesia e Rua, colegas de aula, repassam juntos a li-
ção de italiano. Miguel, porém, está distraído e ausente.
Parece que uma grande tristeza o esmaga. Francesia,
depois de lhe perguntar duas vezes a mesma coisa, fe-
cha de súbito o livro e explode:

– Que é que há com você hoje?

Mordendo os lábios para não chorar, Miguel


murmura:

– Meu irmão João morreu... Agora será a minha vez...

João era o último irmão que lhe restava. Agora a mãe


ficaria sozinha no pequeno cômodo da Fábrica de Armas.

Dom Bosco soube do acontecido e, para distrair


Miguel, levou-o consigo pelas ruas de Turim. Tem um
negócio a resolver perto da igreja Gran Madre di Dio,
à margem do Pó. Caminham rapidamente, conversam
sobre o Oratório. Naqueles dias, a cidade de Turim ha-
via celebrado o oitavo cinquentenário do famoso “mi-
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lagre do Santíssimo Sacramento”, e Dom Bosco publi-
cara um livrinho que fora muito disputado. De repente,
Dom Bosco para e diz, lentamente:

– Dentro de cinquenta anos será celebrado o nono


cinquentenário do milagre, e eu não estarei mais vivo,
mas você, Miguel, estará. Lembre-se então de reimpri-
mir meu livrinho.

Miguel Rua sacode a cabeça:


– Para o senhor, Dom Bosco, é fácil dizer que eu
ainda estarei vivo. Mas tenho medo de que a qualquer
momento a morte me haverá de pregar uma peça.

– Nada disso – atalhou energicamente Dom Bos-


co –, garanto a você que daqui a cinquenta anos ainda
estará vivo! E me faça o favor de publicar meu livrinho,
estamos entendidos?

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Um menino de batina preta

1852 . Dom Bosco faz uma série de confe-


rências secretas aos melhores de seus rapazes. Miguel
tem 15 anos. À diferença dos outros, não se assusta
quando Dom Bosco diz que o Oratório nos anos seguin-
tes terá milhares de rapazes, que se espalhará por toda
a Itália, também além dos Alpes, até mesmo para além
dos oceanos.

Alguns padres de Turim que ficam sabendo des-


se modo de Dom Bosco falar afirmam que é um pobre
louco. Dois deles, alguns anos antes, tentaram levá-lo
ao manicômio.

Escreverá Miguel Rua, mais tarde: “Se me tives-


sem dito algo semelhante de meu pai eu não teria ex-
perimentado dor maior”. Ele sabe que Dom Bosco não
é louco. Se Dom Bosco fala do futuro é porque Nossa
Senhora lho mostra em sonhos. Miguel tem plena con-
fiança nele.

No outono de 1853, Dom Bosco lhe diz:

– Preciso que você me dê uma mão. Para a Festa


de Nossa Senhora do Rosário você irá comigo à cape-
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linha dos Becchi. Lá estará o pároco de Castelnuovo e
lhe dará a batina preta dos clérigos. Assim, ao começar
o ano escolar 1853-1854 você será assistente e professor
de seus colegas. Está de acordo?

– Sim, Dom Bosco!

Ao anoitecer desse dia, na carruagem que os traz


de volta a Turim, Dom Bosco quebra o silêncio e diz:

– Meu caro Rua, você agora começa uma vida


nova. Saiba que antes de entrar na Terra Prometida terá
de atravessar o Mar Vermelho e o deserto. Se me aju-
dar, atravessaremos tranquilamente um e outro e che-
garemos à Terra Prometida.

Miguel fica um pouco pensativo. Não compreen-


de muito ainda. Então rompe o silêncio e pergunta:

– Lembra-se do nosso primeiro encontro? O senhor


havia distribuído medalhas e santinhos, mas para mim
não sobrara nada. Então fez um gesto estranho, como se
quisesse me dar a metade da mão. Que queria dizer?

– Como, você não entendeu ainda? Eu queria di-


zer que nós dois haveríamos de partilhar tudo durante a
vida. Tudo o que for meu será seu também, inclusive dí-
vidas, responsabilidades, dores de cabeça – e Dom Bosco
sorri. – Mas haverá também muita coisa bonita, você vai
ver. E, no fim, a coisa mais bela de todas: o Paraíso.

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“Salesianos”, será o nosso nome

26de janeiro de 1854. Em Turim faz frio glacial,


mas no quarto de Dom Bosco há um calor natural. E quem
haveria de pensar no frio enquanto Dom Bosco fala?

Os quatro rapazes que o escutam voam com a


fantasia no rumo das palavras do padre:

– Estamos para fundar uma sociedade que será


conhecida em todo o mundo. Teremos Oratórios e ins-
titutos cheios de jovens na Europa e na América. Justa-
mente aqui, no meio de vocês, há um que transplantará
nossa sociedade para a América do Sul, e um outro que
verá multiplicarem-se por mil os membros da socieda-
de, no início do próximo século...

Os quatro rapazes entreolham-se aturdidos: pa-


rece-lhes sonhar. Dom Bosco, entretanto, não está brin-
cando, se mantém sério e parece ler o futuro:

– Nossa Senhora é que quer esta nossa sociedade.


Pensei demoradamente que nome lhe dar. Decidi que
nos chamaremos Salesianos.

Os quatro rapazes são as pedras fundamentais da


Congregação Salesiana.
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Em seu caderno de notas Miguel descreve essa noite:

“Reunimos-nos no escritório de Dom Bosco: Ro-


cchetti, Artiglia, Cagliero e Rua. Com a ajuda de Nos-
so Senhor e de São Francisco de Sales, foi-nos proposto
fazer uma experiência de exercício prático da caridade
para com o próximo a fim de chegar, mais tarde a uma
promessa, e, por fim, se for possível e se for conveniente,
a um voto. Aos que fazem essas experiências e aos que
posteriormente a farão foi dado o nome de Salesianos”.

Em julho desse mesmo ano espalha-se uma notícia


assustadora: a cólera.

Nesse tempo, a terrível peste irrompia a cada dez


anos. Traziam-na os soldados que voltavam de alguma
guerra, e as cidades eram dizimadas como se fossem
atingidas por uma bomba atômica.

No verão de 1854, a cólera foi provavelmente tra-


zida ao Piemonte por algum soldado que voltava da
guerra da Crimeia.

A família real, os nobres e os ricos que tinham uma


casa no campo, fugiram precipitadamente de Turim.

Sob um sol abrasador, no princípio de agosto a


cidade atingiu o máximo de contágio: havia quase um
doente em cada casa.

Os hospitais estavam repletos e os enfermeiros se


recusavam a aceitar novos doentes.
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Dom Bosco se dirigiu aos seus rapazes maiores:

– Se algum de vocês quiser vir comigo percorre-


remos as casas para ajudar os doentes. Se estamos to-
dos na graça de Deus e se ninguém cometer um pecado
mortal, garanto que ninguém de nossa casa será atingi-
do pela cólera.

Miguel Rua, de 17 anos, e João Cagliero, de 16,


encabeçam o grupo que com Dom Bosco parte em so-
corro dos doentes.

São dias de trabalho pesado. Não há remédios, às


vezes não há sequer material para enfaixar as feridas.

Um dia Miguel volta correndo ao Oratório. Ne-


cessita de roupa de cama para uma família de doentes:
pai, mãe e quatro crianças num sótão sufocante, esten-
didos em colchões grosseiros, numa repugnante sujei-
ra. Mamãe Margarida (a mãe de Dom Bosco) remexe
todas as gavetas: não encontra nada. Desolada, para
um instante; depois tem uma ideia:

– Vamos à sacristia.

Retira as toalhas brancas do altar.

– Leve-as àqueles pobres doentes para que as


usem como lençóis. Eles também são Nosso Senhor.

Naqueles dias de desolação e medo, Miguel Rua per-


cebe claramente que Nosso Senhor fala com Dom Bosco.
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Não somente nenhum membro do Oratório é
atingido pela cólera, mas nos últimos dias de agosto
acontece um fato estranho, incrível.

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Uma pomba e um ramo de oliveira

Uma noite, ao voltar do hospital João Cagliero


(amicíssimo de Miguel) sente-se mal. Miguel, assusta-
do, acompanha-o à enfermaria do Oratório e apressa-se
em chamar Dom Bosco.

João murmura:

– Estou mal. Sinto muito frio e a cabeça arde...

Chamado imediatamente, o médico disse que não


se tratava de cólera, mas de febre tifoide. No calor asfi-
xiante daqueles dias, provavelmente João bebera água
contaminada.

Quis confessar-se e receber comunhão, Dom Bos-


co confortou-o, mas nos primeiros dias de setembro a
febre subiu muitíssimo. O doente começou a delirar.
O rosto afogueava-se, e de repente empalidecia, como
de um moribundo. A febre, que não o deixava nunca,
roubava-lhe as forças.

Vieram para uma consulta os doutores Calvagno


e Bellingeri. Após cuidadoso exame, chamaram Dom
Bosco à parte:
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– Infelizmente é um caso desesperado. Se esta
noite a febre tornar a subir, o coração não aguentará.
Será o fim. Convém dar-lhe os sacramentos.

Dom Bosco ficou profundamente perturbado. Que-


ria um imenso bem àquele rapaz, seu conterrâneo, vivo,
alegre e forte. Não teve coragem de transmitir-lhe a triste
notícia. Pediu a Miguel Rua que o fizesse. Com extrema de-
licadeza, entretanto, desceu à igreja para buscar o viático.

Miguel estava no quarto de João Cagliero. Poucos


minutos depois entra Dom Bosco com a teca do Santís-
simo, mas ele não se aproximou deles: se deteve alguns
segundos fixando o vazio, como se visse algo que os de-
mais não podiam ver. Achegou-se em seguida ao leito
do doente, mas alguma coisa mudara profundamente
nele. A tristeza, a perturbação de pouco antes haviam
desaparecido, estava alegre, sorria. João murmurou:

– É minha última confissão? Vou mesmo morrer?

Dom Bosco respondeu-lhe com voz firme:

– Ainda não chegou a hora de ir para o céu, João.


Há muita coisa ainda que você tem de fazer. Você vai
vestir a batina, será padre, e depois com o breviário de-
baixo do braço haverá de viajar pelo mundo... E fará
com que outros também carreguem o breviário... E irá
longe, muito longe...

Depois dessas palavras Dom Bosco levou de vol-


ta o viático à sacristia.
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Poucos dias depois a febre baixou definitivamen-
te. João Cagliero pôde ir à sua terra natal para uma lon-
ga convalescença. Voltou em novembro, trazendo uma
batina preta feita por sua mãe. Dom Bosco fez com que
Cagliero a vestisse na festa de Santa Cecília, e então Mi-
guel Rua ganhou um companheiro para assistir e dar
aula aos meninos do Oratório.

Por algum tempo Miguel perguntou-se a si mes-


mo o que Dom Bosco teria “visto” no quarto de Cagliero.
Mais tarde, o próprio Dom Bosco deu-lhe a resposta:

“Eu estava atravessando a soleira quando vi, subita-


mente, uma grande luz. Uma pomba alvíssima, carregan-
do um ramo de oliveira, descia sobre o leito do doente.
Pairou a poucos centímetros do rosto pálido de Cagliero
e deixou cair sobre a fronte o ramo de oliveira. Depois,
como se as paredes do quarto se abrissem e se confundis-
sem com horizontes longínquos e misteriosos, ao redor do
leito apareceu uma multidão de figuras estranhas, primi-
tivas. Pareciam selvagens de estatura gigantesca. Alguns
tinham a pele escura, tatuadas por enfeites avermelhados.
Esses gigantes de rostos altivos e tristes curvaram-se so-
bre o enfermo e se puseram a sussurrar:

– Se ele morrer, quem virá em nossa ajuda?

A visão durou poucos instantes e adquiri a certe-


za absoluta de que Cagliero haveria de se curar”.

João Cagliero se tornou o primeiro bispo missio-


nário salesiano. Nas planícies da Patagônia e entre as
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montanhas da Terra do Fogo haveria de se encontrar
com aqueles gigantes de pele escura.

Voltaria a Valdocco para apresentar ao padre Mi-


guel Rua, então Superior Geral dos Salesianos, o jovem
filho de um cacique daquela terra, Zeferino Namuncurá.

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O primeiro salesiano

25 de março de 1855. Nos aposentos de Dom


Bosco desenrola-se sem solenidade uma cerimônia. De
pé, Dom Bosco escuta. Miguel Rua, de joelhos diante o
crucifixo, murmura: “Faço votos de pobreza, castidade
e obediência em suas mãos...”. Não há nenhuma tes-
temunha. Todavia, naquele momento nasce uma Con-
gregação religiosa. Dom Bosco é o fundador e Miguel
Rua o primeiro salesiano.

Desde dia, a coisa mais difícil para Miguel era


poder dormir. Não faltava vontade. Às vezes caía de
sono, mas não conseguia mesmo encontrar tempo para
descansar.

A partir de 1850, no Piemonte tornou-se obriga-


tório o sistema métrico decimal. Nas aldeias, porém,
continuava-se tranquilamente a usar “pintas” em vez de
litros, “onças” em vez de quilos, “pés” em lugar de me-
tros. Muitos se recusavam a ensinar matemática. Dom
Bosco, uma tarde, voltou-se de improviso para Miguel:

– Você entende bem de quilos, litros e metros?

– Parece que sim.


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– Então, a partir de amanhã você será o professor
de matemática.

Com o mesmo método despachado, Dom Bosco


confiou-lhe a aula de religião, a assistência no enorme
refeitório, no pátio, na capela. Além disso tudo, Miguel
devia continuar seus estudos e prestar todos os exames
que na época eram frequentes e difíceis.

Certa vez, após a ceia Dom Bosco o viu passar a


seu lado e lhe perguntou:

– Você ainda consegue manter os olhos abertos?

– Bem, dá-se um jeito...

– Então venha comigo, pois tenho um trabalhi-


nho para você.

Dom Bosco estava escrevendo uma História da


Itália. Nesse tempo, os livros de história para as esco-
las continham provocações contra o papa e contra os
padres. Miguel Rua entrou no quarto de Dom Bosco e
deparou-se com uma pilha de folhas escritas com a pior
letra do mundo.

Dom Bosco tinha péssima letra, pois sempre esta-


va com pressa. Frequentemente escrevia à noite, muito
cansado. Disse-lhe, então:

– Preciso que copie estas páginas com boa letra.


Veja se é capaz.

Miguel pôs-se ao trabalho.


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Durante cinquenta noites esfregou os olhos, e a
História da Itália ficou pronta para a tipografia.

No fim, Dom Bosco lhe disse:

– Muito bem, Miguel, você se sai bem nas coisas


difíceis. Tenho mais outra para você.

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Os pequenos limpa-chaminés

Em Turim, perto da estação central, Dom Bosco


abrira um segundo Oratório que funcionava aos do-
mingos. O bairro era miserável, cheio de emigrantes
recém-chegados. Havia jovens delinquentes pelas ruas,
mas havia especialmente os pequenos limpa-chaminés.
No outono, esses meninos desciam do Vale d’Aosta.
Traziam às costas corda e raspadeira, instrumentos do
ofício. Percorriam as ruas, lançando um grito caracte-
rístico, esperando que alguma família abastada os con-
tratasse para limpar o interior das chaminés antes que
começasse o frio, quando as lareiras deveriam “puxar
bem” para aquecer os apartamentos.

Eram meninos muito franzinos, também porque


os canos das chaminés dentro dos quais deviam subir
eram bem estreitos. Tinham sempre o rosto e as mãos
pretas de fuligem.

Miguel Rua tinha 17 anos quando Dom Bosco o


nomeou diretor do Oratório de São Luís. Domingo de
manhã, bem cedinho, Miguel chegava, varria as pe-
quenas salas, arranjava a igreja. Em seguida, ajudava
os primeiros rapazes a confessar-se com o padre que
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vinha rezar a missa. Às 9 horas já havia uma centena
de jovens. Miguel assistia à missa com eles, com eles
rezava, com eles fazia a comunhão.

No pátio explodia a alegria: algo para comer, de-


safios, jogos até meio-dia. Aqueles meninos de rosto
sujo tinham uma necessidade incontida de fazer baru-
lho, e Miguel Rua entrava com eles na balbúrdia. Mas
o olhar sempre corria por todos os lados do pátio, onde
um ou outro ficava parado, observando os demais com
tristeza. Durante o jogo, Miguel dava uma escapada e
ia-se sentar ao lado de quem não brincava para conver-
sar um pouco e informar-se de seus problemas. Havia
tantos! Pai e mãe doentes ou desempregados, a sauda-
de do lar distante. Pobreza verdadeira, penosa, que o
moço de 17 anos fazia sua, ajudando como podia. Nes-
se pátio, ouvindo e confortando aqueles pequenos tra-
balhadores Miguel conquistou inúmeros amigos.

Meio-dia e os meninos batiam em retirada para


suas casas:

– Tchau, Miguel! Voltamos logo!

Então Rua trancava-se na guarita do porteiro, comia


um prato de sopa quente, depois tirava do bolso um resto
de lanche que trouxera embrulhado em papel: um pãozi-
nho e duas fatias de salame, ou um pouco de queijo.

Nem sequer dez minutos para Miguel respirar


e os meninos já corriam pelo pátio. A tarde era mais
cansativa do que a manhã. Ensinava o catecismo para
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todos, na capela, e para os que quisessem dispunha-se
a dar aula de caligrafia, leitura e aritmética.

Ao redor das mesas, nas salinhas do Oratório,


muitos meninos enfrentavam pela primeira vez as fo-
lhas brancas. E ele a guiar a mão, corrigir, reanimar os
que perdiam a coragem.

Ao anoitecer, os meninos iam partindo. Nas ruas


se acendiam os lampiões a gás. Os últimos meninos
acompanhavam Miguel até Valdocco, e em todas as
ruas alguém deixava a comitiva:

– A gente se vê domingo, Miguel!

Já era noite quando chegava a Valdocco. Quase


sempre algum menino o havia acompanhado mais tem-
po para confiar-lhe suas dificuldades, seus problemas.
Rua estava exausto. Comia alguma coisa parecida com
uma janta, deixada para ele a esquentar. Depois, se não
houvesse escritos de Dom Bosco para passar a limpo, su-
bia até o sótão onde era seu quarto e caía na cama. Dor-
mia de imediato, muitas vezes vestido como estava.

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O sótão e a neve

P
ela manhã, o despertador tinha pressa, dema-
siada pressa de tocar às 4 horas! João Cagliero, compa-
nheiro inseparável de Miguel naqueles anos, lembrava:

“O inverno em Turim não é brincadeira: faz um


frio siberiano. No nosso sótão, que abria uma janela so-
bre o telhado, não havia aquecimento nem água corren-
te. Para nos lavarmos, à noite enchíamos as bacias com
água. Pela manhã, contudo, o frio havia transformado
a água em gelo. Só nos restava abrir o sótão, recolher
a neve do telhado e fazer enérgicas fricções nas mãos,
no rosto e no pescoço. Depois de alguns minutos a pele
queimava! Então, para estudar, nos enrolávamos num
cobertor. Rua estudava hebraico e eu estudava música”.

Muitas vezes fazia-lhes companhia naquele estudo


matinal um terceiro salesiano muito jovem, João Francesia.

É o caso de se pensar: Dom Bosco estaria certo ao


deixar seus jovens ajudantes matarem-se assim entre estu-
do e trabalho? Mas quando sabemos como terminaram...

João Cagliero, cardeal, morreu com 88 anos; Mi-


guel Rua, sucessor de Dom Bosco, superior da Congre-
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gação Salesiana, viveu até os 73 anos; João Francesia,
latinista de fama europeia, atingiu os 92 anos.

Dom Bosco “sabia” que o trabalho, mesmo durís-


simo, não os haveria de liquidar tão depressa assim.

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“A senhora quer vir, mãe?”

Novembro de 1856 foi um mês de luto para o


Oratório. A mãe de Dom Bosco, que todos chamavam
de mamãe Margarida, adoeceu de pneumonia dupla e
em poucos dias faleceu.

Havia dez anos que a idosa senhora era cozinhei-


ra, lavadeira, remendeira dos meninos do Oratório.

Dez anos antes, Dom Bosco fora de Turim à sua casa,


nos Becchi, perto de Castelnuovo, e dissera à sua mãe:

– Tenho muitos meninos sozinhos, no meu Orató-


rio. Não há ninguém que lhes faça a sopa, que remende
suas meias. Mamãe, a senhora não poderia ir para lá?

A idosa senhora deixou sua casa e dois netinhos


e acompanhou o filho a Valdocco para tornar-se a mãe
dos órfãos e dos meninos pobres. Fazia milagres na co-
zinha, ficava até tarde da noite pregando botões, costu-
rando e remendando paletós e calças.

Conseguira reservar alguns metros do campo e


transformara-os numa pequena horta, em que planta-
va verduras e tomates para reforçar a cozinha. Um dia,
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porém – Miguel Rua tinha assistido à cena –, duran-
te uma entusiasmada brincadeira de guerra, o exército
dos rapazes havia invadido e devastado a horta.
Mamãe Margarida ficou bastante aborrecida.
À noite, quando os meninos já dormiam, remenda-
va um monte de meias enquanto Dom Bosco escrevia à luz
da mesma lâmpada. Então, com tristeza na voz, disse:
– João, deixe-me voltar para casa. Já estou velha
e não aguento mais. Tenho vontade de rever minha vi-
nha, minhas galinhas... Como estarão crescidos meus
netinhos... Esses meninos aqui, você também está ven-
do, não têm nem um pouquinho de gratidão, nada...
Dom Bosco não disse nada. Com a mão, apontou
para a mãe o crucifixo pendurado na parede. E a mãe
de Dom Bosco tornou a baixar os olhos. Continuou a
remendar, e nunca falou em voltar para casa.
Morreu entre aqueles meninos pobres.
No dia seguinte à morte de Margarida Occhiena, Mi-
guel Rua foi visitar sua mãe, a senhora Giovanna Maria:
– Mamãe Margarida morreu – disse. – Há muitos
meninos sozinhos no Oratório. Não há ninguém que
lhes faça a sopa, que lhes remende as meias... Mamãe, a
senhora não quer vir?
Aos 56 anos, a senhora Giovanna Maria acompa-
nha o filho e torna-se a segunda mãe do Oratório. E o
será por vinte anos.
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Em Roma, com o papa

Naquele mesmo ano de 1856, Miguel Rua co-


meça os estudos de teologia, que o prepararão para a
ordenação sacerdotal. São anos difíceis para os seminá-
rios. O governo requisitou os locais, transformando-os
em quartéis. Os professores, confinados em algumas
salinhas, são forçados a dar aula em meio ao barulho
infernal de um quartel em pleno funcionamento.

Durante quatro anos Miguel Rua vai ao seminá-


rio para receber três horas de aula por dia. Não se limi-
ta a ouvir: durante a aula traça num caderno o esquema
claro e exato das lições e, chegando a casa, passa-o aos
outros estudantes, que se servem desse caderno como
livro de texto.

18 de fevereiro de 1858. Miguel Rua passou boa


parte das últimas noites copiando com elegante caligra-
fia um livrinho escrito por Dom Bosco, Regras da Socie-
dade de São Francisco de Sales. Dom Bosco disse-lhe:

– Capriche bastante. Juntos vamos levá-lo ao papa.

Juntos partem para Roma. Nesse tempo era uma


viagem longa e difícil. Antes de partir, Dom Bosco che-
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ga a fazer o testamento. Deixa o Oratório nas mãos de
um sacerdote que viera ajudá-lo, padre Alasonatti. Em
Roma, deverão alcançar do papa um favor importantís-
simo: a aprovação das primeiras regras dos salesianos.

Pio IX os recebe, lê as regras e devolve-as a Dom


Bosco corrigidas de próprio punho. Miguel Rua passa ou-
tras horas a copiá-las de novo. Depois acompanha Dom
Bosco nas visitas aos cardeais, e nas três audiências conce-
didas pelo papa vê de quanta estima e afeto é rodeado o
padre de Turim, que toda a Igreja já conhece e admira.

Viajam de volta a Turim em 14 de abril.

Reveem o Oratório após dois meses de ausência e se


dão conta de que sofreu incrível transformação: Dom Bosco
formara-o como uma família e o padre Alasonatti (um aus-
tero sacerdote piemontês) o transformara em um pequeno
e disciplinado quartel: ordens secas, filas, apitos.

Dom Bosco põe as mãos na cabeça:

– Está tudo errado! – segreda a Miguel. – É preci-


so começar tudo de novo. Você tem coragem de assu-
mir a direção do Oratório?

Miguel sorri.

– Se o senhor manda, sinto-me disposto a fazer tudo.

Tem 21 anos. Ninguém o chama de diretor, mas


o é da mesma forma, e de verdade. Em pouco tempo, o
Oratório torna-se uma grande família.
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Padre Rua

28de julho de 1860. Revestido de alva branca,


Miguel Rua prostra-se por terra, diante do altar, invo-
ca um a um os grandes santos da Igreja: Pedro, Paulo,
Bento, Francisco... Em seguida, o bispo dom Balma põe
as mãos sobre sua cabeça. Invoca o Espírito Santo para
que venha imprimir em sua alma o caráter sacerdotal
que jamais será cancelado.

Quando se levanta, Miguel Rua é sacerdote. Pa-


dre Rua.

Grande festa no Oratório. Ao lado do altar, para


a “primeira missa” do padre Rua há um grande rama-
lhete de flores brancas. Trouxeram-nas os pequenos
limpa-chaminés do Oratório de São Luís.

De volta ao seu pequeno quarto, após um dia de


festa, padre Rua encontra sobre a mesa uma carta de
Dom Bosco. Lê:

“Verá melhor do que eu a Obra Salesiana atraves-


sar os confins da Itália e se estabelecer em muitas partes
do mundo. Terá de trabalhar muito e sofrer muito, mas,
bem o sabe, somente através do Mar Vermelho e do de-
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serto é que se chega à Terra Prometida. Sofra com cora-
gem, e mesmo cá na terra, não lhe faltarão consolações
e auxílio de Nosso Senhor”.

O Oratório é agora uma casa imensa. O núme-


ro de jovens passa dos 700. Nas oficinas em pleno fun-
cionamento, 360 pequenos aprendizes aprendem um
ofício. Dom Bosco precisa ausentar-se cada vez mais
frequentemente. Afinal, alimentar tantas bocas é pro-
blema difícil, mas parte tranquilo para suas viagens em
busca de recursos para manter o Oratório: padre Rua
já é o coração e o cérebro da imensa família. No amplo
pátio organizam-se até mesmo vinte jogos em seguida,
disputados com muita garra. Entre uma partida e ou-
tra, veem-se meninos ofegantes entrar na capela para
uma rápida visita a Jesus-Eucaristia.

Um aluno desse tempo escreve: “Nós nos quería-


mos como irmãos”.

1863. Dom Bosco chama padre Rua e lhe diz:

– Miguel, vou lhe pedir um sacrifício enorme.


Nós fomos convidados a abrir um Pequeno Seminário
em Mirabello, no Monferrato. Penso mandar você para
dirigi-lo. É a primeira casa que os salesianos abrem fora
de Turim. Todos estarão de olho em nós, para ver como
é que nos arrumamos. Confio plenamente em você.

Em outubro, padre Rua parte com outros cinco


salesianos. Dom Bosco escreveu-lhe quatro páginas de
preciosos conselhos. Entre eles, pode-se ler estes:

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“Todas as noites você deve dormir ao menos seis
horas. Procure se fazer amar antes de se fazer temer. Pro-
cure estar no meio dos jovens todo o tempo do recreio.
Se surgirem questões sobre coisas materiais, gaste tudo o
que for preciso, desde que se conserve a caridade”.

Muitos anos depois, um menino desse tempo


confidenciou ao padre Francesia:

– Atormentei o padre Rua de mil maneiras. Su-


portou-me mais do que a minha mãe. Fez-me o bem
que pôde, me falou como amigo. Tudo inútil. Por fim,
teve de me mandar para casa. Assim que me vi em via-
gem, desatei a chorar. Passaram-se quarenta e cinco
anos, me formei e constituí uma família, mas nunca me
esquecerei do mal que fiz e do bem que recebi daquele
padre. Se o vir, diga a ele que me lembro dele com mui-
ta gratidão.

Padre Francesia contou tudo ao padre Rua, já


idoso. E ele disse:

– Lembro-me muito bem desse menino. Que boa


notícia você me dá! Tenho rezado tanto por ele!

Dois anos depois, em 1865, o Pequeno Seminário


de Mirabello está repleto de rapazes que dão boas es-
peranças de vocação, mas durante aquele verão, Dom
Bosco e o Oratório foram submetidos a dura prova. No
espaço de poucos meses, cinco dos primeiros salesianos
ficam fora de combate, os meninos internos passam de
700, e a construção do santuário de Maria Auxiliadora

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avança, mas absorve enormes somas de dinheiro. Dom
Bosco, sozinho, não aguenta mais.

Padre Provera chega a Mirabello. Entra no escri-


tório do diretor e diz, sem preâmbulos:

– Dom Bosco espera-o em Turim. Diga ao padre


Bonetti que assuma a direção do Pequeno Seminário.

Padre Rua para de escrever, pega o Breviário e


responde:

– Aviso o padre Bonetti e volto. Espere-me.

Chega a Valdocco. Dom Bosco diz-lhe simplesmente:

– Você foi Dom Bosco em Mirabello. Agora será


em Valdocco.

Confia-lhe tudo: as oficinas dos aprendizes, os


trabalhos da construção do Santuário, a publicação das
Leituras Católicas, e até a incumbência de ler e respon-
der ao maior número das cartas a ele endereçadas.

Padre Rua inicia um intenso ritmo de trabalho.


Com frequência, a polícia traz para o Oratório os jovens
flagrados no meio das gangues que infestavam a peri-
feria de Turim. Segundo uma testemunha, tratava-se,
às vezes, de verdadeiros pequenos delinquentes, não
recuperáveis. Para impedir que fizessem mal aos ou-
tros, padre Rua também tem de ser severo, e para ele
essa é uma das coisas mais difíceis.

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“Levem embora os santos óleos”

Junho de 1868. Chega ao fim o gigantesco traba-


lho do Santuário. Durante esse mês, com poucas exce-
ções, padre Rua mal consegue dormir quatro horas por
noite. Nos primeiros dias de julho adoece. Literalmen-
te cai nos braços de um amigo, na porta do Oratório.
É levado para o quarto. Chamam um médico, que logo
se mostra alarmado. Trata-se de peritonite fulminante.

Dom Bosco acha-se ausente. Correm chamá-lo,


mas quando chega já é quase noite e muitos meninos o
aguardam para confessar-se. Dom Bosco está estranha-
mente alegre. Diz aos que estão ao seu redor:

– Vou confessar. Diga ao padre Rua que me espe-


re e que não faça nenhuma brincadeira.

Confessa até a noite. Depois, em vez de ir ver pa-


dre Rua ele resolve jantar. Há muito nervosismo à sua
volta. Não se compreende como Dom Bosco, sempre
tão atencioso para com os doentes, se mostre descortês
com seu principal colaborador. Depois de jantar, Dom
Bosco sobe ao quarto para dar uma olhada na corres-
pondência e só então se decide a ver o padre Rua.
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O doente está molhado de suor e se sentindo mui-
to mal. Vê Dom Bosco e murmura:

– Se chegou a minha hora, diga-me... Não me en-


tristece morrer...

– Morrer? – diz Dom Bosco. – Não, padre Rua,


não quero que você morra. Eu ficaria muito mal-arran-
jado sem você! Devemos trabalhar e trabalhar mais ain-
da, nada de morrer!

Dom Bosco vê no criado-mudo o recipiente com a


Extrema Unção e pergunta:

– Quem é o grande homem que quer dar os San-


tos Óleos ao padre Rua?

– Sou eu – murmura um sacerdote presente.

– Você é mesmo um grande homem... – Dom Bos-


co brinca.

Em seguida, volta-se para padre Rua e diz:

– Mesmo que você se jogasse da janela abaixo não


morreria, garanto.

Voltando-se para os outros, completou:

– Levem embora os Santos Óleos e deixem que


ele descanse.

Três semanas depois padre Rua entrou em con-


valescença.
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Um mês depois voltava ao pátio para estar com os
rapazes. Ainda não se sentia disposto a correr, mas brin-
cava com os mais pequeninos; agachado no chão, atirava
as bolinhas de barro cozido com o polegar, nervoso.

Em agosto de 1876, depois do jantar, um salesia-


no perguntou à queima-roupa a Dom Bosco:

– É verdade que vários salesianos morreram víti-


mas do trabalho?
– Se fosse verdade – respondeu o santo – nossa Con-
gregação não sofreria com isso dano algum. Ao contrário.
Mas não é verdade. Tão somente um poderia merecer o
título de vítima do trabalho e é o padre Rua. Mas para
nossa sorte, Nosso Senhor o conserva forte e vigoroso.

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Vigário de Dom Bosco

P
assam os anos. Os salesianos espalham-se pelo
mundo e Dom Bosco realiza novos e grandiosos empre-
endimentos.

Em 1872, funda a Congregação das Filhas de Ma-


ria Auxiliadora.

Em 1875, envia os primeiros missionários, chefia-


dos pelo padre João Cagliero, ao sul da Argentina.

Em 1876, cria a União dos Cooperadores, funda a


Obra das Vocações Adultas, lança o Boletim Salesiano.

O papa Leão XIII confia-lhe a construção de um


templo ao Sagrado Coração, em Roma. Trabalho exte-
nuante. Com a saúde muito debilitada, Dom Bosco deve
viajar à França e à Espanha para conseguir dinheiro para
a construção.

Padre Rua está sempre ao seu lado, realizando


discretamente o trabalho mais humilde e cansativo, tam-
bém o acompanha nessas viagens. Nos desconjuntados
vagões de terceira classe, estuda francês e espanhol, para
ajudar Dom Bosco a se comunicar.

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1884. A saúde de Dom Bosco declina sempre
mais. O fim parece iminente. Várias vezes ele afirmou:

– Se Deus me dissesse: prepare-se, pois você deve


morrer, escolha um sucessor e peça para ele as graças e
virtudes que julga necessárias no bom desempenho do
seu ofício, eu não saberia o que pedir a Deus, pois vejo
que padre Rua já tem tudo isso.

No dia 7 de novembro, o papa Leão XIII nomeia pa-


dre Rua Vigário de Dom Bosco, com direito de sucessão.

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Última bênção

Janeiro de 1888. Dom Bosco é como uma vela que


lentamente se apaga. No quarto mal aquecido, afunda-
do na poltrona e envolto num cobertor, se entretém de-
moradamente com seu vigário. Falam da Congregação
que padre Rua está para receber nas mãos, do futuro
que se preanuncia difícil, mas que terá, como sempre,
as bênçãos de Deus:

– Nós dois fizemos tudo meio a meio... – murmu-


ra o santo.

Na noite de 30 de janeiro, Dom Bosco agoniza.


Às 4 horas da manhã, enquanto ao redor do leito do
doente se acham ajoelhados os salesianos de Valdocco,
padre Rua sussurra a Dom Bosco:

– Estamos todos aqui. Pela última vez nos dê a bên-


ção. Eu erguerei a sua mão e pronunciarei a fórmula.

Em seguida, toma a mão direita de Dom Bosco, já


inerte, e traça o sinal da cruz. Meia hora depois, encerra
sua longa e fatigante jornada terrena. Nos derradeiros
instantes disse:
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– Façamos o bem a todos, o mal a ninguém... Di-
gam aos meus jovens que os espero a todos no paraíso.

Era a madrugada do dia 31 de janeiro de 1888.

Na primeira noite em que os salesianos se sen-


tiram órfãos, padre Rua ajoelhou-se junto ao corpo de
Dom Bosco e permaneceu por mais de duas horas. Terá
dito e repetido ao pai de sua alma apenas uma prece:
“Ajude-me a ser como o senhor”.

Foi esse o programa de sua vida a partir desse


momento: ser Dom Bosco para os salesianos que se
multiplicavam por todo o mundo, ser Dom Bosco para
os meninos de Valdocco e para os meninos que haveria
de encontrar em todos os recantos do mundo.

Nos anos seguintes, a Congregação Salesiana


tem um crescimento inacreditável. Quando Dom Bosco
morreu os salesianos eram 700, as casas espalhadas em
6 nações são 64. À morte do padre Rua os salesianos
serão 4 mil e as casas 341, distribuídas por 30 nações.

As Missões Salesianas que em 1888 se limitavam


à Patagônia e à Terra do Fogo, sob a guia do padre Rua
espalham-se para Brasil, Equador, China, Índia, Egito e
Moçambique.

Em vista das enormes distâncias, os novos sale-


sianos não podem todos conhecer o centro da Congre-
gação, falar com o sucessor de Dom Bosco. E padre Rua
põe-se a viajar. Visita as obras salesianas, fala com cada
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irmão. Viajar em carros de terceira classe, especialmen-
te em seus últimos anos, custa-lhe grande sacrifício.
Todavia padre Rua considera-o um dever e vai. Quem
fizer o cálculo das distâncias percorridas, dirá que pa-
dre Rua superou os 100 mil quilômetros. Verdadeira
façanha para a época.

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50 dias de greve

Nos últimos anos do século XIX explode na Itá-


lia a “questão social”.

Nas periferias das grandes cidades multiplicam-se


vertiginosamente as favelas. Massas enormes de campo-
neses miseráveis deixam os campos e se amontoam ao
redor das fábricas. De manhã, homens, mulheres e crian-
ças são tragados pelas oficinas: 12, por vezes 14 horas de
trabalho duríssimo. Os salários são miseráveis, assistên-
cia médica, aposentadoria, seguros contra acidentes não
existem. Até mesmo meninos de 6 anos trabalham.

É nesse ambiente desumanizador que nascem


partidos e tendências desesperadas: os anarquistas se
propõem a eliminar violentamente qualquer autorida-
de; os niilistas querem aniquilar tudo o que é do “velho”
mundo; os comunistas pregam a revolução violenta.

Em maio de 1891, o papa Leão XIII lança a encícli-


ca Rerum Novarum, conclamando os católicos a lutarem
decididamente pela melhoria das condições de trabalho,
para que se pusesse fim à desumana exploração dos
operários. É preciso que o trabalhador receba um salá-
rio justo, tenha repouso semanal, esteja amparado nos
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acidentes e nas doenças. A Igreja passa a se preocupar
sobretudo com a proteção das mulheres e das crianças.

De pronto, padre Rua propõe a todo cooperador


salesiano que se encontra na condição de patrão que
pague seus operários segundo os princípios defendi-
dos por Leão XIII.

Desde 1875 padre Rua é amigo e admirador de


Leon Harmel, industrial e cristão pertencente ao mo-
vimento operário católico. Em Turim, encoraja a luta
das costureiras contra o trabalho dominical, a excessiva
jornada de trabalho e o salário de fome de todas elas.

No verão de 1906 explode uma greve na fiação


Poma. Os operários, constrangidos a trabalhar onze
horas e meia por dia, pedem trabalhar apenas dez.
O empresário Poma é católico, cooperador salesiano,
amigo pessoal do padre Rua, mas para os mil operários
que trabalham em sua fábrica é um patrão duro e au-
toritário. A questão social e os próprios ensinamentos
do papa ele os considera “fraquezas” ante a “canalha
socialista” que quer revirar o mundo.

Quando lhe pedem para reduzir a jornada de


trabalho, diz que aceita, mas que diminuirá na mesma
medida os salários.

Começa a greve, durante semanas e semanas.


A Câmara Socialista do Trabalho dá-lhes um subsídio
correspondente a meio salário, mas as famílias nume-
rosas estão quase reduzidas à fome.
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Após 35 dias, algumas operárias pedem ao pa-
trão que as deixem retomar o trabalho: aceitam conti-
nuar com o salário das onze horas e meia para poderem
levar pão para casa, mas os outros grevistas se rebelam,
organizam piquetes diante dos portões, servem-se de
pedras. Se alguém ceder será o fim para todos.

Inutilmente, padre Rua tentou várias vezes con-


vencer o senhor Poma a ceder. Dia 8 de julho, domingo,
tenta mais uma última vez: apresenta-se no escritório
de Poma acompanhado de diversas pessoas influentes
de Turim. Estão dispostos a vencer a todo custo.

Após longas e febris conversações, o senhor Poma


cede.

Em Valdocco imprime-se a todo vapor uma cir-


cular que será distribuída entre todos os grevistas. No
dia 9 o trabalho recomeça, a greve durou 50 dias.

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O Mar Vermelho e o Deserto

N
o dia da primeira missa, Dom Bosco havia es-
crito a Miguel Rua: “Terá de trabalhar muito e sofrer
muito, mas você sabe que somente através do Mar Ver-
melho e do Deserto é que se chega à Terra Prometida”.

Os graves sofrimentos chegaram depressa.

Novas missões salesianas abriram-se no Uruguai e


no Brasil. Chefiava os missionários um jovem bispo sa-
lesiano, dom Luís Lasagna, ex-aluno do padre Rua em
Mirabello e em Turim. No outono de 1895, chega um la-
cônico telegrama: em Juiz de Fora morrem em desastre
ferroviário dom Lasagna, um jovem salesiano e quatro
irmãs Filhas de Maria Auxiliadora. Dom Lasagna ia abrir
o colégio salesiano de Cachoeira do Campo (MG).

Alguns anos depois novo desastre na região mis-


sionária da América do Sul: uma enchente do rio Ne-
gro inunda as pequenas cidades de Viedma, Patagones,
Rawson, e com elas as residências dos salesianos.

Quase no mesmo tempo, um golpe de estado no


Equador leva ao governo um partido anticlerical. Os
missionários salesianos de Quito são presos, obrigados

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a caminhar durante 25 dias na floresta virgem, e depois
são exilados para o Peru. Durante a extenuante marcha,
um sacerdote, padre Milano, morreu.

Em 1902, na França, todas as congregações reli-


giosas são abolidas por uma lei do governo. Os institu-
tos salesianos fechados, os filhos de Dom Bosco expul-
sos. Emigram para a Bélgica, Espanha, China, Itália.

Para a Congregação Salesiana na França é um tremen-


do golpe, de que praticamente jamais se haverá de refazer.

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A caça ao padre

1907 . A mais grave provação atinge padre


Rua e a Congregação Salesiana. O instituto salesiano
de Varazze é dirigido pelo padre Carlos Viglietti, que
fora o último secretário de Dom Bosco.

Na manhã do dia 29 de julho (havia apenas ter-


minado os exames finais) a igreja é invadida por poli-
ciais: os salesianos são presos, os meninos levados ao
quartel. Diante do ocorrido, padre Viglietti quer saber
a causa. Em resposta, ouve: “Coisas graves, reverendo.
Aqui se fazem coisas abomináveis”.

No quartel, padre Viglietti consegue finalmente


conhecer o motivo. Um menino, acolhido por carida-
de no instituto, escreveu um “diário” e o entregou à
polícia: nele descreveu o instituto como um centro de
imoralidade.

O dia inteiro os meninos foram submetidos a in-


terrogatório, mas recusam-se obstinadamente a confir-
mar as acusações.

A notícia, entretanto, se espalhou, e os jornais,


anticlericais, saem com títulos enormes e sórdidos.

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É como um sinal: desencadeiam-se em toda a Itália
demonstrações contra padres e religiosos. Em La Spezia,
desordeiros assaltam igrejas, vão contra os cordões da
polícia. Resultado: um morto e a proclamação do esta-
do de sítio na cidade. Em Livorno e em Mântua outros
grupos assaltam entidades e jornais católicos, padres e
religiosos sofrem atentados. Em Roma, cospe-se na rua
contra o grande músico monsenhor Lorenzo Perosi, in-
sulta-se o cardeal Merry del Val, secretário de estado de
Pio X. Em toda a Itália desencadeia-se a caça ao padre.

Mais tarde soube-se que toda a manobra foi orga-


nizada. O grão-mestre de maçonaria Ettore Ferrari, por
meio de um médico de Varazze, fez inventar o diário,
e ordenou aos maçons de toda a Itália que explorassem
ao máximo a situação.

Padre Rua, em Turim, ficou profundamente cho-


cado com as notícias. Viram-no chorar como uma crian-
ça. Desolado, disse ao padre Francesia:

– Confiei demais em minhas forças quando Dom


Bosco me ofereceu o lugar que agora ocupo. Peço a
Deus que somente eu sofra o castigo.

Mas a armação foi desmascarada. Muitos advoga-


dos, entre os mais famosos da Itália, oferecem assistência
gratuita aos salesianos. No Parlamento, alguns deputa-
dos, indignados, tomam a defesa dos salesianos.

No dia 3 de agosto de 1907, por meio de uma junta


de advogados os salesianos apresentam queixa contra

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os difamadores. A sentença do processo define o “diá-
rio” que originou tudo “um tecido de invenções fanta-
siosas, escrito por contínuas instigações de estranhos,
interessados em suscitar um escândalo anticlerical”.

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No nome de Dom Bosco

Atensão causada durante os terríveis meses pe-


los quais padre Rua passou agravaram muito as feridas
nas suas pernas.

Em 1909, as pernas eram uma chaga só, os olhos


estavam inchados e inflamados. Padre Francesia, velho
companheiro de estudos, ao vê-lo mergulhado no so-
frimento, se dirigiu a ele tratando-o de “senhor”. Padre
Rua reagiu:

– Mas o que é que lhe deu na cabeça? Você é a


última lembrança da minha infância. Se deixar de me
tratar por “você” vai me fazer morrer antes do tempo.

Na manhã de 15 de fevereiro sentou-se ainda à mesa


de trabalho. Tentou abrir e ler as cartas que acabavam de
chegar, mas não podia mais. Recolheu toda a correspon-
dência e disse ao enfermeiro que estava ao lado:

– Leve tudo isso para o padre Rinaldi. Diga-lhe


que responda. Eu não posso mais.

Era a primeira vez, em sua longa vida, que cedia


ao cansaço.

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Foi para a cama, e viu-se logo que era o fim.

Na manhã do dia 5 de abril padre Rua está mor-


rendo. Há muitos salesianos na sala vizinha.

Sentado ao seu lado da cama está o padre Rinal-


di, prefeito geral da Congregação. Padre Rua desperta
de repente e pergunta:

– Rinaldi, quando é que vou morrer?

– Fique tranquilo, vamos avisá-lo quando chegar


a hora.

– Muito bem. Então, deixem-me só. Quero me


preparar para cumprir a santa vontade de Deus.

Acaba de dar meia-noite. Ao seu lado está o padre


Francesia. Vendo-o reanimar-se, segreda-lhe ao ouvido:

– Estamos todos aqui. Rezamos a Deus para que


lhe abra as portas do paraíso. Lembre-se de cumpri-
mentar Dom Bosco por nós.

A esse nome o moribundo se ilumina.

As derradeiras palavras que seus lábios murmu-


ram são as de uma antiga invocação que aprendera de
Dom Bosco:

– Querida Mãe, Virgem Maria, fazei que eu salve


a minha alma.

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Dados biográficos

9/6/1837: Nasce Miguel Rua, em Turim (Itália), último


de nove filhos.

3/10/1852: Veste o hábito eclesiástico pela primeira vez.

1854: Com 17 anos, Dom Bosco nomeia-o diretor


do Oratório de São Luís.

25/3/1855: Emite os votos de pobreza, castidade e obe-


diência, nas mãos de Dom Bosco. Miguel
Rua é o primeiro salesiano.

1856: A mãe de Miguel Rua, Giovanna Maria, as-


sume o lugar de Margarida Occhiena, mãe
de Dom Bosco, que acaba de falecer.

18/2/1858: Vai a Roma com Dom Bosco para a aprova-


ção das primeiras Regras da Sociedade de
São Francisco de Sales.

18/12/1859: Dia da fundação da Pia Sociedade de São


Francisco de Sales, Miguel Rua é eleito Dire-
tor Espiritual da Sociedade.

29/7/1860: É ordenado sacerdote.

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1863: É nomeado por Dom Bosco diretor do Pe-
queno Seminário de Mirabello.

1868: Final da construção do Santuário de Nossa


Senhora Auxiliadora, em Turim. Padre Rua
sofre grave enfermidade.

7/11/1884: O papa Leão XIII nomeia padre Rua vigário


e sucessor de Dom Bosco.

17/5/1903: Solene coroação da imagem de Maria Auxi-


liadora. Padre Rua instituiu a récita da ora-
ção de Consagração a Maria Auxiliadora,
após a meditação cotidiana.

6/4/1910: Morre aos 73 anos.

26/6/1953: O papa Pio XII declara-o Venerável.

29/10/1972: O papa Paulo VI declara-o Beato.

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