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Powerless
Dedicatória
Mapa Ilya
Capítulo 1 - Paedyn
Capítulo 2 - Rai
Capítulo 3 - Paedyn
Capítulo 4 - Paedyn
Capítulo 5 - Rai
Capítulo 6 - Rai
Capítulo 7 - Paedyn
Capítulo 8 - Paedyn
Capítulo 9 - Rai
Capítulo 10 - Paedyn
Capítulo 11 - Paedyn
Capítulo 12 - Rai
Capítulo 13 - Paedyn
Capítulo 14 - Paedyn
Capítulo 15 - Paedyn
Capítulo 16 - Rai
Capítulo 17 - Rai
Capítulo 18 - Paedyn
Capítulo 19 - Paedyn
Capítulo 20 - Rai
Capítulo 21 - Paedyn
Capítulo 22 - Paedyn
Capítulo 23 - Rai
Capítulo 24 - Paedyn
Capítulo 25 - Paedyn
Capítulo 26 - Rai
Capítulo 27 - Paedyn
Capítulo 28 - Rai
Capítulo 29 - Paedyn
Capítulo 30 - Paedyn
Capítulo 31 - Rai
Capítulo 32 - Rai
Capítulo 33 - Paedyn
Capítulo 34 - Paedyn
Capítulo 35 - Rai
Capítulo 36 - Paedyn
Capítulo 37 - Paedyn
Capítulo 38 - Rai
Capítulo 39 - Paedyn
Capítulo 40 - Rai
Capítulo 41 - Paedyn
Capítulo 42 - Rai
Capítulo 43 - Paedyn
Capítulo 44 - Rai
Capítulo 45 - Paedyn
Capítulo 46 - Paedyn
Capítulo 47 - Paedyn
Capítulo 48 - Rai
Capítulo 49 - Paedyn
Capítulo 50 - Rai
Capítulo 51 - Paedyn
Capítulo 52 - Paedyn
Capítulo 53 - Rai
Capítulo 54 - Rai
Capítulo 55 - Paedyn
Capítulo 56 - Rai
Capítulo 57 - Paedyn
Capítulo 58 - Rai
Capítulo 59 - Paedyn
Capítulo 60 - Rai
Capítulo 61 - Paedyn
Capítulo 62 - Rai
Capítulo 63 - Paedyn
Capítulo 64 - Rai
Capítulo 65 - Paedyn
Capítulo 66 - Paedyn
Capítulo 67 - Rai
Capítulo 68 - Paedyn
Epílogo - Ritt
Agradecimentos
Um líquido espesso e quente escorre-me pelo braço.
Sangue.
Estranho, não me lembro do guarda me ter atingido com a espada antes
do meu punho lhe alcançar a cara. Apesar de ser um Flash, aparentemente
não conseguiu mover-se tão rápido como o meu gancho de direita, em
direção ao seu maxilar.
O odor a fuligem inunda-me o nariz, forçando-me a usar a mão
encardida, para impedir que saia um espirro.
Seria uma forma patética de ser apanhada.
Quando tenho a certeza de que o meu nariz não vai alertar os Imperiais
que estão à espreita por baixo do meu esconderijo, volto a colocar a mão na
parede imunda contra a qual tenho as costas encostadas e os pés plantados à
minha frente. Depois de respirar fundo, quase me engasgando com a
fuligem, recomeço vagarosamente a subir. Com as coxas a arderem quase
tanto quanto o meu nariz, forço o meu corpo a continuar a mover-se
enquanto evito espirrar.
Escalar uma chaminé não é exatamente a forma como pensava passar a
noite. O pequeno espaço faz-me suar, engolindo o medo antes de alcançar o
topo do corredor apertado, ansiosa por substituir as paredes repletas de
sujidade por uma noite estrelada. Quando a minha cabeça chega ao topo,
espreito e engulo sofregamente o ar pegajoso, elevando-me de seguida, para
ser logo bombardeada com uma nova mistura de odores ainda mais
desagradáveis do que o cheiro nauseabundo a fuligem que se agarra ao meu
corpo, à minha roupa, ao meu cabelo. Suor, peixe, especiarias e, tenho a
certeza, algum tipo de fluído corporal, misturam-se para criar o aroma que
rodeia Loot Alley.
Equilibrando-me no topo da chaminé, observo o meu braço pe‐
ganhento no telhado sombreado. Quase que me tinha esquecido de o
examinar, porque não senti a habitual dor aguda que, como lembrança,
acompanha um golpe de espada.
Arranco uma tira de tecido da camisola suada que está colada ao meu
corpo, e limpo a ferida.
Adena vai matar-me por lhe estragar a costura. Outra vez.
Fico surpreendida por não sentir a habitual pontada de dor enquanto
esfrego o meu braço com o tecido áspero, impaciente por absorver a
viscosidade.
E é neste momento que sinto o cheiro.
Mel.
O mesmo mel que pertence aos pequenos pães doces pegajosos que
escorre dos muitos bolsos do meu colete esfarrapado e pelo braço —
confundido com sangue. Suspiro, revirando os olhos a mim própria.
No entanto, é uma surpresa bem-vinda. Sem dúvida que estar
encharcada de mel é bem melhor do que tentar lavar nódoas de sangue.
Respiro fundo e olho para os prédios em ruínas e degradados,
sombreados pelos postes de iluminação que pontilham a rua. Não há muita
eletricidade aqui nos bairros de lata, mas o Rei generosamente presenteou-
nos com alguns postes. Graças aos Volts e aos Académicos que usaram as
suas habilidades para criar uma rede elétrica sustentável, tenho de me
esforçar bastante para me manter nas sombras.
Quanto mais distante dos bairros de lata, mais as filas de lojas e casas
melhoram lentamente de condição e tamanho. As barracas transformam-se
em casas, as casas em mansões, até chegar ao edifício mais assustador de
todos. À espreita através da escuridão, mal consigo distinguir as torres
imponentes do castelo real e a cúpula inclinada da Arena Bowl que fica ao
lado.
Os meus olhos voltam a fixar-se na rua larga que se estende diante de
mim, examinando os prédios imprecisos à sua volta. Loot Alley é o coração
dos bairros de lata, que alimenta o crime e o comércio por toda a cidade.
Percorro as dezenas de outros becos e ruas que se estendem a partir dessa
zona, perdendo-me no labirinto que é a cidade, antes de soltar um suspiro e
um pequeno sorriso para a familiaridade da rua que se encontra por baixo
de mim.
A minha casa. Mais ou menos. Tecnicamente, uma casa implica a
existência de um teto.
Mas olhar para as estrelas é muito mais divertido do que olhar para
um teto.
Sei bem do que falo, visto que costumava ter um teto para onde olhar
todas as noites, na altura em que não precisava das estrelas para me fazerem
companhia.
O meu olhar traiçoeiro percorre a cidade até ao local onde sei que a
minha antiga casa se situa, entre as ruas Merchant e Elm. Onde uma
pequena família feliz está provavelmente sentada à mesa de jantar, a rir e a
discutir o seu dia...
Ouço um estrondo, seguido de um murmúrio de vozes que me arranca
dos meus pensamentos tristes. Esforçando-me por ouvir, apenas consigo
distinguir a voz abafada e profunda que pertence ao guarda que eu tão
gentilmente libertei das suas funções há pouco tempo.
— ... veio por trás de mim, silencioso como um rato, e depois...
quando me apercebi, levei uma pancada no ombro e um murro na cara.
Uma voz feminina muito irritada e estridente ecoa pela chaminé: — Tu
és um Flash, por amor da Peste, não é suposto seres rápido ou algo do
género? — Ela inspira fundo. — Conseguiste ao menos ver a cara, antes de
o deixares roubar-me? Outra vez?
— Tudo o que vi foram os olhos — murmura o guarda. — Azuis.
Muito azuis.
A mulher protesta com irritação:
— Que útil. Vou parar todas as pessoas que vivem aqui no Loot para
ver se os seus olhos correspondem à tua descrição vívida de «muito azuis».
Eu reprimo reações quando algo range do outro lado da sala, seguido
por um coro de passos abafados. Pelo som da madeira a apodrecer sob
vários pares de botas novas, deduzo de imediato que mais três guardas se
juntaram à caçada.
E essa é a minha deixa.
Salto da chaminé e agarro-me à saliência do telhado, balançando as
pernas para ficar pendurada acima da rua. Inspirando, solto-me e mordo a
língua para não gritar quando a gravidade me puxa para o chão. Com um
estrondo suave, caio sem graça numa carroça cheia de feno de um
comerciante. A palha dura atravessa-me a roupa como uma das almofadas
de alfinetes de Adena, e uma nuvem de fuligem e feno levanta-se com a
brisa noturna quando salto para a estrada.
Retiro a palha do meu cabelo emaranhado e começo a minha viagem
de regresso à Fortaleza, passando por carrinhos de comerciantes velhos,
abandonados durante a noite, com as rodas desequilibradas sobre o lixo e
bugigangas partidas. Os ladrões encostados nos becos ou escondidos entre
edifícios sussurram entre si quando passo.
Sinto o peso da adaga enfiada na minha bota e relaxo com o conforto
do aço frio enquanto passo por grupos de sem-abrigo que se amontoam para
passar a noite. Consigo ver o brilho ténue dos campos de forças púrpura que
protegem alguns, enquanto outros nem sequer têm uma habilidade
suficientemente forte que lhes permita dormir em paz, que é a verdadeira
razão pela qual chamam aos bairros de lata a sua casa.
Mantenho o meu passo rápido e firme e enquanto os meus olhos
percorrem as vielas, sem baixar a guarda. Os pobres não discriminam. Um
xelim é um xelim, e para o conseguir, eles não querem saber se atacam
alguém que está numa situação pior do que a sua.
Vários guardas cruzam-se no meu caminho enquanto vagueio pelas
ruas, obrigando-me a abrandar para me desviar. Todas as lojas, esquinas e
ruas receberam a dádiva dos agentes da lei com fardas brancas e olhares de
soslaio. Estes Imperiais brutos foram colocados em Loot Alley por decreto
do Rei, devido ao aumento da criminalidade.
É evidente que não querem nada comigo.
Faço um desvio por um beco mais pequeno, dirigindo-me para um
canto sem saída. Ali, há uma barricada de carrinhos de comerciantes em
más condições, cartão, lençóis velhos e sabe-se lá mais o quê. Antes mesmo
de chegar a meio caminho do monte de lixo a que chamamos casa, um rosto
obscurecido por caracóis selvagens à altura dos ombros, surge por cima da
Fortaleza.
— Conseguiste?!
Libertando as suas longas pernas do lugar onde está sentada, levanta-se
sem esforço e atravessa a parede de um metro da nossa barricada de lixo
sem pensar duas vezes, a correr na minha direção com tanta esperança nos
olhos que até parece que lhe ofereci um verdadeiro teto e uma refeição
quente. E embora não lhe possa dar nenhuma destas coisas, tenho algo
muito melhor na sua opinião.
Resmungo.
— Sinto-me ofendida por teres duvidado de mim, Adena. Depois
destes anos todos, pensei que tivesses um pouco mais de fé nas minhas
capacidades.
Removo a minha mochila das costas e retiro uma seda vermelha
amarrotada, incapaz de conter o meu sorriso enquanto um olhar de
admiração se instala no seu rosto.
Com avidez, tira a seda das minhas mãos, passando os dedos pelas
dobras suaves do tecido. Espreitando por entre a franja encaracolada que
lhe cai nos olhos cor de avelã, olha para mim como se eu tivesse acabado de
erradicar a Peste em vez de roubar tecido a uma mulher que não está muito
melhor do que nós.
Como se eu fosse a heroína e não a vilã.
O sorriso de Adena podia rivalizar com o sol que cai no deserto de
Scorches.
— Pae, tu e os teus dedos malandros fazem magia, sabias?
Atira os braços à volta do meu pescoço, puxando-me para um abraço
esmagador que faz com que mais mel escorra pelo meu colete e se acumule
nos meus bolsos.
— Por falar em dedos malandros... — Solto-me do seu abraço e levo
as mãos aos bolsos. Retiro seis pequenos pães doces esmagados, perdendo
um pouco do seu aspeto apetitoso, apenas pelo feno que agora os decora.
Os olhos de Adena arregalam-se ao ver aquilo, antes de arrancar um da
minha mão com a mesma sofreguidão com que arrancou o tecido. Vira-se a
meio da mordidela e atravessa a nossa Fortaleza sem pensar duas vezes,
sentando-se sobre os tapetes incolores e ásperos que se encontram no
interior da barricada. Dá palmadinhas expectantes no lugar vazio ao seu
lado e, ao contrário dela, salto, sem elegância, por cima do muro antes de
me poder sentar.
— Aposto que a Maria não ficou muito contente com o roubo. Outra
vez. A pobre coitada devia aumentar a segurança — diz Adena entre
dentadas, com um sorriso torto a juntar-se às migalhas no rosto.
Apesar de eu ter roubado a mulher pelo menos uma vez por mês
durante os últimos anos, ela ainda só conseguiu concluir que eu sou um ele.
Pelo menos está a tentar.
— Na verdade — digo com um encolher de ombros —, ela tem mais
dois Imperiais na loja. Deve estar a ficar cansada de todos os pães doces
roubados ao longo dos anos.
Adena estreita o seu olhar cor de avelã ao ver o meu sorriso.
— Graças à Peste que não foste apanhada, Pae.
Assim que a frase lhe escapa dos lábios, o meu maxilar contrai-se
instintivamente enquanto o dela se abre a meio da mordida. Ela encolhe-se
visivelmente, com as sobrancelhas franzidas, limpando a voz:
— Desculpa. É um mau hábito.
Os meus dedos vão até ao anel grosso que uso no polegar, rodando-o
sem pensar, enquanto lhe devolvo um sorriso débil. Este tópico é um dos
que normalmente tentamos evitar, mesmo que o assunto se tenha tornado
subitamente constrangedor por minha culpa.
Tudo por causa de um momento de fraqueza do qual não gostaria de
me sentir tão aliviada.
— Sabes que não são as palavras que me incomodam, mas sim...
— Mas sim o significado por detrás delas — diz Adena com um
sorriso e uma imitação demasiado precisa da minha voz.
Quase me engasgo com o meu riso, num pedaço de massa doce. —
Estás a citar-me, A?
Em resposta, dá uma dentada no pão doce antes de declarar, de boca
cheia.
— E não é a Peste que nos deixa doentes, é o que veio depois.
Eu aceno lentamente com a cabeça enquanto traço o padrão gasto do
tapete, a sensação conhecida sob o meu dedo. A ideia de agradecer à Peste
que matou milhares de Ilyans faz-me perder o apetite até para os pães
doces. Agradecer à coisa que causou tanta dor, morte e discriminação.
Mas agora só querem saber quem é que a Peste não matou. O reino foi
isolado durante anos para evitar que a doença se espalhasse pelas cidades
vizinhas, e só os mais fortes de Ilya sobreviveram à doença que alterou a
própria estrutura dos humanos. Os rápidos tornaram-se excecionalmente
mais rápidos, os fortes tornaram-se imbatíveis, e aqueles que espreitavam
nas sombras podiam revelar-se como sombras. Dezenas de habilidades
sobrenaturais foram concedidas apenas aos Ilyans, todas variantes da força,
propósito e poder.
Dons que serviram como recompensa pela sobrevivência.
Esses são os Elites. São extraordinários. São excecionais.
— Apenas... — Adena pondera o que dizer, mexendo no seu pão doce
enquanto se esforça para formar palavras. — Tem cuidado, Pae. Se fores
apanhada e não fores capaz de fugir...
— Eu vou ficar bem — digo com demasiada naturalidade, ignorando a
preocupação que se apodera de mim. — Isto é que eu faço, A. O que
sempre fiz.
Ela suspira através do seu sorriso, acenando com altivez.
— Eu sei, eu sei. Tu sabes lidar com os Elites.
Sinto novamente aquela onda de alívio, que me faz sentir simul‐
taneamente culpada e grata por ela me conhecer verdadeiramente. Porque
nem todos os que sobreviveram à Peste tiveram a sorte de ser dotados de
habilidades. Não, os Vulgares eram apenas isso — vulgares. E durante as
décadas seguintes à Peste, os Vulgares e os Elites conviveram em paz.
Até que o Rei Edric decretou que os Vulgares já não podiam viver no
seu reino.
Foi há mais de três décadas que a doença passou por cá. Devido ao
surto do que era provavelmente uma doença comum, os Curandeiros do Rei
aproveitaram a oportunidade para afirmar que os Vulgares eram portadores
de uma doença indetetável, afirmando que essa era provavelmente a razão
pela qual não tinham desenvolvido habilidades. A exposição prolongada
aos Vulgares tornou-se prejudicial tanto para os Elites quanto para os seus
poderes e, com o tempo, os Vulgares estavam a diminuir as habilidades que
os Elites tanto protegiam.
Luto contra a vontade de revirar os olhos ao pensar nisso.
O meu pai acreditava que tal não passava de um disparate e eu não
penso de forma diferente. E mesmo que tivesse provas de que o Rei mentia
com todos os dentes, não é como se uma rapariga dos bairros de lata
estivesse em posição de ser credível.
Mas o Rei não podia permitir que a sua sociedade de Elite fosse
debilitada ou inferior por meros Vulgares. A extinção não era uma opção
para os extraordinários.
E assim começou a Purga.
Mesmo agora, décadas depois, as histórias dos corpos que se espa‐
lharam pela areia sob o sol escaldante são contadas casualmente à volta de
fogueiras, histórias assustadoras sussurradas entre as crianças.
Uns dedos pegajosos fecham-se sobre os meus, o mel que cobre as
mãos de Adena é tão doce como o sorriso que partilha comigo. O meu
segredo está guardado no brilho dos seus olhos, na lealdade que reveste a
sua expressão. Passei tanto tempo da minha vida resignada ao facto de que
nada seria real. Cada amizade falsa, cada bondade calculada.
«Esconde os teus sentimentos, esconde o teu medo, e mais importante,
esconde-te atrás da tua fachada. Ninguém pode saber, Paedy. Não confies
em ninguém e em nada a não ser nos teus instintos.»
A voz terna do meu pai é estranhamente assustadora quando ecoa na
minha cabeça, lembrando-me que cada parte da minha vida deve ser uma
mentira e que a rapariga sentada à minha frente deve ser tão falsa como o
resto do reino.
O egoísmo só me roubou a sanidade por uma noite, mas foi o bastante
para nos pôr em perigo.
— Muito bem, já chega de falar da Peste — diz Adena alegremente,
examinando o beco antes de acrescentar — e da tua... situação.
Nem me dou ao trabalho de abafar o meu suspiro.
— Parece que dois anos não te deram tempo suficiente para praticares
a subtileza, A.
Duvido que me tenha ouvido. Duvido que consiga concentrar-se em
algo que não seja o tecido que agora desliza entre os seus dedos. Com os
olhos cor de avelã a examinar os materiais de costura, Adena abandona a
nossa conversa para divagar sobre as peças que vai fazer com a nova seda.
As suas mãos castanhas e quentes deambulam pelos restos de tecido à luz
do candeeiro, começando a dobrar as bordas, a prender os cantos, a picar os
dedos, reclamando sem parar.
Entramos no tipo de conversa fácil que só surge depois de passarmos
anos a sobreviver juntas nas ruas, o que torna fácil interpretar as palavras
distorcidas de Adena em torno dos alfinetes pressionados entre os seus
lábios. Viro-me para o lado, ficando finalmente em silêncio enquanto
observo os seus dedos firmes e a testa franzida, demasiado absorvida pelo
trabalho para conseguir dormir.
Uma dor lancinante de lado faz com que os meus olhos fechados se
abram, esquecendo a sonolência. A pedra irregular do chão do beco deixa-
me a resmungar.
— Atenta ao que te digo, um dia vou roubar uma cama.
Adena revira-me os olhos, tal como faz todas as noites em que faço a
mesma promessa vazia.
— Só acredito quando sentir, Pae — Adena começa a cantarolar.
Virei-me cerca de uma dúzia de vezes antes de um cobertor áspero e
enrolado colidir com a minha cabeça.
— Se não parares de te contorcer, juro que te coso ao chão — promete
Adena com toda a doçura de um pão doce.
— Acreditarei quando sentir, A.
Uma bola de fogo passa-me pela cara, quase me arrancando o cabelo.
Mal tenho tempo de me baixar quando sinto uma segunda onda de calor a
aproximar-se.
Pestes, o Kitt está com um excelente humor hoje.
A dançar sobre as solas dos meus pés, vejo outra esfera de fogo dirigir-
se a mim, enquanto sou invadido por uma sensação familiar de adrenalina.
Atiro um escudo de água, ouvindo o fogo sibilar antes de se fundir numa
espessa nuvem de vapor. Kitt semicerra os olhos, tentando procurar-me
através do fumo, antes de os arregalar quando, de repente, colido com ele.
Caímos no chão e eu prendo-o, erguendo um punho apontado à sua cara.
— Rendes-te?
Não consigo evitar que um sorriso me contraia os lábios. Ele solta uma
gargalhada, o olhar percorrendo o meu rosto e o punho em chamas.
— Se eu disser que não, vais mesmo dar-me um murro, maninho?
Apesar do fogo que arde a poucos centímetros, os olhos verdes de Kitt
brilham com a diversão.
— Pensava que por esta altura já saberias a resposta a isso. — Sorrio
ligeiramente enquanto levanto mais o punho, em pose de ataque.
— Está bem, está bem, eu rendo-me! — Kitt gagueja. — Mas só
porque não quero que o pobre Eli tenha de tratar de mais um dos nossos
narizes partidos.
Rio-me sombriamente com a ideia de ver a cara do médico real se lhe
apresentássemos mais um osso lesionado. Depois de me levantar, estendo a
mão a Kitt, ainda caído no chão.
O sorriso que me devolve não se reflete no seu olhar, até que por fim
declara:
— Pestes, Kai, és melhor do que eu a lidar com os meus poderes.
— E é por isso que tu vais governar o país — digo-lhe com natura‐
lidade —, enquanto eu estarei a lutar no campo de batalha, a distrair o
inimigo com a minha boa aparência.
— Estás a dizer que eu não conseguiria distrair o inimigo com a minha
boa aparência? — pergunta Kitt com um riso grave, fingindo-se ofendido.
— Estou a dizer que somos apenas meios-irmãos, por isso receio que
tal signifique que só tens metade dos meus encantos.
Kitt solta outra gargalhada.
— Seguindo essa lógica, suponho que só tens metade do meu cérebro.
— Agradece à Peste por isso.
As palavras mal tinham saído da minha boca e ele já me estava a
lançar um sorriso forçado.
Percorremos o caminho gasto, entre os círculos de treino de terra
batida que se encontram nos terrenos do castelo. Os Imperiais estão a
treinar e outros Elites de estatuto mais elevado prosseguem com os seus
combates enquanto passamos por eles; são mais aqueles que usam
habilidades do que os que usam armas.
As cabeças voltam-se para nós, os seus olhares queimam a minha pele,
espelhando o sol que nos bate lá de cima. Ignorando-os, inspiro o cheiro
habitual a sangue, suor e lágrimas do campo de treinos, antes de pegar em
duas espadas de uma prateleira de armas, lançando uma a Kitt, cuja
expressão só pode ser descrita como exasperada.
— Sabes que sempre gostei mais de lutar com armas do que com
habilidades? — digo em resposta ao seu olhar provocador, enquanto
irracionalmente testo o equilíbrio da minha lâmina.
Kitt avança para o ringue lamacento, revirando os olhos.
— Sim, sei bem o quanto aprecias uma luta de espadas comigo.
Giro o pulso, balançando a minha lâmina enquanto começamos a andar
aos círculos.
— É de facto um dos meus passatempos favoritos. — Avanço re‐
pentinamente, oscilando a minha espada com força contra a sua e enviando
um choque pelo meu braço acima.
— Estás a ver, não é divertido?
Kitt range os dentes em resposta ao meu golpe.
— Fascinante.
Caio num transe familiar, libertando os meus pés numa dança à volta
do ringue enquanto lutamos, perdendo-me no ritmo. Sinto o desanuviar da
minha mente. O meu corpo vibra com a energia. Sempre me senti no auge
da vivacidade quando luto. Foi para isso que fui criado, foi isso que me
manteve são ao longo dos anos de treino e tutoria.
«Um rei imbecil é um rei morto.»
As palavras do meu pai ressoam na minha cabeça, fortemente
marcadas após cada queixa sobre as lições aborrecidas que tive quando era
mais novo. No entanto, não vou ter de me preocupar com o facto de ser um
rei morto ou imbecil, uma vez que não serei rei de todo. E depois de lhe
apresentar tal facto, o Pai gentilmente criou um lema diferente para ditar a
minha vida.
«Um Executor imbecil é um império derrotado.»
Encorajador.
Uma dor aguda sobe-me pelo antebraço, arrancando-me dos meus
pensamentos com um sobressalto.
— É melhor concentrares-te na luta, Kai, ou posso mesmo ganhar-te.
— Kitt tem um olhar triunfal no rosto que eu tenciono apagar. — Não quero
que o meu futuro Executor se descuide com o tra...
Antes que possa concluir o comentário, estou a empurrar-lhe a espada
para o chão e a prendê-la debaixo da minha, colocando-me na sua
retaguarda. Num movimento rápido, levanto a minha bota, saco uma adaga
e coloco a ponta afiada nas suas costas.
— Desculpe, o que disse, Vossa Majestade?
Solto-o e ele vira-se enquanto eu faço uma vénia satírica e enfio a
adaga de volta na bota. Isso valeu-me um forte empurrão que quase me fez
cambalear, um empurrão que eu retribuo enquanto Kitt se ri.
Neste momento, o seu cabelo louro sujo, apresenta-se mais sujo do que
louro, salpicado de pedaços de lama de tanto ter rolado no ringue. As nossas
camisas há muito que foram tomadas pelo calor do verão e, tal como eu, o
suor mancha-lhe o peito bronzeado.
É quase cómico o quão óbvio é o facto de sermos apenas meios-
irmãos. Para além das nossas diferenças físicas, falta-me o carinho de Kitt,
e a ele falta-lhe a minha insensibilidade. Ele é paciente, agradável e
adequado para o trono, tal como eu sou adequado para o campo de batalha.
A ele o perfil de rei, a mim o de um assassino.
— Kai, estás a ouvir-me? — Kitt parece igualmente preocupado e
divertido enquanto estala os dedos à frente da minha cara. — Pestes, quanto
sangue é que perdeste?
Sigo-lhe o olhar e vejo um fluxo vermelho a sair da ferida do meu
braço, sangue a tecer-me os nós dos dedos e a pingar.
— Bem, parece que o Eli não vai ter um dia de folga, graças a ti.
Olho para Kitt, à espera de um comentário, mas encontro o seu olhar
fixo em algo que está do outro lado do terreno.
— Agora olha quem não está a prestar atenção.
Os meus olhos desviam-se para a figura que se pavoneia na nossa
direção, com as peles de treino agarradas a todas as suas curvas e o cabelo
lilás a mover-se com o vento.
— Oh, olha. A vadia da Blair — digo entre sussurros, antes de ela se
aproximar, fazendo com que Kitt se engasgue com o riso.
— Olá, rapazes. — A sua voz é como o gelo, fria e suave. — Como
está a correr o treino?
O seu olhar vagueia preguiçosamente por nós os dois antes de voltar
aos nossos rostos, com um ligeiro sorriso.
— Estás a preparar-te para as Provas, Kai?
— Não que precise de me preparar — respondo.
Um sorriso lento surge-lhe no rosto.
— Acho que o futuro Executor vai querer causar uma boa impressão
no reino. E para isso é preciso vencer.
De repente, mostra-se muito interessada nas suas unhas, fingindo um
estado de despreocupação.
Passo uma mão pelo cabelo com um suspiro de aborrecimento.
— É exatamente isso que tenciono fazer.
Ela entrega-me um sorriso que é tudo menos doce.
— Espero que sim, visto que és o melhor Elite das últimas décadas.
Ou, pelo menos, é o que dizem.
Pestes, aqui vamos nós.
Kitt dá um passo em frente e põe uma mão no peito como se tivesse
sido ferido.
— Ai, Blair. Vou recordar-me desse comentário quando for Rei.
— Feri-te o orgulho, Kitt? — finge um beicinho falso antes de voltar a
sua atenção para mim. — Além disso, acho que serei eu a ganhar as Provas.
Solto uma gargalhada seca antes de olhar para a sua pequena figura.
— E o que é que te faz ter tanta certeza de que vais competir? — digo
isto sabendo muito bem que irá participar nas Provas.
Com um movimento rápido de pulso, uma adaga cai da prateleira das
armas em resposta ao meu comentário. Antes que possa sequer pestanejar, o
punhal encontra-se subitamente suspenso no ar e a causar pressão na minha
jugular.
— Como filha do general — aproxima-se de mim até ficarmos a
poucos centímetros de distância e sussurra —, acho que tenho boas
hipóteses de entrar nas Provas. Não achas?
Ela ri-se enquanto pressiona a faca na minha garganta, provando ainda
mais o seu ponto de vista.
O zumbido de dezenas de poderes percorre-me o sangue, todos
pertencentes aos outros indivíduos que treinam no pátio. Forço as outras
habilidades ao silêncio, concentrando-me no poder de Blair e na sensação
do seu zumbido sob a minha pele, incitando-me a agarrá-lo. Ela é uma Tele
poderosa, e a sua demonstração com a adaga é apenas uma amostra do que
consegue fazer com a mente. Eu pego naquela sensação de formigueiro que
é a sua habilidade e deixo que me domine, que venha à superfície.
E depois, torno-me nela.
Tal como fiz com o poder Duplo de fogo e água do Kitt, e tal como
posso fazer com qualquer uma das habilidades que me rodeiam.
O meu sorriso é calculista, quando lanço a adaga flutuante no ar,
empurrando-a contra o couro duro que cobre o coração dela com nada mais
do que a minha mente.
— Bem, então é melhor ires treinar — digo baixinho antes de largar a
sua habilidade, deixando a adaga cair no chão com um estrondo. Não me
dou ao trabalho de proferir uma única palavra antes de me virar e caminhar
em direção ao castelo.
Kitt segue em silêncio ao meu lado, aparentemente tão perdido nos
seus pensamentos como eu, enquanto atravessamos os portões do palácio.
Com as Provas a apenas duas semanas de distância, parece que já não sou
capaz de ignorar alegremente a sua existência e o papel que tenho na sua
realização.
O cheiro de frango assado e batatas que emana das cozinhas é
suficiente para roubar a minha atenção. Olho de relance para o
anormalmente silencioso Kitt, antes de me virar para atravessar as portas da
cozinha.
— Boa tarde, minhas senhoras. — Esboço um sorriso rápido para as
cozinheiras e criadas que se movimentam enquanto preparam o jantar. —
Sentiram a minha falta? — canto, saltando para um balcão duro apoiado nas
palmas das mãos.
Atento a algumas criadas que ficam coradas, trocando sussurros
risonhos umas com as outras, antes de voltarem ao trabalho.
O calor da cozinha atinge-me como uma onda, passando por mim e
cobrindo a minha pele já escorregadia.
A minha pele.
Passo a mão pelo cabelo antes de a passar pela cara, sem me inco‐
modar com o facto de ter andado sem camisa depois de a ter abandonado
naquele ringue imundo — um hábito que nem o Pai conseguiu retirar-me.
A cabeça de Kitt aparece ao virar da esquina, com um sorriso no rosto.
— Pareceu-me sentir o cheiro do meu prato preferido. És uma querida,
Gail. — Dirige-se para a cozinheira que está perto do fogão, a mexer uma
panela cheia de batatas cremosas, com a pele escura a brilhar com o suor.
Não consegue evitar sorrir ao ver a cara de Kitt.
— Oh, não penses que fiz isto por ti, Kitty. A verdade é que o puré de
batata também é o meu preferido. — Ela sorri, dá-lhe uma palmadinha na
bochecha antes de se virar novamente para a panela. Os seus olhos
encontram-se com os meus, de onde estou sentado, antes de se desviarem
para o meu braço e para a ferida ainda a sangrar. Ao abanar a cabeça, diz
severamente: — É bom que não sujes o meu balcão com sangue, Kai.
Eu sorrio.
— Não seria a primeira vez.
Ela torna a abanar a cabeça, lutando por evitar um sorriso. Gail tem-
nos dado comida e guloseimas à socapa desde que éramos miúdos, a correr
pelo castelo apenas com metade da roupa vestida — o que claramente ainda
fazemos. Já assistiu a muito mais do que uma luta nesta mesma cozinha
sobre quem fica com o último pão doce.
— Já não me visitavam há algum tempo — diz ela, colocando tempero
nas batatas. — Estão a ficar fartos de mim?
— De ti, sim. Mas nunca da tua comida. — Mal digo estas palavras,
vejo várias batatas moles voarem na minha direção. Não tenho tempo nem
energia para me esquivar antes que o puré se junte à lama e à sujidade.
— Nunca tens um momento aborrecido connosco, pois não? — diz
Kitt, encostado a um parapeito, observando enquanto eu limpo as batatas
agarradas ao meu cabelo.
Desço do balcão e dirijo-me à cozinheira, dando-lhe um beijo na
bochecha.
— É sempre um prazer, Gail. — Estico-me à sua volta para pegar
numa maçã do cesto e digo: — Estou ansioso pela nossa próxima luta de
comida.
Depois de lançar uma ao Kitt, esfrego a minha própria maçã nas calças
e dou uma dentada.
— Príncipe Kai?
Fico tenso, suspiro e dirijo-me à voz que está por trás de mim. É um
rapaz jovem, nervoso, com as mãos a mexer na bainha da camisa. Levanto
as sobrancelhas, evidenciando a minha impaciência.
— O Rei solicita a sua presença na sala do trono.
A roda da carroça de um comerciante passa-me por cima dos dedos
dos pés. Retraio um grito, mas não me dou ao trabalho de reprimir uma
resposta rude, dirigida ao homem que se encontra alheio relativamente à dor
que inflige aos transeuntes com o seu carrinho.
Bem, o dia de hoje está a começar bem.
Dormi mal a noite passada, virando-me e revirando-me enquanto
entrava e saía dos meus pesadelos recorrentes. Memórias do meu pai a
morrer enquanto eu não posso fazer nada a não ser segurar-lhe a mão, subir
uma chaminé apenas para encontrar o topo fechado com tábuas, e Adena, a
única pessoa que me resta neste mundo, a ser arrastada para longe de mim
aos gritos.
A dada altura, entre os meus numerosos pesadelos, Adena fez uma
débil tentativa para me acordar. Virei-me para o lado a gemer, tentando
agarrar-me ao pouco sono feliz que consegui roubar. Posso ser uma ladra,
mas a mim, roubam-me regularmente o descanso.
Persistente como de costume, Adena mudou de estratégia e decidiu
atirar-me com pedaços de tecido até eu levantar um pano branco em sinal
de rendição.
O sol, preguiçoso como sempre, está lentamente a tentar espreitar por
cima dos edifícios degradados, atirando Loot Alley para as sombras da
manhã enquanto eu desço o caminho de pedra. À medida que a rua ganha
vida com a azáfama dos comerciantes que regateiam enquanto os pedintes
imploram a qualquer um que lhe dedique um olhar, eu passo despercebida
no caos que rodeia os bairros de lata.
As minhas mãos reagem à necessidade de roubar alguma comida para
acalmar o meu estômago e levar alguma para a Adena. Os meus olhos
percorrem a rua em busca da minha próxima vítima para roubar quando...
Há algo que não está bem.
Catorze. Só há catorze Imperiais ao longo da rua.
Mas hoje devia haver pelo menos dezasseis.
É algo que eu sei, pois memorizei os seus turnos.
Vejo o Cabeça de Ovo e o Nariz de Gancho nos seus lugares habituais
à porta da loja da Maria, juntamente com vários outros Imperiais com
nomes igualmente peculiares. Com as máscaras de cabedal branco a ocultar
metade das suas caras, é difícil arranjar alcunhas criativas para os sacanas,
por isso orgulho-me das poucas que inventei.
Normalmente, a perspetiva de menos guardas seria um alívio, e talvez
sejam as minhas habilidades de Psíquica a entrar em ação, mas o cenário
preocupa-me.
O meu estômago ronca furioso, impaciente como sempre.
Primeiro a comida, depois a sensação de que algo não está bem.
Vagueio pela multidão com facilidade, roubando maçãs do carrinho
que me passou por cima dos dedos dos pés, a vingança tão doce como a
fruta estaladiça que mordo. Encostado à parede em ruínas de uma loja, vejo
o que parece ser um jovem aprendiz a regatear com um comerciante.
Observo-o a fixar o comerciante com um olhar fulminante, antes de atirar
algumas moedas e agarrar naquilo que parece ser um conjunto de couro
preto. Os meus olhos investigam os xelins que caem da carroça, contando-
os rapidamente e constatando que há ali mais moedas do que as necessárias
para comprar couro.
Está com pressa. É por isso que está disposto a pagar o dobro do que
devia, em vez de perder tempo a negociar um preço mais baixo. E tem
dinheiro de sobra.
O alvo perfeito.
Entro na rua e dirijo-me ao rapaz, movendo-me rapidamente por entre
a multidão enquanto puxo a correia de cabedal que me prende o cabelo,
afastando-o do rosto e do pescoço. Cai-me pelas costas numa cascata de
ondas prateadas e desarrumadas, enquanto amaldiçoo o calor sufocante que
já me deixa o pescoço repleto de suor. Deixando cair o cabelo para os
ombros e para o rosto, transformo-me na imagem perfeita da inocência.
«Faz com que te subestimem. Faz com que não te vejam até que
queiras ser vista.»
Há tanto tempo que não ouço a voz do meu pai, que o seu som suave
ameaça escapar-me da memória e juntar-se a ele na morte.
O pensamento desfaz-se quando colidimos.
Tropeço, tentando agarrar o aprendiz desprevenido enquanto me deixo
cair. Pegando num punhado da sua camisa com uma mão, enfio a outra no
bolso do colete, de onde o vi tirar as moedas. Sinto que tem seis xelins e
resisto à vontade de os agarrar a todos, mas só apanho três.
A ganância não é uma emoção fácil de dominar, mas forço-me a deixar
as outras moedas, sabendo que é provável que ele seja suficientemente
esperto para sentir a falta de peso no bolso caso eu agarre em todas. E não
preciso de acrescentar mais cicatrizes às costas por ter sido apanhada.
Mas quando estou prestes a estender a mão e a pedir desculpa por
quase ter atropelado o rapaz, os meus dedos prendem-se no forro interior do
seu colete. Não, não é só forro — um bolso secreto. Sinto um pedaço de
pergaminho dobrado lá dentro e, num impulso que não consigo explicar ou
justificar, decido pegar nele antes de retirar a minha mão e olhar
timidamente para o rosto do aprendiz.
Os seus olhos castanhos estão arregalados quando o encaro por entre
os fios de cabelo que me atravessam o rosto. Transformo a minha
expressão, para demonstrar constrangimento e rapidamente liberto a minha
mão da sua camisa.
Afastando uma madeixa de cabelo dos olhos, dou um passo atrás para
evidenciar o espaço entre nós.
— Peço imensa desculpa, senhor! — Forço-me a soar sem fôlego,
envergonhada, inofensiva. — Tenho a certeza de que sou a única pessoa em
toda a Ilya capaz de tropeçar no ar!
Vamos. Subestima-me. Ignora-me.
Ele passa uma mão pelo cabelo encaracolado e ri-se.
— Não te preocupes. Parece que tens um talento e peras. — Sorri, mas
o seu olhar demora-se um pouco de mais para o meu gosto.
Por isso, ofereço-lhe um sorriso e um aceno de cabeça antes de me pôr
a andar e desaparecer numa rua cheia de gente.
O aroma adocicado dos pães paira no beco movimentado quando passo
pela loja da Maria e entro numa das muitas ruelas pequenas que se
ramificam através de Loot Alley. O bilhete que roubei encontra-se húmido
de suor quando o agarro com a palma da mão. O que é que poderá estar
escrito neste pequeno pedaço de papel que justifique um esconderijo tão
elaborado?
Tenciono descobrir.
Encostando as costas à parede de tijolo sujo, desdobro as margens do
papel para revelar uma nota rabiscada:
O amanhecer chega cedo de mais para o meu gosto e, sem dar por isso,
estou a dirigir-me para os estábulos.
O grande celeiro branco projeta uma sombra enorme à luz do sol
matinal. Cada parede é ladeada por estábulos onde os cavalos mordiscam o
feno, olhando para mim com curiosidade.
O meu olhar passa por dois Imperiais que estão à minha esquerda,
acompanhados por três cavalos com selas, para a viagem que temos pela
frente. Cerro os dentes. O Rei retirou dois guardas da rotação de Loot Alley
como medida de segurança, embora eu seja mais do que capaz de tratar
disto sozinho. Mas parece que, numa única noite, o pai passou a preocupar-
se com o meu bem-estar. Foram precisos dezanove anos e o facto de eu
agora ser algo valioso para ele.
Abano a cabeça e monto o cavalo mais próximo, engolindo o meu
orgulho o suficiente para admitir que é sensato que os Imperiais estejam
comigo no caso de um ataque inesperado.
A viagem até Loot é longa, e o tempo foi passado em silêncio abso‐
luto. As ruas transformam-se lentamente em bairros de lata à medida que
avançamos na cidade, e senti o cheiro do beco do grande mercado antes de
lá chegar.
O cheiro habitual de peixe, fumo e outros mistérios, dão-me as boas-
vindas quando nos dirigimos para Loot. O eco dos cascos dos cavalos a
bater nos paralelepípedos irregulares ressoa nas paredes das lojas
degradadas que ladeiam a rua. Alguns madrugadores desviam-se do
caminho enquanto apontam e sussurram.
Viramos à esquerda para uma rua mais pequena à saída do beco
principal e dirigimo-nos a uma pequena cabana de madeira. Desço do meu
cavalo sem hesitar e coloco as rédeas na mão de um Imperial, deixando-o
tratar do animal.
Se têm de estar aqui, pelo menos que sejam úteis.
Dirijo-me à porta, retirando a mão do bolso para bater. Ouço um
estrondo lá dentro, seguido do som de passos pesados antes da porta se
abrir, rangendo as dobradiças ferrugentas.
Um homem enorme e corpulento, com uma barba espessa e um cabelo
ainda mais denso, olha fixamente para a cena que tem diante de si.
Surpreende-me que consiga passar pela moldura da porta. Os seus olhos
azuis alargam-se sob as sobrancelhas espessas quando olha para mim e para
os dois Imperiais que me seguem.
— Príncipe Kai...? — O homem parece espantado e nervoso.
— Olá... que honra!
A sua voz, que transporta uma alegria falsa, desce a rua, pro‐
vavelmente acordando os seus vizinhos quando ele me oferece um aperto de
mão.
O seu punho é firme e calejado, tal como o meu.
— Nathan, correto? — Ele acena com a cabeça, e eu continuo: —
Tenho algumas perguntas para lhe fazer sobre um Vulgar encontrado aqui
em Loot. Tenho a certeza de que não haverá problemas.
Observo-o com atenção, à procura de qualquer indicação de que sabe
do que estou a falar. Nada. O seu rosto permanece inexpressivo.
— Importa-se que entremos?
Não é uma pergunta e ele sabe disso. Já tenho o meu pé sobre a soleira
da porta antes de ele se afastar.
A casa não é maior do que o meu quarto no palácio. De um lado da
divisão, há pequenas camas próximas umas das outras e desalinhadas contra
a parede. A cozinha fica na outra metade da divisão, equipada com uma pia
em mau estado, um balcão de madeira rachada e uma grande mesa rodeada
por dois rapazes de olhos arregalados e uma mulher. Um tapete grande e
desbotado une os dois lados da sala, a única decoração e mancha de cor na
casa.
Nathan aclara a voz:
— Esta é a minha mulher, Layla. — Ela sorri calorosamente, os seus
dentes brancos em contraste com a pele escura enquanto olha para os
Imperiais atrás de mim. — E estes são os nossos rapazes, Marcus e Cal.
Nathan aponta para cada um dos filhos, designando-os. Marcus
mantém os olhos colados à mesa, sem se atrever a olhar para mim, enquanto
o seu irmão mais novo, Cal, está demasiado curioso para evitar que os seus
olhos se desviem dos meus.
Eu alcanço-os com o meu poder, certificando-me de que nenhum deles
é o Vulgar escondido à vista de todos. A minha habilidade de Portador é
especialmente útil como Executor, tornando o meu trabalho muito mais
fácil e eficiente.
O Nathan é um Forte, e não estou minimamente surpreendido, visto
que ele é gigante. Consigo sentir o poder de Layla como Curandeira a
borbulhar no meu sangue, enquanto Marcus e Cal possuem ambos poderes
Mundanos — Marcus com a habilidade de deteção de mentiras de um
Detetor, e Cal como um Reformador, com os seus sentidos apurados.
— Sabe porque estou aqui — digo-lhe com frieza. — Viu ou ouviu
falar de um Vulgar que anda escondido por estas bandas?
— Não, senhor. — É a Layla que fala, a sua voz suave e firme.
Os meus olhos voltam a percorrer a casa, parando na pia. As tigelas
ainda sujas de papa, estão empilhadas a aguardar serem limpas.
Cinco.
Cinco tigelas quando só há quatro bocas para alimentar. Interessante.
— Bom, então não se importam que eu dê uma vista de olhos?
Mais uma vez, não é uma pergunta. Passeio casualmente pela pequena
casa, parando de vez em quando para examinar algo mais de perto. Sinto os
olhares dos meus Imperiais e da família a queimarem-me as costas
enquanto me demoro na investigação, com as mãos nos bolsos.
Nada parece estar fora do lugar.
Estou quase a admitir que isto é um beco sem saída e uma perda de
tempo quando passo no meio do tapete estampado, agora desbotado por
anos de uso. Um rangido ecoa debaixo dos meus sapatos. Paro e desloco o
meu peso, para ouvir o som de novo. E sem demoras, a madeira volta a
gemer debaixo do tapete.
Interessante.
Embora o rosto de Nathan permaneça inexpressivo, o sangue
abandonou-lhe o corpo, deixando-o pálido como um fantasma.
— Levantem o tapete — ordeno aos guardas, sem tirar os olhos da
família. E é nesse momento que deteto uma emoção que me é demasiado
próxima, aquela que tende a acompanhar a minha presença.
Medo.
Quando o tapete se afasta, vejo o contorno de um alçapão, que se
mistura quase na perfeição com o resto das tábuas de madeira sujas.
O estrondo. Foi isto que ouvi quando estava lá fora.
Layla solta um soluço quando eu me ajoelho e abro o alçapão,
revelando um espaço escuro e apertado. Ali, escondida num canto e
abraçada aos joelhos, está sentada uma menina. Quando olha para mim, o
fogo nos seus olhos combina com o vermelho vivo do seu cabelo comprido.
Pestes, é tão nova.
Não deve ter mais de oito anos, mas a rapariga não resiste quando eu
me agacho e a tiro da caixa húmida. Coloco-a no chão, e ela olha-me de
uma maneira provocadora, sem vestígio de medo no seu pequeno rosto
salpicado de sardas.
Tento perceber se tem algum poder, só para ter a certeza. Nada. Não há
nada de extraordinário nesta rapariga — porque ela é uma Vulgar.
Soluços reprimidos começam a encher a sala.
— Não, não, não! — Os gritos trémulos de Layla ecoam nas paredes.
— Não a pode levar! Não pode! Ela é minha filha, por favor!
Os Imperiais interpõem-se entre mim e a família em fúria, mas eu
passo por eles, irritado. Os rapazes estão agora a chorar, abraçados às
pernas da mãe, enquanto Nathan parece atónito, com lágrimas silenciosas a
escorrerem-lhe pelas faces até à barba emaranhada.
— Acalme-se e diga-me de onde raio é que ela veio e há quanto tempo
é que a tem escondida. — A minha voz é baixa e severa, atravessando o
caos. A menina que está à minha frente não se parece nada com esta
família, com as suas sardas e cabelo ruivo flamejante. Já para não falar que
tanto Nathan como Layla são Elites, o que significa que os dois nunca
poderiam gerar um Vulgar.
— Ela... está cá há três anos. — A voz de Layla treme, os soluços
assolam a sua pequena estrutura. — Encontrámo-la na rua, por isso
acolhemo-la. Queríamos uma filha. Eu não podia ter mais filhos... —
interrompe-se, limpando a cara. — Eu sou uma das poucas Curandeiras nos
bairros de lata e ela parecia-me saudável, forte. Por isso, quando
encontrámos a Abigail, nós... finalmente pudemos ter uma menina.
Abigail.
Preferia não saber. Gostava de não ter de acrescentar mais um nome à
lista interminável dos que tiveram a infelicidade de se cruzar no meu
caminho, a infelicidade de se cruzar no caminho do Rei.
Suspiro.
Aqui vai.
— Conhecem a lei. — Mais soluços sufocantes enchem a sala,
obrigando-me a levantar a voz. — Por decreto do Rei, todos os Vulgares
devem ser executados. Quanto a quem abriga esses Vulgares, eles devem
ser banidos para o Scorches...
Estou a meio da declaração das mesmas falas ensaiadas e ditas dezenas
de vezes, quando um corpo grande e sólido se dirige a mim. O olhar vazio
que tinha há momentos desapareceu, substituído agora por um ódio que
contorce o seu rosto em fúria. Nathan ataca-me e atira-me contra a parede,
tirando-me o ar dos pulmões, fazendo-me bater com a parte de trás da
cabeça na madeira dura.
Isto amanhã vai doer como a Peste.
Ouço ao longe um grito arrancado da garganta de Layla, juntamente
com os passos pesados dos Imperiais que correm para intervir.
— Não! — grito-lhes, esquivando-me a um murro que vem em direção
ao meu nariz, enquanto os guardas se detêm, confusos. — Eu trato dele
sozinho.
Lança outro murro, este com a intenção de me partir o maxilar.
Esquivo-me mesmo a tempo de ver o seu punho embater na parede de
madeira onde antes estava a minha cara. Um movimento que dá origem a
uma chuva de lascas, após o contacto com a parede.
Os meus instintos de luta tomam conta de mim, e nem sequer me dou
ao trabalho de estender a mão para usar o poder de Nathan. Com o seu
punho ainda enterrado na parede, agacho-me por baixo do seu braço
estendido e marco o ataque, torcendo-lhe o braço atrás das costas para o
pressionar por baixo da omoplata esquerda. Ele grunhe de dor antes de me
dar um pontapé na rótula, com força. A dor sobe pela minha perna enquanto
ele se desvencilha do meu aperto, levantando novamente o punho com uma
força sobrenatural.
Ignorando a dor no joelho, deixo-me cair e lanço a perna num arco
largo, conectando-a com os seus tornozelos, mandando-o ao chão. Fico em
cima dele, imobilizando-lhe os braços com os joelhos enquanto deixo que a
sua força de Forte venha à superfície, sabendo que não vou conseguir
mantê-lo deitado sem usar o seu próprio poder contra ele. Ele tenta libertar-
se, barafustando violentamente.
— Cale-se e ouça-me — ofego. — Podemos fazer isto da maneira
mais fácil ou da maneira mais difícil. E, pessoalmente, prefiro a maneira
fácil.
— Ela é minha filha! — grita, com um olhar de angústia nos olhos,
enquanto tenta arrancar-me de cima.
— Bem, é óbvio que não tem consideração pelos meus sentimentos,
porque quer fazer isto da maneira mais difícil. — Suspiro, levanto o punho
e acerto-lhe no maxilar. A cabeça de Nathan vira-se para o lado, deixando-o
atordoado tempo suficiente para me deixar falar.
— Se não cooperar, nem mesmo a sua mulher terá a habilidade de lhe
curar o corpo partido depois de eu terminar o serviço. Por isso, sugiro que
me agradeça por não o ter matado aqui mesmo, à frente da sua família, e
que faça exatamente o que eu disser. — Nathan fica imóvel debaixo de
mim, a luta parece esvair-se do olhar. Eu mudo de posição, agachando-me
ao seu lado e atento à sua forma derrotada.
— Agora, levante-se antes que eu mude de ideias — murmuro antes de
me levantar. Quando ele não se mexe, acrescento: — A paciência é-me tão
desconhecida como a misericórdia, por isso eu não abusaria da sorte.
Nesse momento, levanta-se e põe-se à frente da sua família, criando
um bloqueio. Protegendo-os de um monstro. Mantenho os meus olhos fixos
neles, vendo as lágrimas que escorrem pelas faces e os soluços a passarem
pelos lábios, enquanto dou ordens aos Imperiais.
Eles apressam-se a obedecer, amarrando os prisioneiros, enquanto eu
acrescento casualmente:
— Mantenham-se nas ruas secundárias. Claramente, hoje estou de bom
humor. Sinto-me misericordioso, se preferirem — sopro as palavras. —
Pelo que prefiro não ter público.
Os Imperiais concordam com um grunhido, sorrindo ligeiramente com
a minha ideia de misericórdia. Numa questão de minutos, Nathan, Layla e
os seus dois filhos estão amarrados e a arrastar-se atrás dos cavalos. Eles
olham para trás, com o ódio a arder nos rostos enquanto atentam para
Abigail amarrada e firmemente agarrada a mim.
Eles sabem o que acontece agora. A minha reputação é bastante
conhecida, murmuram-se pelas ruas as histórias do monstro assassino.
Esta é a parte em que eu mato a Vulgar enquanto os Imperiais escoltam
os criminosos até ao Scorches, onde provavelmente a seguirão até à morte.
Com um calor abrasador durante o dia e temperaturas geladas durante a
noite, não é fácil chegar ao outro lado do deserto, onde se encontram as
cidades de Dor e Tando. Já para não falar que acabei de condenar esta
família a tentar fazer isso mesmo, sem mantimentos, sem comida, sem água
e sem esperança.
É uma morte muito mais dolorosa do que a que a sua filha Vulgar irá
sofrer.
— Por favor! Imploro-lhe, por favor, poupe-a! — Layla grita na minha
direção, entre soluços, enquanto se arrasta sobre as pedras da calçada atrás
dos cavalos. — Ela é apenas uma criança...
Um Imperial estende a mão para trás, de onde está sentado em cima do
seu cavalo, e bate-lhe na cara, interrompendo a sua súplica.
— Cala-te, miserável.
Afasto o meu olhar da cena, puxando a rapariga para longe. As fracas
tentativas para se libertar da minha mão seriam cómicas se não fosse a
situação tenebrosa em que nos encontramos.
Está estranhamente calma para uma criança que está a ser arrastada
para a morte. Por esta altura, a maioria dos Vulgares já se encontraria a
gritar, suplicando e regateando pelas suas vidas. Mas nesta criança a luta é
silenciosa, o olhar penetrante. Mantenho os olhos fixos nos becos vazios
por onde passamos, imaginando o quão usual deve ser para alguém
esconder tudo o que é, a ponto de ocultar as suas emoções, mesmo quando
enfrenta a morte.
Conduzo-nos por uma ruela sombria, intocada pela ténue luz do sol
que começa a pintar o reino de dourado. A Vulgar — Abigail — contorce-
se, tentando libertar-se do meu aperto pela enésima vez. Olho para ela, com
a minha voz cheia de energia, e digo:
— És uma pequenita bem persistente, não és?
Ela reclama, fazendo com que o seu cabelo flamejante se enrole à volta
da cara antes de lançar um pontapé sólido à canela. Teria ficado
impressionado não fosse a minha crescente frustração. Agacho-me em
frente dela para que os seus olhos verdes zangados possam encontrar-se
com os meus. Só quando ela levanta a perna para me bater mais uma vez é
que aviso baixinho:
— Se fosse a ti, não fazia isso.
Pestaneja e, quando penso que ouviu o meu aviso, pisa-me o pé antes
de tentar libertar-se do meu aperto, sem sorte. E depois começa a guinchar,
a gritar, numa tentativa de se afastar de mim.
— Caramba, assim não pode ser. — Tiro uma faca da bota e murmuro:
— Não me estás a facilitar a vida.
Ao ver a faca, engole em seco, ficando imóvel.
— Enterra-o no meu coração — pede, com os olhos fixos na faca, uma
voz delicada como só uma criança pode ter. — Ouvi a mamã dizer que
assim é mais rápido.
— Ai, sim? — pergunto-lhe calmamente. — Há outras formas bem
mais rápidas.
E eu conheço cada um delas.
Vejo-lhe a hesitação no rosto, à medida que aproximo a lâmina. Vejo o
arregalar dos olhos quando por fim se permite sentir o terror que tem
tentado desesperadamente esconder. Depois respira fundo, o que me parece
ser sinal de aceitação, antes de cerrar os olhos em frente ao rosto de um
monstro.
A faca corta com facilidade. A rapariga...
Abigail.
... respira de forma trémula.
Após um longo momento, um olho verde e lacrimoso abre-se.
Pestaneja quando as amarras escorregam dos pulsos e aterram aos seus pés.
O olhar viaja do seu coração ileso para o meu rosto antes de se fixar na faca
que tenho na mão.
— Não a vais espetar no meu coração?
Os meus lábios contorcem-se.
— Ouve-me com atenção, Abigail. Eu cortei as tuas amarras, por isso
agora tens de me fazer um favor em troca. Preciso que fiques quieta e pares
de lutar. — Examino-lhe o rosto antes de acrescentar: — Percebeste?
Não espero por uma resposta antes de recomeçar o caminho pelas ruas
e becos. Deve ter-me percebido bem, porque agora caminha direita e em
silêncio, sem fazer movimentos para se libertar do meu controlo.
Quando nos aproximamos do Scorches, avisto os dois Imperiais. Não
estão a vigiar a família certificando-se de que a mesma se dirige para o
deserto, e que não passam agora de meras figuras desfocadas a pontilhar a
areia. Espreito por detrás do muro de um beco, observando os Imperiais,
que falam calmamente entre si. Não tarda muito, estão a encolher os
ombros e a dar aos calcanhares para voltarem a descer a rua.
Típico.
Estava a contar com a previsível preguiça e incapacidade dos guardas
em terminar as tarefas. E não queria que a família banida desfilasse pelas
ruas, como é habitual, porque assim teria uma multidão para testemunhar a
minha traição.
Depois de passarem por nós, entramos na rua e dirigimo-nos para a
areia. A família segue muito à frente e, como eu próprio me sinto bastante
preguiçoso, estendo a mão para agarrar a habilidade de Flash de um dos
Imperiais. Em breve ficará fora do meu alcance, por isso apresso-me a
agarrar a rapariga e corro para o deserto.
Estávamos prestes a chegar à família quando a distância fez com que a
habilidade de Flash esmorecesse. Nathan assusta-se com o som que faço e
vira-se, com os olhos arregalados assim que vê Abigail nos meus braços.
Layla vem a correr na nossa direção e envolve a rapariga nos seus
braços numa questão de momentos, com toda a família a rodeá-las. Eles
soluçam enquanto eu me afasto, com os pés a tremer na areia que começou
a entrar nos meus sapatos.
E depois viram-se para mim, com os olhos a arderem mais do que o sol
que nos bate. Nathan só me diz uma palavra, grave e cheia de ódio.
— Porquê?
Pego na minha adaga e corto-lhe as amarras presas ao pulso num
movimento rápido, procurando o seu olhar enquanto respondo:
— Eu não mato crianças.
Hipócrita.
Como se não fosse exatamente isso que estou a fazer. Na verdade, só
estou a prolongar o inevitável. Mas, pelo menos, ficarão todos juntos —
uma misericórdia risível que eu só concedo às crianças.
Avanço pela fila de prisioneiros atordoados, libertando-lhes as mãos
atadas. Atento a cada um, a maioria ainda lavada em lágrimas, antes de me
virar para a menina. A Vulgar.
Abigail.
Dirijo-me a ela lentamente e ponho-me de joelhos, afundando-me na
areia quente para ficarmos cara a cara. Embora não diga nada, os seus olhos
falam muito. É apenas uma criança, mas vejo uma quantidade devastadora
de determinação por detrás do seu olhar.
Talvez não precises de poderes para seres poderosa.
Tiro do bolso um pequeno canivete. O cabo branco está gravado com
apontamentos a dourado, mas a sua pequena lâmina é afiada. Estendo-lhe a
mão.
— Todas as raparigas merecem algo tão bonito e mortal como elas —
digo-lhe, incitando-a a pegar na faca. Ela olha-me com cautela antes de
estender uma pequena mão para a arrancar da minha palma. — Usa-a com
sabedoria.
Passo a mão pelo cabelo e ponho-me de pé com um suspiro.
— De acordo com as nossas leis e por decreto do Rei Edric, expulso-
vos do Reino de Ilya por atos de traição.
Dito isso, vejo Nathan abraçar a mulher que, por sua vez, estende um
braço para que os filhos se aconcheguem.
Eles tornam-se num só.
E eu vejo-os a caminhar até à sua perdição.
Apesar do meu joelho inchado gritar em protesto, forço-me a andar
normalmente. Quando regresso a Loot Alley, o fim da tarde deu à rua um
brilho quente. Sempre gostei de estar aqui em baixo. Não há nada de
majestoso nos bairros de lata de Ilya e, no entanto, é refrescante de uma
forma que o palácio abafado nunca poderia ser.
Os meus olhos vagueiam enquanto mergulho no meio da multidão que
vende, pragueja e faz compras. Permito-me um momento para apreciar as
vistas e os cheiros de Loot — nenhum é muito agradável. Tudo aqui é
monótono, sem cor. Os cartazes, a comida, as pessoas. Ao meio-dia, a rua
cheira sempre a corpos suados e a comida duvidosa.
Mas apesar de tudo, Loot fervilha de vida.
A multidão empurra-me e puxa-me em diferentes direções, como uma
corrente humana, e eu luto para escapar à onda de pessoas. Finalmente
liberto-me e dirijo-me para um beco mais pequeno e menos concorrido,
onde os sem-abrigo se agacham contra as paredes, alguns a pedir dinheiro
enquanto outros se entretêm com os seus poderes. Embora os bairros de lata
sejam maioritariamente o lar dos Mundanos, vejo ocasionalmente um Elite
Defensor por entre eles. O brilho púrpura dos campos de força que
envolvem alguns chama-me a atenção, bem como um Brilhante que
manipula a luz à sua volta, criando um raio cintilante que o envolve a si e a
um gato vadio.
Continuo a andar enquanto observo as redondezas, sem prestar grande
atenção ao caminho.
E, pelos vistos, nem a pessoa que bate no meu peito com um grunhido.
Instintivamente, estendo a mão para segurar o indivíduo antes que caia
com o impacto, os meus braços envolvendo-lhe a cintura. A cintura dela. O
corpo que estou a segurar pertence, sem dúvida, a uma mulher, embora a
quantidade de longos cabelos prateados a roçar nos meus braços seja prova
suficiente.
É pequena, mas forte, mais magra do que a maioria das raparigas
magricelas dos bairros de lata. Consigo senti-lo na curva da sua cintura,
onde a minha mão se encaixa confortavelmente, embora seja evidente que a
subnutrição lhe retirou a maior parte dos músculos que evidentemente já
teve.
A palma da mão dela está encostada ao meu peito, com um anel grosso
no polegar, e depois de alguns segundos a estudá-la enquanto ela se
reequilibra, vejo-a soltar um suspiro trémulo antes de encontrar o meu
olhar.
É como se me estivesse a afogar no oceano.
Os seus olhos são da cor do canto mais profundo do mar Shallows, de
um céu limpo que começa a cair na noite, do tom subtil de um miosótis. E
como a chama mais quente, os seus olhos são azuis e repletos de fogo.
Umas maçãs do rosto salientes conduzem a umas sobrancelhas igualmente
fortes e escuras, agora um pouco arqueadas enquanto me observa.
Os seus olhos de oceano arregalam-se, e eu vejo um leve rubor subir-
lhe às faces quando se apercebe de como ainda a estou a apertar contra
mim. Ela tira a mão do meu peito e, como cavalheiro que sou, tiro as mãos
da sua cintura com um sorriso nos lábios.
— Tens por hábito cair nos braços de estranhos bem-parecidos, ou isto
é algo novo para ti? — digo, enquanto lhe observo o sorriso, que poderia
rivalizar com o meu, apesar de o lábio inferior estar com uma ferida aberta.
Interessante.
— Não — responde-me, com sarcasmo a pingar a cada palavra —, só
dos convencidos.
Tem uma certa confiança em si própria, o que me diz que houve uma
altura em que não a teve. E assim, de repente, fico irritantemente intrigado.
É óbvio que não faz ideia de quem eu sou. Perfeito.
Rio-me do comentário e passo uma mão pelo cabelo, pouco fazendo
para o domar. Observa-me com atenção, intensamente, parecendo estar tão
interessada em mim como eu nela.
Afogo-me nos seus olhos azuis. Sempre que os nossos olhares se
cruzam, é como o gelo a encontrar o fogo mais quente, como a névoa
cinzenta a subir no oceano azul profundo. Desvio o olhar por breves
instantes antes de prosseguir:
— Bem, então parece que causei uma notável primeira impressão.
— Sim, embora ainda não tenha decidido se foi boa ou má. — Os seus
lábios contorcem-se num ligeiro sorriso, do tipo que faz com que um
homem vire a cabeça só para o ver de relance, na esperança de que lhe seja
destinado. E só esse pequeno e preciso gesto diz-me que não sou o primeiro
a ser alvo de tal belo sorriso.
As minhas mãos foram parar aos bolsos e encolhi os ombros,
mostrando-me indiferente, encostado à parede suja do beco.
— Apanhei-te, não foi?
Ela ri-se, o som é quente mas agudo. Brincalhão mas doloroso, como
se a felicidade não fosse habitual para ela. A sua cabeça inclina-se
ligeiramente para trás, as ondas prateadas caindo quase até à cintura,
enquanto olha para mim, com os olhos enrugados do riso.
Inclino-me um pouco, atrevendo-me a diminuir a distância entre nós.
— Talvez devesses considerar esse pormenor antes de decidir, querida.
E com isso, fico subitamente curioso, pergunto-me de repente qual o
poder que ela detém. Tento alcançar a sua capacidade.
Nada. Não sinto nada.
Estudo-lhe o rosto enquanto procuro sentir-lhe o poder. Normalmente,
esta seria a parte em que ou atiro a rapariga para cima do meu ombro e a
levo para as masmorras para ser examinada mais a fundo, ou simplesmente
a mato no local por mera suspeita de que possa ser uma Vulgar.
E, no entanto, não me mexo.
Estás cansado. Estás ferido. Pode ser um erro.
Antes de ter tempo para deliberar o seu destino, ela dá um passo atrás
em direção ao beco cheio de gente.
— Vou pensar nisso, querido. — Sorri de novo, segurando o meu olhar
enquanto se afasta. — E obrigada por me teres salvado de bater com a cara
no passeio. Ser desajeitada é a minha maldição.
— Bem, essa tua falta de jeito encontrou-me, por isso não lhe cha‐
maria de maldição. — Amplio o meu sorrio quando a vejo revirar os olhos
antes de se dirigir novamente para Loot. Por fim, permito-me passar os
olhos por ela, reparando nas calças pretas justas e no colete cor de azeitona,
agora coberto pelo cabelo prateado. Nada no seu modo de andar me dá a
impressão de que dorme na rua, embora as roupas esfarrapadas e o lábio
inferior ferido sustentem o contrário.
Passo uma mão pelo rosto, apercebendo-me de que estive a olhá-la
demasiado tempo. Depois, viro-me e começo a descer um outro pequeno
beco, agora silencioso à luz do sol, ocupado com a ideia de ter acabado de
deixar uma Vulgar seguir em liberdade.
Mas não me distraio o suficiente para não reparar nas quatro grandes
sombras que se erguem na parede do beco ao meu lado.
— Ouve lá — diz uma voz grave de um dos homens atrás de mim. —
Tudo o que queremos é essa bonita bolsa de moedas que tens no cinto.
Entrega-a e ninguém precisa de se magoar.
Solto um suspiro, pressionando as palmas das mãos nos olhos. Este dia
está a ficar cada vez melhor.
E é aí que o sinto.
Com a minha atenção finalmente voltada para o porta-moedas,
apercebo-me de que está mais leve do que antes.
Antes dela.
Porque é que ela...
Uma sombra desloca-se e vem ao meu encontro. Viro-me, esquivando-
me ao ataque do homem antes de lhe desferir um murro no estômago. Com
um grunhido, ele dobra-se, tossindo, enquanto eu olho para os outros.
Dois Fortes, um Piromante e um Rastejador.
Apenas as Elites Defensores e Atacantes mais desesperadas encontram
o seu caminho até aos bairros de lata para bater em mendigos pelas poucas
moedas que têm. Sabendo disso, deixo o poder do Piromante infiltrar-se em
mim, sentindo as chamas a percorrerem os meus braços.
Outro Forte dirige-se a mim com um sorriso.
São sempre tão convencidos. E isto vindo de mim.
Agacho-me muito antes da colisão, o impulso fazendo-o rolar sobre as
minhas costas e aterrando com força no paralelepípedo. O meu punho
flamejante acerta-lhe no maxilar e um cheiro repugnante a carne queimada
afeta-me o nariz.
Olho para cima e vejo o Rastejador a escalar a parede, com a intenção
de saltar para cima de mim, prendendo-me ao chão. Enquanto ele se atira,
eu abandono o poder do Piromante e assumo o do Forte. O meu punho,
agora sobrenaturalmente poderoso, encontra o estômago do Rastejador em
pleno ar, e ele é projetado contra a parede antes de se estatelar no chão com
um estrondo.
O Piromante vem na minha direção, com a boca curvada enquanto
rosna.
Atira-me uma bola de fogo, e eu salto para o lado para a evitar — não
o suficientemente depressa. Praguejo quando o fogo queima a parte exterior
do meu bíceps, ardendo e tornando-me lento com a dor.
A minha mente corre quase tão rápida como o meu coração. Não
consigo aproximar-me dele quando me obriga a defender e a desviar do
fogo, mas sei que se eu retorquir, de certeza que incendiaremos uma rua.
Não estou com disposição para isto.
Deixo o poder do Rastejador literalmente rastejar até à superfície antes
de o agarrar. Desviando-me das bolas de fogo, corro encostado à parede do
beco e ao longo do edifício até ficar paralelo a ele. Num movimento rápido,
salto do muro, atirando-o ao chão, antes de trocar rapidamente de poderes
para erguer um punho flamejante na sua cara.
— Tu és o Príncipe Kai — gagueja. — O... o futuro Executor.
Com a proximidade, finalmente reconheceu-me a mim e à minha
capacidade, lamentando agora, por certo, a sua decisão de atacar o Príncipe.
— Infelizmente para ti, sim. — Recuo o meu punho e...
Uma dor lancinante atravessa-me o crânio como uma faca.
A potência do Piromante esgota-se e não consigo fazer nada mais do
que agarrar-me à cabeça, ofegante com a dor. Ao longo dos anos,
familiarizei-me com a tortura, mas isto não se assemelha com nada do que
alguma vez já tenha sofrido.
Por entre a névoa de agonia que me turva a visão, vejo uma figura alta
a entrar no beco. A sua mão está levantada na minha direção, o rosto
sombrio, os lábios finos puxados para baixo numa face cheia de raiva.
Silenciador.
Impossível.
Os meus pensamentos dispersam-se, deixando apenas a dor.
O Silenciador sufoca o meu poder. Sufoca-me. Eles podem fazer mais
do que anular uma habilidade, transformando qualquer um num Vulgar. Ele
está a incapacitar-me. A minha mente, a minha habilidade, o meu corpo.
A minha visão fica desfocada, com manchas a passar diante dos meus
olhos.
Luta contra ele.
Não posso. Vou desmaiar. Morrer. Ambos. E não há nada que possa
fazer para o impedir.
Luta. Contra. Ele.
Caio no chão, a cabeça batendo contra as pedras.
Se o Pai me pudesse ver agora...
Sinto desvanecer-me rapidamente. Mesmo com todo o meu treino,
nunca me senti tão fraco, tão impotente, tão fora de controlo. Olho uma
última vez para o homem que me está a roubar a força. Não me apercebera
de que havíamos atraído uma pequena multidão até ver os rostos na minha
visão afetada.
Eles não fazem ideia de quem eu sou.
Uma audiência inocente para me ver a mergulhar na escuridão.
Ou pior, talvez eles saibam quem eu sou. Talvez estejam a festejar ao
verem o monstro a ser finalmente abatido, a sucumbir em desgraça.
E depois algo capta a minha atenção.
Pestanejo o suficiente para ver algo a brilhar na luz atrás do
Silenciador — o sol a refletir-se num cabelo prateado.
Adena vai ficar em choque. Depois irá guinchar, e eu vou tapar os
ouvidos. Nunca roubei tantas moedas a uma pessoa. Não que tenha tido a
oportunidade, visto que a maioria das pessoas do Loot não tem mais do que
uma dúzia de pratas, quanto mais andar com elas casualmente pela rua.
Tenho a mente às voltas enquanto desço devagar as ruas de Loot, agora
envolto por sombras enquanto o sol se esconde atrás dos edifícios em
ruínas.
Abano a cabeça com espanto e dedico algum tempo a passear pelo
mercado, permitindo-me admirar o meu feito. Vários comerciantes já estão
a arrumar as bancas, a fechar as lojas. As crianças correm pela rua umas
atrás das outras, recebendo olhares de reprovação e gritos dos compradores
que ainda vagueiam por ali.
Desço um beco, perto do local onde roubei o jovem desprevenido, e
começo o caminho de regresso à Fortaleza.
Mal posso esperar para ver a cara da A...
Estanco, olhando para uma pequena multidão reunida mais ao fundo
da rua.
Deve ser um Véu.
Não é de admirar que o poder da invisibilidade possa naturalmente
ajudar alguém a fazer truques de magia, usando a sua habilidade para fazer
desaparecer cartas, tendo apenas de as segurar. Admiro a sua habilidade
para criar pequenos espetáculos traiçoeiros com o intuito de ganhar alguns
xelins.
Estou prestes a mudar de rumo quando ouço suspiros vindos da
multidão, ecoando pelos edifícios em ruínas. Não são os típicos oohs e aahs
presentes durante os truques de magia, mas suspiros assustados de choque e
surpresa. Quando a minha curiosidade leva a melhor, dou por mim atrás da
multidão, enfiando-me entre corpos suados e abrindo caminho para ver o
que se passa. Quando atento à cena diante de mim, sinto um sobressalto e
levo uma mão à boca.
É ele.
Vi-o há menos de dez minutos e, no entanto, a sua camisa está agora
agarrada ao corpo transpirado enquanto se prepara para atacar o homem que
detém por baixo com um punho flamejante. Três outros corpos estão
espalhados pela calçada, cambaleando lentamente numa tentativa de se
levantarem e fugirem.
Sei bem o que aconteceu aqui, é óbvio que estes homens tiveram a
mesma ideia de que eu quando viram a bolsa pendurada na anca do
estranho. Mas escolheram uma forma muito mais violenta de apanhar as
moedas — bem, o que quer que tenha sobrado.
Vejo o estranho dizer qualquer coisa ao homem antes de erguer o seu
punho ardente, pronto a atacar.
E do nada, algo terrível acontece.
Está a agarrar-se à cabeça e vejo a sua expressão arrogante trans‐
formar-se em agonia completa quando uma figura sai das sombras. Só lhe
consigo ver as costas, mas é alto e magro, erguendo uma mão para o
estranho a arfar de dor no chão do beco.
É impossível.
A multidão em redor parece tão confusa e espantada como eu. Com a
mão ainda estendida, o Silenciador dá pequenos passos em direção à figura
de cabelo preto agora caída no chão.
Ele está a limitar o seu poder. Ele está a paralisá-lo.
Consigo ver o estranho ainda a tentar lutar, a agarrar-se à consciência.
A visão é de repente tão assustadoramente familiar, tão doentia que quase
tropeço no homem ao meu lado.
Este estranho e o homem que me criou não são nada parecidos e, no
entanto, a imagem de um aleijado no chão parece colocá-los em pé de
igualdade. De repente, sinto-me outra vez aquela menina, que ficou parada
a ver o pai morrer debaixo de si.
Olho em volta, observando a multidão. Ninguém se mexe. Mesmo com
os seus poderes extravagantes, ninguém faz um gesto para o ajudar. Ou têm
demasiado medo ou são demasiado insensíveis.
Eu sei como isto acaba. Já o vivi.
Quando olho para o estranho, é o meu pai que vejo. Respiro fundo e
dou um passo em frente.
Não voltarei a ficar de braços cruzados. Não pude salvar o meu pai,
mas vou honrá-lo agora, salvando alguém do mesmo sofrimento.
Provavelmente vou arrepender-me disto.
Arrasto-me até à fronteira da multidão e começo a esgueirar-me por
trás do Silenciador. Consigo praticamente sentir a atenção do público a
virar-se para mim, a multidão a observar silenciosamente. Agachada atrás
do homem, vejo uma pedra grande e solta no passeio, e pego nela.
Aqui vou eu.
Levanto-me e ergo a pedra em silêncio, com a intenção de a mandar
diretamente ao seu crânio.
Não tive sorte.
Ele vira-se, os seus olhos negros fixando-se nos meus. Com a atenção
centrada em mim, a sua força esmagadora sobre o estranho diminui, e ouço-
o a arfar no chão.
O Silenciador ergue a mão esguia na minha direção, o seu cabelo à
altura dos ombros movendo-se na brisa. Está a tentar silenciar-me.
Quase que sorrio. Não teve sorte.
Não acontece nada, claro, uma vez que não tenho qualquer poder que
possa ser sufocado. Olha para a sua mão e depois para mim, confuso. A
visão é quase cómica, e aquela fração de segundo de hesitação é tudo o que
preciso.
Agarro-lhe o pulso, torcendo-lhe o braço num ângulo estranho, antes
de lhe enfiar o joelho no estômago. Ouço o ar a sair-lhe dos pulmões
enquanto agarra no braço. E com isso, a minha adrenalina entra em ação,
ansiando por uma luta.
Lembra-me de todas aquelas noites e manhãs com o meu pai. Horas de
treino no ringue de terra improvisado atrás da nossa casa.
«Tanto a tua mente quanto o teu corpo precisam de ser treinados.
Condicionados», repetia ele enquanto eu procurava desviar-me dos murros,
e lhe ia respondendo à chuva de perguntas que colocava com o intuito de
me testar. Empunhei qualquer arma que pudéssemos conseguir, enquanto o
meu pai treinava cada parte do meu ser — a minha mente, o meu corpo, a
minha habilidade de Psíquica.
Até que um dia ele já não estava lá para me treinar. Já não estava lá
para me proteger. Já não estava lá para continuar a ensinar-me a proteger-
me.
O Silenciador recupera rapidamente, dando-me um murro com o braço
são e arrancando-me dos meus pensamentos. Desvio-me e aponto-lhe um
gancho de direita ao queixo. O seu antebraço levanta-se para bloquear o
meu golpe, forçando o meu braço para baixo antes de o agarrar e me fazer
rodar de modo que as minhas costas fiquem pressionadas contra o peito
dele. E depois, a dobra do seu outro braço aprisiona-me num
estrangulamento.
Eu respiro, tentando manter a calma. Luto contra a vontade de agarrar
inutilmente o braço que me pressiona a traqueia, mas, em vez disso, atiro a
cabeça para trás, fazendo com que o meu crânio lhe bata no nariz e receba
um estalido doentio seguido do som de sangue a gorgolejar.
Sangue.
Tanto sangue a jorrar, cobrindo o chão da nossa pequena casa situada
entre a Merchant e a Elm Street. A cobrir-me a mim, ao meu pai. Não voltei
lá desde aquela noite em que fugi. Naquela noite, o Rei cravou uma espada
no peito do meu pai.
O Silenciador larga o meu pescoço e cambaleia para trás, agarrado ao
nariz. Mas eu ainda não terminei. Nem de perto.
Tiro o anel do polegar e deslizo-o para o dedo médio antes de enviar o
punho à bochecha do Silenciador, ignorando a dor que provoca na minha
própria mão. Ele tira as mãos do nariz que pinga e volta a atacar-me, mas eu
já sabia que tal iria acontecer.
Dá sempre um passo com o pé esquerdo antes de dar um murro.
Bloqueio o golpe agarrando-lhe os ombros, e acerto uma nova joelhada
no estômago. Antes que tenha recuperado o fôlego, prendo-lhe cabeça entre
as mãos, empurrando o nariz já partido para o meu joelho.
Canalizo toda a minha raiva em cada golpe.
A minha raiva contra o Rei, que se esgueirou até ao escritório do meu
pai, sentado numa poltrona almofadada, lendo noite fora.
Outro gancho de direita no queixo do Silenciador.
A minha fúria, ao recordar vividamente o som do grito do meu pai
quando a espada lhe atravessou o peito, arrancando-me do sono.
Dou um pontapé na virilha do Silenciador.
A minha raiva quando vi o meu pai a deslizar da sua adorada poltrona
para o chão, escorregando no próprio sangue.
Deixo-me cair e faço um grande arco com a minha perna, atirando o
Silenciador ao chão.
A minha raiva enquanto segurava a mão do meu pai, gritando e
implorando-lhe que acordasse.
Fiquei ali sentada a noite toda, com as calças encharcadas de sangue, a
tentar perceber o que poderia justificar a sua morte. Mas o Rei não precisa
de uma razão para matar, precisa de uma razão para deixar as pessoas
viverem.
Bato no Silenciador, mal me apercebo do que estou a fazer, enquanto a
minha mente se agita.
Eu estava entorpecida. A minha mão agarrou-se à mão fria do meu pai,
segurando-a enquanto me balançava para trás e para a frente, com os
soluços a agitar-me o corpo. Afastei-lhe os cabelos castanhos dos olhos,
endireitei-lhe as roupas ensanguentadas, sussurrei sobre todas as memórias
que partilhámos enquanto lhe implorava que voltasse para mim para
podermos construir mais.
Eu estava completamente sozinha no mundo.
E quando a luz do sol entrou pelas janelas, iluminando a cena macabra,
eu não aguentei estar mais na minha própria casa — não que tivesse
dinheiro para manter uma casa aos treze anos de idade.
Tentei enterrá-lo. Tentei tanto arrastá-lo lá para fora e dar-lhe um fim
digno, dar-lhe a honra que ele merecia. Mas eu era tão pequena, e ele tão
grande, tão pesado, tão morto. Escorreguei várias vezes na poça de sangue
do meu pai, incapaz de mover o corpo. Por isso, tirei-lhe a aliança do dedo,
coloquei-a no meu polegar e corri.
O mesmo anel que estou a usar agora para afundar a bochecha do
Silenciador.
Se o pai me pudesse ver agora...
Pairo sobre ele, a minha raiva começa por fim a desvanecer quando os
seus olhos negros se arregalam. O sangue escorre-lhe pela cara, saindo pela
boca, nariz e outros cortes espalhados. Deslizo a adaga da minha bota
enquanto algo brilha nos seus olhos.
Medo.
Ele teme o que não pode controlar.
E nesse preciso momento, eu sou tudo aquilo que ele não consegue
controlar.
Bato-lhe com o cabo da adaga na têmpora, deixando-o inconsciente.
Ainda agachada sobre ele, o meu olhar encontra o cinzento que me atenta.
As emoções atravessam o rosto do estranho à medida que me observa e
percebe o que fiz. Choque, espanto, confusão e até um certo divertimento,
cobrem-lhe o rosto. Afasto o meu olhar, devolvendo a adaga à minha bota,
enquanto murmúrios de espanto surgem da multidão. Viro-me, atónita, para
encontrar um aglomerado de pessoas expectantes. Mercadores, mulheres e
crianças observam a cena, todos a sussurrar e a apontar. De repente, três
Imperiais apressados empurram a multidão, desviando as pessoas do seu
caminho.
Eu fico tensa, preparando-me para qualquer tipo de castigo. Talvez
mais algumas chicotadas para decorar as minhas costas.
Mas eles passam por mim, pelo Silenciador inconsciente, e caem de
joelhos diante do estranho.
Isto é... interessante.
E, aparentemente, não sou a única que pensa assim. O zumbido dos
sussurros da multidão torna-se mais sonoro, permitindo-me apanhar
pedaços das conversas abafadas.
... um Silenciador aqui em Ilya...
... foi o Príncipe Kai que lutou contra quatro homens...
... lutou contra o Silenciador sem usar um poder!
Eu congelo, com o coração a bater, mal conseguindo respirar. Príncipe
Kai.
Nunca tinha visto o homem. Nunca pensei que o veria.
Também nunca pensei roubá-lo.
Mas já ouvi o suficiente sobre a sua reputação. De como é
supostamente o Elite mais forte das últimas décadas. De como será o futuro
Executor, que se diz ser insensível e calculista, mas carismático e
encantador quando lhe apetece — quando escolhe desempenhar esse papel.
Ouvi dizer que ele é um Portador raro e poderoso, capaz de sentir o
poder de outra pessoa e usá-lo, desde que esteja suficientemente perto.
Chamam-lhe o Entregador da Morte.
O príncipe tende em permanecer no conforto do seu cómodo palácio,
por isso é provável que ninguém tenha reconhecido o estranho como sendo
alguém importante. E quando sai do castelo, bem, as pessoas que visita não
costumam viver para contar a história.
Viro-me lentamente para os Imperiais que se amontoam à volta do
príncipe e vejo como ele passa por eles, irritado com o sufoco que lhe
provocam. Emite uma ordem, dizendo-lhes para levarem o Silenciador para
as masmorras e afastarem a multidão da rua. O príncipe exala autoridade e
poder a cada passo, a cada palavra. Os Imperiais apressam-se a obedecer-
lhe enquanto reúnem a multidão e a empurram de volta para Loot.
Os seus olhos encontram os meus.
Mesmo com os inúmeros ferimentos, ele avança na minha direção,
evidenciando um coxear. Um predador a perseguir a presa.
E essa é a minha deixa.
Tento passar despercebida no meio da multidão, na esperança de ser
arrastada pela corrente de corpos. Espero que se esqueça que o salvei e que
me deixe ir embora calmamente.
Não tive essa sorte.
Uma mão calejada agarra-me o braço e encosta-me à parede do beco.
Pressiona os meus pulsos contra o tijolo com as mãos fortes, inclinando-se
na minha direção.
Contorço-me no seu aperto, mas ele não se mexe. Não sei bem o que
estava à espera que ele fizesse, mas de certeza que não era isto. Talvez um
agradecimento educado — não um interrogatório contra uma parede suja.
Eu nunca o teria salvo se soubesse quem ele era. O que ele é. O que
ele faz. Sopro com a irritação e o cabelo prateado cai-me sobre os olhos,
bloqueando-me do seu olhar penetrante.
— É assim que tratas todas as pessoas que te salvam a vida ou isto é
algo novo para ti? — resmungo de dentes cerrados, em referência às suas
primeiras palavras.
— Não sei, visto que nunca ninguém me salvou antes. — Há um
vislumbre de sorriso no rosto, enquanto me oferece um breve movimento
daquela covinha irritante.
— Bem, então deixa-me ensinar-te. Quando alguém te salva a vida, um
agradecimento educado é mais do que suficiente.
— Talvez — suspira e inclina-se para mais perto —, mas não para
aqueles que me roubam.
Acho que o meu coração para de bater. O príncipe sabe que eu o
roubei.
O príncipe. O futuro Executor. O Entregador da Morte.
Estou morta como a Peste.
Mas o meu medo é rapidamente substituído por uma emoção muito
mais desejada — a raiva. Estou zangada comigo mesma por ajudar o
príncipe que mata como se nada fosse e concede os desejos do seu pai como
se fosse tudo. Estou zangada por não o achar repugnante, uma vez que o
próprio reino a que é tão leal me deixa doente com os seus valores e crenças
distorcidos. Ele é o futuro Executor, o carrasco dos inocentes, dos Vulgares,
das pessoas como eu.
Sentindo-me imprudente e bastante encorajada pela proximidade da
morte, afirmo:
— Olha, é bonito e tem cérebro. As mulheres devem gostar de ti. — O
sorriso que lhe entrego é tudo menos doce. — Sabes, darias um bom ladrão,
não fosse o facto de seres tão facilmente enganado por um.
Está a sorrir. Divertido. Arrogante como sempre.
— Sabes com quem estás a falar, não sabes?
— Um sacana convencido? — digo-lhe inocentemente antes de morder
a língua. É evidente que tenho um desejo de morte.
Mas, para minha surpresa, ele inclina a cabeça para trás e solta uma
gargalhada autêntica, um som rico como o ouro que ocasionalmente roubo e
profundo como o mar de Shallows.
— Já me chamaram coisas piores — murmura depois de se recompor,
com as mãos ainda agarradas aos meus pulsos. Depois, o divertimento
desaparece-lhe dos olhos, rapidamente substituído por uma expressão séria.
— Apesar de me teres roubado, acho que devo agradecer-te pela tua ajuda.
Quase me ri com isso. Aparentemente, salvar-lhe a vida é o mesmo
que lhe dar uma simples ajuda.
— No entanto, estou curioso por saber porque é que o Silenciador não
conseguiu sufocar o teu poder. E também porque é que eu não consigo
sentir nenhum poder vindo de ti. — Olha para mim como fez no beco
quando o roubei. Como se eu fosse um puzzle que está a tentar juntar.
Pestanejo quando por fim me dou conta.
Ele tem a rara habilidade de sentir o poder de outra pessoa e usá-lo...
Tentou sentir o meu poder no beco. Apenas para descobrir que não
tinha nenhum.
Estou morta como a Peste.
Enfrento-o, retirando o medo da minha expressão apesar dos
pensamentos frenéticos com que sou assaltada. Encolho os ombros rígidos,
esperando que a ação passe por ser muito mais casual do que parece.
— Sou uma Mundana. Uma Psíquica.
— Uma Psíquica — ecoa, com a descrença a pingar a cada sílaba. —
Diz-me, o que é que consegues fazer. — Faz uma pausa. Encolhe os
ombros. — Nunca conheci uma Psíquica. Estou curioso.
Engulo o riso histérico que ameaça sair. O futuro Executor não é
curioso, é calculista. Mas deve estar bastante divertido comigo, caso
contrário, eu já estaria morta.
— O meu poder é uma espécie de... sentido — digo facilmente,
recitando uma frase ensaiada. — Só consigo sentir as emoções fortes dos
outros, obtendo assim informação de forma rápida.
Olho-o nos olhos, desejando que acredite em mim. Na esperança de
que aceite a resposta e siga em frente com a sua vida. Esperando que me
deixe seguir em frente com a minha.
Parece estar a lutar contra um sorriso.
— Isso é mesmo assim?
— E porque não seria?
Os olhos dele movimentam-se rapidamente.
— Então porque é que eu não consigo sentir ou usar o teu poder?
Engulo, tentando parecer que não estou a esforçar-me por inventar
uma mentira credível.
— A minha habilidade é imprevisível. Nem eu consigo controlar o que
vejo ou quando o vejo. Isso, junto com o facto do meu poder ter pouca
força, deve ser a razão pela qual tu e o Silenciador não o conseguiram
detetar. É uma habilidade mental — indico, encolhendo os ombros. —
Tenho de conseguir proteger a minha cabeça daqueles que tentam entrar
nela.
Sustenho a respiração, à espera da resposta.
Exceto que não me dá uma. Fica simplesmente parado, a olhar para
mim. Eu suspiro antes de prosseguir:
— Vá lá. Pergunta a qualquer pessoa dos bairros de lata sobre mim e o
meu poder. Melhor ainda — inclino-me ligeiramente para a frente —, podes
perguntar aos teus Imperiais. Tive uma bela conversa com um deles esta
manhã.
Os seus olhos estreitam-se um pouco antes de soltar lentamente os
meus pulsos e dar um passo atrás.
— Talvez o faça. — Depois o sacana sorri. — Mas ainda gostava de
ver com os meus próprios olhos essa tua habilidade de Psíquica. Prova-a.
Se recebesse um xelim por cada vez que alguém me diz estas palavras,
já nem me dava ao trabalho de roubar. Cruza os braços sobre o peito largo,
as sobrancelhas erguidas com expetativa, enquanto diz:
— Lê-me. Ou o que quer que seja que dizes que fazes. — Depois
inclina-se, com um olhar divertido a brilhar. — Impressiona-me, querida.
— O meu poder não é um truque de festa para teu entretenimento, mas
eu alinho, Príncipe. — Devolvo-lhe um sorriso sarcástico antes de percorrer
o corpo dele com os olhos. — Nem sei se vou conseguir apanhar alguma
coisa com a imprevisibilidade da minha habilidade.
— É mesmo?
Ignoro o tom de voz irónico e penso nos calos que tem nas palmas das
mãos e nas dezenas de cicatrizes que lhe marcam os braços.
Bem, é óbvio que é um lutador. Não preciso de ser uma Psíquica para
perceber isso.
Sei que preciso de lhe dizer algo que valha a pena se houver alguma
esperança de acreditar em mim. Qualquer esperança de sobreviver a esta
conversa. Vai matar-me sem pensar duas vezes se suspeitar que sou apenas
uma Vulgar.
— Posso ver a tua mão? — As palavras são uma exigência disfarçada
de pergunta. Estendo a palma da minha mão com expetativa, o seu olhar a
desviar-se para a mão que agora lhe ofereço. Só a melhor atuação servirá ao
Príncipe.
Tem uma expressão irritantemente neutra, sem desviar os olhos dos
meus enquanto coloca a sua mão na minha.
— Sabes, nunca conheci uma ladra com maneiras. E parece que tu não
és de todo a exceção.
Bufo para o ar, para logo depois dedicar a minha atenção para a grande
mão calejada que pousa na minha.
— Há alguma razão para insistires em segurar na minha mão?
Os meus olhos vão de encontro ao seu olhar frio.
— Não te preocupes, vou tentar resistir a beijar-te os nós dos dedos,
Príncipe.
Ao mencionar os nós dos dedos, os meus olhos percorrem-nos
enquanto o seu riso me invade. Estão vermelhos e em carne crua, não só
deste combate, mas também de um anterior. O sangue escorre-lhe pelos
dedos devido às crostas reabertas, embora ele não pareça incomodado.
— Tu estiveste numa luta — digo eu. — E...
Suspira e interrompe-me.
— Eu disse-te para me impressionares, não para dizeres o óbvio.
— Não estou a falar desta luta — suspiro, deixando cair a mão dele
para gesticular à nossa volta, enquanto luto contra a vontade de lhe arrancar
aquele sorriso estúpido da cara. — Estou a falar da luta anterior a esta.
Observo-o com atenção, notando que nada na sua expressão indica se
estou certa ou errada.
Pestes, ele não me vai facilitar as coisas.
O meu olhar desce brevemente para os sapatos que usa. A esta
distância, não parecem tão brilhantes como eu pensava que eram quando o
vi no Loot. De facto, não parecem brilhantes de todo.
Areia.
Os sapatos pretos, outrora polidos, estão agora cobertos por uma fina
camada de areia, quase invisível. Como se tivesse estado a caminhar pelo...
Scorches.
E só há uma razão para o Príncipe, mais concretamente o futuro
Executor, ter ido até ao Scorches.
Ele baniu alguém. E esse mesmo alguém deu luta.
Lembro-me dos dois Imperiais que faltavam na rotação de hoje, e tudo
começa a encaixar-se.
O Príncipe precisa de guardas para arrastar os prisioneiros para o
Scorches. O triunfo começa a desabrochar no meu peito, mas eu afasto-o.
Há qualquer coisa que não faz sentido.
Normalmente, a cidade estaria a coscuvilhar durante dias sobre quem
foi banido e porquê. Os criminosos teriam desfilado pela cidade, atraindo
uma multidão para os ver caminhar até à morte. Mas eu não ouvi uma única
palavra sobre isso. Estranho, tendo em conta que costumam desfilar os
banidos, usando-os como exemplos, exibindo-os para avisar o reino sobre o
que acontece quando se cruzam com o Rei.
Ele não queria que ninguém soubesse disso.
Numa questão de segundos, tenho toda a informação de que preciso.
— Tu estavas num sítio... quente. Com areia. — Fecho os olhos e
cerro-os antes de acrescentar: — Scorches.
Volto a abri-los e deparo-me com os olhos dele a navegar pelo meu
rosto.
— Tu baniste alguém. Ou... um grupo de pessoas. — Quando digo
isto, ele fica tenso, muito ligeiramente. A sua fachada de frieza é abalada. E
só com esse pequeno gesto, acaba de confirmar que estou certa.
E que eu não devia ter conhecimento de nada disto.
— Mas... — Faço uma pausa. — Não queres que ninguém saiba, pois
não?
Não consigo reprimir um pequeno sorriso quando ele me olha,
simultaneamente impressionado e confuso.
— E de que emoção é que estás a tirar essa informação? — pergunta,
tranquilo.
Solto um suspiro antes de tentar adivinhar qual é a emoção que
percorre o corpo do futuro Executor, se é que o homem tem emoções.
— Estou a sentir culpa? Preocupação? — Ele parece ficar quieto,
dando-me uma confirmação silenciosa de que eu devo estar pelo menos
parcialmente correta. — Isto foi prova suficiente para si, Alteza?
Estou bem ciente do jogo perigoso que estou a jogar. E, no entanto,
parece que não consigo perder o meu ódio por ele e por tudo o que
representa.
Mas o sorriso que lhe levanta os lábios, diz-me que também gosta do
jogo.
— Sim, foi. Bem — ele exala, enfiando as mãos nos bolsos —, como
tão gentilmente fizeste questão de dizer antes, eu deveria agradecer-te,
novamente, por me ajudares, querida.
— Paedyn.
As suas sobrancelhas escuras erguem-se ligeiramente, interrogando-se.
— O meu nome é Paedyn, não querida.
— Paedyn — repete, com um pequeno sorriso, testando a palavra. A
sua voz profunda faz com que o meu nome soe tão rico, tão real, como se
fosse eu que tivesse sangue real a correr-me nas veias.
Ficamos a olhar um para o outro por um momento, com os seus olhos
gelados a percorrerem o meu rosto corado e a não fazerem nada para o
arrefecer.
— Sabes, posso dar-te umas luzes sobre outra forma de agradecer a
alguém por te ter salvado a vida. — Faço uma pausa, reprimindo um
sorriso. — Pagando a tua dívida.
Ele inclina a cabeça para trás e ri-se sombriamente.
— Não recebeste prata suficiente quando me roubaste da primeira vez?
— Encolho os ombros e ele continua com frieza: — É preciso lembrar-te
que disseste que um simples agradecimento seria suficiente?
— Sim, um agradecimento seria suficiente. Mas não me satisfaz. E,
bem, isso também foi antes de eu saber quem tu eras.
Começa a afastar-se enquanto tira uma moeda da sua bolsa. Lança e a
mesma vem na minha direção. Mal tenho tempo de estender a mão para
apanhá-la quando ele completa:
— Algo para te lembrares de mim.
São cada vez mais os passos que nos separam, embora os seus olhos
continuem fixos nos meus.
— Oh, e querida?
— Paedyn.
— Tu tinhas razão.
Dá mais um passo atrás.
Deixo escapar um suspiro.
— Não sei se quero ouvir o que vais dizer a seguir, uma vez que não te
dirigiste a mim pelo meu nome, que é...
— Paedyn — o som do meu nome nos seus lábios interrompe-me —,
as mulheres gostam mesmo de mim.
E num piscar de olhos, vira-se e sai do beco.
— O. Que. Raio. Aconteceu?! — Adena sacode-me vigorosamente os
ombros, fazendo-me estalar os dentes. Assim que cheguei à Fortaleza,
confusa com os acontecimentos do dia e bastante feliz por ir dormir, Adena
atirou-se a mim e exigiu todos os pormenores.
— O quê? Como é que tu...? — Tropeço nas palavras, perguntando-me
como é que ela poderia saber que hoje foi um dia diferente dos demais.
Ela interrompe-me, olhos arregalados de excitação e de perguntas sem
resposta.
— Toda a gente está a falar disso! O mercado inteiro está a falar da
rapariga de cabelo prateado que lutou contra um Silenciador! — Fico a
observá-la, estupefacta. Ela continua, as suas palavras são rápidas e sem
fôlego.
— E o príncipe? — Ela quase grita. — Salvaste o príncipe?!
— Bem, parece que ele não o quer admitir, mas sim, salvei o príncipe.
— Desta vez, ela guincha mesmo. — Mas só depois de o ter roubado.
Ela fica de boca aberta. É tão dramática que não consigo parar de me
rir.
— Tu o quê?
— Em minha defesa — digo, com as mãos levantadas em sinal de
inocência —, não sabia que era ele.
— Pae, o príncipe... — A preocupação tolda-lhe o olhar e ela pestaneja
uma dúzia de vezes antes de prosseguir: — Ele é um Portador. Será que
ele... Será que sentiu que tu não tinhas nenhum poder?
Interrompo a conversa antes que um resto de cor lhe abandone o rosto,
explicando-lhe rapidamente os acontecimentos da última meia hora. Os
olhos de Adena estão arregalados, a franja encaracolada agarrada às
pestanas, enquanto lhe conto tudo, desde o roubo do príncipe até à luta com
o Silenciador. Depois de tomar conhecimento da mentira que eu inventei ao
futuro Executor, conversámos calmamente até o beco sombrio ser engolido
pela escuridão.
— Está bem, mas será que ele é mesmo tão bonito como toda a gente
diz?
Lanço-lhe um olhar vazio que duvido que consiga ver, mas que sei que
consegue sentir.
— É essa a pergunta que estás mortinha por fazer depois de tudo o que
acabámos de falar?
— Isso não foi uma resposta — declara ela.
Deito-me nos tapetes rijos, abafando o meu gemido com um cobertor
áspero. Optar por manter a boca fechada dá a Adena a resposta de que
precisa.
Ela guincha e, desta vez, eu abafo-a com um cobertor.
Lenny fez bem em dizer-me para ficar à vontade. Estou presa neste
quarto há dois dias.
Tornou-se a minha gaiola dourada pessoal, fechando-me com luxos.
Os guardas estacionados à minha porta não me consideram importante o
suficiente e resmungam apenas umas poucas palavras sobre o cumprimento
de ordens, mantendo-me confinada no meu quarto. Por isso, percorri cada
centímetro do espaço, ocupando-me a folhear livros, a tomar banhos
quentes, a devorar refeições deliciosas.
E, no entanto, nunca me senti tão ansiosa.
A parte interna da minha bochecha está dorida, resultado de uma
mordidela incessante numa tentativa de acalmar os nervos. E, apesar de ter
dormido numa cama macia pela primeira vez em anos, estou inquieta. Não
falei com ninguém desde o meu primeiro dia aqui, nem sequer me disseram
o que raio se está a passar. Deixaram-me andar pelo chão almofadado,
preocupando-me com quem são os meus adversários e com o que me
podem fazer.
Jogos mentais, é disso que se trata.
O Rei deve achar isto cómico. Adora a ideia de nos ver ansiosos,
inquietos e presos nos nossos quartos até que diga o contrário. O objetivo é
deixar-nos nervosos, apreensivos.
Uma batida na porta faz-me estacar.
A cabeça de Lenny espreita, com um sorriso de escárnio no rosto.
— Então... como estás, Paedyn?
Pestanejo.
— Como é que eu estou? Como é que eu estou?
Ele arrasta-se mais para dentro da habitação e as suas próximas
palavras são lentas.
— OK, tenho a impressão de que tu não estás... ótima.
O meu riso é amargo.
— Podes crer. Já passaram dois dias. Onde raio é que te meteste?
— O Rei gosta de manter os concorrentes completamente isolados
durante os primeiros dias — declara com firmeza. — Mas, boas notícias,
vais jantar esta noite com os outros concorrentes, juntamente com o Rei e a
Rainha.
Engulo em seco. Após quarenta e oito horas de inquietação, vou de
repente conhecer os concorrentes que me atormentaram os pensamentos e o
Rei que me atormentou os pesadelos.
— Volto daqui a pouco para te acompanhar — acrescenta Lenny,
virando-se para a porta. — Se precisares de alguma coisa, é só gritares. Não
vou estar longe. Oh... — ele olha para mim por cima do ombro: — e talvez
queiras mudar de roupa antes do jantar.
Quando abandona o quarto, entro na casa de banho e mexo nas várias
torneiras da banheira até começar a sair água quente e fumegante. Em
poucos minutos, estou nua e mergulhada na água que agora faz espuma,
graças à quantidade desnecessária de sabonetes e sais que deitei lá para
dentro. Esfrego vigorosamente o cabelo e o corpo, deixando a minha pele
vermelha e fresca.
Há anos que não me sentia tão limpa.
A minha mente vagueia pelas muitas preocupações, a água quente
pouco fazendo para me acalmar. As Provas consomem os meus pen‐
samentos, lembrando-me do poder que me falta e da pouca proteção que
possuo. Já para não falar que, se as Provas não me matarem, ser descoberta
como uma Vulgar será razão suficiente para o fazerem.
Permaneço na água borbulhante até ficar fria como os banhos a que
estou habituada. Quando finalmente consigo reunir forças para me obrigar a
sair da banheira, estou a tremer enquanto visto um roupão de seda verde.
Volto para o quarto, abro as portas brancas do guarda-roupa gigante em
frente à cama espanto-me com a dezena de cores e padrões. Ali pendurada,
há roupa para todo o tipo de ocasiões, toda à minha disposição.
Adena morria se visse isto.
Olho fixamente para as roupas, depois para as minhas, esquecidas no
chão. Não faço a mínima ideia do que é apropriado vestir para jantar destes
e prefiro não fazer figura de parva antes mesmo de as Provas começarem.
Recordando que Lenny disse para gritar caso precisasse de alguma
coisa, tenciono fazer isso mesmo. Tenho a certeza de que o Imperial já
assistiu a diversas refeições e terá alguma ideia de qual o traje mais
apropriado.
Dirijo-me à porta e abro-a, enquanto procuro apertar melhor o cinto do
roupão. E de facto, grito.
— Lenny, que raio é que é suposto eu vestir?
E depois olho para cima.
Os meus olhos encontram-se com uns verdes brilhantes. Nunca tinha
visto o homem que se apresenta diante de mim, ter-me-ia lembrado. O seu
cabelo louro sujo e despenteado parece ligeiramente húmido, como se
também tivesse acabado de sair do banho. Tem traços simultaneamente
fortes e delicados, um nariz direito e uns lábios suaves. A sua mão está
levantada, ainda em posição de bater à porta.
Recupera mais depressa do que eu.
— Problemas com o guarda-roupa? — A sua boca transforma-se num
sorriso brincalhão, e algo nele parece tão familiar e, no entanto, não é de
todo.
— Claramente — respondo com um ligeiro sorriso. Os seus olhos
passam rapidamente por mim e só então me lembro de que estou a usar um
roupão. Aperto-o mais à minha volta, lutando contra o meu rubor.
Ele aclara a voz.
— Bem, não precisas de te preocupar. A tua criada, Ellie, virá em
breve para te ajudar a vestir e a preparar para o jantar.
Fala com um ar de autoridade, como se estivesse habituado a dar
ordens. Apesar das suas roupas simples — calças pretas finas e uma camisa
verde justa que exibe a sua figura magra — sei de imediato que este homem
não é um criado.
Um concorrente?
À ideia de ter uma empregada a servir-me, digo rapidamente.
— Não é necessário. Eu sei tomar conta de mim, obrigada.
Os olhos dele viajam do meu cabelo, ainda a pingar e emaranhado,
para o roupão de seda que tenho fechado.
— Claramente — afirma, imitando a resposta que lhe dei há mo‐
mentos, com aquele sorriso estranhamente familiar no rosto.
Penso na minha figura e quase me rio.
— Está bem, se calhar afinal é preciso uma criada.
Ele ri-se suavemente antes de gesticular para o quarto atrás de mim.
— Passei por cá para ver se está tudo adequado às tuas necessidades.
Dou por mim quase a rir mais uma vez.
— Se isto é adequado, não consigo sequer imaginar o que é consi‐
derado requintado por aqui.
Os seus olhos procuram os meus.
— Então lembra-me de te mostrar os jardins um dia destes. — Ele
acena-me com a cabeça. — Estou ansioso por te ver ao jantar, Paedyn.
Sou surpreendida.
— Estranho — digo-lhe com calma. — Não me lembro de te ter dito o
meu nome.
— Oh, não precisavas de o fazer — aquele sorriso desalinhado pro‐
vocam os meus lábios uma vez mais. — Faço questão de conhecer todas as
raparigas bonitas que salvam o meu irmão mais novo.
Pestes, ele...
— Já agora, chamo-me Kitt. — Lança-me um sorriso final antes de se
virar para o corredor, deixando-me em choque e pasmada.
Príncipe Kitt Como «futuro Rei de Ilya» Kitt.
Mas o que é que se passa comigo e com estes encontros com a
realeza?
Nunca tinha visto o futuro rei e, definitivamente, nunca pensei que o
encontraria vestida de roupão. É o herdeiro do trono, o próximo governante,
pronto para seguir as pisadas do seu vil pai. Entre ele e o seu irmão...
O irmão.
É por isso que aquele sorriso me parecia tão familiar.
Vi uma variação disso na cara do outro príncipe, embora a de Kitt
fosse brilhante e infantil, enquanto a de Kai era mais arrogante e fria.
Vejo uma rapariga pequena, de cabelo escuro, entrar timidamente no
meu quarto com um sorriso envergonhado nos lábios.
— Boa noite, menina. Serei a sua criada enquanto estiver aqui no
palácio e irei ajudá-la em tudo o que precisar. — A sua voz é suave e
delicada, mas as suas palavras ensaiadas são firmes.
— Por favor, chama-me Paedyn. — Ela olha para mim com cautela,
mas eu continuo: — Pestes, há uns dias estava a dormir num depósito de
lixo, por isso acredita em mim quando digo que não me deves chamar
menina.
Ela ri-se com isso, acenando lentamente com a cabeça em
concordância.
— ótimo — suspiro. — Agora que isso está resolvido, podes ajudar-
me a descobrir o que é suposto eu vestir esta noite?
Sorri envergonhada, parecendo aliviada.
— Acho que posso ajudar-te.
Passamos a meia hora seguinte a filtrar as roupas antes de nos
decidirmos por algo relativamente simples para os padrões do palácio,
embora continue a ser a coisa mais bonita que alguma vez vesti.
Com metade do guarda-roupa espalhado pelo chão, decidimo-nos por
um par de leggings pretas brilhantes combinadas com uma blusa verde-
escura e sedosa. É relativamente decotada, com mangas descaídas que
adivinho tocarão acidentalmente na comida. Enfio uma pequena adaga na
parte de trás das calças, e a lâmina contra a minha pele é fresca e
reconfortante.
Depois de atar as botas de cano alto, Ellie leva-me até ao toucador,
onde começa a brincar com o meu cabelo, tentando fazer com que a
esfregona húmida fique apresentável.
— Então, me... — Ela limpa a voz e tenta de novo. — Então, Paedyn
— sublinha o meu nome com um pequeno sorriso —, tens alguma ideia de
como vão ser as Provas?
— Nenhuma — ofereço-lhe um sorriso suplicante através do espelho.
— Esperava que me conseguisses dizer; aposto que ouves muita coisa pelo
palácio?
As suas palavras seguintes são pouco mais do que um murmúrio.
— Tudo o que sei é que este ano é suposto ser... diferente.
— Diferente? — Faço eco das suas palavras. — Em que sentido?
Ela encolhe os ombros, agarrando entre as mãos punhados do meu
cabelo.
— Não sei. De alguma forma, é diferente.
Tenho dificuldade em perceber como é que a Prova pode ser diferente,
visto que cada uma é tão sangrenta e brutal como a anterior. Mas a pouca
informação que tenho faz-me sentir ainda mais impreparada para o que está
para vir, e tento não pensar no mal-estar que me vai na alma.
Ellie desiste rapidamente do meu cabelo com um suspiro, decidindo
deixá-lo cair nas minhas costas. Em seguida, aplica-me pó de arroz no rosto
antes de espalhar um pouco de rímel nas pestanas.
— Pronto — diz ela, estudando-me. — Já não parece que dormiste no
lixo.
Eu resmungo:
— Pestes, olha quem está a sair da casca.
Ela começa a corar, mas uma batida na porta fá-la correr para atender.
Lenny olha para ela e sorri, o que só faz com que o seu rubor aumente.
— Estás pronta para ir, Paedyn? — Ele tira os olhos de Ellie e atenta-
me. Encontro-me com ele no corredor e começamos a nossa caminhada
pelos corredores intrincadamente decorados. Enquanto andamos em
ziguezague pelo labirinto que é o castelo, tento fazer o meu melhor para
decorar um mapa mental da sua disposição.
Uma esquerda, duas direitas, outra esquerda...
Rapidamente, estamos de volta ao grande corredor da entrada que se
estende até às portas ainda maiores pelas quais entramos pela primeira vez
há dois dias. Lenny leva-me até a outras portas que vão do chão ao teto, um
pouco mais adiante no largo corredor, enquanto murmura:
— A sala do trono. É aqui que farás as tuas refeições juntamente com
os outros concorrentes.
Antes que tenha oportunidade de fazer perguntas, acena com a cabeça
aos guardas que estão por perto, ordenando-lhes silenciosamente que abram
a porta.
E, no início, ninguém parece reparar em mim.
Estão todos sentados à volta de uma longa mesa de madeira no meio
do espaço, que destoa da beleza delicada da sala do trono. Quanto aos Elites
que a rodeiam, falam de forma tranquila uns com os outros, visto que
muitos deles provavelmente cresceram juntos.
Respiro fundo e começo a caminhar lentamente em direção à mesa.
Oito pares de olhos viram-se na minha direção, observando-me de alto a
baixo enquanto me dirijo a eles.
Tinha que ser a última a aparecer.
Puxo uma cadeira ao fundo da mesa ao lado de Ace, relutante em
sentar-me ao seu lado, mas aliviada por estar sentada para que todos possam
parar de olhar.
Exceto que não o fazem.
Sinto a sua atenção e olho para cima, incapaz de impedir que as
palavras saiam da minha boca:
— Então, o que é o jantar?
Deixo escapar um suspiro de alívio quando a rapariga sentada do outro
lado de Ace suspira e inclina-se sobre a mesa, procurando-me. O seu cabelo
vermelho-vinho brilha à luz do sol do fim da tarde que entra pela janela,
competindo com o aro de prata brilhante que tem no nariz.
— Estou sempre a fazer a mesma pergunta! — Os seus olhos cor de
mel parecem brilhar com malícia. — Chamo-me Andy.
— Paedyn — digo-lhe, oferecendo-lhe um pequeno sorriso.
— Bem, se estamos numa de apresentações — uma voz grave vem do
outro lado da mesa —, eu sou o Braxton.
Olho para cima e vejo um rapaz enorme, de pele escura, a inclinar a
cabeça na minha direção.
É um Forte.
Aceno-lhe com a cabeça quando uma voz masculina mais alta grita:
— Sou o Jax!
Procuro-o ao fundo da mesa, vendo o seu sorriso tímido. Os nomes
estão agora a ser gritados por toda a mesa. Para além de Hera e Ace, que
vieram dos bairros de lata, é óbvio que todos os outros se conhecem bem.
— Chamo-me Sadie.
Viro-me para a voz e vejo uma rapariga de pele quente a estudar-me. O
seu olhar é avaliador, curioso. A rapariga ao seu lado inclina o queixo para
cima e clareia a voz, captando a minha atenção.
— Blair. Prazer em conhecer-te, Paedyn.
Ela cospe as palavras como se lhe deixassem um gosto amargo na
boca, enquanto me observa como se eu fosse algo pegajoso na sola da bota.
Tenho a impressão imediata de que aquela rapariga não quer nada com os
Mundanos, muito menos com alguém que chama casa aos bairros de lata. O
seu cabelo lilás derrama-se sobre os ombros, contrastando com os olhos
castanhos que me fitam. Ela é deslumbrante, mas assustadoramente fria.
— O prazer é todo meu, Blair — respondo com frieza. O olhar faminto
com que me fita faz-me sentir como se eu fosse a sua próxima refeição.
E então uma voz profunda e irritantemente divertida vem da outra
ponta da mesa, mesmo à minha frente.
— E eu sou o Kai. Mas isso tu já sabias.
Ela está aqui.
Kitt estava a morrer de rir quando descobriu exatamente quem era
Paedyn Gray, no entanto, um girar de uma das minhas facas calou-o
depressa. Mas mesmo levantando as mãos em sinal de rendição, ele não
conseguia parar de falar sobre o quão engraçada era toda aquela situação.
E tem razão. É para rir. A rapariga Psíquica que, sem querer, salvou
um príncipe com o qual não se importava nada, é agora recompensada pelo
feito com uma participação forçada nas Provas que a podem matar.
E agora está sentada mesmo à minha frente.
Depois de um banho para lavar o suor e sangue que acompanham um
longo dia de treino e tortura, dirigi-me à sala do trono. Pouco depois,
Braxton entrou, seguido por Jax, que ainda estava a saltar de excitação.
O resto do grupo habitual seguiu logo depois, junto com um rapaz e
uma rapariga que eu não reconheci — os dos bairros de lata. Os lugares à
volta da mesa encheram-se, deixando os dois da frente para o Rei e para a
Rainha, e um ao meu lado para Kitt.
Mas mal nos começámos a sentir confortáveis uns com os outros e a
conversar sobre os mesmos temas repetitivos, algo acontece.
Ela acontece. Ela entra.
Sentando-se à minha frente, sem sequer olhar na minha direção, diz:
— Então, o que é o jantar?
Fala com confiança, mesmo quando os seus dedos se inquietam,
fazendo girar o anel no polegar.
Interessante.
As apresentações são rapidamente trocadas entre Andy, Braxton, Jax,
Sadie, Blair, e os recém-chegados Ace e Hera. E, no entanto, ainda nem
sequer se deu ao trabalho de olhar para mim.
Isso não é possível.
— E eu sou o Kai. Mas isso tu já sabias.
Isso chama-lhe finalmente a atenção. O canto da minha boca contrai-se
com o fantasma de um sorriso quando os seus olhos se prendem nos meus.
Tem as pestanas escuras da maquilhagem, contrastando com o azul
brilhante do olhar. Ondas suaves e prateadas caem-lhe sobre os ombros e no
rosto, e eu fico com uma súbita e irritante vontade de desviar os fios de
cabelo dos olhos, nem que seja para poder vê-los melhor.
— Sim, infelizmente, já o sabia. — Um sorriso suave contrasta to‐
talmente com a nitidez do seu olhar.
A nossa visão desvia-se e dirige-se para as grandes portas que abrem
com um gemido, e a minha atenção fixa-se agora no Pai e na Mãe que
entram. Não, o Rei e a Rainha passam por elas, com um aspeto perfeito.
Eles brilham à luz do sol que flui das enormes janelas e que circunda a sala
do trono, a luz refletida nas suas coroas e joias enquanto se dirigem para a
mesa. Estou habituado a esta formalidade, o Rei num fato fino enquanto a
rainha brilha num vestido elegante. O Pai tem um ar austero e severo,
enquanto a Mãe parece serena com o seu sorriso brilhante.
Kitt segue atrás deles, com um ar descontraído e, no entanto, com um
ar de futuro rei. Procura o meu olhar antes de se dirigir a Paedyn com um
sorriso conhecedor nos lábios. Senta-se ao meu lado enquanto o Rei puxa
uma das pesadas cadeiras de madeira para a sua Rainha.
— Bem-vindos à Sexta Edição das Provas da Purga — declara junto da
mesa.
A Mãe tira uma madeixa de cabelo preto dos olhos e completa: —
Parabéns a todos por terem conseguido chegar até aqui.
— É uma honra ser escolhido — diz o Pai. — Uma honra para o vosso
reino, para a vossa família e para vocês próprios.
Repete as palavras que me foram incutidas na cabeça desde antes de eu
as conseguir entender.
— Sugiro que gastem o vosso tempo de forma sábia para se prepa‐
rarem para as Provas. Nunca se sabe o que pode acontecer. — Pousa um
olhar atento em mim, lembrando-me silenciosa e sem subtilezas, da minha
missão de vencer. — Aconselho-vos a usarem o tempo que vos resta antes
da primeira Prova, bem como cada semana entre as seguintes, para treinar.
E para ver os vossos adversários a treinar.
Quase consigo ouvir as palavras não ditas. Saber como a tua con‐
corrência luta, aprender a ler os seus movimentos e manobras, pode ser a
diferença entre a vida e a morte.
— Para além de praticarem os vossos passos de dança! — diz a Mãe
calorosamente, pois sempre gostou muito mais dos bailes do que do
derramamento de sangue das Provas.
O Pai sorri para a mulher. É um gesto genuíno, algo reservado apenas a
ela.
— Chega de falar das Provas. Vamos comer.
E com isso, começa a procissão de criados, todos carregando bandejas
fumegantes para a mesa. Dezenas de pratos cheios de comida são postos à
nossa frente. O peru deliciosamente temperado com leguminosas estão a ser
colocados nos pratos. A própria Gail traz um tabuleiro com pães doces,
colocando-os à frente de Kitt e de mim para nos provocar. Pisco-lhe o olho
enquanto ela se afasta, revirando os olhos, antes de sair da sala.
Eu e o Kitt conversamos para passar o tempo, enquanto passamos os
tabuleiros de comida de um lado para o outro, afastando os criados quando
se oferecem para nos servir. Estou a meio de empilhar peru no meu prato
quando atento em Paedyn, sentada de uma forma tensa à minha frente. Tem
a boca bem fechada, como se estivesse a tentar ao máximo não a deixar
cair. Curioso, olho para Hera, que está com um olhar de espanto semelhante
no rosto. Até Ace, que parecia ser aquele mais parecido com os Elites do
palácio, não consegue deixar de examinar silenciosamente a quantidade de
comida colocada à nossa frente. Regresso a Paedyn, que está demasiado
ocupada a pestanejar para se dar ao trabalho de comer. Só posso imaginar o
que lhe está a passar pela cabeça. Provavelmente em como está enojada
com a quantidade de comida que desperdiçamos enquanto ela mal tinha o
suficiente para sobreviver. Vejo-lhe uma raiva mascarada a crescer no rosto;
algo me diz que ela prefere passar fome esta noite.
E isso não pode acontecer.
Lá porque estamos a competir um contra o outro, não quer dizer que
eu queira ganhar-lhe por defeito, porque ela morreu à fome. Por isso, espeto
um pedaço de peru no meu garfo, atravesso a mesa e coloco-o no prato
dela.
Os seus olhos saltam para os meus, o rosto num cruzamento entre
irritação e choque.
— Gostas de feijão? — pergunto-lhe casualmente e, como ela não
responde, coloco-os também no prato. — Bem, acho que vou descobrir.
Inclino-me sobre a mesa, acrescentando batatas à pilha crescente de
comida, enquanto murmuro:
— Também me vais obrigar a dar-te comida à boca, ou consegues
alimentar-te sozinha? — E dito isto, sorrio-lhe de uma forma que, sem
dúvida, a fará querer atirar os feijões, e um murro, à minha cara.
Os seus olhos ardem como chamas azuis, praticamente repreendendo-
me. Mas, tal como eu suspeitava, Paedyn pega no garfo com relutância e
enfia alguns feijões na boca, ainda de olhos postos em mim. Recosto-me na
minha cadeira, sorrindo. Ela sabe que eu iria, de facto, dar-lhe comida à
boca caso não comesse, e isso ela não poderia permitir.
Os minutos seguintes são preenchidos com sons de talheres a tilintar e
conversas dispersas. Blair vira-se para mim e para Kitt, a falar de sabe-se lá
o quê. Em geral, Kitt é um homem muito melhor do que eu, e sobretudo
quando se trata dela. Fala casualmente enquanto eu presto atenção à comida
que tenho à frente.
A voz do Pai interrompe de súbito a conversa.
— Então — levanto o rosto e vejo que ele está a olhar para Paedyn,
intrigado —, esta é a rapariga que te salvou no beco?
Só depois de me ter roubado.
Consigo sentir os olhares perscrutadores que se focam em nós, todos a
ouvir a conversa. Paedyn larga calmamente o garfo e olha para o Rei com
tanta intensidade que, por breves instantes, me faz recordar de Blair. Há
uma certa emoção a toldar-lhe o rosto quando atenta ao Rei — uma emoção
que está a tentar esconder. Não me dá tempo para decifrá-la, pois num ápice
transforma as suas feições em neutralidade.
— Sim, salvei-lhe a vida. Não é verdade, Vossa Alteza? — Ela vira a
atenção para mim, o seu sorriso transformado num desafio.
— Afinal, conheces o meu título. — O sarcasmo cobre as minhas
palavras enquanto um sorriso brinca com os cantos dos meus lábios. —
Sabes, eu não tinha a certeza. Porque lá no beco estavas a chamar-me algo
muito, muito diferente.
O seu sorriso é irónico.
— Tenho a certeza de que o nome era justificado — uma pausa. — E
preciso. — Um sorriso. — E merecido.
Sacana convencido.
Os seus olhos, o seu sorriso, o seu tom — tudo nela grita as duas
palavras.
Grita o título que me concedeu.
— E qual é mesmo o teu título? A Salvadora Prateada? — solto uma
gargalhada tranquila. — É adequado. Sei o quanto aprecias prata.
O sorriso frio de Paedyn fraqueja quando percebe o significado das
minhas palavras. Ela está irritada. Eu estou a divertir-me.
Os sentimentos da Mãe refletem claramente os de Paedyn, porque não
hesita em lançar-me um olhar antes de dizer:
— Obrigada, Paedyn, por ajudar o Kai. Não passou despercebido por
nós, nem pelo povo, já que eles te escolheram para as Provas.
Paedyn inclina a cabeça e sorri-lhe suavemente, embora não cruze
olhares.
Ao som da voz do meu pai, o sorriso foge-lhe do rosto.
— Devo dizer-te que nunca tinha conhecido uma Psíquica. — O Rei
observa-a com curiosidade. — Os teus poderes são... intrigantes.
Paedyn relaxa e ri ligeiramente.
— Sim, bem, o meu pai disse que é um dom raro, mas pequeno, que
poucos Mundanos possuem. Suponho que a parte mais útil da minha
habilidade é que não sou afetada pelos Silenciadores, tal como o seu filho,
ao que parece. — Uma madeixa de cabelo prateado cai-lhe para o rosto e
ela coloca-a atrás da orelha, distraidamente, enquanto os restantes convivas
retomam as conversas anteriores, aparentemente aborrecidos por ouvir esta.
— Ah, sim, o teu pai. Adam Gray era um grande Curandeiro. Um
homem muito culto — diz o Pai, pensativo.
Paedyn fica rígida no seu lugar, mas procura aclarar a voz:
— O Rei conhecia o meu pai?
— Sim, conhecia. Vinha ao palácio durante a época da febre para
ajudar os nossos médicos da corte quando havia demasiados doentes para
tratar.
Paedyn acena com a cabeça.
— Sim, lembro-me de ele fazer isso todos os invernos.
A conversa é interrompida quando os criados voltam a entrar na sala
para levantar a mesa. Cirandeiam pelo espaço, pegando nos pratos e nos
talheres antes de desaparecerem no corredor, deixando uma mesa imaculada
atrás de si.
O Pai e a Mãe levantam-se.
— Descansem um pouco, Elites. O vosso treino começa amanhã.
Com as últimas palavras do Rei, viram-se e saem pelas grandes portas.
Passa um momento de silêncio até que as cadeiras comecem a raspar
no chão de mármore e toda a gente a levantar-se. Três Imperiais dirigem-se
para os novos Elites, prontos a escoltá-los de volta aos quartos.
Vejo um guarda jovem e ruivo aproximar-se de Paedyn com um
sorriso. E, de repente, estou a meter-me entre eles antes de me conseguir
impedir.
— Eu tomo conta da situação.
Ele olha para mim, confuso.
— Senhor, tenho de a escoltar...
— Eu sei. E sou perfeitamente capaz de me certificar de que ela vai
para o quarto, não concordas?
— Sim, Vossa Majestade. — E com isso, faz uma ligeira vénia a
Paedyn e sai da sala.
Eu próprio a observo, o olhar de confusão no seu rosto espelhando o
do rapaz. Depois viro-me e saio pelas portas, sem esperar que ela me
apanhe. Ela suspira antes que o bater rápido das suas botas de salto alto
comece a ecoar atrás de mim.
— Porquê a súbita vontade de ser um cavalheiro? — pergunta, ríspida
atrás de mim. Paro e viro-me, observando-a enquanto ela caminha na minha
direção, prendendo o meu olhar no dela por breves instantes.
— Não te habitues — digo-lhe com um sorriso rápido. — O meu
quarto fica em frente ao teu, por isso mais vale ser um cavalheiro uma vez
que seja. — Enfio as mãos nos bolsos e recomeçamos a andar, desta vez
com ela ao meu lado.
— E porque é que um príncipe ficaria na ala dos concorrentes do
palácio?
— Bem, caso não tenhas reparado, também sou um concorrente nas
Provas.
Ela solta uma gargalhada seca.
— Sim, reparei por acaso. Mas eu pensava que era suposto o príncipe
ter um grande quarto cheio de criados que o servissem de mão em mão... —
A sua pergunta é acusadora, as palavras cheias de veneno.
— Não te preocupes, também tenho um desses — respondo com
frieza, ouvindo-a a ridicularizar-me. Só tem razão em parte. Eu tenho um
grande quarto, mas recuso-me a deixar que os criados me sirvam. — Todos
os concorrentes devem ter as mesmas condições de vida antes e durante as
Provas. Assim, ninguém pode acusar ninguém de ser favorecido ou de estar
em vantagem.
Paramos à porta do quarto que lhe foi atribuído, e ela encara-me.
Parece prestes a rir outra vez, mas quando fala, as suas palavras são
amargas:
— Só porque estamos todos em quartos semelhantes, não quer dizer
que os outros não tenham vantagem.
Fico em silêncio enquanto a examino por um momento. Se eu fosse
um Mundano atirado para as Provas, confrontado com algumas das
habilidades mais fortes que os Elites podem ter, duvido que me sentisse de
forma diferente. O seu poder não é algo que possa usar como arma, como
os restantes concorrentes. É obrigada a confiar na sua própria força e não na
força de uma habilidade.
De repente, lembro-me de como lutou contra o Silenciador, tão hábil e
tão segura de si. Talvez tenha mais hipóteses de sobreviver a estes jogos do
que aquilo que pensa.
Vejo o seu olhar passar por cima do meu ombro até à porta que estou a
bloquear. Abre a boca para dizer qualquer coisa, chamando a minha atenção
para a fenda cicatrizada no seu lábio inferior.
Num impulso que não consegui ignorar, os meus dedos agarram-lhe o
queixo e levanto-lhe o rosto em direção ao meu. Está demasiado atordoada
para se mexer, e eu aproveito-me disso.
— Pensava que conseguias evitar um golpe direto como este. Parece
que não és tão boa lutadora como eu pensava. — Encolho os ombros e
inclino-lhe a cabeça para a luz, examinando casualmente o corte feio no
lábio.
Porém, já não está ali parada, atónita, imóvel e silenciosa.
Num movimento rápido, agarra o meu pulso por baixo do queixo e
torce-o para fora com um puxão, fazendo-me subir uma dor aguda pelo
braço. Depois agarra na minha camisa e empurra-me contra a parede. A
mão que tem livre encontra a adaga presa à minha anca e tira-a para fora,
encostando a lâmina afiada à minha garganta.
— Gostarias de descobrir até que ponto sou uma lutadora habilidosa?
— Paedyn mira-me com frieza, com o divertimento a dançar-lhe no olhar
perante a situação em que me encontro. Adora ver o príncipe encostado a
uma parede. E não se trata de um príncipe qualquer: o futuro Executor.
Encosto-me à pedra fria, rindo-me sombriamente enquanto meto as
mãos nos bolsos. Isso só a faz pressionar a lâmina com mais força contra a
minha garganta, ameaçando tirar-me sangue.
É uma coisinha malvada, não é?
— Cuidado, Alteza. Não gostaria de derramar sangue real. — Está a
gozar comigo e é uma tentativa adorável.
Inclino-me para ela, deixando o aço afiado da minha própria lâmina
morder-me a garganta, desenhando uma linha fina de sangue quente.
— Cuidado, querida. Esqueces-te que derramar sangue é o que eu faço
melhor.
Ficamos a olhar um para o outro.
Está a olhar para mim com uma expressão que não consigo ler, mas
recupera rapidamente, desviando a conversa com facilidade.
— Um dos teus Imperiais fez-me isto. — Tira a mão da minha camisa
e aponta para o lábio: — Alguma vez lhe perguntaste sobre mim? De
certeza que teria muito para contar.
É claro que já o havia feito, e ele tinha muito para contar. Depois de
falar com cada Imperial designado para a rotação da manhã, um deles
mencionou o seu mais recente encontro com a Psíquica. O desdém do
homem por Paedyn era mais do que óbvio quando recapitulou o que ela
tinha sentido dele.
E, no entanto, não mencionou como lhe tinha batido.
Talvez lhe tire uma das mãos, para que nunca mais tenha a opor‐
tunidade de tocar numa mulher.
— Falei com ele, sim — digo baixinho. — Mas parece que vamos ter
outra conversa num futuro próximo.
Os olhos de Paedyn percorrem-me o rosto, fazendo-me sentir anormal
e irritantemente ansioso. Aclaro a voz e olho para baixo, para a adaga que
ela ainda segura firmemente contra o meu pescoço.
— Pensei que tínhamos estabelecido que tu sabias quem eu sou,
correto? — O canto dos meus lábios torce-se para cima enquanto o digo,
lembrando-me do nosso encontro no beco. Quando a tinha encostada a uma
parede.
— E tínhamos — confirma-me, tão próxima que agora posso estudar
todos os diferentes tons de azul da sua íris. — Já o disse antes, e vou dizê-lo
de novo. Um sacana convencido?
Eu rio-me, afundando ainda mais a adaga na minha carne.
— Além disso, não importa quem tu és. — Baixa os olhos antes de se
fixar novamente em mim. — Agora estamos a competir uns contra os
outros. Não há favoritismo, lembras-te? Tu próprio o disseste.
Está bem. Eu alinho.
Tiro uma mão do bolso e passo-a pelas suas costas, lentamente,
mantendo o contacto visual. Ela atenta-me, confusa, embora segure a faca
com firmeza. Ambos sabemos que ela não me vai cortar a garganta, por isso
não me preocupo nem um bocadinho enquanto continuo a passar o braço
por trás dela até os meus dedos roçarem no cabo frio de uma adaga enfiada
na faixa das suas calças.
Eu sabia que estava lá, vi o sol a brilhar no cabo de prata quando
Paedyn se levantou da mesa de jantar, virando-me as costas.
Sorrindo-lhe, deslizo a adaga devagar, os meus dedos roçando ao de
leve na parte inferior das suas costas. Acho que ouço um leve suspiro soltar-
se dos seus lábios quando lhe pressiono a própria faca na garganta,
espelhando o que ela está a fazer comigo.
— Tens razão. Agora estamos a competir um contra o outro. — Rio-
me suavemente.
Ficamos de olhos presos durante largos instantes. O seu olhar é
inabalável, fazendo-me lembrar o oceano calmo, a calma antes da
tempestade.
— Guarda as minhas palavras, Príncipe, eu serei a tua ruína.
Inclino-me, ignorando a faca contra a minha garganta enquanto
murmuro:
— Oh, querida, estou ansioso por isso.
Passa demasiado tempo. E depois...
Surpreendentemente, deixa cair aos poucos a faca da minha garganta.
Eu também baixo a minha — sua — adaga e coloco-lha na mão
expetante e estendida. Paedyn move-se, para abandonar-me a mim e a esta
conversa, mas eu agarro-lhe o pulso. Ela fica imóvel ao toque, os meus
olhos presos nos dela enquanto lhe guio a mão, e a faca que agarra, até ao
meu peito. A lâmina forrada com o meu próprio sangue encontra o tecido
da minha camisa, e os nós dos seus dedos tocam-me no peito enquanto lhe
limpo a adaga.
— Lá se vai a ideia de não derramar sangue real — suspiro.
Ela exala lentamente.
— Ia acontecer mais tarde ou mais cedo.
— Então, devo habituar-me a isto?
— Já devias estar à espera disto.
Eu sorrio.
— Então, fico ansioso pelo nosso próximo encontro.
Pisco-lhe um olho e ela revira os dela antes de voltarmos a guardar as
respetivas adagas. E depois passa pelo meu braço e dirige-se para à porta.
— É sempre um prazer — afirmo, encaminhando-me para o meu
quarto, do outro lado do corredor.
— Infelizmente, receio que não possa dizer o mesmo. — Vejo-lhe um
sorriso antes de entrar no quarto, fechando a porta atrás de si.
Mal me fecho começo a andar de um lado para o outro no quarto que,
por acaso, fica mesmo em frente ao dela. Levo os dedos ao pescoço,
sentindo o calor pegajoso do meu sangue.
Esta rapariga pode ser a minha morte. Literalmente.
O suor escorre-me pela testa e agarra-se às pestanas.
Estou tão fora de forma.
Após três longos dias de treino, o meu corpo está dorido e grita-me
para parar. Os meus anos de vida nas ruas apresentam as suas
consequências, deixando-me mais fraca do que eu pensava, apesar de correr
regularmente dos Imperiais e de escalar chaminés.
Baixo a cabeça e levo a bainha da minha camisola manchada de
sujidade ao rosto, soprando enquanto limpo as gotas de suor. Estou imunda.
E, infelizmente, é o mais normal que me sinto desde que cheguei ao
palácio.
Uma árvore alta e almofadada ergue-se diante de mim, com as marcas
dos meus punhos ainda visíveis nas almofadas ásperas que envolvem o
tronco. Já estou no pátio de treino há horas, juntamente com os outros
concorrentes, todos a fazer vários exercícios ou a lutar uns contra os outros.
O pátio não tem nada a ver com o ringue rude e lamacento onde cresci
a treinar. Viro-me e encosto-me à árvore almofadada, observando a dúzia de
grandes ringues que pontilham o pátio relvado, onde a maior parte da minha
competição reside.
Cada um dos anéis é acompanhado por amplas estantes de madeira
cheias de armas e escudos, tudo novo à espera de ser usado. Nunca vi nada
assim. Tantas armas à minha disposição. Tantas armas a serem
desperdiçadas.
Percorro o campo de treinos com o olhar. Para onde quer que me vire,
os meus colegas concorrentes estão a exercitar-se, a alongar-se, a treinar e
estão tão sujos e encharcados de suor como eu. Todos eles parecem evitar
treinar com as suas habilidades por enquanto, provavelmente à espera de
exibir os seus poderes nas entrevistas.
Só de pensar, fico ansiosa a rodar o anel no meu polegar. Amanhã, por
esta altura, estaremos a exibir-nos ao reino de Ilya enquanto tentamos
angariar o seu apoio. Do pouco que aprendi com o Ellie, as entrevistas
servem para o povo escolher quem quer apoiar nas Provas. É a altura
perfeita para os Elites exibirem a sua força, falarem de si próprios e
tentarem ganhar os votos do povo.
E é precisamente isso que tenho de fazer: conquistar as pessoas. As
pessoas desempenham um papel vital nestes jogos destorcidos, e quanto
mais votos um concorrente tiver, mais aumenta a sua pontuação.
Suspiro e inspiro o ar húmido, que cheira a relva fresca, sujidade e
mais do que uma pitada de suor. Estou aliviada por estar a treinar, por estar
a fazer algo com as minhas mãos e assim evitar que a minha mente divague
para pensamentos perigosamente prejudiciais.
Como as Provas e a possibilidade — a probabilidade — da minha
morte iminente.
Sou arrancada dos meus pensamentos quando atento a uma pele
bronzeada. Com o sol da tarde a fustigar-nos, os rapazes há muito que
abandonaram as suas camisolas suadas. E isso é uma distração... irritante,
para dizer o mínimo.
Kitt e Kai rodeiam-se um ao outro num ringue, sorrindo enquanto
trocam palavras, parecendo estar a treinar verbalmente antes de passar à
parte física. Os irmãos parecem confortáveis, satisfeitos com este momento
em conjunto.
Embora o futuro rei não seja um concorrente nas Provas, isso não
parece impedi-lo de treinar e comer connosco como se de um nós se
tratasse. Mantive-me afastada tanto dos irmãos quanto dos meus outros
concorrentes, embora a tensão entre todos cresça a cada dia que passa.
O meu olhar vagueia de volta para os rapazes, traçando a tatuagem
escura idêntica situada mesmo por cima dos seus corações. Mesmo a esta
distância, consigo distinguir o símbolo de força de Ilya gravado na pele.
O brasão em si é simples, consistindo em espirais grossas todas ligadas
num diamante lateral. Supostamente, representa os diferentes poderes e a
forma como todos trabalham em conjunto, ao mesmo tempo que representa
os quatro pontos de referência que rodeiam Ilya. Há o Monte Plummet a
norte, o Mar Shallows a oeste, o Deserto Scorches a leste e a Floresta
Whispers a sul — todos juntos criam um diamante à volta da cidade.
Pestanejo e afasto o olhar dos irmãos antes de me voltar para a árvore,
sentindo novamente a urgência de bater em alguma coisa. Rodo e dou um
pontapé sólido nas almofadas grossas, que ressoa com um estrondo
satisfatório. O suor escorre-me pelo corpo em gotas, mesmo depois de me
ter despido até ficar apenas com uma camisola fina, agora húmida e
agarrada ao corpo de forma desconfortável. As minhas calças justas e pretas
estão quentes ao toque sob o sol, e enrolo-as até quase aos joelhos, tentada a
arrancá-las.
Dou golpes na árvore até os nós dos dedos ficarem vermelhos e em
carne viva, antes de encostar a minha testa suada à almofada, ofegando
ligeiramente. O tapete abafa o meu gemido antes de me obrigar a caminhar
até à prateleira de armas mais próxima.
Os meus dedos dançam ao longo das belas facas de arremesso que
estão inocentemente na prateleira. A suavidade e a nitidez destas facas dão-
me vontade de as atirar. Volto a minha atenção para um alvo a dez metros e
começo a enterrar fundo várias facas na madeira áspera. Entro num ritmo
cadenciado, deixando o meu corpo relaxar com cada faca que deixo cair.
Sinto-me concentrada. Sinto-me atordoada.
Sentia falta disto.
Deixo a minha mente vaguear, observando como as facas atingem o
alvo. De repente, estou de novo no meu quintal, a atirar pequenas lâminas
contra a casca rugosa de uma árvore. O meu pai anda a passos largos atrás
de mim, a fazer-me perguntas. Perguntas sobre o que me rodeia, sobre
coisas que devia observar em segundos, mesmo enquanto a minha mente se
concentra nas lâminas a afundarem-se no alvo.
Quase consigo ouvir os passos do meu pai na terra atrás de mim.
O ruído familiar de uma faca a cortar o ar faz-me baixar instin‐
tivamente, sentindo o sussurro de uma lâmina passar por cima e vendo-a
afundar-se no alvo.
Um belíssimo lançamento.
Mas estou demasiado irritada para o admirar. Levanto-me e viro-me,
de olhos fixos nos cinzentos a alguns metros de distância.
É a imagem perfeita da inocência: as mãos já nos bolsos, o cabelo a
esvoaçar ao sabor da brisa e um sorriso preguiçoso nos lábios.
— Bons reflexos, Gray.
Aquele sacana conven...
— Mas que raio se passa contigo? — Vou em direção a Kai, dimi‐
nuindo a distância entre nós numa questão de segundos. — E se eu não me
baixasse?
Ele encolhe os ombros. Encolhe os ombros.
— Então, teria menos concorrência com que me preocupar.
— Então, estás a admitir que eu sou uma ameaça para ti?
— Eu nunca disse isso.
— Mas insinuaste.
— Não te enganes a ti própria.
O meu peito incha enquanto mantenho o seu olhar. Uma única covinha
aparece quando me olha e o canto da sua boca inclina-se. E com isso, a
vontade de lhe bater só aumenta.
— Eu sabia que te baixarias, Gray — murmura, com os lábios a
tremerem com o uso do meu apelido. Um arrepio percorre-me a espinha,
apesar do sol quente nas costas, quando ele se inclina ainda mais para me
sussurrar algo ao ouvido.
Mas nunca descobri o que é que ele queria dizer.
Uma pontada de dor perfura-me o ouvido e eu sobressalto-me em
choque. Ouço o estrondo de uma faca a atingir o alvo atrás de nós e olho
por cima do ombro de Kai para ver Blair, de mão estendida. Um sorriso
torce-lhe os lábios vermelhos, mas os seus olhos escuros saltam entre mim e
Kai.
Levo uma mão à orelha, e os meus dedos ficam rapidamente cobertos
de sangue. Ela atirou a faca para o alvo, mas não antes de me deixar com
uma marca.
Ela cortou-me. De propósito.
Um músculo franze-se no maxilar de Kai, a única indicação do seu
temperamento. Continua a pairar sobre mim, recusando-se a olhar para
Blair, enquanto me bloqueia com o seu corpo.
— Estamos territoriais, Blair? — pergunto-lhe, vendo-a através de Kai.
Claramente não gostou do facto de o príncipe estar a dar atenção a outra
pessoa, mesmo que essa atenção fosse ele a atirar uma faca à minha cabeça.
Talvez goste disso.
Ela ignora a minha pergunta, com uma voz presunçosa.
— Só pensei em marcar o meu alvo antes de começarem as Provas.
E depois afasta-se, deixando-me a olhar para ela. Engulo, sentindo-me
mais pequena e mais fraca do que alguma vez me senti. A exibição de Blair
foi um lembrete de como seria fácil para qualquer um destes Elites acabar
com minha vida de Vulgar.
Ela marcou-me.
— Estás a ficar com sangue no cabelo, querida.
Olho para Kai, que continua a pairar sobre mim, agora a avaliar a
minha ferida. Levanto-me, com a intenção de pôr o cabelo atrás da minha
orelha ensanguentada, quando a mão me prende.
— Não faças isso — suspira, os seus calos a tocarem-me na pele en‐
quanto puxa a minha mão e acena com a cabeça para os meus dedos
ensanguentados. — A não ser que queiras acrescentar mais sangue ao
cabelo?
Tento não encará-lo, mas isso só faz com que o seu sorriso aumente.
— Porque é que estás a...?
— Ser um cavalheiro? — conclui, suspirando como se ele próprio não
soubesse a resposta. — Digamos que sei como é difícil tirar o sangue do
cabelo, por isso não invejo a tua sorte.
Os seus olhos percorrem a minha ferida e o sangue que sinto a pingar.
Depois, larga-me o pulso e coloca-me a melena de cabelo para atrás da
orelha, murmurando:
— Olha o estás a fazer, Gray.
Pestanejo para ele, perguntando-me vagamente se uma ferida tão
superficial me terá feito perder sangue suficiente para ter alucinações.
Alguma coisa deve estar terrivelmente errada, porque o futuro Executor
acabou de me ajeitar o cabelo para não ficar mais ensanguentada do que já
estou.
— Vira-te.
A ordem faz-me voltar à realidade.
Aqui está o futuro e adorável executor.
As sobrancelhas dele erguem-se com expetativa, à espera que eu
obedeça à ordem. Em vez disso, as palavras que saem da minha boca são:
— E porque é que eu faria isso?
A sua voz é seca.
— Porque eu te disse para o fazeres.
— E isso é suposto significar alguma coisa?
Estou a jogar um jogo muito, muito perigoso.
Ele esboça um sorriso.
— Pronto. — E depois, de repente, está a dar um passo atrás, mur‐
murando: — Coisinha teimosa.
Dedos ásperos passeiam-me pela minha nuca.
A minha respiração fica presa quando Kai puxa casualmente o meu
cabelo para as suas mãos, penteando os fios para fora do meu rosto e para
longe da orelha ensanguentada.
— O que é que tu...? — Paro um pouco, sentindo o padrão que ele está
a tecer gentilmente. — Tu estás... a fazer-me tranças no cabelo?
— Porque é que pareces tão surpreendida? — pergunta ele sim‐
plesmente, sem se aperceber de que a minha boca está aberta em choque. A
sua voz com um tom convencido e arrogante continua: — O quê, precisas
que eu te ensine a fazê-lo?
— Não, não preciso que me ensines... — Faço uma pausa, recuperando
o fôlego. — Como é que sabes fazer tranças?
Ele solta uma gargalhada que me faz mexer os pelos da nuca.
— Dizes isso como se fosse suposto ser difícil.
Ficamos em silêncio por uns instantes, e o roçar dos seus dedos pelas
minhas costas faz-me ficar quieta. Aclaro a voz:
— Pensei que me tinhas dito para não me habituar a que fosses um
cavalheiro?
Quase consigo ouvir o sorriso na sua voz quando responde:
— E continuo a defender essa afirmação.
— Então porque estás a fazer isto?
Ele solta um suspiro. Os dedos caem para o meu braço, quase fazendo-
me saltar com o toque repentino dos seus calos. Pararam na correia que
tenho no pulso, antes de a tirar e começar a prender-me o cabelo.
— Pronto — diz ele, postando à minha frente enquanto coloca a longa
trança por cima do meu ombro. Depois dá-lhe um puxão, admirando o
trabalho com um sorriso que mostra as suas covinhas.
Olho para a trança e solto um suspiro ao ver vários cabelos soltos.
— Pensava que isto não era difícil para ti? — rio-me ao comentar. —
Sabes que é suposto colocar o cabelo todo na trança, não sabes?
— É uma forma estranha de agradeceres, mas suponho que é o melhor
que vou conseguir. — Ele aproxima-se, com os lábios erguidos num sorriso
irónico. — Talvez, se não me deixas ensinar-te a fazer tranças, me deixes
ensinar-te a ter algumas maneiras.
Quase que me engasgo com a ideia do futuro Executor me ensinar
boas maneiras. Os seus olhos percorrem a minha orelha antes de se afastar,
metendo as mãos nos bolsos.
— Devias tratar disso antes das entrevistas de amanhã — avisa
casualmente, acenando com a cabeça para a minha ferida. — Não queremos
que a marca da Blair te deixe cicatrizes.
A mordacidade súbita dessas palavras deixa-me atordoada, enquanto o
estudo no silêncio crescente.
— Não — consigo finalmente dizer. — Não queremos isso.
Examina-me antes de se voltar, lançando um sorriso por cima do
ombro.
— Boa sorte para amanhã, Gray.
Nem me dou ao trabalho de lutar contra o meu sorriso.
— Se eu tivesse maneiras, também te desejaria sorte, Príncipe.
Mas já me informaste que não as tenho.
Ele ri-se, e o som percorre-me a espinha enquanto continua a afastar-
se. Sem ele para me distrair, a minha orelha arde furiosamente enquanto
começo a caminhada de regresso ao castelo com um pensamento a ocupar-
me.
Nunca respondeu à minha pergunta.
O aço frio do anel do meu pai pouco me conforta quando o rodo no
polegar.
Dedos suaves deslizam pelo meu cabelo, prendendo e puxando as
madeixas desalinhadas. Entre os toques suaves de Ellie e o banco de felpa
do toucador em que estou sentada, as minhas pálpebras descaídas ameaçam
puxar-me de volta para um sono agitado, apesar de a minha mente estar a
cambalear. Ellie deve conseguir ver a preocupação e o cansaço estampados
no meu rosto, porque me oferece um sorriso simpático ao espelho.
— Como te estás a sentir? Sobre as entrevistas?
A rotação constante do meu anel não abranda e os meus nervos não
cessam.
— Bem, não faço ideia do que esperar. E se correr mal... — Fico sem
palavras quando Ellie me acena com a cabeça ao espelho, sem precisar que
eu termine.
— Não penses demasiado nisso. Vais ficar bem — garante ela en‐
quanto continua a prender-me o cabelo. — Além disso, as pessoas não
param de falar da Salvadora Prateada.
A Salvadora Prateada.
Quase me rio do nome que me foi dado. Se soubessem realmente por
que razão fui capaz de parar o Silenciador, já não me chamariam salvadora.
De facto, não me chamariam nada, porque tornar-me-ia apenas mais uma
Vulgar morta que não merece um nome, um título, uma memória.
Um elegante carrapito baixo assenta na minha nuca quando Ellie
termina, com ganchos brilhantes a mantê-lo no lugar, enquanto anéis
prateados rodeiam o meu rosto maquilhado e as pestanas escuras.
Depois de muita deliberação, optámos por um vestido azul-claro sem
mangas. Elegante, mas não demasiado extravagante.
— Vais querer causar uma boa impressão, e acho que este vai servir
para o efeito — diz Ellie, sorrindo. Mal o visto, sou arrastada para o espelho
para que Ellie possa admirar o seu trabalho. Entre o cabelo, a maquilhagem
e o vestido azul que abraça o meu corpo, quase parece que pertenço aqui.
Como se não tivesse estado a dormir na rua nos últimos cinco anos da
minha vida.
Uma batida na porta assusta-me o suficiente para parar de olhar para o
meu reflexo.
— Estás pronta?
Lenny está à espera do lado de fora da porta quando Ellie me empurra
para o corredor, lançando-lhe um olhar tímido antes de se retirar para o meu
quarto. Ele dá-me um sorriso fácil antes de nos conduzir para as portas
principais e maciças do castelo e para o pátio banhado pelo sol.
Não estamos sozinhos. A maior parte dos outros concorrentes estão
tensos enquanto os restantes saem lentamente do castelo. Rapidamente, os
Imperiais estão a passar, juntando-se ao nosso grupo que está parado sem
fazer nada.
— O que é que se passa? — pergunto a Lenny, ainda ao meu lado.
— Nós — gesticula para os seus colegas Imperiais — estamos a es‐
coltá-los a todos para a Bowl.
Desvio a minha atenção para a estrutura imponente que se encontra
inocentemente ali perto. Nunca tinha assistido a nenhuma das entrevistas
dos concorrentes, por isso nunca tinha tido o prazer de me sentar nas
bancadas da Arena ao lado de milhares de outros Ilyans. O nome pouco
original do grande estádio deve-se à forma inclinada e semelhante a uma
tigela, onde nunca pensei pisar. O grupo segue a um ritmo calmo enquanto
nos dirigimos para a Bowl, com os Imperiais a ladearem-nos por todos os
lados. Fica a menos de um quilómetro do palácio, e eu sinto-me satisfeita
por estudar o que me rodeia enquanto percorremos o caminho de gravilha.
Arvores retorcidas e caídas pairam sobre nós, estranhamente encantadoras
com a forma como o sol atravessa as suas folhas para alcançar o chão por
baixo delas numa luz manchada. Flores brancas vibrantes e cor-de-rosa
claro pontilham os ramos enquanto várias delas caem, espalhando pétalas
pelo caminho.
Deixo-me ficar para o fundo do grupo, observando os concorrentes à
minha frente. Todos os rapazes usam uma variação de calças justas e
camisas de botão coloridas, enquanto as raparigas usam vestidos elegantes,
mas simples.
Braxton e Sadie falam em surdina, enquanto Andy está sempre a pôr o
pé de fora para apanhar o tornozelo de Jax, fazendo-o tropeçar enquanto ela
se ri. Os meus olhos vão para Hera, silenciosa, enquanto olha em redor
admirando o túnel de árvores que ladeia o caminho. Ace, por outro lado,
tem o nariz tão alto no ar que duvido que consiga ver o que está à frente.
Por fim, observo as duas figuras altas que se encontram na cabeça do
grupo. Kitt e Kai riem-se baixinho, uma ocorrência aparentemente comum
quando os dois estão juntos. Mais uma vez, o futuro rei mistura-se com os
concorrentes, o que me faz pensar por breves momentos se não gostaria de
fazer parte destas Provas.
Blair mete-se entre os dois irmãos, rindo-se de algo que um deles
disse. Tanto o seu cabelo lilás quanto o seu vestido azul-marinho cintilante
brilham ao sol, dando a ilusão de que um holofote a segue constantemente.
Usa qualquer desculpa para tocar nos rapazes, o que a torna tudo menos
subtil. Sabe o que quer, e é evidente que é um deles. Quase admiro a sua
resiliência.
Caminho tranquilamente enquanto observo as pétalas cor-de-rosa a
caírem das árvores, arrastando-se para o chão numa brisa suave.
— Vejo que encontraste algo para vestir.
A voz grave ao meu lado faz-me saltar, e eu praguejo sob a minha
respiração ao ver de repente o futuro rei ao meu lado. Está a rir-se da minha
cara de espanto, e eu luto contra a vontade de o empurrar por me ter
assustado daquela maneira. Respiro fundo antes de encontrar o seu olhar
verde, a cor que combina com as folhas penduradas por cima de nós — e
que combina com a cor dos olhos do pai.
Os olhos do Rei.
A súbita constatação faz-me hesitar. Forço-me a engolir a repulsa por
este homem e pelo reino corrupto que irá governar à semelhança do seu pai.
Respirando fundo, recordo-me que tenho de ser civilizada, educada.
Desempenha o teu papel.
— Sim, mas não posso ficar com os louros todos. — Observo o
vestido azul-claro que ondula com a brisa suave. —Tenho de agradecer à
Ellie por isto.
— Ah, sim. — O sorriso do futuro rei é provocador, assustando-me. —
Ellie, a empregada que insistias não precisar?
— Essa mesmo — respondo-lhe com frieza. — Sabes, pensei que ela
gostava de mim, mas afinal acho que me quer torturar com estes sapatos.
Já sinto os meus pés com bolhas nas sandálias demasiado apertadas e
de tiras que a Ellie insistiu que eu usasse.
Ri-se de novo, um som brilhante e contagiante que me deixa inquieta.
— Não te invejo a ti, nem às bolhas que provavelmente vais ter. —
Denuncia um ligeiro sorriso enquanto faz um gesto para os meus pés. —
Mas fica-te bem, mesmo assim.
— Obrigada... — As palavras soam mais como uma pergunta.
Sempre pensei que o futuro rei seria frio e calculista — mais parecido
com o irmão, no mínimo. Mas Kitt parece ser exatamente o oposto, o que
me confunde, tendo em conta quem é o seu pai e o que o futuro lhe reserva.
Perdida em pensamentos, olho para cima e vejo a silhueta gigante da
Bowl a aproximar-se, esperando-nos no fim do túnel de árvores. É enorme.
Para além do castelo, nunca tinha visto uma estrutura tão grande.
Sinto uma coisa a pousar na minha cabeça e praticamente salto. Kitt
solta uma gargalhada enquanto se aproxima e retira a coisa do meu cabelo,
assustando-me. A ação não passa despercebida e as suas sobrancelhas
franzem-se de preocupação.
Não estou a desempenhar muito bem o meu papel.
Limpando o meu rosto da ansiedade que tenho a certeza estar
estampada, tento arranjar um sorriso débil enquanto atento para a flor cor-
de-rosa que ele agora enrola entre os dedos. Olho para cima e vejo várias
pétalas agarradas ao cabelo despenteado de Kitt.
— Sabes — diz ele suavemente, pousando a parte traseira da flor em
cima da minha cabeça —, isto também te fica bem.
Respiro fundo e forço um sorriso mais forte.
— Podia dizer o mesmo de ti — digo, apontando-lhe para o cabelo
louro cheio de pétalas. Ele retribui o sorriso enquanto passa a mão pelo
cabelo, pouco fazendo para se livrar das flores que criam uma coroa no topo
da sua cabeça.
— Bem, agora estamos a combinar — anuncia. Desvio o meu olhar,
ainda sentindo que o seu me percorre o rosto, enquanto me esforço por
parecer calma e controlada.
— Tu pareces... — Ele faz uma pausa, tentando encontrar a palavra
certa. — Ansiosa.
Lá se vai a calma e a concentração.
Ofereço-lhe um sorriso rápido.
— Bem, esperemos que a ansiedade também me fique bem.
— São as entrevistas que te deixam nervosa, ou é outra coisa? — As
suas palavras são suaves, curiosas.
Preocupante.
O meu olhar desliza para o seu, antes de se desviar rapidamente ao
perceber que o Rei me observa com atenção.
— Só as entrevistas e a possibilidade de eu fazer figura de parva.
— Vai correr tudo bem. Especialmente depois do teu... incidente com o
meu irmão em Loot.
Ele devolve-me aquele seu sorriso encantador.
— Sabes que as pessoas ainda estão a falar de ti.
Estou prestes a responder quando a minha cara é subitamente banhada
pela luz do sol. Não me tinha apercebido que o túnel de árvores tinha
terminado, deixando-me a pestanejar rapidamente na luz ofuscante.
Mas o sol vai-se embora tão depressa como chegou. O grupo acalma-
se quando entramos na sombra da Bowl. Entramos num dos muitos túneis
de cimento que conduzem à Arena, os nossos passos ecoando nas paredes
de pedra fria até sermos levados para o nível mais baixo do estádio.
A minha cabeça anda para trás e para a frente, os olhos arregalados
enquanto absorvo tudo. À volta de toda a arena oval há dezenas de filas
largas cobertas por bancadas de betão que sobem pela lateral da Bowl. Os
meus olhos percorrem o vidro grosso que envolve cada secção das
bancadas.
Não, não é vidro.
Mudo.
Só há pouco tempo é que fiquei a saber do material raro inventado
pelos Académicos, quanto mais vê-lo pessoalmente. Por meios que são
demasiado complicados para eu entender, este material, que se parece com
vidro, impede os Elites dentro das bancadas de usarem os seus poderes,
para não interferirem com as Provas.
Afasto a atenção do estranho fenómeno e continuo a examinar a Bowl
com o meu olhar amplo. Apesar de estarmos ao nível do chão, junto à
última fila de bancadas, o recinto coberto de areia fica por baixo de nós.
Aproximo-me da grossa grade de metal na beira do caminho e espreito para
baixo. É facilmente uma queda de quatro metros para o chão da Arena,
cheio de areia.
O fosso.
E é aí que as Provas terão lugar enquanto centenas de Ilyans assistem
das bancadas que nos rodeiam.
Os Imperiais começam a conduzir-nos ao longo do caminho até
pararmos junto a uma sala ampla que se projeta para o caminho, rodeada de
vidro espesso. Olhando lá para dentro, vejo três cadeiras grandes e
luxuosas, todas assentes num chão de madeira polida e que destoam do
betão cinzento e frio que cobre o resto da Bowl.
O camarote do Rei.
Então é aqui que se senta confortavelmente e nos vê a morrer.
Para minha surpresa, os Imperiais começam a empurrar-nos para a sala
de vidro, um a um. Formamos uma fila e observamos Kai a caminhar para o
canto mais afastado. Levanto o pescoço para o ver levantar um trinco
escondido do chão, abrindo um alçapão antes de saltar para baixo com
facilidade.
Uma mão no meu ombro impele-me a avançar.
Para onde é que vamos?
Atravesso a sala abafada e dirijo-me para o buraco no chão que
permanece à minha espera. A sala por baixo está envolta em sombras,
tornando impossível ver a que distância está o chão.
Suspiro antes de entrar na escuridão.
Os meus pés atingem o chão com um estrondo suave. Depois de
estimar que a queda foi de quase dois metros, fico grata por o chão debaixo
das minhas sandálias ser macio. Mas com o tapete escorregadio por baixo
de mim e os joelhos dobrados para diminuir o impacto da queda, não
consigo evitar tropeçar em algo sólido.
Não. Não é algo. Alguém.
Braços fortes envolvem-me antes de eu sentir o aviso de um riso
profundo vindo do peito largo contra o qual bati. Mãos grandes são
firmemente colocadas nas minhas ancas e, à medida que os meus olhos se
ajustam à escuridão, consigo ver a curva familiar de um sorriso nos lábios
de Kai, enquanto me foca.
— Trabalho de pés desleixado, Gray. Detestaria ser o teu parceiro na
pista de dança.
Empurro-lhe o peito com as palmas das mãos, e ele solta-me com
relutância, rindo sombriamente.
— Bem, então o sentimento é mútuo. — Sinto-me insultada e odeio
isso. — E eu tenho um trabalho de pés fabuloso, muito obrigada — aclaro a
voz, desviando o olhar antes de acrescentar: — quando estou a lutar.
Ele tem razão, mais uma vez. E mais uma vez, odeio-o. Sou uma
dançarina desastrosa. Posso ser capaz de me mover ao ritmo de uma luta,
mas essa habilidade não se estende ao salão de baile.
Ri-se de novo, mas antes de ter a oportunidade de fazer algum
comentário malicioso de que o faria arrepender-se, Kitt cai ao meu lado.
— Estás a brincar com a concorrência, irmão? — Consigo ouvir o
divertimento na sua voz enquanto se dirige a uma grande alavanca na
parede e a puxa para cima. As luzes por cima de nós piscam e produzem um
zumbido, lembrando-me dolorosamente de casa e dos poucos candeeiros
que há espalhados por Loot Alley.
— Esta competição é divertida e por isso não posso deixar de brincar
com ela — responde Kai com um encolher de ombros desleixado.
Estou prestes a dizer algo que provavelmente não devia quando a
nossa conversa é interrompida pelos restantes Elites que caem literalmente
na sala. Olhando em volta, encontro o espaço cheio de cadeiras e sofás
felpudos, juntamente com uma variedade de aperitivos espalhados numa
mesa comprida, deixando claro que estamos aqui à espera pelo começo das
entrevistas.
Todos se movimentam pela sala, sentando-se nas cadeiras e pegando
na comida. Sinto uma mão no meu ombro e assusto-me, voltando-me para
encontrar um par de olhos cor de mel divertidos, escondidos atrás de
madeixas de cabelo vermelho-vinho.
— Estás nervosa, não estás? — Andy franze o sobrolho.
— Sim, bem, eu pensei que eras o Kai e estava a preparar-me para lhe
partir o nariz.
Ela resfolega alto.
— É compreensível. O meu primo é um parvo. Mais ou menos. — Ela
sacode a cabeça para Kai, mas o sorriso não desaparece do rosto.
— O teu... — Pestanejo. — Primo?
— Sim. Tem a sorte de ser meu parente. — Ela sorri, o piercing no
nariz a piscar à luz fraca. — São os dois.
— Então, também cresceste no palácio? Com eles? — Aceno com a
cabeça em direção aos rapazes que parecem estar a gozar impiedosamente
com Jax.
— Sim, infelizmente. — Abana a cabeça, rindo-se. — O número de
lutas em que aqueles dois se meteram por causa de comida...
E termina, sorrindo para si própria.
— De qualquer forma, eu sou o que chamam de «ajudante» no palácio.
O meu pai e eu arranjamos tudo o que precisa de ser arranjado no castelo e,
acredita, aqueles dois já partiram muita coisa ao longo dos anos.
Por fim, dirigimo-nos a um dos sofás e sentamo-nos, falando he‐
sitantemente. Somos educadas uma com a outra, contentes por termos uma
conversa civilizada, mas ainda muito conscientes do facto de sermos
concorrentes.
O som estrondoso de centenas de pés a pisar acalma-nos a todos. O
estrondo enche a Arena acima, fazendo o meu estômago dar voltas. Eles
estão aqui. Centenas de Ilyans — milhares, até. Todos aqui para verem as
entrevistas, o espetáculo. Aqui para escolher quem querem apoiar, quem
querem que viva.
Não sei quanto tempo demora até que o desfile de passos que sobem as
filas se acalme. Mas as vozes não o fazem. Cantam e aplaudem, à espera de
que os concorrentes se mostrem. Os Imperiais chamam-nos de volta para o
alçapão onde, de repente, me encontro noutra fila, à espera da minha vez
para sair da sala e voltar para a caixa de vidro acima de nós.
Nem sequer tinha reparado no futuro rei ao meu lado até que ele se
levantou para me tirar algo do cabelo. Nem sequer tenho tempo de me
aperceber que ele está a segurar uma flor à frente da minha cara — aquela
que eu me tinha esquecido que estava emaranhada nas madeixas prateadas.
— Embora ache que te fica bem, talvez não devas fazer a entrevista
com isto na cabeça. — Faz um gesto para a flor com um sorriso. — Podes
atrair muita atenção. Sobretudo das abelhas.
Desempenha o teu papel.
É isso que tenho de continuar a dizer a mim própria. Porque sempre
que olho para ele, só consigo ver o seu pai, e um homem que um dia
governará um reino corrupto. E, no entanto, apesar da minha repulsa, forço
um sorriso no meu rosto.
— Obrigada. Por me teres salvo tanto da vergonha quanto das abelhas.
Braxton passa por baixo da saída, e eu agradeço a desculpa para
desviar o olhar do futuro rei. O Forte nem precisa de saltar para se agarrar à
beira antes de se levantar facilmente do chão e passar pelo alçapão. Um a
um, os rapazes ajudam-se a subir, até só restarem os dois príncipes.
Eles ajudam as raparigas a levantarem-se com facilidade, praticamente
levantando Hera pela abertura. Blair aproveita-se da situação, usando-a
como desculpa para ter as mãos dos rapazes em cima dela. Depois de Sadie
pedir educadamente um empurrão, fico sozinha com os dois.
Olho para cima através do alçapão, avaliando o meu salto, quando Kai
surge atrás de mim, baixando a cabeça para que o seu queixo acabe quase
encostado ao meu ombro.
— És demasiado teimosa para pedir a minha ajuda, Gray?
— Não — respondo-lhe com frieza. — Demasiado forte para precisar
dela.
As suas palavras seguintes são murmuradas perto do meu ouvido.
— É isso que eu gosto de ouvir.
O seu calor desaparece quando se afasta para o lado, apontando para o
alçapão acima com um sorriso nos lábios.
Eu salto, os meus dedos enrolam-se à volta da extremidade da abertura
e fico pendurada no ar por um instante. Nunca me senti tão grata pelos
muitos anos que tive de praticar a escalada a edifícios. Puxo-me para cima,
pronta para balançar as pernas...
— Este maldito vestido — berro. É rígido, o tecido abraça-me as
ancas, tornando impossível mover-me com liberdade.
— Vá lá. — É a voz provocadora de Kai que ouço atrás. — Pede-me
ajuda, Gray.
Reviro os olhos.
— Teimosa, lembras-te?
Ouço o riso de Kitt antes de sentir mãos a roçar nas minhas pernas.
Assustada, olho para baixo, e vejo uma cabeça curvada de ondas negras
desalinhadas. Kai está a agarrar a costura inferior do meu vestido, de olhos
postos em mim.
— Posso? — A sua voz é suave, o tom é divertido.
Engulo, reviro os olhos mais uma vez e aceno contra o meu bom
senso.
E a seguir está a rasgar-me o vestido.
Rasga o tecido com facilidade, criando uma racha na parte lateral da
minha coxa, libertando-me dos limites apertados do tecido. Os seus dedos
ásperos roçam brevemente a minha pele enquanto diz:
— Estou mais do que disposto a rasgar os teus vestidos por ti, Gray.
Para ajudar, claro. — Kitt suspira, enquanto Kai sorri. — Só precisas de
pedir.
— Porquê perguntar quando estás tão ansioso por oferecer?
O riso de Kai segue-me quando por fim me levanto, os braços a
arderem do esforço. Quando me ponho de pé dentro da caixa de vidro, fico
aliviada por ver que as cadeiras ainda estão vazias. Só de pensar em ver o
Rei depois da forma como falou do meu pai, como se ele não fosse o seu
assassino, faz-me ferver o sangue. Antes daquele jantar, nunca tivera
necessidade de controlar a vontade de espetar um garfo na jugular de
alguém.
Respiro fundo antes de sair para a rua. A multidão ruge.
Aqui estamos.
Os Imperiais conduzem-nos a uma pequena abertura no gradeamento
em frente à caixa, onde foram colocadas escadas para entrarmos no fosso.
Os meus pés batem na areia dura da Arena, enquanto a multidão aplaude,
como se as Provas já tivessem começado.
Atravessamos o grande chão do fosso, parando a meio, onde um palco
improvisado se ergue a alguns metros do chão. Dez cadeiras de felpa
alinham-se na parte de trás do palco, enquanto outras duas estão centradas à
frente. Os Imperiais conduzem-nos ao palco onde nos sentamos. O meu
olhar prende-se no de Lenny, e ele faz-me um aceno tranquilizador antes de
se pôr em fila com os outros Imperiais.
— Bem-vindos, companheiros Ilyans, à Sexta Edição das Provas da
Purga!
A multidão ruge quando eu viro a cabeça para a voz feminina aguda.
Ela vira-se para nós, com os olhos castanhos brilhantes de excitação e os
lábios vermelhos e cheios curvados num sorriso, enquanto nos observa.
Tealah.
É irónico que o seu cabelo cor de azul-petróleo brilhante combine com
o seu nome. Nunca tinha visto a jovem que conduziu as entrevistas para as
Provas anteriores, mas ouvi o suficiente sobre a sua aparência única para a
identificar.
— Mas esta não é uma Prova qualquer! — Ela sorri para a multidão.
— Pela primeira vez na história das Provas da Purga, temos um futuro
Executor a competir.
Quase consigo sentir os milhares de olhos a virarem-se na direção de
Kai. Ele está claramente habituado a esta atenção, parecendo
completamente relaxado enquanto se reclina na sua cadeira.
Tealah continua.
— E por causa disso, as Provas deste ano vão ser um pouco...
diferentes.
A multidão vai ao rubro.
As palavras de Ellie ecoam na minha cabeça, refletindo as que Tealah
acabou de anunciar.
Diferentes.
Tudo porque há sangue real a competir? Tudo para tornar as coisas
mais difíceis para o futuro Executor?
Não tenho tempo para refletir mais antes de Tealah perguntar:
— Estão prontos para conhecer os vossos Elites? — Ela encosta a mão
ao peito enquanto fala, fazendo com que as suas palavras se propaguem
pela Arena. A sua habilidade como Amplificadora permite-lhe projetar a
voz, bem como as vozes dos outros, desde que lhes toque. Um poder
Mundano, mas útil neste tipo de trabalho.
A multidão aplaude e bate o pé, imitando o ribombar do trovão.
— Porque é que não conhecemos o Jax primeiro? Jax, querido, podes
vir sentar-te aqui ao meu lado?
Jax senta-se na cadeira inclinada perto de Tealah, na frente do palco,
com um sorriso tímido no rosto. Está inquieto, com uma das suas longas
pernas a balançar no chão, enquanto ela lhe pergunta sobre a sua vida e as
Provas.
— Gosto de lutar com o Kitt. Principalmente porque às vezes deixa-
me ganhar. O Kai... nem por isso. — A multidão ri-se à gargalhada com a
resposta de Jax ao que mais gosta relativamente ao treino para as Provas.
Ele sorri timidamente para Tealah, e o seu sorriso aumenta quando ele se
vira no seu lugar para ver o rápido encolher de ombros de Kai.
— Não é adorável? — Tealah sorri para a multidão antes de perguntar.
— Diz-me, Jax, que idade tens?
A mão de Tealah pousa no seu ombro, amplificando a sua resposta.
— Quinze.
Pestes, ele é tão novo.
— Quinze e já te foi concedida a honra de competir nas Provas! —
Tealah exclama, olhando para a multidão em busca de aprovação, que lhe é
oferecida sob a forma de pancadas e vivas. — E volta a lembrar-nos do teu
poder?
Ele limpa a voz:
— Sou um Saltador.
— Que fascinante! Conta-nos mais para aqueles que ainda não
testemunharam esta habilidade.
— Bem — endireita-se no seu lugar —, posso teletransportar-me para
qualquer sítio que consiga ver num piscar de olhos.
Sorri enquanto o público se ri.
— Muito bem, Jax, mais uma pergunta antes de nos mostrares o que
consegues fazer. — Tealah fica subitamente séria quando questiona: — O
que é que esperas das Provas?
A cabeça de Jax inclina-se para o lado, pensativo.
— Bem, não sei bem em que consistirão as Provas, mas, aconteça o
que acontecer, estou à espera de honrar o meu reino, a minha família. .. —
Faz uma pausa e lança um olhar a Kai. — E a mim próprio.
O estádio explode em aplausos ao ouvir o lema das Provas da Purga.
Tealah levanta-se e guia Jax pelos degraus do palco e para a areia do fosso à
nossa frente.
— O palco é todo teu, Jax!
Num segundo, Jax está a sorrir para o público, e no outro desapareceu.
Eu viro-me no meu lugar para ver onde é que ele foi, apenas para o
encontrar mesmo atrás de Kai, com um sorriso malicioso no rosto. Ele
despenteia-lhe o cabelo antes de desaparecer, deixando o príncipe a
gaguejar.
Jax continua a sua pequena rotina. Saltando de um lugar para o outro,
fazendo com que a multidão suspire de surpresa a cada novo lugar em que
aparece. Passados alguns minutos, Salta de novo para o seu lugar original,
mesmo entre Kai e Braxton, onde o primeiro não hesita em prendê-lo
debaixo do braço e despentear-lhe impiedosamente o cabelo.
Tealah continua a sua rotina de questionar os concorrentes antes de os
deixar à solta para mostrarem as suas habilidades, seguindo o mesmo
padrão.
Não é nada mais do que um espetáculo de talentos. Uma montra que
mostra quem é o mais forte.
Braxton esmaga e atira estátuas de pedra que foram espalhadas pelo
estádio para ele. Depois da entrevista de Ace, onde falou como se já tivesse
ganho as Provas, desceu ao fosso, pomposo como sempre. As ilusões que
cria parecem tão reais, tão fáceis de confundir com a realidade. Ele criou
um fogo ardente, queimando a areia num rasto de chamas, conseguindo até
criar o cheiro a fumo. E depois desapareceu num instante tão rápido como
tinha aparecido, sem deixar nada para trás.
Sadie, sendo uma Clone, mostrou o seu poder criando dez cópias de si
própria e passeando-as pelas bancadas. Cada cópia acenou rapidamente à
multidão antes de regressar ao seu lugar.
Blair foi chamada após a entrevista de Sadie, sendo irritantemente
doce para com Tealah e o público, embora eu não sinta falta do regresso da
mordacidade à sua voz quando fala em ganhar as Provas. Ela foi até à areia
e levantou Tealah do chão usando o seu poder de telecinesia, informando-
me que a sua força é mais mental do que física. De facto, a lâmina que me
cortou a orelha ainda ontem foi provavelmente lançada pelo seu poder, não
pela sua mão.
Hera esteve tímida, contorcendo-se no seu lugar e falando apenas
quando necessário. Consegui praticamente vê-la a suspirar de alívio quando
por fim ficou livre para mostrar as suas habilidades e evitar falar com o
público. Ela desaparece e, passado um momento, Tealah desaparece
também. A multidão aplaude, ficando a olhar para o ar vazio onde antes se
encontravam.
Andy foi de longe a mais divertida, contando sem pudor histórias
embaraçosas sobre a sua infância com Kitt e Kai. A multidão adorou-a, riu-
se a cada palavra sua. Mas quando ela saiu para o chão do fosso para
mostrar o seu poder, o meu suspiro foi engolido pela multidão. Mesmo à
frente dos meus olhos, ela transformou-se num tigre. Depois num falcão.
Um lobo. Todos eles da mesma cor de vinho do seu cabelo. E depois, após
alternar casualmente entre vários animais, voltou a transformar-se em ser
humano, com o seu vestido lilás ainda perfeitamente intacto.
Tealah escolhe o Kai a seguir, deixando-me para o fim.
Ótimo.
Com Kai a sorrir-lhe, Tealah parece exuberante e luxuriosa. É evidente
que está a usar a sua máscara de charme enquanto brinca e interage com o
público. Quando Tealah lhe pergunta o que espera das Provas, a sua
resposta é a mesma de todos os outros concorrentes antes dele: Honra para
o meu reino, para a minha família e para mim próprio.
Quando o príncipe finalmente termina, lança um sorriso à ruborizada
Tealah antes de sair do palco para mostrar o seu poder. Bem, os poderes de
todos os outros. Percorre a fila de concorrentes, usando cada uma das suas
habilidades e cortejando o público com elas. Os seus poderes parecem-lhe
fáceis, familiares, o resultado de muitos anos de treino.
Quando chega ao fim da fila, os seus olhos encontram os meus. A sua
cabeça inclina-se ligeiramente para o lado enquanto me observa, com o
olhar cinzento a percorrer o meu rosto. Não consigo imaginar o quanto o
deve perturbar o facto de não poder usar a minha habilidade, e esse
pensamento traz-me um pequeno sorriso aos lábios.
Depois, Kai está de volta à sua cadeira e eu a caminhar para a minha
perdição.
— E, por fim, temos Paedyn Gray! — A voz de Tealah ecoa pela
Arena, enquanto dá palmadinhas no assento ao seu lado, expetante.
Desempenha o teu papel.
As palmas das minhas mãos estão escorregadias do suor. Sento-me no
banco ao lado de Tealah e aliso a saia do meu vestido, nem que seja para ter
uma desculpa para limpar as mãos suadas na seda lisa. Olho para o público
e fico com a respiração suspensa. Sinto-me envergonhada por não os ter
observado antes, mas agora não consigo desviar o olhar.
O Rei e a Rainha e...
Kitt.
Olham-me fixamente da sua confortável caixa de vidro. O Rei e o seu
herdeiro sentam-se perto um do outro, as suas semelhanças atingindo-me
como um golpe no peito. Os cabelos cor de areia e os olhos cor de
esmeralda espelham-se um no outro, são tão parecidos que o meu ódio por
um começa a passar para o outro.
— Então, Paedyn, fala-nos do teu incidente com o Príncipe Kai! —
Volto-me para Tealah, quase cegando pelos seus dentes brancos e brilhantes
e pelo seu cabelo vibrante. Ela inclina-se para mim e coloca uma mão suave
no meu ombro, projetando a minha voz para todos ouvirem.
— Bem, de acordo com o Príncipe Kai, não há muito para contar. Mas,
se quer saber a minha opinião, acho que está um pouco envergonhado por
ter sido uma rapariga dos bairros de lata a salvá-lo. — As palavras saem da
minha boca antes que as consiga parar.
Pestes, preciso que as pessoas gostem de mim e gozar com o seu
príncipe não é provavelmente a melhor maneira de o fazer...
Uma gargalhada.
Para minha surpresa, e salvação, o público acha-me divertida. Espreito
por cima do meu ombro para olhar para Kai e vejo um sorriso ténue a
agraciar as suas feições.
Por isso, talvez possa gozar com o seu príncipe, afinal. Posso traba‐
lhar com isso.
— Não tens medo de dizer as coisas como elas são! — Tealah ri-se um
pouco antes de passar à pergunta seguinte, aquela que tenho a certeza de
que muitos estão a pensar. — Então, diz-nos outra vez como é que foste
capaz de lutar contra o Silenciador? Quero dizer, é óbvio que consegues
aguentar-te numa luta física, mas como é que o Silenciador não te afetou?
Respiro fundo, sabendo que este pormenor é muito importante para
que todos compreendam, para que acreditem.
— Bem, Tealah, eu sou Psíquica. É uma habilidade mental que me
permite sentir as emoções fortes dos outros e obter informações. E, por
causa disso, tenho o poder de proteger a minha cabeça, de a manter a salvo
de pessoas como os Silenciadores. — Sorrio ligeiramente antes de
acrescentar: — E, aparentemente, de pessoas como o Príncipe Kai, uma vez
que ele não consegue usar ou sentir a minha pequena habilidade.
— Que fascinante! Devo dizer que nunca tinha conhecido uma
Psíquica! — Os seus olhos estão arregalados, parecendo muito intrigada
comigo, como tenho a certeza de que o resto da multidão está.
— Sim, bem, apesar de ser uma habilidade Mundana, parece ser
bastante rara. — Sorrio com alegria, como se não estivesse a mentir com
todos os dentes que lhe estou a mostrar.
— Muito bem, Paedyn, fala-nos da tua vida nos — gagueja, quase
dizendo bairros de lata antes de optar por dizer — em Ilya?
Penso em mentir mais um pouco, dizendo que não era assim tão mau,
que era fácil viver nos bairros de lata. Mas de repente deu-me vontade de
ser honesta.
— Quer dizer, a vida nos bairros de lata? — Ela pestaneja, sur‐
preendida pela minha correção brusca. — Não há muito para contar. A vida
nas ruas não é uma grande vida.
Olho-a bem nos olhos antes de me virar para a multidão silenciosa.
— Nestes últimos anos, a fome e o frio têm sido a única constante na
minha vida. Mas não sou só eu. Há dezenas de pessoas que dormem na
mesma pedra dura que eu. Dezenas de pessoas que fazem qualquer coisa
por um xelim. — Faço uma pausa e respiro fundo. — Viver nos bairros de
lata é a sobrevivência do mais forte. Por isso, de certa forma, estou mais
preparada para estas Provas do que qualquer outra pessoa.
Tealah olha para mim em choque, claramente surpreendida por aquela
resposta. Depois, devolve-me um olhar que me é familiar... pena. Odeio
isso. Não quero a sua pena nem a da multidão. Quero mudança.
Passa rapidamente a perguntas mais descontraídas sobre o treino e os
meus colegas concorrentes.
— Quem é que achas que vai ser o teu maior concorrente?
— Hmm — Ponho uma madeixa de cabelo atrás da orelha, pensando
na minha resposta.
— Talvez o Príncipe Kai? Visto que tem a habilidade de usar qualquer
poder? — avança Tealah.
— Mas não o meu, lembra-se? — Eu rio-me ligeiramente e ela tam‐
bém. — Ele não vai ser um problema. Na verdade, vamos ver até onde
consegue chegar nestas Provas sem eu lá estar para o salvar.
Sorrio com doçura enquanto a multidão ruge de riso, praticamente
sentindo os olhos de Kai furarem-me a nuca.
— Muito bem, Paedyn, última pergunta. O que é que esperas conseguir
com as Provas?
A minha boca abre-se, com a intenção de vomitar o lema praticado nas
Provas da Purga, como toda a gente fez. Como é suposto eu fazer. Mas
quando os meus olhos se fixam na caixa de vidro por cima de mim, se
fixam no Rei atual e no futuro, as palavras caem da minha boca sem que as
consiga evitar.
As palavras erradas.
— Sobrevivência. Espero sobreviver a isto.
Sinto milhares de olhos cravados em mim.
Tealah pestaneja lentamente, enquanto as mechas de cabelo azul-
petróleo lhe sopram na cara com a brisa suave. Por fim, coloca a voz e
levanta-se com firmeza para me guiar até ao palco.
— Muito bem — diz, tentando agir com naturalidade. — Mostra-nos
do que és capaz!
Agora estou eu a pestanejar para ela.
Como é que é suposto eu fazer isso?
— Hmm — olho à volta do estádio e sugiro: — porque é que não
escolhe uma pessoa qualquer da multidão, e eu... faço uma leitura.
Pestes! Mas o que é que eu estou para aqui a falar?
Tealah sorri e acena com a cabeça, claramente feliz por fazer alguma
coisa. Vejo-a subir os degraus para fora do fosso e começar a percorrer as
filas de pessoas, sorrindo e acenando à medida que avança. Após alguns
minutos de contemplação, aponta finalmente para uma rapariga sentada
umas filas acima. A pobre rapariga parece preocupada e confusa, mas
levanta-se cautelosamente antes de descer para o fosso, guiada por Tealah.
Quando se aproxima de mim com cautela, apercebo-me de que não
deve ser muito mais velha do que eu. O seu cabelo castanho curto,
juntamente com as sardas que lhe salpicam o rosto, conferem-lhe um ar de
inocência constante. Sorrio e estendo a mão para pegar nas suas mãos,
querendo fazer disto um espetáculo.
— Não te preocupes. Eu não mordo — digo-lhe suavemente quando
ela dá um pequeno passo atrás. Ofereço-lhe o que espero ser um sorriso
caloroso e, com isso, ela estende-me as suas mãos bronzeadas. Agarrando-
as nas minhas, observo-a rapidamente antes de fechar os olhos.
Tenho tudo o que preciso.
Penso na corrente manchada à volta do pescoço, juntamente com o
anel grande e desbotado que pende do fio e que mal se vê por detrás das
dobras da camisa que veste. Eu também guardei o anel do meu pai depois
de ele ter morrido, só que uso o meu no polegar.
— Estou a sentir... dor. Tu — aperto-lhe as mãos quentes, respirando
fundo. — Tu perdeste um homem que te era muito próximo. Há algum
tempo. O teu pai?
Abro os olhos e vejo a sua boca aberta.
— Sim — confirma em voz baixa, mesmo com a mão de Tealah co‐
locada no ombro para amplificar. — Sim, ele morreu há quatro anos.
— Lamento imenso a tua perda. Eu sei o que é perder um pai. —
Mantenho os meus olhos fixos nos dela, embora queira desesperadamente
olhar para o Rei na sua caixa brilhante.
Um suspiro coletivo ecoa pela multidão, espantada por eu poder saber
um pormenor tão pessoal.
E querem mais.
Tealah seleciona pessoa após pessoa para descer ao fosso, cada uma
mais entusiasmada com a leitura do que a anterior. Eu digo-lhes coisas
aleatórias e pessoais sobre elas, coisas que um estranho não deveria saber.
— Acabaste de descobrir que estás grávida...
— O teu pai é ferreiro...
— Roubaste os sapatos que estás a usar...
De cada vez, tanto a pessoa que leio quanto a multidão que nos rodeia
ficam admiradas.
Eles suspiram, batem palmas e aplaudem — um público comple‐
tamente cativado.
Pestes, se eu soubesse que as pessoas gostavam tanto disto, teria
cobrado as leituras na rua.
Um jovem magro está agora diante de mim, com um sorriso a
iluminar-lhe o rosto enquanto me atenta com expetativa. Fechando os olhos,
lembro-me do leve anel de sujidade que se agarra ao joelho direito das
calças que veste quando se dirigiu para ali. Isso, em conjunto com o
contorno subtil de uma pequena caixa no bolso do casaco e o brilho feliz no
rosto, significa que chegarei à minha conclusão numa questão de segundos.
— Estou a sentir alegria. Porque... — Solto uma das suas mãos e
pressiono os dedos na minha têmpora. — Acabaste de ficar noivo. Hoje.
Abro os olhos mesmo a tempo de ver a sua boca a abrir-se.
— Sim! Ela tem razão! Acabei de a pedir em casamento há menos de
duas horas! — Ele vira-se para encarar a multidão, com um largo sorriso no
rosto enquanto o público vai ao delírio.
— Parabéns! — O meu grito é engolido pelos aplausos da multidão
enquanto ele praticamente salta as escadas de regresso ao seu lugar. Com
isso, dou um salto e volto para a minha cadeira, sem esperar por mais
leituras.
— Aqui — Tealah anuncia, apontando para nós — estão os vossos
concorrentes para a Sexta Edição das Provas da Purga!
A sua voz ecoa pelo estádio apenas para ser rapidamente abafada pela
multidão.
Os concorrentes à minha volta levantam-se e eu faço o mesmo.
Acenamos e sorrimos para a multidão, vendo-a entoar cânticos, pisar e bater
com os braços no ar.
Sinto-me doente. Sinto-me usada.
Para eles, tudo isto é um jogo.
Mas se quiser continuar viva, tenho de desempenhar o meu papel.
Tenho de os manipular. Ser um peão no seu jogo é o preço que tenho de
pagar para sobreviver. Fazê-los acreditar que gosto disto e, por sua vez, eles
gostarão de mim.
Por isso, endireito-me, ergo a cabeça um pouco mais alto e sorrio ainda
mais.
Não sou peão de ninguém.
O sangue agarra-se às minhas mãos, às minhas roupas, manchando
tudo de um vermelho doentio. Torturar tende a ser uma ocupação atribulada
e, apesar dos muitos anos de prática que tenho, parece que nunca se tornará
mais fácil. Ou mais limpo.
Ao contrário de Kitt, que foi treinado desde a infância para ser
equilibrado, justo e real, o meu treino consistiu num trabalho mais prático.
Estratégias de batalha, assassinatos e a arte da tortura constituíram grande
parte da minha educação. E devido a esta formação única e extensa que
recebi, sou muito bom no que faço.
Exceto, ao que parece, quando se trata do Silenciador encolhido no
chão da masmorra à minha frente. Já se passaram dias. Eu bati neste homem
até ao limite, e o que é que eu aprendi em troca?
Nada.
Dizer que estou zangado seria um eufemismo. A única palavra útil que
consegui que lhe passasse pelos lábios, para além dos gritos e súplicas, é o
que presumo ser o seu nome.
Micah.
Suspiro, agachando-me para pairar sobre o seu corpo partido e
ensanguentado. O cabelo comprido, coberto de sangue, cai-lhe sobre os
seus olhos castanhos profundos. Eles alargam-se quando encontram os
meus, fazendo-o parecer tão jovem. Não será muito mais velho do que eu.
— Agora, corrige-me se eu estiver errado — digo, com uma suavidade
falsa. — Mas eu não acredito que tu sejas mudo.
Agarro-lhe o maxilar e abro-o para revelar o sangue que se acumula na
sua boca, sobre a língua, manchando os dentes de escarlate.
— Mas eu poderia facilmente fazer isso acontecer. Podia esculpir-te a
língua.
Deixo cair a sua cabeça no chão de pedra e levanto-me para sair,
consciente de que já estou atrasado para o jantar. Batendo a porta da cela
atrás de mim, faço um aceno brusco a Damion. Ele faz-me uma lenta vénia
com a cabeça em troca, antes de me seguir pelo longo corredor de celas.
Os nossos passos ecoam nas paredes de pedra enquanto subimos as
escadas e entramos no corredor iluminado e cheio de sol por cima das
masmorras. Dirijo-me habilmente para a sala do trono, mesmo enquanto a
minha mente vagueia.
As Provas estão a aproximar-se rapidamente, apenas quatro dias
separaram-nos do primeiro jogo mortal. Estes últimos dias seguiram a
mesma rotina: treinar, comer, conversar e torturar. E bem, brincar com
Paedyn. Ela tem sido a minha principal fonte de entretenimento
ultimamente. Ela é divertida. Com a sua inteligência, teimosia e irritação
óbvia comigo.
Para.
Afasto os pensamentos de Paedyn da minha mente enquanto passo
pelas grandes portas da sala do trono. As minhas mãos vão parar aos bolsos,
casualmente, apesar de saber que a minha camisa azul-marinho manchada
de sangue não se enquadra bem no código de vestuário para o jantar.
Os criados já trouxeram a comida para a mesa, e todos estão sentados à
volta dela a saborear avidamente. As cabeças viram-se quando ouvem os
meus sapatos no chão polido, vários pares de olhos a percorrerem o meu
rosto até ao sangue que se agarra à minha roupa. Ignoro os seus olhares,
pois estou demasiado cansado para mudar de roupa e demasiado esfomeado
para me preocupar.
— Ah, Kai. Ainda bem que vieste. — O Pai parece irritado, como de
costume, enquanto eu me sento.
— Querido — diz a Mãe numa voz baixa, inclinando-se para mim. —
Tu pareces um pouco... bem, ensanguentado.
Ela encolhe-se enquanto os seus olhos me percorrem, avaliando-me.
— Risco profissional, Mãe. — Dou-lhe um pequeno sorriso, o sorriso
doce que reservo apenas para ela. Ela acena com a cabeça hesitantemente
antes de tentar relaxar na sua cadeira.
Mal ouço a conversa tranquila que ocorre à minha volta. Estou a
terminar o último prato quando um toque incessante me faz olhar para cima.
Os fios de cabelo prateado de Paedyn caem-lhe em cachos soltos, o
resto está amarrado num nó desalinhado na nuca. Tem o olhar fixo no prato,
com o polegar e o anel de prata a baterem com força na mesa da madeira.
E então aqueles olhos de oceano deslizam para os meus.
Inclino a cabeça na direção do seu polegar que tamborila.
— Estás a pensar em alguma coisa, Gray?
Olha para mim como se só agora desse pela minha presença.
— Tens alguma coisa na tua camisa, Azer? — Os seus olhos es‐
pantam-se ao ver a minha roupa. — Isso é... sangue?
Tenho a certeza de que imagino o olhar de preocupação no seu rosto, o
olhar de inquietação quando pensa tratar-se do meu próprio sangue a
manchar a camisa.
— Cuidado, querida. Quase parece que te preocupas. — Devolvo-lhe
um sorriso preguiçoso, e ela revira os olhos indolentemente.
Dirijo a minha atenção para a minha Mãe quando a sua voz suave
interrompe os meus pensamentos.
— Espero que já tenham começado a formar pares para o primeiro
baile!
Olho de relance para a mesa. Apenas os três que não viveram no
castelo parecem um pouco confusos. Hera, Ace e Paedyn não cresceram a
ver estes bailes, nem sequer alguma vez foram a um baile. Invejo-os.
— Como é tradição — continua a Mãe —, os concorrentes vão juntar-
se para os bailes que se realizam antes de cada prova. E como vocês estão
em número ímpar, quem não tiver par será emparelhado com alguém, não
se preocupem.
O seu sorriso aumenta ainda mais quando diz:
— Por isso, escolham o vosso par e comecem a praticar os passos de
dança.
Kitt vira-se para o meu lado, e vejo-o a olhar rapidamente na direção
de Paedyn. Passo uma mão pelo cabelo antes de voltar a prestar atenção à
comida, pois preciso de me concentrar em algo.
Uma vez que as raparigas são em maior número do que os rapazes, é
provável que o Kitt seja emparelhado com quem não tiver parceiro. Mas
isso não o impedirá de pedir a uma delas, se assim o desejar.
É claro que Paedyn o intriga. Mas mesmo que Kitt não peça a Paedyn
para acompanhá-lo ao baile, o que eu não duvido que faça, ela não me quer.
Gosto de um desafio.
Mas ela deixou bem claro aquilo que nós somos um para o outro:
concorrência.
Inimigos.
E, mais importante, porque é que não é isso que eu também quero?
Z-Access
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ffi
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