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Table of Contents

Powerless
Dedicatória
Mapa Ilya
Capítulo 1 - Paedyn
Capítulo 2 - Rai
Capítulo 3 - Paedyn
Capítulo 4 - Paedyn
Capítulo 5 - Rai
Capítulo 6 - Rai
Capítulo 7 - Paedyn
Capítulo 8 - Paedyn
Capítulo 9 - Rai
Capítulo 10 - Paedyn
Capítulo 11 - Paedyn
Capítulo 12 - Rai
Capítulo 13 - Paedyn
Capítulo 14 - Paedyn
Capítulo 15 - Paedyn
Capítulo 16 - Rai
Capítulo 17 - Rai
Capítulo 18 - Paedyn
Capítulo 19 - Paedyn
Capítulo 20 - Rai
Capítulo 21 - Paedyn
Capítulo 22 - Paedyn
Capítulo 23 - Rai
Capítulo 24 - Paedyn
Capítulo 25 - Paedyn
Capítulo 26 - Rai
Capítulo 27 - Paedyn
Capítulo 28 - Rai
Capítulo 29 - Paedyn
Capítulo 30 - Paedyn
Capítulo 31 - Rai
Capítulo 32 - Rai
Capítulo 33 - Paedyn
Capítulo 34 - Paedyn
Capítulo 35 - Rai
Capítulo 36 - Paedyn
Capítulo 37 - Paedyn
Capítulo 38 - Rai
Capítulo 39 - Paedyn
Capítulo 40 - Rai
Capítulo 41 - Paedyn
Capítulo 42 - Rai
Capítulo 43 - Paedyn
Capítulo 44 - Rai
Capítulo 45 - Paedyn
Capítulo 46 - Paedyn
Capítulo 47 - Paedyn
Capítulo 48 - Rai
Capítulo 49 - Paedyn
Capítulo 50 - Rai
Capítulo 51 - Paedyn
Capítulo 52 - Paedyn
Capítulo 53 - Rai
Capítulo 54 - Rai
Capítulo 55 - Paedyn
Capítulo 56 - Rai
Capítulo 57 - Paedyn
Capítulo 58 - Rai
Capítulo 59 - Paedyn
Capítulo 60 - Rai
Capítulo 61 - Paedyn
Capítulo 62 - Rai
Capítulo 63 - Paedyn
Capítulo 64 - Rai
Capítulo 65 - Paedyn
Capítulo 66 - Paedyn
Capítulo 67 - Rai
Capítulo 68 - Paedyn
Epílogo - Ritt
Agradecimentos
Um líquido espesso e quente escorre-me pelo braço.
Sangue.
Estranho, não me lembro do guarda me ter atingido com a espada antes
do meu punho lhe alcançar a cara. Apesar de ser um Flash, apa­rentemente
não conseguiu mover-se tão rápido como o meu gancho de direita, em
direção ao seu maxilar.
O odor a fuligem inunda-me o nariz, forçando-me a usar a mão
encardida, para impedir que saia um espirro.
Seria uma forma patética de ser apanhada.
Quando tenho a certeza de que o meu nariz não vai alertar os Imperiais
que estão à espreita por baixo do meu esconderijo, volto a colocar a mão na
parede imunda contra a qual tenho as costas en­costadas e os pés plantados à
minha frente. Depois de respirar fundo, quase me engasgando com a
fuligem, recomeço vagarosamente a subir. Com as coxas a arderem quase
tanto quanto o meu nariz, forço o meu corpo a continuar a mover-se
enquanto evito espirrar.
Escalar uma chaminé não é exatamente a forma como pensava passar a
noite. O pequeno espaço faz-me suar, engolindo o medo antes de alcançar o
topo do corredor apertado, ansiosa por substi­tuir as paredes repletas de
sujidade por uma noite estrelada. Quando a minha cabeça chega ao topo,
espreito e engulo sofregamente o ar pegajoso, elevando-me de seguida, para
ser logo bombardeada com uma nova mistura de odores ainda mais
desagradáveis do que o cheiro nauseabundo a fuligem que se agarra ao meu
corpo, à minha roupa, ao meu cabelo. Suor, peixe, especiarias e, tenho a
certeza, algum tipo de fluído corporal, misturam-se para criar o aroma que
rodeia Loot Alley.
Equilibrando-me no topo da chaminé, observo o meu braço pe­‐
ganhento no telhado sombreado. Quase que me tinha esquecido de o
examinar, porque não senti a habitual dor aguda que, como lem­brança,
acompanha um golpe de espada.
Arranco uma tira de tecido da camisola suada que está colada ao meu
corpo, e limpo a ferida.
Adena vai matar-me por lhe estragar a costura. Outra vez.
Fico surpreendida por não sentir a habitual pontada de dor en­quanto
esfrego o meu braço com o tecido áspero, impaciente por absorver a
viscosidade.
E é neste momento que sinto o cheiro.
Mel.
O mesmo mel que pertence aos pequenos pães doces pegajosos que
escorre dos muitos bolsos do meu colete esfarrapado e pelo braço —
confundido com sangue. Suspiro, revirando os olhos a mim própria.
No entanto, é uma surpresa bem-vinda. Sem dúvida que estar
encharcada de mel é bem melhor do que tentar lavar nódoas de sangue.
Respiro fundo e olho para os prédios em ruínas e degradados,
sombreados pelos postes de iluminação que pontilham a rua. Não há muita
eletricidade aqui nos bairros de lata, mas o Rei generosa­mente presenteou-
nos com alguns postes. Graças aos Volts e aos Académicos que usaram as
suas habilidades para criar uma rede elétrica sustentável, tenho de me
esforçar bastante para me manter nas sombras.
Quanto mais distante dos bairros de lata, mais as filas de lojas e casas
melhoram lentamente de condição e tamanho. As barracas transformam-se
em casas, as casas em mansões, até chegar ao edi­fício mais assustador de
todos. À espreita através da escuridão, mal consigo distinguir as torres
imponentes do castelo real e a cúpula inclinada da Arena Bowl que fica ao
lado.
Os meus olhos voltam a fixar-se na rua larga que se estende diante de
mim, examinando os prédios imprecisos à sua volta. Loot Alley é o coração
dos bairros de lata, que alimenta o crime e o co­mércio por toda a cidade.
Percorro as dezenas de outros becos e ruas que se estendem a partir dessa
zona, perdendo-me no labirinto que é a cidade, antes de soltar um suspiro e
um pequeno sorriso para a familiaridade da rua que se encontra por baixo
de mim.
A minha casa. Mais ou menos. Tecnicamente, uma casa implica a
existência de um teto.
Mas olhar para as estrelas é muito mais divertido do que olhar para
um teto.
Sei bem do que falo, visto que costumava ter um teto para onde olhar
todas as noites, na altura em que não precisava das estrelas para me fazerem
companhia.
O meu olhar traiçoeiro percorre a cidade até ao local onde sei que a
minha antiga casa se situa, entre as ruas Merchant e Elm. Onde uma
pequena família feliz está provavelmente sentada à mesa de jantar, a rir e a
discutir o seu dia...
Ouço um estrondo, seguido de um murmúrio de vozes que me arranca
dos meus pensamentos tristes. Esforçando-me por ouvir, apenas consigo
distinguir a voz abafada e profunda que pertence ao guarda que eu tão
gentilmente libertei das suas funções há pouco tempo.
— ... veio por trás de mim, silencioso como um rato, e depois...
quando me apercebi, levei uma pancada no ombro e um murro na cara.
Uma voz feminina muito irritada e estridente ecoa pela chaminé: — Tu
és um Flash, por amor da Peste, não é suposto seres rápido ou algo do
género? — Ela inspira fundo. — Conseguiste ao menos ver a cara, antes de
o deixares roubar-me? Outra vez?
— Tudo o que vi foram os olhos — murmura o guarda. — Azuis.
Muito azuis.
A mulher protesta com irritação:
— Que útil. Vou parar todas as pessoas que vivem aqui no Loot para
ver se os seus olhos correspondem à tua descrição vívida de «muito azuis».
Eu reprimo reações quando algo range do outro lado da sala, seguido
por um coro de passos abafados. Pelo som da madeira a apodrecer sob
vários pares de botas novas, deduzo de imediato que mais três guardas se
juntaram à caçada.
E essa é a minha deixa.
Salto da chaminé e agarro-me à saliência do telhado, balançando as
pernas para ficar pendurada acima da rua. Inspirando, solto-me e mordo a
língua para não gritar quando a gravidade me puxa para o chão. Com um
estrondo suave, caio sem graça numa carroça cheia de feno de um
comerciante. A palha dura atravessa-me a roupa como uma das almofadas
de alfinetes de Adena, e uma nuvem de fuligem e feno levanta-se com a
brisa noturna quando salto para a estrada.
Retiro a palha do meu cabelo emaranhado e começo a minha viagem
de regresso à Fortaleza, passando por carrinhos de comer­ciantes velhos,
abandonados durante a noite, com as rodas desequi­libradas sobre o lixo e
bugigangas partidas. Os ladrões encostados nos becos ou escondidos entre
edifícios sussurram entre si quando passo.
Sinto o peso da adaga enfiada na minha bota e relaxo com o conforto
do aço frio enquanto passo por grupos de sem-abrigo que se amontoam para
passar a noite. Consigo ver o brilho ténue dos campos de forças púrpura que
protegem alguns, enquanto outros nem sequer têm uma habilidade
suficientemente forte que lhes per­mita dormir em paz, que é a verdadeira
razão pela qual chamam aos bairros de lata a sua casa.
Mantenho o meu passo rápido e firme e enquanto os meus olhos
percorrem as vielas, sem baixar a guarda. Os pobres não discrimi­nam. Um
xelim é um xelim, e para o conseguir, eles não querem saber se atacam
alguém que está numa situação pior do que a sua.
Vários guardas cruzam-se no meu caminho enquanto vagueio pelas
ruas, obrigando-me a abrandar para me desviar. Todas as lojas, esquinas e
ruas receberam a dádiva dos agentes da lei com far­das brancas e olhares de
soslaio. Estes Imperiais brutos foram co­locados em Loot Alley por decreto
do Rei, devido ao aumento da criminalidade.
É evidente que não querem nada comigo.
Faço um desvio por um beco mais pequeno, dirigindo-me para um
canto sem saída. Ali, há uma barricada de carrinhos de comerciantes em
más condições, cartão, lençóis velhos e sabe-se lá mais o quê. Antes mesmo
de chegar a meio caminho do monte de lixo a que cha­mamos casa, um rosto
obscurecido por caracóis selvagens à altura dos ombros, surge por cima da
Fortaleza.
— Conseguiste?!
Libertando as suas longas pernas do lugar onde está sentada, levanta-se
sem esforço e atravessa a parede de um metro da nossa barricada de lixo
sem pensar duas vezes, a correr na minha direção com tanta esperança nos
olhos que até parece que lhe ofereci um verdadeiro teto e uma refeição
quente. E embora não lhe possa dar nenhuma destas coisas, tenho algo
muito melhor na sua opinião.
Resmungo.
— Sinto-me ofendida por teres duvidado de mim, Adena. Depois
destes anos todos, pensei que tivesses um pouco mais de fé nas mi­nhas
capacidades.
Removo a minha mochila das costas e retiro uma seda vermelha
amarrotada, incapaz de conter o meu sorriso enquanto um olhar de
admiração se instala no seu rosto.
Com avidez, tira a seda das minhas mãos, passando os dedos pelas
dobras suaves do tecido. Espreitando por entre a franja enca­racolada que
lhe cai nos olhos cor de avelã, olha para mim como se eu tivesse acabado de
erradicar a Peste em vez de roubar tecido a uma mulher que não está muito
melhor do que nós.
Como se eu fosse a heroína e não a vilã.
O sorriso de Adena podia rivalizar com o sol que cai no deserto de
Scorches.
— Pae, tu e os teus dedos malandros fazem magia, sabias?
Atira os braços à volta do meu pescoço, puxando-me para um abraço
esmagador que faz com que mais mel escorra pelo meu co­lete e se acumule
nos meus bolsos.
— Por falar em dedos malandros... — Solto-me do seu abraço e levo
as mãos aos bolsos. Retiro seis pequenos pães doces esmaga­dos, perdendo
um pouco do seu aspeto apetitoso, apenas pelo feno que agora os decora.
Os olhos de Adena arregalam-se ao ver aquilo, antes de arrancar um da
minha mão com a mesma sofreguidão com que arrancou o tecido. Vira-se a
meio da mordidela e atravessa a nossa Fortaleza sem pensar duas vezes,
sentando-se sobre os tapetes incolores e ás­peros que se encontram no
interior da barricada. Dá palmadinhas expectantes no lugar vazio ao seu
lado e, ao contrário dela, salto, sem elegância, por cima do muro antes de
me poder sentar.
— Aposto que a Maria não ficou muito contente com o roubo. Outra
vez. A pobre coitada devia aumentar a segurança — diz Adena entre
dentadas, com um sorriso torto a juntar-se às migalhas no rosto.
Apesar de eu ter roubado a mulher pelo menos uma vez por mês
durante os últimos anos, ela ainda só conseguiu concluir que eu sou um ele.
Pelo menos está a tentar.
— Na verdade — digo com um encolher de ombros —, ela tem mais
dois Imperiais na loja. Deve estar a ficar cansada de todos os pães doces
roubados ao longo dos anos.
Adena estreita o seu olhar cor de avelã ao ver o meu sorriso.
— Graças à Peste que não foste apanhada, Pae.
Assim que a frase lhe escapa dos lábios, o meu maxilar contrai-se
instintivamente enquanto o dela se abre a meio da mordida. Ela encolhe-se
visivelmente, com as sobrancelhas franzidas, limpando a voz:
— Desculpa. É um mau hábito.
Os meus dedos vão até ao anel grosso que uso no polegar, ro­dando-o
sem pensar, enquanto lhe devolvo um sorriso débil. Este tópico é um dos
que normalmente tentamos evitar, mesmo que o assunto se tenha tornado
subitamente constrangedor por minha culpa.
Tudo por causa de um momento de fraqueza do qual não gosta­ria de
me sentir tão aliviada.
— Sabes que não são as palavras que me incomodam, mas sim...
— Mas sim o significado por detrás delas — diz Adena com um
sorriso e uma imitação demasiado precisa da minha voz.
Quase me engasgo com o meu riso, num pedaço de massa doce. —
Estás a citar-me, A?
Em resposta, dá uma dentada no pão doce antes de declarar, de boca
cheia.
— E não é a Peste que nos deixa doentes, é o que veio depois.
Eu aceno lentamente com a cabeça enquanto traço o padrão gasto do
tapete, a sensação conhecida sob o meu dedo. A ideia de agrade­cer à Peste
que matou milhares de Ilyans faz-me perder o apetite até para os pães
doces. Agradecer à coisa que causou tanta dor, morte e discriminação.
Mas agora só querem saber quem é que a Peste não matou. O reino foi
isolado durante anos para evitar que a doença se espalhasse pelas cidades
vizinhas, e só os mais fortes de Ilya sobreviveram à doença que alterou a
própria estrutura dos humanos. Os rápidos tornaram-se excecionalmente
mais rápidos, os fortes tornaram-se imbatíveis, e aqueles que espreitavam
nas sombras podiam revelar-se como som­bras. Dezenas de habilidades
sobrenaturais foram concedidas apenas aos Ilyans, todas variantes da força,
propósito e poder.
Dons que serviram como recompensa pela sobrevivência.
Esses são os Elites. São extraordinários. São excecionais.
— Apenas... — Adena pondera o que dizer, mexendo no seu pão doce
enquanto se esforça para formar palavras. — Tem cuidado, Pae. Se fores
apanhada e não fores capaz de fugir...
— Eu vou ficar bem — digo com demasiada naturalidade, igno­rando a
preocupação que se apodera de mim. — Isto é que eu faço, A. O que
sempre fiz.
Ela suspira através do seu sorriso, acenando com altivez.
— Eu sei, eu sei. Tu sabes lidar com os Elites.
Sinto novamente aquela onda de alívio, que me faz sentir simul­‐
taneamente culpada e grata por ela me conhecer verdadeiramente. Porque
nem todos os que sobreviveram à Peste tiveram a sorte de ser dotados de
habilidades. Não, os Vulgares eram apenas isso — vulgares. E durante as
décadas seguintes à Peste, os Vulgares e os Elites conviveram em paz.
Até que o Rei Edric decretou que os Vulgares já não podiam viver no
seu reino.
Foi há mais de três décadas que a doença passou por cá. Devido ao
surto do que era provavelmente uma doença comum, os Curan­deiros do Rei
aproveitaram a oportunidade para afirmar que os Vul­gares eram portadores
de uma doença indetetável, afirmando que essa era provavelmente a razão
pela qual não tinham desenvolvido habilidades. A exposição prolongada
aos Vulgares tornou-se prejudi­cial tanto para os Elites quanto para os seus
poderes e, com o tempo, os Vulgares estavam a diminuir as habilidades que
os Elites tanto protegiam.
Luto contra a vontade de revirar os olhos ao pensar nisso.
O meu pai acreditava que tal não passava de um disparate e eu não
penso de forma diferente. E mesmo que tivesse provas de que o Rei mentia
com todos os dentes, não é como se uma rapariga dos bairros de lata
estivesse em posição de ser credível.
Mas o Rei não podia permitir que a sua sociedade de Elite fosse
debilitada ou inferior por meros Vulgares. A extinção não era uma opção
para os extraordinários.
E assim começou a Purga.
Mesmo agora, décadas depois, as histórias dos corpos que se espa­‐
lharam pela areia sob o sol escaldante são contadas casualmente à volta de
fogueiras, histórias assustadoras sussurradas entre as crianças.
Uns dedos pegajosos fecham-se sobre os meus, o mel que cobre as
mãos de Adena é tão doce como o sorriso que partilha comigo. O meu
segredo está guardado no brilho dos seus olhos, na lealdade que reveste a
sua expressão. Passei tanto tempo da minha vida re­signada ao facto de que
nada seria real. Cada amizade falsa, cada bondade calculada.
«Esconde os teus sentimentos, esconde o teu medo, e mais impor­tante,
esconde-te atrás da tua fachada. Ninguém pode saber, Paedy. Não confies
em ninguém e em nada a não ser nos teus instintos.»
A voz terna do meu pai é estranhamente assustadora quando ecoa na
minha cabeça, lembrando-me que cada parte da minha vida deve ser uma
mentira e que a rapariga sentada à minha frente deve ser tão falsa como o
resto do reino.
O egoísmo só me roubou a sanidade por uma noite, mas foi o bastante
para nos pôr em perigo.
— Muito bem, já chega de falar da Peste — diz Adena alegremente,
examinando o beco antes de acrescentar — e da tua... situação.
Nem me dou ao trabalho de abafar o meu suspiro.
— Parece que dois anos não te deram tempo suficiente para pra­ticares
a subtileza, A.
Duvido que me tenha ouvido. Duvido que consiga concentrar-se em
algo que não seja o tecido que agora desliza entre os seus dedos. Com os
olhos cor de avelã a examinar os materiais de costura, Adena abandona a
nossa conversa para divagar sobre as peças que vai fazer com a nova seda.
As suas mãos castanhas e quentes deambulam pelos restos de tecido à luz
do candeeiro, começando a dobrar as bordas, a prender os cantos, a picar os
dedos, reclamando sem parar.
Entramos no tipo de conversa fácil que só surge depois de passar­mos
anos a sobreviver juntas nas ruas, o que torna fácil interpretar as palavras
distorcidas de Adena em torno dos alfinetes pressiona­dos entre os seus
lábios. Viro-me para o lado, ficando finalmente em silêncio enquanto
observo os seus dedos firmes e a testa franzida, demasiado absorvida pelo
trabalho para conseguir dormir.
Uma dor lancinante de lado faz com que os meus olhos fechados se
abram, esquecendo a sonolência. A pedra irregular do chão do beco deixa-
me a resmungar.
— Atenta ao que te digo, um dia vou roubar uma cama.
Adena revira-me os olhos, tal como faz todas as noites em que faço a
mesma promessa vazia.
— Só acredito quando sentir, Pae — Adena começa a cantarolar.
Virei-me cerca de uma dúzia de vezes antes de um cobertor ás­pero e
enrolado colidir com a minha cabeça.
— Se não parares de te contorcer, juro que te coso ao chão — pro­mete
Adena com toda a doçura de um pão doce.
— Acreditarei quando sentir, A.
Uma bola de fogo passa-me pela cara, quase me arrancando o cabelo.
Mal tenho tempo de me baixar quando sinto uma segunda onda de calor a
aproximar-se.
Pestes, o Kitt está com um excelente humor hoje.
A dançar sobre as solas dos meus pés, vejo outra esfera de fogo dirigir-
se a mim, enquanto sou invadido por uma sensação fami­liar de adrenalina.
Atiro um escudo de água, ouvindo o fogo sibilar antes de se fundir numa
espessa nuvem de vapor. Kitt semicerra os olhos, tentando procurar-me
através do fumo, antes de os arregalar quando, de repente, colido com ele.
Caímos no chão e eu prendo-o, erguendo um punho apontado à sua cara.
— Rendes-te?
Não consigo evitar que um sorriso me contraia os lábios. Ele solta uma
gargalhada, o olhar percorrendo o meu rosto e o punho em chamas.
— Se eu disser que não, vais mesmo dar-me um murro, maninho?
Apesar do fogo que arde a poucos centímetros, os olhos verdes de Kitt
brilham com a diversão.
— Pensava que por esta altura já saberias a resposta a isso. — Sorrio
ligeiramente enquanto levanto mais o punho, em pose de ataque.
— Está bem, está bem, eu rendo-me! — Kitt gagueja. — Mas só
porque não quero que o pobre Eli tenha de tratar de mais um dos nossos
narizes partidos.
Rio-me sombriamente com a ideia de ver a cara do médico real se lhe
apresentássemos mais um osso lesionado. Depois de me le­vantar, estendo a
mão a Kitt, ainda caído no chão.
O sorriso que me devolve não se reflete no seu olhar, até que por fim
declara:
— Pestes, Kai, és melhor do que eu a lidar com os meus poderes.
— E é por isso que tu vais governar o país — digo-lhe com natura­‐
lidade —, enquanto eu estarei a lutar no campo de batalha, a distrair o
inimigo com a minha boa aparência.
— Estás a dizer que eu não conseguiria distrair o inimigo com a minha
boa aparência? — pergunta Kitt com um riso grave, fingindo-se ofendido.
— Estou a dizer que somos apenas meios-irmãos, por isso receio que
tal signifique que só tens metade dos meus encantos.
Kitt solta outra gargalhada.
— Seguindo essa lógica, suponho que só tens metade do meu cérebro.
— Agradece à Peste por isso.
As palavras mal tinham saído da minha boca e ele já me estava a
lançar um sorriso forçado.
Percorremos o caminho gasto, entre os círculos de treino de terra
batida que se encontram nos terrenos do castelo. Os Imperiais estão a
treinar e outros Elites de estatuto mais elevado prosseguem com os seus
combates enquanto passamos por eles; são mais aque­les que usam
habilidades do que os que usam armas.
As cabeças voltam-se para nós, os seus olhares queimam a minha pele,
espelhando o sol que nos bate lá de cima. Ignorando-os, ins­piro o cheiro
habitual a sangue, suor e lágrimas do campo de treinos, antes de pegar em
duas espadas de uma prateleira de armas, lançando uma a Kitt, cuja
expressão só pode ser descrita como exasperada.
— Sabes que sempre gostei mais de lutar com armas do que com
habilidades? — digo em resposta ao seu olhar provocador, enquanto
irracionalmente testo o equilíbrio da minha lâmina.
Kitt avança para o ringue lamacento, revirando os olhos.
— Sim, sei bem o quanto aprecias uma luta de espadas comigo.
Giro o pulso, balançando a minha lâmina enquanto começamos a andar
aos círculos.
— É de facto um dos meus passatempos favoritos. — Avanço re­‐
pentinamente, oscilando a minha espada com força contra a sua e enviando
um choque pelo meu braço acima.
— Estás a ver, não é divertido?
Kitt range os dentes em resposta ao meu golpe.
— Fascinante.
Caio num transe familiar, libertando os meus pés numa dança à volta
do ringue enquanto lutamos, perdendo-me no ritmo. Sinto o desanuviar da
minha mente. O meu corpo vibra com a energia. Sempre me senti no auge
da vivacidade quando luto. Foi para isso que fui criado, foi isso que me
manteve são ao longo dos anos de treino e tutoria.
«Um rei imbecil é um rei morto.»
As palavras do meu pai ressoam na minha cabeça, fortemente
marcadas após cada queixa sobre as lições aborrecidas que tive quando era
mais novo. No entanto, não vou ter de me preocupar com o facto de ser um
rei morto ou imbecil, uma vez que não serei rei de todo. E depois de lhe
apresentar tal facto, o Pai gentilmente criou um lema diferente para ditar a
minha vida.
«Um Executor imbecil é um império derrotado.»
Encorajador.
Uma dor aguda sobe-me pelo antebraço, arrancando-me dos meus
pensamentos com um sobressalto.
— É melhor concentrares-te na luta, Kai, ou posso mesmo ganhar-te.
— Kitt tem um olhar triunfal no rosto que eu tenciono apagar. — Não quero
que o meu futuro Executor se descuide com o tra...
Antes que possa concluir o comentário, estou a empurrar-lhe a espada
para o chão e a prendê-la debaixo da minha, colocando-me na sua
retaguarda. Num movimento rápido, levanto a minha bota, saco uma adaga
e coloco a ponta afiada nas suas costas.
— Desculpe, o que disse, Vossa Majestade?
Solto-o e ele vira-se enquanto eu faço uma vénia satírica e enfio a
adaga de volta na bota. Isso valeu-me um forte empurrão que quase me fez
cambalear, um empurrão que eu retribuo enquanto Kitt se ri.
Neste momento, o seu cabelo louro sujo, apresenta-se mais sujo do que
louro, salpicado de pedaços de lama de tanto ter rolado no ringue. As nossas
camisas há muito que foram tomadas pelo calor do verão e, tal como eu, o
suor mancha-lhe o peito bronzeado.
É quase cómico o quão óbvio é o facto de sermos apenas meios-
irmãos. Para além das nossas diferenças físicas, falta-me o cari­nho de Kitt,
e a ele falta-lhe a minha insensibilidade. Ele é paciente, agradável e
adequado para o trono, tal como eu sou adequado para o campo de batalha.
A ele o perfil de rei, a mim o de um assassino.
— Kai, estás a ouvir-me? — Kitt parece igualmente preocupado e
divertido enquanto estala os dedos à frente da minha cara. — Pestes, quanto
sangue é que perdeste?
Sigo-lhe o olhar e vejo um fluxo vermelho a sair da ferida do meu
braço, sangue a tecer-me os nós dos dedos e a pingar.
— Bem, parece que o Eli não vai ter um dia de folga, graças a ti.
Olho para Kitt, à espera de um comentário, mas encontro o seu olhar
fixo em algo que está do outro lado do terreno.
— Agora olha quem não está a prestar atenção.
Os meus olhos desviam-se para a figura que se pavoneia na nossa
direção, com as peles de treino agarradas a todas as suas cur­vas e o cabelo
lilás a mover-se com o vento.
— Oh, olha. A vadia da Blair — digo entre sussurros, antes de ela se
aproximar, fazendo com que Kitt se engasgue com o riso.
— Olá, rapazes. — A sua voz é como o gelo, fria e suave. — Como
está a correr o treino?
O seu olhar vagueia preguiçosamente por nós os dois antes de voltar
aos nossos rostos, com um ligeiro sorriso.
— Estás a preparar-te para as Provas, Kai?
— Não que precise de me preparar — respondo.
Um sorriso lento surge-lhe no rosto.
— Acho que o futuro Executor vai querer causar uma boa im­pressão
no reino. E para isso é preciso vencer.
De repente, mostra-se muito interessada nas suas unhas, fin­gindo um
estado de despreocupação.
Passo uma mão pelo cabelo com um suspiro de aborrecimento.
— É exatamente isso que tenciono fazer.
Ela entrega-me um sorriso que é tudo menos doce.
— Espero que sim, visto que és o melhor Elite das últimas déca­das.
Ou, pelo menos, é o que dizem.
Pestes, aqui vamos nós.
Kitt dá um passo em frente e põe uma mão no peito como se tivesse
sido ferido.
— Ai, Blair. Vou recordar-me desse comentário quando for Rei.
— Feri-te o orgulho, Kitt? — finge um beicinho falso antes de vol­tar a
sua atenção para mim. — Além disso, acho que serei eu a ga­nhar as Provas.
Solto uma gargalhada seca antes de olhar para a sua pequena figura.
— E o que é que te faz ter tanta certeza de que vais competir? — digo
isto sabendo muito bem que irá participar nas Provas.
Com um movimento rápido de pulso, uma adaga cai da prate­leira das
armas em resposta ao meu comentário. Antes que possa sequer pestanejar, o
punhal encontra-se subitamente suspenso no ar e a causar pressão na minha
jugular.
— Como filha do general — aproxima-se de mim até ficarmos a
poucos centímetros de distância e sussurra —, acho que tenho boas
hipóteses de entrar nas Provas. Não achas?
Ela ri-se enquanto pressiona a faca na minha garganta, pro­vando ainda
mais o seu ponto de vista.
O zumbido de dezenas de poderes percorre-me o sangue, todos
pertencentes aos outros indivíduos que treinam no pátio. Forço as ou­tras
habilidades ao silêncio, concentrando-me no poder de Blair e na sensação
do seu zumbido sob a minha pele, incitando-me a agarrá-lo. Ela é uma Tele
poderosa, e a sua demonstração com a adaga é apenas uma amostra do que
consegue fazer com a mente. Eu pego naquela sensação de formigueiro que
é a sua habilidade e deixo que me do­mine, que venha à superfície.
E depois, torno-me nela.
Tal como fiz com o poder Duplo de fogo e água do Kitt, e tal como
posso fazer com qualquer uma das habilidades que me rodeiam.
O meu sorriso é calculista, quando lanço a adaga flutuante no ar,
empurrando-a contra o couro duro que cobre o coração dela com nada mais
do que a minha mente.
— Bem, então é melhor ires treinar — digo baixinho antes de largar a
sua habilidade, deixando a adaga cair no chão com um estrondo. Não me
dou ao trabalho de proferir uma única palavra antes de me virar e caminhar
em direção ao castelo.
Kitt segue em silêncio ao meu lado, aparentemente tão perdido nos
seus pensamentos como eu, enquanto atravessamos os portões do palácio.
Com as Provas a apenas duas semanas de distância, pa­rece que já não sou
capaz de ignorar alegremente a sua existência e o papel que tenho na sua
realização.
O cheiro de frango assado e batatas que emana das cozinhas é
suficiente para roubar a minha atenção. Olho de relance para o
anormalmente silencioso Kitt, antes de me virar para atravessar as portas da
cozinha.
— Boa tarde, minhas senhoras. — Esboço um sorriso rápido para as
cozinheiras e criadas que se movimentam enquanto preparam o jantar. —
Sentiram a minha falta? — canto, saltando para um balcão duro apoiado nas
palmas das mãos.
Atento a algumas criadas que ficam coradas, trocando sussur­ros
risonhos umas com as outras, antes de voltarem ao trabalho.
O calor da cozinha atinge-me como uma onda, passando por mim e
cobrindo a minha pele já escorregadia.
A minha pele.
Passo a mão pelo cabelo antes de a passar pela cara, sem me inco­‐
modar com o facto de ter andado sem camisa depois de a ter abando­nado
naquele ringue imundo — um hábito que nem o Pai conseguiu retirar-me.
A cabeça de Kitt aparece ao virar da esquina, com um sorriso no rosto.
— Pareceu-me sentir o cheiro do meu prato preferido. És uma querida,
Gail. — Dirige-se para a cozinheira que está perto do fogão, a mexer uma
panela cheia de batatas cremosas, com a pele escura a brilhar com o suor.
Não consegue evitar sorrir ao ver a cara de Kitt.
— Oh, não penses que fiz isto por ti, Kitty. A verdade é que o puré de
batata também é o meu preferido. — Ela sorri, dá-lhe uma palmadinha na
bochecha antes de se virar novamente para a panela. Os seus olhos
encontram-se com os meus, de onde estou sentado, antes de se desviarem
para o meu braço e para a ferida ainda a sangrar. Ao abanar a cabeça, diz
severamente: — É bom que não sujes o meu balcão com sangue, Kai.
Eu sorrio.
— Não seria a primeira vez.
Ela torna a abanar a cabeça, lutando por evitar um sorriso. Gail tem-
nos dado comida e guloseimas à socapa desde que éramos miú­dos, a correr
pelo castelo apenas com metade da roupa vestida — o que claramente ainda
fazemos. Já assistiu a muito mais do que uma luta nesta mesma cozinha
sobre quem fica com o último pão doce.
— Já não me visitavam há algum tempo — diz ela, colocando tem­pero
nas batatas. — Estão a ficar fartos de mim?
— De ti, sim. Mas nunca da tua comida. — Mal digo estas palavras,
vejo várias batatas moles voarem na minha direção. Não tenho tempo nem
energia para me esquivar antes que o puré se junte à lama e à sujidade.
— Nunca tens um momento aborrecido connosco, pois não? — diz
Kitt, encostado a um parapeito, observando enquanto eu limpo as batatas
agarradas ao meu cabelo.
Desço do balcão e dirijo-me à cozinheira, dando-lhe um beijo na
bochecha.
— É sempre um prazer, Gail. — Estico-me à sua volta para pegar
numa maçã do cesto e digo: — Estou ansioso pela nossa próxima luta de
comida.
Depois de lançar uma ao Kitt, esfrego a minha própria maçã nas calças
e dou uma dentada.
— Príncipe Kai?
Fico tenso, suspiro e dirijo-me à voz que está por trás de mim. É um
rapaz jovem, nervoso, com as mãos a mexer na bainha da ca­misa. Levanto
as sobrancelhas, evidenciando a minha impaciência.
— O Rei solicita a sua presença na sala do trono.
A roda da carroça de um comerciante passa-me por cima dos dedos
dos pés. Retraio um grito, mas não me dou ao trabalho de re­primir uma
resposta rude, dirigida ao homem que se encontra alheio relativamente à dor
que inflige aos transeuntes com o seu carrinho.
Bem, o dia de hoje está a começar bem.
Dormi mal a noite passada, virando-me e revirando-me en­quanto
entrava e saía dos meus pesadelos recorrentes. Memórias do meu pai a
morrer enquanto eu não posso fazer nada a não ser segurar-lhe a mão, subir
uma chaminé apenas para encontrar o topo fechado com tábuas, e Adena, a
única pessoa que me resta neste mundo, a ser arrastada para longe de mim
aos gritos.
A dada altura, entre os meus numerosos pesadelos, Adena fez uma
débil tentativa para me acordar. Virei-me para o lado a gemer, tentando
agarrar-me ao pouco sono feliz que consegui roubar. Posso ser uma ladra,
mas a mim, roubam-me regularmente o descanso.
Persistente como de costume, Adena mudou de estratégia e de­cidiu
atirar-me com pedaços de tecido até eu levantar um pano branco em sinal
de rendição.
O sol, preguiçoso como sempre, está lentamente a tentar esprei­tar por
cima dos edifícios degradados, atirando Loot Alley para as sombras da
manhã enquanto eu desço o caminho de pedra. À me­dida que a rua ganha
vida com a azáfama dos comerciantes que regateiam enquanto os pedintes
imploram a qualquer um que lhe dedique um olhar, eu passo despercebida
no caos que rodeia os bairros de lata.
As minhas mãos reagem à necessidade de roubar alguma co­mida para
acalmar o meu estômago e levar alguma para a Adena. Os meus olhos
percorrem a rua em busca da minha próxima vítima para roubar quando...
Há algo que não está bem.
Catorze. Só há catorze Imperiais ao longo da rua.
Mas hoje devia haver pelo menos dezasseis.
É algo que eu sei, pois memorizei os seus turnos.
Vejo o Cabeça de Ovo e o Nariz de Gancho nos seus lugares habituais
à porta da loja da Maria, juntamente com vários outros Imperiais com
nomes igualmente peculiares. Com as máscaras de cabedal branco a ocultar
metade das suas caras, é difícil arranjar al­cunhas criativas para os sacanas,
por isso orgulho-me das poucas que inventei.
Normalmente, a perspetiva de menos guardas seria um alívio, e talvez
sejam as minhas habilidades de Psíquica a entrar em ação, mas o cenário
preocupa-me.
O meu estômago ronca furioso, impaciente como sempre.
Primeiro a comida, depois a sensação de que algo não está bem.
Vagueio pela multidão com facilidade, roubando maçãs do car­rinho
que me passou por cima dos dedos dos pés, a vingança tão doce como a
fruta estaladiça que mordo. Encostado à parede em ruínas de uma loja, vejo
o que parece ser um jovem aprendiz a re­gatear com um comerciante.
Observo-o a fixar o comerciante com um olhar fulminante, antes de atirar
algumas moedas e agarrar na­quilo que parece ser um conjunto de couro
preto. Os meus olhos in­vestigam os xelins que caem da carroça, contando-
os rapidamente e constatando que há ali mais moedas do que as necessárias
para comprar couro.
Está com pressa. É por isso que está disposto a pagar o dobro do que
devia, em vez de perder tempo a negociar um preço mais baixo. E tem
dinheiro de sobra.
O alvo perfeito.
Entro na rua e dirijo-me ao rapaz, movendo-me rapidamente por entre
a multidão enquanto puxo a correia de cabedal que me prende o cabelo,
afastando-o do rosto e do pescoço. Cai-me pelas costas numa cascata de
ondas prateadas e desarrumadas, enquanto amaldiçoo o calor sufocante que
já me deixa o pescoço repleto de suor. Deixando cair o cabelo para os
ombros e para o rosto, trans­formo-me na imagem perfeita da inocência.
«Faz com que te subestimem. Faz com que não te vejam até que
queiras ser vista.»
Há tanto tempo que não ouço a voz do meu pai, que o seu som suave
ameaça escapar-me da memória e juntar-se a ele na morte.
O pensamento desfaz-se quando colidimos.
Tropeço, tentando agarrar o aprendiz desprevenido enquanto me deixo
cair. Pegando num punhado da sua camisa com uma mão, enfio a outra no
bolso do colete, de onde o vi tirar as moedas. Sinto que tem seis xelins e
resisto à vontade de os agarrar a todos, mas só apanho três.
A ganância não é uma emoção fácil de dominar, mas forço-me a deixar
as outras moedas, sabendo que é provável que ele seja su­ficientemente
esperto para sentir a falta de peso no bolso caso eu agarre em todas. E não
preciso de acrescentar mais cicatrizes às costas por ter sido apanhada.
Mas quando estou prestes a estender a mão e a pedir desculpa por
quase ter atropelado o rapaz, os meus dedos prendem-se no forro interior do
seu colete. Não, não é só forro — um bolso secreto. Sinto um pedaço de
pergaminho dobrado lá dentro e, num impulso que não consigo explicar ou
justificar, decido pegar nele antes de retirar a minha mão e olhar
timidamente para o rosto do aprendiz.
Os seus olhos castanhos estão arregalados quando o encaro por entre
os fios de cabelo que me atravessam o rosto. Transformo a minha
expressão, para demonstrar constrangimento e rapidamente liberto a minha
mão da sua camisa.
Afastando uma madeixa de cabelo dos olhos, dou um passo atrás para
evidenciar o espaço entre nós.
— Peço imensa desculpa, senhor! — Forço-me a soar sem fôlego,
envergonhada, inofensiva. — Tenho a certeza de que sou a única pes­soa em
toda a Ilya capaz de tropeçar no ar!
Vamos. Subestima-me. Ignora-me.
Ele passa uma mão pelo cabelo encaracolado e ri-se.
— Não te preocupes. Parece que tens um talento e peras. — Sorri, mas
o seu olhar demora-se um pouco de mais para o meu gosto.
Por isso, ofereço-lhe um sorriso e um aceno de cabeça antes de me pôr
a andar e desaparecer numa rua cheia de gente.
O aroma adocicado dos pães paira no beco movimentado quando passo
pela loja da Maria e entro numa das muitas ruelas pequenas que se
ramificam através de Loot Alley. O bilhete que roubei encon­tra-se húmido
de suor quando o agarro com a palma da mão. O que é que poderá estar
escrito neste pequeno pedaço de papel que justifique um esconderijo tão
elaborado?
Tenciono descobrir.
Encostando as costas à parede de tijolo sujo, desdobro as mar­gens do
papel para revelar uma nota rabiscada:

Olho para o bilhete, pestanejando em completa confusão en­quanto o


meu coração acelera com a ansiedade.
Esta é a minha casa.
Bem, esta era a minha casa.
Pela inclinação das letras e pelo borrão da tinta, posso dizer que quem
escreveu isto estava provavelmente com pressa para esconder o bilhete de
olhares curiosos.
Olhos curiosos como os meus.
Sou assaltada por inúmeras perguntas, cada uma mais confusa do que a
anterior. Por que razão, nesta terra abandonada pela Peste, é que há reuniões
a serem realizadas em minha casa?
Antiga casa. Deixaste-a, lembras-te?
E reunirem-se lá, a meio da noite, com materiais?
O couro.
Tropeço na calçada irregular, o que me faz voltar à realidade e
perceber que estive a andar de um lado para o outro este tempo todo.
Guardo novamente o bilhete amarfanhado, com a mente ainda a
cambalear enquanto regresso à rua movimentada, agora banhada pela luz do
sol. Abano a cabeça, tentando desanuviá-la, atravessando a multidão de
pessoas que trocam palavras, cusquices e palavrões.
Começando a percorrer as carroças dos mercadores mais uma vez, caio
no ritmo familiar que é a minha ocupação honesta — rou­bar. A minha
mente vagueia enquanto trabalho, deixando-me a pensar se Adena está a ter
sorte na venda das suas roupas, no outro extremo da longa rua.
Eu roubo, ela costura.
E tem sido assim a nossa vida nos últimos cinco anos. Eu tinha apenas
treze anos e estava completamente sozinha no mundo quando Adena
literalmente se cruzou no meu caminho. Bem, ela passou por mim. Nunca
esquecerei a cara do Imperial a correr atrás dela, acusando-a do roubo de
bolos. E sem pensar duas vezes, não hesitei em passar-lhe uma rasteira.
Assim que vislumbrei a cara do guarda no chão, comecei a perseguir a
rapariga de cabelo encaraco­lado que passou por mim.
Nesse dia, nasceu uma aliança inquietante, que era suposto manter-se
assim.
A minha mão congela no ar, pairando sobre uma toranja car­nuda,
quando um grito arrepiante atravessa o caos de Loot. Viro-me, esquecendo
a fruta, à procura da origem do barulho no meio da multidão de corpos. Os
meus olhos examinam o povo antes de se fixarem numa figura pequena e
curvada, encolhida contra um poste de madeira manchado de vermelho no
centro da rua. Um Imperial paira sobre o pequeno rapaz, de chicote na mão,
com um ar asque­roso e repleto de satisfação, enquanto olha para a criança.
Conheço demasiado bem esse olhar. Já estive no lugar daquela criança
ensan­guentada várias vezes.
Foi apanhado.
Pergunto-me o que terá roubado, o que terá justificado tal espan­‐
camento. Alguma peça de fruta? Talvez alguns xelins de um comer­ciante?
Lembro-me de já ter ficado encostada a um poste de madeira, a tremer com
a dor infligida por cada estalido do chicote, enquanto mordia a língua para
não gritar. A dor desaparece, mas as cicatrizes permanecem como um
incentivo para o bom comportamento.
Os mais novos são sempre apanhados. São carentes. Ainda não
aprenderam a controlar a ganância ou a viver com a fome, o que os torna
alvos fáceis para os Imperiais usarem como exemplo.
Não podes fazer nada por ele.
Tenho de dar importância a essas palavras na minha cabeça para
garantir que os meus pés não caminham até ao rapaz. Porque eu já o tentei.
Tentei intervir e ajudar uma menina que era uma lembrança vívida do que
passei. Tão assustada e, no entanto, tão determinada a nunca o demonstrar.
Quando ela olhou para mim, o fogo no seu olhar refletiu o meu. No final, a
minha tentativa de a ajudar apenas terminou com chicotadas extra para as
duas.
Faço um esgar e afasto-me rapidamente da cena macabra, ape­nas para
ficar com a boca cheia de fécula do uniforme amarrotado do selvagem
contra quem embato.
O Imperial olha-me fixamente, com os olhos cheios de diver­timento
rodeados por aquela máscara branca. Embora pareça ter pelo menos mais
dez anos do que eu e um cabelo louro com jeitos estranhos, demora-se a
percorrer o meu corpo com o olhar. Mordo a língua antes de dizer algo que
sabia que ele ia usar para me mos­trar como sentir arrependimento.
Os Imperiais não são conhecidos por serem cavalheiros quando se trata
de jovens raparigas — ou de qualquer outra pessoa — e eu não tenciono
descobrir se ele é a exceção.
— Desculpe, senhor. Hoje pareço estar estranhamente desas­trada —
digo, enquanto planeio a minha fuga no meio da multidão.
Uma mão húmida envolve-me o pulso e faz-me voltar para trás. Reúno
todas as forças que tenho para suprimir o instinto de luta que me incentiva a
dar-lhe uma joelhada nas virilhas e mandar-lhe a cabeça contra as pedras da
calçada.
— Porquê tanta pressa? — O seu sorriso alargado e os olhos ne­gros
causam-me um arrepio na espinha, e o cheiro a álcool no seu hálito só
aumenta a minha inquietação.
Sorrio e forço-me a ser educada enquanto me liberto do seu aperto.
— Só estou a tentar fazer uns recados antes que o mercado fique
demasiado cheio, é só isso.
— Hmm — grunhe, olhando-me com ceticismo. — Diz-me lá, qual é o
teu poder, rapariga?
Luto contra a vontade de mostrar demasiada resistência, enquanto ele
continua com um sorriso.
— Por decreto do Rei, devo interrogar qualquer pessoa que sinta... que
deve ser interrogada.
Adora estar no controlo. Ter poder.
— Sou Mundana — digo simplesmente, afirmando o meu nível no
escalão dos Elites para provar que não sou uma ameaça, nem tenho
relevância. — Uma Psíquica.
Olho-o diretamente nos olhos escuros enquanto o digo, dese­jando que
o seu coração negro acredite em mim.
— Ai é? Nunca conheci uma Psíquica. — Ele ri-se sombriamente e dá
um passo na minha direção, inclinando a cabeça para perto da minha,
deixando notar uma vez mais o forte odor a álcool que se entranha. —
Então, prova-o.
Começo a ficar bastante cansada desta exigência.
Encontro os olhos do Imperial, recusando-me a dar-lhe a satis­fação de
pensar que estou preocupada, embora o meu pulso acele­rado prove o
contrário.
— Estou a sentir raiva e... arrependimento da sua parte. Acabou... de
se separar da sua mulher. Bem, na verdade, ela deixou-o. — O olhar de
choque completo no seu rosto deixa-me com um pequeno sorriso nos
lábios. — E se quer mesmo que eu seja específica, porque, bem, disse-me
para o provar, é porque... — Paro a meio da frase, fechando os olhos
enquanto pressiono os dedos na têmpora, investida num es­petáculo
convincente. — ... a traiu? Espere, estou a apanhar outra coisa...
Olho para a sua cara, agora vermelha de raiva, enquanto conti­nuo a
esfregar a têmpora.
— Quer... que ela volte. Mas ela não o quer a si...
Preparo-me para o golpe de mão antes de sentir uma dor aguda no
rosto.
O sangue sai-me pela boca, mas mantenho a cabeça afastada en­quanto
ele rosna perto de mim.
— Bruxa maldita! Isso é o que tu és. Desaparece da minha vista,
Mundana.
Dou meia-volta e sorrio, com o sangue a acumular-se na boca e a
escorrer-me pelo queixo. Forço-me a tropeçar num carrinho, apanhando um
tecido pendurado na borda atrás das minhas costas. Viro-me rapidamente,
colocando-o junto ao peito enquanto arranco um canto com os dentes para
limpar a boca e o queixo ensanguen­tados. Vou usar parte do tecido como
guardanapo, e o resto pode ir para Adena. Dois coelhos de uma só cajadada.
Enfiando o resto do tecido na minha mochila, agora cheia de comida,
moedas e outros bens roubados, volto para a Fortaleza enquanto revisito os
últimos cinco minutos na minha cabeça.
Não foi difícil entrar na cabeça do Imperial, e eu sabia que assim que o
fizesse, ele iria dar-me uma bofetada e abrir caminho para a minha fuga.
Não era a primeira vez que deixava tal acontecer. E pro­var as minhas
habilidades de Psíquica não foi difícil, tendo em conta que as provas
estavam por todo o lado.
A fina linha bronzeada no seu dedo anelar, agora vazio, foi a minha
primeira pista de que ele já tinha sido casado. Depois, há o facto de ter
mudado a aliança de casamento para a outra mão, em vez de a penhorar por
dinheiro, o que me disse que ainda gosta da ex-mulher e que,
provavelmente, ainda a quer de volta. O cabelo des­penteado, a farda
amarrotada e o bafo a álcool, provam ainda que é obviamente um homem
solteiro que já não tem uma mulher que o faça parecer apresentável.
Os homens provavelmente enfrentariam a extinção sem as mu­lheres
para os mimar.
Quanto à parte em que ele traiu a mulher, bem, isso foi mais um
palpite baseado na forma como ele olhou para mim, juntamente com a
reputação excecional que os Imperiais deram a si próprios. Claramente, a
suposição atingiu-lhe um nervo antes de ele me bater.
O sol do meio-dia atinge-me quando regresso à Fortaleza para almoçar
com Adena, como sempre. Demoro a percorrer as ruas de Loot, roendo uma
maçã para enganar a fome que me atormenta.
O cheiro salgado do peixe a secar ao sol em cima dos carrinhos dos
comerciantes paira no ar. As crianças correm à minha frente, rindo enquanto
se perseguem umas às das outras pela rua. O som das vozes a regatear e a
praguejar é como um coro para mim, uma melodia que me é demasiado
familiar.
Um grande cartaz colorido chama-me a atenção quando começa a
elevar-se acima do beco cheio de gente, pendurado entre duas lojas por um
Rastejador. Ele corre pela parede como se tivesse cola nas pal­mas das mãos
e nos pés, o que lhe permite subir com facilidade pela parede lisa da loja.
Enquanto prende a corda que liga a faixa à parede, volto a minha atenção
para as palavras rabiscadas na tapeçaria verde com letras grandes e pretas:

Demonstro um desagrado audível, quase engasgando-me num pedaço


de maçã. Embora as Provas da Purga não sejam motivo de riso, não consigo
deixar de achar cómico o facto de serem uma celebração. Em honra da
Grande Purga, há mais de três décadas, as Provas foram criadas para
mostrar as habilidades sobrenaturais do povo e trazer honra ao único reino
de Elite.
Eu não diria que assassinar pessoas inocentes me torne digna de honra,
para o meu reino ou para a minha família — não que ainda tenha alguma
para lhe trazer honra. E, no entanto, de cinco em cinco anos, jovens Elites
são escolhidos para competir nestas provas, tanto pela glória como por
xelins suficientes para construir o seu pró­prio castelo enquanto tentam
escapar ao trauma que as Provas lhe causaram.
Mas a parte que me faz tremer, tanto de riso como de raiva, é o facto
de os Elites menores, aqueles com habilidades Mundanas e de Defensor,
serem levados a acreditar que têm uma hipótese de ganhar estas Provas
retorcidas. Sinto-me subitamente dormente quando ins­peciono os rostos
excitados dos que me rodeiam, todos juntos de­baixo do letreiro, a sorrir e a
apontar.
Somos os primeiros a morrer.
Os Elites que competem não são escolhidos, antes nascem com esse
destino. São sempre aqueles que têm sangue real ou um estatuto mais
elevado no escalão de poder dos Elites. Examino a multidão, olhos
brilhantes nos rostos sorridentes dos Mundanos, lançados para as Provas
para mera diversão, depois do reino deixar escolher quem queremos que
nos represente.
Apesar de o Rei insistir que a morte de outros Elites na arena é
desaprovada, não é segredo que a própria Morte é uma concorrente nas
Provas. Aparentemente, a morte de adolescentes torna as coisas
excecionalmente mais divertidas e, se os Elites não matarem, o Rei viciará
as provas da arena.
Passo pela multidão de pessoas reunidas debaixo do cartaz, todas a
falar umas com as outras sobre quem vai representar Loot e o que vão fazer
com o dinheiro do prémio.
A inveja que os Elites suscitam, atacou-me muito poucas vezes na
vida. Mas ao pensar em competir nas Provas da Purga, nunca me senti tão
grata por ser alguém sem importância alguma.
Completamente Vulgar.
— Vais comer isso? — Adena está a olhar para a laranja meio co­mida
no meu colo, enquanto me encosto à parede do beco atrás da Fortaleza.
— Podes comer. — As palavras ainda mal me saíram da boca e já ela
se inclina, o cabelo encaracolado a soprar com a brisa suave, agarrando na
fruta e comendo-a de imediato.
O Imperial, com a sua força impressionante, deixou-me um belo
presente de um lábio inferior rachado, tornando difícil mastigar.
— Que tal foi hoje? — pergunto-lhe enquanto rodo a grossa aliança de
prata que uso no polegar.
O aço frio do anel do meu pai faz-se sentir na minha pele,
confortando-me como sempre. Suponho que também teria o da minha mãe
se não tivesse sido enterrado com ela quando eu era bebé. O meu pai disse-
me que foi de doença. Afinal de contas, ela era uma Vul­gar, e
aparentemente isso significa que somos humanos mais fracos e doentes.
Ainda assim ele casou-se com ela. Amou-a apesar disso. Prote­geu-a.
Guardou o seu segredo tal como fez comigo.
Adena suspira e eu regresso de volta ao presente quando, entre
dentadas, ela diz:
— Não me posso queixar. Oh, vendi aquele top em que andava a
trabalhar há séculos! Por três xelins, nem mais nem menos! Lem­bras-te, o
verde com o decote fundo e a bainha recortada?
Devolvo-lhe o mesmo olhar confuso que faço sempre que ela começa ã
falar em costura.
— Credo, quando se trata de roupas, tu não entendes nada, Pae.
Olho para o meu top gasto por baixo do colete verde-azeitona. Tudo
mudou no dia em que Adena me fez o colete com bolsos, sa­bendo que seria
uma ótima ferramenta para a minha atividade de ladra. Foi nesse dia que a
aliança inquietante se começou a trans­formar numa amizade sólida.
Adena bate com um dedo nos lábios, pensativa:
— Aposto que, se usasses a roupa certa, todos estariam dema­siado
ocupados a olhar para ti em vez de repararem que os estás a roubar.
Eu reclamo.
— Prefiro que as pessoas não fiquem a olhar para mim enquanto estou
a cometer crimes. Isso parece-me um pouco contraproducente.
Pego na minha adaga e enfio-a na bota, passando os dedos pelo cabo
de prata. É a única recordação que tenho do meu pai, para além do anel —
ambos indispensáveis. Estou a admirar o cabo intricado pela enésima vez
antes de agitar-me com uma lembrança importante.
— A, hoje tem cuidado. Por alguma razão, há menos guardas do que o
habitual, e não me está a agradar. — Tenho dificuldade em encontrar as
palavras certas. — Fica atenta a qualquer coisa fora do normal, está bem?
Parece um pouco perturbada com esta notícia, mas a expressão no seu
olhar cor de avelã é brincalhão.
— É a tua intuição de Psíquica a avisar-te de um potencial perigo?
— Confirma-se, precisamos mesmo de trabalhar na tua subti­leza —
suspiro, abanando a cabeça, com um sorriso.
Levanto-me para sair, gemendo ao esticar o meu corpo dorido. Adena
junta as suas roupas, todas de tamanhos e cores diferentes, e despede-se
com relutância antes de regressar a Loot na esperança de vender mais
artigos antes do pôr do Sol.
Saio para a rua concorrida, agora banhada pela luz do sol do fim da
tarde, e dirijo-me para a confusão do mercado. Começo com calma.
Primeiro, roubo alguma fruta e tecido, antes de me aborre­cer e passar para
artigos maiores e melhores. Carteiras, relógios e xelins são o que realmente
procuro nesta noite.
Observo um homem com cabelo azul-escuro e um relógio bri­lhante
que adorna o seu pulso grosso, antes de rapidamente decidir que será o meu
próximo alvo. Olhando para a rua cheia de gente, avisto mais pessoas com
cabelos de cores diversas que pontilham a multidão, prova de que uma
Peste responsável por alterar a gené­tica, traz mais vantagens do que simples
habilidades sobrenaturais. No entanto, mesmo com a cabeleira prateada no
topo da minha ca­beça, ainda não me foi dado um poder para a acompanhar.
Demoro demasiado tempo a escapar ao homem de cabelo azul depois de lhe
roubar o relógio. Não porque me tenha apanhado, mas porque não parava
de falar comigo. Depois de tropeçar nele e de lhe tirar sor­rateiramente o
acessório do pulso, era evidente que o pobre homem estava ansioso por
coscuvilhar com qualquer pessoa disposta a sor­rir-lhe e a acenar-lhe com a
cabeça.
Estou prestes a ir para casa mais cedo e a dar por terminada uma noite
decentemente bem-sucedida quando uma figura alta, comple­tamente vestida
de preto, entra no Loot. Caminha com confiança, o oposto da atitude que os
sem-abrigo adotaram na esperança de chamar o mínimo de atenção possível
para si próprios.
Mas este homem... este homem dificulta a tarefa de desviar o olhar.
Veste uma camisa de botões preta e larga, enfiada numas calças pretas
finas e separadas por um cinto discreto. A camisa de colari­nho está
desabotoada até meio, abrindo-se com a brisa para expor parte do seu peito
bronzeado. Os seus traços faciais são pouco ní­tidos a esta distância, mas o
cabelo preto como alcatrão pende-lhe sobre a testa em ondas desordenadas.
Com as mãos enterradas nos bolsos, os seus passos largos transportam-no
para dentro do mer­cado, com um ar frio e tranquilo.
Ele não é de cá. Consigo ver isso pela forma como olha em redor,
como se estivesse a absorver tudo. É provável que seja um Atacante, um
Elite de estatuto superior ou de sangue nobre que raramente põe os pés nos
bairros de lata. Dá para ver pela forma como caminha, no brilho dos
sapatos, que este homem tem consigo muito mais do que uns míseros
xelins. Semicerro os olhos, tentando perceber onde poderá ter guardado as
moedas.
Ali.
A balançar contra a perna, presa ao cinto por uma correia, está
pendurada uma bolsa que muitos Ilyans usam para transportar tro­cos.
Sobretudo, os mais confiantes, visto que uma bolsa desprote­gida é presa
fácil para um ladrão. Para mim, é trabalho simples.
Será o meu último alvo da noite. Um azarado.
Ainda bem que ele é bastante alto, senão perdia-o no meio da mul­‐
tidão. Vejo mulheres de todas as idades a esticar o pescoço quando ele
passa, tentando ver melhor o belo estranho, antes que ele se misture com o
aglomerado de pessoas. Enfio-me por entre a multidão e sigo-o até ele sair
do caminho principal, entre os carrinhos dos comercian­tes e entrar numa
rua menos movimentada. Liberto o meu cabelo, deixando as longas ondas
caírem sobre os meus ombros, enquanto atalho por outra rua, no seu
encalço. O beco que atravesso em ziguezague leva-me ao mesmo beco por
onde o desconhecido passou — e agora vou direita a ele.
Mantenho os meus olhos colados ao chão quando chocamos.
Seguindo a minha rotina habitual, deixo-me cambalear devido ao
impacto, lutando contra todos os instintos que se ativam para me manter
firme. Braços fortes envolvem a minha cintura para im­pedir que caia,
deixando a sua bolsa de dinheiro aberta e exposta a marginais como eu.
Agarro-me à parte da frente da sua camisa, como se o fizesse para manter o
equilíbrio. Na verdade, só preci­sava de uma razão para ter as minhas mãos
próximas o suficiente do seu corpo, para que não fosse suspeito.
Os rapazes esfomeados de Loot não são assim.
O pensamento dissolve-se quando meto a mão na bolsa que tem na
anca, os meus dedos calculando que há pelo menos vinte moedas
penduradas casualmente no cinto deste homem. Deve ser muito con­fiante
das suas habilidades para andar por Loot com tamanho valor.
Sinto-me tentada a arrancar a bolsa e fugir, mas sei perfeitamente que
ele me apanharia em três passadas largas. Mas, sem saber quando voltarei a
deparar-me com uma oportunidade destas, recuso-me a ir embora sem pelo
menos conseguir metade do que tem no seu saco.
Mas ele vai sentir a diferença no peso se eu ficar com metade. Tenho a
cabeça às voltas.
Então, o melhor é distraí-lo.
Com todo este conluio a acontecer numa questão de segundos, agarro
rápida e silenciosamente metade das moedas antes de reti­rar com cuidado a
minha mão da bolsa, enquanto tento equilibrar-me com a sua ajuda. Depois,
lentamente, afasto o meu olhar do seu peito parcialmente exposto, onde a
extremidade de uma tatuagem escura espreita por trás das dobras da sua
camisa.
Os nossos olhos encontram-se por fim.
É como olhar para uma tempestade.
Os seus olhos são da cor das nuvens de uma trovoada que se abate
sobre Ilya, do fumo que sai das chaminés, das moedas de prata rou­badas
que tenho na mão. As pestanas pretas e longas contrastam em absoluto com
os olhos cinzentos como aço, que agora me percorrem o rosto. O choque
levanta-lhe as sobrancelhas escuras, contraindo-lhe o maxilar afiado e
realçando-lhe as maçãs do rosto fortes.
Ficamos ali parados, a olhar um para o outro.
De repente, sinto-me perfeitamente consciente de todos os sítios onde
ele me toca. Os seus braços fortes ainda estão à volta da minha cintura e a
segurar-me, embora o seu olhar pareça uma carícia por si só. Aclaro a voz
enquanto tiro a mão da sua camisa, revelando um tecido fino e amarrotado
por baixo, antes de me afastar do seu aperto.
Os seus lábios contraem-se, permitindo-me vislumbrar uma co­vinha na
sua bochecha direita. Retira lentamente os braços da minha cintura,
libertando-me quando as suas mãos se agarram à parte de baixo do meu
colete.
Calos. É um lutador.
Não que precise de ser uma Psíquica para o perceber, visto que o seu
físico confirma esse facto. Tendo presente de que se trata de um lutador
treinado com o dobro do meu tamanho, levo as mãos às costas para
esconder a prova do meu crime. As moedas deslizam em silêncio para o
meu bolso traseiro e eu respiro fundo, tentando recompor-me.
— Tens por hábito cair nos braços de estranhos bem-parecidos, ou isto
é algo novo para ti? — A sua pergunta mostra de novo aquela covinha
quando um sorriso se instala na sua cara, revelando dentes brancos e
direitos.
— Não, só dos convencidos. — Sorrio com frieza, enquanto ele olha
para mim como se eu fosse um puzzle a decifrar, com divertimento
estampado no rosto.
Distrai-o.
Ele ri-se e passa uma mão pelo cabelo cor de ébano, desalinhando
ainda mais as ondas. Os seus olhos cinzentos procuram os meus en­quanto
diz:
— Bem, então parece que causei uma notável primeira impressão.
— Sim — digo lentamente —, embora ainda não tenha decidido se foi
boa ou má.
Não o deixes pensar no dinheiro e faz com que se concentre em ti.
Ele encolhe os ombros, enfiando as mãos nos bolsos — a imagem
perfeita de uma indiferença despreocupada.
— Apanhei-te, não foi? — É agora a minha vez de rir.
Ele inclina ligeiramente a cabeça para o lado enquanto me observa,
com o canto da boca levantado para cima. Curva-se, acrescentando:
— Talvez devesses considerar esse pormenor antes de decidir, querida.
Pestes, um rapaz bonito com palavras bonitas.
Perigoso.
Os seus olhos esfumados perscrutam o meu rosto, mais uma vez como
se eu fosse um enigma intrigante. Recuso-me a ficar inquieta sob o seu
olhar e dou um passo atrás em direção à rua movimentada.
— Vou pensar nisso, querido. — Faço questão de evidenciar a úl­tima
palavra, imitando-o com um sorriso irónico, enquanto o dele se alarga,
mostrando covinhas em ambas as bochechas. Forço-me para as ignorar e
acrescento: — E obrigada por me teres salvado de bater com a cara no
passeio. Ser desajeitada é a minha maldição.
— Bem, essa tua falta de jeito encontrou-me, por isso não lhe cha­‐
maria de maldição — diz, agora encostado à parede, com as mãos nos
bolsos.
Sorrio, incapaz de reprimir o revirar de olhos que o acompanha.
Vislumbro o seu sorriso uma última vez antes de voltar para Loot Alley,
desaparecendo no meio da multidão.
Ao descer o Loot, a minha mente está a repetir as observações que
guardei acerca dele. As cicatrizes que lhe salpicam os braços e os nós dos
dedos em carne viva de uma luta recente, intrigaram-me ainda mais, e é
quase uma pena não descobrir a história que as acompanha. A ideia de um
Elite Atacante com cicatrizes quase me faz sorrir. Prova de fraqueza.
Pego nas moedas que tenho no bolso e deixo-as tilintar na palma da
mão com um sorriso triunfante.
Duvido que isto lhe faça falta.
A camisa com colarinho que visto é áspera e desconfortável, fazendo-
me sentir de repente saudades dos dias em que era criança e socialmente
aceitável andar por aí seminu.
No entanto, tal nunca me impediu de o fazer agora.
Depois de calçar um dos poucos pares de sapatos que não estão cheios
de lama, dirijo-me para a porta. Passo por prateleiras desar­rumadas que
ameaçam tombar devido ao peso de demasiados livros, pela minha
secretária que está coberta de documentos que estou a evitar, e pela cama
com dossel que sobressai da parede, a causa de vários dedos dos pés feridos
e palavrões incessantes. Suspiro, fecho a porta do conforto do meu quarto,
desejando desesperadamente poder mergulhar na minha cama e dormir até
ao amanhecer. Infelizmente, o dever chama-me, e é melhor não o deixar à
espera.
Enfio as mãos nos bolsos enquanto percorro os corredores bran­cos que
conduzem à sala do trono. A luz do sol que se impõe ao fim da tarde, entra
pelas janelas que ladeiam o corredor, fazendo com que as pinturas
ornamentadas nas paredes brilhem com a luz dourada. Demasiado cedo para
o meu gosto, viro a esquina e aceno aos guar­das que estão à porta da sala do
trono antes de empurrar as portas pesadas.
— Ah, Kai. Já não era sem tempo. — A voz profunda do Pai ecoa pela
vasta extensão da sala do trono. As paredes estão decoradas com grandes e
largas janelas cobertas de seda verde-escura — a cor do reino de Ilya —
acompanhadas de molduras esculpidas que sobem pelas paredes até ao teto.
De momento, uma longa mesa de madeira encontra-se no meio do chão de
mármore polido, onde o Rei ocupa a cadeira à cabeceira.
— Ótimo, vestes uma camisa. — Suspira, mas eu vejo um ligeiro
sorriso nos seus olhos. — Pensei em dizer ao criado para acrescentar esse
pormenor à mensagem.
— Não se preocupe, Pai, não irei cometer o erro de aparecer na sala do
trono sem camisa. Outra vez. — Memorizo o vislumbre do sorriso no seu
rosto, sem saber quando será a próxima vez que verei outro. Dessa vez, será
por mérito.
É um homem brutal, um Forte que é física e mentalmente pode­roso. É
austero, teimoso e determinado, por isso, ao vê-lo oferecer até o mais ténue
dos sorrisos, involuntariamente retribuo com um sorriso idêntico. A nossa
dinâmica sempre foi difícil, para não dizer outra coisa, mas em momentos
como este, torna-se mais fácil igno­rar o nosso passado desagradável.
Ele limpa a voz, sem emoção no rosto.
E aqui está o pai a que estou habituado.
— Tenho uma missão para ti, como futuro Executor.
— Vivo para servir — respondo-lhe de imediato.
Eu vivo para matar.
A minha vida significa o fim da vida de outra pessoa.
Os tipos de missões atribuídas aos Executores são tudo menos dig­nas
de heroísmo. Estive em dezenas ao longo dos anos, todas parte integrante
do meu treino para me tornar no futuro carrasco, coman­dante de exércitos e
braço direito do Rei. Tudo, desde estratégias de batalha e execuções a
interrogatórios e torturas, se enquadra na minha linha de trabalho como o
esperado Executor.
Tudo vislumbres do meu futuro brilhante.
— Os meus informadores sabem de uma família que acolheu um
Vulgar perto de Loot Alley — continua o Pai, algo aborrecido. — Pre­ciso
que investigues e elimines o problema.
Eliminar é o mesmo que executar.
Após a Purga, quando os Vulgares foram banidos para o Scorches com
o objetivo de proteger Ilya da sua doença, o Rei decretou que todos os
Vulgares que ainda se encontrassem no reino seriam execu­tados. Há três
décadas, ele ofereceu-lhes uma hipótese de sobreviver se conseguissem
atravessar o Scorches e chegar às cidades do outro lado. Dor e Tando, onde
lhes fora prometido que não sofreriam re­presálias. Mas a misericórdia do
Rei teve a duração de apenas um dia de Purga, e eu agora entrego a morte
em seu nome.
— Claro — afirmo, passando uma mão pelo cabelo e pelo queixo. A
ação não passa despercebida.
— Kai — Ele olha para mim, quase gentilmente. Não via esse olhar
desde miúdo e, mesmo assim, era uma raridade reservada às pou­cas vezes
em que o agradava durante o meu treino.
— Ninguém inveja o trabalho de um Executor. É impiedoso. É san­‐
grento. Mas a Peste deu-te um dom raro. A tua habilidade como Por­tador é
muito poderosa, e um dia irá servir bem este reino. — Faz uma pausa antes
de acrescentar: — Eu mesmo assegurar-me-ei disso.
E é verdade.
Treinar tem sido a minha vida, o meu principal objetivo. Em vez de ter
uma única habilidade para manifestar e dominar, passei anos a aprender a
controlar dezenas. Mas aperfeiçoei o meu corpo tanto quanto as minhas
habilidades, tornando-me numa arma. O modo de usar e matar com todas as
armas à minha disposição, ficou en­raizada no meu cérebro — um reflexo
que aperfeiçoei.
Mas não posso ficar com todos os louros. Não, foi o Rei que fez de
mim o que sou hoje. Foi o Rei que se encarregou do meu treino fí­sico e
mental. Depois de conhecer as minhas fraquezas, assegurou-se de que
fossem erradicadas. E, embora tenha aprendido a bloquear a maior parte das
memórias do treino que sofri em miúdo, não consigo ignorar a imagem do
rosto frio do meu pai, enquanto o juntava às palavras arrepiantes que ouvi
durante toda a minha vida.
Se não consegues suportar o sofrimento, não estás apto a distri­buí-lo,
Executor.
Lutei em batalhas, iniciei interrogatórios e realizei torturas, tudo isto
enquanto Kitt participava em inúmeras reuniões, elabo­rava tratados e
passava os dias ao lado de um Rei mais bondoso do que aquele que eu
conheço.
Os seus dias consistiam em educação, explicações e muito mais tempo
agradável passado com o pai que tanto ama. Como herdeiro, Kitt sempre foi
preservado, protegido, e até para o levar para o pátio de treino comigo,
quando éramos rapazes, não era tarefa fácil.
Quando volto a olhar para o rei, os seus olhos verdes estão fixos em
mim. Os olhos de Kitt. Depois da primeira mulher do Pai ter morrido
durante o parto, ele casou com a filha de um conselheiro de confiança. Sem
surpresa, rapidamente se apaixonou pelo carinho e bondade da minha mãe,
pela sua coragem e beleza. Pareço-me com ela, com o meu cabelo escuro e
olhos claros, tal como Kitt se parece com o nosso pai, ambos de olhos
verdes e cabelos loiros.
Sereno os meus pensamentos, guardando os do passado, até uma
próxima vez em que me permita voltar a eles. A minha voz é abafada
quando finalmente pergunto:
— Quando é que é para ir?
Essas palavras exatas recordam-me a ingenuidade com que as disse
antes da minha primeira missão. Sem saber que me tornaria num assassino
nesse dia. Não sabia que iria ver um homem a cair no chão numa poça do
seu próprio sangue.
— Ao amanhecer.

O amanhecer chega cedo de mais para o meu gosto e, sem dar por isso,
estou a dirigir-me para os estábulos.
O grande celeiro branco projeta uma sombra enorme à luz do sol
matinal. Cada parede é ladeada por estábulos onde os cavalos mordiscam o
feno, olhando para mim com curiosidade.
O meu olhar passa por dois Imperiais que estão à minha esquerda,
acompanhados por três cavalos com selas, para a viagem que temos pela
frente. Cerro os dentes. O Rei retirou dois guardas da rotação de Loot Alley
como medida de segurança, embora eu seja mais do que capaz de tratar
disto sozinho. Mas parece que, numa única noite, o pai passou a preocupar-
se com o meu bem-estar. Foram precisos de­zanove anos e o facto de eu
agora ser algo valioso para ele.
Abano a cabeça e monto o cavalo mais próximo, engolindo o meu
orgulho o suficiente para admitir que é sensato que os Impe­riais estejam
comigo no caso de um ataque inesperado.
A viagem até Loot é longa, e o tempo foi passado em silêncio abso­‐
luto. As ruas transformam-se lentamente em bairros de lata à medida que
avançamos na cidade, e senti o cheiro do beco do grande mer­cado antes de
lá chegar.
O cheiro habitual de peixe, fumo e outros mistérios, dão-me as boas-
vindas quando nos dirigimos para Loot. O eco dos cascos dos cavalos a
bater nos paralelepípedos irregulares ressoa nas paredes das lojas
degradadas que ladeiam a rua. Alguns madrugadores desviam-se do
caminho enquanto apontam e sussurram.
Viramos à esquerda para uma rua mais pequena à saída do beco
principal e dirigimo-nos a uma pequena cabana de madeira. Desço do meu
cavalo sem hesitar e coloco as rédeas na mão de um Impe­rial, deixando-o
tratar do animal.
Se têm de estar aqui, pelo menos que sejam úteis.
Dirijo-me à porta, retirando a mão do bolso para bater. Ouço um
estrondo lá dentro, seguido do som de passos pesados antes da porta se
abrir, rangendo as dobradiças ferrugentas.
Um homem enorme e corpulento, com uma barba espessa e um cabelo
ainda mais denso, olha fixamente para a cena que tem diante de si.
Surpreende-me que consiga passar pela moldura da porta. Os seus olhos
azuis alargam-se sob as sobrancelhas espessas quando olha para mim e para
os dois Imperiais que me seguem.
— Príncipe Kai...? — O homem parece espantado e nervoso.
— Olá... que honra!
A sua voz, que transporta uma alegria falsa, desce a rua, pro­‐
vavelmente acordando os seus vizinhos quando ele me oferece um aperto de
mão.
O seu punho é firme e calejado, tal como o meu.
— Nathan, correto? — Ele acena com a cabeça, e eu continuo: —
Tenho algumas perguntas para lhe fazer sobre um Vulgar encon­trado aqui
em Loot. Tenho a certeza de que não haverá problemas.
Observo-o com atenção, à procura de qualquer indicação de que sabe
do que estou a falar. Nada. O seu rosto permanece inexpressivo.
— Importa-se que entremos?
Não é uma pergunta e ele sabe disso. Já tenho o meu pé sobre a soleira
da porta antes de ele se afastar.
A casa não é maior do que o meu quarto no palácio. De um lado da
divisão, há pequenas camas próximas umas das outras e desali­nhadas contra
a parede. A cozinha fica na outra metade da divisão, equipada com uma pia
em mau estado, um balcão de madeira ra­chada e uma grande mesa rodeada
por dois rapazes de olhos arre­galados e uma mulher. Um tapete grande e
desbotado une os dois lados da sala, a única decoração e mancha de cor na
casa.
Nathan aclara a voz:
— Esta é a minha mulher, Layla. — Ela sorri calorosamente, os seus
dentes brancos em contraste com a pele escura enquanto olha para os
Imperiais atrás de mim. — E estes são os nossos rapazes, Marcus e Cal.
Nathan aponta para cada um dos filhos, designando-os. Marcus
mantém os olhos colados à mesa, sem se atrever a olhar para mim, enquanto
o seu irmão mais novo, Cal, está demasiado curioso para evitar que os seus
olhos se desviem dos meus.
Eu alcanço-os com o meu poder, certificando-me de que nenhum deles
é o Vulgar escondido à vista de todos. A minha habilidade de Portador é
especialmente útil como Executor, tornando o meu traba­lho muito mais
fácil e eficiente.
O Nathan é um Forte, e não estou minimamente surpreendido, visto
que ele é gigante. Consigo sentir o poder de Layla como Curandeira a
borbulhar no meu sangue, enquanto Marcus e Cal possuem ambos poderes
Mundanos — Marcus com a habilidade de deteção de mentiras de um
Detetor, e Cal como um Reformador, com os seus sentidos apurados.
— Sabe porque estou aqui — digo-lhe com frieza. — Viu ou ouviu
falar de um Vulgar que anda escondido por estas bandas?
— Não, senhor. — É a Layla que fala, a sua voz suave e firme.
Os meus olhos voltam a percorrer a casa, parando na pia. As tigelas
ainda sujas de papa, estão empilhadas a aguardar serem limpas.
Cinco.
Cinco tigelas quando só há quatro bocas para alimentar. Interessante.
— Bom, então não se importam que eu dê uma vista de olhos?
Mais uma vez, não é uma pergunta. Passeio casualmente pela pe­quena
casa, parando de vez em quando para examinar algo mais de perto. Sinto os
olhares dos meus Imperiais e da família a queimarem-me as costas
enquanto me demoro na investigação, com as mãos nos bolsos.
Nada parece estar fora do lugar.
Estou quase a admitir que isto é um beco sem saída e uma perda de
tempo quando passo no meio do tapete estampado, agora desbo­tado por
anos de uso. Um rangido ecoa debaixo dos meus sapatos. Paro e desloco o
meu peso, para ouvir o som de novo. E sem demo­ras, a madeira volta a
gemer debaixo do tapete.
Interessante.
Embora o rosto de Nathan permaneça inexpressivo, o sangue
abandonou-lhe o corpo, deixando-o pálido como um fantasma.
— Levantem o tapete — ordeno aos guardas, sem tirar os olhos da
família. E é nesse momento que deteto uma emoção que me é dema­siado
próxima, aquela que tende a acompanhar a minha presença.
Medo.
Quando o tapete se afasta, vejo o contorno de um alçapão, que se
mistura quase na perfeição com o resto das tábuas de madeira sujas.
O estrondo. Foi isto que ouvi quando estava lá fora.
Layla solta um soluço quando eu me ajoelho e abro o alçapão,
revelando um espaço escuro e apertado. Ali, escondida num canto e
abraçada aos joelhos, está sentada uma menina. Quando olha para mim, o
fogo nos seus olhos combina com o vermelho vivo do seu cabelo comprido.
Pestes, é tão nova.
Não deve ter mais de oito anos, mas a rapariga não resiste quando eu
me agacho e a tiro da caixa húmida. Coloco-a no chão, e ela olha-me de
uma maneira provocadora, sem vestígio de medo no seu pequeno rosto
salpicado de sardas.
Tento perceber se tem algum poder, só para ter a certeza. Nada. Não há
nada de extraordinário nesta rapariga — porque ela é uma Vulgar.
Soluços reprimidos começam a encher a sala.
— Não, não, não! — Os gritos trémulos de Layla ecoam nas pa­redes.
— Não a pode levar! Não pode! Ela é minha filha, por favor!
Os Imperiais interpõem-se entre mim e a família em fúria, mas eu
passo por eles, irritado. Os rapazes estão agora a chorar, abraçados às
pernas da mãe, enquanto Nathan parece atónito, com lágrimas silen­ciosas a
escorrerem-lhe pelas faces até à barba emaranhada.
— Acalme-se e diga-me de onde raio é que ela veio e há quanto tempo
é que a tem escondida. — A minha voz é baixa e severa, atraves­sando o
caos. A menina que está à minha frente não se parece nada com esta
família, com as suas sardas e cabelo ruivo flamejante. Já para não falar que
tanto Nathan como Layla são Elites, o que significa que os dois nunca
poderiam gerar um Vulgar.
— Ela... está cá há três anos. — A voz de Layla treme, os soluços
assolam a sua pequena estrutura. — Encontrámo-la na rua, por isso
acolhemo-la. Queríamos uma filha. Eu não podia ter mais filhos... —
interrompe-se, limpando a cara. — Eu sou uma das poucas Curandeiras nos
bairros de lata e ela parecia-me saudável, forte. Por isso, quando
encontrámos a Abigail, nós... finalmente pudemos ter uma menina.
Abigail.
Preferia não saber. Gostava de não ter de acrescentar mais um nome à
lista interminável dos que tiveram a infelicidade de se cruzar no meu
caminho, a infelicidade de se cruzar no caminho do Rei.
Suspiro.
Aqui vai.
— Conhecem a lei. — Mais soluços sufocantes enchem a sala,
obrigando-me a levantar a voz. — Por decreto do Rei, todos os Vul­gares
devem ser executados. Quanto a quem abriga esses Vulgares, eles devem
ser banidos para o Scorches...
Estou a meio da declaração das mesmas falas ensaiadas e ditas dezenas
de vezes, quando um corpo grande e sólido se dirige a mim. O olhar vazio
que tinha há momentos desapareceu, substi­tuído agora por um ódio que
contorce o seu rosto em fúria. Nathan ataca-me e atira-me contra a parede,
tirando-me o ar dos pulmões, fazendo-me bater com a parte de trás da
cabeça na madeira dura.
Isto amanhã vai doer como a Peste.
Ouço ao longe um grito arrancado da garganta de Layla, jun­tamente
com os passos pesados dos Imperiais que correm para intervir.
— Não! — grito-lhes, esquivando-me a um murro que vem em di­reção
ao meu nariz, enquanto os guardas se detêm, confusos. — Eu trato dele
sozinho.
Lança outro murro, este com a intenção de me partir o maxilar.
Esquivo-me mesmo a tempo de ver o seu punho embater na parede de
madeira onde antes estava a minha cara. Um movimento que dá origem a
uma chuva de lascas, após o contacto com a parede.
Os meus instintos de luta tomam conta de mim, e nem sequer me dou
ao trabalho de estender a mão para usar o poder de Nathan. Com o seu
punho ainda enterrado na parede, agacho-me por baixo do seu braço
estendido e marco o ataque, torcendo-lhe o braço atrás das cos­tas para o
pressionar por baixo da omoplata esquerda. Ele grunhe de dor antes de me
dar um pontapé na rótula, com força. A dor sobe pela minha perna enquanto
ele se desvencilha do meu aperto, levantando novamente o punho com uma
força sobrenatural.
Ignorando a dor no joelho, deixo-me cair e lanço a perna num arco
largo, conectando-a com os seus tornozelos, mandando-o ao chão. Fico em
cima dele, imobilizando-lhe os braços com os joelhos enquanto deixo que a
sua força de Forte venha à superfície, sabendo que não vou conseguir
mantê-lo deitado sem usar o seu próprio poder contra ele. Ele tenta libertar-
se, barafustando violentamente.
— Cale-se e ouça-me — ofego. — Podemos fazer isto da maneira
mais fácil ou da maneira mais difícil. E, pessoalmente, prefiro a ma­neira
fácil.
— Ela é minha filha! — grita, com um olhar de angústia nos olhos,
enquanto tenta arrancar-me de cima.
— Bem, é óbvio que não tem consideração pelos meus sentimen­tos,
porque quer fazer isto da maneira mais difícil. — Suspiro, le­vanto o punho
e acerto-lhe no maxilar. A cabeça de Nathan vira-se para o lado, deixando-o
atordoado tempo suficiente para me deixar falar.
— Se não cooperar, nem mesmo a sua mulher terá a habilidade de lhe
curar o corpo partido depois de eu terminar o serviço. Por isso, sugiro que
me agradeça por não o ter matado aqui mesmo, à frente da sua família, e
que faça exatamente o que eu disser. — Nathan fica imóvel debaixo de
mim, a luta parece esvair-se do olhar. Eu mudo de posição, agachando-me
ao seu lado e atento à sua forma derrotada.
— Agora, levante-se antes que eu mude de ideias — murmuro antes de
me levantar. Quando ele não se mexe, acrescento: — A paciência é-me tão
desconhecida como a misericórdia, por isso eu não abusaria da sorte.
Nesse momento, levanta-se e põe-se à frente da sua família, criando
um bloqueio. Protegendo-os de um monstro. Mantenho os meus olhos fixos
neles, vendo as lágrimas que escorrem pelas faces e os soluços a passarem
pelos lábios, enquanto dou ordens aos Imperiais.
Eles apressam-se a obedecer, amarrando os prisioneiros, en­quanto eu
acrescento casualmente:
— Mantenham-se nas ruas secundárias. Claramente, hoje estou de bom
humor. Sinto-me misericordioso, se preferirem — sopro as palavras. —
Pelo que prefiro não ter público.
Os Imperiais concordam com um grunhido, sorrindo ligeira­mente com
a minha ideia de misericórdia. Numa questão de minutos, Nathan, Layla e
os seus dois filhos estão amarrados e a arrastar-se atrás dos cavalos. Eles
olham para trás, com o ódio a arder nos rostos enquanto atentam para
Abigail amarrada e firmemente agarrada a mim.
Eles sabem o que acontece agora. A minha reputação é bas­tante
conhecida, murmuram-se pelas ruas as histórias do monstro assassino.
Esta é a parte em que eu mato a Vulgar enquanto os Imperiais escoltam
os criminosos até ao Scorches, onde provavelmente a se­guirão até à morte.
Com um calor abrasador durante o dia e tempe­raturas geladas durante a
noite, não é fácil chegar ao outro lado do deserto, onde se encontram as
cidades de Dor e Tando. Já para não falar que acabei de condenar esta
família a tentar fazer isso mesmo, sem mantimentos, sem comida, sem água
e sem esperança.
É uma morte muito mais dolorosa do que a que a sua filha Vul­gar irá
sofrer.
— Por favor! Imploro-lhe, por favor, poupe-a! — Layla grita na minha
direção, entre soluços, enquanto se arrasta sobre as pedras da calçada atrás
dos cavalos. — Ela é apenas uma criança...
Um Imperial estende a mão para trás, de onde está sentado em cima do
seu cavalo, e bate-lhe na cara, interrompendo a sua súplica.
— Cala-te, miserável.
Afasto o meu olhar da cena, puxando a rapariga para longe. As fracas
tentativas para se libertar da minha mão seriam cómicas se não fosse a
situação tenebrosa em que nos encontramos.
Está estranhamente calma para uma criança que está a ser ar­rastada
para a morte. Por esta altura, a maioria dos Vulgares já se encontraria a
gritar, suplicando e regateando pelas suas vidas. Mas nesta criança a luta é
silenciosa, o olhar penetrante. Mantenho os olhos fixos nos becos vazios
por onde passamos, imaginando o quão usual deve ser para alguém
esconder tudo o que é, a ponto de ocultar as suas emoções, mesmo quando
enfrenta a morte.
Conduzo-nos por uma ruela sombria, intocada pela ténue luz do sol
que começa a pintar o reino de dourado. A Vulgar — Abigail — contorce-
se, tentando libertar-se do meu aperto pela enésima vez. Olho para ela, com
a minha voz cheia de energia, e digo:
— És uma pequenita bem persistente, não és?
Ela reclama, fazendo com que o seu cabelo flamejante se enrole à volta
da cara antes de lançar um pontapé sólido à canela. Teria ficado
impressionado não fosse a minha crescente frustração. Aga­cho-me em
frente dela para que os seus olhos verdes zangados pos­sam encontrar-se
com os meus. Só quando ela levanta a perna para me bater mais uma vez é
que aviso baixinho:
— Se fosse a ti, não fazia isso.
Pestaneja e, quando penso que ouviu o meu aviso, pisa-me o pé antes
de tentar libertar-se do meu aperto, sem sorte. E depois co­meça a guinchar,
a gritar, numa tentativa de se afastar de mim.
— Caramba, assim não pode ser. — Tiro uma faca da bota e mur­muro:
— Não me estás a facilitar a vida.
Ao ver a faca, engole em seco, ficando imóvel.
— Enterra-o no meu coração — pede, com os olhos fixos na faca, uma
voz delicada como só uma criança pode ter. — Ouvi a mamã dizer que
assim é mais rápido.
— Ai, sim? — pergunto-lhe calmamente. — Há outras formas bem
mais rápidas.
E eu conheço cada um delas.
Vejo-lhe a hesitação no rosto, à medida que aproximo a lâmina. Vejo o
arregalar dos olhos quando por fim se permite sentir o terror que tem
tentado desesperadamente esconder. Depois respira fundo, o que me parece
ser sinal de aceitação, antes de cerrar os olhos em frente ao rosto de um
monstro.
A faca corta com facilidade. A rapariga...
Abigail.
... respira de forma trémula.
Após um longo momento, um olho verde e lacrimoso abre-se.
Pestaneja quando as amarras escorregam dos pulsos e aterram aos seus pés.
O olhar viaja do seu coração ileso para o meu rosto antes de se fixar na faca
que tenho na mão.
— Não a vais espetar no meu coração?
Os meus lábios contorcem-se.
— Ouve-me com atenção, Abigail. Eu cortei as tuas amarras, por isso
agora tens de me fazer um favor em troca. Preciso que fiques quieta e pares
de lutar. — Examino-lhe o rosto antes de acrescentar: — Percebeste?
Não espero por uma resposta antes de recomeçar o caminho pelas ruas
e becos. Deve ter-me percebido bem, porque agora cami­nha direita e em
silêncio, sem fazer movimentos para se libertar do meu controlo.
Quando nos aproximamos do Scorches, avisto os dois Imperiais. Não
estão a vigiar a família certificando-se de que a mesma se dirige para o
deserto, e que não passam agora de meras figuras desfocadas a pontilhar a
areia. Espreito por detrás do muro de um beco, observando os Imperiais,
que falam calmamente entre si. Não tarda muito, estão a encolher os
ombros e a dar aos calcanhares para voltarem a descer a rua.
Típico.
Estava a contar com a previsível preguiça e incapacidade dos guardas
em terminar as tarefas. E não queria que a família banida desfilasse pelas
ruas, como é habitual, porque assim teria uma mul­tidão para testemunhar a
minha traição.
Depois de passarem por nós, entramos na rua e dirigimo-nos para a
areia. A família segue muito à frente e, como eu próprio me sinto bastante
preguiçoso, estendo a mão para agarrar a habilidade de Flash de um dos
Imperiais. Em breve ficará fora do meu alcance, por isso apresso-me a
agarrar a rapariga e corro para o deserto.
Estávamos prestes a chegar à família quando a distância fez com que a
habilidade de Flash esmorecesse. Nathan assusta-se com o som que faço e
vira-se, com os olhos arregalados assim que vê Abigail nos meus braços.
Layla vem a correr na nossa direção e envolve a rapariga nos seus
braços numa questão de momentos, com toda a família a rodeá-las. Eles
soluçam enquanto eu me afasto, com os pés a tremer na areia que começou
a entrar nos meus sapatos.
E depois viram-se para mim, com os olhos a arderem mais do que o sol
que nos bate. Nathan só me diz uma palavra, grave e cheia de ódio.
— Porquê?
Pego na minha adaga e corto-lhe as amarras presas ao pulso num
movimento rápido, procurando o seu olhar enquanto respondo:
— Eu não mato crianças.
Hipócrita.
Como se não fosse exatamente isso que estou a fazer. Na verdade, só
estou a prolongar o inevitável. Mas, pelo menos, ficarão todos juntos —
uma misericórdia risível que eu só concedo às crianças.
Avanço pela fila de prisioneiros atordoados, libertando-lhes as mãos
atadas. Atento a cada um, a maioria ainda lavada em lágrimas, antes de me
virar para a menina. A Vulgar.
Abigail.
Dirijo-me a ela lentamente e ponho-me de joelhos, afundando-me na
areia quente para ficarmos cara a cara. Embora não diga nada, os seus olhos
falam muito. É apenas uma criança, mas vejo uma quantidade devastadora
de determinação por detrás do seu olhar.
Talvez não precises de poderes para seres poderosa.
Tiro do bolso um pequeno canivete. O cabo branco está gravado com
apontamentos a dourado, mas a sua pequena lâmina é afiada. Estendo-lhe a
mão.
— Todas as raparigas merecem algo tão bonito e mortal como elas —
digo-lhe, incitando-a a pegar na faca. Ela olha-me com cau­tela antes de
estender uma pequena mão para a arrancar da minha palma. — Usa-a com
sabedoria.
Passo a mão pelo cabelo e ponho-me de pé com um suspiro.
— De acordo com as nossas leis e por decreto do Rei Edric, expulso-
vos do Reino de Ilya por atos de traição.
Dito isso, vejo Nathan abraçar a mulher que, por sua vez, estende um
braço para que os filhos se aconcheguem.
Eles tornam-se num só.
E eu vejo-os a caminhar até à sua perdição.
Apesar do meu joelho inchado gritar em protesto, forço-me a andar
normalmente. Quando regresso a Loot Alley, o fim da tarde deu à rua um
brilho quente. Sempre gostei de estar aqui em baixo. Não há nada de
majestoso nos bairros de lata de Ilya e, no entanto, é refrescante de uma
forma que o palácio abafado nunca poderia ser.
Os meus olhos vagueiam enquanto mergulho no meio da multi­dão que
vende, pragueja e faz compras. Permito-me um momento para apreciar as
vistas e os cheiros de Loot — nenhum é muito agradável. Tudo aqui é
monótono, sem cor. Os cartazes, a comida, as pessoas. Ao meio-dia, a rua
cheira sempre a corpos suados e a comida duvidosa.
Mas apesar de tudo, Loot fervilha de vida.
A multidão empurra-me e puxa-me em diferentes direções, como uma
corrente humana, e eu luto para escapar à onda de pessoas. Fi­nalmente
liberto-me e dirijo-me para um beco mais pequeno e menos concorrido,
onde os sem-abrigo se agacham contra as paredes, alguns a pedir dinheiro
enquanto outros se entretêm com os seus poderes. Embora os bairros de lata
sejam maioritariamente o lar dos Munda­nos, vejo ocasionalmente um Elite
Defensor por entre eles. O brilho púrpura dos campos de força que
envolvem alguns chama-me a aten­ção, bem como um Brilhante que
manipula a luz à sua volta, criando um raio cintilante que o envolve a si e a
um gato vadio.
Continuo a andar enquanto observo as redondezas, sem prestar grande
atenção ao caminho.
E, pelos vistos, nem a pessoa que bate no meu peito com um grunhido.
Instintivamente, estendo a mão para segurar o indivíduo antes que caia
com o impacto, os meus braços envolvendo-lhe a cintura. A cintura dela. O
corpo que estou a segurar pertence, sem dúvida, a uma mulher, embora a
quantidade de longos cabelos prateados a roçar nos meus braços seja prova
suficiente.
É pequena, mas forte, mais magra do que a maioria das rapari­gas
magricelas dos bairros de lata. Consigo senti-lo na curva da sua cintura,
onde a minha mão se encaixa confortavelmente, embora seja evidente que a
subnutrição lhe retirou a maior parte dos mús­culos que evidentemente já
teve.
A palma da mão dela está encostada ao meu peito, com um anel grosso
no polegar, e depois de alguns segundos a estudá-la en­quanto ela se
reequilibra, vejo-a soltar um suspiro trémulo antes de encontrar o meu
olhar.
É como se me estivesse a afogar no oceano.
Os seus olhos são da cor do canto mais profundo do mar Shallows, de
um céu limpo que começa a cair na noite, do tom subtil de um miosótis. E
como a chama mais quente, os seus olhos são azuis e repletos de fogo.
Umas maçãs do rosto salientes conduzem a umas sobrancelhas igualmente
fortes e escuras, agora um pouco arqueadas enquanto me observa.
Os seus olhos de oceano arregalam-se, e eu vejo um leve rubor subir-
lhe às faces quando se apercebe de como ainda a estou a apertar contra
mim. Ela tira a mão do meu peito e, como cavalheiro que sou, tiro as mãos
da sua cintura com um sorriso nos lábios.
— Tens por hábito cair nos braços de estranhos bem-parecidos, ou isto
é algo novo para ti? — digo, enquanto lhe observo o sorriso, que poderia
rivalizar com o meu, apesar de o lábio inferior estar com uma ferida aberta.
Interessante.
— Não — responde-me, com sarcasmo a pingar a cada palavra —, só
dos convencidos.
Tem uma certa confiança em si própria, o que me diz que houve uma
altura em que não a teve. E assim, de repente, fico irritante­mente intrigado.
É óbvio que não faz ideia de quem eu sou. Perfeito.
Rio-me do comentário e passo uma mão pelo cabelo, pouco fa­zendo
para o domar. Observa-me com atenção, intensamente, pare­cendo estar tão
interessada em mim como eu nela.
Afogo-me nos seus olhos azuis. Sempre que os nossos olhares se
cruzam, é como o gelo a encontrar o fogo mais quente, como a névoa
cinzenta a subir no oceano azul profundo. Desvio o olhar por breves
instantes antes de prosseguir:
— Bem, então parece que causei uma notável primeira impressão.
— Sim, embora ainda não tenha decidido se foi boa ou má. — Os seus
lábios contorcem-se num ligeiro sorriso, do tipo que faz com que um
homem vire a cabeça só para o ver de relance, na esperança de que lhe seja
destinado. E só esse pequeno e preciso gesto diz-me que não sou o primeiro
a ser alvo de tal belo sorriso.
As minhas mãos foram parar aos bolsos e encolhi os ombros,
mostrando-me indiferente, encostado à parede suja do beco.
— Apanhei-te, não foi?
Ela ri-se, o som é quente mas agudo. Brincalhão mas doloroso, como
se a felicidade não fosse habitual para ela. A sua cabeça inclina-se
ligeiramente para trás, as ondas prateadas caindo quase até à cin­tura,
enquanto olha para mim, com os olhos enrugados do riso.
Inclino-me um pouco, atrevendo-me a diminuir a distância entre nós.
— Talvez devesses considerar esse pormenor antes de decidir, que­rida.
E com isso, fico subitamente curioso, pergunto-me de repente qual o
poder que ela detém. Tento alcançar a sua capacidade.
Nada. Não sinto nada.
Estudo-lhe o rosto enquanto procuro sentir-lhe o poder. Normal­mente,
esta seria a parte em que ou atiro a rapariga para cima do meu ombro e a
levo para as masmorras para ser examinada mais a fundo, ou simplesmente
a mato no local por mera suspeita de que possa ser uma Vulgar.
E, no entanto, não me mexo.
Estás cansado. Estás ferido. Pode ser um erro.
Antes de ter tempo para deliberar o seu destino, ela dá um passo atrás
em direção ao beco cheio de gente.
— Vou pensar nisso, querido. — Sorri de novo, segurando o meu olhar
enquanto se afasta. — E obrigada por me teres salvado de bater com a cara
no passeio. Ser desajeitada é a minha maldição.
— Bem, essa tua falta de jeito encontrou-me, por isso não lhe cha­‐
maria de maldição. — Amplio o meu sorrio quando a vejo revirar os olhos
antes de se dirigir novamente para Loot. Por fim, permito-me passar os
olhos por ela, reparando nas calças pretas justas e no co­lete cor de azeitona,
agora coberto pelo cabelo prateado. Nada no seu modo de andar me dá a
impressão de que dorme na rua, embora as roupas esfarrapadas e o lábio
inferior ferido sustentem o contrário.
Passo uma mão pelo rosto, apercebendo-me de que estive a olhá-la
demasiado tempo. Depois, viro-me e começo a descer um outro pequeno
beco, agora silencioso à luz do sol, ocupado com a ideia de ter acabado de
deixar uma Vulgar seguir em liberdade.
Mas não me distraio o suficiente para não reparar nas quatro grandes
sombras que se erguem na parede do beco ao meu lado.
— Ouve lá — diz uma voz grave de um dos homens atrás de mim. —
Tudo o que queremos é essa bonita bolsa de moedas que tens no cinto.
Entrega-a e ninguém precisa de se magoar.
Solto um suspiro, pressionando as palmas das mãos nos olhos. Este dia
está a ficar cada vez melhor.
E é aí que o sinto.
Com a minha atenção finalmente voltada para o porta-moedas,
apercebo-me de que está mais leve do que antes.
Antes dela.
Porque é que ela...
Uma sombra desloca-se e vem ao meu encontro. Viro-me, es­quivando-
me ao ataque do homem antes de lhe desferir um murro no estômago. Com
um grunhido, ele dobra-se, tossindo, enquanto eu olho para os outros.
Dois Fortes, um Piromante e um Rastejador.
Apenas as Elites Defensores e Atacantes mais desesperadas en­contram
o seu caminho até aos bairros de lata para bater em men­digos pelas poucas
moedas que têm. Sabendo disso, deixo o poder do Piromante infiltrar-se em
mim, sentindo as chamas a percorre­rem os meus braços.
Outro Forte dirige-se a mim com um sorriso.
São sempre tão convencidos. E isto vindo de mim.
Agacho-me muito antes da colisão, o impulso fazendo-o rolar sobre as
minhas costas e aterrando com força no paralelepípedo. O meu punho
flamejante acerta-lhe no maxilar e um cheiro repug­nante a carne queimada
afeta-me o nariz.
Olho para cima e vejo o Rastejador a escalar a parede, com a intenção
de saltar para cima de mim, prendendo-me ao chão. En­quanto ele se atira,
eu abandono o poder do Piromante e assumo o do Forte. O meu punho,
agora sobrenaturalmente poderoso, en­contra o estômago do Rastejador em
pleno ar, e ele é projetado con­tra a parede antes de se estatelar no chão com
um estrondo.
O Piromante vem na minha direção, com a boca curvada en­quanto
rosna.
Atira-me uma bola de fogo, e eu salto para o lado para a evitar — não
o suficientemente depressa. Praguejo quando o fogo queima a parte exterior
do meu bíceps, ardendo e tornando-me lento com a dor.
A minha mente corre quase tão rápida como o meu coração. Não
consigo aproximar-me dele quando me obriga a defender e a desviar do
fogo, mas sei que se eu retorquir, de certeza que incendiaremos uma rua.
Não estou com disposição para isto.
Deixo o poder do Rastejador literalmente rastejar até à superfície antes
de o agarrar. Desviando-me das bolas de fogo, corro encostado à parede do
beco e ao longo do edifício até ficar paralelo a ele. Num movimento rápido,
salto do muro, atirando-o ao chão, antes de tro­car rapidamente de poderes
para erguer um punho flamejante na sua cara.
— Tu és o Príncipe Kai — gagueja. — O... o futuro Executor.
Com a proximidade, finalmente reconheceu-me a mim e à minha
capacidade, lamentando agora, por certo, a sua decisão de atacar o Príncipe.
— Infelizmente para ti, sim. — Recuo o meu punho e...
Uma dor lancinante atravessa-me o crânio como uma faca.
A potência do Piromante esgota-se e não consigo fazer nada mais do
que agarrar-me à cabeça, ofegante com a dor. Ao longo dos anos,
familiarizei-me com a tortura, mas isto não se assemelha com nada do que
alguma vez já tenha sofrido.
Por entre a névoa de agonia que me turva a visão, vejo uma figura alta
a entrar no beco. A sua mão está levantada na minha direção, o rosto
sombrio, os lábios finos puxados para baixo numa face cheia de raiva.
Silenciador.
Impossível.
Os meus pensamentos dispersam-se, deixando apenas a dor.
O Silenciador sufoca o meu poder. Sufoca-me. Eles podem fazer mais
do que anular uma habilidade, transformando qualquer um num Vulgar. Ele
está a incapacitar-me. A minha mente, a minha habilidade, o meu corpo.
A minha visão fica desfocada, com manchas a passar diante dos meus
olhos.
Luta contra ele.
Não posso. Vou desmaiar. Morrer. Ambos. E não há nada que possa
fazer para o impedir.
Luta. Contra. Ele.
Caio no chão, a cabeça batendo contra as pedras.
Se o Pai me pudesse ver agora...
Sinto desvanecer-me rapidamente. Mesmo com todo o meu treino,
nunca me senti tão fraco, tão impotente, tão fora de controlo. Olho uma
última vez para o homem que me está a roubar a força. Não me apercebera
de que havíamos atraído uma pequena multidão até ver os rostos na minha
visão afetada.
Eles não fazem ideia de quem eu sou.
Uma audiência inocente para me ver a mergulhar na escuridão.
Ou pior, talvez eles saibam quem eu sou. Talvez estejam a fes­tejar ao
verem o monstro a ser finalmente abatido, a sucumbir em desgraça.
E depois algo capta a minha atenção.
Pestanejo o suficiente para ver algo a brilhar na luz atrás do
Silenciador — o sol a refletir-se num cabelo prateado.
Adena vai ficar em choque. Depois irá guinchar, e eu vou tapar os
ouvidos. Nunca roubei tantas moedas a uma pessoa. Não que tenha tido a
oportunidade, visto que a maioria das pessoas do Loot não tem mais do que
uma dúzia de pratas, quanto mais andar com elas casualmente pela rua.
Tenho a mente às voltas enquanto desço devagar as ruas de Loot, agora
envolto por sombras enquanto o sol se esconde atrás dos edi­fícios em
ruínas.
Abano a cabeça com espanto e dedico algum tempo a passear pelo
mercado, permitindo-me admirar o meu feito. Vários comerciantes já estão
a arrumar as bancas, a fechar as lojas. As crianças correm pela rua umas
atrás das outras, recebendo olhares de reprovação e gritos dos compradores
que ainda vagueiam por ali.
Desço um beco, perto do local onde roubei o jovem despreve­nido, e
começo o caminho de regresso à Fortaleza.
Mal posso esperar para ver a cara da A...
Estanco, olhando para uma pequena multidão reunida mais ao fundo
da rua.
Deve ser um Véu.
Não é de admirar que o poder da invisibilidade possa naturalmente
ajudar alguém a fazer truques de magia, usando a sua habi­lidade para fazer
desaparecer cartas, tendo apenas de as segurar. Admiro a sua habilidade
para criar pequenos espetáculos traiçoei­ros com o intuito de ganhar alguns
xelins.
Estou prestes a mudar de rumo quando ouço suspiros vindos da
multidão, ecoando pelos edifícios em ruínas. Não são os típicos oohs e aahs
presentes durante os truques de magia, mas suspiros as­sustados de choque e
surpresa. Quando a minha curiosidade leva a melhor, dou por mim atrás da
multidão, enfiando-me entre corpos suados e abrindo caminho para ver o
que se passa. Quando atento à cena diante de mim, sinto um sobressalto e
levo uma mão à boca.
É ele.
Vi-o há menos de dez minutos e, no entanto, a sua camisa está agora
agarrada ao corpo transpirado enquanto se prepara para ata­car o homem que
detém por baixo com um punho flamejante. Três outros corpos estão
espalhados pela calçada, cambaleando lenta­mente numa tentativa de se
levantarem e fugirem.
Sei bem o que aconteceu aqui, é óbvio que estes homens tiveram a
mesma ideia de que eu quando viram a bolsa pendurada na anca do
estranho. Mas escolheram uma forma muito mais violenta de apanhar as
moedas — bem, o que quer que tenha sobrado.
Vejo o estranho dizer qualquer coisa ao homem antes de erguer o seu
punho ardente, pronto a atacar.
E do nada, algo terrível acontece.
Está a agarrar-se à cabeça e vejo a sua expressão arrogante trans­‐
formar-se em agonia completa quando uma figura sai das sombras. Só lhe
consigo ver as costas, mas é alto e magro, erguendo uma mão para o
estranho a arfar de dor no chão do beco.
É impossível.
A multidão em redor parece tão confusa e espantada como eu. Com a
mão ainda estendida, o Silenciador dá pequenos passos em direção à figura
de cabelo preto agora caída no chão.
Ele está a limitar o seu poder. Ele está a paralisá-lo.
Consigo ver o estranho ainda a tentar lutar, a agarrar-se à cons­ciência.
A visão é de repente tão assustadoramente familiar, tão doentia que quase
tropeço no homem ao meu lado.
Este estranho e o homem que me criou não são nada parecidos e, no
entanto, a imagem de um aleijado no chão parece colocá-los em pé de
igualdade. De repente, sinto-me outra vez aquela menina, que ficou parada
a ver o pai morrer debaixo de si.
Olho em volta, observando a multidão. Ninguém se mexe. Mesmo com
os seus poderes extravagantes, ninguém faz um gesto para o ajudar. Ou têm
demasiado medo ou são demasiado insensíveis.
Eu sei como isto acaba. Já o vivi.
Quando olho para o estranho, é o meu pai que vejo. Respiro fundo e
dou um passo em frente.
Não voltarei a ficar de braços cruzados. Não pude salvar o meu pai,
mas vou honrá-lo agora, salvando alguém do mesmo sofrimento.
Provavelmente vou arrepender-me disto.
Arrasto-me até à fronteira da multidão e começo a esgueirar-me por
trás do Silenciador. Consigo praticamente sentir a atenção do público a
virar-se para mim, a multidão a observar silenciosa­mente. Agachada atrás
do homem, vejo uma pedra grande e solta no passeio, e pego nela.
Aqui vou eu.
Levanto-me e ergo a pedra em silêncio, com a intenção de a man­dar
diretamente ao seu crânio.
Não tive sorte.
Ele vira-se, os seus olhos negros fixando-se nos meus. Com a atenção
centrada em mim, a sua força esmagadora sobre o estranho diminui, e ouço-
o a arfar no chão.
O Silenciador ergue a mão esguia na minha direção, o seu cabelo à
altura dos ombros movendo-se na brisa. Está a tentar silenciar-me.
Quase que sorrio. Não teve sorte.
Não acontece nada, claro, uma vez que não tenho qualquer poder que
possa ser sufocado. Olha para a sua mão e depois para mim, con­fuso. A
visão é quase cómica, e aquela fração de segundo de hesitação é tudo o que
preciso.
Agarro-lhe o pulso, torcendo-lhe o braço num ângulo estranho, antes
de lhe enfiar o joelho no estômago. Ouço o ar a sair-lhe dos pulmões
enquanto agarra no braço. E com isso, a minha adrenalina entra em ação,
ansiando por uma luta.
Lembra-me de todas aquelas noites e manhãs com o meu pai. Horas de
treino no ringue de terra improvisado atrás da nossa casa.
«Tanto a tua mente quanto o teu corpo precisam de ser treinados.
Condicionados», repetia ele enquanto eu procurava desviar-me dos murros,
e lhe ia respondendo à chuva de perguntas que colocava com o intuito de
me testar. Empunhei qualquer arma que pudés­semos conseguir, enquanto o
meu pai treinava cada parte do meu ser — a minha mente, o meu corpo, a
minha habilidade de Psíquica.
Até que um dia ele já não estava lá para me treinar. Já não estava lá
para me proteger. Já não estava lá para continuar a ensinar-me a proteger-
me.
O Silenciador recupera rapidamente, dando-me um murro com o braço
são e arrancando-me dos meus pensamentos. Desvio-me e aponto-lhe um
gancho de direita ao queixo. O seu antebraço levanta-se para bloquear o
meu golpe, forçando o meu braço para baixo antes de o agarrar e me fazer
rodar de modo que as minhas costas fiquem pressionadas contra o peito
dele. E depois, a dobra do seu outro braço aprisiona-me num
estrangulamento.
Eu respiro, tentando manter a calma. Luto contra a vontade de agarrar
inutilmente o braço que me pressiona a traqueia, mas, em vez disso, atiro a
cabeça para trás, fazendo com que o meu crânio lhe bata no nariz e receba
um estalido doentio seguido do som de sangue a gorgolejar.
Sangue.
Tanto sangue a jorrar, cobrindo o chão da nossa pequena casa si­tuada
entre a Merchant e a Elm Street. A cobrir-me a mim, ao meu pai. Não voltei
lá desde aquela noite em que fugi. Naquela noite, o Rei cravou uma espada
no peito do meu pai.
O Silenciador larga o meu pescoço e cambaleia para trás, agar­rado ao
nariz. Mas eu ainda não terminei. Nem de perto.
Tiro o anel do polegar e deslizo-o para o dedo médio antes de enviar o
punho à bochecha do Silenciador, ignorando a dor que provoca na minha
própria mão. Ele tira as mãos do nariz que pinga e volta a atacar-me, mas eu
já sabia que tal iria acontecer.
Dá sempre um passo com o pé esquerdo antes de dar um murro.
Bloqueio o golpe agarrando-lhe os ombros, e acerto uma nova joelhada
no estômago. Antes que tenha recuperado o fôlego, prendo-lhe cabeça entre
as mãos, empurrando o nariz já partido para o meu joelho.
Canalizo toda a minha raiva em cada golpe.
A minha raiva contra o Rei, que se esgueirou até ao escritório do meu
pai, sentado numa poltrona almofadada, lendo noite fora.
Outro gancho de direita no queixo do Silenciador.
A minha fúria, ao recordar vividamente o som do grito do meu pai
quando a espada lhe atravessou o peito, arrancando-me do sono.
Dou um pontapé na virilha do Silenciador.
A minha raiva quando vi o meu pai a deslizar da sua adorada poltrona
para o chão, escorregando no próprio sangue.
Deixo-me cair e faço um grande arco com a minha perna, ati­rando o
Silenciador ao chão.
A minha raiva enquanto segurava a mão do meu pai, gritando e
implorando-lhe que acordasse.
Fiquei ali sentada a noite toda, com as calças encharcadas de sangue, a
tentar perceber o que poderia justificar a sua morte. Mas o Rei não precisa
de uma razão para matar, precisa de uma razão para deixar as pessoas
viverem.
Bato no Silenciador, mal me apercebo do que estou a fazer, en­quanto a
minha mente se agita.
Eu estava entorpecida. A minha mão agarrou-se à mão fria do meu pai,
segurando-a enquanto me balançava para trás e para a frente, com os
soluços a agitar-me o corpo. Afastei-lhe os cabelos castanhos dos olhos,
endireitei-lhe as roupas ensanguentadas, sus­surrei sobre todas as memórias
que partilhámos enquanto lhe im­plorava que voltasse para mim para
podermos construir mais.
Eu estava completamente sozinha no mundo.
E quando a luz do sol entrou pelas janelas, iluminando a cena macabra,
eu não aguentei estar mais na minha própria casa — não que tivesse
dinheiro para manter uma casa aos treze anos de idade.
Tentei enterrá-lo. Tentei tanto arrastá-lo lá para fora e dar-lhe um fim
digno, dar-lhe a honra que ele merecia. Mas eu era tão pequena, e ele tão
grande, tão pesado, tão morto. Escorreguei várias vezes na poça de sangue
do meu pai, incapaz de mover o corpo. Por isso, tirei-lhe a aliança do dedo,
coloquei-a no meu polegar e corri.
O mesmo anel que estou a usar agora para afundar a bochecha do
Silenciador.
Se o pai me pudesse ver agora...
Pairo sobre ele, a minha raiva começa por fim a desvanecer quando os
seus olhos negros se arregalam. O sangue escorre-lhe pela cara, saindo pela
boca, nariz e outros cortes espalhados. Deslizo a adaga da minha bota
enquanto algo brilha nos seus olhos.
Medo.
Ele teme o que não pode controlar.
E nesse preciso momento, eu sou tudo aquilo que ele não conse­gue
controlar.
Bato-lhe com o cabo da adaga na têmpora, deixando-o incons­ciente.
Ainda agachada sobre ele, o meu olhar encontra o cinzento que me atenta.
As emoções atravessam o rosto do estranho à medida que me observa e
percebe o que fiz. Choque, espanto, confusão e até um certo divertimento,
cobrem-lhe o rosto. Afasto o meu olhar, devolvendo a adaga à minha bota,
enquanto murmúrios de espanto sur­gem da multidão. Viro-me, atónita, para
encontrar um aglomerado de pessoas expectantes. Mercadores, mulheres e
crianças observam a cena, todos a sussurrar e a apontar. De repente, três
Imperiais apres­sados empurram a multidão, desviando as pessoas do seu
caminho.
Eu fico tensa, preparando-me para qualquer tipo de castigo. Tal­vez
mais algumas chicotadas para decorar as minhas costas.
Mas eles passam por mim, pelo Silenciador inconsciente, e caem de
joelhos diante do estranho.
Isto é... interessante.
E, aparentemente, não sou a única que pensa assim. O zumbido dos
sussurros da multidão torna-se mais sonoro, permitindo-me apanhar
pedaços das conversas abafadas.
... um Silenciador aqui em Ilya...
... foi o Príncipe Kai que lutou contra quatro homens...
... lutou contra o Silenciador sem usar um poder!
Eu congelo, com o coração a bater, mal conseguindo respirar. Príncipe
Kai.
Nunca tinha visto o homem. Nunca pensei que o veria.
Também nunca pensei roubá-lo.
Mas já ouvi o suficiente sobre a sua reputação. De como é
supostamente o Elite mais forte das últimas décadas. De como será o futuro
Executor, que se diz ser insensível e calculista, mas carismá­tico e
encantador quando lhe apetece — quando escolhe desempe­nhar esse papel.
Ouvi dizer que ele é um Portador raro e poderoso, capaz de sentir o
poder de outra pessoa e usá-lo, desde que esteja suficientemente perto.
Chamam-lhe o Entregador da Morte.
O príncipe tende em permanecer no conforto do seu cómodo palácio,
por isso é provável que ninguém tenha reconhecido o estra­nho como sendo
alguém importante. E quando sai do castelo, bem, as pessoas que visita não
costumam viver para contar a história.
Viro-me lentamente para os Imperiais que se amontoam à volta do
príncipe e vejo como ele passa por eles, irritado com o sufoco que lhe
provocam. Emite uma ordem, dizendo-lhes para levarem o Silenciador para
as masmorras e afastarem a multidão da rua. O príncipe exala autoridade e
poder a cada passo, a cada palavra. Os Imperiais apressam-se a obedecer-
lhe enquanto reúnem a mul­tidão e a empurram de volta para Loot.
Os seus olhos encontram os meus.
Mesmo com os inúmeros ferimentos, ele avança na minha di­reção,
evidenciando um coxear. Um predador a perseguir a presa.
E essa é a minha deixa.
Tento passar despercebida no meio da multidão, na esperança de ser
arrastada pela corrente de corpos. Espero que se esqueça que o salvei e que
me deixe ir embora calmamente.
Não tive essa sorte.
Uma mão calejada agarra-me o braço e encosta-me à parede do beco.
Pressiona os meus pulsos contra o tijolo com as mãos fortes, inclinando-se
na minha direção.
Contorço-me no seu aperto, mas ele não se mexe. Não sei bem o que
estava à espera que ele fizesse, mas de certeza que não era isto. Talvez um
agradecimento educado — não um interrogatório contra uma parede suja.
Eu nunca o teria salvo se soubesse quem ele era. O que ele é. O que
ele faz. Sopro com a irritação e o cabelo prateado cai-me sobre os olhos,
bloqueando-me do seu olhar penetrante.
— É assim que tratas todas as pessoas que te salvam a vida ou isto é
algo novo para ti? — resmungo de dentes cerrados, em referência às suas
primeiras palavras.
— Não sei, visto que nunca ninguém me salvou antes. — Há um
vislumbre de sorriso no rosto, enquanto me oferece um breve movi­mento
daquela covinha irritante.
— Bem, então deixa-me ensinar-te. Quando alguém te salva a vida, um
agradecimento educado é mais do que suficiente.
— Talvez — suspira e inclina-se para mais perto —, mas não para
aqueles que me roubam.
Acho que o meu coração para de bater. O príncipe sabe que eu o
roubei.
O príncipe. O futuro Executor. O Entregador da Morte.
Estou morta como a Peste.
Mas o meu medo é rapidamente substituído por uma emoção muito
mais desejada — a raiva. Estou zangada comigo mesma por ajudar o
príncipe que mata como se nada fosse e concede os dese­jos do seu pai como
se fosse tudo. Estou zangada por não o achar repugnante, uma vez que o
próprio reino a que é tão leal me deixa doente com os seus valores e crenças
distorcidos. Ele é o futuro Exe­cutor, o carrasco dos inocentes, dos Vulgares,
das pessoas como eu.
Sentindo-me imprudente e bastante encorajada pela proximi­dade da
morte, afirmo:
— Olha, é bonito e tem cérebro. As mulheres devem gostar de ti. — O
sorriso que lhe entrego é tudo menos doce. — Sabes, darias um bom ladrão,
não fosse o facto de seres tão facilmente enganado por um.
Está a sorrir. Divertido. Arrogante como sempre.
— Sabes com quem estás a falar, não sabes?
— Um sacana convencido? — digo-lhe inocentemente antes de morder
a língua. É evidente que tenho um desejo de morte.
Mas, para minha surpresa, ele inclina a cabeça para trás e solta uma
gargalhada autêntica, um som rico como o ouro que ocasio­nalmente roubo e
profundo como o mar de Shallows.
— Já me chamaram coisas piores — murmura depois de se re­compor,
com as mãos ainda agarradas aos meus pulsos. Depois, o divertimento
desaparece-lhe dos olhos, rapidamente substituído por uma expressão séria.
— Apesar de me teres roubado, acho que devo agradecer-te pela tua ajuda.
Quase me ri com isso. Aparentemente, salvar-lhe a vida é o mesmo
que lhe dar uma simples ajuda.
— No entanto, estou curioso por saber porque é que o Silenciador não
conseguiu sufocar o teu poder. E também porque é que eu não consigo
sentir nenhum poder vindo de ti. — Olha para mim como fez no beco
quando o roubei. Como se eu fosse um puzzle que está a tentar juntar.
Pestanejo quando por fim me dou conta.
Ele tem a rara habilidade de sentir o poder de outra pessoa e usá-lo...
Tentou sentir o meu poder no beco. Apenas para descobrir que não
tinha nenhum.
Estou morta como a Peste.
Enfrento-o, retirando o medo da minha expressão apesar dos
pensamentos frenéticos com que sou assaltada. Encolho os ombros rígidos,
esperando que a ação passe por ser muito mais casual do que parece.
— Sou uma Mundana. Uma Psíquica.
— Uma Psíquica — ecoa, com a descrença a pingar a cada sílaba. —
Diz-me, o que é que consegues fazer. — Faz uma pausa. Encolhe os
ombros. — Nunca conheci uma Psíquica. Estou curioso.
Engulo o riso histérico que ameaça sair. O futuro Executor não é
curioso, é calculista. Mas deve estar bastante divertido comigo, caso
contrário, eu já estaria morta.
— O meu poder é uma espécie de... sentido — digo facilmente,
recitando uma frase ensaiada. — Só consigo sentir as emoções fortes dos
outros, obtendo assim informação de forma rápida.
Olho-o nos olhos, desejando que acredite em mim. Na espe­rança de
que aceite a resposta e siga em frente com a sua vida. Espe­rando que me
deixe seguir em frente com a minha.
Parece estar a lutar contra um sorriso.
— Isso é mesmo assim?
— E porque não seria?
Os olhos dele movimentam-se rapidamente.
— Então porque é que eu não consigo sentir ou usar o teu poder?
Engulo, tentando parecer que não estou a esforçar-me por in­ventar
uma mentira credível.
— A minha habilidade é imprevisível. Nem eu consigo controlar o que
vejo ou quando o vejo. Isso, junto com o facto do meu poder ter pouca
força, deve ser a razão pela qual tu e o Silenciador não o conseguiram
detetar. É uma habilidade mental — indico, enco­lhendo os ombros. —
Tenho de conseguir proteger a minha cabeça daqueles que tentam entrar
nela.
Sustenho a respiração, à espera da resposta.
Exceto que não me dá uma. Fica simplesmente parado, a olhar para
mim. Eu suspiro antes de prosseguir:
— Vá lá. Pergunta a qualquer pessoa dos bairros de lata sobre mim e o
meu poder. Melhor ainda — inclino-me ligeiramente para a frente —, podes
perguntar aos teus Imperiais. Tive uma bela con­versa com um deles esta
manhã.
Os seus olhos estreitam-se um pouco antes de soltar lentamente os
meus pulsos e dar um passo atrás.
— Talvez o faça. — Depois o sacana sorri. — Mas ainda gostava de
ver com os meus próprios olhos essa tua habilidade de Psíquica. Prova-a.
Se recebesse um xelim por cada vez que alguém me diz estas pa­lavras,
já nem me dava ao trabalho de roubar. Cruza os braços sobre o peito largo,
as sobrancelhas erguidas com expetativa, enquanto diz:
— Lê-me. Ou o que quer que seja que dizes que fazes. — Depois
inclina-se, com um olhar divertido a brilhar. — Impressiona-me, querida.
— O meu poder não é um truque de festa para teu entreteni­mento, mas
eu alinho, Príncipe. — Devolvo-lhe um sorriso sarcás­tico antes de percorrer
o corpo dele com os olhos. — Nem sei se vou conseguir apanhar alguma
coisa com a imprevisibilidade da minha habilidade.
— É mesmo?
Ignoro o tom de voz irónico e penso nos calos que tem nas pal­mas das
mãos e nas dezenas de cicatrizes que lhe marcam os braços.
Bem, é óbvio que é um lutador. Não preciso de ser uma Psíquica para
perceber isso.
Sei que preciso de lhe dizer algo que valha a pena se houver al­guma
esperança de acreditar em mim. Qualquer esperança de so­breviver a esta
conversa. Vai matar-me sem pensar duas vezes se suspeitar que sou apenas
uma Vulgar.
— Posso ver a tua mão? — As palavras são uma exigência disfar­çada
de pergunta. Estendo a palma da minha mão com expetativa, o seu olhar a
desviar-se para a mão que agora lhe ofereço. Só a me­lhor atuação servirá ao
Príncipe.
Tem uma expressão irritantemente neutra, sem desviar os olhos dos
meus enquanto coloca a sua mão na minha.
— Sabes, nunca conheci uma ladra com maneiras. E parece que tu não
és de todo a exceção.
Bufo para o ar, para logo depois dedicar a minha atenção para a grande
mão calejada que pousa na minha.
— Há alguma razão para insistires em segurar na minha mão?
Os meus olhos vão de encontro ao seu olhar frio.
— Não te preocupes, vou tentar resistir a beijar-te os nós dos dedos,
Príncipe.
Ao mencionar os nós dos dedos, os meus olhos percorrem-nos
enquanto o seu riso me invade. Estão vermelhos e em carne crua, não só
deste combate, mas também de um anterior. O sangue escorre-lhe pelos
dedos devido às crostas reabertas, embora ele não pareça incomodado.
— Tu estiveste numa luta — digo eu. — E...
Suspira e interrompe-me.
— Eu disse-te para me impressionares, não para dizeres o óbvio.
— Não estou a falar desta luta — suspiro, deixando cair a mão dele
para gesticular à nossa volta, enquanto luto contra a vontade de lhe arrancar
aquele sorriso estúpido da cara. — Estou a falar da luta anterior a esta.
Observo-o com atenção, notando que nada na sua expressão in­dica se
estou certa ou errada.
Pestes, ele não me vai facilitar as coisas.
O meu olhar desce brevemente para os sapatos que usa. A esta
distância, não parecem tão brilhantes como eu pensava que eram quando o
vi no Loot. De facto, não parecem brilhantes de todo.
Areia.
Os sapatos pretos, outrora polidos, estão agora cobertos por uma fina
camada de areia, quase invisível. Como se tivesse estado a caminhar pelo...
Scorches.
E só há uma razão para o Príncipe, mais concretamente o futuro
Executor, ter ido até ao Scorches.
Ele baniu alguém. E esse mesmo alguém deu luta.
Lembro-me dos dois Imperiais que faltavam na rotação de hoje, e tudo
começa a encaixar-se.
O Príncipe precisa de guardas para arrastar os prisioneiros para o
Scorches. O triunfo começa a desabrochar no meu peito, mas eu afasto-o.
Há qualquer coisa que não faz sentido.
Normalmente, a cidade estaria a coscuvilhar durante dias sobre quem
foi banido e porquê. Os criminosos teriam desfilado pela ci­dade, atraindo
uma multidão para os ver caminhar até à morte. Mas eu não ouvi uma única
palavra sobre isso. Estranho, tendo em conta que costumam desfilar os
banidos, usando-os como exemplos, exi­bindo-os para avisar o reino sobre o
que acontece quando se cruzam com o Rei.
Ele não queria que ninguém soubesse disso.
Numa questão de segundos, tenho toda a informação de que preciso.
— Tu estavas num sítio... quente. Com areia. — Fecho os olhos e
cerro-os antes de acrescentar: — Scorches.
Volto a abri-los e deparo-me com os olhos dele a navegar pelo meu
rosto.
— Tu baniste alguém. Ou... um grupo de pessoas. — Quando digo
isto, ele fica tenso, muito ligeiramente. A sua fachada de frieza é aba­lada. E
só com esse pequeno gesto, acaba de confirmar que estou certa.
E que eu não devia ter conhecimento de nada disto.
— Mas... — Faço uma pausa. — Não queres que ninguém saiba, pois
não?
Não consigo reprimir um pequeno sorriso quando ele me olha,
simultaneamente impressionado e confuso.
— E de que emoção é que estás a tirar essa informação? — per­gunta,
tranquilo.
Solto um suspiro antes de tentar adivinhar qual é a emoção que
percorre o corpo do futuro Executor, se é que o homem tem emoções.
— Estou a sentir culpa? Preocupação? — Ele parece ficar quieto,
dando-me uma confirmação silenciosa de que eu devo estar pelo menos
parcialmente correta. — Isto foi prova suficiente para si, Alteza?
Estou bem ciente do jogo perigoso que estou a jogar. E, no en­tanto,
parece que não consigo perder o meu ódio por ele e por tudo o que
representa.
Mas o sorriso que lhe levanta os lábios, diz-me que também gosta do
jogo.
— Sim, foi. Bem — ele exala, enfiando as mãos nos bolsos —, como
tão gentilmente fizeste questão de dizer antes, eu deveria agrade­cer-te,
novamente, por me ajudares, querida.
— Paedyn.
As suas sobrancelhas escuras erguem-se ligeiramente, interro­gando-se.
— O meu nome é Paedyn, não querida.
— Paedyn — repete, com um pequeno sorriso, testando a palavra. A
sua voz profunda faz com que o meu nome soe tão rico, tão real, como se
fosse eu que tivesse sangue real a correr-me nas veias.
Ficamos a olhar um para o outro por um momento, com os seus olhos
gelados a percorrerem o meu rosto corado e a não fazerem nada para o
arrefecer.
— Sabes, posso dar-te umas luzes sobre outra forma de agradecer a
alguém por te ter salvado a vida. — Faço uma pausa, reprimindo um
sorriso. — Pagando a tua dívida.
Ele inclina a cabeça para trás e ri-se sombriamente.
— Não recebeste prata suficiente quando me roubaste da pri­meira vez?
— Encolho os ombros e ele continua com frieza: — É pre­ciso lembrar-te
que disseste que um simples agradecimento seria suficiente?
— Sim, um agradecimento seria suficiente. Mas não me satisfaz. E,
bem, isso também foi antes de eu saber quem tu eras.
Começa a afastar-se enquanto tira uma moeda da sua bolsa. Lança e a
mesma vem na minha direção. Mal tenho tempo de es­tender a mão para
apanhá-la quando ele completa:
— Algo para te lembrares de mim.
São cada vez mais os passos que nos separam, embora os seus olhos
continuem fixos nos meus.
— Oh, e querida?
— Paedyn.
— Tu tinhas razão.
Dá mais um passo atrás.
Deixo escapar um suspiro.
— Não sei se quero ouvir o que vais dizer a seguir, uma vez que não te
dirigiste a mim pelo meu nome, que é...
— Paedyn — o som do meu nome nos seus lábios interrompe-me —,
as mulheres gostam mesmo de mim.
E num piscar de olhos, vira-se e sai do beco.
— O. Que. Raio. Aconteceu?! — Adena sacode-me vigorosamente os
ombros, fazendo-me estalar os dentes. Assim que cheguei à For­taleza,
confusa com os acontecimentos do dia e bastante feliz por ir dormir, Adena
atirou-se a mim e exigiu todos os pormenores.
— O quê? Como é que tu...? — Tropeço nas palavras, pergun­tando-me
como é que ela poderia saber que hoje foi um dia dife­rente dos demais.
Ela interrompe-me, olhos arregalados de excitação e de pergun­tas sem
resposta.
— Toda a gente está a falar disso! O mercado inteiro está a falar da
rapariga de cabelo prateado que lutou contra um Silenciador! — Fico a
observá-la, estupefacta. Ela continua, as suas palavras são rápidas e sem
fôlego.
— E o príncipe? — Ela quase grita. — Salvaste o príncipe?!
— Bem, parece que ele não o quer admitir, mas sim, salvei o príncipe.
— Desta vez, ela guincha mesmo. — Mas só depois de o ter roubado.
Ela fica de boca aberta. É tão dramática que não consigo parar de me
rir.
— Tu o quê?
— Em minha defesa — digo, com as mãos levantadas em sinal de
inocência —, não sabia que era ele.
— Pae, o príncipe... — A preocupação tolda-lhe o olhar e ela pes­taneja
uma dúzia de vezes antes de prosseguir: — Ele é um Portador. Será que
ele... Será que sentiu que tu não tinhas nenhum poder?
Interrompo a conversa antes que um resto de cor lhe abandone o rosto,
explicando-lhe rapidamente os acontecimentos da última meia hora. Os
olhos de Adena estão arregalados, a franja encaraco­lada agarrada às
pestanas, enquanto lhe conto tudo, desde o roubo do príncipe até à luta com
o Silenciador. Depois de tomar conheci­mento da mentira que eu inventei ao
futuro Executor, conversámos calmamente até o beco sombrio ser engolido
pela escuridão.
— Está bem, mas será que ele é mesmo tão bonito como toda a gente
diz?
Lanço-lhe um olhar vazio que duvido que consiga ver, mas que sei que
consegue sentir.
— É essa a pergunta que estás mortinha por fazer depois de tudo o que
acabámos de falar?
— Isso não foi uma resposta — declara ela.
Deito-me nos tapetes rijos, abafando o meu gemido com um co­bertor
áspero. Optar por manter a boca fechada dá a Adena a res­posta de que
precisa.
Ela guincha e, desta vez, eu abafo-a com um cobertor.

O amanhecer arrasta-se sobre os telhados, e eu imito vagarosa, em


bicos de pés pelas ruas.
Misturando-me no caos total que se instala todas as manhãs em Loot,
normalmente não é difícil para mim passar despercebida enquanto tiro
relógios dos pulsos dos compradores ou moedas de bolsos desprotegidos.
Mas hoje não.
Hoje, não sou invisível. O pior pesadelo para um ladrão.
Olhos. Dúzias deles, todos fixos em mim quando passo. Ouço-os a
sussurrar uns para os outros, a apontar e a olhar.
Alguns começam a bater palmas enquanto eu percorro o corre­dor dos
carrinhos dos comerciantes, olhando-me com admiração. Há dezenas de
caras conhecidas no meio da multidão, por ter cres­cido rodeada e
sobrevivido com as mesmas pessoas. Amigo é uma palavra demasiado forte
para quem não é a Adena, mas há anos que tenho vindo a construir a minha
reputação como Psíquica, ga­nhando respeito e testemunhas da minha
habilidade.
A multidão parece separar-se de mim, deixando uma parede de pessoas
a observar de cada lado.
— A Salvadora Prateada — ouço um homem sussurrar antes que
outros façam eco das suas palavras.
Paro e quase tropeço quando os meus pés se detêm. Ali, outrora
escondido do meu olhar por lojas em ruínas, está pendurado um outro
cartaz, agora bem visível.

O POVO DE ILYA ESCOLHEU


APRESENTAMOS OS CONCORRENTES
DA SEXTA EDIÇÃO DAS PROVA DA PURGA:
KAI AZER
ANDREA VOS
JAX SHIELDS
BLAIR ARCHER
ACE ELWAY
BRAXTON HALE
HERA COLT
SADIE KNOX

Os meus olhos percorrem rapidamente a lista de nomes. E depois o


meu coração enche-se de palpitações. Várias.
Porque o nome final, escrito em letras grandes para todos verem, é
demasiado familiar.
PAEDYN GRAY
Sangue escorre-me pela camisa. Algum é meu, mas a maior parte
pertence ao Silenciador — que é como ainda tenho de o tratar, uma vez que
o sacana se recusa a dar-me algo tão insignificante como o seu nome.
Mesmo apesar do quão persuasivas as minhas ações podem ser.
Em suma, estou a torturar o homem há horas. Não fiz progressos e a
minha pouca paciência é agora inexistente. Estou irritantemente espantado
com a quantidade de tortura que este homem consegue to­lerar, embora
suponha que a dor se torne uma coisa familiar quando a estamos
continuamente a infligir aos outros. Tornamo-nos insen­sível a ela.
O Silenciador e eu temos mais parecenças do que aquelas que gos­‐
taria de admitir.
As masmorras por baixo do castelo são escuras, sujas e cheias de
morte — em contraste com a luz e a exuberância do castelo lá em cima. As
celas alinham-se nas paredes, algumas cheias de prisionei­ros, outras cheias
dos restos mortais dos anteriores.
O Mudo que reveste cada uma destas celas é a única razão pela qual
ainda estou de pé perante o prisioneiro, infligindo-lhe o meu próprio tipo de
dor inimaginável. Desde que o material foi criado com a ajuda dos
Silenciadores antes da Purga, tornou-se extrema­mente raro, forçando o Rei
a acumulá-lo. Os Académicos usaram Transmissores com a sua habilidade
de colocar poder em objetos, co­locando a força sufocante dos Silenciadores
dentro dos materiais. Ao longo das décadas, este fornecimento limitado de
Mudo foi utilizado para fabricar celas, algemas e escudos à volta das
bancadas da Arena Bowl.
Para além das celas Mudo, também estou acompanhado pelo fiel
Silenciador do meu pai. Porque, por mais irónico que seja, os Si­lenciadores
podem silenciar-se uns aos outros, desde que um deles seja mais forte.
Assim, eu trabalho enquanto o Silenciador solene fica à espera, e o que está
aos meus pés grita.
Sem a proteção que o Mudo e o Silenciador oferecem, provavel­mente
estaria a rebolar no chão em agonia. De novo. Não consigo parar de repetir
a cena na minha mente, lembrando-me da dor a invadir-me o crânio. A total
impotência enquanto estava ali deitado, completamente à mercê de um
mero homem.
Mas depois ela apareceu.
Paedyn.
Uma Mundana. Uma Psíquica, uma lutadora, uma ladra. E, no entanto,
a única disposta a ajudar-me sem motivo aparente. A única capaz de ajudar.
Pelo menos é o que ela diz.
Embora eu esteja cético, a sua demonstração foi impressionante. Ela
não deveria saber nada sobre o que aconteceu no Scorches, a expulsão, a
luta — nada disso. E como eu não sei nada sobre Psíqui­cos e nunca
encontrei nenhum, não tenho como provar que ela está a enganar-me. Há
dúzias de poderes que ainda não testemunhei, considerando que o meu
treino consistiu maioritariamente em ha­bilidades de Atacantes. O meu pai
certificou-se de que eu nunca desperdiçava o meu tempo, nem me rebaixava
ao ponto de apren­der os poderes de Elites de estatuto inferior.
Mas mesmo na minha névoa de dor, os vislumbres que apanhei da sua
luta eram cativantes. Ela era cativante. Sim, era hábil, mas o que mais me
intrigava era a emoção que canalizava a cada golpe. A pai­xão contida em
cada murro; a raiva que se desprendia dela.
Olho uma última vez para o homem ensanguentado e caído no canto
da cela antes de me virar para o Silenciador do meu pai.
— Já terminei por aqui, Damion. Estás dispensado.
Limpando as minhas mãos ensanguentadas à camisa que não está
muito melhor, saio da cela para percorrer o longo corredor da masmorra,
passando por prisioneiros que me olham de lado. Subo as escadas de pedra
que conduzem ao piso principal do palácio e aceno aos Imperiais que se
encontram junto à pesada porta de metal no topo.
O Rei estará à espera de uma atualização do interrogatório, o que neste
acaso não é propriamente algo que o vá agradar. Preparo-me para a
conversa desagradável que estamos prestes a ter.
Cedo de mais, os meus pés encontram o tapete puído que cobre o chão
do seu escritório, pisado durante anos. Os meus olhos per­correm a grande
secretária e as cadeiras almofadadas antes de se fixarem nos dois indivíduos
sentados junto à lareira de pedra.
Fico aliviado ao ver o meu irmão. O seu cabelo louro está des­‐
penteado, como se lhe estivesse a passar a mão há horas, espelhando o
aspeto desalinhado do meu pai.
— Bem, alguém tem andado... a brincar com o prisioneiro há já algum
tempo. — O tom de Kitt é sombrio, mas os seus olhos bri­lham quando
pousam em mim.
Suspiro antes de me instalar no meu lugar habitual, almofa­dado, ao
lado do Pai. Cruzando o tornozelo sobre o joelho, confesso casualmente:
— E depois deste tempo todo, seria de esperar que tivesse apren­dido
alguma coisa útil.
O Pai bate nos papéis que estão na mesa, um sinal associado à sua
desilusão.
— E qual parece ser o problema?
— Ele está a ser... — Faço uma pausa, à procura da palavra certa. —
Difícil.
É o melhor que consigo arranjar, recebendo um esgar de Kitt.
O Pai parece menos divertido. Na verdade, não parece nada di­vertido,
mas nunca o foi perante mim.
— Então faz com seja menos difícil, Kai. — Leva a mão ao rosto, o
que lhe dá um ar mais velho, mais cansado. — Ou ele fala ou tu tratas do
assunto. Não tenho desejo de manter o Silenciador vivo se ele não tem nada
para nos oferecer.
Olho de relance para Kitt, de rosto sério, sem o seu habitual bom
humor, enquanto observa o Pai. Quando o Rei está perturbado, Kitt fica
arrasado.
— É a maldita Resistência — rosna o Pai, tirando a mão do rosto para
revelar um esgar.
— Acredita mesmo que este Silenciador está do lado da Resistên­cia?
— pergunta Kitt, com a preocupação estampada nos vincos dos olhos.
— Porque outra razão tentaria levar um príncipe? O meu filho? — O
Rei abana a cabeça, olhando fixamente para as chamas da lareira. — Estão
a tentar atacar-me de todas as formas possíveis. Pensei que tinha tratado
deles. Purgado os Fatais para que não nos pudessem fazer mal, não nos
pudessem dominar. — Respira fundo antes de con­tinuar: — Pelos vistos,
pensei mal. Alguns ficaram, e juntaram-se a eles.
— Precisamos de pôr fim a esta pequena Resistência — grita o Pai,
antes de engolir o resto do álcool que tem no copo. — Eles podem que­rer
que os Vulgares vivam, mas, ao fazê-lo, a raça e o poder dos Elite acabarão
por morrer. Livrar o meu reino dos Vulgares é um sacrifício que tem de ser
feito para o bem do povo. Mas eles são demasiado egoístas para ver isso.
Kai — o seu olhar é penetrante quando encontra o meu —, faz com que este
Silenciador deseje estar morto antes de lhe concederes essa misericórdia.
— Oh, já estava a pensar nisso, Pai.

Estou encharcado em suor.


Não é uma ocorrência invulgar durante o treino.
A minha camisa ensanguentada já desapareceu há muito e o sol
fustiga-me as costas enquanto eu e o Kitt andamos às voltas num dos
ringues de treino de terra batida. Fazemos a nossa rotina nor­mal de nos
avaliarmos um ao outro e dizermos disparates antes de fazermos um
movimento para lutar. O padrão familiar acalma-me, alivia-me a mente
inquieta.
Dançamos à volta do ringue, de espadas em riste, e rimo-nos quando
lhe acerto na bochecha com a ponta afiada da lâmina, um gesto que ele
retribui da mesma forma. As espadas são rapida­mente excluídas,
substituídas pelos nossos poderes. Kitt acerta com facilidade nos alvos com
bolas de fogo, antes de borrifar a madeira em chamas com água. Eu, por
outro lado, encontro-me indeciso e ansioso: uma combinação terrível. Filtro
as habilidades dos que me rodeiam, tentando escolher um para treinar. Os
ringues estão cheios de dúzias de Elites, todos sujos do combate e abatidos
pelo treino. Eu salto do poder de um Flash para o de um Véu antes de
mudar para um Concha, embora eu nunca tenha gostado muito da sensação
da minha pele a transformar-se em pedra.
Parece que não consigo concentrar-me e isso só me deixa ainda mais
frustrado.
Ouço um ruído vindo detrás antes de sentir a familiar onda de calor
que irradia. Deixo-me cair no chão, evitando por pouco um jato de fogo que
me teria queimado o cabelo.
— O que é que te distrai tanto?
Viro-me para ver o Kitt com um sorriso desalinhado.
— Quase que te apanhei. Não serias tão bonito com esse monte de
cabelo chamuscado, pois não?
Não consigo decidir se quero rir-me com ele ou apertar-lhe o pescoço
— uma situação comum em que me encontro.
— Acho que sair vitorioso no ringue hoje foi demasiado fácil. Agora
estou aborrecido. — Encolho os ombros e pego em algumas facas de
arremesso de uma prateleira de armas antes de começar a atirá-las a uma
árvore a alguns metros de distância.
— Hmm — cantarola Kitt. Mesmo de costas para ele, consigo ouvir-
lhe o sorriso na voz quando diz: — Não consegues parar de pensar na
rapariga que te salvou a vida, pois não?
Como resposta educada, rodopio e atiro uma faca ao meu irmão. Passa
ao lado da cabeça dele, afundando-se num alvo que se encon­tra mesmo por
detrás com um estrondo. Ele mostra-se espantado.
— É um assunto delicado, presumo? — goza-me.
Passo por ele e arranco a lâmina da madeira.
— O que é que te deu essa impressão? — Encolho os ombros ca­‐
sualmente. — Ela claramente não quer ter nada a ver comigo.
Gosto de um desafio.
— E, além disso — acrescento, limpando o pensamento da minha
cabeça —, não é que alguma vez a vá voltar a ver.
A resposta de Kitt é rapidamente abafada pelo som dos nossos nomes a
serem gritados no pátio. Viramo-nos em conjunto, e vemos um rapaz magro
dirigir-se a nós. Vejo o rasgo de um sorriso contra a pele escura antes de
desaparecer, simplesmente piscando os olhos. Antes de eu ter tempo sequer
de pestanejar, ele está mesmo à nossa frente com um sorriso pateta a
dividir-lhe o rosto.
Praguejei debaixo do meu fôlego.
— Se voltares a aparecer assim, cumpro a ameaça de te espetar no
chão.
— O que o nosso irmão quer dizer — diz-me Kitt com um ar di­vertido
— é «Olá, Jax, como estás?».
O rapaz à minha frente tem apenas quinze anos e está a crescer como
uma erva daninha. É desajeitado, claramente ainda a tentar perceber como
trabalhar os seus longos membros. Francamente, não sei quando é que
começou este crescimento rápido, mas não gosto. O pequeno rapaz que
perdeu os pais num naufrágio é agora o jovem alto que adotámos como o
irmão mais novo que nunca pe­dimos. Mas depois de todos estes anos, o Jax
não cresceu apenas em altura — cresceu no nosso coração.
— Estou bem, Kitt. Que simpático da tua parte perguntar! — Aquele
sorriso torto apenas cresce quando olha para mim, com os olhos castanhos a
pestanejando inocentemente. Coloco-lhe um braço à volta do pescoço e
puxo-o contra o meu peito esfregando uma mão cerrada no seu cabelo
curto.
Ele gagueja, tentando afastar-se de mim enquanto lhe pergunto:
— Não me vais perguntar como estou, J?
Quando finalmente o solto, vira-se para mim, esfregando a ca­beça com
um sorriso:
— Erro meu. Como é que estás hoje, Kai? — diz tudo isto com uma
sinceridade fingida, e eu não consigo deixar de sorrir.
Kitt corta-me a palavra antes que eu o possa provocar ainda mais.
— Está de mau humor — suspira antes de baixar a voz até a um
murmúrio. — Cuidado, Jax, ele andou a brincar com as facas outra vez.
Passo por eles para pegar nas ditas facas de arremesso, já que preciso
de fazer alguma coisa com as mãos.
— Não estou — rodopio e atiro uma lâmina a um alvo — de mau
humor.
Jax encosta-se ao ombro de Kitt, sussurrando.
— É o que ele diz sempre quando está de mau humor.
— Bem visto, J.
— Pestes — murmuro. — Vocês os dois juntos são insuportáveis.
Continuam a falar enquanto eu continuo a atirar facas ao alvo.
É melhor do que atirá-las a uma pessoa, por isso, claramente, não estou
de mau humor. Estou prestes a deixar outra lâmina cair quando um raio de
cor chama a minha atenção.
Nem sequer tinha reparado que a Blair estava a treinar na outra ponta
do pátio, mas lá está ela, com o cabelo lilás ao vento enquanto luta com
Sadie. Bem, uma dúzia de Sadies, visto que ela é uma Clone.
Fazem círculos entre si antes de Blair ser subitamente rodeada por uma
barricada de corpos, todos altos e de cabelo castanho. É o caos. Blair ataca
uma cópia de Sadie com a mente, apenas para que outra lhe salte para as
costas, tentando atirá-la ao chão. É quase cómico ver isto, exceto sabendo
como eu sei, em primeira mão, como os seus poderes podem ser mortais,
sei como é possuí-los.
Observo Jax e Kitt, de olhos postos no combate, e coloco-me ao lado
deles. Em pouco tempo, Blair está a pavonear-se entre os ringues, com
Sadie atrás. A pele pálida de Blair contrasta por completo com a tez escura
de Sadie, opostos uma da outra em todos os sentidos.
Apesar de as duas terem crescido juntas, não podiam ser mais
diferentes. Como o pai de Sadie é conselheiro do Rei, a sua famí­lia vive
com os outros nobres que são considerados suficientemente importantes
para residir nessa ala designada do castelo.
Estancam à nossa frente, Blair inclina a cabeça e cumprimenta:
— Rapazes.
Kitt passa um braço à volta dos ombros de Jax antes de acenar com a
cabeça a cada uma das raparigas.
— Blair. Sadie.
Sadie oferece-nos um pequeno sorriso, genuíno, mas reservado, como
sempre foi.
— Queria dar-vos os parabéns por terem conseguido entrar nas Provas.
Pois é. Eles hoje anunciaram os concorrentes.
Não é surpresa ter entrado nas Provas. O reino e eu estamos cien­tes do
meu destino desde que eu era um miúdo. O futuro Executor tem de provar o
seu valor, e as Provas obrigam-me a fazer isso mesmo. A minha próxima
missão é ganhar a competição, e se não o fizer...
Eu congelo, a assimilar finalmente as palavras de Sadie.
Queria dar-vos os parabéns...
Lanço um olhar confuso a Kitt, certo de que se trata de algum tipo de
engano. As Provas sempre foram o meu destino, não o dele. O futuro rei
raramente saía das muralhas do castelo, quanto mais para uma arena
sangrenta onde a Morte o poderia reclamar. O Pai nunca arriscaria a vida do
seu herdeiro dessa forma, mas não tem problemas em arriscar-me a mim e à
minha reputação.
— Sim, pelo menos dois dos irmãos vão ficar juntos — afirma Blair
com um sorriso, os seus olhos a olharem de mim para... Não. Ele não.
— O quê?
A voz dela está cheia de admiração, os olhos castanhos arrega­lados de
espanto.
Jax.
Ele olha para mim e para Kitt, com um sorriso estampado no rosto.
— Consegui! Estou nas Provas!
Está praticamente a saltar de excitação, resistindo à vontade de usar a
sua habilidade de Saltador à volta dos ringues. Encontro o olhar de Kitt e o
seu esgar coincide com o meu.
Isto vai tornar as Provas muito mais difíceis. Agora, não só tenho de
me proteger a mim, como também a um irmão mais novo que quase
desmaia ao ver sangue.
Mas não dizemos nada para o desencorajar e substituímos as ex­‐
pressões mais pesadas por sorrisos forçados. Competir nas Provas é uma
grande honra, concedida apenas a alguns, e Jax merece celebrar, apesar do
nosso súbito nervosismo.
— Bem, parece que agora somos todos rivais — declara Blair com um
sorriso, deixando que as suas palavras se entranhem. Não é uma forma
muito astuta de nos informar que tanto ela como Sadie também vão
competir.
Ficamos todos a olhar uns para os outros, Sadie em silêncio e Blair a
sorrir. Kitt aclara a voz, interrompendo a conversa.
— Sabes quem mais estará na competição?
Sadie acena com a cabeça, tirando um folheto amassado de um dos
bolsos. Kitt dá uma espreitadela pelos nomes antes de suspirar.
— Sim. Só existem três nomes que eu não reconheço. Devem ser
Defensores ou Mundanos da cidade.
Passa-me o papel e eu olho rapidamente para a lista.
Os meus olhos fixam-se num determinado arranjo de letras antes da
minha respiração ficar presa na garganta.
Ali, no fundo da lista, está um nome em que já pensei muito mais do
que gostaria de admitir.
É ela.
Poderia ter ficado ali durante horas, a olhar para o cartaz com o meu
nome em letras gigantes, se não fosse o aglomerado de pessoas a
observarem-me.
Eles escolheram-me.
Ou, por outras palavras, escolheram-me para morrer.
E tudo porque salvei aquele príncipe idiota.
Um toque no meu ombro retira-me do torpor.
Fico tensa perante o súbito cheiro a amido e suspiro antes de me virar
lentamente para o Imperial. É jovem. O meu olhar percorre o seu cabelo
ruivo despenteado e os seus olhos castanhos fixam-se nos meus,
completamente indiferentes ao óbvio desdém que tenho pela sua espécie.
Ele oferece-me um sorriso pequeno e tímido.
Inquietante.
Em todos os meus anos de vida, nunca conheci um Imperial gentil, e
duvido que ele seja a exceção.
— Tu és Paedyn Gray, correto? — Faz um gesto para a placa.
— Quem é que quer saber? — indago.
— Bom — ele esfrega a nuca —, o Rei? Estou aqui para te escoltar até
ao palácio, onde ficarás até ao fim das Provas.
As palavras não ditas pairam no ar entre nós. Ou até que morras.
— Agora? Agora mesmo? — Detesto o som agudo e ofegante da
minha voz, mas não consigo parar o pânico que me sobe à gar­ganta. — Mas
as Provas só começam daqui a duas semanas.
Quase parece ficar com pena, e eu detesto isso.
— Os concorrentes vão sempre para o palácio com duas semanas de
antecedência para treinos, entrevistas e, claro, o primeiro baile.
Como é que me poderia esquecer de como as Provas são vistosas?
Ele parece inquieto, o cabelo ruivo ondula como chamas en­quanto
parece procurar algo em volta. Depois inclina-se um pouco, as suas
próximas palavras são um murmúrio:
— Só te posso dar cerca de... mais ou menos cinco minutos antes de
partirmos.
Não hesito antes de descer a rua o mais depressa que consigo.
Adena.
Paro em frente ao nosso pequeno beco e engulo em seco quando a vejo
escondida atrás da Fortaleza, a cantarolar enquanto costura. Absorvo tudo
enquanto me dirijo até ela. Cada pedaço de lixo que apanhámos juntas para
nos manter quentes à noite. Cada pedaço de roupa empilhado ao seu lado
enquanto ela trabalha. Cada pedaço de cabelo encaracolado que escapa do
carrapito desarrumado na sua nuca. As sobrancelhas escuras franzidas sobre
a concentração dos olhos cor de avelã.
Será que a voltarei a ver?
Tento afastar o pensamento da minha cabeça enquanto me afundo no
chão e a puxo para um abraço esmagador. Ela suspira de surpresa antes de
largar rapidamente o trabalho e apertar-me com força.
— Também estou feliz por te ver. — Ri-se no meu cabelo e afasta-se,
preocupada com a minha súbita demonstração de afeto. — Tu estás... estás
bem?
Encontro os seus olhos, memorizando as manchas de ouro que os
cobrem.
— Vou-me embora, A.
— O quê? — A expressão no seu rosto é igualmente assustada e
cética.
— Estão a mandar-me para as Provas. As pessoas querem-me lá, pelos
vistos. — Estou a divagar. — Para fins de entretenimento, claro.
Ofereço-lhe um sorriso débil, mas nada pode impedir que a ex­pressão
de horror se espalhe pelo seu rosto.
Leva uma mão suave e castanha à boca enquanto respira.
— Oh, Pae... — Ela fica sem saber o que dizer, o que fazer. — Mas
tu... Tu não tens nenhuma habilidade...
— Vai correr tudo bem — afirmo, tentando convencê-la e a mim
própria. — Eu vou ficar...
— Não te atrevas a dizer que vais ficar bem — reclama, enquanto
deixa que a raiva engula o medo por breves instantes. — Pae, as Pro­vas já
são suficientemente mortais, mas se eles descobrem o que tu não és, eles
vão...
— Matar-me — concluo por ela. — Eu sei.
O medo volta a inundar os olhos de Adena, atingindo-a com tanta
força que receio que ela se possa desfazer. Um sorriso triste e pequeno
ergue-se nos meus lábios enquanto a acolho. Estou a dei­xar a única pessoa
que me conhece, a única pessoa em quem posso confiar de verdade. Ela tem
sido uma constante na minha vida, uma âncora sem a qual vou andar à
deriva.
Mas isto é o melhor. É mais seguro para ela que eu me afaste.
— Eu consigo fazer isto — digo-lhe baixinho. — Eu fui feita para isto.
Adena acena com a cabeça, sem saber o que dizer. Sabe como o meu
pai começou a treinar-me quando se tornou evidente para ele que a sua
menina era uma Vulgar condenada à morte.
Sabe como, aos cinco anos de idade, a minha vida mudou antes mesmo
de ter começado. O meu pai sentou-me ao seu colo, sussur­rou-me que eu
era diferente, que tinha de fingir ser algo que não era se quisesse crescer
com ele ao meu lado. Era o nosso próprio jogo, dizia ele. Um jogo de faz-
de-conta. Um jogo em que ele já tinha escolhido o papel perfeito para eu
desempenhar para o resto da minha vida.
«O que é um Psíquica, papá?», essa pergunta ainda está tão viva em
mim, embora a tenha colocado há mais de treze anos.
O meu pai riu-se com brandura, um som aparentemente simples que eu
gostava de ter memorizado.
— Uma Psíquica, Paedy, é uma palavra chique para alguém que é
observador. Um poder que pode ser fingido com anos de prática. É algo que
não precisa de ser um dom, mas uma habilidade que podes aprender. — E
batendo com o dedo na ponta do meu nariz acrescen­tou: — E eu vou
ensinar-te. Assim, podemos estar sempre juntos.
Se ao menos a morte tivesse alguma consideração pelas promessas.
De repente, sou puxada para outro abraço sufocante.
— Vem para casa, Pae. Por favor? — A voz de Adena é abafada pelo
meu cabelo. — Tu és tudo o que me resta, sabes disso.
Gostava mais do que tudo que essas palavras não fossem tão as­‐
sustadoramente verdadeiras.
Quando a mãe de Adena adoeceu, foi provavelmente o meu pai que
tentou tratá-la. Os Curandeiros não são comuns nos bairros de lata, e as
pessoas precisavam dele tanto quanto o amavam. Mas até os Elites têm os
seus limites, enquanto parece que a Morte não os conhece. E Adena nunca
conheceu o seu pai. Ele até poderia ter sido o comerciante desconhecido de
olhos cor de avelã que eu roubei esta manhã.
Uma gargalhada de dor passa-me pelos lábios.
— E tu és tudo o que me resta, A.
— Ótimo. — Ela funga e afasta-se para olhar para mim. — Então é
melhor encontrares uma forma para voltares. Se há alguém daqui que
consegue sair dessas malditas Provas, és tu.
O olhar que me lança é determinado.
— Na pior das hipóteses, perdes e voltas para casa. Na melhor das
hipóteses, ganhas o raio da coisa.
Solto uma gargalhada perante esta ideia absurda.
— Vou dar o meu melhor por ti, A. — Depois de engolir em seco,
acrescento: — Venho visitar-te. Prometo. Prometo-te. Vou arranjar uma
maneira. Se for preciso, venho a pé.
Sorri e dá-me um último abraço antes de me acenar enquanto me dirijo
para o beco. Pondo-se de pé atrás da Fortaleza, grita:
— Isto não é uma despedida, é apenas uma boa maneira de dizer
adeus, até à próxima! — É a mesma frase foleira que ela repete há anos e,
no entanto, esta é a primeira vez que soa como um adeus.
— És a minha favorita, A! — respondo-lhe, com a voz a quebrar-se
sem que lhe tenha dado permissão.
— E tu és a minha, Pae!
Sorrindo, afasto por fim os olhos dela e começo a descer Loot com
toda a pressa, pensando em fugir do Imperial, das Provas, de tudo. Mas o
pensamento imprudente desaparece tão rapidamente quanto os meus pés
batem contra a calçada. Serei perseguida e morta se fugir. Pelo menos, se
for para as Provas, tenho uma hipó­tese de sobreviver. Mais ou menos.
Ofegante, volto para junto do Imperial, que tem agora ao seu lado uma
rapariga pequena que me observa timidamente.
— Estão prontas para ir? — pergunta, olhando para nós as duas. Faço-
lhe a vontade e aceno com a cabeça, apesar de não ter escolha.
Descemos Loot em silêncio, passando por multidões de pessoas à
medida que caminhamos, todas batendo palmas e gritando pa­rabéns.
Quando nos aproximamos do fim da longa rua, vejo uma carruagem escura
à espera, com um Imperial sentado no banco do condutor, com o seu
uniforme branco quase ofuscado pelo sol.
O nosso Imperial ruivo abre-nos a porta antes de também se juntar ao
guarda no banco. A rapariga entra e eu sigo-a, espreitando pela porta para
dar uma última vista de olhos a Loot Alley antes de me trancarem,
separando-me da minha vida anterior.
Esperam-nos cadeiras pretas almofadadas e eu estou quase de­masiado
ocupada a admirar a coisa mais bonita que já vi para re­parar no rapaz
sentado à nossa frente. O seu cabelo castanho bem penteado, mesmo por
cima de uns olhos verde-escuros que, neste momento, estão fixos em mim.
Pelo estado das suas roupas, posso dizer que vem de uma zona mais
agradável dos bairros de lata e que provavelmente pertence ao nível de
Defensor dos Elites.
A carruagem dá um salto e eu agarro-me à parede. Não sou de todo
apreciadora de espaços pequenos, muito menos de sítios pe­quenos que se
movem. Abrando a minha respiração, forçando-me a acalmar antes de olhar
para o rapaz aborrecido.
— Olá — digo, tentando aliviar a tensão. — Chamo-me Pae...
— Eu sei quem tu és — interrompe-me, decidindo imediatamente que
olhar pela janela é muito mais interessante do que a nossa con­versa. — Tu
és a rapariga que salvou o Príncipe Kai.
O seu tom sugere que, de facto, não foi exatamente isso que aconteceu.
Como se dezenas de pessoas não tivessem assistido.
Abro a boca, deixando que as palavras saiam antes que possa pensar
melhor.
— Correto. E, claramente, tu não tens reputação, ou eu já teria ouvido
falar de ti.
Os seus olhos prendem-se nos meus, as narinas dilatadas.
— Chamo-me Ace. Ace Elway. — Di-lo com orgulho, endirei­tando o
colarinho da camisa enquanto prossegue: — Sou um Ilusio­nista. Raro. É
por isso que aqui estou.
O seu sorriso é tão frio como os seus olhos.
— E vou precisar daqueles vinte mil xelins para finalmente sair destes
bairros de lata, por isso tenho a certeza de que em breve vou ganhar uma
grande reputação.
Nunca encontrei um Ilusionista, mas já ouvi falar o suficiente sobre
eles para saber que ele é perigoso, mesmo como Defensor.
— E quem és tu? — pergunta à rapariga sentada ao meu lado. — O
que é que podes fazer? — Ela observa-nos, como se quisesse desaparecer. E
eu quase me rio quando ela o faz.
Está lá num segundo e desaparece no seguinte. Fico a olhar para o
lugar vazio ao meu lado antes de ver a sua forma a reaparecer,
materializando-se numa questão de momentos.
Véu.
— Chamo-me Hera — diz timidamente. Os seus olhos castanhos e
profundos cruzam-se com os meus, enquanto ela põe uma melena de cabelo
preto e sedoso atrás da orelha. Há qualquer coisa na ação que me parece
vagamente familiar, fazendo-me pensar se ela é uma dos populares Véus
que fazem magia de rua.
— Chamo-me Paedyn — digo por cima do barulho da carruagem a
rolar sobre as pedras irregulares.
— Qual é o teu poder? — pergunta, curiosa.
— Psíquica — encolho os ombros casualmente. — Sinto sobretudo
emoções fortes que me dão algumas informações. Não é muito, mas é tudo
o que tenho.
Mentirosa. Tu não tens nada.
— A sério? — Os seus olhos arregalam-se, provavelmente choca­dos
com o facto de alguém com uma habilidade Mundana tão fraca conseguir
chegar às Provas, quanto mais derrotar um Silenciador.
— É uma habilidade mental incontrolável, e a única razão pela qual o
Silenciador não conseguiu entrar na minha cabeça quando salvei o Príncipe
Kai. — Atiro-lhe um olhar incisivo. — Acho que é por isso que as pessoas
me querem nestas Provas.
O Asno Ace suspira.
— Eles só te querem nas Provas da Purga para te verem morrer,
Mundana.
Fico a olhar para ele e, após um longo momento, um pequeno sorriso
tinge-me os lábios.
— Oh, sem dúvida. Mas, pelo menos, vão estar sempre a observar-me.
O silêncio é o único som durante o resto da viagem, e a janela ao meu
lado a minha única distração.
Passamos por dezenas de ruas cheias de estranhos sorridentes, todos a
acenar e a olhar. Alguns aplaudem e correm ao lado da car­ruagem quando
passamos, tentando ver-nos de relance antes de se­guirmos rumo ao nosso
destino.
À medida que nos aproximamos do palácio, as casas tornam-se
maiores, mais finas, e as ruas já não estão repletas de sem-abrigos a
vaguear. Avisto as pontas das imponentes torres antes de ver todo o palácio
majestoso por baixo delas. É enorme. Mesmo com a sua pedra cinzenta e o
seu exterior frio, é de cortar a respiração. Colinas relvadas e jardins
vibrantes cheios de flores de cores vivas que eu nem sabia existirem,
rodeiam as muralhas do castelo, suavizando a estrutura intimidante.
Ouço o bater de cascos contra a pedra lisa enquanto nos dirigimos para
um pátio, adornado por uma grande fonte no centro e estátuas brancas
espalhadas em todo o perímetro. Quando a carruagem final­mente para,
espreito pela janela e atento à grande escadaria de pedra que conduz ao
palácio, rodeada de camas de flores.
Os Imperiais saltam do lugar almofadado e abrem as portas da
carruagem, permitindo que a luz quente do sol entre no nosso pe­queno
compartimento. Quase que caio da carruagem tal é minha pressa em escapar
à carruagem apertada e à companhia. Assim que os meus pés voltam a pisar
terra firme e são engolidos pelo ar livre, respiro fundo, inalando o doce
aroma das flores e do sol.
Os outros dois tropeçam e colocam-se ao meu lado, ambos com os
olhos arregalados e a absorver tudo. Uma voz afasta-nos do nosso espanto;
é o Imperial ruivo que ordena:
— Sigam-me.
Subimos os degraus de pedra atrás dele, passando por dezenas de
Imperiais que ladeiam a escadaria. Quando chegamos ao topo, surgem mais
dois guardas e juntam-se ao ruivo que nos conduz antes de atravessarmos as
portas gigantes.
Se o exterior era bonito, não é nada comparado com isto. Todas as
paredes estão decoradas com pinturas brilhantes e molduras tra­balhadas que
sobem pelas paredes e se agarram ao teto. Tudo é de um branco
deslumbrante, com um toque ocasional de esmeralda que pontilha os
corredores que percorremos, mostrando a cor do reino de Ilya.
Estou demasiado hipnotizada pelo tamanho e beleza deste lugar para
me aperceber que o ruivo está a dirigir-se para nós os três.
— ... os quartos são por aqui, na ala leste do palácio.
Faz um gesto para os muitos corredores que, presumo, estão cheios de
quartos igualmente ornamentados.
De repente, dá meia-volta e fala-nos de novo, obrigando-me a parar
para não embater no seu peito.
— As próximas duas semanas consistirão em treinos, conhecer os
outros concorrentes, entrevistas e o primeiro baile. E todas as semanas,
entre cada prova, seguirão a mesma rotina. Será atribuído um Imperial a
cada um, que vos acompanhará para todo o lado du­rante a vossa estadia,
que irá estar próximo até que se familiarizem com o castelo.
Um dos Imperiais que se encontrava atrás de nós move-se para junto
de Hera, enquanto o outro toma o seu lugar ao lado de Ace.
— Bom — o jovem Imperial bate as mãos à sua frente com um sus­piro
—, vamos mostrar-vos os vossos quartos e deixar que se instalem.
Mal Hera e Ace dobraram a esquina ao fundo do corredor, virei-me
para o meu Imperial pessoal:
— Então, vais ficar de olho em mim? Que sorte a minha.
Ele ri-se e vira-se, fazendo-me sinal para que o siga.
— Já agora, chamo-me Lenny.
— Nunca pensei dizer isto a um Imperial, mas é um prazer co­nhecer-
te, Lenny.
Fechando a boca antes que saia qualquer coisa que não devia, acelero o
passo e tento acompanhar-lhe os passos largos.
— Sim, bom, não te censuro. A maioria dos Imperiais podem ser... —
Esfrega a nuca, à procura da palavra certa.
— Porcos? — murmuro antes de pensar melhor.
Corta o riso limpando a voz.
— Sim, aqui sou obrigado a falar muito. Acho que não sou tão
intimidante.
Olho-o rapidamente de cima a baixo, concordando. O seu ca­belo ruivo
despenteado, combinado com a explosão de sardas que se espalham por
baixo da sua máscara, diminuem qualquer espe­rança de parecer ameaçador.
Detém-se em frente a uma porta no fim de um longo corredor, abre-a e faz
um gesto para eu entrar.
Disfarço para não começar a ofegar ao ver o quarto mais bonito que
alguma vez vi, cheio de estantes, um toucador delicado, uma secretária e...
Uma cama.
Uma cama enorme. Depois de ter dormido cinco anos em cima de
pedras irregulares, a ideia de dormir numa cama daquelas é avassaladora.
Pestanejo de espanto quando finalmente passo a om­breira. A alcatifa é
macia sob os meus pés e vejo uma casa de banho por detrás de uma porta à
esquerda. Dirijo-me para ela, lutando contra o meu sorriso quando vejo uma
banheira de porcelana ima­culada, assente sobre pés dourados.
Água quente e corrente.
Uma sanita e um lavatório igualmente brilhantes de mármore branco
completam o conjunto. Saio lentamente da casa de banho, ainda a
contemplar o quarto à minha frente. De soslaio, consigo ver Lenny a
observar-me, divertido com o meu espanto.
— Espero que o teu quarto seja... satisfatório?
— Oh, vai ter de servir, suponho — deito-me na cama enquanto o
digo, sarcástica.
— Bem, vou deixar-te à vontade, visto que vais passar muito tempo
aqui — afirma, virando-se para sair.
— O que queres dizer com isso?
Esfrega a mão na nuca com um suspiro.
— Em breve descobrirás.

Lenny fez bem em dizer-me para ficar à vontade. Estou presa neste
quarto há dois dias.
Tornou-se a minha gaiola dourada pessoal, fechando-me com luxos.
Os guardas estacionados à minha porta não me consideram importante o
suficiente e resmungam apenas umas poucas palavras sobre o cumprimento
de ordens, mantendo-me confinada no meu quarto. Por isso, percorri cada
centímetro do espaço, ocupando-me a folhear livros, a tomar banhos
quentes, a devorar refeições deliciosas.
E, no entanto, nunca me senti tão ansiosa.
A parte interna da minha bochecha está dorida, resultado de uma
mordidela incessante numa tentativa de acalmar os nervos. E, apesar de ter
dormido numa cama macia pela primeira vez em anos, estou inquieta. Não
falei com ninguém desde o meu primeiro dia aqui, nem sequer me disseram
o que raio se está a passar. Deixa­ram-me andar pelo chão almofadado,
preocupando-me com quem são os meus adversários e com o que me
podem fazer.
Jogos mentais, é disso que se trata.
O Rei deve achar isto cómico. Adora a ideia de nos ver ansio­sos,
inquietos e presos nos nossos quartos até que diga o contrário. O objetivo é
deixar-nos nervosos, apreensivos.
Uma batida na porta faz-me estacar.
A cabeça de Lenny espreita, com um sorriso de escárnio no rosto.
— Então... como estás, Paedyn?
Pestanejo.
— Como é que eu estou? Como é que eu estou?
Ele arrasta-se mais para dentro da habitação e as suas próximas
palavras são lentas.
— OK, tenho a impressão de que tu não estás... ótima.
O meu riso é amargo.
— Podes crer. Já passaram dois dias. Onde raio é que te meteste?
— O Rei gosta de manter os concorrentes completamente isola­dos
durante os primeiros dias — declara com firmeza. — Mas, boas notícias,
vais jantar esta noite com os outros concorrentes, junta­mente com o Rei e a
Rainha.
Engulo em seco. Após quarenta e oito horas de inquietação, vou de
repente conhecer os concorrentes que me atormentaram os pen­samentos e o
Rei que me atormentou os pesadelos.
— Volto daqui a pouco para te acompanhar — acrescenta Lenny,
virando-se para a porta. — Se precisares de alguma coisa, é só gri­tares. Não
vou estar longe. Oh... — ele olha para mim por cima do ombro: — e talvez
queiras mudar de roupa antes do jantar.
Quando abandona o quarto, entro na casa de banho e mexo nas várias
torneiras da banheira até começar a sair água quente e fumegante. Em
poucos minutos, estou nua e mergulhada na água que agora faz espuma,
graças à quantidade desnecessária de sabonetes e sais que deitei lá para
dentro. Esfrego vigorosamente o cabelo e o corpo, deixando a minha pele
vermelha e fresca.
Há anos que não me sentia tão limpa.
A minha mente vagueia pelas muitas preocupações, a água quente
pouco fazendo para me acalmar. As Provas consomem os meus pen­‐
samentos, lembrando-me do poder que me falta e da pouca proteção que
possuo. Já para não falar que, se as Provas não me matarem, ser descoberta
como uma Vulgar será razão suficiente para o fazerem.
Permaneço na água borbulhante até ficar fria como os banhos a que
estou habituada. Quando finalmente consigo reunir forças para me obrigar a
sair da banheira, estou a tremer enquanto visto um rou­pão de seda verde.
Volto para o quarto, abro as portas brancas do guarda-roupa gi­gante em
frente à cama espanto-me com a dezena de cores e padrões. Ali pendurada,
há roupa para todo o tipo de ocasiões, toda à minha disposição.
Adena morria se visse isto.
Olho fixamente para as roupas, depois para as minhas, esque­cidas no
chão. Não faço a mínima ideia do que é apropriado vestir para jantar destes
e prefiro não fazer figura de parva antes mesmo de as Provas começarem.
Recordando que Lenny disse para gritar caso precisasse de al­guma
coisa, tenciono fazer isso mesmo. Tenho a certeza de que o Imperial já
assistiu a diversas refeições e terá alguma ideia de qual o traje mais
apropriado.
Dirijo-me à porta e abro-a, enquanto procuro apertar melhor o cinto do
roupão. E de facto, grito.
— Lenny, que raio é que é suposto eu vestir?
E depois olho para cima.
Os meus olhos encontram-se com uns verdes brilhantes. Nunca tinha
visto o homem que se apresenta diante de mim, ter-me-ia lem­brado. O seu
cabelo louro sujo e despenteado parece ligeiramente húmido, como se
também tivesse acabado de sair do banho. Tem tra­ços simultaneamente
fortes e delicados, um nariz direito e uns lábios suaves. A sua mão está
levantada, ainda em posição de bater à porta.
Recupera mais depressa do que eu.
— Problemas com o guarda-roupa? — A sua boca transforma-se num
sorriso brincalhão, e algo nele parece tão familiar e, no entanto, não é de
todo.
— Claramente — respondo com um ligeiro sorriso. Os seus olhos
passam rapidamente por mim e só então me lembro de que estou a usar um
roupão. Aperto-o mais à minha volta, lutando contra o meu rubor.
Ele aclara a voz.
— Bem, não precisas de te preocupar. A tua criada, Ellie, virá em
breve para te ajudar a vestir e a preparar para o jantar.
Fala com um ar de autoridade, como se estivesse habituado a dar
ordens. Apesar das suas roupas simples — calças pretas finas e uma camisa
verde justa que exibe a sua figura magra — sei de imediato que este homem
não é um criado.
Um concorrente?
À ideia de ter uma empregada a servir-me, digo rapidamente.
— Não é necessário. Eu sei tomar conta de mim, obrigada.
Os olhos dele viajam do meu cabelo, ainda a pingar e emara­nhado,
para o roupão de seda que tenho fechado.
— Claramente — afirma, imitando a resposta que lhe dei há mo­‐
mentos, com aquele sorriso estranhamente familiar no rosto.
Penso na minha figura e quase me rio.
— Está bem, se calhar afinal é preciso uma criada.
Ele ri-se suavemente antes de gesticular para o quarto atrás de mim.
— Passei por cá para ver se está tudo adequado às tuas necessidades.
Dou por mim quase a rir mais uma vez.
— Se isto é adequado, não consigo sequer imaginar o que é consi­‐
derado requintado por aqui.
Os seus olhos procuram os meus.
— Então lembra-me de te mostrar os jardins um dia destes. — Ele
acena-me com a cabeça. — Estou ansioso por te ver ao jantar, Paedyn.
Sou surpreendida.
— Estranho — digo-lhe com calma. — Não me lembro de te ter dito o
meu nome.
— Oh, não precisavas de o fazer — aquele sorriso desalinhado pro­‐
vocam os meus lábios uma vez mais. — Faço questão de conhecer todas as
raparigas bonitas que salvam o meu irmão mais novo.
Pestes, ele...
— Já agora, chamo-me Kitt. — Lança-me um sorriso final antes de se
virar para o corredor, deixando-me em choque e pasmada.
Príncipe Kitt Como «futuro Rei de Ilya» Kitt.
Mas o que é que se passa comigo e com estes encontros com a
realeza?
Nunca tinha visto o futuro rei e, definitivamente, nunca pensei que o
encontraria vestida de roupão. É o herdeiro do trono, o pró­ximo governante,
pronto para seguir as pisadas do seu vil pai. Entre ele e o seu irmão...
O irmão.
É por isso que aquele sorriso me parecia tão familiar.
Vi uma variação disso na cara do outro príncipe, embora a de Kitt
fosse brilhante e infantil, enquanto a de Kai era mais arrogante e fria.
Vejo uma rapariga pequena, de cabelo escuro, entrar timida­mente no
meu quarto com um sorriso envergonhado nos lábios.
— Boa noite, menina. Serei a sua criada enquanto estiver aqui no
palácio e irei ajudá-la em tudo o que precisar. — A sua voz é suave e
delicada, mas as suas palavras ensaiadas são firmes.
— Por favor, chama-me Paedyn. — Ela olha para mim com cautela,
mas eu continuo: — Pestes, há uns dias estava a dormir num depósito de
lixo, por isso acredita em mim quando digo que não me deves chamar
menina.
Ela ri-se com isso, acenando lentamente com a cabeça em
concordância.
— ótimo — suspiro. — Agora que isso está resolvido, podes ajudar-
me a descobrir o que é suposto eu vestir esta noite?
Sorri envergonhada, parecendo aliviada.
— Acho que posso ajudar-te.
Passamos a meia hora seguinte a filtrar as roupas antes de nos
decidirmos por algo relativamente simples para os padrões do palá­cio,
embora continue a ser a coisa mais bonita que alguma vez vesti.
Com metade do guarda-roupa espalhado pelo chão, decidimo-nos por
um par de leggings pretas brilhantes combinadas com uma blusa verde-
escura e sedosa. É relativamente decotada, com mangas descaídas que
adivinho tocarão acidentalmente na comida. Enfio uma pequena adaga na
parte de trás das calças, e a lâmina contra a minha pele é fresca e
reconfortante.
Depois de atar as botas de cano alto, Ellie leva-me até ao touca­dor,
onde começa a brincar com o meu cabelo, tentando fazer com que a
esfregona húmida fique apresentável.
— Então, me... — Ela limpa a voz e tenta de novo. — Então, Paedyn
— sublinha o meu nome com um pequeno sorriso —, tens alguma ideia de
como vão ser as Provas?
— Nenhuma — ofereço-lhe um sorriso suplicante através do espe­lho.
— Esperava que me conseguisses dizer; aposto que ouves muita coisa pelo
palácio?
As suas palavras seguintes são pouco mais do que um murmúrio.
— Tudo o que sei é que este ano é suposto ser... diferente.
— Diferente? — Faço eco das suas palavras. — Em que sentido?
Ela encolhe os ombros, agarrando entre as mãos punhados do meu
cabelo.
— Não sei. De alguma forma, é diferente.
Tenho dificuldade em perceber como é que a Prova pode ser di­ferente,
visto que cada uma é tão sangrenta e brutal como a anterior. Mas a pouca
informação que tenho faz-me sentir ainda mais impreparada para o que está
para vir, e tento não pensar no mal-estar que me vai na alma.
Ellie desiste rapidamente do meu cabelo com um suspiro, deci­dindo
deixá-lo cair nas minhas costas. Em seguida, aplica-me pó de arroz no rosto
antes de espalhar um pouco de rímel nas pestanas.
— Pronto — diz ela, estudando-me. — Já não parece que dormiste no
lixo.
Eu resmungo:
— Pestes, olha quem está a sair da casca.
Ela começa a corar, mas uma batida na porta fá-la correr para atender.
Lenny olha para ela e sorri, o que só faz com que o seu rubor aumente.
— Estás pronta para ir, Paedyn? — Ele tira os olhos de Ellie e atenta-
me. Encontro-me com ele no corredor e começamos a nossa caminhada
pelos corredores intrincadamente decorados. Enquanto andamos em
ziguezague pelo labirinto que é o castelo, tento fazer o meu melhor para
decorar um mapa mental da sua disposição.
Uma esquerda, duas direitas, outra esquerda...
Rapidamente, estamos de volta ao grande corredor da entrada que se
estende até às portas ainda maiores pelas quais entramos pela primeira vez
há dois dias. Lenny leva-me até a outras portas que vão do chão ao teto, um
pouco mais adiante no largo corredor, enquanto murmura:
— A sala do trono. É aqui que farás as tuas refeições juntamente com
os outros concorrentes.
Antes que tenha oportunidade de fazer perguntas, acena com a cabeça
aos guardas que estão por perto, ordenando-lhes silenciosa­mente que abram
a porta.
E, no início, ninguém parece reparar em mim.
Estão todos sentados à volta de uma longa mesa de madeira no meio
do espaço, que destoa da beleza delicada da sala do trono. Quanto aos Elites
que a rodeiam, falam de forma tranquila uns com os outros, visto que
muitos deles provavelmente cresceram juntos.
Respiro fundo e começo a caminhar lentamente em direção à mesa.
Oito pares de olhos viram-se na minha direção, observando-me de alto a
baixo enquanto me dirijo a eles.
Tinha que ser a última a aparecer.
Puxo uma cadeira ao fundo da mesa ao lado de Ace, relutante em
sentar-me ao seu lado, mas aliviada por estar sentada para que todos possam
parar de olhar.
Exceto que não o fazem.
Sinto a sua atenção e olho para cima, incapaz de impedir que as
palavras saiam da minha boca:
— Então, o que é o jantar?
Deixo escapar um suspiro de alívio quando a rapariga sentada do outro
lado de Ace suspira e inclina-se sobre a mesa, procurando-me. O seu cabelo
vermelho-vinho brilha à luz do sol do fim da tarde que entra pela janela,
competindo com o aro de prata brilhante que tem no nariz.
— Estou sempre a fazer a mesma pergunta! — Os seus olhos cor de
mel parecem brilhar com malícia. — Chamo-me Andy.
— Paedyn — digo-lhe, oferecendo-lhe um pequeno sorriso.
— Bem, se estamos numa de apresentações — uma voz grave vem do
outro lado da mesa —, eu sou o Braxton.
Olho para cima e vejo um rapaz enorme, de pele escura, a incli­nar a
cabeça na minha direção.
É um Forte.
Aceno-lhe com a cabeça quando uma voz masculina mais alta grita:
— Sou o Jax!
Procuro-o ao fundo da mesa, vendo o seu sorriso tímido. Os nomes
estão agora a ser gritados por toda a mesa. Para além de Hera e Ace, que
vieram dos bairros de lata, é óbvio que todos os outros se conhecem bem.
— Chamo-me Sadie.
Viro-me para a voz e vejo uma rapariga de pele quente a estudar-me. O
seu olhar é avaliador, curioso. A rapariga ao seu lado inclina o queixo para
cima e clareia a voz, captando a minha atenção.
— Blair. Prazer em conhecer-te, Paedyn.
Ela cospe as palavras como se lhe deixassem um gosto amargo na
boca, enquanto me observa como se eu fosse algo pegajoso na sola da bota.
Tenho a impressão imediata de que aquela rapariga não quer nada com os
Mundanos, muito menos com alguém que chama casa aos bairros de lata. O
seu cabelo lilás derrama-se sobre os ombros, contrastando com os olhos
castanhos que me fitam. Ela é deslumbrante, mas assustadoramente fria.
— O prazer é todo meu, Blair — respondo com frieza. O olhar fa­minto
com que me fita faz-me sentir como se eu fosse a sua próxima refeição.
E então uma voz profunda e irritantemente divertida vem da outra
ponta da mesa, mesmo à minha frente.
— E eu sou o Kai. Mas isso tu já sabias.
Ela está aqui.
Kitt estava a morrer de rir quando descobriu exatamente quem era
Paedyn Gray, no entanto, um girar de uma das minhas facas calou-o
depressa. Mas mesmo levantando as mãos em sinal de ren­dição, ele não
conseguia parar de falar sobre o quão engraçada era toda aquela situação.
E tem razão. É para rir. A rapariga Psíquica que, sem querer, salvou
um príncipe com o qual não se importava nada, é agora re­compensada pelo
feito com uma participação forçada nas Provas que a podem matar.
E agora está sentada mesmo à minha frente.
Depois de um banho para lavar o suor e sangue que acompanham um
longo dia de treino e tortura, dirigi-me à sala do trono. Pouco depois,
Braxton entrou, seguido por Jax, que ainda estava a saltar de excitação.
O resto do grupo habitual seguiu logo depois, junto com um rapaz e
uma rapariga que eu não reconheci — os dos bairros de lata. Os lugares à
volta da mesa encheram-se, deixando os dois da frente para o Rei e para a
Rainha, e um ao meu lado para Kitt.
Mas mal nos começámos a sentir confortáveis uns com os ou­tros e a
conversar sobre os mesmos temas repetitivos, algo acontece.
Ela acontece. Ela entra.
Sentando-se à minha frente, sem sequer olhar na minha dire­ção, diz:
— Então, o que é o jantar?
Fala com confiança, mesmo quando os seus dedos se inquietam,
fazendo girar o anel no polegar.
Interessante.
As apresentações são rapidamente trocadas entre Andy, Braxton, Jax,
Sadie, Blair, e os recém-chegados Ace e Hera. E, no en­tanto, ainda nem
sequer se deu ao trabalho de olhar para mim.
Isso não é possível.
— E eu sou o Kai. Mas isso tu já sabias.
Isso chama-lhe finalmente a atenção. O canto da minha boca contrai-se
com o fantasma de um sorriso quando os seus olhos se prendem nos meus.
Tem as pestanas escuras da maquilhagem, con­trastando com o azul
brilhante do olhar. Ondas suaves e prateadas caem-lhe sobre os ombros e no
rosto, e eu fico com uma súbita e irritante vontade de desviar os fios de
cabelo dos olhos, nem que seja para poder vê-los melhor.
— Sim, infelizmente, já o sabia. — Um sorriso suave contrasta to­‐
talmente com a nitidez do seu olhar.
A nossa visão desvia-se e dirige-se para as grandes portas que abrem
com um gemido, e a minha atenção fixa-se agora no Pai e na Mãe que
entram. Não, o Rei e a Rainha passam por elas, com um as­peto perfeito.
Eles brilham à luz do sol que flui das enormes janelas e que circunda a sala
do trono, a luz refletida nas suas coroas e joias en­quanto se dirigem para a
mesa. Estou habituado a esta formalidade, o Rei num fato fino enquanto a
rainha brilha num vestido elegante. O Pai tem um ar austero e severo,
enquanto a Mãe parece serena com o seu sorriso brilhante.
Kitt segue atrás deles, com um ar descontraído e, no entanto, com um
ar de futuro rei. Procura o meu olhar antes de se dirigir a Paedyn com um
sorriso conhecedor nos lábios. Senta-se ao meu lado enquanto o Rei puxa
uma das pesadas cadeiras de madeira para a sua Rainha.
— Bem-vindos à Sexta Edição das Provas da Purga — declara junto da
mesa.
A Mãe tira uma madeixa de cabelo preto dos olhos e completa: —
Parabéns a todos por terem conseguido chegar até aqui.
— É uma honra ser escolhido — diz o Pai. — Uma honra para o vosso
reino, para a vossa família e para vocês próprios.
Repete as palavras que me foram incutidas na cabeça desde antes de eu
as conseguir entender.
— Sugiro que gastem o vosso tempo de forma sábia para se prepa­‐
rarem para as Provas. Nunca se sabe o que pode acontecer. — Pousa um
olhar atento em mim, lembrando-me silenciosa e sem subtilezas, da minha
missão de vencer. — Aconselho-vos a usarem o tempo que vos resta antes
da primeira Prova, bem como cada semana entre as seguintes, para treinar.
E para ver os vossos adversários a treinar.
Quase consigo ouvir as palavras não ditas. Saber como a tua con­‐
corrência luta, aprender a ler os seus movimentos e manobras, pode ser a
diferença entre a vida e a morte.
— Para além de praticarem os vossos passos de dança! — diz a Mãe
calorosamente, pois sempre gostou muito mais dos bailes do que do
derramamento de sangue das Provas.
O Pai sorri para a mulher. É um gesto genuíno, algo reservado apenas a
ela.
— Chega de falar das Provas. Vamos comer.
E com isso, começa a procissão de criados, todos carregando bandejas
fumegantes para a mesa. Dezenas de pratos cheios de co­mida são postos à
nossa frente. O peru deliciosamente temperado com leguminosas estão a ser
colocados nos pratos. A própria Gail traz um tabuleiro com pães doces,
colocando-os à frente de Kitt e de mim para nos provocar. Pisco-lhe o olho
enquanto ela se afasta, revirando os olhos, antes de sair da sala.
Eu e o Kitt conversamos para passar o tempo, enquanto passa­mos os
tabuleiros de comida de um lado para o outro, afastando os criados quando
se oferecem para nos servir. Estou a meio de em­pilhar peru no meu prato
quando atento em Paedyn, sentada de uma forma tensa à minha frente. Tem
a boca bem fechada, como se estivesse a tentar ao máximo não a deixar
cair. Curioso, olho para Hera, que está com um olhar de espanto semelhante
no rosto. Até Ace, que parecia ser aquele mais parecido com os Elites do
palácio, não consegue deixar de examinar silenciosamente a quantidade de
comida colocada à nossa frente. Regresso a Paedyn, que está dema­siado
ocupada a pestanejar para se dar ao trabalho de comer. Só posso imaginar o
que lhe está a passar pela cabeça. Provavelmente em como está enojada
com a quantidade de comida que desperdi­çamos enquanto ela mal tinha o
suficiente para sobreviver. Vejo-lhe uma raiva mascarada a crescer no rosto;
algo me diz que ela prefere passar fome esta noite.
E isso não pode acontecer.
Lá porque estamos a competir um contra o outro, não quer dizer que
eu queira ganhar-lhe por defeito, porque ela morreu à fome. Por isso, espeto
um pedaço de peru no meu garfo, atravesso a mesa e coloco-o no prato
dela.
Os seus olhos saltam para os meus, o rosto num cruzamento entre
irritação e choque.
— Gostas de feijão? — pergunto-lhe casualmente e, como ela não
responde, coloco-os também no prato. — Bem, acho que vou descobrir.
Inclino-me sobre a mesa, acrescentando batatas à pilha crescente de
comida, enquanto murmuro:
— Também me vais obrigar a dar-te comida à boca, ou consegues
alimentar-te sozinha? — E dito isto, sorrio-lhe de uma forma que, sem
dúvida, a fará querer atirar os feijões, e um murro, à minha cara.
Os seus olhos ardem como chamas azuis, praticamente repreen­dendo-
me. Mas, tal como eu suspeitava, Paedyn pega no garfo com relutância e
enfia alguns feijões na boca, ainda de olhos postos em mim. Recosto-me na
minha cadeira, sorrindo. Ela sabe que eu iria, de facto, dar-lhe comida à
boca caso não comesse, e isso ela não poderia permitir.
Os minutos seguintes são preenchidos com sons de talheres a tilintar e
conversas dispersas. Blair vira-se para mim e para Kitt, a falar de sabe-se lá
o quê. Em geral, Kitt é um homem muito melhor do que eu, e sobretudo
quando se trata dela. Fala casualmente en­quanto eu presto atenção à comida
que tenho à frente.
A voz do Pai interrompe de súbito a conversa.
— Então — levanto o rosto e vejo que ele está a olhar para Paedyn,
intrigado —, esta é a rapariga que te salvou no beco?
Só depois de me ter roubado.
Consigo sentir os olhares perscrutadores que se focam em nós, todos a
ouvir a conversa. Paedyn larga calmamente o garfo e olha para o Rei com
tanta intensidade que, por breves instantes, me faz recordar de Blair. Há
uma certa emoção a toldar-lhe o rosto quando atenta ao Rei — uma emoção
que está a tentar esconder. Não me dá tempo para decifrá-la, pois num ápice
transforma as suas feições em neutralidade.
— Sim, salvei-lhe a vida. Não é verdade, Vossa Alteza? — Ela vira a
atenção para mim, o seu sorriso transformado num desafio.
— Afinal, conheces o meu título. — O sarcasmo cobre as minhas
palavras enquanto um sorriso brinca com os cantos dos meus lábios. —
Sabes, eu não tinha a certeza. Porque lá no beco estavas a chamar-me algo
muito, muito diferente.
O seu sorriso é irónico.
— Tenho a certeza de que o nome era justificado — uma pausa. — E
preciso. — Um sorriso. — E merecido.
Sacana convencido.
Os seus olhos, o seu sorriso, o seu tom — tudo nela grita as duas
palavras.
Grita o título que me concedeu.
— E qual é mesmo o teu título? A Salvadora Prateada? — solto uma
gargalhada tranquila. — É adequado. Sei o quanto aprecias prata.
O sorriso frio de Paedyn fraqueja quando percebe o significado das
minhas palavras. Ela está irritada. Eu estou a divertir-me.
Os sentimentos da Mãe refletem claramente os de Paedyn, porque não
hesita em lançar-me um olhar antes de dizer:
— Obrigada, Paedyn, por ajudar o Kai. Não passou despercebido por
nós, nem pelo povo, já que eles te escolheram para as Provas.
Paedyn inclina a cabeça e sorri-lhe suavemente, embora não cruze
olhares.
Ao som da voz do meu pai, o sorriso foge-lhe do rosto.
— Devo dizer-te que nunca tinha conhecido uma Psíquica. — O Rei
observa-a com curiosidade. — Os teus poderes são... intrigantes.
Paedyn relaxa e ri ligeiramente.
— Sim, bem, o meu pai disse que é um dom raro, mas pequeno, que
poucos Mundanos possuem. Suponho que a parte mais útil da minha
habilidade é que não sou afetada pelos Silenciadores, tal como o seu filho,
ao que parece. — Uma madeixa de cabelo prateado cai-lhe para o rosto e
ela coloca-a atrás da orelha, distraidamente, enquanto os restantes convivas
retomam as conversas anteriores, aparente­mente aborrecidos por ouvir esta.
— Ah, sim, o teu pai. Adam Gray era um grande Curandeiro. Um
homem muito culto — diz o Pai, pensativo.
Paedyn fica rígida no seu lugar, mas procura aclarar a voz:
— O Rei conhecia o meu pai?
— Sim, conhecia. Vinha ao palácio durante a época da febre para
ajudar os nossos médicos da corte quando havia demasiados doen­tes para
tratar.
Paedyn acena com a cabeça.
— Sim, lembro-me de ele fazer isso todos os invernos.
A conversa é interrompida quando os criados voltam a entrar na sala
para levantar a mesa. Cirandeiam pelo espaço, pegando nos pratos e nos
talheres antes de desaparecerem no corredor, deixando uma mesa imaculada
atrás de si.
O Pai e a Mãe levantam-se.
— Descansem um pouco, Elites. O vosso treino começa amanhã.
Com as últimas palavras do Rei, viram-se e saem pelas grandes portas.
Passa um momento de silêncio até que as cadeiras comecem a raspar
no chão de mármore e toda a gente a levantar-se. Três Impe­riais dirigem-se
para os novos Elites, prontos a escoltá-los de volta aos quartos.
Vejo um guarda jovem e ruivo aproximar-se de Paedyn com um
sorriso. E, de repente, estou a meter-me entre eles antes de me con­seguir
impedir.
— Eu tomo conta da situação.
Ele olha para mim, confuso.
— Senhor, tenho de a escoltar...
— Eu sei. E sou perfeitamente capaz de me certificar de que ela vai
para o quarto, não concordas?
— Sim, Vossa Majestade. — E com isso, faz uma ligeira vénia a
Paedyn e sai da sala.
Eu próprio a observo, o olhar de confusão no seu rosto espe­lhando o
do rapaz. Depois viro-me e saio pelas portas, sem esperar que ela me
apanhe. Ela suspira antes que o bater rápido das suas botas de salto alto
comece a ecoar atrás de mim.
— Porquê a súbita vontade de ser um cavalheiro? — pergunta, rís­pida
atrás de mim. Paro e viro-me, observando-a enquanto ela ca­minha na minha
direção, prendendo o meu olhar no dela por breves instantes.
— Não te habitues — digo-lhe com um sorriso rápido. — O meu
quarto fica em frente ao teu, por isso mais vale ser um cavalheiro uma vez
que seja. — Enfio as mãos nos bolsos e recomeçamos a andar, desta vez
com ela ao meu lado.
— E porque é que um príncipe ficaria na ala dos concorrentes do
palácio?
— Bem, caso não tenhas reparado, também sou um concorrente nas
Provas.
Ela solta uma gargalhada seca.
— Sim, reparei por acaso. Mas eu pensava que era suposto o príncipe
ter um grande quarto cheio de criados que o servissem de mão em mão... —
A sua pergunta é acusadora, as palavras cheias de veneno.
— Não te preocupes, também tenho um desses — respondo com
frieza, ouvindo-a a ridicularizar-me. Só tem razão em parte. Eu tenho um
grande quarto, mas recuso-me a deixar que os criados me sirvam. — Todos
os concorrentes devem ter as mesmas condições de vida antes e durante as
Provas. Assim, ninguém pode acusar nin­guém de ser favorecido ou de estar
em vantagem.
Paramos à porta do quarto que lhe foi atribuído, e ela encara-me.
Parece prestes a rir outra vez, mas quando fala, as suas palavras são
amargas:
— Só porque estamos todos em quartos semelhantes, não quer dizer
que os outros não tenham vantagem.
Fico em silêncio enquanto a examino por um momento. Se eu fosse
um Mundano atirado para as Provas, confrontado com algu­mas das
habilidades mais fortes que os Elites podem ter, duvido que me sentisse de
forma diferente. O seu poder não é algo que possa usar como arma, como
os restantes concorrentes. É obrigada a confiar na sua própria força e não na
força de uma habilidade.
De repente, lembro-me de como lutou contra o Silenciador, tão hábil e
tão segura de si. Talvez tenha mais hipóteses de sobreviver a estes jogos do
que aquilo que pensa.
Vejo o seu olhar passar por cima do meu ombro até à porta que estou a
bloquear. Abre a boca para dizer qualquer coisa, chamando a minha atenção
para a fenda cicatrizada no seu lábio inferior.
Num impulso que não consegui ignorar, os meus dedos agar­ram-lhe o
queixo e levanto-lhe o rosto em direção ao meu. Está de­masiado atordoada
para se mexer, e eu aproveito-me disso.
— Pensava que conseguias evitar um golpe direto como este. Pa­rece
que não és tão boa lutadora como eu pensava. — Encolho os ombros e
inclino-lhe a cabeça para a luz, examinando casualmente o corte feio no
lábio.
Porém, já não está ali parada, atónita, imóvel e silenciosa.
Num movimento rápido, agarra o meu pulso por baixo do queixo e
torce-o para fora com um puxão, fazendo-me subir uma dor aguda pelo
braço. Depois agarra na minha camisa e empurra-me contra a parede. A
mão que tem livre encontra a adaga presa à minha anca e tira-a para fora,
encostando a lâmina afiada à minha garganta.
— Gostarias de descobrir até que ponto sou uma lutadora habili­dosa?
— Paedyn mira-me com frieza, com o divertimento a dançar-lhe no olhar
perante a situação em que me encontro. Adora ver o príncipe encostado a
uma parede. E não se trata de um príncipe qualquer: o futuro Executor.
Encosto-me à pedra fria, rindo-me sombriamente enquanto meto as
mãos nos bolsos. Isso só a faz pressionar a lâmina com mais força contra a
minha garganta, ameaçando tirar-me sangue.
É uma coisinha malvada, não é?
— Cuidado, Alteza. Não gostaria de derramar sangue real. — Está a
gozar comigo e é uma tentativa adorável.
Inclino-me para ela, deixando o aço afiado da minha própria lâ­mina
morder-me a garganta, desenhando uma linha fina de sangue quente.
— Cuidado, querida. Esqueces-te que derramar sangue é o que eu faço
melhor.
Ficamos a olhar um para o outro.
Está a olhar para mim com uma expressão que não consigo ler, mas
recupera rapidamente, desviando a conversa com facilidade.
— Um dos teus Imperiais fez-me isto. — Tira a mão da minha camisa
e aponta para o lábio: — Alguma vez lhe perguntaste sobre mim? De
certeza que teria muito para contar.
É claro que já o havia feito, e ele tinha muito para contar. Depois de
falar com cada Imperial designado para a rotação da manhã, um deles
mencionou o seu mais recente encontro com a Psíquica. O des­dém do
homem por Paedyn era mais do que óbvio quando recapitu­lou o que ela
tinha sentido dele.
E, no entanto, não mencionou como lhe tinha batido.
Talvez lhe tire uma das mãos, para que nunca mais tenha a opor­‐
tunidade de tocar numa mulher.
— Falei com ele, sim — digo baixinho. — Mas parece que vamos ter
outra conversa num futuro próximo.
Os olhos de Paedyn percorrem-me o rosto, fazendo-me sentir anormal
e irritantemente ansioso. Aclaro a voz e olho para baixo, para a adaga que
ela ainda segura firmemente contra o meu pescoço.
— Pensei que tínhamos estabelecido que tu sabias quem eu sou,
correto? — O canto dos meus lábios torce-se para cima enquanto o digo,
lembrando-me do nosso encontro no beco. Quando a tinha encostada a uma
parede.
— E tínhamos — confirma-me, tão próxima que agora posso es­tudar
todos os diferentes tons de azul da sua íris. — Já o disse antes, e vou dizê-lo
de novo. Um sacana convencido?
Eu rio-me, afundando ainda mais a adaga na minha carne.
— Além disso, não importa quem tu és. — Baixa os olhos antes de se
fixar novamente em mim. — Agora estamos a competir uns con­tra os
outros. Não há favoritismo, lembras-te? Tu próprio o disseste.
Está bem. Eu alinho.
Tiro uma mão do bolso e passo-a pelas suas costas, lentamente,
mantendo o contacto visual. Ela atenta-me, confusa, embora segure a faca
com firmeza. Ambos sabemos que ela não me vai cortar a garganta, por isso
não me preocupo nem um bocadinho enquanto continuo a passar o braço
por trás dela até os meus dedos roçarem no cabo frio de uma adaga enfiada
na faixa das suas calças.
Eu sabia que estava lá, vi o sol a brilhar no cabo de prata quando
Paedyn se levantou da mesa de jantar, virando-me as costas.
Sorrindo-lhe, deslizo a adaga devagar, os meus dedos roçando ao de
leve na parte inferior das suas costas. Acho que ouço um leve sus­piro soltar-
se dos seus lábios quando lhe pressiono a própria faca na garganta,
espelhando o que ela está a fazer comigo.
— Tens razão. Agora estamos a competir um contra o outro. — Rio-
me suavemente.
Ficamos de olhos presos durante largos instantes. O seu olhar é
inabalável, fazendo-me lembrar o oceano calmo, a calma antes da
tempestade.
— Guarda as minhas palavras, Príncipe, eu serei a tua ruína.
Inclino-me, ignorando a faca contra a minha garganta enquanto
murmuro:
— Oh, querida, estou ansioso por isso.
Passa demasiado tempo. E depois...
Surpreendentemente, deixa cair aos poucos a faca da minha garganta.
Eu também baixo a minha — sua — adaga e coloco-lha na mão
expetante e estendida. Paedyn move-se, para abandonar-me a mim e a esta
conversa, mas eu agarro-lhe o pulso. Ela fica imóvel ao toque, os meus
olhos presos nos dela enquanto lhe guio a mão, e a faca que agarra, até ao
meu peito. A lâmina forrada com o meu pró­prio sangue encontra o tecido
da minha camisa, e os nós dos seus dedos tocam-me no peito enquanto lhe
limpo a adaga.
— Lá se vai a ideia de não derramar sangue real — suspiro.
Ela exala lentamente.
— Ia acontecer mais tarde ou mais cedo.
— Então, devo habituar-me a isto?
— Já devias estar à espera disto.
Eu sorrio.
— Então, fico ansioso pelo nosso próximo encontro.
Pisco-lhe um olho e ela revira os dela antes de voltarmos a guar­dar as
respetivas adagas. E depois passa pelo meu braço e dirige-se para à porta.
— É sempre um prazer — afirmo, encaminhando-me para o meu
quarto, do outro lado do corredor.
— Infelizmente, receio que não possa dizer o mesmo. — Vejo-lhe um
sorriso antes de entrar no quarto, fechando a porta atrás de si.
Mal me fecho começo a andar de um lado para o outro no quarto que,
por acaso, fica mesmo em frente ao dela. Levo os dedos ao pescoço,
sentindo o calor pegajoso do meu sangue.
Esta rapariga pode ser a minha morte. Literalmente.
O suor escorre-me pela testa e agarra-se às pestanas.
Estou tão fora de forma.
Após três longos dias de treino, o meu corpo está dorido e grita-me
para parar. Os meus anos de vida nas ruas apresentam as suas
consequências, deixando-me mais fraca do que eu pensava, apesar de correr
regularmente dos Imperiais e de escalar chaminés.
Baixo a cabeça e levo a bainha da minha camisola manchada de
sujidade ao rosto, soprando enquanto limpo as gotas de suor. Estou imunda.
E, infelizmente, é o mais normal que me sinto desde que cheguei ao
palácio.
Uma árvore alta e almofadada ergue-se diante de mim, com as marcas
dos meus punhos ainda visíveis nas almofadas ásperas que envolvem o
tronco. Já estou no pátio de treino há horas, juntamente com os outros
concorrentes, todos a fazer vários exercícios ou a lutar uns contra os outros.
O pátio não tem nada a ver com o ringue rude e lamacento onde cresci
a treinar. Viro-me e encosto-me à árvore almofadada, obser­vando a dúzia de
grandes ringues que pontilham o pátio relvado, onde a maior parte da minha
competição reside.
Cada um dos anéis é acompanhado por amplas estantes de ma­deira
cheias de armas e escudos, tudo novo à espera de ser usado. Nunca vi nada
assim. Tantas armas à minha disposição. Tantas armas a serem
desperdiçadas.
Percorro o campo de treinos com o olhar. Para onde quer que me vire,
os meus colegas concorrentes estão a exercitar-se, a alongar-se, a treinar e
estão tão sujos e encharcados de suor como eu. Todos eles parecem evitar
treinar com as suas habilidades por enquanto, provavelmente à espera de
exibir os seus poderes nas entrevistas.
Só de pensar, fico ansiosa a rodar o anel no meu polegar. Ama­nhã, por
esta altura, estaremos a exibir-nos ao reino de Ilya en­quanto tentamos
angariar o seu apoio. Do pouco que aprendi com o Ellie, as entrevistas
servem para o povo escolher quem quer apoiar nas Provas. É a altura
perfeita para os Elites exibirem a sua força, falarem de si próprios e
tentarem ganhar os votos do povo.
E é precisamente isso que tenho de fazer: conquistar as pessoas. As
pessoas desempenham um papel vital nestes jogos destorcidos, e quanto
mais votos um concorrente tiver, mais aumenta a sua pontuação.
Suspiro e inspiro o ar húmido, que cheira a relva fresca, sujidade e
mais do que uma pitada de suor. Estou aliviada por estar a trei­nar, por estar
a fazer algo com as minhas mãos e assim evitar que a minha mente divague
para pensamentos perigosamente prejudiciais.
Como as Provas e a possibilidade — a probabilidade — da minha
morte iminente.
Sou arrancada dos meus pensamentos quando atento a uma pele
bronzeada. Com o sol da tarde a fustigar-nos, os rapazes há muito que
abandonaram as suas camisolas suadas. E isso é uma distração... irritante,
para dizer o mínimo.
Kitt e Kai rodeiam-se um ao outro num ringue, sorrindo en­quanto
trocam palavras, parecendo estar a treinar verbalmente antes de passar à
parte física. Os irmãos parecem confortáveis, satisfeitos com este momento
em conjunto.
Embora o futuro rei não seja um concorrente nas Provas, isso não
parece impedi-lo de treinar e comer connosco como se de um nós se
tratasse. Mantive-me afastada tanto dos irmãos quanto dos meus outros
concorrentes, embora a tensão entre todos cresça a cada dia que passa.
O meu olhar vagueia de volta para os rapazes, traçando a tatua­gem
escura idêntica situada mesmo por cima dos seus corações. Mesmo a esta
distância, consigo distinguir o símbolo de força de Ilya gravado na pele.
O brasão em si é simples, consistindo em espirais grossas todas ligadas
num diamante lateral. Supostamente, representa os dife­rentes poderes e a
forma como todos trabalham em conjunto, ao mesmo tempo que representa
os quatro pontos de referência que rodeiam Ilya. Há o Monte Plummet a
norte, o Mar Shallows a oeste, o Deserto Scorches a leste e a Floresta
Whispers a sul — todos juntos criam um diamante à volta da cidade.
Pestanejo e afasto o olhar dos irmãos antes de me voltar para a ár­vore,
sentindo novamente a urgência de bater em alguma coisa. Rodo e dou um
pontapé sólido nas almofadas grossas, que ressoa com um estrondo
satisfatório. O suor escorre-me pelo corpo em gotas, mesmo depois de me
ter despido até ficar apenas com uma camisola fina, agora húmida e
agarrada ao corpo de forma desconfortável. As mi­nhas calças justas e pretas
estão quentes ao toque sob o sol, e enrolo-as até quase aos joelhos, tentada a
arrancá-las.
Dou golpes na árvore até os nós dos dedos ficarem vermelhos e em
carne viva, antes de encostar a minha testa suada à almofada, ofegando
ligeiramente. O tapete abafa o meu gemido antes de me obrigar a caminhar
até à prateleira de armas mais próxima.
Os meus dedos dançam ao longo das belas facas de arremesso que
estão inocentemente na prateleira. A suavidade e a nitidez destas facas dão-
me vontade de as atirar. Volto a minha atenção para um alvo a dez metros e
começo a enterrar fundo várias facas na madeira áspera. Entro num ritmo
cadenciado, deixando o meu corpo rela­xar com cada faca que deixo cair.
Sinto-me concentrada. Sinto-me atordoada.
Sentia falta disto.
Deixo a minha mente vaguear, observando como as facas atingem o
alvo. De repente, estou de novo no meu quintal, a atirar peque­nas lâminas
contra a casca rugosa de uma árvore. O meu pai anda a passos largos atrás
de mim, a fazer-me perguntas. Perguntas sobre o que me rodeia, sobre
coisas que devia observar em segundos, mesmo enquanto a minha mente se
concentra nas lâminas a afundarem-se no alvo.
Quase consigo ouvir os passos do meu pai na terra atrás de mim.
O ruído familiar de uma faca a cortar o ar faz-me baixar instin­‐
tivamente, sentindo o sussurro de uma lâmina passar por cima e vendo-a
afundar-se no alvo.
Um belíssimo lançamento.
Mas estou demasiado irritada para o admirar. Levanto-me e viro-me,
de olhos fixos nos cinzentos a alguns metros de distância.
É a imagem perfeita da inocência: as mãos já nos bolsos, o cabelo a
esvoaçar ao sabor da brisa e um sorriso preguiçoso nos lábios.
— Bons reflexos, Gray.
Aquele sacana conven...
— Mas que raio se passa contigo? — Vou em direção a Kai, dimi­‐
nuindo a distância entre nós numa questão de segundos. — E se eu não me
baixasse?
Ele encolhe os ombros. Encolhe os ombros.
— Então, teria menos concorrência com que me preocupar.
— Então, estás a admitir que eu sou uma ameaça para ti?
— Eu nunca disse isso.
— Mas insinuaste.
— Não te enganes a ti própria.
O meu peito incha enquanto mantenho o seu olhar. Uma única covinha
aparece quando me olha e o canto da sua boca inclina-se. E com isso, a
vontade de lhe bater só aumenta.
— Eu sabia que te baixarias, Gray — murmura, com os lábios a
tremerem com o uso do meu apelido. Um arrepio percorre-me a es­pinha,
apesar do sol quente nas costas, quando ele se inclina ainda mais para me
sussurrar algo ao ouvido.
Mas nunca descobri o que é que ele queria dizer.
Uma pontada de dor perfura-me o ouvido e eu sobressalto-me em
choque. Ouço o estrondo de uma faca a atingir o alvo atrás de nós e olho
por cima do ombro de Kai para ver Blair, de mão esten­dida. Um sorriso
torce-lhe os lábios vermelhos, mas os seus olhos escuros saltam entre mim e
Kai.
Levo uma mão à orelha, e os meus dedos ficam rapidamente co­bertos
de sangue. Ela atirou a faca para o alvo, mas não antes de me deixar com
uma marca.
Ela cortou-me. De propósito.
Um músculo franze-se no maxilar de Kai, a única indicação do seu
temperamento. Continua a pairar sobre mim, recusando-se a olhar para
Blair, enquanto me bloqueia com o seu corpo.
— Estamos territoriais, Blair? — pergunto-lhe, vendo-a através de Kai.
Claramente não gostou do facto de o príncipe estar a dar aten­ção a outra
pessoa, mesmo que essa atenção fosse ele a atirar uma faca à minha cabeça.
Talvez goste disso.
Ela ignora a minha pergunta, com uma voz presunçosa.
— Só pensei em marcar o meu alvo antes de começarem as Provas.
E depois afasta-se, deixando-me a olhar para ela. Engulo, sen­tindo-me
mais pequena e mais fraca do que alguma vez me senti. A exibição de Blair
foi um lembrete de como seria fácil para qual­quer um destes Elites acabar
com minha vida de Vulgar.
Ela marcou-me.
— Estás a ficar com sangue no cabelo, querida.
Olho para Kai, que continua a pairar sobre mim, agora a avaliar a
minha ferida. Levanto-me, com a intenção de pôr o cabelo atrás da minha
orelha ensanguentada, quando a mão me prende.
— Não faças isso — suspira, os seus calos a tocarem-me na pele en­‐
quanto puxa a minha mão e acena com a cabeça para os meus dedos
ensanguentados. — A não ser que queiras acrescentar mais sangue ao
cabelo?
Tento não encará-lo, mas isso só faz com que o seu sorriso aumente.
— Porque é que estás a...?
— Ser um cavalheiro? — conclui, suspirando como se ele próprio não
soubesse a resposta. — Digamos que sei como é difícil tirar o sangue do
cabelo, por isso não invejo a tua sorte.
Os seus olhos percorrem a minha ferida e o sangue que sinto a pingar.
Depois, larga-me o pulso e coloca-me a melena de cabelo para atrás da
orelha, murmurando:
— Olha o estás a fazer, Gray.
Pestanejo para ele, perguntando-me vagamente se uma ferida tão
superficial me terá feito perder sangue suficiente para ter alucina­ções.
Alguma coisa deve estar terrivelmente errada, porque o futuro Executor
acabou de me ajeitar o cabelo para não ficar mais ensan­guentada do que já
estou.
— Vira-te.
A ordem faz-me voltar à realidade.
Aqui está o futuro e adorável executor.
As sobrancelhas dele erguem-se com expetativa, à espera que eu
obedeça à ordem. Em vez disso, as palavras que saem da minha boca são:
— E porque é que eu faria isso?
A sua voz é seca.
— Porque eu te disse para o fazeres.
— E isso é suposto significar alguma coisa?
Estou a jogar um jogo muito, muito perigoso.
Ele esboça um sorriso.
— Pronto. — E depois, de repente, está a dar um passo atrás, mur­‐
murando: — Coisinha teimosa.
Dedos ásperos passeiam-me pela minha nuca.
A minha respiração fica presa quando Kai puxa casualmente o meu
cabelo para as suas mãos, penteando os fios para fora do meu rosto e para
longe da orelha ensanguentada.
— O que é que tu...? — Paro um pouco, sentindo o padrão que ele está
a tecer gentilmente. — Tu estás... a fazer-me tranças no cabelo?
— Porque é que pareces tão surpreendida? — pergunta ele sim­‐
plesmente, sem se aperceber de que a minha boca está aberta em choque. A
sua voz com um tom convencido e arrogante continua: — O quê, precisas
que eu te ensine a fazê-lo?
— Não, não preciso que me ensines... — Faço uma pausa, recupe­rando
o fôlego. — Como é que sabes fazer tranças?
Ele solta uma gargalhada que me faz mexer os pelos da nuca.
— Dizes isso como se fosse suposto ser difícil.
Ficamos em silêncio por uns instantes, e o roçar dos seus dedos pelas
minhas costas faz-me ficar quieta. Aclaro a voz:
— Pensei que me tinhas dito para não me habituar a que fosses um
cavalheiro?
Quase consigo ouvir o sorriso na sua voz quando responde:
— E continuo a defender essa afirmação.
— Então porque estás a fazer isto?
Ele solta um suspiro. Os dedos caem para o meu braço, quase fazendo-
me saltar com o toque repentino dos seus calos. Pararam na correia que
tenho no pulso, antes de a tirar e começar a prender-me o cabelo.
— Pronto — diz ele, postando à minha frente enquanto coloca a longa
trança por cima do meu ombro. Depois dá-lhe um puxão, ad­mirando o
trabalho com um sorriso que mostra as suas covinhas.
Olho para a trança e solto um suspiro ao ver vários cabelos soltos.
— Pensava que isto não era difícil para ti? — rio-me ao comentar. —
Sabes que é suposto colocar o cabelo todo na trança, não sabes?
— É uma forma estranha de agradeceres, mas suponho que é o melhor
que vou conseguir. — Ele aproxima-se, com os lábios erguidos num sorriso
irónico. — Talvez, se não me deixas ensinar-te a fazer tranças, me deixes
ensinar-te a ter algumas maneiras.
Quase que me engasgo com a ideia do futuro Executor me ensi­nar
boas maneiras. Os seus olhos percorrem a minha orelha antes de se afastar,
metendo as mãos nos bolsos.
— Devias tratar disso antes das entrevistas de amanhã — avisa
casualmente, acenando com a cabeça para a minha ferida. — Não queremos
que a marca da Blair te deixe cicatrizes.
A mordacidade súbita dessas palavras deixa-me atordoada, en­quanto o
estudo no silêncio crescente.
— Não — consigo finalmente dizer. — Não queremos isso.
Examina-me antes de se voltar, lançando um sorriso por cima do
ombro.
— Boa sorte para amanhã, Gray.
Nem me dou ao trabalho de lutar contra o meu sorriso.
— Se eu tivesse maneiras, também te desejaria sorte, Príncipe.
Mas já me informaste que não as tenho.
Ele ri-se, e o som percorre-me a espinha enquanto continua a afastar-
se. Sem ele para me distrair, a minha orelha arde furiosamente enquanto
começo a caminhada de regresso ao castelo com um pensamento a ocupar-
me.
Nunca respondeu à minha pergunta.
O aço frio do anel do meu pai pouco me conforta quando o rodo no
polegar.
Dedos suaves deslizam pelo meu cabelo, prendendo e puxando as
madeixas desalinhadas. Entre os toques suaves de Ellie e o banco de felpa
do toucador em que estou sentada, as minhas pálpebras descaídas ameaçam
puxar-me de volta para um sono agitado, ape­sar de a minha mente estar a
cambalear. Ellie deve conseguir ver a preocupação e o cansaço estampados
no meu rosto, porque me oferece um sorriso simpático ao espelho.
— Como te estás a sentir? Sobre as entrevistas?
A rotação constante do meu anel não abranda e os meus nervos não
cessam.
— Bem, não faço ideia do que esperar. E se correr mal... — Fico sem
palavras quando Ellie me acena com a cabeça ao espelho, sem precisar que
eu termine.
— Não penses demasiado nisso. Vais ficar bem — garante ela en­‐
quanto continua a prender-me o cabelo. — Além disso, as pessoas não
param de falar da Salvadora Prateada.
A Salvadora Prateada.
Quase me rio do nome que me foi dado. Se soubessem realmente por
que razão fui capaz de parar o Silenciador, já não me chama­riam salvadora.
De facto, não me chamariam nada, porque tornar-me-ia apenas mais uma
Vulgar morta que não merece um nome, um título, uma memória.
Um elegante carrapito baixo assenta na minha nuca quando Ellie
termina, com ganchos brilhantes a mantê-lo no lugar, enquanto anéis
prateados rodeiam o meu rosto maquilhado e as pestanas escuras.
Depois de muita deliberação, optámos por um vestido azul-claro sem
mangas. Elegante, mas não demasiado extravagante.
— Vais querer causar uma boa impressão, e acho que este vai ser­vir
para o efeito — diz Ellie, sorrindo. Mal o visto, sou arrastada para o espelho
para que Ellie possa admirar o seu trabalho. Entre o cabelo, a maquilhagem
e o vestido azul que abraça o meu corpo, quase parece que pertenço aqui.
Como se não tivesse estado a dor­mir na rua nos últimos cinco anos da
minha vida.
Uma batida na porta assusta-me o suficiente para parar de olhar para o
meu reflexo.
— Estás pronta?
Lenny está à espera do lado de fora da porta quando Ellie me empurra
para o corredor, lançando-lhe um olhar tímido antes de se retirar para o meu
quarto. Ele dá-me um sorriso fácil antes de nos conduzir para as portas
principais e maciças do castelo e para o pátio banhado pelo sol.
Não estamos sozinhos. A maior parte dos outros concorrentes estão
tensos enquanto os restantes saem lentamente do castelo. Ra­pidamente, os
Imperiais estão a passar, juntando-se ao nosso grupo que está parado sem
fazer nada.
— O que é que se passa? — pergunto a Lenny, ainda ao meu lado.
— Nós — gesticula para os seus colegas Imperiais — estamos a es­‐
coltá-los a todos para a Bowl.
Desvio a minha atenção para a estrutura imponente que se en­contra
inocentemente ali perto. Nunca tinha assistido a nenhuma das entrevistas
dos concorrentes, por isso nunca tinha tido o pra­zer de me sentar nas
bancadas da Arena ao lado de milhares de outros Ilyans. O nome pouco
original do grande estádio deve-se à forma inclinada e semelhante a uma
tigela, onde nunca pensei pisar. O grupo segue a um ritmo calmo enquanto
nos dirigimos para a Bowl, com os Imperiais a ladearem-nos por todos os
lados. Fica a menos de um quilómetro do palácio, e eu sinto-me satisfeita
por estudar o que me rodeia enquanto percorremos o caminho de gravilha.
Arvores retorcidas e caídas pairam sobre nós, estranhamente encantadoras
com a forma como o sol atravessa as suas folhas para alcançar o chão por
baixo delas numa luz manchada. Flores brancas vibrantes e cor-de-rosa
claro pontilham os ramos enquanto várias delas caem, espalhando pétalas
pelo caminho.
Deixo-me ficar para o fundo do grupo, observando os concor­rentes à
minha frente. Todos os rapazes usam uma variação de cal­ças justas e
camisas de botão coloridas, enquanto as raparigas usam vestidos elegantes,
mas simples.
Braxton e Sadie falam em surdina, enquanto Andy está sempre a pôr o
pé de fora para apanhar o tornozelo de Jax, fazendo-o tro­peçar enquanto ela
se ri. Os meus olhos vão para Hera, silenciosa, enquanto olha em redor
admirando o túnel de árvores que ladeia o caminho. Ace, por outro lado,
tem o nariz tão alto no ar que duvido que consiga ver o que está à frente.
Por fim, observo as duas figuras altas que se encontram na ca­beça do
grupo. Kitt e Kai riem-se baixinho, uma ocorrência aparen­temente comum
quando os dois estão juntos. Mais uma vez, o futuro rei mistura-se com os
concorrentes, o que me faz pensar por breves momentos se não gostaria de
fazer parte destas Provas.
Blair mete-se entre os dois irmãos, rindo-se de algo que um deles
disse. Tanto o seu cabelo lilás quanto o seu vestido azul-marinho cintilante
brilham ao sol, dando a ilusão de que um holofote a segue constantemente.
Usa qualquer desculpa para tocar nos rapazes, o que a torna tudo menos
subtil. Sabe o que quer, e é evidente que é um deles. Quase admiro a sua
resiliência.
Caminho tranquilamente enquanto observo as pétalas cor-de-rosa a
caírem das árvores, arrastando-se para o chão numa brisa suave.
— Vejo que encontraste algo para vestir.
A voz grave ao meu lado faz-me saltar, e eu praguejo sob a minha
respiração ao ver de repente o futuro rei ao meu lado. Está a rir-se da minha
cara de espanto, e eu luto contra a vontade de o empurrar por me ter
assustado daquela maneira. Respiro fundo antes de en­contrar o seu olhar
verde, a cor que combina com as folhas pendu­radas por cima de nós — e
que combina com a cor dos olhos do pai.
Os olhos do Rei.
A súbita constatação faz-me hesitar. Forço-me a engolir a repulsa por
este homem e pelo reino corrupto que irá governar à semelhança do seu pai.
Respirando fundo, recordo-me que tenho de ser civili­zada, educada.
Desempenha o teu papel.
— Sim, mas não posso ficar com os louros todos. — Observo o
vestido azul-claro que ondula com a brisa suave. —Tenho de agrade­cer à
Ellie por isto.
— Ah, sim. — O sorriso do futuro rei é provocador, assustando-me. —
Ellie, a empregada que insistias não precisar?
— Essa mesmo — respondo-lhe com frieza. — Sabes, pensei que ela
gostava de mim, mas afinal acho que me quer torturar com estes sapatos.
Já sinto os meus pés com bolhas nas sandálias demasiado aper­tadas e
de tiras que a Ellie insistiu que eu usasse.
Ri-se de novo, um som brilhante e contagiante que me deixa inquieta.
— Não te invejo a ti, nem às bolhas que provavelmente vais ter. —
Denuncia um ligeiro sorriso enquanto faz um gesto para os meus pés. —
Mas fica-te bem, mesmo assim.
— Obrigada... — As palavras soam mais como uma pergunta.
Sempre pensei que o futuro rei seria frio e calculista — mais pa­recido
com o irmão, no mínimo. Mas Kitt parece ser exatamente o oposto, o que
me confunde, tendo em conta quem é o seu pai e o que o futuro lhe reserva.
Perdida em pensamentos, olho para cima e vejo a silhueta gigante da
Bowl a aproximar-se, esperando-nos no fim do túnel de árvores. É enorme.
Para além do castelo, nunca tinha visto uma estrutura tão grande.
Sinto uma coisa a pousar na minha cabeça e praticamente salto. Kitt
solta uma gargalhada enquanto se aproxima e retira a coisa do meu cabelo,
assustando-me. A ação não passa despercebida e as suas sobrancelhas
franzem-se de preocupação.
Não estou a desempenhar muito bem o meu papel.
Limpando o meu rosto da ansiedade que tenho a certeza estar
estampada, tento arranjar um sorriso débil enquanto atento para a flor cor-
de-rosa que ele agora enrola entre os dedos. Olho para cima e vejo várias
pétalas agarradas ao cabelo despenteado de Kitt.
— Sabes — diz ele suavemente, pousando a parte traseira da flor em
cima da minha cabeça —, isto também te fica bem.
Respiro fundo e forço um sorriso mais forte.
— Podia dizer o mesmo de ti — digo, apontando-lhe para o cabelo
louro cheio de pétalas. Ele retribui o sorriso enquanto passa a mão pelo
cabelo, pouco fazendo para se livrar das flores que criam uma coroa no topo
da sua cabeça.
— Bem, agora estamos a combinar — anuncia. Desvio o meu olhar,
ainda sentindo que o seu me percorre o rosto, enquanto me esforço por
parecer calma e controlada.
— Tu pareces... — Ele faz uma pausa, tentando encontrar a pala­vra
certa. — Ansiosa.
Lá se vai a calma e a concentração.
Ofereço-lhe um sorriso rápido.
— Bem, esperemos que a ansiedade também me fique bem.
— São as entrevistas que te deixam nervosa, ou é outra coisa? — As
suas palavras são suaves, curiosas.
Preocupante.
O meu olhar desliza para o seu, antes de se desviar rapidamente ao
perceber que o Rei me observa com atenção.
— Só as entrevistas e a possibilidade de eu fazer figura de parva.
— Vai correr tudo bem. Especialmente depois do teu... incidente com o
meu irmão em Loot.
Ele devolve-me aquele seu sorriso encantador.
— Sabes que as pessoas ainda estão a falar de ti.
Estou prestes a responder quando a minha cara é subitamente banhada
pela luz do sol. Não me tinha apercebido que o túnel de árvores tinha
terminado, deixando-me a pestanejar rapidamente na luz ofuscante.
Mas o sol vai-se embora tão depressa como chegou. O grupo acalma-
se quando entramos na sombra da Bowl. Entramos num dos muitos túneis
de cimento que conduzem à Arena, os nossos passos ecoando nas paredes
de pedra fria até sermos levados para o nível mais baixo do estádio.
A minha cabeça anda para trás e para a frente, os olhos arre­galados
enquanto absorvo tudo. À volta de toda a arena oval há dezenas de filas
largas cobertas por bancadas de betão que sobem pela lateral da Bowl. Os
meus olhos percorrem o vidro grosso que envolve cada secção das
bancadas.
Não, não é vidro.
Mudo.
Só há pouco tempo é que fiquei a saber do material raro inven­tado
pelos Académicos, quanto mais vê-lo pessoalmente. Por meios que são
demasiado complicados para eu entender, este material, que se parece com
vidro, impede os Elites dentro das bancadas de usarem os seus poderes,
para não interferirem com as Provas.
Afasto a atenção do estranho fenómeno e continuo a examinar a Bowl
com o meu olhar amplo. Apesar de estarmos ao nível do chão, junto à
última fila de bancadas, o recinto coberto de areia fica por baixo de nós.
Aproximo-me da grossa grade de metal na beira do caminho e espreito para
baixo. É facilmente uma queda de quatro metros para o chão da Arena,
cheio de areia.
O fosso.
E é aí que as Provas terão lugar enquanto centenas de Ilyans as­sistem
das bancadas que nos rodeiam.
Os Imperiais começam a conduzir-nos ao longo do caminho até
pararmos junto a uma sala ampla que se projeta para o caminho, rodeada de
vidro espesso. Olhando lá para dentro, vejo três cadei­ras grandes e
luxuosas, todas assentes num chão de madeira polida e que destoam do
betão cinzento e frio que cobre o resto da Bowl.
O camarote do Rei.
Então é aqui que se senta confortavelmente e nos vê a morrer.
Para minha surpresa, os Imperiais começam a empurrar-nos para a sala
de vidro, um a um. Formamos uma fila e observamos Kai a caminhar para o
canto mais afastado. Levanto o pescoço para o ver levantar um trinco
escondido do chão, abrindo um alçapão antes de saltar para baixo com
facilidade.
Uma mão no meu ombro impele-me a avançar.
Para onde é que vamos?
Atravesso a sala abafada e dirijo-me para o buraco no chão que
permanece à minha espera. A sala por baixo está envolta em som­bras,
tornando impossível ver a que distância está o chão.
Suspiro antes de entrar na escuridão.
Os meus pés atingem o chão com um estrondo suave. Depois de
estimar que a queda foi de quase dois metros, fico grata por o chão debaixo
das minhas sandálias ser macio. Mas com o tapete escor­regadio por baixo
de mim e os joelhos dobrados para diminuir o impacto da queda, não
consigo evitar tropeçar em algo sólido.
Não. Não é algo. Alguém.
Braços fortes envolvem-me antes de eu sentir o aviso de um riso
profundo vindo do peito largo contra o qual bati. Mãos grandes são
firmemente colocadas nas minhas ancas e, à medida que os meus olhos se
ajustam à escuridão, consigo ver a curva familiar de um sorriso nos lábios
de Kai, enquanto me foca.
— Trabalho de pés desleixado, Gray. Detestaria ser o teu parceiro na
pista de dança.
Empurro-lhe o peito com as palmas das mãos, e ele solta-me com
relutância, rindo sombriamente.
— Bem, então o sentimento é mútuo. — Sinto-me insultada e odeio
isso. — E eu tenho um trabalho de pés fabuloso, muito obrigada — aclaro a
voz, desviando o olhar antes de acrescentar: — quando estou a lutar.
Ele tem razão, mais uma vez. E mais uma vez, odeio-o. Sou uma
dançarina desastrosa. Posso ser capaz de me mover ao ritmo de uma luta,
mas essa habilidade não se estende ao salão de baile.
Ri-se de novo, mas antes de ter a oportunidade de fazer algum
comentário malicioso de que o faria arrepender-se, Kitt cai ao meu lado.
— Estás a brincar com a concorrência, irmão? — Consigo ouvir o
divertimento na sua voz enquanto se dirige a uma grande alavanca na
parede e a puxa para cima. As luzes por cima de nós piscam e produzem um
zumbido, lembrando-me dolorosamente de casa e dos poucos candeeiros
que há espalhados por Loot Alley.
— Esta competição é divertida e por isso não posso deixar de brin­car
com ela — responde Kai com um encolher de ombros desleixado.
Estou prestes a dizer algo que provavelmente não devia quando a
nossa conversa é interrompida pelos restantes Elites que caem li­teralmente
na sala. Olhando em volta, encontro o espaço cheio de cadeiras e sofás
felpudos, juntamente com uma variedade de ape­ritivos espalhados numa
mesa comprida, deixando claro que esta­mos aqui à espera pelo começo das
entrevistas.
Todos se movimentam pela sala, sentando-se nas cadeiras e pegando
na comida. Sinto uma mão no meu ombro e assusto-me, voltando-me para
encontrar um par de olhos cor de mel divertidos, escondidos atrás de
madeixas de cabelo vermelho-vinho.
— Estás nervosa, não estás? — Andy franze o sobrolho.
— Sim, bem, eu pensei que eras o Kai e estava a preparar-me para lhe
partir o nariz.
Ela resfolega alto.
— É compreensível. O meu primo é um parvo. Mais ou menos. — Ela
sacode a cabeça para Kai, mas o sorriso não desaparece do rosto.
— O teu... — Pestanejo. — Primo?
— Sim. Tem a sorte de ser meu parente. — Ela sorri, o piercing no
nariz a piscar à luz fraca. — São os dois.
— Então, também cresceste no palácio? Com eles? — Aceno com a
cabeça em direção aos rapazes que parecem estar a gozar impie­dosamente
com Jax.
— Sim, infelizmente. — Abana a cabeça, rindo-se. — O número de
lutas em que aqueles dois se meteram por causa de comida...
E termina, sorrindo para si própria.
— De qualquer forma, eu sou o que chamam de «ajudante» no pa­lácio.
O meu pai e eu arranjamos tudo o que precisa de ser arranjado no castelo e,
acredita, aqueles dois já partiram muita coisa ao longo dos anos.
Por fim, dirigimo-nos a um dos sofás e sentamo-nos, falando he­‐
sitantemente. Somos educadas uma com a outra, contentes por ter­mos uma
conversa civilizada, mas ainda muito conscientes do facto de sermos
concorrentes.
O som estrondoso de centenas de pés a pisar acalma-nos a todos. O
estrondo enche a Arena acima, fazendo o meu estômago dar voltas. Eles
estão aqui. Centenas de Ilyans — milhares, até. Todos aqui para verem as
entrevistas, o espetáculo. Aqui para escolher quem querem apoiar, quem
querem que viva.
Não sei quanto tempo demora até que o desfile de passos que sobem as
filas se acalme. Mas as vozes não o fazem. Cantam e aplau­dem, à espera de
que os concorrentes se mostrem. Os Imperiais chamam-nos de volta para o
alçapão onde, de repente, me encontro noutra fila, à espera da minha vez
para sair da sala e voltar para a caixa de vidro acima de nós.
Nem sequer tinha reparado no futuro rei ao meu lado até que ele se
levantou para me tirar algo do cabelo. Nem sequer tenho tempo de me
aperceber que ele está a segurar uma flor à frente da minha cara — aquela
que eu me tinha esquecido que estava emaranhada nas madeixas prateadas.
— Embora ache que te fica bem, talvez não devas fazer a entre­vista
com isto na cabeça. — Faz um gesto para a flor com um sorriso. — Podes
atrair muita atenção. Sobretudo das abelhas.
Desempenha o teu papel.
É isso que tenho de continuar a dizer a mim própria. Porque sem­pre
que olho para ele, só consigo ver o seu pai, e um homem que um dia
governará um reino corrupto. E, no entanto, apesar da minha repulsa, forço
um sorriso no meu rosto.
— Obrigada. Por me teres salvo tanto da vergonha quanto das abelhas.
Braxton passa por baixo da saída, e eu agradeço a desculpa para
desviar o olhar do futuro rei. O Forte nem precisa de saltar para se agarrar à
beira antes de se levantar facilmente do chão e passar pelo alçapão. Um a
um, os rapazes ajudam-se a subir, até só restarem os dois príncipes.
Eles ajudam as raparigas a levantarem-se com facilidade, praticamente
levantando Hera pela abertura. Blair aproveita-se da situação, usando-a
como desculpa para ter as mãos dos rapazes em cima dela. Depois de Sadie
pedir educadamente um empurrão, fico sozinha com os dois.
Olho para cima através do alçapão, avaliando o meu salto, quando Kai
surge atrás de mim, baixando a cabeça para que o seu queixo acabe quase
encostado ao meu ombro.
— És demasiado teimosa para pedir a minha ajuda, Gray?
— Não — respondo-lhe com frieza. — Demasiado forte para pre­cisar
dela.
As suas palavras seguintes são murmuradas perto do meu ouvido.
— É isso que eu gosto de ouvir.
O seu calor desaparece quando se afasta para o lado, apontando para o
alçapão acima com um sorriso nos lábios.
Eu salto, os meus dedos enrolam-se à volta da extremidade da abertura
e fico pendurada no ar por um instante. Nunca me senti tão grata pelos
muitos anos que tive de praticar a escalada a edifí­cios. Puxo-me para cima,
pronta para balançar as pernas...
— Este maldito vestido — berro. É rígido, o tecido abraça-me as
ancas, tornando impossível mover-me com liberdade.
— Vá lá. — É a voz provocadora de Kai que ouço atrás. — Pede-me
ajuda, Gray.
Reviro os olhos.
— Teimosa, lembras-te?
Ouço o riso de Kitt antes de sentir mãos a roçar nas minhas per­nas.
Assustada, olho para baixo, e vejo uma cabeça curvada de ondas negras
desalinhadas. Kai está a agarrar a costura inferior do meu vestido, de olhos
postos em mim.
— Posso? — A sua voz é suave, o tom é divertido.
Engulo, reviro os olhos mais uma vez e aceno contra o meu bom
senso.
E a seguir está a rasgar-me o vestido.
Rasga o tecido com facilidade, criando uma racha na parte lateral da
minha coxa, libertando-me dos limites apertados do tecido. Os seus dedos
ásperos roçam brevemente a minha pele enquanto diz:
— Estou mais do que disposto a rasgar os teus vestidos por ti, Gray.
Para ajudar, claro. — Kitt suspira, enquanto Kai sorri. — Só precisas de
pedir.
— Porquê perguntar quando estás tão ansioso por oferecer?
O riso de Kai segue-me quando por fim me levanto, os braços a
arderem do esforço. Quando me ponho de pé dentro da caixa de vidro, fico
aliviada por ver que as cadeiras ainda estão vazias. Só de pensar em ver o
Rei depois da forma como falou do meu pai, como se ele não fosse o seu
assassino, faz-me ferver o sangue. Antes daquele jantar, nunca tivera
necessidade de controlar a vontade de espetar um garfo na jugular de
alguém.
Respiro fundo antes de sair para a rua. A multidão ruge.
Aqui estamos.
Os Imperiais conduzem-nos a uma pequena abertura no gradea­mento
em frente à caixa, onde foram colocadas escadas para entrar­mos no fosso.
Os meus pés batem na areia dura da Arena, enquanto a multidão aplaude,
como se as Provas já tivessem começado.
Atravessamos o grande chão do fosso, parando a meio, onde um palco
improvisado se ergue a alguns metros do chão. Dez cadeiras de felpa
alinham-se na parte de trás do palco, enquanto outras duas estão centradas à
frente. Os Imperiais conduzem-nos ao palco onde nos sentamos. O meu
olhar prende-se no de Lenny, e ele faz-me um aceno tranquilizador antes de
se pôr em fila com os outros Imperiais.
— Bem-vindos, companheiros Ilyans, à Sexta Edição das Provas da
Purga!
A multidão ruge quando eu viro a cabeça para a voz feminina aguda.
Ela vira-se para nós, com os olhos castanhos brilhantes de excitação e os
lábios vermelhos e cheios curvados num sorriso, en­quanto nos observa.
Tealah.
É irónico que o seu cabelo cor de azul-petróleo brilhante com­bine com
o seu nome. Nunca tinha visto a jovem que conduziu as entrevistas para as
Provas anteriores, mas ouvi o suficiente sobre a sua aparência única para a
identificar.
— Mas esta não é uma Prova qualquer! — Ela sorri para a multi­dão.
— Pela primeira vez na história das Provas da Purga, temos um futuro
Executor a competir.
Quase consigo sentir os milhares de olhos a virarem-se na dire­ção de
Kai. Ele está claramente habituado a esta atenção, parecendo
completamente relaxado enquanto se reclina na sua cadeira.
Tealah continua.
— E por causa disso, as Provas deste ano vão ser um pouco...
diferentes.
A multidão vai ao rubro.
As palavras de Ellie ecoam na minha cabeça, refletindo as que Tealah
acabou de anunciar.
Diferentes.
Tudo porque há sangue real a competir? Tudo para tornar as coisas
mais difíceis para o futuro Executor?
Não tenho tempo para refletir mais antes de Tealah perguntar:
— Estão prontos para conhecer os vossos Elites? — Ela encosta a mão
ao peito enquanto fala, fazendo com que as suas palavras se pro­paguem
pela Arena. A sua habilidade como Amplificadora permite-lhe projetar a
voz, bem como as vozes dos outros, desde que lhes toque. Um poder
Mundano, mas útil neste tipo de trabalho.
A multidão aplaude e bate o pé, imitando o ribombar do trovão.
— Porque é que não conhecemos o Jax primeiro? Jax, querido, podes
vir sentar-te aqui ao meu lado?
Jax senta-se na cadeira inclinada perto de Tealah, na frente do palco,
com um sorriso tímido no rosto. Está inquieto, com uma das suas longas
pernas a balançar no chão, enquanto ela lhe pergunta sobre a sua vida e as
Provas.
— Gosto de lutar com o Kitt. Principalmente porque às vezes deixa-
me ganhar. O Kai... nem por isso. — A multidão ri-se à garga­lhada com a
resposta de Jax ao que mais gosta relativamente ao treino para as Provas.
Ele sorri timidamente para Tealah, e o seu sorriso aumenta quando ele se
vira no seu lugar para ver o rápido encolher de ombros de Kai.
— Não é adorável? — Tealah sorri para a multidão antes de pergun­tar.
— Diz-me, Jax, que idade tens?
A mão de Tealah pousa no seu ombro, amplificando a sua resposta.
— Quinze.
Pestes, ele é tão novo.
— Quinze e já te foi concedida a honra de competir nas Provas! —
Tealah exclama, olhando para a multidão em busca de aprovação, que lhe é
oferecida sob a forma de pancadas e vivas. — E volta a lem­brar-nos do teu
poder?
Ele limpa a voz:
— Sou um Saltador.
— Que fascinante! Conta-nos mais para aqueles que ainda não
testemunharam esta habilidade.
— Bem — endireita-se no seu lugar —, posso teletransportar-me para
qualquer sítio que consiga ver num piscar de olhos.
Sorri enquanto o público se ri.
— Muito bem, Jax, mais uma pergunta antes de nos mostrares o que
consegues fazer. — Tealah fica subitamente séria quando ques­tiona: — O
que é que esperas das Provas?
A cabeça de Jax inclina-se para o lado, pensativo.
— Bem, não sei bem em que consistirão as Provas, mas, aconteça o
que acontecer, estou à espera de honrar o meu reino, a minha fa­mília. .. —
Faz uma pausa e lança um olhar a Kai. — E a mim próprio.
O estádio explode em aplausos ao ouvir o lema das Provas da Purga.
Tealah levanta-se e guia Jax pelos degraus do palco e para a areia do fosso à
nossa frente.
— O palco é todo teu, Jax!
Num segundo, Jax está a sorrir para o público, e no outro desa­pareceu.
Eu viro-me no meu lugar para ver onde é que ele foi, apenas para o
encontrar mesmo atrás de Kai, com um sorriso malicioso no rosto. Ele
despenteia-lhe o cabelo antes de desaparecer, deixando o príncipe a
gaguejar.
Jax continua a sua pequena rotina. Saltando de um lugar para o outro,
fazendo com que a multidão suspire de surpresa a cada novo lugar em que
aparece. Passados alguns minutos, Salta de novo para o seu lugar original,
mesmo entre Kai e Braxton, onde o primeiro não hesita em prendê-lo
debaixo do braço e despentear-lhe impiedosa­mente o cabelo.
Tealah continua a sua rotina de questionar os concorrentes antes de os
deixar à solta para mostrarem as suas habilidades, seguindo o mesmo
padrão.
Não é nada mais do que um espetáculo de talentos. Uma montra que
mostra quem é o mais forte.
Braxton esmaga e atira estátuas de pedra que foram espalhadas pelo
estádio para ele. Depois da entrevista de Ace, onde falou como se já tivesse
ganho as Provas, desceu ao fosso, pomposo como sem­pre. As ilusões que
cria parecem tão reais, tão fáceis de confundir com a realidade. Ele criou
um fogo ardente, queimando a areia num rasto de chamas, conseguindo até
criar o cheiro a fumo. E depois desapareceu num instante tão rápido como
tinha aparecido, sem deixar nada para trás.
Sadie, sendo uma Clone, mostrou o seu poder criando dez có­pias de si
própria e passeando-as pelas bancadas. Cada cópia ace­nou rapidamente à
multidão antes de regressar ao seu lugar.
Blair foi chamada após a entrevista de Sadie, sendo irritante­mente
doce para com Tealah e o público, embora eu não sinta falta do regresso da
mordacidade à sua voz quando fala em ganhar as Provas. Ela foi até à areia
e levantou Tealah do chão usando o seu poder de telecinesia, informando-
me que a sua força é mais men­tal do que física. De facto, a lâmina que me
cortou a orelha ainda ontem foi provavelmente lançada pelo seu poder, não
pela sua mão.
Hera esteve tímida, contorcendo-se no seu lugar e falando apenas
quando necessário. Consegui praticamente vê-la a suspirar de alívio quando
por fim ficou livre para mostrar as suas habilidades e evitar falar com o
público. Ela desaparece e, passado um momento, Tealah desaparece
também. A multidão aplaude, ficando a olhar para o ar vazio onde antes se
encontravam.
Andy foi de longe a mais divertida, contando sem pudor histórias
embaraçosas sobre a sua infância com Kitt e Kai. A multidão adorou-a, riu-
se a cada palavra sua. Mas quando ela saiu para o chão do fosso para
mostrar o seu poder, o meu suspiro foi engolido pela mul­tidão. Mesmo à
frente dos meus olhos, ela transformou-se num tigre. Depois num falcão.
Um lobo. Todos eles da mesma cor de vinho do seu cabelo. E depois, após
alternar casualmente entre vários animais, voltou a transformar-se em ser
humano, com o seu vestido lilás ainda perfeitamente intacto.
Tealah escolhe o Kai a seguir, deixando-me para o fim.
Ótimo.
Com Kai a sorrir-lhe, Tealah parece exuberante e luxuriosa. É evi­dente
que está a usar a sua máscara de charme enquanto brinca e interage com o
público. Quando Tealah lhe pergunta o que espera das Provas, a sua
resposta é a mesma de todos os outros concorrentes antes dele: Honra para
o meu reino, para a minha família e para mim próprio.
Quando o príncipe finalmente termina, lança um sorriso à ru­borizada
Tealah antes de sair do palco para mostrar o seu poder. Bem, os poderes de
todos os outros. Percorre a fila de concorrentes, usando cada uma das suas
habilidades e cortejando o público com elas. Os seus poderes parecem-lhe
fáceis, familiares, o resultado de muitos anos de treino.
Quando chega ao fim da fila, os seus olhos encontram os meus. A sua
cabeça inclina-se ligeiramente para o lado enquanto me ob­serva, com o
olhar cinzento a percorrer o meu rosto. Não consigo imaginar o quanto o
deve perturbar o facto de não poder usar a minha habilidade, e esse
pensamento traz-me um pequeno sorriso aos lábios.
Depois, Kai está de volta à sua cadeira e eu a caminhar para a minha
perdição.
— E, por fim, temos Paedyn Gray! — A voz de Tealah ecoa pela
Arena, enquanto dá palmadinhas no assento ao seu lado, expetante.
Desempenha o teu papel.
As palmas das minhas mãos estão escorregadias do suor. Sento-me no
banco ao lado de Tealah e aliso a saia do meu vestido, nem que seja para ter
uma desculpa para limpar as mãos suadas na seda lisa. Olho para o público
e fico com a respiração suspensa. Sinto-me envergonhada por não os ter
observado antes, mas agora não consigo desviar o olhar.
O Rei e a Rainha e...
Kitt.
Olham-me fixamente da sua confortável caixa de vidro. O Rei e o seu
herdeiro sentam-se perto um do outro, as suas semelhanças atingindo-me
como um golpe no peito. Os cabelos cor de areia e os olhos cor de
esmeralda espelham-se um no outro, são tão parecidos que o meu ódio por
um começa a passar para o outro.
— Então, Paedyn, fala-nos do teu incidente com o Príncipe Kai! —
Volto-me para Tealah, quase cegando pelos seus dentes brancos e brilhantes
e pelo seu cabelo vibrante. Ela inclina-se para mim e coloca uma mão suave
no meu ombro, projetando a minha voz para todos ouvirem.
— Bem, de acordo com o Príncipe Kai, não há muito para contar. Mas,
se quer saber a minha opinião, acho que está um pouco envergonhado por
ter sido uma rapariga dos bairros de lata a salvá-lo. — As palavras saem da
minha boca antes que as consiga parar.
Pestes, preciso que as pessoas gostem de mim e gozar com o seu
príncipe não é provavelmente a melhor maneira de o fazer...
Uma gargalhada.
Para minha surpresa, e salvação, o público acha-me divertida. Es­preito
por cima do meu ombro para olhar para Kai e vejo um sorriso ténue a
agraciar as suas feições.
Por isso, talvez possa gozar com o seu príncipe, afinal. Posso traba­‐
lhar com isso.
— Não tens medo de dizer as coisas como elas são! — Tealah ri-se um
pouco antes de passar à pergunta seguinte, aquela que tenho a certeza de
que muitos estão a pensar. — Então, diz-nos outra vez como é que foste
capaz de lutar contra o Silenciador? Quero dizer, é óbvio que consegues
aguentar-te numa luta física, mas como é que o Silen­ciador não te afetou?
Respiro fundo, sabendo que este pormenor é muito importante para
que todos compreendam, para que acreditem.
— Bem, Tealah, eu sou Psíquica. É uma habilidade mental que me
permite sentir as emoções fortes dos outros e obter informações. E, por
causa disso, tenho o poder de proteger a minha cabeça, de a manter a salvo
de pessoas como os Silenciadores. — Sorrio ligeira­mente antes de
acrescentar: — E, aparentemente, de pessoas como o Príncipe Kai, uma vez
que ele não consegue usar ou sentir a minha pequena habilidade.
— Que fascinante! Devo dizer que nunca tinha conhecido uma
Psíquica! — Os seus olhos estão arregalados, parecendo muito intri­gada
comigo, como tenho a certeza de que o resto da multidão está.
— Sim, bem, apesar de ser uma habilidade Mundana, parece ser
bastante rara. — Sorrio com alegria, como se não estivesse a mentir com
todos os dentes que lhe estou a mostrar.
— Muito bem, Paedyn, fala-nos da tua vida nos — gagueja, quase
dizendo bairros de lata antes de optar por dizer — em Ilya?
Penso em mentir mais um pouco, dizendo que não era assim tão mau,
que era fácil viver nos bairros de lata. Mas de repente deu-me vontade de
ser honesta.
— Quer dizer, a vida nos bairros de lata? — Ela pestaneja, sur­‐
preendida pela minha correção brusca. — Não há muito para contar. A vida
nas ruas não é uma grande vida.
Olho-a bem nos olhos antes de me virar para a multidão silenciosa.
— Nestes últimos anos, a fome e o frio têm sido a única cons­tante na
minha vida. Mas não sou só eu. Há dezenas de pessoas que dormem na
mesma pedra dura que eu. Dezenas de pessoas que fazem qualquer coisa
por um xelim. — Faço uma pausa e respiro fundo. — Viver nos bairros de
lata é a sobrevivência do mais forte. Por isso, de certa forma, estou mais
preparada para estas Provas do que qualquer outra pessoa.
Tealah olha para mim em choque, claramente surpreendida por aquela
resposta. Depois, devolve-me um olhar que me é familiar... pena. Odeio
isso. Não quero a sua pena nem a da multidão. Quero mudança.
Passa rapidamente a perguntas mais descontraídas sobre o treino e os
meus colegas concorrentes.
— Quem é que achas que vai ser o teu maior concorrente?
— Hmm — Ponho uma madeixa de cabelo atrás da orelha, pen­sando
na minha resposta.
— Talvez o Príncipe Kai? Visto que tem a habilidade de usar qual­quer
poder? — avança Tealah.
— Mas não o meu, lembra-se? — Eu rio-me ligeiramente e ela tam­‐
bém. — Ele não vai ser um problema. Na verdade, vamos ver até onde
consegue chegar nestas Provas sem eu lá estar para o salvar.
Sorrio com doçura enquanto a multidão ruge de riso, praticamente
sentindo os olhos de Kai furarem-me a nuca.
— Muito bem, Paedyn, última pergunta. O que é que esperas conseguir
com as Provas?
A minha boca abre-se, com a intenção de vomitar o lema prati­cado nas
Provas da Purga, como toda a gente fez. Como é suposto eu fazer. Mas
quando os meus olhos se fixam na caixa de vidro por cima de mim, se
fixam no Rei atual e no futuro, as palavras caem da minha boca sem que as
consiga evitar.
As palavras erradas.
— Sobrevivência. Espero sobreviver a isto.
Sinto milhares de olhos cravados em mim.
Tealah pestaneja lentamente, enquanto as mechas de cabelo azul-
petróleo lhe sopram na cara com a brisa suave. Por fim, coloca a voz e
levanta-se com firmeza para me guiar até ao palco.
— Muito bem — diz, tentando agir com naturalidade. — Mostra-nos
do que és capaz!
Agora estou eu a pestanejar para ela.
Como é que é suposto eu fazer isso?
— Hmm — olho à volta do estádio e sugiro: — porque é que não
escolhe uma pessoa qualquer da multidão, e eu... faço uma leitura.
Pestes! Mas o que é que eu estou para aqui a falar?
Tealah sorri e acena com a cabeça, claramente feliz por fazer alguma
coisa. Vejo-a subir os degraus para fora do fosso e começar a percorrer as
filas de pessoas, sorrindo e acenando à medida que avança. Após alguns
minutos de contemplação, aponta finalmente para uma rapariga sentada
umas filas acima. A pobre rapariga pa­rece preocupada e confusa, mas
levanta-se cautelosamente antes de descer para o fosso, guiada por Tealah.
Quando se aproxima de mim com cautela, apercebo-me de que não
deve ser muito mais velha do que eu. O seu cabelo castanho curto,
juntamente com as sardas que lhe salpicam o rosto, conferem-lhe um ar de
inocência constante. Sorrio e estendo a mão para pegar nas suas mãos,
querendo fazer disto um espetáculo.
— Não te preocupes. Eu não mordo — digo-lhe suavemente quando
ela dá um pequeno passo atrás. Ofereço-lhe o que espero ser um sor­riso
caloroso e, com isso, ela estende-me as suas mãos bronzeadas. Agarrando-
as nas minhas, observo-a rapidamente antes de fechar os olhos.
Tenho tudo o que preciso.
Penso na corrente manchada à volta do pescoço, juntamente com o
anel grande e desbotado que pende do fio e que mal se vê por detrás das
dobras da camisa que veste. Eu também guardei o anel do meu pai depois
de ele ter morrido, só que uso o meu no polegar.
— Estou a sentir... dor. Tu — aperto-lhe as mãos quentes, respi­rando
fundo. — Tu perdeste um homem que te era muito próximo. Há algum
tempo. O teu pai?
Abro os olhos e vejo a sua boca aberta.
— Sim — confirma em voz baixa, mesmo com a mão de Tealah co­‐
locada no ombro para amplificar. — Sim, ele morreu há quatro anos.
— Lamento imenso a tua perda. Eu sei o que é perder um pai. —
Mantenho os meus olhos fixos nos dela, embora queira desespera­damente
olhar para o Rei na sua caixa brilhante.
Um suspiro coletivo ecoa pela multidão, espantada por eu poder saber
um pormenor tão pessoal.
E querem mais.
Tealah seleciona pessoa após pessoa para descer ao fosso, cada uma
mais entusiasmada com a leitura do que a anterior. Eu digo-lhes coisas
aleatórias e pessoais sobre elas, coisas que um estranho não deveria saber.
— Acabaste de descobrir que estás grávida...
— O teu pai é ferreiro...
— Roubaste os sapatos que estás a usar...
De cada vez, tanto a pessoa que leio quanto a multidão que nos rodeia
ficam admiradas.
Eles suspiram, batem palmas e aplaudem — um público comple­‐
tamente cativado.
Pestes, se eu soubesse que as pessoas gostavam tanto disto, teria
cobrado as leituras na rua.
Um jovem magro está agora diante de mim, com um sorriso a
iluminar-lhe o rosto enquanto me atenta com expetativa. Fechando os olhos,
lembro-me do leve anel de sujidade que se agarra ao joe­lho direito das
calças que veste quando se dirigiu para ali. Isso, em conjunto com o
contorno subtil de uma pequena caixa no bolso do casaco e o brilho feliz no
rosto, significa que chegarei à minha con­clusão numa questão de segundos.
— Estou a sentir alegria. Porque... — Solto uma das suas mãos e
pressiono os dedos na minha têmpora. — Acabaste de ficar noivo. Hoje.
Abro os olhos mesmo a tempo de ver a sua boca a abrir-se.
— Sim! Ela tem razão! Acabei de a pedir em casamento há menos de
duas horas! — Ele vira-se para encarar a multidão, com um largo sorriso no
rosto enquanto o público vai ao delírio.
— Parabéns! — O meu grito é engolido pelos aplausos da multidão
enquanto ele praticamente salta as escadas de regresso ao seu lugar. Com
isso, dou um salto e volto para a minha cadeira, sem esperar por mais
leituras.
— Aqui — Tealah anuncia, apontando para nós — estão os vossos
concorrentes para a Sexta Edição das Provas da Purga!
A sua voz ecoa pelo estádio apenas para ser rapidamente aba­fada pela
multidão.
Os concorrentes à minha volta levantam-se e eu faço o mesmo.
Acenamos e sorrimos para a multidão, vendo-a entoar cânticos, pisar e bater
com os braços no ar.
Sinto-me doente. Sinto-me usada.
Para eles, tudo isto é um jogo.
Mas se quiser continuar viva, tenho de desempenhar o meu papel.
Tenho de os manipular. Ser um peão no seu jogo é o preço que tenho de
pagar para sobreviver. Fazê-los acreditar que gosto disto e, por sua vez, eles
gostarão de mim.
Por isso, endireito-me, ergo a cabeça um pouco mais alto e sor­rio ainda
mais.
Não sou peão de ninguém.
O sangue agarra-se às minhas mãos, às minhas roupas, man­chando
tudo de um vermelho doentio. Torturar tende a ser uma ocupação atribulada
e, apesar dos muitos anos de prática que tenho, parece que nunca se tornará
mais fácil. Ou mais limpo.
Ao contrário de Kitt, que foi treinado desde a infância para ser
equilibrado, justo e real, o meu treino consistiu num trabalho mais prático.
Estratégias de batalha, assassinatos e a arte da tortura cons­tituíram grande
parte da minha educação. E devido a esta forma­ção única e extensa que
recebi, sou muito bom no que faço.
Exceto, ao que parece, quando se trata do Silenciador encolhido no
chão da masmorra à minha frente. Já se passaram dias. Eu bati neste homem
até ao limite, e o que é que eu aprendi em troca?
Nada.
Dizer que estou zangado seria um eufemismo. A única palavra útil que
consegui que lhe passasse pelos lábios, para além dos gritos e súplicas, é o
que presumo ser o seu nome.
Micah.
Suspiro, agachando-me para pairar sobre o seu corpo partido e
ensanguentado. O cabelo comprido, coberto de sangue, cai-lhe sobre os
seus olhos castanhos profundos. Eles alargam-se quando encon­tram os
meus, fazendo-o parecer tão jovem. Não será muito mais velho do que eu.
— Agora, corrige-me se eu estiver errado — digo, com uma suavidade
falsa. — Mas eu não acredito que tu sejas mudo.
Agarro-lhe o maxilar e abro-o para revelar o sangue que se acu­mula na
sua boca, sobre a língua, manchando os dentes de escarlate.
— Mas eu poderia facilmente fazer isso acontecer. Podia escul­pir-te a
língua.
Deixo cair a sua cabeça no chão de pedra e levanto-me para sair,
consciente de que já estou atrasado para o jantar. Batendo a porta da cela
atrás de mim, faço um aceno brusco a Damion. Ele faz-me uma lenta vénia
com a cabeça em troca, antes de me seguir pelo longo corredor de celas.
Os nossos passos ecoam nas paredes de pedra enquanto subimos as
escadas e entramos no corredor iluminado e cheio de sol por cima das
masmorras. Dirijo-me habilmente para a sala do trono, mesmo enquanto a
minha mente vagueia.
As Provas estão a aproximar-se rapidamente, apenas quatro dias
separaram-nos do primeiro jogo mortal. Estes últimos dias seguiram a
mesma rotina: treinar, comer, conversar e torturar. E bem, brincar com
Paedyn. Ela tem sido a minha principal fonte de entretenimento
ultimamente. Ela é divertida. Com a sua inteligência, teimosia e irri­tação
óbvia comigo.
Para.
Afasto os pensamentos de Paedyn da minha mente enquanto passo
pelas grandes portas da sala do trono. As minhas mãos vão parar aos bolsos,
casualmente, apesar de saber que a minha camisa azul-marinho manchada
de sangue não se enquadra bem no código de vestuário para o jantar.
Os criados já trouxeram a comida para a mesa, e todos estão sen­tados à
volta dela a saborear avidamente. As cabeças viram-se quando ouvem os
meus sapatos no chão polido, vários pares de olhos a per­correrem o meu
rosto até ao sangue que se agarra à minha roupa. Ignoro os seus olhares,
pois estou demasiado cansado para mudar de roupa e demasiado esfomeado
para me preocupar.
— Ah, Kai. Ainda bem que vieste. — O Pai parece irritado, como de
costume, enquanto eu me sento.
— Querido — diz a Mãe numa voz baixa, inclinando-se para mim. —
Tu pareces um pouco... bem, ensanguentado.
Ela encolhe-se enquanto os seus olhos me percorrem, avaliando-me.
— Risco profissional, Mãe. — Dou-lhe um pequeno sorriso, o sor­riso
doce que reservo apenas para ela. Ela acena com a cabeça hesi­tantemente
antes de tentar relaxar na sua cadeira.
Mal ouço a conversa tranquila que ocorre à minha volta. Estou a
terminar o último prato quando um toque incessante me faz olhar para cima.
Os fios de cabelo prateado de Paedyn caem-lhe em cachos sol­tos, o
resto está amarrado num nó desalinhado na nuca. Tem o olhar fixo no prato,
com o polegar e o anel de prata a baterem com força na mesa da madeira.
E então aqueles olhos de oceano deslizam para os meus.
Inclino a cabeça na direção do seu polegar que tamborila.
— Estás a pensar em alguma coisa, Gray?
Olha para mim como se só agora desse pela minha presença.
— Tens alguma coisa na tua camisa, Azer? — Os seus olhos es­‐
pantam-se ao ver a minha roupa. — Isso é... sangue?
Tenho a certeza de que imagino o olhar de preocupação no seu rosto, o
olhar de inquietação quando pensa tratar-se do meu pró­prio sangue a
manchar a camisa.
— Cuidado, querida. Quase parece que te preocupas. — Devolvo-lhe
um sorriso preguiçoso, e ela revira os olhos indolentemente.
Dirijo a minha atenção para a minha Mãe quando a sua voz suave
interrompe os meus pensamentos.
— Espero que já tenham começado a formar pares para o pri­meiro
baile!
Olho de relance para a mesa. Apenas os três que não viveram no
castelo parecem um pouco confusos. Hera, Ace e Paedyn não cresceram a
ver estes bailes, nem sequer alguma vez foram a um baile. Invejo-os.
— Como é tradição — continua a Mãe —, os concorrentes vão jun­tar-
se para os bailes que se realizam antes de cada prova. E como vocês estão
em número ímpar, quem não tiver par será emparelhado com alguém, não
se preocupem.
O seu sorriso aumenta ainda mais quando diz:
— Por isso, escolham o vosso par e comecem a praticar os passos de
dança.
Kitt vira-se para o meu lado, e vejo-o a olhar rapidamente na di­reção
de Paedyn. Passo uma mão pelo cabelo antes de voltar a prestar atenção à
comida, pois preciso de me concentrar em algo.
Uma vez que as raparigas são em maior número do que os ra­pazes, é
provável que o Kitt seja emparelhado com quem não tiver parceiro. Mas
isso não o impedirá de pedir a uma delas, se assim o desejar.
É claro que Paedyn o intriga. Mas mesmo que Kitt não peça a Paedyn
para acompanhá-lo ao baile, o que eu não duvido que faça, ela não me quer.
Gosto de um desafio.
Mas ela deixou bem claro aquilo que nós somos um para o outro:
concorrência.
Inimigos.
E, mais importante, porque é que não é isso que eu também quero?

Acordo na manhã seguinte, encharcado em suor.


Isto não é invulgar, não com os pesadelos que tendem a assombrar o
meu sono. Mas hoje é diferente. O dia ferve lá fora. Ainda é de ma­drugada
e o meu quarto já está pegajoso de humidade.
Levanto-me da cama e dirijo-me para a casa de banho, onde passo o
meu rosto húmido por água fresca. Não demoro muito tempo a ar­ranjar-me,
e visto, contrariado, uma camisa branca de algodão antes de sair pela porta
e...
E ali está ela.
Sai do quarto com a cabeça baixa, fecha a porta sem fazer baru­lho,
antes de olhar para cima e praticamente saltar ao ver-me.
— Pestes, Kai, não me assustes assim!
É a primeira vez que me chama pelo meu nome, e apercebo-me então
que me podia habituar ao som do mesmo a sair da sua boca. Parece
aperceber-se do que disse e aclara a voz antes de começar a andar pelo
corredor.
— Não te levantas demasiado cedo para um príncipe? — indaga por
cima do ombro. — O quê, não há pequeno-almoço na cama?
Apanho-a com facilidade, bastando três passos para ficar ao seu lado.
— Se tu não tens pequeno-almoço na cama, eu também não. Sou
apenas um concorrente normal, lembras-te? Para já, não sou um príncipe
encantado.
— Para começar, tu nunca o foste.
Dou uma gargalhada quando viramos a esquina, avistando a cozinha
logo à frente. O cheiro de biscoitos e ovos que vem de lá é suficiente para
me fazer mudar de rumo.
— Então... — começa Paedyn, provavelmente o início de um co­‐
mentário sarcástico que nunca vou ter o prazer de ouvir, porque agarro-lhe
no pulso e puxo-a para as portas da cozinha. Tenho a cer­teza de que está tão
faminta como eu e o pequeno-almoço só será servido daqui a uma hora.
Estou a fazer-nos um favor a ambos.
Aparentemente, Paedyn não partilha do meu sentimento. Os seus pés
cravam-se no chão na soleira das portas da cozinha, os seus olhos passam
pelos meus.
— O que é que tu... — começa, lançando-me aquele olhar assas­sino
que já me é tão familiar.
— Shh — Pressiono-lhe levemente o dedo nos lábios e as palavras
morrem-lhe na garganta. — Suponho que agora o meu trabalho será
alimentar-te, não é, Gray?
A sua expressão ruborizada faz-me rir baixinho antes de ouvir o
barulho dos sapatos, desviando relutantemente o meu olhar dos seus olhos
arregalados. Atraímos uma grande multidão. Vários cria­dos fitam-nos, a ver
a cena que têm diante de si. Mas eles afastam-se rapidamente, gargalhando
enquanto tentam fazer-se passar por ocupados.
— Olá, senhoras — grito, olhando à volta da sala para as criadas
coradas. — Hoje trouxe uma convidada muito mais interessante do que o
Kitt.
Coloco uma mão gentil nas costas de Paedyn, empurrando-a para
frente.
É uma pergunta, um teste experimental, um inquérito inocente. Posso
fazer isto?
Pergunto-me por breves instantes se estará a pensar em par­tir-me o
pulso, talvez a pensar em colocar-me uma adaga na garganta...
E depois descontrai-se, deixando-se levar pelo meu toque.
Uma resposta à minha pergunta sem pronunciar uma palavra. Sim.
Guio-a para o centro da cozinha, onde avistei Gail, atualmente
debruçada sobre o fogão.
— Bom dia, Gail. — Ela vira-se e o seu rosto ilumina-se quando me
vê. — Estás linda como sempre.
A minha boca treme quando subo para o balcão e me sento ao lado do
fogão onde ela cozinha pedaços de bacon estaladiços.
— Tu és tão lambe-botas, Kai — brinca, batendo-me levemente com
uma toalha. Os seus olhos pousam em Paedyn e ela endireita-se, acenando
com a cabeça. — Ah, menina Paedyn. É um prazer.
— Por favor — suspira Paedyn com um pequeno sorriso. — Me­nina,
não. Só Paedyn.
Quase consigo ver Gail a relaxar, provavelmente agradecendo à Peste
o facto de não serem necessárias formalidades.
— O que é que uma rapariga tão amorosa como tu está a fazer ao pé de
gente como ele? — Gail aponta o polegar na minha direção enquanto eu
roubo uma tira de bacon da frigideira atrás das suas costas.
Soltei uma gargalhada baixa.
— Oh, amorosa não é a palavra que eu usaria para a descrever, Gail.
Ainda há poucos dias apontou uma faca à minha garganta.
— Ele mereceu-o — afirma Paedyn calmamente, encolhendo os
ombros.
— Tenho a certeza que sim — responde Gail, sorrindo para ela. — Eu
provavelmente teria feito o mesmo.
Olha para mim, acenando com a cabeça para Paedyn.
— Gosto desta.
Paedyn inclina a cabeça para trás e ri-se. O meu corpo fica imó­vel
enquanto ouço o som do seu riso encher a cozinha. Tão quente, tão
brilhante. Depois, demasiado depressa, recompõe-se, clareia a garganta e
vira-se para mim:
— Então, tu e o Kitt são próximos da Gail?
A minha cabeça inclina-se para o lado enquanto a fixo, os meus olhos
nunca se desviando dos dela enquanto digo:
— Inseparáveis, não é Gail?
A cozinheira solta um suspiro alto.
— Inseparáveis, de facto. Os príncipes não me deixam em paz. — Os
seus olhos brilham de orgulho quando se encontram com os meus. — Sou a
única razão pela qual eles não são tão magros.
— Ah, sim — suspiro. — Temos de agradecer aos pães doces da Gail
por nos terem engordado.
Depois de a Gail ter informado Paedyn de algumas histórias em­‐
baraçosas da minha infância, conversamos casualmente, uma rotina regular
para a cozinheira e eu. Eu pergunto-lhe pelo filho, que está de guarda perto
de Scorches, enquanto ela me bate sempre que tento tirar comida. O meu
olhar prende-se em Paedyn, que me observa, curiosa, como se tentasse
perceber-me.
É engraçado, normalmente sou eu que lhe faço esse olhar.
Eu salto do balcão e dou um beijo na bochecha de Gail.
— Espero que não sintas a minha falta.
Depois viro-me para Paedyn, que está encostada casualmente ao
balcão, com um pequeno sorriso nos lábios. Dou um passo lento na sua
direção. A sua cabeça levanta-se para me olhar diretamente enquanto eu
encurto a distância entre nós, tão perto que consigo sentir o cheiro
persistente de lavanda na sua pele. Passo a mão pelas suas costas, com os
dedos a tocar no seu top.
A sua respiração fica intervalada e sinto um sorriso a crescer nos meus
lábios. Quando abre a boca para me repreender, recuo lentamente a minha
mão, segurando uma maçã.
— Sempre a alimentar-te, lembras-te?
Fica a olhar para o fruto antes de o arrancar da minha mão, aborre­cida.
E depois sorri, a ação deslumbrante ilumina-lhe o rosto enquanto esfrega a
maçã na minha camisa, mesmo por cima do meu coração.
Ela dá uma dentada, com os seus olhos fixos nos meus.
— E disseste tu que não eras um cavalheiro.

Quando chegamos ao campo de treinos, estou outra vez coberto de


suor.
Quase em uníssono, muitos de nós tiramos as camisolas, inca­pazes de
suportar o calor por mais tempo. Kitt e eu começamos a correr à volta do
recinto a um ritmo calmo. Observo como os concorrentes se juntam ou se
separam para treinar. Andy está neste momento na forma de um leopardo
vermelho, rodeando várias Sadies num dos ringues de treino em terra
batida. Como era de espe­rar, Braxton está no chão a fazer flexões, enquanto
Jax se ocupa a atirar pedras o mais longe que pode, para depois Saltar e
apanhá-las antes que caiam no chão.
Finalmente, os meus olhos traidores deslizam para uma ma­deixa de
cabelo prateado. Está a bater na árvore almofadada, como de costume. Faz
sempre isso. Os seus movimentos são rápidos, con­trolados, canalizando
uma emoção que não consigo identificar. Ela roda de repente, o seu braço
levantado antes que eu veja o movi­mento do seu pulso. Pestanejo e uma
faca afunda-se numa árvore a dez metros de distância.
Treinado. Com propósito. Preciso.
Mas não sou o único que a está a ver. O olhar de Kitt está preso nela,
quase com curiosidade. Aclaro a garganta e acelero o passo.
— Então, como te estás a sentir?
A cabeça de Kitt vira-se para mim.
— Neste momento? Cansado.
Rio-me com isso, batendo-lhe ao de leve no estômago.
— Sim, estás a ficar fora de forma, Kitty.
Ele empurra-me ao mencionar a sua alcunha de infância.
— Bem, não tenho propriamente uma razão para estar em forma, pois
não?
Apesar de dizer isto a brincar, não me escapa o tom amargo da sua
voz.
Suspiro, já sabendo do que se trata.
— Sabes porque é que não podes.
— Não faço ideia do que estás a falar.
— Não fazes, não — murmuro. — Kitt, tu és o próximo Rei de Ilya.
Precisamos de ti vivo. As Provas não são lugar para ti.
Merda.
Mal as palavras saíram da minha boca, soube que o tinham atingido
como se de um golpe físico se tratasse.
— O meu próprio reino também não é lugar para mim? — O seu riso é
seco. — Caramba, será que qualquer sítio fora do castelo não é
suficientemente seguro para o herdeiro?
— Kitt...
— Eu sei — interrompe-me, respirando fundo. — Sei que os nossos
deveres são diferentes. Sempre serão. Só gostava que os meus não fossem
tão aborrecidos.
Com isso, lança-me um sorriso débil, numa tentativa de aliviar o
ambiente.
Observo-o, à espera que diga o que ambos sabemos que tanto quer
dizer. Espero para ver se me diz que se sente encurralado, que sente estar
constantemente a tentar provar o seu valor, que gostaria de estar nas Provas
para poder fazer isso mesmo.
Mas ele nada diz, o seu sorriso é um pedido silencioso para vol­tarmos
a ser apenas irmãos e não o futuro rei e o seu Executor.
Por isso, forço um sorriso no meu rosto.
— Bem, pelo menos posso contar com o teu voto nas Provas.
A tensão parece desaparecer do corpo de Kitt, um sorriso exi­bindo as
suas emoções como sempre fez. Suspira de alívio com a mudança de
assunto antes de declarar:
— Oh, não sei se podes contar com o meu voto depois de me teres
chamado gordo há uns minutos, Kai Pie.
Odeio essa alcunha, e o idiota sabe-o. Por isso, ponho o meu pé de
fora, fazendo com que o próximo Rei de Ilya se atire para o chão antes de
me arrastar com ele.
Terminamos as nossas voltas, a pingar de suor enquanto o sol con­tinua
a fustigar-nos. Espreguiço-me rapidamente antes de entrar no ringue com
Kitt. Dançamos à volta um do outro, usando os nossos poderes e corpos
para lutar. Entrando num ritmo familiar, ponho-me a pensar no que o Kitt
dissera, preso nos meus pensamentos.
O mundo revira-se. Não. Eu reviro-me.
E depois estou deitado de costas, a tentar aspirar ar para os meus
pulmões que gritam.
Raios. Perdi a concentração.
— Apanhei-te no chão, Kai — Kitt sorri para mim. — Já lá vão uns
anos desde a última vez que isso aconteceu, não?
Percebo que está prestes a continuar a gabar-se, por isso não lhe dou
essa oportunidade.
A minha perna estende-se, apanhando-lhe os tornozelos e ati­rando-o
para o chão ao meu lado.
— Não te habitues — digo eu, apoiando a cabeça no chão e sor­rindo
para o céu.
Quando recupera o fôlego, solta uma gargalhada.
— Devia ter previsto isto... — afirma, enquanto eu, relutantemente, me
ponho de pé e, preguiçosamente, limpo a sujidade da minha roupa antes de
lhe oferecer a mão.
Separamo-nos, Kitt para treinar com uma Blair insistente, en­quanto eu
me dirijo para os alvos. Pego nas facas finas que estão na prateleira ao meu
lado e fito uma na minha mão antes de a atirar no ar.
Armas. Combate. Matar.
Foi para isto que fui criado. É por isso que serei eu o Executor e aquele
que lutará nas Provas, e não Kitt.
Ouço o bater de punhos e o ofegar silencioso a alguns metros à minha
esquerda, onde as árvores acolchoadas delimitam o campo de treino.
Ela está de volta ao trabalho.
Mais uma vez, está a dar golpes na árvore. Ou talvez nunca tenha
parado. Parece frustrada, zangada — desleixada. Os seus socos são mais
fracos e a sua forma é muito menos controlada. Está cansada e a sua postura
começa a sofrer por causa disso.
Sem pensar, pego numa faca, abanando a cabeça para o céu pelo que
estou prestes a fazer. Lanço a lâmina em direção ao alvo antes de me
aproximar dela, vindo por trás enquanto Paedyn continua a atacar as
almofadas. Estou agora nas suas costas e...
Ela gira num movimento rápido, enviando um cotovelo em direção à
minha cara. Mal tenho tempo para me esquivar antes de lhe agarrar o braço,
parando-o no ar. Abana a sua cabeça, os fios de cabelo prateado colam-se
ao suor no rosto.
Os meus lábios contorcem-se num sorriso.
— Devias continuar a praticar antes de tentares bater-me.
Ela suspira.
— Caso não te lembres de como te salvei, eu sei lutar. Não preciso de
tentar bater-te, Príncipe.
Paedyn solta-se do meu aperto e volta-se para a árvore, ignorando-me
ostensivamente.
Bem, assim não pode ser.
— Com essa forma, vais ter de tentar, Gray.
— Oh, a sério? — Não sei dizer se está a brincar ou se está a pensar
em bater-me neste preciso momento. Talvez as duas coisas.
— Sim, a sério. Tu estás desleixada. Nem parece teu — afirmo,
fazendo-a tossir. Mais uma vez, volta-se para a árvore e começa a dar mais
murros, decididamente farta da nossa conversa. Tem os nós dos dedos
vermelhos, quase a sangrar.
Porque é que ela faz isto a si própria?
Abano a cabeça, já sabendo a resposta. Porque já o fiz antes. Bati em
tapetes, paredes, qualquer coisa até o sangue pingar. Tudo para libertar a
raiva, a frustração, que estava reprimida dentro de mim.
E é exatamente isso que a Paedyn está a fazer.
Continua a balançar demasiado com os braços, em vez de usar todo o
corpo como impulso. Normalmente, é muito técnica quando se trata de
lutar, o que faz com que isto não seja algo comum. Mas está cansada e
frustrada.
E apesar de saber tudo isto, não consigo lutar contra a von­tade que
tenho de brincar com ela. Aproximo-me ainda mais das suas costas e coloco
as minhas mãos nas suas ancas, torcendo-lhe o corpo enquanto ela desfere
outro murro. Ela salta e tropeça em mim, com a cabeça a bater no meu peito
nu.
— Para de balançar com os braços e balança com o corpo — digo,
inclinando a cabeça para me aproximar do ouvido. Ela respira fundo
quando a minha mão lhe percorre o abdómen, o sussurro dos meus dedos
dançando ao longo da sua camisola justa.
— Envolve o teu núcleo, Gray.
O seu peito enche. Depois dá um passo em frente, o calor do seu corpo
abandonando o meu. As minhas mãos ainda estão plantadas nas suas ancas
quando ela se vira para me lançar um olhar irritado.
Sabe que tenho razão. E odeia isso mesmo.
Ficou preguiçosa e não se deu conta até agora, demasiado con­centrada
e frustrada para reparar. A ideia fez-me sorrir quando ela sopra, afastando
uma madeixa de cabelo dos olhos antes de se vol­tar para a árvore.
— Agora, dá um murro — murmuro, inclinando-me para acres­centar:
— corretamente.
Para minha surpresa, não discute, talvez por perceber que isso não lhe
vai servir de nada. Ela enquadra os ombros e salta sobre as solas dos pés.
Depois dá um murro, com o punho virado para o tapete, enquanto lhe rodo
as ancas em simultâneo. Há muito mais impulso assim, e consigo ver como
ficou mais forte desde que aqui está, com refeições e treino consistentes.
Quando os nós dos dedos se afundam no tapete, os músculos magros das
suas costas e braços são evidentes.
— Muito melhor — digo-lhe calmamente, apesar de estar impres­‐
sionado. Depois de um momento que foi definitivamente demasiado longo,
solto por fim as minhas mãos das suas ancas. — Agora, faz sozinha. Só
para ter a certeza de que estavas a prestar atenção.
Fica imóvel, virada para a árvore.
E depois há uma chicotada de cabelo prateado quando ela se vira,
lançando um belo golpe na minha cara.
Quase não me desvio a tempo. Só anos de luta permitem que os meus
reflexos reajam de modo tão rápido.
— E que tal? — diz ela com delicadeza, lançando-me aquele sor­riso
surpreendente.
Eu solto uma gargalhada.
— E se eu não me baixasse, Gray?
— Eu sabia que te ias desviar, Azer.
Está agora perto da minha cara, com um sorriso perverso a curvar-lhe
os lábios quando repete a frase exata que lhe disse depois de lhe ter atirado
uma faca.
— Parece que alguém está à procura de uma luta. — Os meus olhos
percorrem-lhe o corpo, demorando-me. Observo a sua postura nas pontas
dos pés, as suas mãos ligeiramente levantadas, e cada ponto de roupa
agarrado ao corpo.
— Tenho estado à espera de uma desculpa para apagar esse sorriso da
tua cara. — Ela atira-se a mim outra vez, sabendo que me vou es­quivar.
Está a brincar comigo.
— Não seria a primeira vez que alguém me diz isso — digo enquanto
nos cercamos um ao outro. Recuámos para uma pequena abertura entre os
alvos e a prateleira de armas. Mostro-lhe as palmas das mãos, rendendo-me
antes mesmo da luta começar. — Tu não queres mesmo fazer isto e eu
também não. Sobretudo porque não quero estragar essa tua cara bonita,
querida.
Ela revira-me os olhos.
— Curioso, porque eu não hesito em estragar a tua cara bonita.
Eu sorrio.
— Eu sabia que me achavas bonito.
Depois disso, tenta dar-me outro murro, mas eu esquivo-me com
facilidade. Continuamos à roda, lentamente. O cabelo húmido agarra-se-me
à testa e afasto-o da minha pele transpirada.
— Sabes que tenho oito poderes à minha disposição neste mo­mento, e
qualquer um deles pode derrubar-te. — Sorrio ao dizê-lo, vendo os seus
olhos estreitarem-se.
— Não quero lutar contra o teu poder, quero lutar contra ti. Só contigo.
— O seu olhar penetrante nunca deixa o meu enquanto fala, mesmo quando
os outros Elites voltam a sua atenção para nós, achando esta luta muito mais
interessante do que o treino.
— Então, só me queres a mim? Sem poderes?
— Sim. Só te quero a ti — respira, irritada comigo.
A minha boca torce-se num sorriso trocista.
— Eu sabia que tu me querias, Gray.
E com esse pequeno comentário, um pontapé alto vem de en­contro à
minha cara.
Bloqueio-a com as mãos e empurro-lhe a perna para baixo, mais uma
vez surpreendido pela sua força. Antes que possa respirar de novo, vejo um
belo murro na minha direção, este com o objetivo de atingir o seu alvo com
força.
Agarro-lhe o pulso estendido e puxo-a contra o meu peito, tor­cendo-
lhe o braço por baixo da omoplata.
— Vais ter de fazer melhor do que isso, Gray — sussurro-lhe ao
ouvido.
Ela grunhe e enfia o cotovelo do seu braço livre no meu estô­mago. O
ar sai-me dos pulmões, e ela aproveita-se disso. Rodando, ela balança o
cotovelo no alto em direção ao meu rosto, fazendo com que a minha cabeça
balance para o lado. A pressão que faço no seu braço perde força, e ela
solta-se do meu domínio antes de lançar um soco cruzado de direita
exatamente no mesmo ponto do meu maxilar.
Raios.
Mantenho a cabeça virada para o lado, a minha língua a percorrer o
interior da minha bochecha enquanto a boca se enche de sangue.
E depois o meu olhar desliza lentamente para ela. Está nas pontas dos
pés, com as mãos ainda levantadas numa posição de combate enquanto me
olha fixamente. E depois sorri, distraindo-me.
Rio-me, profunda e calmamente, antes de cuspir sangue para o chão.
— Muito melhor, Gray. — Sorrio enquanto a círculo, com os pu­nhos
instintivamente erguidos. — Talvez tenha mesmo que ripostar.
O seu sorriso desvanece-se antes de, subitamente, se atirar para o chão
e varrer a perna num arco largo, com a intenção de me atirar ao chão. Eu
salto depressa, mas ela volta a pôr-se de pé numa fração de segundo,
lançando uma combinação de murros. Ataca-me com uma série de socos no
queixo, golpes mistos e ganchos, mas eu mantenho-me na defesa,
bloqueando-lhe os punhos. Com movimentos rápi­dos, consegue finalmente
enviar um golpe certeiro ao meu estômago, roubando-me o fôlego.
Está bem. Se ela quer que eu lute, eu luto.
Eu não a vou magoar. Muito. Na verdade, ela é bastante hábil e, apesar
da minha brincadeira, é uma ótima lutadora. Mas com o meu maxilar e
estômago magoados, estou farto de brincadeiras.
Agacha-se antes que o meu punho acerte no ar para onde estava a sua
cabeça. Depois dá um pontapé com uma perna, balançando-a em direção às
minhas costelas. Agarro-lhe o tornozelo mesmo antes de me tocar e puxo-o
para a frente. Ela tropeça na minha direção, e eu agarro-lhe a coxa contra o
meu lado com uma mão, enquanto a outra lhe dá um golpe na maçã do
rosto. Foi um golpe mais suave, mas ainda assim suficientemente forte para
fazer com que a sua ca­beça tombasse.
Solto-lhe a perna ao mesmo tempo que coloco o meu pé atrás do seu
tornozelo ainda plantado no chão, dando-lhe um bom puxão. Ela cai, com
força. Uma tosse violenta sacode o seu corpo mal as costas batem na terra,
enquanto tenta inspirar ar para os pulmões.
Eu pairo sobre ela com um sorriso, assumindo que a luta aca­bou.
Errado. Ela dá-me um pontapé na virilha. Com força.
Eu viro-me, soltando uma gargalhada de dor.
— Golpe baixo, querida.
— Sim, mas eficaz — reclama, pondo-se de pé, ofegante mesmo com
um sorriso malicioso. As suas mãos estão levantadas, cobrindo a cara,
enquanto o resto do seu corpo está coberto de terra. E de­pois estamos a
trocar golpes e blocos enquanto brincamos um com o outro. É como uma
dança, e ela é uma parceira feroz.
Mas, por alguma razão, recuso-me a dar o meu peso total nos socos.
Eu controlo-me. Não o suficiente para me impedir de ripos­tar, mas o
suficiente para a manter praticamente intacta. Embora ela não esteja a fazer
o mesmo. Está a bater com força, a atacar sem parar, a querer magoar-me.
Num minuto estamos a namoriscar e no outro estamos a discu­tir —
possivelmente até as duas coisas ao mesmo tempo. Parece que não consigo
perceber esta rapariga cruel.
Depois de minutos a bloquear e a desferir golpes, estamos ambos
ofegantes com o calor insuportável. O suor escorre-me pela testa e pica-me
os olhos, enquanto o grupo que nos rodeia aplaude e grunhe de cada vez
que um de nós leva um golpe. Atinjo-a com uma com­binação de murros, o
meu golpe de queixo acerta-lhe no maxilar e levanta-lhe a cabeça. De
seguida, dou-lhe um murro preguiçoso de que ela se esquiva, agarrando o
meu braço estendido com uma mão e o ombro oposto com a outra. Por fim,
aproxima-se de mim e dá-me uma joelhada no estômago.
Mas deixou o braço que estava a segurar o meu ombro aberto e
exposto, por isso aproveito. Uso ambas as mãos para lhe agarrar o an­‐
tebraço e o pulso antes de me virar para que as minhas costas fiquem contra
o seu peito. Depois uso o meu impulso para a levantar do chão, atirando-a
por cima do meu ombro e para a terra com um estrondo.
Está de costas, arquejando com o impacto no chão duro, enquanto eu a
miro, esperando que tenha finalmente desistido. Enganei-me de novo. Com
uma velocidade surpreendente, agarra a parte de trás dos meus tornozelos
com as mãos e puxa com aquela sua força. Apa­nhado desprevenido,
consegue atingir-me os pés, atirando-me de costas para o chão.
Está em cima de mim num segundo, praticamente a saltar para cima do
meu peito, colocando os joelhos de cada lado. E depois le­vanta um punho
ensanguentado para trás, o seu sorriso triunfante.
Eu pego nela, ensanguentada, e agarro-me a ela.
— Se não fosse a minha situação atual — olho para o seu punho ainda
em posição de golpe —, isto podia ser muito mais divertido — digo
calmamente, olhando-a de cima a baixo antes de parar na­queles olhos azuis
que se alargam.
A sua atenção perde-se por um momento.
Perfeito.
Agarro-lhe na cintura e viro-nos. Agora estou em cima dela,
prendendo-lhe os pulsos na terra ao lado da cabeça. Ela está a tremer
debaixo de mim, olhando para a minha cara. Está coberta de terra, e eu não
devo estar diferente. Uma nódoa negra já começa a surgir na sua maçã do
rosto, e o sangue escorre-lhe do nariz e da boca.
— Muito bem, Gray — digo-lhe, aproximando-me. Ela contorce-se no
meu aperto, mas não faz nada para se soltar. — Tenho algu­mas críticas a
apresentar-te.
Ela para, e eu vejo um sorriso lento espalhar-se pelos seus lábios.
— Visto que és o futuro Executor, não tinha a certeza se era capaz de
mostrar misericórdia. Claramente, consegues.
Olho fixamente para ela, o meu rosto transformando-se numa máscara
fria perante as suas palavras. Depois levanta a cabeça do chão, diminuindo
a distância que os separa, enquanto respira.
— Sei que foste brando comigo.
Era assim tão óbvio ou as suas habilidades de Psíquica disseram-lhe
isso?
O meu olhar percorre-lhe o rosto, fixando-se na sujidade e no sangue
que lhe salpicam a pele, ocultando o ténue pó de sardas que sei que lhe
cobre o nariz.
— E o que te faz pensar isso?
Aproxima o rosto ainda mais, com as pestanas a tremer, os lá­bios
contraídos num sorriso e perigosamente perto do meu. A sua voz é
ofegante, quase inaudível, quando sussurra:
— Porque se não fosse fácil para ti, eu não seria capaz de fazer isto.
Mal tenho tempo para ficar confuso e ela dá-me uma cabeçada.
Quando a coroa da sua cabeça encontra o meu nariz, vejo es­trelas. Ela
solta-se e usa as duas pernas para me tirar de cima. Uma nuvem de pó
rodeia-me enquanto me deito na terra, piscando os olhos à dor latejante. A
pancada foi forte, mas não o suficiente para me impedir de cambalear até
ficar de pé e de a encarar, com sangue a escorrer do meu nariz partido.
Não perde um momento.
Os seus braços estão à volta do meu pescoço, o joelho bate-me no
estômago uma e outra vez. Antes que eu tenha tempo de reagir, usa a minha
perna dobrada como um banco, atirando as suas pró­prias pernas por cima
dos meus ombros num movimento rápido. Usando o seu impulso, atira-nos
ao chão. Caio na terra enquanto ela rola, não perdendo tempo para me
atacar. E depois os meus bra­ços estão outra vez presos debaixo dos seus
joelhos.
— Então, que tal a minha forma, Príncipe? — declara, com os lá­bios a
sangrar. — Tens alguma crítica agora?
O seu peso pressiona-me e eu solto uma gargalhada.
— Tenho algumas notas.
— Igualmente — leva a mão à bota, fazendo deslizar uma lâmina fina
do couro gasto. — Para começar, não gosto que os meus adver­sários sejam
brandos comigo.
Ela arrasta suavemente a ponta da faca pela minha maçã do rosto,
fazendo-me cócegas na pele.
Eu sorrio, apesar da lâmina que me atravessa na cara, o meu olhar a
arder no dela. De seguida, atento ao sangue que lhe escorre pela cara, a
pingar dos vários cortes e golpes que lhe fiz.
— Parece que afinal dei cabo da tua cara bonita, apesar dos meus
melhores esforços.
— Oh, isto não é nada. — Ela ri-se sem fôlego. — Devias ver os estra­‐
gos que fiz na tua cara bonita.
Os meus lábios esboçam um sorriso e levanto a cabeça em direção à
sua.
— Oh, querida, desde que continues a achar-me bonito, estou-me nas
tintas para o meu aspeto. — Aqueles olhos azuis em choque antes de me
olharem com irritação. Com um grunhido, ela vira-se e põe-se de pé. Eu
sigo-a, limpando a sujidade do meu corpo enquanto ela faz o mesmo.
Antes que ela se vire e vá embora, acrescento:
— É muito mais divertido treinar contigo do que com o Kitt. De­‐
víamos voltar a fazê-lo um dia destes.
Inclina a cabeça ligeiramente para o lado com um sorriso astuto.
— Nunca perderei a oportunidade de te dar uma tareia, Príncipe.
E com isso, afasta-se enquanto eu observo a sua forma em retirada.
— Oh, e Kai? — diz ela, com uma voz casual.
Desvio-me.
Virou-se, atirando a faca tão repentinamente que mal tive tempo de me
esquivar antes de ela se afundar no alvo de madeira a alguns metros atrás de
mim.
— Não quero a tua misericórdia. Da próxima vez que lutarmos —
consigo ver o azul dos seus olhos fumegantes de onde estou —,
impressiona-me.
Um assobio baixo soa da multidão — Kitt, claro. Ignorando-o, abano a
cabeça, sorrindo-lhe enquanto ela se afasta de mim.
De facto, é mesmo uma coisinha terrível.
Tenho quase a certeza de que não sou uma Vulgar. O meu poder pode
ser a habilidade de mentir sem esforço. Mentir sobre o que sou, em quem
confio, e como estou feliz por estar aqui.
Sim, as Provas são uma série de jogos físicos, mas são igualmente
mortíferas no que diz respeito aos jogos mentais. Tenho de conquis­tar as
pessoas, convencê-las de que gosto tanto destas Provas quanto elas. Quero
os seus votos para me manter viva, mas preciso dos seus votos se quiser
ganhar esta maldita coisa. Olho de relance para a mesa de jantar,
observando os ombros rígidos e as conversas afiadas. A tensão na sala é
quase cortante, sufocando-nos num silêncio cons­trangedor, preenchido
sobretudo pelo mastigar da comida. É seguro dizer que nos tornámos
ansiosos nos últimos tempos. A tal ponto que começou uma luta entre Ace e
Braxton no pátio de treino, uma luta que o primeiro, sem surpresa, iniciou.
Não consigo imaginar o que Ace deve ter feito para quebrar a compostura
paciente de Braxton, mas a luta precisou de quatro Imperiais para ser
interrompida, todos amontoando-se em cima dos dois concorrentes.
Passo os olhos sobre os meus adversários, parando no olhar verde que
já me fita. Respiro fundo, preparando-me para a raiva que sinto sempre que
vejo o Rei.
Não, não é o Rei.
Kitt olha para mim com olhos tão parecidos com os do seu pai que
tenho de afastar a imagem do Rei, forçando-me a concentrar no rapaz à
minha frente. O seu sorriso é caloroso, os seus olhos passeiam-se pelo meu
rosto. Retribuo o gesto para logo desviar, desesperada por evitá-lo, quando
os meus olhos se cruzam com alguém familiar.
De repente, sou engolida pela tempestade que é o seu olhar cin­zento e
firme, emoldurado por pestanas escuras. Kai inclina ligei­ramente a cabeça,
sorrindo para mim de uma forma que me põe a rodar nervosamente o anel
no meu polegar.
Espero que esteja a perder a cabeça a tentar perceber-me, tal como eu
faço com ele. O olhar de Kai desloca-se para o meu polegar e para o anel
que estou a rodar.
Há um brilho particular quando se inclina sobre a mesa na minha
direção.
— Alguma coisa te deixa nervosa, Gray?
Pestes, como é que uma pessoa pode ser tão irritante e tão fascinante?
— E o que te a dá impressão de que estou nervosa?
— Hmm — diz com voz melodiosa, passando uma mão sobre a sua
mandíbula áspera. — Devo começar pelo facto de estares a rodar esse anel
ou pelo mais óbvio, que é estares a segurar uma faca?
Olho para ele antes de olhar para baixo. Há, de facto, uma faca de
carne agarrada ao meu punho, embora não tenha a certeza de quando foi ali
parar. Atento à faca e solto uma gargalhada antes de a soltar. Quando o meu
olhar finalmente se encontra com o seu, percebo que me observa, mais
tranquilo do que antes.
E, irritantemente, estou a refletir o mesmo olhar que ele me lança,
embora estejamos a ver coisas muito diferentes.
Vejo um rapaz que é confuso e cativante, convencido e calculista. Mas
a cada novo pormenor que descubro sobre ele, menos tenho cer­tezas do que
pensava saber. Tem um ponto fraco apenas para aqueles que ama muito,
isso é claro. Mas construiu muros, protegeu-se, pôs máscaras, tornando-o
irritantemente difícil de decifrar.
A minha mente vagueia para a nossa luta, para a sensação de ter as
suas mãos em mim, firmes e fortes. Vê-lo lutar é como ver um dançarino,
alguém que sente a música na alma, nos ossos. Ele nas­ceu para a batalha.
Foi criado para matar.
E preciso de me lembrar disso.
Sou sacudida dos meus pensamentos quando um criado pega no meu
prato. Por puro instinto, os meus dedos quase que se movem para roubar um
ou dois pães doces antes de serem levados. Ainda não estou habituada a ter
refeições regulares, muito menos nutriti­vas, todos os dias, e dou por mim a
lutar constantemente contra os instintos de ladra.
As cadeiras batem no chão de mármore enquanto as pessoas à minha
volta se levantam para sair. Uma voz delicada e arejada fala por cima da
agitação, e todos nos detemos para a ouvir. A Rainha tem as mãos dobradas
à sua frente, apertadas sobre um vestido azul-marinho imaculado, que brilha
à luz do sol poente.
Sorri para nós e o brilho nos seus olhos faz-me lembrar vaga­mente de
Kai.
— Só faltam alguns dias para o primeiro baile! Minhas senhoras,
espero que já tenham escolhido um vestido ou que tenham falado com as
vossas criadas para vos arranjarem um.
Ainda não fiz nenhuma destas coisas, de certeza.
— Ah, e não se esqueçam de praticar as vossas danças — acres­centa a
Rainha com um sorriso. — Espero que queiram causar uma boa impressão
nas pessoas.
Oh, eu vou mesmo impressionar as pessoas.
Ela despede-se com um aceno de cabeça e eu dirijo-me rapida­mente
para a porta, tencionando voltar para o meu quarto e pedir conselhos a Ellie
sobre o vestido.
— Paedyn.
Os meus pés fraquejam, abrandando-me até parar. O calor da voz e o
uso do meu nome dizem-me que não é Kai que está atrás de mim.
Não, é o seu irmão.
Viro-me e vejo Kitt a caminhar na minha direção, com o seu ca­belo
louro despenteado e o seu sorriso encantador. Engulo em seco quando se
aproxima, quando olha para mim com aqueles olhos de cor esmeralda que
partilha com um assassino.
— Olá — diz, calorosamente. — Importas-te que te acompanhe? Sim.
— Claro que não — ouço-me a dizer por entre os dentes.
Começamos a andar pelo corredor, em direção à ala do castelo
dedicada aos concorrentes.
— Ainda não te dei os parabéns pela entrevista — afirma com uma
pitada de orgulho na voz. — Não te disse que te ias sair bem?
Recordo-me das entrevistas e daquilo que eu disse, ignorando o dever
de citar o lema das Provas.
Sobrevivência, Espero sobreviver a isto.
Quase me ri com a ideia.
— Bem, é bom saber que o futuro rei não me vai arrancar a ca­beça por
ter arruinado o momento onde deveria dizer o lema do seu reino.
Arrependo-me, mas é demasiado tarde para parar.
Ele ri-se.
O som é intenso, enchendo-me de alívio. Esfrega uma mão atrás do
pescoço, ainda a rir, enquanto diz:
— Na verdade, essa foi a minha parte preferida.
Lanço-lhe um olhar curioso.
— A sério?
— Sim — o riso abandona-lhe a voz quando se detém para olhar para
mim no meio do corredor. — Foi a coisa mais real que alguém já disse
nessas entrevistas.
Encaro-o, tentando ignorar a expressão vívida do seu pai.
— Queres dizer que foi a coisa mais estúpida que alguém já disse
nessas entrevistas.
O seu riso caloroso está a ecoar nas paredes mais uma vez.
— Talvez — ele faz uma pausa, olhando-me de cima a baixo. — Mas,
se isso te faz sentir melhor, acho que não te enganaste quando disseste que
esperavas sobreviver a isto e admiro-te por expressares o que realmente
sentes.
Fico tão chocada com a sinceridade das suas palavras que solto uma
gargalhada.
— Então deves admirar-me muitas vezes, porque tenho tendên­cia para
dizer o que penso muito mais do que devia.
Eu admiro-te muitas vezes.
Os seus olhos parecem proferir estas quatro palavras enquanto
procuram os meus, expressando algo que ele nunca pretendeu. E é a
primeira vez que consigo encontrar o seu olhar e não ver o rei.
Clareando a garganta, viro-me e continuo a descer o corredor. Kitt está
ao meu lado quando paramos em frente ao quarto, e eu já estou a abrir a
porta quando acrescento.
— Obrigada por me acompanhares. — Faço uma pausa para lhe
entregar um pequeno sorriso por cima do ombro. — Agora posso dizer que
fui escoltada pelo futuro rei.
Estou a atravessar a moldura da porta quando as palavras saem de si
agitadas.
— Sim, e se me deixares, faço-o novamente.
Viro-me, encontrando-o de repente, mesmo atrás de mim.
— O quê?
O seu rosto divide-se num sorriso que parece quase demasiado tímido
para ser usado por alguém da realeza.
— Miss Gray, aceita ser o meu par nos bailes?
Quase me engasgo com a próxima golfada de ar que inspiro. E, no
entanto, em vez de responder à sua pergunta, a minha pró­pria pergunta sem
sentido sai dos meus lábios com uma gargalhada ofegante.
— Desde quando é que eu sou Miss Gray?
Um sorriso malicioso substitui o seu sorriso tímido, fazendo-me
lembrar brevemente do seu irmão.
— Desde que começaste a referir-te a mim como «o futuro rei».
— E não gostas disso? Não gostas que te chame futuro rei? — A
minha curiosidade força a pergunta, uma vez que presumo que ele esteja
bastante apegado ao título e ao poder que o acompanha.
— Prefiro não ser chamado por um título que ainda não conquistei ou
que ainda não vivi — diz com calma.
— Foi por isso que te chamei o futuro rei.
Ele sorri, satisfeito por deixar o silêncio estender-se entre nós antes de
declarar.
— Não respondeu à minha pergunta, Miss Gray.
Eu ouço a oferta na sua voz, vejo a pergunta silenciosa naque­les olhos
que continuo a evitar. Dizer que sim a ser o seu par, e passaremos a ser
apenas Kitt e Paedyn. Dizer que não, e os títulos permanecerão.
Dizer que sim, e desempenho o meu papel.
Dizer que não, e perco a oportunidade de agradar o povo.
A ideia de me pendurar no braço do futuro rei e olhar para o rosto
semelhante do assassino do meu pai não é lá muito agradável, mas seria
para o povo de Ilya. Teria inegavelmente a sua atenção — um pensamento
aterrador, mas tentador.
Um sorriso prende-se aos meus lábios perante a imagem de uma antiga
Mundana e de um futuro governante de mãos dadas, a ima­gem perfeita de
opostos polares.
O homem mais poderoso a fazer par com a mulher mais impotente.
— Seria uma honra ser o teu par, Kitt — digo-lhe com calma, sor­rindo
ligeiramente.
Desempenha o teu papel.
Kitt sorri, parecendo aliviado.
— Esperava que dissesses isso, Paedyn.

— Ellie. Ajuda-me. Por favor.


Estou a olhar para o meu guarda-roupa, enlouquecendo com todas as
cores e estilos de vestidos pendurados lá dentro.
— Qual deles devo usar para o baile? Preciso de causar uma boa
impressão...
— Sim, precisas, e não vais fazê-lo com um desses vestidos —
interrompe-me Ellie, rindo baixinho.
Inclino a cabeça para trás e gemo.
— O que é que há de errado com estes? — Faço um gesto para os
vários vestidos deslumbrantes que tenho à minha disposição.
— Estes — aponta para o guarda-roupa — não são vestidos de baile.
No entanto, se usasses um deles, irias certamente causar uma impres­são. Só
que não seria uma boa impressão.
— Então, e agora? — Não consigo evitar que a irritação tome conta de
mim.
É óbvio que Ellie reparou, porque diz baixinho:
— Temos de mandar fazer um vestido para ti. Imediatamente. Co­nheço
várias costureiras excelentes que te podem arranjar um vestido lindo num
instante, só precisas de escolher o estilo e a tonalidade do verde.
Aparentemente, é do conhecimento geral que as mulheres ten­dem a
usar vestidos verdes nestes bailes, visto que a esmeralda é a cor do reino de
Ilya. Não é uma regra definida, mas algo que toda a gente faz. É típico.
Tradição.
Cansativo.
Ellie continua a falar das costureiras que conhece e de como o seu
trabalho é maravilhoso.
E depois apercebo-me. Conheço uma costureira, vivi com uma.
De repente, sinto-me esmagada pelo peso do que fiz. Não, do que não
fiz.
Adena.
A promessa que lhe fiz soa na minha cabeça, uma lembrança de como
me esqueci dela. Prometi visitá-la e, no entanto, só me lem­brei de o fazer
quando me foi conveniente.
Sou dominada pela culpa, quase sufocando-me com o seu aperto na
garganta. Engulo, massacrando-me em silêncio pelo meu egoísmo.
Mas esta não seria a primeira vez que seria egoísta no que diz respeito
a Adena.
Eu fui egoísta na noite em que ela me encontrou no telhado de uma
loja, há dois anos, magoada e histérica e à espera de que al­guém me
compreendesse. A chuva escorria-me pela cara enquanto eu estudava as
estrelas, misturando-se com as minhas lágrimas e magoando os cortes
recentes que tinha recebido de um Imperial nessa manhã. Adena puxou-se
até à extremidade do telhado para me dizer, sem fôlego, que tinha a certeza
que me ia encontrar lá em cima, tal como tinha a certeza de que nunca mais
iria escalar numa loja.
Mas o seu sorriso desvaneceu-se quando os seus olhos se cru­zaram
com os meus, que tremia na chuva, abraçada aos joelhos. Eu estava
cansada. Cansada de tentar ser algo que não era, enquanto ninguém sabia o
que eu era.
Por isso, nessa noite, decidi estudar o céu, procurando semelhanças
entre nós. Eu estava só, tal como imagino as estrelas, observadas por toda a
gente, mas demasiado longe para serem real­mente vistas.
E, por uma vez, queria ser vista por alguém.
Foi egoísmo da minha parte contar à Adena o meu passado, o meu
presente e tudo o que está no meio. Só o facto de saber o que sou coloca-a
em perigo e, no entanto, apesar disso, só nos tornámos ainda mais
próximas.
Ela acreditou em mim. Ouviu quando a verdade saiu de mim num
soluço, ficou comigo mesmo depois de saber o que eu sou.
E nunca me senti tão aliviada por um momento de fraqueza.
— Ellie — digo-lhe devagar, deliberadamente. — E se eu souber de
uma costureira?
Pensa por um momento antes de responder com um encolher de
ombros.
— Não há problema. Encontraste alguém aqui? No palácio?
— Não, ela é de Loot. — Ellie lança-me um olhar cético, mas eu
continuo. — Ela é incrível. Garanto-te que me faria o melhor vestido que
Ilya alguma vez já viu.
— Bem, suponho que posso falar com o Lenny sobre acompa­nhar-te
até lá para a ires buscar — acrescenta rapidamente. — Desde que te seja
permitido.
As minhas sobrancelhas uniram-se.
— Ir buscá-la?
— Sim. Se tiveres autorização para ir, ela volta contigo e é con­tratada
aqui como tua costureira pessoal até as Provas terminarem. Ou até... —
interrompe-se.
O resto das suas palavras são abafadas pelo bombear do sangue que
bate nos meus ouvidos, e o meu coração está a acelerar tão de­pressa que me
sinto como se estivesse no meio de uma luta.
Adena vai viver aqui. Comigo.
Vai ser alimentada e paga. Vou poder vê-la. Vai estar em segu­rança. O
alívio apodera-se de mim, tentando substituir a culpa que ainda sinto.
Ellie promete que vai falar com Lenny sobre levar-me a Loot antes de
nos despedirmos e sair pela porta.
Deito-me na cama, olhando para a intrincada moldura do teto.
Não sei ao certo quanto tempo fiquei ali deitada, deixando que a
esperança e a felicidade me invadissem com a ideia de ver Adena sã e salva.
E depois uma leve batida na porta faz com que os meus pensa­mentos
se desfaçam.
Pestes, deve ser quase meia-noite, quem será?
Agarro na minha adaga guardada debaixo da almofada, seguro-a solta
ao meu lado enquanto atravesso o quarto. Quando abro a porta, os meus
olhos encontram um par de olhos cinzentos do outro lado.
O olhar de Kai desce para a adaga que tenho na mão antes de voltar ao
meu rosto, demorando o olhar na maçã do rosto magoada e no lábio ferido
que ele tão generosamente me deu na nossa luta desta manhã. O meu
orgulho não permitiu que os Curandeiros tra­tassem dos meus ferimentos e,
sem surpresa, o príncipe parece ter tido o mesmo problema. Leves nódoas
negras apareceram-lhe no maxilar, uma lembrança de cada golpe que lhe
dei.
— Tencionas voltar a encostar isso à minha garganta? — Os lábios de
Kai contorcem-se enquanto aponta para a adaga que tenho na mão.
— Não me tentes — afirmo, passando os dedos pela borda lisa e macia
da lâmina. — Estás aqui para uma desforra?
Enfia as mãos nos bolsos das calças estreitas e escuras, cruza os pés e
encosta-se à ombreira da porta.
— Não me tentes.
O cabelo cor de ébano cai-lhe sobre a testa, fazendo sobressair os seus
olhos cinzentos contra as ondas de tinta. É evidente que não se barbeou,
deixando uma sombra de barba por fazer a cobrir o maxilar pontiagudo,
apenas enfatizada pelas nódoas negras que lhe deixei.
— O que é que queres, Azer?
— Também senti a tua falta, Gray — diz Kai, distraído com alguma
coisa da sua camisa fina. Depois, recentra o seu olhar em mim, as suas
longas pestanas em total contraste com os seus olhos claros. — Estou aqui
para a tua aula.
Eu dou uma gargalhada.
— Desculpa, a minha quê?
— A tua aula. — Kai vira a cabeça para o lado, com um misto de
graça e intriga. — Tu és Psíquica. Não pressentiste que isto ia acontecer?
— Não é assim que funciona, e tu sabes — digo, com um tom que
irritante e confuso. — Estás a falar do...
— Então, vais mesmo ao baile para pisar os pés do meu irmão? — Ele
solta uma gargalhada. — Tu és cheia de surpresas, não és?
— Não, não lhe pisaria os pés. Talvez tropeçasse nos meus, mas... —
Deixo-me levar, ao ver o seu sorriso crescer. Aquela covinha goza comigo,
tentando-me a usar a adaga que pacientemente espera na minha palma.
E depois finalmente compreendo as suas palavras.
— Aulas de dança? É por isso que estás aqui? — solto uma garga­lhada
ofegante, pensando que ele devia estar a brincar.
— Demorou — declara, empurrando a moldura da porta e, dando um
passo em frente. — Vá lá, não temos a noite toda.
Depois sorri.
— A não ser que queiras que fiquemos fora a noite inteira.
Não me mexo.
— Não. Nem pensar. Não quero nem preciso da tua ajuda —
apresento-lho um sorriso falso. — Mas é bom saber que estás sempre tão
desejoso de a oferecer.
Agarro na porta e começo a fechá-la quando ele enfia um sapato
brilhante quarto dentro. Abre a porta, os seus braços fortes empurram-na
para trás, apesar dos meus esforços. Com a mão ainda firme na madeira,
aproxima-se o suficiente para murmurar:
— Como sempre, tu és demasiado teimosa para admitir que precisas
da minha ajuda.
— O que eu preciso é que saias do meu quarto. — Estou a sorrir, mas
não com intenção.
E, no entanto, eu sei que ele tem razão. Sei que devia aceitar a sua
oferta e praticar para evitar fazer figura de parva ao lado do futuro rei. Mas
não me agrada que ele me possa fazer isto, não me agrada que me esteja a
ajudar. De novo.
— O que tu precisas e o que tu queres são duas coisas muito di­‐
ferentes. — O cheiro a pinho invade-me quando ele baixa a cabeça para
junto da minha, obrigando-me a encontrar o seu olhar. — Vá lá, Gray, tu és
mais esperta do que isso. Sabes que precisas de causar uma boa impressão
no baile. E, ao lado do meu irmão, tens muitos mais olhos postos em ti do
que normalmente tens.
É como se lesse os meus pensamentos, os resumisse e os man­dasse de
volta para mim. Sei que tem razão, e ele também o sabe.
Deve ter visto a luta a abandonar os meus olhos, porque um sor­riso
torce-lhe os lábios.
— É bom ver que recuperaste o juízo. Vamos lá então.
Passo por ele de cabeça erguida. Eu escolhi fazer isto, não ele, e ele
precisa de se lembrar disso.
— Onde é que vamos? — pergunto-lhe enquanto me conduz até ao fim
do corredor, passando por uma escada em espiral coberta por uma alcatifa
de veludo cor de esmeralda.
A sombra de um sorriso instala-se-lhe no rosto.
— Um sítio com espaço suficiente para tu caíres por todo o lado.
Quando chegamos ao topo das escadas, sou levada por um cor­redor
largo, ladeado de quadros e molduras rodeados de pérolas, agarrados às
paredes e ao teto. Os meus olhos percorrem a fina ca­mada de pó que cobre
as molduras espalhadas pela parede.
Já há algum tempo que ninguém vem cá acima.
Acontece que este andar é um dos poucos que ainda não explo­rei, visto
que já saí do meu quarto várias vezes na calada da noite para conhecer a
disposição do castelo e as suas possíveis saídas. Seja personalidade ou
paranoia, mas não saber o que me rodeia assusta-me quase tanto quanto as
Provas.
Como Lenny não guarda a minha porta, não consigo resistir à vontade
de bisbilhotar. De facto, não vejo muito o meu Imperial e,
surpreendentemente, essa ideia provoca-me uma súbita tristeza. Estou
chocada com o quanto gosto genuinamente da sua companhia e ainda mais
chocada com o facto de pensar tais coisas sobre um Imperial.
Um tapete irregular apanha-me o pé, fazendo com que o chão se
aproxime da minha cara. Estou prestes a esparramar-me no tapete com
padrões em espiral quando um braço desliza à volta da minha cintura, firme
e com uma sensação irritantemente familiar.
— Aí está o trabalho de pés desajeitados de que estamos a tentar
livrar-te — diz Kai, com um sorriso evidente na voz. Ele põe-me de pé,
estabilizando-me com uma mão que eu afasto, ruborizada e sentindo a
necessidade de criar algum espaço entre nós.
Levanta as mãos e dá um passo atrás, a gozar, antes de se voltar para o
corredor. À medida que continuamos a andar, a pergunta que estava à
espera de fazer passa finalmente pelos meus lábios.
— Porque é que estás a fazer isto?
Kai para a minha frente. Vira-se lentamente, parecendo quase divertido
com a pergunta.
— É simples, a sério. Vais a este baile com o meu irmão e ele pre­cisa
de estar o melhor possível.
Estudo-lhe o rosto, observo como uma parte da sua máscara se quebra,
mostrando todo o amor e devoção que tem pelo irmão, todo o esforço que
está disposto a fazer por ele. É como se tivesse um dever a cumprir, como
se já fosse o Executor e isto fosse muito mais impor­tante do que impedir-
me de pisar os calos do seu irmão.
De repente, a sua máscara volta a aparecer e eu fico a olhar para aquele
rosto frio, sem a emoção de outrora. Quando não consigo pen­sar numa
resposta, começo a andar. Viramos à direita num corredor mais pequeno e
dirigimo-nos para a última porta à esquerda. Ele agarra a maçaneta e abre-a,
revelando um quarto, iluminado apenas pelo luar que entra pela janela.
Se eu achava que o meu quarto era magnífico, não é nada compa­rado
com este. Tem facilmente o dobro do tamanho do meu, fazendo-o parecer
mais uma casa do que um quarto de solteiro. Apesar de ter uma cama com
dossel, uma cómoda e uma secretária — tal como o meu — este quarto
parece ter sido habitado. A estante está a trans­bordar, com livros
empilhados em ângulos estranhos para caberem.
Várias das suas capas gastas dizem-me que consistem em estratégia,
combate e... poesia.
Interessante.
Tudo o que enche a sala é mais bonito do que o meu, mas está usado e
gasto.
Este é o quarto dele — o seu verdadeiro quarto.
A secretária está coberta de manchas de tinta escura e há arma­duras
empilhadas a um canto. Os meus olhos percorrem os grandes cortes que
cobrem os postes da cama, onde faltam pedaços de ma­deira escura.
Cortes de espada.
Já atacou os postes da cama com a espada. Várias vezes.
Suponho que isso seja melhor do que atacar um humano com uma
espada, embora tenha a certeza de que ele também faz isso. Os meus olhos
voltam-se finalmente para Kai. Está encostado à om­breira da porta,
observando-me com curiosidade enquanto estou no meio do seu quarto,
embora não me lembre de ter tomado conta de tanto espaço.
Aceno com a cabeça para os postes de madeira lascada da sua cama
maciça, sem saber o que dizer.
— É uma forma interessante de aliviar o stresse.
— Também o é esmurrar um tapete até os punhos sangrarem. — Dá-
me um leve sorriso enquanto atravessa a sala até à secretária, com as mãos
nos bolsos, antes de começar a mexer na engenhoca que está em cima dela
— uma que eu reconheço.
O meu pai tinha um gira-discos, um com uma grande corneta dourada
onde eu costumava enfiar a cabeça quando era criança. Ga­nhava bem como
Curandeiro respeitado nos bairros de lata, mas o gira-discos era a coisa mais
bonita que tínhamos. Há uns anos, costu­mava pôr os meus pés em cima dos
dele para dançarmos na cozinha. Bem, ele dançava. Eu ficava a
acompanhar. Mas nunca teve a opor­tunidade de me ensinar
verdadeiramente a dançar sem literalmente pisar os pés de alguém.
O estalido da agulha a bater num disco é familiar, embora o som da
valsa suave que se segue não o seja. Kai vira-se, desapertando casualmente
metade da camisa e fazendo com que os meus olhos procurem outro ponto
de interesse que não seja o seu peito bron­zeado e a sua tatuagem ondulante.
E, de repente, está diante de mim, observando-me da cabeça aos pés
com um ligeiro sorriso que mostra a covinha mais profunda da sua
bochecha direita. O seu olhar é como uma carícia, e demora o seu tempo.
Recuso-me a contorcer-me sob aquela sensação pene­trante, sabendo como
ele adoraria ver-me a mexer.
Não querendo ser a única a ser alvo de olhares alheios, arrasto o meu
olhar inquiridor sobre os seus traços faciais fortes e o seu corpo ainda mais
robusto. Tudo nele é letal. Aquele sorriso. Aqueles olhos. A sua mente
astuta.
— Tens a certeza de que vais conseguir concentrar-te na dança ou eu
serei uma distração desafiante, querida?
As suas palavras assustam-me e os meus olhos voltam a fixar-se rios
seus. Eu suspiro.
— Acho que me desenrasco, obrigada.
Devolve-me um olhar duvidoso.
— Acho que vamos descobrir, não é? — Espero que estenda a mão e
me puxe para uma dança, e a ideia faz o meu coração disparar, preparando-
me para sentir as suas mãos no meu corpo.
Mas não se mexe, não tenta diminuir a distância entre nós.
Ótimo.
— Primeiro, vais aprender apenas os passos de uma valsa nor­mal —
diz ele. — Sobretudo porque não quero que me pises.
Com as mãos ainda nos bolsos, Kai entra e sai, de um lado para o
outro, mostrando-me o básico. É tão gracioso, tão elegante, tão natural.
Luta. Para ele, o combate é também uma dança.
Sinto-me rígida e de repente tão insegura de mim própria. Mesmo com
as mãos ainda nos bolsos, Kai acompanha-me facilmente, em­bora não se
atreva a aproximar-se o suficiente para ser pisado pelos meus pés
desajeitados.
Suspiro, irritada comigo mesma e com o príncipe sorridente à minha
frente.
— Relaxa — murmura Kai à minha frente, com mais do que uma
pitada de humor na sua voz. — Estás a pensar demasiado. Não cal­cules,
move-te apenas com a música.
Olho para cima e vejo-o já a olhar para mim com um sorriso.
— Além disso, sabes que isto é uma dança, não sabes? Por isso, as
lutas não são necessárias.
Só então reparo como o meu corpo está tenso, as mãos ligeira­mente
levantadas como se estivessem prontas para atacar. Endireito-me e passo
uma mão pelo cabelo que cai da minha trança solta. Estou estranhamente...
nervosa. E isso é muito irritante.
Isto seria muito mais fácil se ele não estivesse a olhar para mim.
Outra valsa termina, substituída por uma melodia lenta e suave. A
minha cabeça está baixa, com melenas de cabelo a caírem-me na cara,
enquanto vejo os meus pés a acompanharem a música.
Uma pressão na minha cintura faz-me saltar.
Como um reflexo, a minha mão move-se em direção à faca, agora na
bainha das dobras do meu vestido, mas uma mão calejada agarra-me o
pulso.
— As facas também não são necessárias para dançar — declara Kai
com uma gargalhada baixa. Segurando o meu olhar, os seus dedos ásperos
deslizam lentamente do meu pulso para a palma da minha mão, antes de
cruzar a sua mão com a minha, levantando-a no ar.
Mas é a sua outra mão que prende a minha atenção, a que se ins­talou
confortavelmente na parte inferior das minhas costas. A que me está a puxar
para si. Através do tecido fino do vestido que usei para o jantar, consigo
sentir o calor da palma a infiltrar-se nas minhas costas.
Fico a olhar para ele enquanto me puxa para junto de si. Não é que não
soubesse que isto ia acontecer, só não estava à espera que fosse tão
repentino. Ele olha para mim com uma expressão expectante, antes de soltar
uma gargalhada suave e deslizar a sua mão das minhas cos­tas, provocando-
me uma sensação de frio com a sua ausência. Pega na minha outra mão e
levanta-a até ao ombro, deixando-a cair sobre a sua camisa fina. Sinto todos
os músculos a mexerem por baixo dela quando volta a colocar a mão nas
minhas costas, apertando-a com firmeza contra o meu vestido.
— Vamos ver o que aprendeste — diz ele suavemente, enquanto os
seus pés começam a mover-se ao ritmo da música. Eu tento segui-lo,
conseguindo fazer coincidir os meus passos com os dele. Ele lidera
facilmente, guiando-me com confiança através da dança.
Os meus olhos percorrem a sala e descem até aos meus pés, con­tando
cada passo. A pressão nas minhas costas desaparece subi­tamente quando os
dedos me agarram o queixo, inclinando-me a cabeça para cima.
— Nunca vais aprender se continuares a olhar para os pés, Gray. Olha
para mim.
Ele sorri, voltando a colocar a mão nas minhas costas.
— Isso não deve ser muito difícil.
Reviro os olhos, abrindo a boca para fazer um comentário, mas acabo
por fazer uma pergunta.
— Como é que sabes que o Kitt me convidou para o baile?
O riso de Kai seco, oco.
— Não sou nenhum Psíquico, mas não foi difícil juntar as peças. —
Quando fico a olhar para ele, suspira e continua: — Eu conheço o meu
irmão e, por isso, sabia que ele te ia convidar.
— Essa foi uma resposta terrível — digo-lhe simplesmente.
— E tu continuas a ser uma péssima dançarina, por isso o meu
trabalho está longe de estar terminado.
Suspiro.
— Oh — acrescenta Kai casualmente —, ele também pode ter men­‐
cionado que te ia convidar.
Outra gargalhada escapa-me antes que a consiga parar, e aperto os
lábios para abafar o som. Os meus olhos caem para o seu peito, que está
demasiado perto, lembrando-me que estamos demasiado amigáveis para
sermos concorrentes, para sermos inimigos nestas provas.
E no entanto, aqui estou eu, a dançar com ele no seu quarto. Sozinha.
Na escuridão.
Não sabia que era possível, mas de repente sinto-me ainda mais tensa
do que antes.
Kai sente a minha rigidez no seu abraço e inclina-se para mais perto.
— Tu estás tão dura como uma tábua, Gray. Descontrai.
Isso. Não. Ajuda.
Tento e não consigo derreter-me no seu abraço como uma boa parceira
de dança deve fazer.
Estou sem esperança. Não tenho esperança.
Mas o príncipe não desiste tão facilmente. Não, envolve o seu braço à
volta da minha cintura e puxa-me para si. Arrasto os meus pés, sem querer
diminuir a pequena distância que ainda nos separa.
Uma covinha fica à espreita, pouco visível à luz fraca.
— Então, o que é que aprendemos hoje? — pergunta ele, demasiado
divertido como sempre. — Primeiro, as adagas não são necessárias para
dançar e, segundo, tens de estar perto do teu par durante a dança. E,
surpreendentemente, tu pareces estar a ter mais dificulda­des com a segunda.
— Preferes que tenha dificuldade com a primeira e te enfie uma adaga
na garganta? — Faço uma pausa. — Outra vez.
— Tão previsível — ri-se, o som invade-me antes de murmurar. —
Sempre tão cruel e desejosa de me apunhalar.
Ele está muito perto de mim. Demasiado perto de mim.
E é por estar tão distraída com esse facto que o meu pé aterra em cima
do dele, e eu tropeço para a frente colidindo com a sua estrutura sólida. As
suas mãos envolvem a minha cintura, estabilizando-me antes de recuperar
os meus sentidos e afastar-me. Uma gargalhada profunda sai do seu peito,
acompanhada de um sorriso genuíno, um sorriso que só o vi usar perto do
seu irmão.
Letal.
— Como é que uma lutadora pode ter um jogo de pés tão mau? — Os
seus olhos dançam entre os meus. — Tu és cheia de surpresas.
— Bem, surpresa, já acabei com esta lição — digo-lhe de repente,
virando-me para fora do seu alcance. Estou de costas viradas quando ele me
agarra o pulso, rodando e puxando-me novamente.
— Mas ainda me deves mais uma dança. — O cabelo ondulado cai-lhe
sobre a testa, o seu olhar praticamente implora-me para que con­tinue a
meter-me com ele.
— Está bem — digo, fazendo-lhe a vontade. — Outra dança para a
resposta a uma pergunta.
As suas sobrancelhas erguem-se.
— Isso é um suborno, Gray?
— São estas as minhas condições. É pegar ou largar, Príncipe.
A sua resposta é um riso baixo. Vira a cabeça para longe de mim, para
pensar antes de finalmente me encarar.
Lentamente, volta a levantar a minha mão no ar e pousa a outra mão
confortavelmente na parte inferior das minhas costas.
— Combinado.
Começa outra valsa lenta, ocupando-me com a música e passos,
afogando-me na dança. Quando não consigo ignorar a sensação dos seus
olhos a observarem-me tão atentamente, vou ao encontro.
— Muito bem, o que é que queres saber? — pergunta Kai,
conduzindo-me pela dança.
Não faço a mínima ideia.
Olha para mim, através do meu ser, à espera de uma resposta. Os seus
olhos cinzentos são como lascas de gelo, cacos de vidro. Como ambos, o
seu olhar é pontiagudo e penetrante. Frio mas cativante. Belo como só as
coisas mortais podem ser.
E assim, de repente, não consigo pensar numa única coisa que lhe
queira perguntar. Ponho o meu cérebro a pensar numa pergunta e acabo por
dizer a primeira coisa que me vem à cabeça.
— Desejavas que fosses tu? — Ele pestaneja, com as pestanas escu­ras
a bater. — Desejavas ser o futuro Rei de Ilya? O herdeiro?
Não é de todo a pergunta que eu pensava fazer, mas aqui estamos.
— Não — diz ele, mantendo o meu olhar fixo.
Levanto as sobrancelhas numa pergunta silenciosa. Quando não
continua, digo-lhe:
— É só isso? «Não»?
— Tu tens a tua resposta, e eu tenho a minha dança. Era esse o acordo,
querida.

Mal consigo respirar.


Os finos braços de Adena estão tão apertados à volta do meu pescoço
que começo a ver manchas. Ela gritou e guinchou quando me viu à espera
junto à Fortaleza.
A minha melhor amiga. A minha parceira literal no crime. Sã e salva.
Bonita e alegre como sempre.
Lenny chegou ao meu quarto de manhã cedo, pronto para me levar a
Loot e ir buscar a minha nova costureira. Aparentemente, tinha obtido
aprovação para o fazer, embora eu estivesse demasiado excitada para me
dar ao trabalho de perguntar pormenores. Talvez até tenha guinchado.
— Vou ser a tua quê?! — Adena grita.
Suspiro, embora soe mais como uma gargalhada.
— A minha costureira pessoal. — Já lhe disse os pormenores umas
três vezes. — Quer dizer, a não ser que não queiras o trabalho...
— Estás doida?! Claro que quero o emprego, Pae! — Ela está
praticamente a saltar enquanto nos dirigimos para a carruagem que nos
aguarda no outro extremo de Loot. Observo o mercado e o beco largo à
minha frente. A minha casa parece tão aborrecida e triste como quando a
deixei. Deixo-me levar pelo som das asneiras e dos negó­cios, pelo cheiro a
peixe e a especiarias. Tudo familiar. Tudo igual.
Lenny abre a porta da carruagem e tanto eu quanto Adena nos
acomodamos antes de começarmos a subir a rua irregular de para­‐
lelepípedos, em direção ao palácio.
— Não acredito que isto esteja a acontecer — confessa Adena, es­‐
pantada, enquanto olha pela pequena janela. Volta-se para mim, olhando
para o vestido casual que Ellie me obrigou a vestir com os olhos
arregalados. — Não acredito nisto.
Olha para a minha cara e depois para o vestido antes de agarrar na
bainha da saia e inspecioná-la.
— Não te habitues a... isto. — Faço um gesto para o vestido. —
Normalmente uso calças durante o dia, mas a Ellie insistiu que eu usasse
um vestido para causar boa impressão nas pessoas que me iam ver no Loot.
E havia de facto muita gente. Apesar de ser muito cedo, o mer­cado
estava repleto de homens, mulheres e crianças, todos a olha­rem para mim
enquanto passava.
Não tenho a certeza da impressão que lhes causei, mas não deixei de a
causar.
— Parece que eu e a Ellie nos vamos dar muito bem — diz Adena,
com um sorriso radiante.
— Oh, tenho a certeza que sim — rio-me antes de continuar. — E vais
ser paga, alimentada e ter uma cama a sério para dormir à noite. Dis­seram-
me que há uma sala de costura onde vais passar a maior parte do teu tempo,
com todos os tipos de tecido com que possas sonhar.
Os olhos de Adena ficam brilhantes ao pensar nisso.
— O céu. Vou estar no céu.
Ponho-a ao corrente de tudo — a formação, as entrevistas, os con­‐
correntes. Ela faz o mesmo, contando-me o seu tempo em Loot en­quanto
estive fora.
— Já estava a pensar que te tinhas esquecido de mim! — declara
Adena com uma gargalhada, afastando a ideia. — E agora, aqui estás tu, a
levar-me de volta contigo!
Uma onda de culpa atinge-me, ameaçando afogar-me.
Paro antes de abrir a boca para pedir perdão, para lhe dizer que
lamento, para...
— Nunca me poderia esquecer de ti, A.
Nunca mais.
Ela sorri enquanto o meu coração bate descontroladamente no meu
peito. Ela é tão boa, e eu sou tão culpada. Sou fraca por lhe ter escondido a
verdade, mas a cada batida do meu coração, prometo nunca mais o fazer.
— Oh, espera! Com quem é que vais ao baile? — A pergunta aguda de
Adena atravessa os meus pensamentos confusos.
Claro que Adena saberia esse pormenor das Provas, de como todos
temos de formar pares para os bailes. Ela adora este tipo de coisas. Passo
uma mão pelo cabelo, penteando-o para fora da cara.
— Bem... Vou com o Kitt.
Adena pestaneja. E depois grita.
— Kitt? Queres dizer, o herdeiro? — Está praticamente a hiperventilar,
abanando-se com as mãos.
— Não é nada de especial, A. Exceto que preciso de ter bom as­peto —
afirmo, tentando acalmá-la.
— Bem, então vieste ter com a rapariga certa — diz ela com
confiança. — Uau, está bem, então tens de estar mesmo bonita.
Ela passa a mão na franja encaracolada que lhe cai na testa.
— Bem, há vários tons bonitos de verde que podemos escolher.
Podemos pôr-te um cor de esmeralda, ou salva...
Levanto a mão, com um sorriso a curvar os meus lábios.
— Na verdade, tenho uma cor diferente em mente.
Estou num mar de preto. Casacos de fato pretos, gravatas pre­tas,
sapatos pretos. Como tinta, os homens que enchem o salão de baile
rodopiam nos pisos de mármore branco, palavras rabiscadas à pressa num
pedaço de pergaminho brilhante.
Os criados dançam pela sala, embora não tenham música para os
acompanhar enquanto se movimentam por entre a multidão. Fazem as suas
voltas, trazendo vinho, champanhe e petiscos extra­vagantes em pratos ainda
mais extravagantes.
Uma vez que as Provas são diferentes este ano — graças a mim e aos
testes do futuro Executor — não é de estranhar que os bailes também sejam
fora do comum. Normalmente, os bailes da Prova são apenas isso: bailes.
Consistem em demasiadas horas de dança e conversa fiada, que requerem
quantidades excessivas de álcool para serem ultrapassadas.
Mas o primeiro baile desta Prova começa com um banquete.
Corpos vestidos de preto pontilham a sala, homens de todas as idades a
circular. Isto é, homens de todas as idades que são da no­breza, de sangue
real ou que, de alguma forma, conseguiram um convite para o primeiro
baile das Provas da Purga.
Depois de uma hora a saltitar entre multidões de homens, a fazer
conversa fiada com jovens e velhos, amigos e inimigos, estou inquieto e
aborrecido, na melhor das hipóteses. Kitt e eu retirámo-nos e sentámo-nos
numa das muitas mesas bonitas que ladeiam o salão de baile, repletas de
bebidas.
Passei o tempo a admirar a minha sala preferida do castelo,
contemplando-a pela enésima vez. As suas colunas de mármore e as
grandes janelas que vão do chão até ao teto conferem-lhe um aspeto etéreo.
Os candelabros caem do teto, pingando diamantes e elegância. Dois
conjuntos de escadas com almofadas de esmeralda espelham-se enquanto
descem para o chão de mármore a partir de uma varanda no alto. Portas
douradas e detalhadas abrem-se para a plataforma de meio-círculo com
vista para o chão do salão de baile, que é tão bri­lhante que consigo ver o
meu próprio reflexo aborrecido nele.
Bebo o meu segundo copo de vinho, desejando ter algo mais forte.
A qualquer momento.
A pequena orquestra, sentada no canto mais afastado do ele­gante salão
de baile, começa a tocar no momento em que as portas brilhantes do topo da
varanda se abrem. Uma bela mulher envolta em sedosa esmeralda
aproxima-se do corrimão e olha para baixo.
Mãe.
Ela brilha, praticamente resplandecente. Depois começa a descer
graciosamente a escadaria à sua direita com passos leves e elegantes. Às
vezes esqueço-me que até ela é uma lutadora, com a sua habilidade de Volt,
e que consegue manipular a eletricidade de forma mortal, se assim o
desejar.
O bater dos seus saltos soa contra o chão de mármore enquanto ela
atravessa o salão de baile. Os homens separam-se, criando-lhe um caminho
enquanto ela se dirige para o meu Pai, sentado no extremo da sala.
Ele sorri — sorri mesmo para ela. É uma expressão rara que lhe vejo,
que só parece usar quando ela está por perto. Levanta-se, vai ao seu
encontro no meio da sala e pega-lhe no braço.
O Rei olha em redor, olhando os homens que o observam.
— Que comece o primeiro baile das Provas da Purga! — Os homens
aplaudem enquanto o Rei e a Rainha caminham juntos, conversando e
dando as boas-vindas a quem passa.
E assim começa.
As mulheres, tanto jovens quanto idosas, começam a entrar por
aquelas portas douradas, uma de cada vez. Como é tradição, os homens
entram sempre no salão de baile em primeiro lugar, es­perando que as
mulheres cheguem. Tudo isto em honra da Rainha que apareceu
elegantemente atrasada no baile onde conheceu o Pai pela primeira vez,
com todos os olhares voltados para ela, quando fez a sua entrada. Desde
então, todas as mulheres têm tido a oportu­nidade de fazer a sua chegada
para que todos as vejam e admirem.
Dezenas delas descem as escadas, todas com diferentes tonali­dades de
verde. Assim que chegam ao salão, os seus pares levam-nas para longe e
sentam-se numa das muitas mesas disponíveis.
Kitt e eu observamos o desfile de mulheres enquanto bebemos o nosso
vinho, admirando à distância. Não vêm por nenhuma ordem em particular,
não há nenhuma classificação ou estatuto envolvido em quem entra pela
porta. Vejo a minha prima a entrar, com um vestido verde-menta que
contrasta com o seu cabelo vermelho-vinho. Andy sorri para Jax de onde
ele se encontra no fundo das escadas, com um sorriso pateta na cara. Ela
puxa-o para a grande mesa destinada aos concorrentes, centrada entre as
outras para per­mitir aos convidados uma visão perfeita de nós. Um jantar e
um espetáculo.
Vejo-os sentarem-se antes de voltar a minha atenção para a va­randa,
onde o fluxo constante de mulheres começa a abrandar. Vejo Hera e Ace a
abrirem caminho por entre a multidão, nenhum deles parecendo
particularmente feliz por estar a fazer par um com o outro. Os meus olhos
voltam a dirigir-se para as portas quando Sadie entra, a sua pele morena a
brilhar contra o seu vestido verde-claro enquanto desce os degraus até a um
Braxton que a espera. Um tom de lilás chama a minha atenção, revelando
Blair no cimo das esca­das, a olhar para baixo do corrimão. O tecido verde-
floresta abraça a sua cintura, a sua figura, antes de se estender aos pés. Usa
o cabelo preso e torcido para fora do rosto, um sorriso malicioso
espelhando-se quando me vê.
— Boa sorte, Irmão — murmura Kitt, e não me escapa o diverti­mento
no seu tom.
Depois de ter sido encurralado antes do jantar há umas noites, Blair
insistiu para irmos juntos ao baile. E vendo que eu não tinha escolha, um
sim relutante foi a única resposta que pude dar.
Enfio o meu copo de vinho na mão de Kitt com um suspiro irritado.
— Trata disto. — Aceno com a cabeça para o copo que ele agora
segura. — Vou mesmo precisar de sorte.
O riso profundo de Kitt segue-me enquanto me dirijo para o fundo das
escadas, encontrando Blair mesmo a tempo. Estendo-lhe um braço, que ela
agarra com avidez.
— Tu estás deslumbrante, Blair — digo-lhe suavemente, porque ela
está, de uma forma fria e cortante.
— Obrigada, Kai — diz ela, baixando as pestanas escuras en­quanto
observa a minha roupa, o meu cabelo, o meu rosto. — Tal como tu.
Conduzo-nos até à mesa, agora quase cheia com os concorren­tes
sentados rigidamente à sua volta. Quando me sento ao lado de Jax, ele
lança-me aquele seu sorriso brilhante que nunca deixo de retribuir.
— Olha para ti, J., estás tão elegante — afirmo, observando o seu fato
vistoso e as calças escuras que, por uma vez, são suficiente­mente compridas
para lhe cobrirem os tornozelos. —Nem se nota que te dei uma coça no
ringue esta manhã.
Ouço Andy a suspirar do outro lado de Jax antes de se inclinar para
acrescentar:
— Não és o único.
Jax revira os olhos à nossa provocação, mas o sorriso nunca lhe sai da
cara.
— Onde está o Kitt? Ele é o único que é simpático para mim.
Andy aperta uma mão no peito, fingindo-se ofendida, enquanto eu nem
sequer me dou ao trabalho de tentar negar que ele tem razão. Em vez disso,
digo apenas:
— É verdade, mas sabes que sou muito mais divertido.
Jax abre a boca para responder, mas em vez disso ouço uma voz
feminina desagradável...
— És? É que eu estou aborrecida.
Viro-me lentamente para Blair, tendo-me esquecido que ela es­tava ali.
Sou um péssimo acompanhante, embora suponha que ela tenha tido noção
que ia ser assim quando me pediu para ser o seu par, por isso não perco o
meu tempo a sentir-me mal com isso.
— Peço desculpa por não te estar a entreter, Blair. — Ouço Andy a
suspirar antes de eu acrescentar: — Como está a ser a tua noite?
Sorri, aparentemente satisfeita por eu lhe estar a dar toda a minha
atenção. E é tudo o que precisa para começar a queixar-se dos des­‐
confortáveis ganchos que tem no cabelo, antes de começar a falar do
material do seu vestido, insistindo para que eu sinta como é macio.
Jax ri-se ao meu lado durante todo o processo, incapaz de abafar a sua
gargalhada cada vez que eu sibilo em concordância ou aceno com a cabeça
a palavras que não estou a ouvir de todo. Mas sou tirado do meu torpor
entediado quando uma taça é colocada diante de mim.
— Pensei que talvez quisesses isto de volta, irmão.
Viro a cabeça para encontrar Kitt de pé atrás da minha cadeira, antes
de os meus olhos deslizarem para ela a brilhar ao seu lado.
Ela é a Salvadora Prateada.
Um tecido prateado e brilhante agarra-se ao seu corpo. Alças finas
envolvem os seus ombros, segurando o vestido com o seu decote pro­fundo,
revelando a sua pele bronzeada e clavículas afiadas. O ves­tido funde-se
com a sua cintura e ancas como moedas derretidas, fazendo-me lembrar as
que me roubou quando nos conhecemos.
As pestanas de Paedyn destroem-me enquanto a observo. O seu cabelo
é como uma cortina que cobre o vestido, sendo difícil dis­tinguir onde
acabam os fios prateados e começa o vestido bri­lhante. O tecido estende-se
à volta dos seus tornozelos, mostrando uma enorme racha a deslizar pelo
comprimento da sua perna, es­pelhando a que eu rasguei no vestido no dia
das entrevistas. E ali, presa à sua coxa, está uma adaga de prata para todos
verem. Luto contra o meu sorriso ao ver a sua arma mortal combinada com
o seu traje deslumbrante — tão adorável, mas tão letal.
Cada pedaço dela está coberto de prata. Não é verde. Não é o
esperado.
Bonita, ousada, não se mistura.
Uma declaração. Um lembrete de quem ela é e do que fez.
As mulheres não são necessariamente obrigadas a usar verde nes­tes
bailes e parece que Paedyn aproveitou esse pequeno pormenor.
Os seus olhos encontram-se brevemente com os meus antes de Kitt a
levar para o outro lado da mesa. E isso é tudo o que preciso para me dedicar
à minha bebida e desejar desesperadamente que esta noite acabe. Os meus
olhos arregalam-se, encontrando os de Paedyn do outro lado da mesa, onde
ela agora está sentada. Ela segura o meu olhar, apenas quebrando-o quando
Kitt lhe diz algo, desviando a sua atenção de mim e fixando aqueles olhos
oceânicos nele.
Eu vejo-os a interagir sem vergonha, sem me importar com quem me
vê a olhar. Paedyn parece tensa enquanto conversam calmamente, os seus
olhos desviam-se continuamente para a gola da camisa dele em vez de o
encarar. Eu vejo-a a girar lentamente o anel no polegar, quase sorrindo ao
vê-lo combinar com o seu vestido. Mas acena com a cabeça enquanto Kitt
faz o mesmo, sem dúvida muito consciente dos inúmeros pares de olhos que
os observam das mesas em redor.
Os criados começam a entrar no salão de baile, carregando ta­buleiros
com pratos fumegantes de comida. Não demora muito até estarmos
silenciosamente a comer o salmão e os espargos com man­teiga, o único som
o raspar dos garfos e a conversa dos convidados que nos rodeiam.
E eu teria gostado de continuar assim, talvez desta vez até tivesse
gostado de um baile, se nos pudéssemos sentar ali e deixar o silêncio
abraçar-nos. Mas, em vez disso, o meu par decide abrir a boca.
— É um lindo vestido que estás a usar, Paedyn. — O tom de Blair é de
gozo, a sua boca curvando-se num sorriso.
Suspiro, olho para cima do meu prato e vejo Paedyn a sorrir
ligeiramente.
— Obrigada. — Os seus olhos passam por Blair e pelo seu traje verde.
— E o teu vestido é tão... único — comenta com um olhar diri­gido para o
resto do salão de baile e para as mulheres que usam tons semelhantes.
Os olhos de Blair afunilam-se.
— Não sei se te ensinaram isto nos bairros de lata, por isso deixa-me
esclarecer-te. A cor do reino de Ilya é verde. Não é prateada.
Eu fico tenso com a forma como ela soltou as palavras bairro de lata,
atraindo até mesmo Sadie e Braxton da sua conversa tranquila para lançar
olhares cautelosos ao redor da mesa. Parece que esta­mos todos a suster a
respiração, à espera da resposta de Paedyn.
E parece que nunca desilude.
Depois de beber um gole lento do seu copo, encontra o olhar ardente
de Blair.
— Hmm. E viver no palácio ensinou-te a ser uma cabra?
Blair passa-se.
Antes que eu possa pestanejar, a faca colocada ao lado do prato de
Paedyn está agora levantada em frente ao seu peito, com a ponta apontada
ao coração.
A visão envia-me um choque de raiva, mas a minha voz é muito mais
fria do que essa emoção súbita quando exclamo:
— Calma, meninas — pegando na habilidade de Tele, empurro a faca
de volta para a mesa com um estrondo, ignorando o olhar que Blair me
lança. — Normalmente não sou eu que acabo com as lutas, mas não vamos
tentar matar-nos uns aos outros antes mesmo das Provas começarem.
Os convidados murmuram à nossa volta, observando os seus
concorrentes com expressões ansiosas. Não consigo sequer imagi­nar como
isto deve ser divertido para eles, ver as nossas fracas ten­tativas de sermos
civilizados uns com os outros, quando amanhã seremos tudo menos isso.
Ace ri-se, com um som arrogante e seco.
— É isso que pretendes fazer, Kai? Matar-nos? — Quando final­mente
me digno a encará-lo, ainda vejo o brilho dos olhos que acom­panha o
desafio na sua voz.
Não abandono um olhar sério.
— Tenciono ganhar.
— Como todos nós — responde Ace antes de passar a mão pelo cabelo
oleoso, rindo. — Bem, todos nós, exceto a Paedyn, que só quer sobreviver.
Goza com a resposta que ela deu nas entrevistas.
Hera contorce-se no lugar ao lado de Ace, claramente tão descon­‐
fortável como o resto da mesa. E o que estou prestes a dizer vai tornar as
coisas muito piores.
— Chega.
A voz de Kitt corta a tensão, virando todos os olhos para ele. Mas ele
só vê uma pessoa, a rapariga com o vestido brilhante ao seu lado, enquanto
pede:
— Danças comigo? Por favor?
Paedyn hesita por um momento antes de acenar com a cabeça. E então
estou a olhar para eles enquanto caminham para a pista de dança onde
vários outros casais começaram a girar ao ritmo da música.
De repente, Blair diz-me qualquer coisa, põe-se de pé antes de me
arrastar para a pista de dança. Não me lembro quando começá­mos a dançar.
De repente, ela está nos meus braços e rodopiam pela pista de mármore. A
sensação que vem dela é estranha para mim depois das noites passadas com
Paedyn nos meus braços. Noites que eu ainda não contei a Kitt.
Estava a fazer-lhe um favor.
Os meus olhos vagueiam pela pista de dança, pousando no meu irmão
e na rapariga que se encontra nos seus braços. Eu não estou de verde, mas
sinto a emoção que emana dessa cor. A inveja persegue-me enquanto os
observo a dançar a mesma valsa que dancei com Paedyn na noite passada.
Ela está elegante, sedutora, fascinante.
O que raio é que se passa comigo?
Desvio-me das suas formas, zangado comigo mesmo por sentir. Sentir
ciúmes e possessividade pela única rapariga que deixou claro que eu não
deveria sentir estas emoções.
Por isso, distraio-me. Danço com Blair e outras mulheres boni­tas que
me arrastam para a pista de dança. Embarco no flirt e sou simpático com
elas, concentrando-me nas raparigas à minha frente e não na que dança
perto de mim com o meu irmão.
Apanho-a a olhar para mim e os nossos olhos fixam-se, com faíscas a
dançar entre nós.
Ela é a personificação de uma má decisão. A gémea do perigo e do
desejo. A linha ténue entre o mortal e o divino.
E sinto-me a afogar.
O mundo gira à minha volta, o verde e o preto misturam-se. Arfo,
apanhada desprevenida pelo rodopio, antes de ser subita­mente puxada de
volta para braços fortes, o cheiro ténue a especia­rias e os risos profundos a
passar por mim.
— Desculpa, pensei que estivesses preparada para isto — ri-se Kitt,
com os olhos verdes a desafiarem-me.
— Uma melhor dançarina estaria preparada — avanço com um
pequeno sorriso, os meus olhos a vaguearem pela sala em vez de se
encontrarem com os seus. Nunca vi nada como o salão de baile, com as
suas janelas, pilares e belas molduras. Estou atónita com o tamanho e a
elegância que me rodeiam. As pessoas que enchem o espaço enquadram-se
perfeitamente no ambiente, todas elas bem tratadas e graciosas. Os homens
vestidos de preto profundo en­quanto as mulheres se vestem com todos os
tons de verde.
Bem, todas as mulheres menos eu.
Adena ficou atónita e em silêncio pela primeira vez quando lhe disse
que queria um vestido prateado. Precisava de me destacar. Precisava de
lembrar as pessoas da sua Salvadora Prateada. E como não há nenhuma
regra que declare que as mulheres têm de usar verde, o único risco de
aparecer de prateado era chamar mais a atenção para mim se tropeçasse na
pista de dança.
Tantos olhos, tantas pessoas a observarem-me enquanto descia as
escadas. Tantos olhares a percorrerem o meu corpo, a passarem por cima do
vestido com racha e da adaga por baixo. Mesmo agora, estou a ser
observada. Todos olham para mim com diferentes níveis de intriga, alguns
com curiosidade e outros com escrutínio. Não tenho a certeza se vou ganhar
os votos destas pessoas esta noite, mas estou certamente a tornar-me
inesquecível.
Olho para Kitt, o seu cabelo louro parece ainda mais claro em
contraste com o fato escuro justo à sua figura. Ele parece... bonito.
Encantador.
Como o seu pai. Parece-se com o seu pai.
— Estás pronta para amanhã? — pergunta ele, continuando a ro­dar-me
lentamente. Os meus olhos fixam-se nos seus por vontade própria.
— É suposto estar?
Ele quase que se ri, mas em vez disso responde:
— Não, não é.
— E isso parece-te justo? — digo-o antes de me conseguir conter. —
Estas Provas?
A canção termina, a nossa dança faz o mesmo. Sinto o seu olhar
vaguear pelo meu rosto, mesmo depois de eu desviar o olhar, como se
estivesse à procura de uma resposta. Depois suspira.
— Porque não vais buscar algo para bebermos?
Pestanejo. Apesar de estar a fugir à minha pergunta, aceno afir­‐
mativamente. Ele olha em volta para os homens que se aglomeram na pista
de dança, vários olhando na nossa direção.
— E suponho que terei de te partilhar com todos os outros, nem que
seja só por algumas danças. — Sorri antes de me fazer uma li­geira vénia
com a cabeça e de se afastar.
Mal o futuro rei vira as costas, um jovem alto encontra-me na pista de
dança e faz-me uma vénia. Aceito educadamente a sua oferta para dançar e
não tenho tempo para ficar nervosa antes dos seus braços me envolverem.
Não posso deixar de sentir uma pitada de orgulho pela forma como
acompanho os seus passos largos e conversamos sem fazer barulho
enquanto rodopiamos pela pista.
Quando uma nova valsa ganha vida, um novo parceiro rouba-me. De
repente, estou entre os braços de um jovem, aparentemente da minha idade,
com o cabelo azul-claro meticulosamente pen­teado no cimo da cabeça.

— Nunca teria adivinhado que tu eras uma Mundana dos bairros de


lata, pelo teu aspeto — diz ele, o seu olhar percorrendo avida­mente o meu
corpo para cima e para baixo. Eu mexo-me desconfortavelmente no seu
aperto à volta da minha cintura, sentindo o peso tranquilizador da adaga
presa à minha coxa. Se não fosse para ganhar a aprovação das pessoas que
estou a tentar obter, este pe­queno comentário ter-lhe-ia valido um murro na
cara. A sua voz está mais baixa do que antes quando diz: — Tu és uma
visão.
— É, não é?
O meu coração para. A voz que vem de cima do meu ombro é tão fria
que quase me arrepio. Kai toca-me no braço enquanto me contorna,
virando-se para o rapaz atordoado que ainda me agarra.
— Vou roubá-la agora — afirma Kai, completamente consciente de
como é inapropriado interromper uma dança a meio. Mas, por outro lado,
ele é o Príncipe o próximo Executor, um sacana convencido.
A mão do homem desce lentamente da minha cintura, os seus olhos
percorrem-me uma última vez antes de fazer uma vénia rá­pida a Kai e se
afastar. O Príncipe não perde o ritmo. Estou nos seus braços antes dos
músicos acabarem de tocar a sua nota.
Ele é-me demasiado familiar.
Nós encaixamos perfeitamente, peças de um puzzle a encai­xar na
perfeição. Não devia deixar-me relaxar pelo seu toque. Não devia deixar
que a tensão se dissipasse do meu corpo quando ele me abraça. Mas não
posso fazer nada para o impedir. Total e comple­tamente impotente.
A sua mão é pesada e firme contra as minhas costas expostas, os calos
tocam-me na pele corada.
— Achei que precisavas de ser salva — diz Kai, e vejo-lhe um sor­riso
antes de ele me rodar.
— Por uma vez — suspiro — vou ter de concordar contigo.
— Tenho a certeza de que posso pensar noutras coisas em que
concordamos.
— A sério? E quais seriam essas coisas?
— Que ele tinha razão — diz Kai. — Tu és uma visão. Tenho a cer­teza
que ambos concordamos com isso.
Engulo em seco, o meu coração começa a bater num ritmo acele­rado,
ação que decido ignorar. Sem saber o que lhe dizer, pergunto-lhe:
— E em que outras coisas estamos de acordo?
— Hmm — diz com voz doce distraidamente enquanto os seus olhos
percorrem a minha cara. — Estás a divertir-te esta noite?
Fito-o.
— Bem...
— Sim, Gray.
— Pronto — eu suspiro. — Não particularmente, não.
Ele esboça um sorriso.
— Então ambos concordamos que estes bailes são incrivelmente
aborrecidos.
Não posso deixar de me rir.
— E se for por tua causa que não me estou a divertir?
— Se fosse esse o caso — diz ele com um sorriso —, provavelmente já
me terias pisado os pés ou atacado com a tua adaga.
— Não me dês ideias, Príncipe.
Ele ri-se suavemente.
— Tens razão. Não gostaria de sujar o meu fato.
Continuamos a girar em torno da pista de dança enquanto eu ignoro o
quão perto o seu corpo está do meu e olho em redor da sala lotada cheia de
conversas, risos e música. Vejo Andy a rir com Jax enquanto eles tropeçam
na pista de dança, e não demoro muito a encontrar os outros concorrentes
na multidão.
Quando o meu olhar se fixa em Kitt, fico surpreendida por ele já estar
a observar-me. Está rodeado por um grupo de raparigas que o bajulam, mas
os seus olhos estão presos em mim e no Kai enquanto dançamos, sem fazer
nada para interromper o seu irmão e roubar-lhe o par. E ali, entre as suas
mãos, estão duas bebidas, uma cheia enquanto a outra está quase vazia.
Estou prestes a olhar para o meu par quando a minha atenção se detém
num criado. O cabelo escuro e encaracolado do rapaz salta-lhe no topo da
cabeça a cada passo, enquanto carrega um tabuleiro de bebidas
borbulhantes por entre a multidão. Os seus olhos casta­nhos percorrem a sala
como se procurassem algo ou alguém.
O rapaz do Loot. O rapaz com o cabedal. O rapaz que eu assaltei. O
rapaz com o bilhete endereçado à minha casa.
Um maremoto de perguntas inunda-me a mente. Porque é que ele está
aqui? Pensei que fosse um aprendiz, não um criado. Anda à minha procura,
à procura do papel que lhe roubei?
Sou desviada dos meus pensamentos quando Kai me faz girar e os
meus olhos se dirigem para os seus sem a minha permissão.
Erro.
O seu cabelo escuro cai-lhe sobre a testa em ondas desalinhadas e
sedosas. Os seus olhos cinzentos esfumados encontram os meus, cativantes,
arrepiantes. O seu maxilar relaxa, puxando os lábios para um sorriso
arrogante enquanto trocamos um longo olhar.
Covinhas. Ambas estão a gozar comigo.
— Gostas do que vês, Gray? — brinca, sabendo que isso me vai ir­ritar.
Eu suspiro, desviando o olhar para combater o rubor que me chega às
bochechas. Dedos ásperos deslizam das minhas costas para agarrar o meu
queixo, guiando gentilmente o meu rosto de volta para o seu, enquanto
murmura: — Por favor, continua. Nunca me vou negar à oportunidade de te
ver a observar-me.
— E porquê? — pergunto-lhe com uma indiferença que não sinto.
O seu sorriso é perverso.
— Porque é muito mais divertido admirar-te quando a ação é mútua.
Quase me engasgo com o riso.
— Não te aches, Príncipe. Não te estou a admirar nem às tuas es­‐
túpidas covinhas — respondo, tentando agir como se não estivesse, de
facto, a fazer isso mesmo. O seu sorriso só aumenta, fazendo com que as
covinhas nas suas bochechas se aprofundem distraidamente.
Mentirosa.
Um som de frustração escapa-me enquanto o encaro, recu­sando-me a
dar-lhe a satisfação de evitar o seu olhar penetrante. Continuamos a dançar
ao som da música lenta, os nossos movi­mentos abrandam à medida que Kai
pergunta:
— Então, qual é o resultado agora?
— O quê? — As minhas sobrancelhas franzem-se em dúvida com a
súbita mudança de assunto, embora esteja aliviada.
— Já te ajudei, o quê, três vezes? Talvez quatro, agora? — Os seus
olhos estudam a minha cara com atenção. — Então já são quatro con­tra um.
Eu solto uma gargalhada.
— Antes de mais, eu não te ajudei. Salvei-te, lembras-te? — levanto-
lhe as sobrancelhas. — De certeza que isso deve contar mais do que apenas
um ponto. Além disso, não sabia que estávamos a contar pontos.
— É justo — encolhe ligeiramente os ombros. — Que tal dizermos
que o resultado é dois a quatro? É generoso.
Os meus olhos iluminam-se.
— Olha para isto. O Príncipe admitiu finalmente que o salvei.
Ele ri-se, o som a ecoar-lhe no peito, enrugando-lhe os cantos dos
olhos.
— Eu nunca disse...
Os gritos abafam as suas palavras.
Fico momentaneamente atordoada e só saio do meu torpor quando a
dor me rasga o antebraço esquerdo. A sacudidela faz com que os meus
olhos se concentrem na carne rasgada e ensanguentada.
O arremesso de uma faca.
De repente, estou a cair no chão com um corpo forte e sólido a aterrar
em cima de mim. Não, um corpo forte e sólido a cobrir-me. Explosivos
irrompem pela sala, e os meus ouvidos zumbem com o impacto. Sinto uma
onda de calor acompanhada de fumo e de pe­daços de pedra a virem na
nossa direção.
A grande estrutura de Kai paira sobre mim, a sua mão segura a parte
de trás da minha cabeça para que o meu crânio não se parta no mármore
duro quando ele nos atirou para o chão. Está a pro­teger o meu corpo dos
destroços e das facas espalhadas pela sala. Recupero a minha audição
lentamente, cada grito amplifica-se à medida que os meus ouvidos estalam
e voltam à vida. Ouço o terror e o pisar de pés à nossa volta, homens e
mulheres a correrem para as saídas, tentando escapar à loucura.
Kai põe-me de pé, baixando-se enquanto me arrasta em direção à
parede, tentando afastar-nos do espaço aberto.
— O que é que se passa? — grito por cima do som das explosões e dos
ecos dos gritos. Mas Kai está ocupado a dar ordens aos guardas e às pessoas
à nossa volta, dizendo-lhes o que fazer e como o fazer. É mesmo o futuro
Executor.
O salão de baile está um caos total. Os detritos das explosões co­brem o
chão outrora imaculado. Facas de arremesso brilham no ar, arremessadas
pelas poucas figuras que vestem tiras pretas de couro que cobrem apenas a
metade superior dos seus rostos.
A imitar as máscaras dos Imperiais.
Quem são estas pessoas?
Alguns corpos espalham-se pelo chão, alguns ensopados em sangue,
outros esmagados sob os grandes pedaços de pedra lança­dos pelas
explosões e lutando para se libertarem. Mas o elemento surpresa já passou,
e os Elites que estavam a dançar alegremente há minutos, agora lutam
contra as figuras mascaradas. Os guardas entram na sala, alguns Flashes,
outros Piromantes ou Fortes.
Alguns Escudos espalham campos de força roxos pela sala, pro­tegendo
os que estão à sua volta do ataque, enquanto as armas caem
inofensivamente nas cúpulas brilhantes. Sem pensar duas vezes, Kai adapta
a habilidade dos escudos para lançar o seu próprio campo de forças à nossa
volta.
— Não há tempo para explicar. — Os seus olhos estão arregala­dos, o
único sinal da sua preocupação. — Estás muito magoada?
Ele estende-me a mão, mas eu afasto-me, as minhas costas cho­cam
contra a parede dura atrás de mim. A dor sobe-me pelo braço, mas eu cerro
os dentes e ignoro.
— Estou bem, mas o que é que...
— Preciso que vás para uma das salas seguras. Os guardas vão levar-
te...
— Kai, eu não me vou embora.
Encosta-me totalmente à parede, encurralando-me com os braços de
cada lado da minha cabeça. Os seus olhos são selvagens, como o fumo de
um fogo ardente.
— Não penses que não te coloco em cima do ombro e te levo daqui
para fora. É isso que queres?
Eu sei que não é uma ameaça vazia. É algo que ele não gosta. Olho por
cima do seu ombro para as poucas figuras mascaradas que tentam fugir e
lutar para sair. Parecem despreparadas, usando armas em vez de poderes,
causando poucos dano contra as habilidades que estão a ser usadas contra
eles.
Observo o caos que se instala, com a confusão a toldar os meus
pensamentos. Onde estão os Acesos que causaram as explosões? Os meus
olhos percorrem a sala, focando-se num objeto redondo de vidro, de onde
escorre um líquido escuro, agarrado à mão de uma figura mascarada.
Bombas caseiras.
Nessa altura, apercebo-me.
Não estão a usar poderes porque não os têm.
Porque são Vulgares.
— Deixa-me ajudar — respiro, os meus olhos a suplicar. Preciso de
me aproximar. Preciso de ver quem são estas pessoas e de onde vieram.
— Não.
— Eu sei tomar conta de mim própria.
O seu riso é seco.
— Então prova-o. Vai calmamente para a sala segura. Agora.
— Obriga-me — eu praticamente rosno-lhe as palavras na cara, com
os dentes cerrados.
Disse a coisa errada.
Ele desvia o olhar e exala, abanando a cabeça.
— Tu és demasiado teimosa para o teu próprio bem, Gray.
E depois o mundo fica de pernas para o ar.
A sua mão agarra a parte de trás dos meus joelhos e a parte supe­rior do
meu corpo está pendurada no seu ombro, pendurada nas suas costas.
Debato-me no seu aperto, mas a sua mão é firme. Sinto-me como uma
criança a fazer birra, e não me importo minimamente.
— Põe. Me. No. Chão. — O meu tom promete uma morte lenta e
dolorosa, mas ele ignora-me, mesmo assim.
— Se soubesses cumprir as ordens, não teria de pegar em ti como
numa boneca de trapos — assegura Kai.
Agarro na minha adaga, furiosa.
— Kai, eu vou literalmente apunhalar-te pelas costas se não o fizeres...
— Se achas que uma facada me vai parar, então estás a subesti­mar as
minhas habilidades, querida.
Através da cortina prateada de cabelo que cai levemente sobre a minha
cabeça, paro de me debater o tempo suficiente para ver as restantes figuras
mascaradas a passarem por nós do lado de fora do nosso campo de forças. E
é aí que os meus olhos se fixam num deles, com caracóis escuros e
descaídos.
Ele.
A máscara agarra-se ao rosto como uma segunda pele, e quando o seu
olhar encontra o meu, respiro lentamente. Ele para, obser­vando-me
enquanto eu o observo.
Ele é um deles. E reconhece-me.
O bilhete. O local de encontro.
O couro.
De facto, cada um deles está envolto em coletes de cabedal e máscaras.
Armadura. Ele estava a fazer armaduras para eles.
De repente, estamos perto de um círculo de Imperiais que ro­deiam
algo, tentando contê-lo. Kai empurra a multidão e eu apa­nho Kitt de soslaio,
lutando e debatendo-se contra os guardas que o prendem.
— Pensei que te tinha dito para o tirares daqui. — A voz de Kai é
profunda, mortal.
— Senhor, ele não... — Um Imperial começa antes de Kitt o inter­‐
romper, mais agressivo do que alguma vez o vi.
— Não me vou esconder disto, Kai. Este reino também é meu — a sua
voz é severa, à beira de gritar na cara do irmão.
— Bem, não haverá um reino para tu governares se morreres, Kitt —
responde Kai, com um tom frio. — Precisas de te esconder até isto estar
resolvido. Isto pode ser um atentado contra a tua vida.
— Não vou abandonar este combate! — ruge Kitt.
— Então arriscas-te a condenar-nos a todos! — A cara fria de Kai
finalmente rompe-se, enviando fragmentos de raiva em brasa pelo ar. Ele
suspira e acalma a respiração. — Precisamos de ti vivo, Kitt. Eu preciso de
ti vivo. Por...
Ele faz uma pausa, recompondo-se enquanto coloca a máscara de
volta.
— Afasta-te. Pelo reino. Por mim.
Olham um para o outro, comunicando silenciosamente da forma que só
irmãos tão próximos como eles conseguem. Tenho a súbita sensação de que
esta é uma luta frequente entre eles, uma batalha recorrente de vontades.
Vejo a cara de Kitt a desfazer-se, as suas paredes a desmorona­rem-se.
Vejo-o a ceder.
— Está bem. Parece que o meu destino é ficar sempre a assistir a estes
combates, não é?
Kai não responde e, em vez disso, coloca-me suavemente no chão à
sua frente. Sem um único olhar na minha direção, ordena:
— Leva-os para uma sala segura com os outros.
E depois está a correr de volta para o meio da luta, com dezenas de
poderes a passarem-lhe na pele antes de se decidir por um.
Fogo.
Kitt não parou de andar desde o momento em que nos enfiaram nesta
sala abafada e segura. Luto contra a vontade de o puxar para o chão, fazer
com que ele me explique o que se está a passar. Em vez disso, vi-o a
murmurar e a circular pela sala durante a última hora. Vi os seus dedos
incendiarem-se como velas enquanto a sua fúria ardente se derramou,
mostrando aquela sua habilidade de Duplo.
Uma fina camada de suor cobre-me o corpo, dando-me prova­velmente
a aparência de um pão doce. Estou deitada no chão da sala de segurança em
pedra, a parede fria contra as minhas costas expostas é o único ligeiro alívio
do calor da sala causado pelas deze­nas de corpos amontoados, todos com
roupas pesadas e fatos sujos.
A sala do cofre está fechada por uma pesada porta de metal, guardada
de ambos os lados, e prendendo a humidade sufocante aqui dentro
connosco. Kitt e eu fomos enfiados na mesma sala que o Rei e a Rainha
ocupam, bem como a maioria dos outros concor­rentes e quaisquer outros
convidados que tenham conseguido en­trar. É bastante grande, simples e
cheia de gente.
De entre a grande multidão, apenas dois Curandeiros se encon­tram na
sala apinhada. Eles andam de um lado para o outro, tra­tando dos feridos e
dos doentes, depois de se certificarem de que o Rei, a Rainha e Kitt foram
tratados. Passado algum tempo, uma se­nhora corpulenta com uma bata
verde escura dirige-se finalmente a mim, não diz nada enquanto trata da
ferida de faca no meu braço. As suas sobrancelhas unem-se em
concentração quando sinto uma onda de calor a infiltrar-se no corte e olho
para baixo para ver que a ferida quase desapareceu, deixando apenas uma
cicatriz fina e cor-de-rosa.
Mas é o meu coração que dói mais do que a ferida, sentindo-se mais
rasgado do que o meu corpo alguma vez esteve. Vi o meu pai fazer a
mesma coisa a tantas pessoas. Vi-o salvar vidas. Curar feridas. Curar as
minhas feridas. Gostava que ele estivesse aqui para reparar o objeto partido
e mutilado que é agora o meu coração. O coração que se partiu quando ele
me deixou.
Quando foi assassinado pelo homem que está sentado nesta mesma
sala.
Os meus olhos olham para o Rei e para a Rainha, que falam em voz
baixa e urgente um com o outro e com os poucos conselheiros de confiança
que os rodeiam. Sem dúvida que estão a discutir o que é que acabou de
acontecer lá fora e o que fazer em relação a isso. Kitt já foi chamado
inúmeras vezes ao lado do pai para falar em si­lêncio com os conselheiros,
mas depois disso, volta sempre a andar de um lado para o outro na sala.
Afasto-me de Jax e Andy, que estão pegajosos de suor, e meto-me no
caminho de Kitt.
— Olá — digo-lhe estupidamente, incapaz de pensar numa apre­‐
sentação melhor.
Ele quase sorri antes de suspirar.
— Olá.
Se quero que ele fale comigo, tenho de fazer a minha parte.
Respiro fundo antes de colocar a mão no seu braço exposto, o casaco
do fato há muito esquecido, e as mangas brancas da sua ca­misa agora
enroladas até aos cotovelos. A sua pele está a escaldar, e eu afasto a minha
mão com um pequeno assobio enquanto os meus olhos descem para as
chamas ténues que lhe percorrem os nós dos dedos.
Pestanejo e o fogo desapareceu, deixando apenas a pele áspera para
trás.
— Queimei-te? — pergunta Kitt, com um ar alarmado. Ele tenta
aproximar-se de mim, mas pensa melhor, passando as mãos pelo seu cabelo
despenteado.
— Nem sequer consigo controlar o meu maldito poder — mur­mura,
afastando-se de mim.
— Não... não, eu estou bem. — Ele não me olha.
Passa as mãos pelo cabelo e pela cara.
— Ei — digo-lhe, mas as minhas palavras caem em saco roto.
Está prestes a começar a andar de novo.
Preciso que se concentre.
Num impulso, levanto-me e seguro-lhe o rosto com as mãos, sen­tindo
apenas o calor natural da sua pele sob as minhas palmas. Pre­paro-me para
encontrar aqueles olhos, sabendo que preciso de o fazer em troca de uma
resposta. O seu olhar cruza-se com o meu, verde e fresco como o orvalho
que se agarra à relva acabada de cortar. Como um trevo de quatro folhas,
uma esmeralda a brilhar à luz do sol.
Como os olhos de um assassino. Os olhos do Rei.
— Fala comigo. — As palavras saem da minha boca, soando mais
como uma ordem do que eu pretendia. Por isso, acrescento rapida­mente: —
Por favor.
Ele suspira e baixa a cabeça antes de prender gentilmente os meus
pulsos no seu rosto. Depois, guia-me para o canto menos cheio da sala, as
suas mãos quentes puxam-me para o chão ao seu lado, antes de apoiar os
braços nos joelhos levantados.
— Desculpa-me por estar tão... envergonhado — Kitt diz final­mente.
Nunca o tinha visto tão sério, tão severo, tão real. — Não gosto que as
pessoas lutem as minhas batalhas.
Ele faz uma pausa como se odiasse o gosto das palavras na sua boca.
— Acho que vais ter de te habituar a isso quando fores Rei — digo-lhe
baixinho.
Ele suspira.
— Queres dizer, habituar-me a que o meu irmão esteja constan­temente
a arriscar a vida enquanto eu fico sentado a ver? — O calor parece emanar
dele e, de repente, pergunto-me se ele não será par­cialmente culpado por
esta sala sufocante.
Vejo-o então, o verde dos seus olhos que combina com o ciúme, a
inveja. Consigo ver a parte de si que deseja poder correr para a ba­talha e
salvar o dia como o seu irmão. Deseja poder ganhar o amor do seu Pai
através da força e não da inteligência. Deseja poder ser o herói, em vez de
ser aquele que o herói está a proteger.
E, no entanto, não sinto pena do rapaz que está à minha frente. Invejar
Kai é invejar um assassino.
Faz a tua parte. Engana-o.
— O que quero dizer — digo, lentamente —, é que tu tem os teus
deveres e o Kai tem os dele. Estão ambos a lutar pelo vosso reino, mas de
formas diferentes.
Vejo que não está convencido, mas oferece-me um sorriso na mesma,
que quase lhe chega aos olhos.
— Darias uma ótima conselheira, sabias?
— Bem, talvez se eu sobreviver a estas Provas, me possas contra­tar. —
Ele ri-se suavemente com isso, e eu dou-lhe um pequeno sorriso em troca.
— Embora — digo-lhe com um suspiro — é suposto os conselhei­ros
saberem o que se passa, e eu de certeza que não sei.
Vá lá. Diz-me. Confia em mim.
Kitt suspira.
— Tudo bem, tu mereces saber o que se está a passar, visto que um
deles quase te cortou o braço.
Ele passa o polegar sobre a cicatriz fina no meu braço exposto, os seus
olhos traçam-na. Eu encolho-me ao toque, e a ação não passa despercebida.
Kitt limpa a voz e afasta-se de mim.
— Eles chamam-se a si próprios de Resistência — a sua voz é baixa e
firme, para que só eu a ouça. — São um grupo de Vulgares que se tem
vindo a juntar nos últimos anos. Lutam contra o Rei e o reino por causa do
que foi feito à sua espécie.
Da sua espécie. Da minha espécie.
Forço-me a engolir o meu desgosto e ouço-o enquanto continua.
— No início, eram apenas uma ameaça, uma piada de revolução.
Mantivemos este pequeno grupo em segredo, escondemo-lo do povo
durante alguns anos. Não foi difícil fazê-lo até há pouco tempo. Mas,
claramente, eles estão maiores e mais fortes do que antes.
Acho que deixei de respirar. Tudo o que ouço é o sangue a bater nos
meus ouvidos enquanto absorvo o peso das suas palavras.

Um grupo de Vulgares que luta contra o Rei e o reino.


— Como? — A palavra é rouca, quase abafada pela conversa da sala.
— Como é que existe um grupo tão grande de Vulgares? Como é que eles
são uma ameaça agora?
— Aparentemente, havia muito mais Vulgares escondidos em Ilya do
que se suspeitava depois de terem sido banidos, e enquanto eles repovoarem
aqui no reino, o seu número continuará a crescer. — Ele solta um suspiro
pesado. — Mas a Resistência parece ser mais uma causa do que um grupo.
Estão espalhados por toda a cidade, escon­didos à vista de todos. O que
torna as coisas muito mais difíceis, uma vez que não estão todos reunidos
num só lugar. E o pior é que não nos parece que estejam a trabalhar
sozinhos.
Levanto as sobrancelhas como se estivesse confusa e ele prossegue.
— Eles têm Elites a trabalhar com eles. Poderosos. Que também estão
zangados com o meu Pai, com o reino.
A minha testa enruga-se, tentando perceber o que é que ele está a dizer.
E depois faz-se um clique, no momento em que Kitt diz o que eu tinha
acabado de perceber.
— Os Fatais. Os Silenciadores, os Leitores e os Controladores. O Pai
baniu-os juntamente com os Vulgares durante a Purga por causa do perigo
que representavam ate mesmo para outras Elites, e ele só mantém um de
cada na sua corte que lhe é leal. Mas ainda há alguns por aí, e atualmente
temos um nas masmorras. — Acena-me com um pequeno sorriso. — Temos
de te agradecer por isso.
O Silenciador.
— Espera — digo lentamente, tentando perceber tudo —, se os Fatais
estão mesmo a trabalhar com a Resistência, então porque é que não lutaram
no ataque? Teriam feito muito mais estragos se o tivessem feito.
Kitt passa uma mão pelo cabelo.
— Não temos a certeza. Talvez não estivessem a pensar atacar. Não
estavam preparados e estavam em desvantagem numérica, o que me faz
pensar porque é que vieram para aqui em primeiro lugar.
As palavras saem da minha boca e não consigo fazer nada para as
parar.
— E o que é que achas da Resistência?
— O que é que eu penso destes criminosos? — suspira pelo nariz,
abanando a cabeça. — Eu... Eu compreendo. Acho que é errado, mas
compreendo porque o fazem.
Olha-me nos olhos.
— Mas se lhes for permitido viver, então a raça dos Elite morrerá
lentamente. Quem sabe quantos Elites já foram infetados pelos Vul­gares
que se escondem entre eles? Tenho a certeza de que as pessoas já
começaram a sentir os efeitos, o enfraquecimento do seu poder. — Ele faz
uma pausa, suspirando. — O sacrifício dos Vulgares é neces­sário para o
bem maior do reino.
Pois é. Esqueci-me que sou doente.
Estudo-o, observando os traços fortes do seu rosto, agora mar­cados
pela tensão e pelo stresse.
— E é nisso que acreditas?
Sei que devia calar-me, acenar com a cabeça em vez de me ar­riscar a
falar de traição. Mas há algo neste rapaz que desperta em mim uma
imprudência, uma necessidade de lhe mostrar como está errado, como o seu
reino é distorcido.
— Isso é o que eu sei — diz ele, olhando-me nos olhos até eu des­viar
os meus, incapaz de deixar de ver neles o assassino do meu pai.
— E, no entanto, podes saber uma coisa e não acreditar nela. — A
minha voz parece trémula, e espero que acredite que é por medo e não por
raiva. — Tens uma escolha, Kitt. Tens sempre uma escolha.
Ele sorri, seco.
— Se eu tivesse sempre uma escolha, não estaria nesta sala se­gura.
Estaria lá fora, a lutar ao lado do meu irmão.
Os meus olhos caem para as chamas que passam pelos seus dedos,
denunciando a sua frustração. Levanto a cabeça e respiro fundo antes de o
encarar.
— Não queres ser Rei?
Não hesita.
— Não quero ser um cobarde. — Forço-me a manter o seu olhar,
vendo toda a confusão e consideração refletidas nele. — Nunca nin­guém
me perguntou isso antes.
— Sim, bem, vais ver que muitas vezes faço perguntas que não devia
— declaro, desviando o olhar.
— Não pares — diz ele rapidamente, em voz baixa. O meu olhar
desliza de volta para ele e pousa no botão de cima da sua camisa. — As tuas
perguntas, os teus pensamentos, as tuas contradições, quero ouvi-los a
todos.
Abro a boca para responder quando uma lufada de ar fresco me passa
pela cara, e a grossa porta de metal abre-se com um estrondo. A minha
cabeça esbarra no punhado de Imperiais que entram na sala, dirigindo-se ao
Rei e à Rainha.
— O salão de baile está seguro, Vossa Majestade — a voz do guarda é
grave e a sua cabeça inclina-se para o Rei, que acena com a cabeça.
Se quisesse ver os seus olhos, tenho a certeza de que veria todas as
perguntas a nadar neles. Perguntas sobre quantos mortos, quantos Vulgares
capturados, quantos danos. Mas não se atreve a expressar os seus
pensamentos, não em frente a uma audiência e especial­mente quando ainda
está a tentar esconder o que se está realmente a acontecer.
O Rei levanta-se da sua grande cadeira de madeira e aclara a voz,
acalmando ainda mais a já silenciosa sala.
— O que aconteceu hoje foi uma infelicidade, e posso assegurar-lhes
que não voltará a acontecer. — Quase que me arrepio com a pro­messa
vazia. — Mas não vamos deixar que este incidente nos assuste, nos
incapacite, nos controle. E por essa razão, as Provas continuarão como
planeado.
A isso, murmúrios de choque espalham-se pela multidão, embora não
possa dizer que esteja surpreendida. Precisa de manter a sua fa­chada de um
reino forte, sem medo.
— Nós somos os Elites. Nós somos o poder. — O Rei faz uma pausa,
examinando a multidão com aquele olhar verde que eu evito. — Honra ao
teu reino. Honra à tua família. Honra-te a ti próprio.
O grupo de pessoas à minha volta ecoa as suas palavras, recitando o
lema de Ilya. Os meus lábios movem-se com eles, fazendo o papel da
concorrente, aquele que tem a honra de estar aqui. Aquele que é um Elite tal
como eles.
Os guardas começam a levar os convidados e a nobreza para fora da
sala, e quase sou espezinhada por saltos altos e sapatos poli­dos do sítio
onde ainda estou sentada no chão antes de me levantar.
— Gostava de poder acompanhar-te ao teu quarto, mas infelizmente
vou trocar este quarto abafado por outro. É provável que o meu Pai nos
ponha a mim e ao Kai em reuniões até ao início da pri­meira Prova, para
discutirmos os acontecimentos que ocorreram esta noite. A voz de Kitt é
tensa, cansada.
— Mas os guardas vão certificar-se de que chegas em segurança, não
que haja agora uma ameaça real.
Os seus olhos deslizam até à adaga que me abraça a coxa, ex­posta para
todos verem.
— E, se houvesse uma ameaça, tenho a certeza de que te desen­‐
vencilhavas muito bem. — Oferece-me um sorriso que eu mal con­sigo
retribuir.
Os seus olhos desviam-se de mim para se fixarem noutra coisa perto
do fundo da sala. Sigo o seu olhar apenas para descobrir que o Rei e a
Rainha estão a olhar diretamente para mim. O Rei está a observar-me com
os olhos semicerrados, e é preciso toda a minha força e treino para não lhe
lançar o mesmo olhar.
— Vemo-nos depois da Prova. — A voz de Kitt atravessa os meus
pensamentos. — Vemo-nos mesmo depois da Prova. Estás à espera de
sobreviver a isto, lembras-te?
Baixei a cabeça e sorri.
Se conseguir sair viva desta primeira Prova, sei exatamente o que vou
fazer.
Vou procurar a Resistência.
E graças ao rapaz de cabelo encaracolado e ao bilhete que lhe roubei,
sei exatamente onde vão estar.
— Até logo — digo para o botão de cima da sua camisa, antes de
encontrar brevemente os seus olhos. Eles têm um certo calor e preo­cupação,
parecendo-se cada vez menos com os do seu pai.
Sou empurrada para a porta no meio de uma corrente de corpos e
arrastada para o corredor. Os corredores estão cheios de guardas e
convidados, todos a correr de um lado para o outro. Sou empurrada para o
corredor, engolida pelo mar de gente à minha volta. Passamos pelas portas
rachadas do salão de baile e, através delas, consigo ver os escombros e o
vermelho que pinta o chão.
A minha curiosidade recusa-se a libertar-me das suas garras.
Não é difícil escapar aos Imperiais, ao grupo. Dominei a arte de passar
despercebida e ser ignorada. Rapidamente, estou a abrir as portas do salão
de baile, os guardas completamente alheios ao caos.
Sou recebida com sangue. Bem, os restos. O sangue escuro ainda
salpica partes do chão, a maior parte já esfregada com jatos de água pelos
Hidros que por ali andam, deixando apenas um rasto de chão bem limpo.
Os Teles estão a limpar o salão de baile dos pesados pedaços de
entulho, e os Ventosos manejam o ar à sua volta para soprar todos os
detritos e poeiras do chão. Em pouco tempo, o salão estará con­sertado,
restaurado ao seu estado original. Como se nada tivesse acontecido.
Estou quase a sair pela porta quando uma aglomerado de cabelo preto
desalinhado me chama a atenção. Está sentado — não, caído numa grande
laje de pedra perto da extremidade do salão de baile, sujo e encharcado de
sangue.
O meu coração bate contra a minha caixa torácica.
Ele está magoado. E mais importante, porque é que eu me importo?
Desço os degraus aos tropeções, dois de cada vez. Quase torço o
tornozelo na engenhoca mortífera que são os meus saltos altos antes de os
tirar dos pés, sem graça, deixando-os cair pelas escadas abaixo antes de eu
quase seguir o mesmo destino.
De repente, estou à sua frente, tendo passado pelo salão de baile numa
questão de segundos. Ajoelho-me, olhando para a sua cara ensanguentada e
suja de terra. Os seus olhos cinzentos só parecem assustados por breves
instantes para logo começarem a percorrer-me, procurando ferimentos no
meu corpo enquanto eu faço o mesmo com ele. As palavras saem em
catadupa.
— O que é que aconteceu? Onde é que estás ferido?
Olho em volta, examinando a sala.
— E onde é que estão os malditos Curandeiros?
— Ah, Gray. Exatamente a pessoa que eu queria ver. — Ele range as
palavras com os dentes cerrados, embora continue a agir como se estivesse
calmo e controlado.
— O que é que aconteceu? — pergunto-lhe, observando as suas roupas
rasgadas e o peito exposto por baixo, agora coberto de cortes. As suas mãos
e a maior parte do seu corpo estão cobertos de sangue, embora eu tenha a
certeza de que a maior parte nem sequer lhe pertence.
— Antes de chegarmos a isso — ele luta para evitar que a careta lhe
apareça nas feições, — já foste vista por um Curandeiro?
Ele fica subitamente sério, a dor é esquecida enquanto os seus olhos
me percorrem mais uma vez.
Estou ao mesmo tempo confusa e aborrecida com ele — uma
ocorrência comum, ao que parece.
— O quê? Sim. Eu estou bem. — Ignoro a sua pergunta e apro­ximo-
me mais, com as mãos ligeiramente estendidas. — Mas, clara­mente, tu não
estás.
— E eu a pensar que tu me odiavas a mim e às minhas estúpi­das
covinhas. Estou comovido por te preocupares tanto com o meu bem-estar,
Gray. — Mesmo com dores evidentes, ainda arranja ma­neira de sorrir. Para
além de ser um completo idiota.
— Oh, não confundas os meus motivos, Príncipe. Só quero man­ter-te
vivo o tempo suficiente para poder tirar esse sorriso da tua cara. Outra vez.
As palavras não são muito incisivas e ele solta uma gargalhada
enquanto se desloca na pedra, expondo mais as suas costas.
Eu suspiro.
— O que raio é que se passa contigo?
— Querida, essa é uma pergunta muito complicada.
Ignoro o seu comentário, incapaz de desviar os olhos da faca de
arremesso enterrada profundamente na carne da sua omoplata direita.
— Tu tiveste uma faca nas suas costas este tempo todo e deixaste-me
falar?
Ele gagueja. Uma covinha acompanha o seu sorriso inclinado.
— Oh, mas o som da tua voz era uma distração tão bem-vinda da dor.
Mais uma vez, ignoro-o antes de me pôr de pé para inspecionar a faca
enterrada das suas costas. Suspirando, murmuro:
— Sim, bem, agora vais ouvir-me dizer que és um completo idiota.
— Continua a ser uma das coisas mais simpáticas que me dis­seste, por
isso, aceito-a — diz ele, parecendo não se perturbar com o pedaço de metal
que lhe está a empalar o corpo.
Não consigo sequer imaginar a dor que sofreu para que esta fe­rida lhe
pareça tão suportável.
— OK — digo lentamente — diz-me o que fazer.
O seu riso é tenso.
— Dizes isso como se me fosses dar ouvidos pela primeira vez.
— Kai, estou prestes a colocar-te outra faca nas costas se não o
fizeres...
— Só preciso que a tires.
Tremo. Diz isto tão casualmente que quase penso que está a brincar.
— Então precisamos de ter um Curandeiro aqui, pronto para te tratar
assim que a faca for retirada.
Ele solta um riso seco, os músculos por baixo da camisa rasgada a
mexer.
— Sinto-me ofendido por duvidares tanto das minhas habilida­des. Há
um Curandeiro não muito longe de mim. Consigo sentir o seu poder. Vou
curar-me a mim próprio.
— Certo. Está bem. — Respiro fundo e agarro o cabo da faca. — Isto
vai doer.
— Sabes, é uma pena que não tenhamos chegado a acabar a nossa
dança — diz ele. — Foi a primeira vez que me consegui concentrar em ti,
em vez de me desviar dos teus pés...
Eu arranco-lhe a faca num movimento rápido. Ele grunhe e do­bra-se
sobre a pedra. Sorrio ligeiramente, vingando-me do que ele disse sobre a
minha dança, por muito verdadeiro que seja.
Contornei os escombros e agachei-me à sua frente, com o meu rosto
perto do seu, enquanto observava a dor a preencher as suas belas feições.
Examino a faca na minha mão, ainda manchada com o seu sangue.
— Diz-me, isso doeu tanto quanto os meus pés a calcar-te?
O seu riso é áspero, doloroso. Ponho-me de pé e vejo-o a passar a mão
à volta do ombro, pressionando-a sobre a ferida que agora jorra sangue.
Fico a olhar enquanto a pele rasgada se costura de novo. Fico a ver a carne
e o músculo reformarem-se diante dos meus olhos, deixando apenas uma
cicatriz dentada que se junta às outras nas suas costas.
A tensão diminui dos seus ombros rígidos e ele suspira de alívio.
— Muito melhor. Obrigado — pergunto-me quão raramente estas duas
últimas palavras são proferidas quando o canto da boca se le­vanta e ele se
põe de pé. — Quem diria que serias tu a tirar uma faca das minhas costas e
não a enterrá-la.
— Ainda há muito tempo para isso, não te preocupes.
Sorri, com os dentes brancos opondo-se às feições imundas. De­pois
roda o pescoço e estica-se, agindo como se não tivesse sido empalado há
poucos instantes.
De súbito, estende a sua palma na minha direção, com expeta­tiva, e eu
olho para os calos sem ver. Quando não faço movimentos, ele baixa
lentamente a sua mão para a que está ao meu lado, os seus dedos ásperos
fechando-se à volta do meu pulso.
O meu coração bate mais depressa e eu amaldiçoo o estúpido órgão.
Puxa o meu braço, a minha mão, na sua direção — a que ainda segura a
faca de arremesso. Depois, a sua outra mão toca na minha palma,
arrancando-me suavemente a pega dos meus dedos.
— Já tens objetos afiados suficientes para me enterrares nas costas,
não achas? — declara, com a mão ainda enrolada no meu pulso, onde
provavelmente consegue sentir a minha estúpida e trémula pulsação. — Por
isso, acho que vou ficar com este.
Afasto-me do seu alcance, precisando de colocar algum espaço entre
nós.
— Não tens uma reunião importante em que é suposto estares neste
momento? — pergunto-lhe porque não consigo pensar em mais nada para
dizer.
— Provavelmente — suspira, passando uma mão pelo cabelo. —
Presumo que o Kitt te tenha posto ao corrente.
Eu aceno com a cabeça antes de ele completar:
— O Pai vai avançar com as Provas. Uma jogada de poder, claro. E vai
ter de informar finalmente o povo do que se está a passar. Não pode
esconder quem e o que é a Resistência depois desta noite.
— O que é que aconteceu? — respiro fundo antes de ficar subi­tamente
irritada com ele, lembrando-me do que me fez. — O que aconteceu depois
de me teres retirado desta sala como uma idiota. Eu poderia ter ajudado.
Agora está a rir-se de mim.
— Parece que estás sempre a esquecer-te de quem eu sou, Gray.
— As minhas desculpas, Vossa Alteza. O que aconteceu depois de me
ter retirado desta sala como um asno real?
— Bem, é um progresso, suponho — sorri, mirando-me de novo com
aquele seu olhar penetrante. — E para responder à tua pergunta, o combate
não era teu. Já para não falar que não podia arriscar que um concorrente
morresse antes mesmo de começar a primeira Prova.
O meu riso é amargo.
— Sabes muito bem que sei tomar conta de mim...
— E sabes muito bem que eu podia tratar disto sozinho. Foste
esfaqueada, lembras-te?
— Risco profissional.
Ficamos a olhar um para o outro, com os rostos próximos. Con­sigo
cheirar-lhe o suor, o sangue e a sujidade, juntamente com o odor subjacente
de pinho que ainda perdura na sua pele. Estou com uma respiração pesada
e, após um momento demasiado longo, afasto-me dele.
— Quantas baixas? — pergunto-lhe lentamente.
Ele desvia o olhar, aspirando um fôlego antes de falar.
— Apenas dois Elites mortos, vários feridos. Quatro Vulgares mor­tos e
dois prisioneiros. — Os seus olhos voltam-se para os meus en­quanto diz: —
Eram menos de uma dúzia de Vulgares, o que me faz pensar qual seria a sua
verdadeira missão, uma vez que não acredito que fossem atacar um salão de
baile cheio de Elites.
Eu aceno distraidamente com a cabeça, absorvendo a informação.
— Então, alguns escaparam?
Um músculo fica-lhe tenso na mandíbula.
— Infelizmente — com isso, começa a afastar-se de mim, mas os seus
olhos nunca deixam os meus. — Vemo-nos amanhã, Gray.
— Vemo-nos amanhã, Azer.
Finalmente vira-se, atravessando o salão de baile, enquanto eu observo
a sua forma a retirar-se.
Depois chama-me por cima do ombro.
— Faz-me um favor, querida?
— Que é?
— Promete-me que ficas viva o tempo suficiente para me apu­nhalares
pelas costas?
Eu rio-me alto.
— Esse tem sido sempre o meu objetivo, Príncipe.
Quase engulo uma boca cheia de terra húmida. Os meus olhos abrem-
se e eu tusso para a terra molhada que está por baixo de mim, ensopando as
minhas roupas e fazendo-as agarrar-se desconfortavelmente ao meu corpo.
Meto-me de costas no chão, esmagando musgo, galhos e pedras enquanto
pestanejo contra a luz do sol que passa por entre árvores altas e imponentes.
Pestes, onde é que eu estou?
A melodia do chilrear dos pássaros despertou-me do meu sono pesado
e profundo.
Sono drogado.
As árvores enchem o céu azul vibrante acima, a maioria delas
pinheiros altos e ameaçadores que estendem dedos de folhagem até às
nuvens — e eu reconhecê-los-ia em qualquer lugar. Familiarizei-me com as
árvores, sendo obrigado a escalá-las inúmeras vezes para ultrapassar o meu
medo das alturas.
Whispers.
Estou na maldita floresta.
Ponho-me de pé, sentindo-me tonto, esgotado e drogado. Uma pressão
estranha no meu antebraço direito faz-me olhar para baixo e ver uma fina
faixa de cabedal a envolvê-lo, com as extremidades bem unidas. Se
estivesse mais apertada, estaria a cortar-me comple­tamente a circulação
sanguínea, deixando o meu braço completa­mente inutilizado.
O sol incide sobre mim enquanto me viro lentamente, exami­nando o
que me rodeia. Não há nada nem ninguém para além das árvores, das rochas
e do solo irregular da floresta, que me encurrala com a folhagem.
Por que raio estou em Whispers?
Obviamente, eu sabia que as Provas ainda estavam a decorrer. Isso, e a
Resistência, foi tudo o que falámos durante horas na noite passada. Passei a
minha noite e o início da manhã na sala do trono juntamente com Kitt, o
Rei, e os seus conselheiros.
A minha garganta está rouca e arranhada devido às longas horas de
discussão e debate sobre a melhor forma de atuar contra esta Re­sistência,
esta ameaça. E agora, mais do que nunca, eu e os meus homens temos a
tarefa de encontrar esses membros da Resistência e matá-los Tento limpar
os torrões de terra que ainda se agarram à minha roupa, enquanto respiro
este lugar familiar, mas assustador. Whispers não é uma floresta
extravagante. Feras mortíferas espreitam no seu enorme terreno, e plantas
ainda mais mortíferas brotam do solo. Sei-o bem, visto que passei muitas
noites a treinar aqui com o meu Pai dando-me ordens como se eu fosse o
seu soldado e não o seu filho.
Mas porque é que estou aqui agora?
Esperava, pelo menos, poder acordar na minha própria cama, talvez
interrogar alguns prisioneiros antes de ter de me dirigir à Bowl para a
primeira Prova. Mas de certeza que não estava à espera de ser drogado e
arrastado para a floresta.
Diferente.
Foi isso que Tealah disse. Nunca houve uma Prova que tenha tido
lugar fora da Bowl, em que não pudesse estar presente um pú­blico para nos
gozar e aplaudir.
Um galho estala e eu viro-me, afundando-me numa posição de
combate. Olho fixamente para o homem magro a algumas deze­nas de
metros de distância, vestido com roupas brancas simples que contrastam
com a sua pele escura. Ele observa-me de volta, com os olhos vidrados e
imóveis.
Um Visão.
Estou a senti-lo. O formigueiro do seu poder sob a minha pele. Estava
demasiado ocupado com os meus pensamentos para sentir a sua habilidade,
o poder de registar e projetar o que vê com nada mais do que os seus
próprios olhos. E é exatamente isso que está a fazer agora.
Sempre os achei inquietantes pela forma como olham fixamente, sem
pestanejar, quando registam o que estão a ver, mas habituei-me a eles, uma
vez que há sempre dezenas presentes nas Provas. Cor­rem à volta da Bowl,
documentando os eventos e os concorrentes, enquanto utilizam as suas
habilidades para projetar o que veem em ecrãs de grandes dimensões, bem
acima do chão do fosso.
E parece que estão a fazer o mesmo para esta versão das Provas.
Exceto que ele não está a projetar o que está a ver mas a guardar as imagens
para mais tarde. Devem existir dúzias deles, todos a correr pela floresta,
seguindo os concorrentes e documentando a primeira Prova para reproduzir
para o público quando tudo isto acabar.
Não dou um único passo na sua direção. É proibido interagir com os
Visões, tocar-lhes de qualquer forma durante as Provas. Eles são
simplesmente os olhos e os ouvidos do público que não pode estar aqui para
testemunhar.
O homem pestaneja finalmente, os seus olhos aclaram-se ligei­ramente
depois de ter conseguido todas as imagens que queria de mim. Afasta-se,
sem dúvida para ir recolher outras imagens ou per­seguir outros
concorrentes. Mas faz uma pausa a meio do passo e bate lentamente com os
seus dedos longos e escuros no bolso das calças, mantendo o meu olhar
atento antes de voltar a correr para a floresta.
Observo-o com atenção antes de desviar o olhar para o meu próprio
bolso. Atiraram-me para aqui apenas com o que tinha vestido quando
cambaleei para a cama, para além dos sapatos que tão generosamente me
puseram nos pés. Para além disso, apenas um acessório foi acrescentado ao
meu corpo — a estranha faixa de couro à volta do meu braço. Agradeço
silenciosamente à Peste por ter mantido a minha camisa justa vestida ontem
à noite, demasiado exausto para a tirar.
Tiro a mão do bolso das minhas calças justas, os dedos fe­chando-se à
volta de um pedaço de papel áspero. Desdobro-o com cuidado, revelando
uma caligrafia precisa:
A tarefa de roubar o maior número possível de faixas parece até
bastante simples; isto é, se conseguir sobreviver na floresta durante uma
semana. Mas eu leio nas entrelinhas do poema.
Estão a obrigar-nos a lutar uns contra os outros.
Ninguém desistirá facilmente da sua faixa. Sangue já foi derra­mado
por muito menos do que uma tira de couro nestas Provas. Amasso o papel
no punho, enfio-o bem fundo no bolso antes de olhar para a minha própria
faixa de couro a envolver o bíceps. Está apertada. Tão apertada que a única
maneira de tirar estas coisas abandonadas pela Peste é cortando-as da pele,
o que inevitavelmente vai tirar sangue, apesar da delicadeza.
É intencional, inteligente.
O Pai superou-se este ano.
O suor escorre-me para a testa, picando-me os olhos. O calor poderia
rivalizar com o do Scorches, e eu tiro a camisa para limpar o meu rosto
escorregadio. A minha garganta já está seca, ressequida pelo sol da manhã.
Encontra água primeiro. Os adversários em segundo lugar.
Paro, com os pés a esmagar a vegetação e a terra batida por baixo de
mim. Suspirando, olho para um dos pinheiros ameaçadores que se erguem
no meu caminho. Abano a cabeça e os ombros, tentando afastar o
nervosismo. Depois, agarro-me ao ramo mais baixo e ba­lanço as pernas
para cima.
Sim, já escalei estas árvores várias vezes e sim, já venci o meu medo
das alturas. Mas só porque um medo foi vencido, não quer dizer que seja
agradável confrontá-lo vezes sem conta. E, no entanto, aqui estou eu, a
subir a árvore, ramo a ramo.
O vento sopra e o sol ofusca-me enquanto continuo a subir o pi­nheiro
em busca de água. Minutos, talvez horas depois, com os mem­bros a doer e
o coração acelerado, chego finalmente ao topo. Chego ao último ramo que
aguenta o meu peso. Estou agora a uns duzentos metros no ar, suspenso por
nada mais do que um grande ramo de­baixo dos meus pés. Olho para baixo e
arrependo-me imediatamente.
Mantém-te firme, Kai.
Cair durante uma Prova seria uma forma patética de morrer e ar­‐
ruinaria completamente a minha reputação, mesmo na morte. Com isso em
mente, agarro-me ao tronco agora fino da árvore ao meu lado enquanto
espreito por entre as folhas e por cima da copa das árvores.
Sinto-me como se estivesse de volta ao salão de baile, olhando para
um mar de vários tons de verde. Os ramos cheios de folhas ba­lançam ao
vento como as mulheres bem vestidas que ainda ontem se balançavam na
pista de dança.
Ali.
Os meus olhos passam por um intervalo entre a linha de árvo­res, uma
pausa na dança das suas folhas. Um fragmento de rio, um riacho, uma fonte
de água. Neste momento, não me interessa se é uma maldita poça.
Faço o caminho de volta para a terra firme, com a minha res­piração a
regressar em rápidos tragos. Quando os meus pés encon­tram o solo, o sol já
está a atravessar o céu, informando-me que já é fim de tarde.
E depois vou-me embora. Em direção à água que todos os con­‐
correntes anseiam depois de serem drogados e de terem de se arras­tar pela
floresta durante horas. O Pai preparou-nos uma armadilha, na qual estamos
todos a entrar de livre vontade.
Horas. Longas e cansativas horas de caminhada pela folhagem é o que
a minha vida se tornou. Já encontrei várias cobras e plantas venenosas, que
me desafiam perante o meu aproximar.
Estou tão aborrecido.
Os meus olhos e o meu corpo estão alerta enquanto avanço, em­bora a
minha mente vagueie tanto quanto eu. Penso nas Provas, nos concorrentes...
E depois os meus pensamentos focam-se nela. Para.
Se Paedyn está tão determinada a odiar-me, posso facilitar-lhe muito as
coisas. Não precisaria de muito. Mas eu sou egoísta, fraco e não estou
disposto a fazer nada além de dificultar-lhe a tarefa de me afastar.
Ela é tão desconcertante como sedutora. A sua boca bonita diz uma
coisa, mas os seus olhos oceânicos dizem outra. Ela tira uma faca das
minhas costas apenas para dizer que vai enterrar outra lá. Ela é confusa,
cativante, e nós somos completamente errados um para o outro em todos os
sentidos certos. Ela é um fogo, e eu vou-me quei­mar. Um oceano e eu vou-
me afogar.
Passo a mão pela cara, querendo culpar a minha desidratação pela
tempestade de pensamentos que me invade.
Nunca estive tão afetado por uma única rapariga, e é absurdo,
absolutamente irritante. Mas depois sorrio, lembrando-me do seu coração a
bater sob os meus dedos, da sua respiração suspensa cada vez que lhe toco,
dos seus olhos a absorverem cada sorriso e covi­nha que ela supostamente
odeia.
O sentimento de aborrecimento absoluto por ser tão afetado por
alguém é definitivamente mútuo, embora tenha a certeza de que ela o
negaria com uma adaga na minha garganta.
Ela é tão cruel.
Algo brilha à luz do sol poente, chamando a minha atenção. Ali,
pendurada num ramo à minha direita, está uma espada embainhada, com o
seu punho prateado a piscar perante a luz quando dou um passo na sua
direção. Só preciso de um momento para subir e desatar o cinto do ramo
antes saltar da árvore.
É provável que haja armas e outros objetos escondidos por todo a
Whispers para usarmos.
É mais fácil extrair sangue dessa forma. É mais fácil para tornar as
coisas interessantes.
Coloco o cinto para baixo da cintura antes de descoser a espada para
cortar a folhagem espessa.
Está quase.
O chão está coberto de sombras e eu tenho agora um coelho que
precisa de ser cozinhado e um estômago que precisa de ser alimen­tado.
Tinha encontrado uma única estrela de arremesso alojada na casca de uma
árvore e usei-a no coelho desprevenido que agora es­tava amarrado ao meu
cinto.
Faço uma pausa, ouvindo-a antes de a ver.
A água é gloriosa e borbulhante. Depois, um pequeno riacho pouco
profundo emerge das árvores, com água corrente a saltar sobre as rochas
que o ocupam. Hesito, com os olhos a examinar o local aparentemente
pacífico.
Estou à vontade — por enquanto.
Rastejo até à margem do riacho, ajoelho-me diante dele e atento por
cima do ombro de vez em quando, não querendo deixar as cos­tas à mostra.
Salpico a água fresca no meu rosto, deixando-a escor­rer pela minha pele e
pelo meu peito nu.
O riacho borbulhante desce de uma pequena piscina a algumas dezenas
de metros de distância, com a água limpa, fresca e bonita.
Feita pelo homem.
E fresca. O trabalho de Hidros, sem dúvida, permitindo-nos este
pequeno favor de água fresca. Agradeço à Peste o facto de a água ser tão
limpa, tão purificada, que me poupa o trabalho de ter de a ferver de alguma
forma.
Estou a vasculhar a área à procura de lenha e de fogo quando quase
bato com a cabeça em algo pendurado na árvore, escondido nas sombras.
Cantil. Dois deles, balançando ao sabor da brisa noturna.
Dou por mim a agradecer à Peste mais uma vez.
Cortar dois paus juntos é tão divertido como parece, mas com anos de
prática e paciência, em breve tenho uma fogueira a crepitar à minha frente.
E embora esfolar um coelho com uma espada longa seja tão difícil quanto
irritante, depressa está a assar sobre as chamas.
E depois...
Um fio de poder percorre o meu corpo, acendendo os meus ner­vos e
enviando um arrepio familiar pela minha espinha. Os pelos da minha nuca
eriçam-se ao sentir aquele poder, aquela força, a inundar o meu corpo.
Alguém está a chegar. E eu sei quem é.
Um galho estala à minha esquerda. Depois outro.
Não me lembro quando me levantei, mas agora estou a mover-me em
bicos de pés, incapaz de evitar aquela ânsia conhecida por uma luta e pelo
domínio e destruição que sinto a cada embate. Lutar é a minha valsa
favorita, e sei os passos de cor.
Braxton atravessa a linha de árvores com os olhos selvagens.
Atraído pelo fumo da fogueira, pensou em criar uma emboscada a
quem a tinha acendido. Mas, para seu azar, senti-o chegar antes mesmo de o
ouvir a correr pela floresta.
Vejo-o hesitante como se estivesse a pensar em voltar para trás em vez
de arriscar uma luta comigo. Mas a incerteza desaparece do seu rosto
quando se aproxima lentamente. Entra no anel de luz da fogueira, a sua
silhueta é grande e pesada.
— Olá, Brax. Que bom que passaste por cá.
Inclina a cabeça para mim da mesma forma que sempre fez.
— Boa noite, Kai.
Sendo um Forte, nunca foi muito de conversas, preferindo ob­servar
pacientemente antes de dizer uma palavra, o que faz dele e de Sadie
estranhamente parecidos. Começamos lentamente a ro­dear-nos em silêncio,
numa tentativa de nos avaliarmos.
— Então, presumo que estás aqui por causa da minha faixa e não para
uma conversa amigável — suspiro, dando um passo na sua direção.
— A tua suposição está correta — lança um olhar para o coelho que
está a cozinhar. — Se me ofereceres a faixa, eu saio e deixo-te voltar à tua
refeição. Não precisamos de lutas e confusões.
Não vejo nenhuma arma na sua posse, por isso abstenho-me de pegar
na minha. Conhecemo-nos desde miúdos e gostaria de con­tinuar a conhecê-
lo.
— Ambos sabemos que não te posso deixar ficar com a minha faixa,
Brax.
Porque a minha missão é ganhar estas Provas.
Acho que o vejo a acenar com a cabeça na escuridão crescente, antes
de vir de repente para cima de mim. Baixei-me e aproveitei o seu impulso
para o atirar por cima do meu ombro, ouvindo-o bater no chão com um
forte estrondo.
Treinei com ele durante anos. É previsível, mas tal não o torna menos
poderoso. Coloca-se de pé num instante, com os punhos le­vantados e pronto
para me partir os dentes.
E depois segue-se um caos calculado.
Os punhos batem, as cabeças balançam, os pés agitam-se. Uma dança.
Uma dança brutal, sangrenta e bela. Somos neste momento iguais em
habilidade, visto que deixei o seu poder sair das minhas veias e vir à
superfície. Os meus golpes são brutais e rápidos à luz da fogueira.
Esmurrou-me o maxilar, quase partindo, e fazendo com que o sangue
quente se acumule na minha boca. Cambaleio, mas ele co­loca-se na minha
retaguarda e envolve o seu braço enorme à volta da minha garganta,
estrangulando-me. Consigo sentir a sua hesitação antes de impulsionar a
minha cabeça para trás, o crânio encontrando o seu nariz com um estalido
doentio. Agora está ele a cambalear, com sangue a escorrer-lhe do nariz
para a boca.
Aproveito a fração de segundo para o atacar com golpes rápidos que
mal consegue bloquear. Recupera rapidamente, golpeando as minhas
costelas com um murro poderoso. Eu esquivo-me do seu próximo golpe e
atiro-lhe um ao maxilar.
É um círculo vicioso. Eu bato-lhe. Ele bate-me de volta. Para minha
surpresa, estou impressionado. Nunca o vi tão concentrado, tão
determinado. Este é o melhor combate que tive com ele até hoje. É uma
pena que tenha de o matar.
Uma mão escura dirige-se ao meu rosto. Dou um passo atrás com
facilidade, os meus calcanhares batem em qualquer coisa, enquanto o calor
aquece tudo, desde a parte de trás das minhas pernas até à nuca.
A fogueira.
Encurralou-me contra o fogo.
Inteligente.
Passo por baixo de um murro destinado ao meu nariz e enterro o meu
punho no estômago dele. Ele grunhe, dobrando-se, mas agarra o meu braço
num movimento rápido. Depois torce-se, pu­xando o meu braço para trás das
costas e o meu peito em direção ao fogo. A dor sobe por mim até ao ombro
enquanto as chamas brilham à minha frente.
Talvez devesse ter-me esforçado mais.
Dá um pontapé na parte de trás dos meus joelhos, com força, antes de
o chão ainda mais duro criar uma dor que me sobe pelas pernas quando
choco contra ele. As chamas estão agora próximas, quase a lamber-me o
peito nu.
— Deixa-me lá cortar a faixa, Kai — diz Braxton em cima de mim,
soando como um apelo. É bom saber que ele não gosta exatamente da ideia
de me queimar vivo. — Isto tudo pode acabar.
A sua voz é grave, mas eu percebo um ligeiro tremor nela. É apa­nhado
desprevenido, surpreendido por me ter a pairar sobre as cha­mas como o
coelho agora queimado ao meu lado.
Atuei de forma desleixada e cansada, um tolo que o subestimou, mas
agora ele tem o futuro Executor à sua mercê.
— Esta é a melhor luta que já tivemos, Brax. Estou impressio­nado, a
sério — ofego, o calor do fogo a fazer-me transpirar. — Mas vais ter de me
queimar antes de te dar a minha faixa.
Ele respira fundo.
— Tinha a sensação de que me ias dizer isso. — Uma pausa. — E
gostava que não tivesse de ser assim.
A carne encontra o fogo.
A minha pele encontra-se com o fogo ardente e quente.
Espero que um grito saia da minha garganta, mas nada além de um
choro estrangulado passa pelos meus lábios. O joelho de Brax­ton bate-me
nas costas, inclinando o meu corpo e forçando o lado esquerdo do meu
peito contra as chamas.
Estou a arder, a ferver, a fazer bolhas, enquanto ele me segura ali antes
de finalmente me puxar para trás, autorizando que o ar fresco me envolva.
Estou a arfar enquanto ele estende a outra mão para a espada ao meu lado,
pronto para a tirar da bainha e cortar a faixa do meu braço, agora que estou
atordoado de dor.
Contudo, já senti dores muito piores.
O seu braço estende-se ao meu lado, e eu agarro-o, ficando de pé no
mesmo movimento, a adrenalina abafando a dor da minha carne queimada.
Puxo-lhe o braço por cima do meu ombro e inclino o meu corpo para frente,
usando o meu impulso e a minha força de Forte para levantá-lo do chão e
mandá-lo cair sobre as minhas costas e direto para as chamas.
Solta um grito, mas não se demora muito antes de rolar para fora das
chamas, gritando enquanto se contorce na terra para abafar o fogo que lhe
corrói a roupa, a pele. O fumo está a sair da sua roupa queimada quando me
agacho sobre ele.
— Também gostava que não tivesse de ser assim — digo-lhe baixinho,
enquanto ele se agita por baixo. — Mas tu tens algo de que eu preciso.
Corto-lhe a faixa do antebraço, sem conseguir parar de o magoar e de
lhe tirar mais sangue. A sua respiração é rouca, enquanto vou procurando
nos bolsos por outras faixas que possa ter roubado pelo caminho, mas não
encontro nenhuma. Levanto-me, olho-o e digo-lhe apenas duas palavras:
— Vai-te embora.
Olha-me fixamente por um momento, antes de grunhir de dor e de se
pôr de pé, coxeando para o bosque tão depressa quanto o seu corpo
carbonizado é capaz. Vejo-o partir, ouvindo-o lutar para na­vegar pela
floresta escura, sabendo que não se atreverá a voltar. De­pois viro-me,
olhando diretamente para o Visão que eu sabia estar a documentar toda a
luta.
— Espero que tenhas gostado do espetáculo — afirmo com uma
inclinação de cabeça. Assim que as palavras saem da minha boca, a mulher
de branco pisca o olho e desaparece na floresta.
Enfio a faixa de Braxton no bolso enquanto a dor me assola o corpo.
Uma dor ofuscante e intensa. Atento para o peito, para o pedaço de
pele vermelha e inflamada mesmo por cima da minha tatuagem.
A adrenalina foi-se, e só me resta a dor a percorrer o meu corpo.
Cambaleio até aos meus cantis, desenrosco um e deito o conteúdo frio sobre
a queimadura. Sibilo por entre os dentes quando a água encontra a carne
queimada, mas é um alívio, por mais pequeno que seja.
Pego na minha camisa amarrotada do bolso e rasgo-lhe uma grande
tira de pano com os dentes, antes de começar a enrolar o tecido com
cuidado debaixo do braço e sobre a queimadura. O resul­tado é uma ligadura
improvisada para tentar diminuir as hipóteses de infeção. Mas não vai servir
por muito tempo. Preciso de encontrar algumas ervas, qualquer coisa,
qualquer coisa, para limpar a ferida.
Porque morrer não é uma opção.
E perder estas Provas certamente também não.
— Vou torcer-te o pescoço se não te calares.
O pássaro ignora completamente a minha ameaça real de morte e
continua a debater-se no ramo acima da minha cabeça. Está a grasnar há
quase meia hora, o que me levou a atirar pelo menos uma dúzia de pedras
na sua direção.
Estou irritada, zangada, ansiosa e, acima de tudo, absolutamente
esfomeada. Claro que tudo isto são efeitos secundários de acordar no meio
da floresta sem nada para além das roupas com que dormi. Olho para baixo,
para as minhas calças apertadas de tecido e para o top ainda mais revelador.
Uma coisa fina e sedosa que me arre­pendo de ter vestido, considerando que
agora será a minha única camisola durante a próxima semana.
Uma semana.
É o tempo que tenho de sobreviver nesta floresta. Whispers. Neste
lugar repleto de inimigos de todas as formas e feitios, embora já seja meio-
dia e o único adversário que enfrentei até agora foi a cobra que quase me
arrancou o pé à dentada. Tenho andado a percorrer a densa folhagem desde
o momento em que acordei, de barriga para baixo na terra, depois de ter
visto uma mulher vestida de branco ofuscante.
Uma Visão. Aqui para espiar os concorrentes. Aqui para registar esta
Prova sangrenta. Aqui para documentar o que o público não consegue
testemunhar em tempo real.
De certeza que o resto de Ilya está tão confusa como eu em rela­ção às
Provas deste ano. No entanto, não posso dizer que não fomos avisados.
É diferente. Foi o único aviso que recebemos.
Exceto que diferente nem sequer chega para descrever o quão
drasticamente estas Provas mudaram. Nas últimas três décadas, nunca
houve uma Prova fora das paredes da Bowl, fora dos olha­res do público.
Mas suponho que apenas as Provas mais perigosas, mais brutais e
sangrentas, são adequadas para testar o futuro Exe­cutor. Só gostava de não
fazer parte delas.
Todos fomos involuntariamente atirados para as terras mortais da
Whispers, deixados a morrer pelos elementos ou pela mão dos nossos
inimigos. É brilhante. É cruel. E eu não sei se devo bater palmas ou chorar.
Não esperaria menos do Rei.
Os meus olhos dirigem-se para o meu antebraço direito, onde a faixa
de couro está enrolada com força.
«Recolhe daqueles que foram dignos de receber a faixa, e fica alerta,
se voltares de mãos vazias».
Rio-me amargamente para o vazio que me rodeia. Eles querem que
lutemos, que lutemos verdadeiramente uns contra os outros por estas tiras
de couro. Por isso, num esforço para me manter viva o tempo suficiente
para encontrar outro oponente, parto em busca de água. As árvores aqui são
tremendas e aterradoras, erguendo-se bem alto e raspando as nuvens baixas.
Demorei séculos a escalar Uma delas para encontrar a fonte de água mais
próxima, e as últimas horas, muito aborrecidas, consistiram em caminhar
em direção ao que espero que seja um riacho.
Só que agora estou sentada debaixo de uma árvore e a discutir com um
pássaro. Atiro-lhe outra pedra por precaução, antes de vol­tar a minha
atenção para o fardo de paus ao meu lado. Pego noutra ponta de seta que
recolhi pelo caminho, um dos generosos presen­tes deixados para nos ajudar,
e prendo-a a um dos paus. Há dema­siado tempo que faço flechas para
acompanhar o arco e a aljava que encontrei convenientemente encostada ao
tronco de uma árvore.
Como se os Elites precisassem de armas.
As penas fornecidas pelo pássaro irritante, mas útil, completam a
flecha. Olho para a minha obra com um pequeno sorriso, estu­dando as sete
flechas soltas que agora enchem a aljava. Graças ao meu pai, esta não foi a
primeira vez que tive de fazer uma flecha e o meu sorriso cresce com a
memória distante.
Atiro a aljava para o ombro e cruzo a corda do arco ao longo do peito,
despedindo-me do pássaro ainda empoleirado na árvore. Solto um suspiro e
começo, mais uma vez, a dirigir-me para a água de que tanto preciso. Os
meus passos são leves e silenciosos en­quanto percorro o terreno, de olhos
atentos a qualquer animal que possa devorar.
Ali.
Um coelho gordo salta dos arbustos a algumas dezenas de me­tros de
distância, completamente alheado das minhas más inten­ções. Puxo o arco
por cima da cabeça e tiro uma seta da aljava. Aponto-a e respiro fundo, tal
como o meu pai me ensinou. E depois envio a seta em direção ao alvo.
Diretamente através do olho do coelho.
Está morto antes mesmo de cair no chão. Apanho o animal, limpo a
ponta da flecha numa planta próxima que espero não ser venenosa e
devolvo a flecha à minha aljava.
Encontra água. Acende uma fogueira. Come a comida.
E depois volto a andar, tropeçando em raízes de árvores e trope­çando
em pedras.
É fascinante.
Deixo que os meus pensamentos se descontrolem enquanto mantenho
um ritmo constante através da folhagem, pensando nos meus adversários,
no baile, nas mãos calejadas nas minhas costas e nos olhos cinzentos que
estudam o meu rosto.
Suspiro de aborrecimento e pontapeio uma pedra com mais força do
que devia. Uma série de palavrões sai da minha boca — di­rigidos à pedra, a
mim própria e ao sacana convencido que odeio por não odiar
completamente.
O sol está a descer pelo céu enquanto eu continuo a pisar a ve­getação,
praguejando contra as múltiplas teias de aranha que atra­vesso e as aranhas
gigantes que as acompanham.
Uma Visão alcança-me e eu tento ao máximo ignorar-lhe a pre­sença.
Quando se dá por satisfeito com as imagens que recolheu a andar de um
lado para o outro na floresta, vira-se e desaparece.
A luz quente do sol do fim da tarde atravessa as árvores, inun­dando a
floresta com sombras douradas. Por um momento, deixo-me levar pela
beleza sinistra deste lugar misterioso.
E depois algo me bate na cara.
Bem, eu bati em alguma coisa. Quase tropeço para trás, gague­jando,
apenas para descobrir que fui direita a uma enorme camisa de algodão
pendurada num ramo baixo. Agarro-a, resmungando que não preciso das
gentilezas do Rei, ao mesmo tempo que a visto.
Caminho e caminho.
Estou aborrecida. Estou aborrecida durante uma Prova sangrenta.
E depois algo capta a minha atenção, brilhando no canto do meu olho.
Viro-me, com as folhas a rangerem debaixo dos meus pés. A minha boca
quase se abre perante o que se encontra a não mais de trinta metros de mim.
Uma piscina profunda de água cristalina brilha à luz do sol, on­dulando
ligeiramente com a brisa quente. Acolhedora e maravilhosa. Pestanejo. Não
vi esta piscina quando estava no alto da árvore, a observar. Por outro lado, a
água cintilante está rodeada de árvores, quase engolida pela folhagem que a
rodeia.
Quase tropeço na minha pressa de a alcançar.
Água. Água. Água.
Tenho tanta sede, tanta vontade de beber o mais que puder. De­pois faça
uma fogueira, cozinho o meu coelho e...
Há algo na água, a flutuar.
Estou muito mais perto agora, o sol já não é tão ofuscante quando
brilha na superfície clara, e consigo ver um contorno no topo. Um contorno
humano. Avanço, tirando o arco do peito, segurando-o com o punho.
A figura não se está a mexer.
A figura com cabelo loiro sujo colado à sua testa bronzeada.
A figura com os mesmos olhos verdes vítreos do Rei, olhando
fixamente para o céu azul.
Um grito estrangulado sai-me da garganta, fazendo com que os
pássaros se espalhem pelas árvores à minha volta.
Kitt.
Está morto.
Estou a arfar, a tropeçar na borda da piscina. Posso odiar o pai dele e o
reino que um dia irá governar, mas isso não significa que de­seje vê-lo
morto. O pensamento assusta-me, considerando o quanto desejo esse
destino para o Rei que se parece tanto com ele. Mas e se as suas feições
familiares forem o fim das semelhanças entre eles? E se houver esperança
de que o Príncipe saia da sombra do pai, das suas pegadas, e crie uma
mudança no seu reino?
Forço-me a encontrar o seu olhar brilhante, onde agora só vejo o
potencial do Príncipe e não a presença do seu pai. Aqueles olhos ver­des,
outrora divertidos, nunca mais voltarão a brilhar. Em vez disso, olham para
o vazio, largos, sem brilho e sem vida. Aquele sorriso torto não voltará a
agraciar os seus lábios. Em vez disso, a boca está apertada numa linha fina
— azul, beijada pelo frio da morte.
Salto para a piscina, querendo tirá-lo desta morte aquática. Em vez
disso, os meus pés encontram terra firme.
Os meus ossos estremecem com o impacto, sentindo que se vão partir
com a força.
Pestanejo para afastar a dor, mas isso não ajuda em nada a dis­sipar a
minha confusão. De repente, não há água debaixo dos meus pés, nem Kitt
caído morto na superfície. Olho para o solo, incré­dula, tentando perceber o
que se passa.
— Ajuda-me.
Penduro uma flecha no meu arco antes mesmo de me virar para
encarar o dono daquela voz quebrada.
Engasgo-me com o meu suspiro.
Sou eu.
Os seus olhos azuis profundos fixam-se nos meus — olhos tristes e
famintos. Um longo cabelo prateado, emaranhado e opaco, pende da cabeça
da menina. Ela é — eu sou — pequena, tão pequena. Fraca, cansada e com
os olhos arregalados, atentando-me.
Estica um dedo ossudo na minha direção.
— Por favor — sussurra, choraminga.
Eu tropeço para trás ao som da — minha — voz quebrada, quase em
pânico quando ela dá um passo trémulo para se aproximar.
Isto não é real.
Viro-me, pronta para fugir deste pesadelo, mas dou de caras com outra
pequena Paedyn, com as bochechas fracas e os olhos vazios.
Estou a delirar. Desidratada.
Controlo-me para não gritar e viro-me para a minha direita, en­‐
contrando outra versão esfomeada de mim própria.
Estou cercada. Completamente rodeada de Paedyns suplicantes. Dão
um passo em frente, implorando-me que as ajude, enquanto estendem a
mão, tentando agarrar-me.
Desta vez, não me dou ao trabalho de conter o meu grito.
Estão a aproximar-se, a apertar-me. Estou a gritar, confusa e...
Não, não estás a delirar.
Cambaleiam na minha direção, procurando ajuda que não lhes posso
dar.
Este é o Ace.
Mesmo sabendo isso, ainda não suporto encará-las, olhar para mim
própria. Não aguento ouvi-las a implorar por ajuda enquanto eu não faço
nada. Esta era eu. Já fui esta rapariga esfomeada e triste. Por­que quando o
meu pai morreu, morreu também uma parte de mim.
Isto não é real. Isto não é real. Isto não é real.
Eu grito, caindo de joelhos e agarrando a minha cabeça em frustração.
— Eu sei que és tu, Ace — grito com os dentes cerrados. Ouço as
gargalhadas arrogantes tornarem-se mais altas à medida que ele se
aproxima. Respiro fundo e ponho-me de pé, tremendo de nojo e raiva,
enquanto me preparo para ser cercada por Paedyns doentes.
Mas a súplica para e as Paedyns desaparecem, deixando apenas Ace
diante de mim. O seu olhar desce para a seta apontada ao seu peito antes de
encontrar o meu. Tem a audácia de sorrir.
— Olá, Paedyn. — A sua voz é presunçosa e ergue uma sobrance­lha.
— Gostaste de conversar com a tua eu mais nova?
— Tu és doente — cuspo, puxando a corda do meu arco.
Ele suspira, já aborrecido com a nossa conversa. Levantando o nariz,
diz:
— Deixa-me apenas levar a tua faixa e vou-me embora. — Faz uma
pausa. — Na verdade, até te deixo tirá-la, para não te cortar.
— Que generoso. — Estou praticamente a rosnar-lhe. — Mas vou
recusar a oferta.
Os meus dentes estão à mostra, e estou a um passo de enviar a seta
apontada ao seu coração negro.
Ele suspira, afastando o cabelo castanho do rosto com um olhar
irritado.
— Está bem. — Os seus olhos escurecem. — Como queiras. Não me
importo de ter de me sujar.
E depois vem na minha direção, agarrando-me o braço. Não he­sito e
disparo a minha flecha para a sua coxa, com o objetivo de ferir e não de
matar. Recuso-me a dar ao Rei e ao povo o que eles desejam: a morte.
Exceto que a flecha nunca encontra a pele, nunca se afunda na carne.
Ela atravessa-o. A ilusão desaparece como fumo ao vento, ten­tando-me a
gritar de frustração.
Outro Ace sai de trás de uma árvore a alguns metros de distância, com
folhas a ranger sob os pés enquanto bate palmas lentamente.
— Uau. Boa tentativa.
Agarra uma lança afiada na sua mão, sorrindo como um gato.
— Para de te esconder atrás das tuas ilusões, cobarde! — Estou a
fumegar, com a adrenalina a correr-me nas veias.
Este é o verdadeiro Ace, tenho a certeza. As folhas denunciaram-no,
fazendo barulho quando as pisa, ao contrário da primeira vez que se
aproximou de mim. Parece sentir que eu percebi, e quando estou prestes a
enterrar-lhe uma flecha, rodeia-se de uma dúzia de duplicados, escondendo-
se dentro deles.
Falam todos em uníssono e começam a cercar-me, ocultando o som
das folhas a estalar.
— Se me deres a faixa agora, não te vou magoar. Muito.
Eles riem-se e o som é doentio, parecendo saltar no meu crânio.
Volto-me, sem saber para quem apontar. Agora só tenho seis fle­chas e
não me posso dar ao luxo de desperdiçar uma única. Eles estão a aproximar-
se de mim, a aproximar-se para matar.
Encontra o verdadeiro Ace.
É mais fácil dizer do que fazer. Todos têm o mesmo aspeto e movem-
se exatamente da mesma forma, todos seguram lanças e estão prontos para
me apunhalar, embora só o verdadeiro possa fazer algum dano.
— Vou gostar disto, Paedyn — dizem-me, sorrindo.
Os meus olhos percorrem cada um dos corpos. Observo as suas
posturas idênticas, as suas expressões faciais, tudo o que é igual.
Eu não vou morrer. Não vou morrer. Eu não vou morrer.
É então que os meus olhos se fixam num Ace em particular, idêntico
aos outros.
Encontrei-te.
A pequena gota de suor que escorre pelo lado da sua têmpora foi o
suficiente para o denunciar, o único sinal.
Levanto o arco na sua direção no momento exato em que ele avança
para mim. Salto para o lado, mas não antes da dor irromper no meu
estômago. Uma dor ardente, que ignoro enquanto lanço a flecha, deixando-a
cair diretamente na carne da perna de Ace.
Ele grita, caindo de joelhos na terra, com as mãos a tremer à volta da
seta que lhe sai da coxa. Mas eu não concedo, nem a ele nem à Visão que
está a observar, um segundo olhar antes de me virar a correr.
Não sei até onde consegui chegar. Não sei quanta distância tive de
colocar entre nós antes que a adrenalina deixasse o meu corpo, lembrando-
me que estou a sangrar. A dor abrasadora está de volta, dando-me um murro
tão forte no estômago que estou a ofegar.
Levanto a minha camisa larga para revelar a camisola de seda por
baixo, agora encharcada de sangue. Respiro fundo e puxo a ca­mada de
tecido que me separa da ferida, antes de estremecer ao vê-la. Um corte
longo e sangrento abre a pele mesmo por baixo da minha costela.
Uma ferida de lança.
A minha respiração é trémula e superficial.
Pelo menos estou viva.
Mas de certeza que não me sinto viva. É excruciante. A dor é lan­‐
cinante e abrasadora, incendiando-me os nervos. Com cuidado, ar­ranco a
camisola grande, encolhendo-me e sufocando gritos de dor com cada
movimento do meu braço direito. O movimento puxa a pele, a ferida,
fazendo-a jorrar ainda mais sangue.
Rasgo a bainha inferior da camisa, criando uma faixa larga de tecido
branco. Trabalho tão depressa quanto o ferimento me per­mite, enrolando
cuidadosamente o tecido à volta da minha cintura e sobre a ferida. Respiro a
dor latejante que isto provoca, pestanejo para afastar as lágrimas enquanto
puxo o que resta da camisola, tão grande que ainda me cobre o estômago.
Preciso de encontrar água.
Solto um suspiro trémulo, o que por si só me faz sentir uma dor aguda
enquanto recomeço a caminhar pela floresta.
Não, tropeçando para ser mais exata.
Mantém-te acordada. Mantém-te acordada. Mantém-te acor­dada. As
minhas pálpebras traidoras parecem chumbo. Cada vez que pestanejo, tenho
medo que não voltem a abrir. Há horas que ando a tropeçar lentamente pela
floresta sombria em direção ao ria­cho, na esperança cega de ainda estar na
direção certa.
Estou cansada. Muito cansada. Não quero nada mais do que encostar-
me a uma árvore e fechar os olhos por breves instantes. Apenas um
momento feliz de paz.
Não.
Aperto o meu braço, com força, obrigando a que as minhas pál­pebras
caídas se abram.
Se adormecer, é provável que não volte a acordar.
Estou em mau estado, e não preciso de ser filha de um Curan­deiro para
o perceber. Perdi tanto sangue que a minha cabeça flu­tua enquanto tento
manter-me de pé. Abano-a tentando ignorar a minha pele febril e o meu
corpo a tremer. Tal como ignoro a tira de pano que usei como ligadura e que
está encharcada de sangue, manchando o algodão de escarlate.
Preciso de limpar a ferida e depressa. Se não o fizer, é como se
estivesse morta.
O que eu preciso é de água.
Cada parte de mim arde. Arde de dor, sede e fome. Se conseguir
chegar a um pouco de água, posso pelo menos lavar a ferida, curar a minha
desidratação e recuperar os meus sentidos o tempo sufi­ciente para criar uma
mistura de ervas para limpar o ferimento.
Espero que sim.
Depois, preocupar-me-ei em comer, visto que mal consigo puxar a
corda do meu arco, e o coelho que matei está há muito esquecido no local
da emboscada que Ace me fez.
Deixando-me indefesa e esfomeada.
Vai para o riacho. Vai para o riacho. Vai para o riacho.
Um brilho ténue e alaranjado espreita por entre as árvores à minha
frente, desfocado pelos meus olhos descaídos. Foco-o de novo, sem saber se
estou a alucinar ou não. Aperto o arco com a mão suada, já com uma flecha
espetada, embora seja praticamente inútil se não conseguir puxar a maldita
corda para dispará-la. Continuo a aproximar-me da fogueira, que está a
algumas dezenas de metros de distância, completamente sem vigilância.
A luz que emite reflete algo que brilha ao seu lado.
O riacho.
Um riso aliviado e ofegante escapa-me enquanto continuo cau­‐
telosamente a caminhar em frente. Estou a ser imprudente, claro, mas neste
estado não me importo particularmente. Alguém co­meçou este fogo e eu
posso estar a caminhar na sua direção. Mas vou morrer se não chegar
àquela água, embora possa ser morta se o fizer.
Ambas as opções serão provavelmente a minha morte iminente. Ótimo.
Agora estou a poucos metros do fogo, os meus olhos procuram nas
sombras qualquer sinal do humano que o acendeu.
Vai para a água. Vai para a...
— Tu não consegues ficar longe de mim, pois não, Gray? — Eu paro,
com o coração a martelar.
Consigo ouvir o divertimento na sua voz, praticamente a ima­ginar as
covinhas a espreitar de cada lado do seu sorriso. Respiro fundo, preparando-
me mentalmente para a dor excruciante que estou prestes a suportar.
Dando a volta, levanto o meu arco e puxo a corda. Engulo o meu grito
de dor quando sinto a minha ferida a rasgar-se e a esticar-se com o
movimento.
Não o posso deixar ver que estou ferida. Finge. Vai para a água.
Aponto a seta ao seu coração, mas só consigo ver-lhe o peito ex­posto à
luz bruxuleante. Parece que não sou a primeira adversária que encontra,
nem a primeira a apontar-lhe algo ao coração. En­volveu uma tira de pano
debaixo do braço e à volta de uma ferida mesmo por cima da sua tatuagem
ondulante.
Os meus olhos procuram os dele, querendo que a agonia desa­pareça
das minhas feições. Desejando que ele me veja como uma ameaça. A sua
atenção percorre-me com uma expressão que não con­sigo decifrar, mas não
estou com disposição nem com cabeça para tal.
— Vai-te embora ou disparo.
O meu braço começa a tremer com o esforço e a dor de manter o arco
apontado.
Ele apenas ri e dá um passo na minha direção.
— Também é bom ver-te, Gray.
— Achas que estou a brincar? Que giro. — Fico irritada, com o peito a
arfar.
— O quê, é só isso? Vais simplesmente dar-me um tiro? — Os seus
lábios contorcem-se. — Onde é que está a piada nisso?
— Oh, vai ser divertido para mim, garanto-te. — Tenho a voz tré­mula.
Estou a tremer.
Kai dá mais um passo, inclinando a cabeça para o lado. As suas mãos
estão casualmente nos bolsos enquanto me observa.
— Estou confuso. Sabes que o objetivo desta prova é levares a minha
faixa, correto? — O seu sorriso cresce. — Ou pelo menos tentar.
— Bem, estou a deixar-te decidir se queres que isto seja algo calmo,
permitindo que te vás embora. — As palavras não soam nem um pouco
ameaçadoras. Estou agora a balançar os pés, com a cabeça a andar à roda.
Não posso fazer isto durante muito mais tempo.
Sinto o sangue quente a escorrer-me pelo estômago, proveniente da
ferida rasgada, e pontos negros nadam à frente dos meus olhos, ameaçando
engolir-me por inteiro.
Vou desmaiar. E se não acordar? E se morrer porque não fui sufi­‐
cientemente forte? Porque sou uma Vulgar fraca...
— Gray...?
Por entre as minhas pálpebras caídas, consigo ver Kai a dar um passo
hesitante na minha direção, com toda a diversão apagada do rosto. E devo
estar mesmo a alucinar porque acho que vejo preocu­pação no seu olhar.
— Gray, o que é que aconteceu? — Ele avança lentamente até mim,
mas eu não consigo manter o arco na mão por mais tempo. Por uma razão
que não consigo explicar, aponto para o chão, solto a corda e deixo a seta
cair na terra a seus pés antes do arco escorregar da minha mão suada.
Mal consigo ouvir o grito de Kai por entre o zumbido nos meus
ouvidos.
— Gray!
Não me lembro de ter caído no chão.
A minha cara bate contra a terra compactada, mas mal a sinto. Todo o
meu corpo está a arder, mal consigo respirar enquanto ardo de dentro para
fora.
— Paedyn! Ei, Pae, olha para mim.
Mãos ásperas agarram-me os lados da cara, obrigando-me a abrir os
olhos. Sentem-se frias contra a minha pele febril, agora escorregadia de
suor, e a preocupação está escrita em todo o belo rosto que paira sobre mim.
Nunca o vi tão preocupado, tão cheio de emoção. A sua máscara fria caiu,
despedaçou-se, estilhaçou-se num milhão de pedaços enquanto ele levanta a
minha cabeça do chão, puxando-me para si e procurando o meu rosto com
os seus olhos cinzentos e arregalados.
E depois foi-se embora. A escuridão.
— Ei, ei, ei. — Mãos calejadas afastam o cabelo húmido da minha
testa enquanto palavras são murmuradas perto do meu rosto. — Pae, fica
comigo.
A sua voz é severa, apesar do pânico a envolver cada palavra.
Lentamente, forço os meus olhos a abrirem-se enquanto coaxo
palavras silenciosas através de lábios rachados, palavras que de re­pente
parecem tão importantes.
— Nunca me chamaste isso.
Só o ouvi dizer o meu nome verdadeiro uma vez, quando me encostou
à parede de um beco enquanto testava a palavra pela primeira vez. Mas
nunca mais ouvi o meu nome passar-lhe pelos lá­bios desde então. Não ouvi
a forma como pronuncia as duas sílabas.
E de certeza que nunca o ouvi chamar-me Pae.
Estou a sorrir para ele agora, a sorrir como uma idiota. Não con­sigo
parar. Delirante. Estou completa e inegavelmente a delirar.
Mas, neste momento, não quero morrer — nem que seja para o ouvir
dizer o meu nome mais uma vez.
Delirante. Estou tão delirante.
De repente, fica imóvel. Os seus olhos percorrem o meu rosto, os
lábios ligeiramente entreabertos enquanto me observa. Depois pestaneja.
Uma vez. Duas vezes. As suas pestanas escuras tremem, os seus olhos
cinzentos passam pelos meus enquanto me diz:
— Lembra-me de te fazer sorrir assim outra vez, quando não esti­veres
a morrer, e eu tiver todo o tempo do mundo para o memorizar.
Agora é a minha vez de pestanejar. Uma vez. Duas vezes.
Esse comentário foi tudo o que precisava para me acordar, por­que
agora os meus olhos não parecem querer desviar-se dos seus. Devo ter
ouvido mal. Estou tão delirante que a minha mente está a pregar-me
partidas, a brincar com as minhas emoções, os meus sentimentos.
Mas não estou certamente a imaginar as mãos que estão a subir-me
pelo corpo. Quase me engasgo com a minha respiração ofegante quando os
seus dedos roçam os meus tornozelos, subindo lentamente por cada uma das
minhas pernas.
Está a tentar encontrar aferida. Abro a boca para lhe dizer onde está,
mas a minha cabeça está a andar à roda e estou à beira de desmaiar com a
dor. Respiro fundo, tentando acalmar a cabeça e o coração.
Os seus dedos passam sobre as minhas pernas, apalpando e cutucando
suavemente enquanto procura a ferida. Quando se dá conta de que as
minhas pernas estão bem, as suas mãos deslizam até às minhas ancas,
levantando-me ligeiramente do chão para pas­sar uma mão pela parte
inferior das costas. As suas sobrancelhas estão cerradas em concentração
enquanto os seus dedos percorrem a parte inferior do meu estômago, os
seus movimentos são rápidos, firmes e seguros. Não é a primeira vez que
faz isto.
As suas mãos deslizam pelo meu abdómen, à volta da minha cintura.
Uma dor como nunca tinha sentido antes irrompe da ferida quando os
seus dedos dançam sobre ela, seguida de um soluço es­trangulado que me sai
da garganta. A dor é tão cega que penso que vou desmaiar. E dou por mim a
querer fazê-lo, nem que seja para não ter de me sentir mais assim.
Vejo, através de uma visão turva, como ele levanta a bainha da camisa
esfarrapada para revelar a camisa de seda que está por baixo, encharcada de
sangue. Ele inspira fundo antes de levantar a bainha do top, expondo a
minha pele febril à noite fresca. Sinto algo pequeno e afiado nas suas mãos
quando começa a cortar cuidado­samente o tecido ensanguentado à volta do
meu corpo.
A sua mandíbula cerra-se ao ver a ferida dentada que se estende por
baixo da minha caixa torácica, um músculo a tremer na sua bo­checha. Os
seus olhos, cheios de uma emoção que nunca tinha visto antes, percorrem a
confusão de sangue no meu estômago.
E então os meus próprios olhos fecham-se, selando a sua imagem.
Deixando-o no mundo que começa a desvanecer-se.
— Paedyn — a voz de Kai está tão longe, tão distante de onde estou, a
escorregar para o esquecimento. — Paedyn, abre os olhos.
É uma ordem, forte e severa. E eu ignoro-a. Muito típico de mim.
Mesmo na morte, o meu corpo recusa-se a ouvir as ordens do futuro
Executor.
— Abre os olhos, caramba!
Cansada. Estou muito cansada.
Longe, muito longe, ouço uma voz masculina a murmurar pala­vras de
pânico.
— Se morreres, eu mato-te.
Ela é demasiado teimosa para morrer, e eu sou demasiado tei­moso para
a deixar morrer. Passo-lhe a mão pela testa, a sua pele febril está quente ao
toque, a sua respiração é superficial. Está desi­dratada, a delirar, a morrer de
fome...
Apenas a morrer.
Os meus olhos voltam a olhar para o corte sangrento que tem debaixo
da costela, cheio de feridas e sem dúvida infetado. Puxo os restos da minha
camisa amarrotada e começo a esfregar a ferida, tentando absorver algum
do sangue para poder ver exatamente com o que estou a lidar. A pele está
rasgada, esfolada, e provavel­mente parece muito pior quando não está
escondida pelas sombras.
Mas o que é ainda mais preocupante é que não faço ideia de como a
ajudar. Não tenho provisões e não tenho nenhuma habili­dade de Curandeiro
à minha volta, o que me torna completamente inútil.
Estou a segurar a sua vida nas minhas mãos inúteis e desequi­padas.
Ponho-me de pé, procurando os meus cantis à luz fraca. Precisa de
água.
Afinal de contas, foi por isso que veio aqui, que arriscou entrar
diretamente no acampamento de alguém. Precisava de água. Preci­sava dela
para beber, para lavar a ferida. Mas isso não a vai salvar.
Não a posso salvar.
Suspiro de frustração, ameaçando perder a calma enquanto passo as
mãos pelo cabelo, ainda à procura dos malditos cantis. Mas a minha mente
não para de repetir a cena, não para de pensar no que acabou de acontecer.
Eu sabia que algo estava errado quando lhe vi o braço a tremer. Vi-o
tremer com o esforço de manter o arco apontado para mim, pronta para
cumprir a sua ameaça de disparar. Depois vi-lhe os joe­lhos a tremerem, vi o
fogo extinguir-se dos seus olhos azuis arden­tes. Mas, acima de tudo, ela não
estava a brincar comigo, não estava a provocar-me ou a torcer a boca
naquele seu sorriso malicioso de que tanto gosto. E é isso que mais me
preocupa.
E agora estou subitamente furioso com ela.
Ela queria que eu me fosse embora. Ia tentar lidar com isto sozi­nha.
Teria morrido sozinha. É tão teimosa que preferiu lutar comigo até
desmaiar, do que deixar-me ver a ferida. A imagem dela a cair no chão
arrepia-me, gelando a minha raiva ardente. Era de pensar que eu já estaria
entorpecido para testemunhar a dor, vendo a Morte levar outra vítima. Mas
quando ela caiu, algo dentro de mim estalou. A visão dela tão fraca, tão
vulnerável, tão diferente de si mesma, foi suficiente para quebrar um
pedaço da alma que eu tinha esquecido que existia em mim.
Os meus pés tropeçam nalguma coisa na escuridão. Finalmente.
Abaixei-me para pegar no cantil, mas os meus dedos dobraram-se em
torno de uma pequena caixa de lata. Aproximo-me da luz da fogueira,
dando uma espreitadela por cima do ombro para uma Paedyn ofegante.
Não tenho tempo para isto.
Estou prestes a atirar a caixa para longe, com fúria e frustra­ção,
quando o símbolo pintado na tampa brilha à luz, chamando a minha
atenção. Um diamante verde desbotado mancha o topo, e eu não hesito
antes de abrir a tampa para revelar um pequeno frasco com um líquido
escuro.
Eu olho para ele. Olho para o milagre na forma de um bálsamo de cura
criado pelos próprios Curandeiros, forte o suficiente para curar até mesmo
as feridas mais ameaçadoras.
E depois estou a rir-me com os nervos, sem conseguir parar. O
absurdo, a pura impossibilidade disto tudo me deixou histérico.
Braxton deve tê-la apanhado algures na floresta e deixou-a cair du­rante
a nossa luta.
A salvação de Paedyn esteve escondida nas sombras este tempo todo.
— Graças à Peste — murmuro, balançando a cabeça em descrença
quando o meu pé finalmente encontra um dos meus cantis no chão.
Num instante, ponho-me ao lado de Paedyn de joelhos, o seu peito mal
se levanta respirando superficialmente. Tiro a pomada da caixa, revelando
uma agulha e uma linha grossa para coser feridas. Dou por mim a rir outra
vez.
Inacreditável. Inacreditável mesmo.
Deito cuidadosamente um pouco do líquido escuro num canto limpo
da camisa que me resta. Isto vai arder, por isso é conveniente que ela esteja
inconsciente quando pressiono o pano contra a fe­rida, deixando a pomada
infiltrar-se. Lentamente, percorro o corte, observando como o fluxo
constante de sangue começa a abrandar. Passo o tecido contra uma parte
particularmente profunda da fe­rida e os seus olhos abrem-se rapidamente
antes que a sua mão se dirija para a minha cara.
Caramba.
A sua bofetada é chocantemente forte para alguém que esteve
demasiado perto de encontrar a Morte. A minha cabeça ainda está virada
para o lado, devido ao choque e ao impacto, mas um sorriso lento surge nos
meus lábios.
— Ai — finalmente volto-me para ela, encontrando uns olhos azuis
selvagens a fitarem-me. Está ofegante, claramente confusa. — É assim que
me agradeces por te ter salvado a vida?
Atento o seu rosto, aliviado por já ver alguma cor a florescer-lhe nas
bochechas, ver os seus olhos a brilhar novamente com aquele fogo habitual.
— Eu é que devia estar a dizer «ai». Mas que raio é isto? Arde. — Está
sem fôlego e a tremer por todo o lado. Os seus olhos passam da sua ferida
limpa para a pomada ainda agarrada à minha mão. E depois está a tentar
sentar-se. É um bom esforço, apesar dos seus grunhidos de dor.
— Calma, querida. — Coloco uma mão no seu lado são, encai­xando
na curva da sua cintura enquanto a pressiono lentamente de volta ao chão da
floresta. — Podes dar-me as bofetadas que quiseres quando estiveres
curada, mas até lá, tenta guardar as mãos para ti.
— Como é que eu estou viva? — A sua voz é tão baixa que a per­gunta
é quase abafada pelo chilrear dos grilos que nos rodeiam. Os seus olhos
estão fixos no céu, sem se atreverem a olhar para mim.
— Temos de agradecer ao Braxton por isso. — Pego no cantil de água
e levo-lho aos lábios. — Bebe. Estás desidratada. Embora sejas bastante
divertida quando estás a delirar.
Ela fita-me enquanto inclino o cantil para trás, deixando-a en­golir a
água avidamente. Olha-me com expetativa e eu suspiro, elaborando.
— O Braxton fez-me uma visitinha há pouco e deve ter deixado cair o
bálsamo que encontrou durante a nossa luta. — Suspiro. — E du­vido que
esteja muito contente com isso, visto que o podia ter usado nele mesmo.
Empurra a minha mão, recusando-se a beber mais até obter al­gumas
respostas.
Teimosa, coisinha teimosa.
— Então tu não... — Os seus olhos pulam entre o meu ferimento
enfaixado e o meu rosto, tentando ler-me.
— Não, eu não o matei — digo-lhe calmamente, respondendo à
pergunta por fazer. Ela lança-me um olhar estranho, um olhar que só a vi
fazer algumas vezes. Clareio a garganta e desvio a atenção, apoiando-me
nas palmas das mãos enquanto ela continua a estudar-me. — Matar não é
um hobby meu, ficas a saber.
Senti que precisava de o dizer. Senti que precisava de o admitir a ela, a
mim próprio. O que eu faço — o que eu fiz — tem um objetivo, uma razão.
Continuo a ser um monstro, mas não do tipo que adora as coisas odiosas
que faz.
Lá está aquele olhar outra vez. É como se estivesse a ver através das
minhas muitas máscaras, a derrubar as paredes, a despir-me com nada mais
do que o seu olhar. Odeio — adoro. Sinto-me livre — sinto-me preso. A
ideia de que um simples par de olhos azuis pode deixar-me tão vulnerável,
tão exposto, é alarmante.
Por isso, faço o que sei fazer melhor — desvio-me.
Limpo a voz antes de me inclinar para a frente e pegar na minha
camisa esfarrapada. Depois de deitar o resto da pomada no tecido,
pressiono-o suavemente na sua ferida. Ela sibila e os seus olhos prendem-se
nos meus, cheios de um fogo que me faz rir.
— Oh, esta nem sequer é a pior parte, querida. Ainda tenho de te coser.
Ela estabiliza a sua respiração trémula, com as pestanas longas a
fecharem-se enquanto indaga:
— Porque estás a fazer isto?
Uma pergunta muito válida, mas não tenciono responder-lhe enquanto
não obtiver as minhas próprias respostas. Pego na agulha e começo o
meticuloso processo de enfiar o grosso fio médico.
— Porque é que eu não faço as perguntas? — O meu olhar dirige-se a
Paedyn, inflexível e insensível. Mas é apenas mais uma más­cara, visto que
estou a ferver de raiva.
— Quem é que te fez isto? — Os olhos dela abrem-se, parecendo mais
confusa e insegura do que eu alguma vez tinha visto. Mas re­cupera
rapidamente, soltando uma gargalhada trémula.
Vira a cabeça para o lado para me observar de onde está deitada numa
cama de musgo, terra e folhas.
— Não importa.
E essa é a única resposta que se digna a dar-me antes de voltar a virar a
cabeça para o céu estrelado que paira sobre nós, evitando-me.
Os meus dedos encontram o queixo e depois puxo o rosto na minha
direção para poder olhá-la nos olhos enquanto digo:
— Vou perguntar outra vez. Quem é que te fez isto?
A minha mão ainda está a agarrar-lhe o queixo, o seu maxilar forte,
enquanto ela fixa o meu olhar e responde:
— Porque é que te importas? — Depois ri-se amargamente, o som
vibrando sob os meus dedos.
— Porque não tolero que brinquem com os meus brinquedos. — Ela
vai odiar isto.
— O teu quê? — Ela para, os olhos a arder, o seu temperamento a
subir. — É isso que pensas que eu sou? Um brinquedo com que podes
brincar?
— Sim. E claramente muito frágil. — Pestes, se eu já não estava a ir
para o inferno, agora estou.
Ela gagueja. Gagueja mesmo. Nunca a tinha visto tão sem pala­vras, e
devo dizer que é muito divertido.
— O que raio é que se passa contigo? Então achas que sou frágil? Eu
mostro-te o quão frágil sou...
— Pronto — digo-lhe calmamente, cortando-lhe a ameaça a meio. —
O primeiro ponto é sempre o pior, especialmente com esta agulha tão
estranha.
Pestaneja, fechando a boca quando olha para baixo e vê a agulha que
eu enfiei no corte sem que ela se apercebesse, demasiado zan­gada para
sentir a dor. O que era exatamente o que eu pretendia.
— Tu... tu és...
Está a gaguejar outra vez, por isso, gentilmente, termino por ela.
— Inteligente? Irresistível?
— Calculista, convencido e um sacana completamente arro­gante —
diz ela. — Era isso que eu ia dizer.
Um sorriso afasta-se dos meus lábios.
— É bom ver que te sentes suficientemente bem para me insul­tar. —
Pego novamente na agulha e aperto a pele à volta da sua fe­rida, preparando-
me para fazer outro ponto à luz do fogo.
— Tu distraíste-me — murmura, como se ainda estivesse a absor­ver a
informação. Depois solta uma gargalhada e acrescenta: — Distraíste-me ao
ser um idiota, mas mesmo assim funcionou.
Olho para ela por breves instantes antes de declarar.
— Sim, fui um idiota. E preciso que saibas que não quis dizer o que
disse. — Empurro a agulha através da sua pele enquanto falo, usando as
minhas palavras como outra distração, embora ela ainda solte um pequeno
silvo de dor. — Tu não és um brinquedo, muito menos um brinquedo
delicado.
Ela observa-me a trabalhar, e eu esforço-me para não me derre­ter sob o
seu olhar ardente.
— Fala-me da tua casa. Sobre Loot — peço-lhe, tentando desviar-lhe a
atenção da agulha.
— Loot não era exatamente um lar para mim. — Fica calada, e
apanho-a a mastigar o interior da bochecha antes de continuar: — Eu já tive
uma casa. Era só eu e o meu pai, mas... mas éramos felizes.
Ela estremece quando faço outro ponto, mas as suas palavras seguintes
são tão cruas como a agulha.
— E depois ele morreu, e a minha casa passou a ser a Adena. Nós
tentamos sobreviver no Loot. Ela faz com que a vida valha a pena.
— Há quanto tempo vives na rua?
— Cinco anos. Tinha treze anos quando o meu pai morreu e, desde
então, tenho vivido num monte de lixo a que Adena generosamente chamou
de Fortaleza. — Ri-se amargamente com isso. — Dos treze aos quinze
anos, nós as duas mal sobrevivemos. Mas depois cresce­mos. Descobrimos
como fazer as coisas e caímos numa rotina que nos mantinha alimentadas e
vestidas. Cada uma de nós tinha as suas próprias habilidades para nos
mantermos vivas.
Deixo que as suas palavras, a sua história, se entranhem. Pergunto-me
silenciosamente o que terá acontecido ao pai, ou à mãe, já agora.
— Então, o teu pai ensinou-te a lutar? — pergunto-lhe com curio­‐
sidade.
— Desde que eu era criança. Ele sabia que a minha habilidade não
podia ser usada fisicamente, por isso certificou-se de que eu nunca estivesse
verdadeiramente indefesa. — A sua voz está trémula en­quanto eu enfio a
agulha na parte mais profunda da ferida. A sua mão levanta-se e agarra o
meu antebraço, as unhas mordem-me a pele enquanto ela morde a língua
para não gritar de dor.
— E a adaga que gostas tanto de usar — clareei a garganta —, era do
teu pai?
— Sim, é... era. — O seu riso é tenso. — Suponho que tenhas de lhe
agradecer pelas minhas tendências violentas.
Olho para cima e sorrio antes de perguntar cautelosamente.
— E a tua mãe...? Tenho de lhe agradecer por alguma das tuas
qualidades maravilhosas?
— Morta. — O tom é seco. — Ela morreu de doença pouco depois de
eu ter nascido. Nunca a conheci.
Lembro-me de Kitt e de como a sua mãe morreu de forma seme­lhante,
uma tragédia que os dois partilham.
O seu aperto no meu braço só aumenta enquanto eu continuo a
empurrar a agulha através da sua pele, abrindo caminho lenta­mente até ao
fim do corte. Os seus olhos estão fechados contra a dor, recusando-se a
chorar ou mesmo a gritar.
Tão teimosa. Tão forte.
— Só mais um bocadinho, Pae — respiro. Ela estremece e eu não
perco o movimento. Seja por causa da dor ou porque finalmente disse o seu
nome, não tenho a certeza. Lembro-me de quando ela caiu no chão. Quando
eu estava selvagem, frenético, e me apercebi de repente que, desde que nos
conhecemos, nunca a tratei pelo seu nome.
E nesse momento, apercebi-me que queria dizê-lo — queria que ela o
ouvisse dos meus lábios. Apercebi-me de que, se ela morresse, eu nunca
mais poderia ver aqueles olhos azuis e pronunciar aquelas duas sílabas que
têm sido uma constante na minha cabeça.
Por isso, repeti o seu nome, uma e outra vez. Finalmente permito-me
fazer isso. Deixei que o último pedaço de ligação com ela fosse esse. Só o
facto de falar o nome dela parecia íntimo, pessoal, de al­guma forma.
E agora quero que ele resida para sempre nos meus lábios e a rolar
pela minha língua até ficar embriagado com o seu sabor e som.
O que raio é que se passa comigo?
Os olhos de Paedyn encontram os meus, brilhando como um corpo de
água à luz do fogo.
— Porque é que estás a fazer isto?
O seu olhar diz-me que desta vez não há como fugir à pergunta,
embora nem eu tenha a certeza de ter uma resposta — para ela ou para
mim. Tudo o que sei é que tenho um desejo de a proteger, de estar com ela,
de a provocar, de lhe tocar.
É assustador.
— Qual é a piada de ganhar por defeito? — Eu digo-lhe em vez disso.
— Que tipo de cavalheiro seria eu se te tirasse o couro e te deixasse para
morrer?
Ela levanta a cabeça do chão, com os olhos a perscrutar os meus,
enquanto goza:
— Então estás a dizer-me que fizeste tudo isto para seres um
cavalheiro?
— Porque é que isso é uma surpresa para ti?
— Talvez porque tens de ser um cavalheiro para ser um cavalheiro.
— E quem disse que eu não o sou?
— Gostava de encontrar alguém que dissesse que o és.
Devolvo-lhe um sorriso, observando cada pormenor do seu rosto sob o
meu. Abro a boca para dizer alguma coisa espirituosa e total­mente
inapropriada quando um galho se quebra à minha esquerda. Um Visão com
olhos vidrados, documentando a cena diante de si. E eu fico envergonhado
por não fazer ideia de há quanto tempo ele está ali parado, e não pela
distração criada pela rapariga que se en­contra à minha frente.
Só posso imaginar o que o meu pai vai pensar disto — de nós. De mim
a ajudar, a salvar, a gostar de estar com a rapariga dos bairros de lata.
Não seria a primeira vez que o desiludiria, e não será certamente a
última.
O Visão pestaneja, clareando a visão embaciada antes de desa­parecer
na noite. Viro-me de novo para Paedyn, a sua atenção ainda detida no local
onde o homem esteve. Depois volto-me para o seu estômago exposto, e
para a ferida agora completamente cosida.
Começo a enrolar os restos da sua camisa grande sobre a ferida e à
volta da cintura. Os olhos de Paedyn acompanham os meus mo­vimentos,
seguindo as minhas mãos e traçando o meu rosto.
— Não respondeste à minha pergunta — digo muito mais casualmente
do que me sinto neste momento.
— Terás de ser mais específico do que isso, Azer.
— Eu perguntei-te quem te fez isto.
Ela ri-se, desviando a cabeça da minha.
— Ah, essa pergunta. Não tem importância.
— Se não importa, então diz-me.
Ela lança-me um olhar irritado antes de suspirar e ceder.
— Ace. Estás contente agora? Usou as suas ilusões para me atrair. De
repente, fica outra vez pálida.
— Fez-me ver... coisas.
Nunca a vi tão assombrada e estou chocado com o quanto odeio isso.
— Mataste-o?
— Não — diz ela suavemente. — Não, não o matei.
Ficamos em silêncio, e eu passo a mão sobre a ligadura grossa,
certificando-me de que está segura, enquanto olha para mim. Depois
entrego-lhe o cantil de água antes de a obrigar a engolir um pouco de
coelho queimado.
De seguida, ocupo-me com o pequeno acampamento, reacen­dendo a
chama do fogo que está a apagar, e quando me volto para Paedyn vejo-lhe
as pálpebras caídas, as pestanas a oscilar com a pro­messa de sono. Vejo-a
também tremer levemente com a brisa da noite.
Bem, isso não pode ser.
Ajoelho-me ao lado dela, pegando-a nos meus braços e levando-a para
mais perto da fogueira. Ela resmunga grogue contra o meu peito quando a
deito na terra batida, observando o seu peito subir e descer com respirações
regulares, tão diferentes das respirações rasas e espaçadas que vi antes.
E depois fico ali sentado. Não consigo desviar o olhar enquanto ela
adormece ao lado da lareira, viva e a respirar profundamente. Ela treme de
novo, fazendo-me desejar ter um cobertor para lhe oferecer, ter algo para
lhe oferecer. A verdade desse pensamento atinge-me como um golpe nas
entranhas.
Não tenho nada para lhe oferecer.
Sou errado, tão errado para ela. Ela é demasiado corajosa, dema­siado
ousada, demasiado boa para mim. Talvez possa ser um homem melhor.
Talvez pudesse ser mais como Kitt, com as emoções à flor da pele e a
felicidade à mostra. Talvez o futuro Executor pudesse der­rubar algumas
paredes, tornar-se um homem que é mais do que as máscaras que usa à
volta do seu povo.
Mas desde que descobriu que eu era o Príncipe e nos declarou
inimigos, eu alinho, não querendo ser ultrapassado. E é divertido. É uma
distração para nós os dois, as brincadeiras e as provocações que mantemos.
Mas agora?
Se vou ser o seu inimigo, quero que seja porque ela se odeia a si
própria por me querer.
Acordei com o som horrivelmente familiar de pássaros a gras­nar por
cima de mim.
Acordei.
Espreguiçando-me ao sol ofuscante, passo as mãos devagar sobre o
local onde a minha ferida cicatrizante se esconde por baixo das dobras do
tecido gasto.
Estou viva. Estou a respirar. Estou a sarar.
Depois, os meus dedos encontram o caminho para a faixa de couro
apertada à volta do meu braço. Fico chocada por ver que ainda lá está.
Chocada ao perceber que não a cortou do meu corpo mori­bundo. Chocada
por ele me ter salvado a vida, por ter cuidado de mim e por me ter deixado
ficar com a estúpida tira de couro durante todo o processo.
Aparentemente, deu-se a todo este trabalho para ser um bom
desportista, um cavalheiro.
Deve ser mesmo.
— Bom dia. Bem, na verdade, é quase de tarde.
A minha cabeça gira em direção à voz grave atrás de mim. E lá está
ele, com as mãos nos bolsos, os tornozelos cruzados e encos­tado a um ramo
baixo. Agora que não estou a um sopro de dis­tância da morte, a sua
aparência e a falta de camisa são de repente extremamente perturbadoras.
Desvio rapidamente o olhar, mas não perco o sorriso que lhe aparece nos
lábios quando percebe.
Irritante e arrogante.
— Estou surpreendida por ainda estares aqui. Juntamente com a minha
faixa — digo, limpando casualmente a sujidade da minha roupa.
Ele solta uma gargalhada suave.
— Estás desejosa de te veres livre de mim, querida?
Clareio a garganta e viro-me para o encarar, apoiando-me nas palmas
das mãos enquanto o fito com curiosidade. O seu cabelo está despenteado,
com madeixas agarradas à testa suada, mesmo por cima de onde os seus
olhos brilham como pedaços de prata. Há uma sombra de barba por fazer
agarrada ao seu maxilar pon­tiagudo, e consigo apenas distinguir a covinha
direita, igualmente distrativa e devastadora.
Não consigo suportá-lo.
— Então, qual é o plano? — pergunto-lhe, gesticulando entre nós os
dois.
— O plano para...? — Inclina ligeiramente a cabeça para o lado,
olhando para mim, brincando comigo. Sabe exatamente o que quero dizer.
— Para nós.
— Nós. Gosto disso, não gostas?
Reviro os olhos, ignorando-o.
— O que é que fazemos agora?
— Essa é uma pergunta muito complicada, Gray.
Eu pestanejo. Ele não pronunciou o meu primeiro nome. E por alguma
razão louca, gostava que o tivesse feito.
Estou irritada comigo e com ele, e como tal, naturalmente, des­carrego.
— Porque não levaste a minha faixa? E porque não a tentas levar agora
que estou curada?
Parece estar a divertir-se quando se afasta do ramo da árvore e se
dirige a mim.
— Essa é outra pergunta muito difícil — A sua covinha direita
aprofunda-se. — Em primeiro lugar, tu não estás completamente curada.
Segundo, porque é que eu deixaria passar a oportunidade de trabalharmos
juntos? Sabes que fazemos uma grande equipa. E terceiro — ele agacha-se
na minha frente para que fiquemos cara a cara enquanto ele continua —, é
engraçado que tenhas dito que eu poderia tentar tirar a tua faixa.
Agora as duas covinhas estão a provocar-me.
— Bem, se estás tão confiante, anda, tenta. — O meu rosto está muito
perto do seu, a minha voz cheia de desafio. — De certeza que te lembras
como acabou o nosso último combate.
— Ainda estás ferida, lembras-te?
— E tu não estás com um aspeto muito melhor — digo-lhe, fran­zindo
o sobrolho para o seu ombro enfaixado, embora não haja sangue no tecido
branco.
— Preocupada com o teu novo parceiro? — Um sorriso malicioso
espalha-se pelo seu rosto enquanto os nossos olhos se voltam a cru­zar. Está
perto. Demasiado perto. Cheira a pinho e a chuva e a suor e, Pestes, preciso
de me distrair.
Desvio o meu olhar e pego no meu arco e na minha aljava en­quanto
me ponho de pé. É mais, luto para me colocar em pé. Kai acompanha-me,
apoiando uma mão no meu ombro e a outra no meu lado não ferido. Afasto-
me um pouco, irritada por ele pensar que preciso de ajuda. Mas as minhas
pernas parecem gelatina e pedra ao mesmo tempo, provando que preciso
mesmo de ajuda quando tro­peço de encontro nele. O seu peito estremece
com um riso áspero que só me irrita ainda mais.
— Sim, acho que não teria muita dificuldade em tentar tirar-te esta
faixa. — Passa um dedo pela correia de couro, roçando a minha pele
enquanto o faz.
Apanho-lhe o pulso miro-o.
— Bem, se vamos ser parceiros, não precisas de te magoar a ten­tar
tirar-me a faixa.
Ele olha-me de cima a baixo, com as sobrancelhas ligeiramente
levantadas.
— Então, estamos de acordo? Parceiros?
Penso nisso, considerando que preferia estar a lutar ao lado do futuro
Executor do que contra ele.
Eu semicerro os olhos.
— Como é que eu sei que posso confiar em ti? Ele ri-se.
— Eu ter-te salvo a vida não significou nada para ti?
— E eu salvei a tua. Isso não quer dizer que confies em mim.
— E como é que sabes que eu não confio?
Ficamos a olhar um para o outro.
Pestes, em que é que eu me estou a meter?
Talvez seja porque estou demasiado fraca para lutar, ou pior, tal­vez
seja a parte de mim que não quer que ele se vá embora, que me faz declarar:
— Está bem. Parceiros.
Olho para o ombro ferido de Kai e para o cepo alto atrás de si antes de
colocar as palmas das mãos no seu peito, com a sua pele quente sob a
minha. Empurro-o para trás até colidir com o cepo, antes de lhe empurrar os
ombros para baixo até ficar sentado à minha frente.
Vajo olhos esfumados quando me mira.
— O que é que estás a fazer, Gray?
— Estou a tratar do meu parceiro — digo simplesmente, começando a
desenrolar a sua ligadura improvisada. Sorrio antes de acrescentar: — Não
me vais servir de nada se estiveres ferido.
— A tua preocupação com o meu bem-estar é verdadeiramente re­‐
confortante — anuncia, seco. Ignoro-o e puxo o pano teimoso colado à pele
por baixo. Praguejo quando finalmente vejo a pele queimada e com bolhas
por baixo da sua clavícula. Está inflamada e pegajosa e não foi preciso
olhar para o maxilar apertado para saber que isto lhe é extremamente
doloroso.
Vou ao encontro dos seus olhos já tão intensamente fixos em mim que
engulo antes de perguntar:
— Onde está a pomada curativa?
A sua expressão é vazia.
— Acabou.
Tento afastar a minha confusão, mas sem sucesso.
— Usas-te tudo em mim?
— Sem hesitação — Fresco, calmo, controlado. Este é o Kai.
— Bem, isso foi... — Eu gaguejo, tentando encontrar a palavra certa.
— Altruísta?
— Estúpido — termino eu.
Suspiro antes de murmurar.
— Tornas sempre as coisas mais difíceis para mim, não é?
Volto-me sobre o calcanhar e caminho até à margem do riacho.
Consigo sentir os olhos de Kai a vigiarem-me enquanto me ajoelho,
procurando plantas específicas para fazer o meu próprio bálsamo
improvisado. Não o vai curar milagrosamente como o bálsamo do
Curandeiro teria feito, mas vai ajudar significativamente com a dor e a
inflamação.
Felizmente, a maior parte das plantas de que preciso tendem a crescer
perto da água, por isso consigo encontrá-las com facilidade. Pego em mais
um pedaço de coelho cozinhado para mordiscar en­quanto procuro os meus
ingredientes. Depois de um bom tempo a andar para cima e para baixo no
riacho, enquanto era atacada por mosquitos, finalmente trituro as folhas e os
caules que encontrei com uma pedra. Juntando água às plantas trituradas,
fico com uma pasta verde e espessa.
Viro-me para encontrar Kai ainda a observar-me quando volto para
junto dele quase meia hora depois. Fico de pé sobre ele, igno­rando a
sensação dos seus olhos presos em mim, enquanto seguro a pedra com a
pomada e examino a sua ferida mais uma vez.
— Tu és cheia de surpresas — acena com a cabeça para a gosma verde
agora nos meus dedos. — És uma coisinha talentosa, não és?
Cubro a ferida com a pomada, e ele sibila quando arde.
— Filha de um Curandeiro, lembras-te?
— Está a ficar difícil acompanhar as tuas muitas habilidades. — Mais
um grunhido de dor antes de acrescentar, irritado: — Pestes, Paedyn, que
raio de coisa é esta?
Escapa-me um suspiro.
— Quem diria que o futuro Executor é um bebé?
Passo-lhe mais pomada na pele e ele cerra os dentes.
— E quem diria que a rapariga dos bairros de lata era capaz de torturar.
— Oh, por favor. Não sejas tão dramático.
— Sabes, não estou totalmente convencido de que não estás a tentar
matar-me.
Eu franzo o sobrolho.
— Então, afinal não confias em mim?
— Não confio nisso — diz, lançando um olhar cético para a pasta
verde que estou a esfregar na ferida.
Rio-me alto, abanando a cabeça na sua direção.
De repente, fica imóvel ao meu toque, os seus olhos dançando entre os
meus, com um pequeno sorriso nos lábios.
Aclaro a voz:
— Então... — estou a tentar encontrar alguma coisa para dizer antes de
finalmente decidir deixá-lo falar. — Ouviste falar da minha casa, por isso
fala-me da tua. Como é que foi crescer no palácio?
Ele olha para mim, com uma expressão vazia.
— Viver num castelo não é tão apelativo como pode parecer. Pode ser
frio, cheio de gente. Para não falar que estás constantemente a ser
observado por curiosos. — Os seus lábios contorcem-se numa su­gestão de
sorriso. — Mas eu e o Kitt fizemos dela um lar. Pestes, nós dominámos o
lugar. Nós fizemos...
Ele sibila por entre os dentes, cortando as suas palavras.
— Caramba, Paedyn, agora estou convencido de que tu estás mesmo a
tentar matar-me.
— Oh, anda lá — divirto-me, colocando mais pomada na ferida. —
São só umas picadas.
Ele toca-me no estômago, evitando cuidadosamente o corte.
— Tu deste-me uma bofetada quando a tua ferida ardeu, por isso acho
que posso queixar-me um pouco.
Lanço-lhe um olhar.
— Isto é queixar um pouco? — Ele estreita os olhos na minha di­reção,
mas consigo ver como está divertido. — Desculpa — suspiro. — Continua
com a tua história e com a sua reclamaçãozinha.
— Como eu estava a dizer — prossegue — eu e o Kitt fizemos do pa­‐
lácio uma casa. Fizemos amizade com os criados, corremos pelos cor­‐
redores, abandonámos os bailes para nos esgueirarmos para a cave e nos
embebedarmos com o intuito de esquecer tudo e simplesmente rir até o sol
nascer. Provavelmente lutámos em quase todas as salas do palácio. Duas
vezes.
Cerra os dentes quando ponho mais pomada na ferida e lança-me um
olhar irritado antes de continuar:
— Mas precisávamos disso. A luta constante ou as partidas estúpi­das
que pregávamos à pobre Gail e ao resto dos criados despreveni­dos. Porque
quando não estávamos a rir e a distrair-nos, estávamos ambos a treinar e a
estudar. Embora isso tenha sido muito diferente para nós os dois.
Olha para além de mim, para o céu pintado de azul, os olhos cin­zentos
perscrutando as nuvens enquanto diz baixinho:
— Não me lembro da minha vida antes de me tornar o futuro Exe­cutor.
Não me lembro de um dia que não tivesse de enfrentar todos os testes,
provas e treinos. Parece que foi sempre assim. — Solta uma gargalhada
irónica, suspirando. — O destino é uma coisa engraçada e inconstante, que
não te dá escolha relativamente à tua vida.
Deixei de esfregar a pomada, atenta ao que conta.
— E o teu treino? Como é que foi?
Lança um suspiro pesado, que me faz pensar exatamente no que terá
suportado na sua curta vida.
— A minha educação foi muito diferente da do Kitt. Enquanto o treino
do futuro rei consistiu em aulas e educação sobre como lide­rar o reino um
dia, o meu foi mais... prático. Como futuro Execu­tor, não me limitei a
definir estratégias para as batalhas, lutei nelas. Não me limitei a aprender a
arte da tortura, suportei-a.
As minhas mãos pairam sobre o seu peito.
— Tu... suportaste-a?
Estuda-me por um momento, parecendo decidir o que vai dizer antes
de se contentar com uma resposta simples.
— Sim. Muitas vezes.
— Quem — engulo —, quem é que te fez isso?
— Não importa — afirma com um ligeiro sorriso, atirando as mi­nhas
próprias palavras de ontem à noite.
Então faço-lhe o mesmo.
— Se não importa, então diz-me.
O seu sorriso alarga-se.
— É bom saber que me ouves quando falo, Gray.
— Isso não foi uma resposta — digo-lhe baixinho.
Suspira de novo e o seu sorriso desvanece-se.
— O meu... Rei encarregou-se de me treinar regularmente. Tive outros
tutores e generais, claro, mas quando não estava com eles, es­tava com o
meu Pai. Digamos apenas que os seus métodos eram... severos.
Eu não queria saber. Não queria saber o que é que o Rei fez ao seu
filho, os horrores por que o fez passar. Isso deixa-me doente. E, no entanto,
não me devia surpreender. Afinal, ele matou o meu pai e é o meu ódio pelo
Rei que me leva a querer saber que outros crimes perversos cometeu. Por
isso, pergunto-lhe lentamente.
— O que é que ele fez?
Fica calado durante um longo momento.
— Gray, não me parece...
— Por favor — interrompo em voz baixa. — Não tens de me dizer se
não quiseres, mas estou a pedir-te que o faças se estiveres disposto.
Há algo na quietude da floresta, na cobertura das árvores, que o faz
sentir-se seguro o suficiente para contar segredos. Há algo no facto de
sabermos que podemos não ver o dia de amanhã que nos leva a fazer coisas
de que só nos arrependeremos se sobrevivermos. As Provas não são feitas
para criar confiança e, no entanto, aqui esta­mos nós, a divulgar as partes
mais profundas. Oferecendo aos nossos adversários formas de nos cortar
mais fundo do que qualquer arma alguma vez poderá.
Depois, olha-me fixamente e revela:
— Vou poupar-te os pormenores, mas ele mostrou-me o que era
torturar. O que era ser torturado. Ensinou-me tudo o que sei. Trei­nou-me
mental e fisicamente até ficar satisfeito com o que criou. — Ele respira
fundo. — A relação do Kitt com o nosso pai é muito diferente da minha.
Passam o tempo a tratar de papelada e a criar laços com as suas posições, o
Pai instrui o meu irmão sobre como seguir as suas pisadas. E o Kitt vai
fazer exatamente isso. Fará tudo para deixar o Rei orgulhoso, e sempre o
fez. Eu, por outro lado...
Kai ri-se sem demonstrar um sorriso.
— Eu não sou o herdeiro. Sou o filho dispensável. O futuro Exe­cutor
que o meu Pai moldou e enviou em missões durante anos.
Solta um longo lamento.
— O meu irmão e eu temos papéis muito diferentes, relações muito
diferentes com o nosso Pai. Mas por causa disso, o Kitt vai ser um grande
Rei. E eu serei o seu assassino.
Faço uma pausa, observando-o atentamente enquanto diz estas últimas
palavras.
E eu serei o seu assassino.
Não há nada. Nenhuma emoção, nenhuma expressão lhe atra­vessa o
rosto. Parada a observá-lo, pergunto-me se as máscaras que criou para si
próprio são o resultado de ter de reprimir o que sente do seu próprio pai. E
talvez fosse exatamente isso que o Rei queria, que o seu futuro Executor
fosse aparentemente insensível.
— Perguntaste-me uma vez se eu desejava ser Rei — diz Kai. — E eu
mantenho o que disse. Não quero o papel do Kitt na vida porque me recuso
a dar-lhe o meu. O meu irmão não é um assassino, antes eu do que ele.
Deixei que as suas palavras se fizessem ouvir antes de abrir a boca
para perguntar:
— E estas Provas que são diferentes este ano? É só mais uma mis­são
que tens de cumprir?
— Não apenas cumprir. Ganhar — assegura. — As Provas são ape­nas
mais uma forma de provar o meu valor ao meu povo, de provar o meu valor
ao Rei.
Observo-o, querendo saber o que está a pensar. Nunca me contou tanto
sobre a sua vida, sobre aquilo por que passou em criança — sobre aquilo
por que ainda hoje passa. Ele é a razão pela qual as Provas da Purga deste
ano parecem tão diferentes, e o resto dos concorrentes são meros peões num
jogo que nem sequer lhes está destinado.
Ponho-lhe mais bálsamo na ferida e espero que acabe de mur­murar
sobre a certeza de que estou a conspirar para o matar, antes de fazer a
pergunta que me tem atormentado:
— E o teu papel como futuro Executor. O que é que achas dele?
— Penso que é o meu dever.
Franzo o sobrolho.
— E eu acho que tens mais ideias sobre a tua própria vida do que isso.
Estou a perguntar-te a ti, Kai. Não ao Príncipe nem ao futuro Executor. Só a
ti. — Faço uma pausa, e ele estuda-me enquanto re­pito — O que achas
disto? O teu papel? A tua vida?
Fica calado por um momento, antes de um sorriso lhe cruzar o rosto.
— Se eu responder como Kai, podes parar com a gosma? — Olha para
a pasta que tenho na mão.
Eu faço um sorriso.
— Sim, vou parar com a gosma.
O seu sorriso ténue desvanece-se, deixando um maxilar hirto no seu
lugar.
— A verdade, então?
— A verdade, sempre — respiro.
Quando finalmente responde, o seu tom é seco.
— Eu nunca quis isto. Nunca quis ser o que sou hoje. Mas os mons­tros
fazem-se, não nascem. E eu não tive escolha no assunto. Não tenho escolha
no assunto. Mas não vou negar o que sou, e farei o que tenho de fazer pelo
meu reino. Pelo meu Rei.
As suas palavras atingem-me com força, os seus significados ainda
com mais força. Sabe exatamente o que é, o que faz. É um peão a ser
jogado num jogo em que está preso para sempre, e cada ato horrível que
comete é em nome do dever, em nome de Ilya.
Mas este rapaz diante de mim olhou-me nos olhos e admitiu que era
um monstro, reconheceu que esse seu lado tinha sido criado sem
demonstrar uma ponta de horror. Em vez disso, a aceitação está es­crita nas
suas feições, reconhecendo o que ele é e sempre será.
Distraída pelos meus pensamentos, tento esfregar mais pomada na sua
ferida, mas ele apanha-me o pulso.
— Tínhamos um acordo, Gray. Posso estar habituado à tortura, mas
esta tua pomada é insuportável.
Ele envia-me um pequeno sorriso, claramente a querer aliviar o
ambiente agora. Quer fazer o que fazemos melhor — brincar um com o
outro. E é isso que eu faço.
— Tens razão. Um acordo é um acordo. — Limpo rapidamente as
mãos na relva antes de acrescentar: — Obrigada por me teres falado... de ti.
A isso, ele solta uma gargalhada que eu rapidamente estanco.
— E lembra-me para seguir o teu exemplo no próximo baile e
abandoná-lo para ir embebedar-me com o Kitt.
Podia jurar que ele ficou ligeiramente tenso com as minhas palavras.
— E porque é que farias isso quando eu sou muito mais divertido?
Eu rio-me ligeiramente.
— Se por divertido queres dizer namoriscar... porque és certa­mente
mais este último.
Ele lança-me um sorriso largo e perverso e o meu coração tropeça em
si próprio estupidamente.
— Parece que não o consigo evitar quando estou com certa
companhia.
Eu gozo-o.
— Sim, se certa companhia se estender a todo o reino, porque tu
pareces estar a namoriscar com todas as mulheres de Ilya.
Recordo as muitas mulheres com quem dançou no baile, a forma como
o vi exibir aquele seu sorriso encantador.
Os seus olhos procuram os meus.
— O quê? Queres-me só para ti?
A minha palma bate-lhe na cara, deixando-o em silêncio. Ele pes­‐
taneja. A confusão e o mais pequeno traço de divertimento vivem agora no
rosto que acabei de esbofetear. Quando finalmente se vira para mim,
levanto a minha mão à sua frente para revelar o inseto esmagado.
Sorrio-lhe inocentemente.
— Mosquito. Não tens de quê.
— Que simpático da tua parte — diz ele de forma seca.
O meu sorriso está cheio de uma doçura falsa, enquanto volto a enrolar
o tecido à volta da sua ferida e do ombro, cobrindo a po­mada com a
ligadura.
— Só estou a cuidar do meu novo parceiro.
— A sério?
— Mhmm — brinco distraidamente, mordendo o interior da minha
bochecha enquanto examino o meu trabalho.
— Bem, nesse caso... — Kai levanta-se, aproxima-se e bate-me de
leve na face.
Fico irritada, levando os dedos à bochecha. Depois, o meu olhar cruza-
se com o dele. Kai encolhe os ombros casualmente.
— Mosquito.
— Prova-o — desafio-o.
O canto da sua boca torce-se para cima enquanto levanta a mão para
me cobrir o rosto.
— Acontece que a minha prova ainda está detida na tua boche­cha. —
Prendo a respiração quando ele passa o polegar suavemente sobre a minha
pele antes de a levantar para mostrar o inseto man­chado. — Só estou a
cuidar da minha parceira.
O seu tom é de gozo e, no entanto, o riso começa a borbulhar dentro de
mim.
Não consigo parar, não consigo controlar as minhas gargalha­das. A
ideia de nos batermos um ao outro como crianças no meio de uma Prova
mortal é extremamente cómica. E, por uma vez, es­pero que haja um Visão a
ver isto.
O vislumbre de confusão e preocupação no rosto de Kai só me faz rir
mais, e eu aperto uma mão sobre a minha ferida agora a late­jar enquanto
tremo de riso.
Talvez ainda esteja a delirar.
Suspiro, e é tudo o que preciso para que Kai se ria comigo — bem, de
mim. O som é rico e profundo e, irritantemente, dou por mim a querer ouvi-
lo melhor. E depois, muito rapidamente, o som para.
Ele está a olhar para mim, e eu estou a olhar para ele. Não sei o que
dizer, pensar ou fazer enquanto os seus olhos percorrem o meu rosto,
observando o meu aspeto sujo e desgrenhado.
Ele, por outro lado, está tão irritantemente atraente como sempre.
Sacudo o pensamento da minha cabeça, passando uma mão pelo meu
cabelo despenteado enquanto me esforço para falar. En­tretanto, Kai
contenta-se com ver-me contorcer enquanto penso em algo para quebrar o
pesado silêncio que se instalou entre nós.
Os meus olhos vão até à ferida enfaixada e as palavras saem-me da
boca:
— Então, presumo que isto terá sido obra de Braxton?
Kai ri-se enquanto passa uma mão pelo cabelo, fazendo com que as
ondas negras e desalinhadas voltem a cair sobre a testa.
— Devias ver o que eu lhe fiz — di-lo de forma tão casual que, se não
o conhecesse, diria que estava a brincar.
— Sim, bem... — desvio o olhar, prestes a dizer algo que provavel­‐
mente vai irritar o príncipe, quando ele levanta a mão, calando-me.
— Não. Te. Mexas.
Suspiro.
— O quê? Tenho algum mosquito na minha...
Tapa-me a boca com a mão e pega-me pela cintura, prendendo-me
junto a si. Fico atordoada por um instante antes de pensar em morder os
dedos que me cobrem os lábios. Mas algo na forma como a sua respiração
se acelera faz-me parar de pensar num plano para escapar ao seu domínio. E
com o peito encostado às minhas costas, sinto o seu coração a bater
rapidamente. Demasiado depressa.
Deteto um movimento na minha periferia, e os meus olhos fi­xam-se na
forma grande e imponente que se aproxima de nós através da parede de
árvores. O pelo prateado brilha à luz do sol, mudando a cada movimento.
Olhos amarelos brilhantes fixam-se nos meus quando a besta para,
observando-nos de longe.
Lobo.
Não. Lobos.
Os meus olhos percorrem as árvores, encontrando mais quatro corpos
maciços cobertos de pelo, todos de cores variadas. Os cinco observam-nos,
cobertos pelos pinheiros circundantes, enquanto ava­liam a sua próxima
refeição. O meu coração está a bater que nem louco, a minha respiração é
superficial e rápida. Ainda bem que a mão de Kai ainda está a tapar-me a
boca, porque quase grito com a súbita sensação dos seus lábios a roçar a
dobra da minha orelha.
— Parece que nunca ouves, não é?
Levanto-me devagar, mantendo os olhos nos lobos enquanto lhe agarro
o pulso e afasto a sua mão da minha boca.
— Tecnicamente, eu ouvi. Eu falei, não me mexi — sussurro-lhe de
volta, com a minha voz afiada.
Consigo sentir a sua boca a sorrir contra a minha orelha.
— Espertinha.
— Então, qual é o plano? O que estamos a fazer?
A minha voz é urgente enquanto observo os lobos.
— Não há nenhum «nós» — diz ele suavemente, soltando a mão para
dar um passo lento até ficar à minha frente. — Tu ainda estás ferida e não
arrisco a que rasgues os teus pontos, — murmura.
De modo algum.
Eu aproximo-me dele, irritada.
— O que é que aconteceu a sermos parceiros?
— Bem, não vamos ser parceiros por muito mais tempo se insis­tes
colocar a tua vida em perigo — afirma, tirando silenciosamente a espada da
bainha que tem a seu lado.
— E tu vais enfrentar cinco lobos sozinho? Não creio — sussurro-lhe
com dureza.
Obviamente que não vou deixá-lo lutar sozinho. O meu orgulho e a
minha paranoia não o permitem.
— Então estás claramente a subestimar-me, Gray.
Devagar, muito devagar, tiro o arco das minhas costas, obser­vando os
lobos enquanto o faço. Eles não se mexem, embora se te­nham afundado
mais no chão, prontos para atacar.
Coloco uma flecha.
— A tua ferida vai reabrir e isso significará que salvei a tua vida para
nada — sibila Kai, com a sua voz urgente e agitada.
Puxo a corda do arco para trás, esticando-a, enquanto os meus pontos
fazem o mesmo, ameaçando rasgar-se. A dor atravessa-me o abdómen e as
costelas, mas eu mordo a língua, ignorando-a.
Sorrio ligeiramente e digo.
— Desculpa ter-te estragado o trabalho, parceiro.
— Pae, não te atrevas...
Disparo.
A flecha encontra o seu alvo no peito do lobo mais próximo,
enterrando-se profundamente naquele pelo prateado e brilhante. Os outros
lobos avançam na nossa direção antes mesmo do primeiro cair no chão. Eu
já tenho outra flecha pronta, com o bico apontado para um borrão castanho
que se aproxima. Uma dor aguda percorre-me o abdómen quando disparo a
flecha, atingindo o lobo na pata traseira.
Duas das feras separaram-se das outras para nos rodear, e sinto as
costas de Kai encostadas às minhas enquanto ele as enfrenta. Ignoro o lobo
coxo que abati e viro a minha atenção para aquele que está agora na minha
direção. Tento abrandar a minha respiração em pâ­nico antes de atirar uma
seta à criatura. Praguejo quando falho, pas­sando pela orelha da besta e
afundando-se no chão atrás.
As costas de Kai já não estão encostadas às minhas, deixando-me sem
saber o que se passa. Tudo o que ouço são rosnados e o golpe de uma
espada contra pele e osso. Mas não tenho tempo para me virar para a cena,
porque tenho uma fera a rosnar à minha frente. O seu pelo vermelho brilha
quase tanto quanto os seus dentes brancos. Es­taca a não mais de dois metros
de mim e agacha-se, aproximando-se. É enorme e ameaçador e olha para
mim como se eu fosse a sua próxima refeição.
Consigo sentir a minha ferida a sangrar e a dor é brutal. Se puxar a
corda do arco mais uma vez, é provável que rasgue os pontos, se não o tiver
feito já. Mas não tenho outra arma, nem poder, nem força para lutar.
O lobo esgueira-se para a frente, rosnando enquanto brinca com a sua
comida.
O que é que eu faço. O que é que eu faço. O que é que eu faço.
Puxo a corda do meu arco — o lobo ataca.
É um salto grande e forte que o faz cair na minha direção com a
mandíbula aberta e os dentes afiados, prontos para me rasgar em pedaços.
Impulsivamente, arranco a flecha do meu arco e agarro-lhe a haste
com o punho, antes de empurrar a ponta metálica para cima, ao encontro do
lobo no ar. A flecha penetra-lhe profundamente no cora­ção, salpicando-me
de sangue quente antes de cair com um estrondo.
Estou ofegante, ainda a tentar processar o que acabou de acon­tecer,
quando ouço um grunhido vindo de trás. Viro-me mesmo a tempo de ver
Kai a correr a lâmina da sua espada pelo lado de um lobo, abrindo-o com
um movimento fácil. Vira-se rapidamente para a outra fera que rasteja na
sua direção, já a sofrer de uma facada séria, embora continue a avançar.
Quando o lobo se lança, numa última tentativa de cravar os dentes na sua
carne, Kai atira a sua lâmina para cima num arco alto. A espada atravessa o
peito da criatura com facilidade e, quando esta atinge o chão, Kai agarra o
punho com as duas mãos e enfia a ponta da lâmina no corpo do lobo.
Fica ali parado por um momento, parecendo o assassino que foi criado
para ser. Depois arranca a espada, limpando a lâmina ensan­guentada no
pelo do animal morto. Começa a virar-se e diz.
— Ainda estás viva?
Inspiro bruscamente quando ele se vira, exibindo uma dentada
profunda no ombro. O sangue escorre da marca dos dentes irregu­lares,
passando-lhe pelo braço e pingava dos dedos. Os seus olhos encontram os
meus antes de se arregalarem quando encontram algo por cima do meu
ombro.
— Baixa-te — ordena, e eu não hesito. Num ápice, tira uma estrela de
arremesso do bolso e lança-a pelo ar onde a minha cabeça estava há
momentos. Ouço algo pesado a bater no chão e viro-me para ver o lobo que
eu tinha atingido na pata, apenas a alguns metros atrás de mim.
Levanto-me lentamente enquanto respiro fundo.
— Tens razão. Fazemos uma grande equipa.
Desvia o olhar, abanando a cabeça com um riso seco.
— Sim, excetuando o facto de tu não seguires ordens.
— Ordens? — suspiro. — Não sou um dos teus soldados, Kai.
— Tens razão, não és.
Ele avança, e a sua visão tão ensanguentada é subitamente inti­midante.
Mas eu forço-me a manter quieta quando ele para diante de mim,
suficientemente perto para lhe ver os olhos fumados trans­formarem-se em
gelo. — Os meus soldados não significam nada para mim. São dispensáveis
e fáceis de substituir.
O seu peito insufla, os seus olhos fixam-se nos meus.
— Então, sim, Gray. Tu não és um dos meus soldados.
Abro a boca, mas não saem palavras.
Kai fecha os olhos e suspira profundamente, só tornando a abri-los
quando volta a estar calmo e controlado. Todos os vestígios do macho
frenético e agitado desapareceram. Consigo senti-lo a vol­tar à sua forma
arrogante e descontraída, enquanto tenta aliviar o ambiente.
Observa a carnificina à nossa volta e comenta:
— Bem, parece que não vamos passar fome esta noite.
Eu alinho, mas a minha voz é fraca.
— É bom saber que não sobrevivemos a um ataque de lobos para
morrermos de fome.
Os seus olhos escurecem quando encontram o local onde a minha
ferida sangra por baixo da roupa.
— Os teus pontos. Eles...
Levanto o top e espreito por baixo das dobras da ligadura
ensanguentada.
Fico aliviada quando vejo o fio ainda a unir a pele. O esforço da luta
apenas esticou os pontos, fazendo sangrar a ferida, mas feliz­mente não se
rasgaram. Suponho que estaria num estado muito pior se tivessem rasgado.
— Não — respiro —, não se rasgaram.
Passa a mão pelo cabelo antes de guardar a espada, mas não me escapa
o ligeiro estremecimento que a ação provoca por causa do ombro rasgado.
Aponto para o cepo atrás dele e comento:
— Senta-te.
Agora sou eu que estou a dar ordens.
Ele goza-me, sorrindo enquanto se senta, antes de eu voltar a ficar em
cima dele.
— Estás coberta de sangue — comenta com demasiada naturalidade.
— E tu estás a pingar. Mas, sorte a tua — sorrio com doçura —, já sei
do bálsamo certo para isso.
Ele solta um suspiro, abanando a cabeça para o céu.
— Claro que podes. Tu e as tuas salvas vão ser a minha morte.
— Sabes — murmuro, examinando a mordidela de perto —, co­meço a
pensar que gostas de te magoar, nem que seja para poderes ter as minhas
mãos em cima de ti.
Ele solta uma gargalhada baixinho. Posso praticamente sentir o seu
olhar a deslizar sobre mim enquanto afirma:
— Oh, não te estou a obrigar a fazer nada, querida. Podes dei­xar-me a
sangrar, se quiseres. Porque eu só quero as tuas mãos em cima de mim se tu
também o quiseres.
Os meus olhos saltam para os seus já postos em mim. Estou a jogar um
jogo muito perigoso.
Ando sobre uma lâmina afiada e espero que não me cortar. Brinco com
o fogo e espero não me queimar. Nado numa corrente perigosa e espero não
me afogar.
Ele é perigoso.
E mesmo com esse pensamento a ecoar na minha mente, man­tenho o
seu olhar e coloco as minhas mãos nele.
Já se passaram três dias desde que um lobo me deu uma den­tada. Três
dias desde que Paedyn pôs as suas mãos em mim depois de eu lhe ter dito
para só o fazer se ela quisesse. E acho que desde então nunca mais consegui
recuperar o fôlego. Sempre que ela olha para mim, sinto-me com falta de ar.
Odeio.
Mentiroso.
Foram três dias longos e aborrecidos. A coisa mais proveitosa que
conseguimos fazer foi encontrar uma camisa para eu vestir — mais um
presente deixado para os concorrentes. O riacho e a pequena cla­reira à sua
volta tornaram-se a nossa base, embora não passemos lá muito tempo
durante o dia. A nossa rotina consiste em separarmo-nos na floresta e
procurar outros concorrentes. E, no entanto, os nos­sos esforços para
recolher mais faixas não só têm sido inúteis como também
insuportavelmente aborrecidos. Eu preferia não me separar, simplesmente
porque me divirto muito mais quando Paedyn está co­migo, mas ela insistiu
que cobriríamos mais terreno separadamente.
Até agora, tem-nos feito muito bem.
O sol está a afundar-se rapidamente e as estrelas pontilham o céu
quando a noite cai. Regresso em direção ao acampamento, descarre­gando a
minha frustração nas plantas que cobrem o trilho, cortando-as com a minha
espada enquanto caminho.
Nada. Nenhum de nós encontrou ainda outro concorrente. As únicas
coisas que conseguimos encontrar foram muitas cobras. Estas, juntamente
com os lobos, foram os únicos visitantes que tivemos de combater até
agora.
Ouço o riacho borbulhante antes mesmo de a ver. A pequena clareira
aparece e Paedyn também. Ela senta-se num cepo, girando o anel de prata
grosso enquanto se concentra fixamente no fogo, o seu cabelo soprando na
brisa suave.
Pego em alguns gravetos e vou até lá, atiro-os para a fogueira antes de
me sentar num cepo à sua frente.
— Bem, não vejo feridas recentes, por isso, presumo que não ti­veste
sorte?
— Sinto-me ofendida por pensares que eu não conseguiria sair ilesa de
uma luta. — Depois de eu lhe lançar um olhar cético, ela acaba por
resmungar: — Não. Hoje não tive sorte.
Observo-a com atenção, avaliando a forma como morde o interior da
bochecha, como gira o aço no polegar, como balança a perna.
Ela é um caos de energia reprimida, com a ansiedade a consumi-la.
Mas eu deixo-a pensar, dando-lhe tempo antes de lhe pedir res­postas sobre
o que é que a deixa tão tensa. Depois, sentamo-nos em silêncio, eu a
mastigar um coelho fibroso enquanto Paedyn conti­nua a roer o interior da
sua bochecha.
O sol já desceu no horizonte, pintando o céu com laranjas pro­fundos e
rosas suaves, quando finalmente quebro o silêncio:
— Então, o que é que se passa? Diz lá.
— Hmm? — Paedyn levanta os olhos do fogo, de encontro aos meus
antes de decidir que as chamas são mais interessantes. — Nada. Estou bem.
Quase me rio. Aprendi da maneira mais difícil que essas são pa­lavras
que nunca se quer ouvir de uma mulher, e é óbvio que ela está tudo menos
bem. Alimento o fogo e suspiro.
— Tu és uma péssima mentirosa, Gray. — Ela atreve-se por fim a
olhar na minha direção. E depois começa a rir alto. Sustenho a respiração,
observando a forma como a sua cabeça se inclina para o céu, o cabelo
prateado caindo em cascata pelas costas, os seus olhos enrugando com a
diversão.
Ela olha para mim depressa de mais e espero ter apagado o de­sejo que
sinto da minha cara o mais rápido possível.
Ela é tão deslumbrante, mas tão...
O que raio é que se passa comigo?
— Ficas a saber que sou muito boa mentirosa. — Mal consegue dizer
as palavras sem suspirar como se tivesse contado uma ane­dota e eu tivesse
entendido.
— Hmm — ponho um pedaço de carne na boca. — Vou ter de
discordar.
— A sério?
— A sério.
Inclina-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Como assim, Príncipe?
Boa. Deixa-me distraí-la.
Os meus lábios contorcem-se num sorriso.
— Tu tens um tique, querida.
— Não tenho, não — ela já não se está a rir e quase me arrependo de
ter dito alguma coisa.
— Bates com o pé esquerdo quando mentes, muito ligeiramente —
Paedyn fica boquiaberta e eu sorrio. — Comecei a reparar nisso quando
disseste que odiavas as minhas covinhas. E, obviamente, ambos sabemos
que isso é mentira.
Agacho-me antes que a pedra que me lança acerte no meu crâ­nio.
Agora sou eu que me estou a rir. Ela volta a sua atenção para o fogo,
lutando contra um sorriso.
— Não sabia que me tinhas observado de tão perto.
— Observado? Querida, eu nunca parei — ela encontra o meu olhar
como uma emoção que não consigo sentir naqueles seus olhos de oceano.
E lá vai ela outra vez, girando aquele anel de prata no polegar.
Interessante.
— Porque é que estás a fazer isto? — interroga, trazendo-me de volta à
realidade. Procuro-lhe o olhar, mas está fixo nas chamas à nossa frente. —
Porque não pegaste na minha faixa e me deixaste?
Ouço as palavras não ditas a ecoar na minha cabeça.
Deixa-me morrer.
Ela olha para mim, olhos cheios de emoções. Quer uma resposta,
precisa de uma resposta para o facto de eu não ter agido como o monstro
que fui moldado para ser.
Abro a boca, à espera que me saia uma boa resposta. Enganei-me a
mim próprio, porque suspiro e digo:
— Sabes, nunca chegámos a acabar a nossa dança.
Ela fica confusa.
— Isso não foi uma resposta.
— Isso é porque ainda não dançámos. Já devias saber como é que isto
funciona, Gray. Nós dançamos e tu tens a tua resposta. Ou não dançamos e,
bem, ficas a pensar em todas as tuas perguntas sobre mim.
Ela solta uma gargalhada.
— Estás a brincar. Outra vez, não.
— Sim, outra vez — levanto-me e vou até onde ela está sentada no seu
cepo.
— Então — estendo-lhe a mão com uma vénia preguiçosa —, vamos
dançar ou não, Gray?
Ela revira os olhos, tentando lutar contra o sorriso que lhe está a
escapar dos lábios.
— Está bem.
Coloca a palma da mão sobre a minha e o mero contacto faz com que a
minha pulsação acelere.
O que é que esta rapariga me fez?
Afastamo-nos um pouco da fogueira, com o luar pálido a bri­lhar e as
estrelas a cintilar. Coloco a mão dela no meu ombro e pego na outra para a
segurar, com cuidado para não esticar os pontos. A minha outra mão
encontra a sua cintura, envolvendo o meu braço à volta das costas para a
puxar para junto de mim. É como se os meus braços a reconhecessem, e eu
absorvo cada detalhe, memo­rizo cada movimento.
Começamos a andar no ritmo sem nada a não ser o som dos nossos
próprios batimentos cardíacos e o chilrear dos grilos à volta. Somos
engolidos pela escuridão, meras sombras à luz da fogueira.
— Não há música — diz-me, com a voz entrecortada.
— Bem, então acho que não saberemos quando parar de dançar. Que
pena. — O meu queixo toca-lhe no topo da cabeça antes de a mergulhar em
direção ao chão, fazendo-a suspirar de surpresa.
— Não me deixes tentada a pisar-te — ameaça, sem fôlego.
Levanto-a lentamente enquanto digo:
— Oh, isso não. Ainda estou a recuperar da última vez que dançámos.
Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo o ranger dos galhos
sob os nossos pés e o crepitar do fogo. Através do seu top justo e gasto,
consigo sentir o calor do seu corpo, sentir a sua pele sob a minha mão.
Uma distração.
A sua voz é calma quando quebra o silêncio, como se não qui­sesse
interromper este momento.
— Então, a resposta à minha pergunta?
É verdade. Isso.
— É assim tão chocante que eu não queira que tu morras? — in­clino-
me ligeiramente para trás para a poder olhar. — É assim tão chocante que
eu ajude alguém?
Não hesita.
— Sim.
Solto uma gargalhada.
— Não posso dizer que esteja surpreendido.
— É que — faz uma pausa, os seus olhos invadindo meus como se
fosse ali que estivesse a resposta — pensei que fosses mais parecido com o
teu pai.
As suas palavras são duras. O Pai é... bem, ele é um Rei. É frio e
rigoroso e raramente se impressiona, mesmo com os seus próprios filhos.
Suponho que, de certa forma, me fez ser como ele, ensinou-me como agir, o
que sentir e, mais importante, o que não sentir. Graças a ele, criei um
conjunto de máscaras diferentes que posso pôr e tirar à vontade.
Sou uma confusão. Uma confusão de emoções abafadas e pare­des bem
construídas.
Mas como eu próprio não sei bem a resposta à sua pergunta, faço-lhe a
minha própria pergunta:
— É por isso que me odeias tanto? Porque pensaste que eu era como o
meu Pai, de quem claramente não gostas?
— Não te odeio — responde demasiado depressa, parando para pensar
se terá dito a coisa certa, enquanto eu me pergunto por que razão não o terá
dito antes.
O meu sorriso é inevitável.
— Oh, tu não me odeias? Então, cada ameaça à minha vida é uma
declaração de amor?
— Eu disse que não te odeio. Príncipe. Isso não quer dizer que não te
despreze.
Baixei a cabeça, com os olhos a perscrutar os seus.
— Acho que desprezas o facto de não me desprezar.
A sua boca fica aberta antes de a fechar para me fixar com um olhar.
Parece que a deixei sem palavras.
Bem, é a primeira vez.
— Fala, Gray — sorrio, rodopiando-a antes de a puxar para mim. —
Diz-me, estou errado?
— Pensava que era eu que fazia as perguntas — diz ela, distraindo e
desviando a minha atenção com aquele sorriso devastador e pala­vras bem
pensadas.
E eu é que sou o calculista.
Desvia o olhar, mordendo o interior da bochecha antes de voltar a
encontrar o meu.
— Terias ajudado um dos outros? — Uma pausa. — Alguém para
além do Jax ou da Andy?
Alguém para além das poucas pessoas com quem me preocupo
verdadeiramente.
Um sorriso lento espalha-se pelo meu rosto.
— Querida, duvido que a visão de alguém a morrer me afete tanto
como tu o fazes, estando viva e com saúde.
Ela engole em seco.
— Tu não tens vergonha de usares esse flirt todo, Azer.
— Só para ti.
— Hmm. Agora parece que também és um mentiroso descarado.
Solto uma gargalhada tranquila antes de avançar.
— É a minha vez de fazer uma pergunta. — Ela abre a boca, pro­‐
vavelmente para argumentar, mas eu corto-lhe a palavra.
— Então, de todas as pessoas que andavam a vaguear por Loot nesse
dia, porque é que eu tive a sorte de ser roubado?
A sua boca fecha-se antes de se dividir num sorriso.
— Tu encaixas-te numa descrição.
— Uma descrição?
O seu sorriso é tudo menos doce.
— Sim. Tu parecias convencido e cheio de moedas. Esses são os meus
alvos preferidos.
Inclino-me mais para ela.
— Bem, este alvo soube que o tinhas roubado.
— Soube tarde de mais.
— Engraçado, parece que me lembro de te ter apanhado pouco tempo
depois.
O seu sorriso é presunçoso.
— Só porque eu voltei para te salvar. — Depois ri-se. — Então achas
que não posso voltar a roubar-te sem que dês por isso?
— Acho que reparo em tudo o que fazes. Por isso, não.
Faz uma pausa, com o seu rosto perto do meu, momentaneamente
atordoada pelas minhas palavras. Eu sorrio, apreciando a visão da luxúria.
As suas palavras seguintes são suaves, lentas.
— Isso é um desafio, Azer?
— É um facto, Gray.
— É? — diz ela, de repente, a pôr algo entre as nossas caras. — É in­‐
teressante, porque eu tirei-te isto quase imediatamente depois de
começarmos a dançar.
Espreito à luz fraca, praguejando baixinho quando me apercebo do que
ela está a segurar. A faixa de couro de Braxton, outrora se­gura no meu
bolso, está agora presa entre os seus dedos e a balançar à frente da minha
cara.
— Estou impressionado, Gray — encolho os ombros, casualmente,
antes de acrescentar: — Estou sobretudo chocado por não ter repa­rado,
mesmo estando com tanta atenção dirigida a ti.
Ela revira-me os olhos.
— Distração.
O meu olhar percorre-a rapidamente antes de voltar ao seu sorriso.
— És muito boa nisto, não és?
Está calada e observa-me atentamente antes de desviar o olhar.
Eu faço o mesmo, preparando-me para mais uma das suas pergun­tas
indiscretas.
— Qual é a tua cor preferida?
Fico confuso.
— O quê? — Quase me engasgo com o riso.
— A tua cor preferida. Qual é a tua cor preferida?
Desta vez, fui eu que quase lhe pisei os pés, pelo choque e puro
espanto.
— De todas as coisas que me podias perguntar, perguntas qual é a
minha cor preferida?
Não consigo evitar que o sorriso se espalhe pela minha cara.
Ela afasta uma madeixa de cabelo dos olhos, irritada.
— Sinto que não sei muitas coisas sobre ti, por isso pensei em co­meçar
pelo básico. — Um suspiro. — Vou deixar-te escapar com uma pergunta
fácil, por isso não me desiludas. Qual é a tua cor preferida?
Eu rodo-a, nem que seja para me dar algum tempo para pensar. Nunca
tinha pensado sobre isso. Nunca me pareceu importante.
Não até olhar para um par de olhos azuis oceânicos e perceber que
talvez o afogamento fosse uma coisa bonita.
Não até ter olhado para um par de olhos azuis ardentes e ter per­cebido
que talvez queimar-me fosse uma coisa indolor.
Não até ter olhado para um par de olhos azul-celeste e ter perce­bido
que talvez cair fosse uma coisa pacífica.
Nunca tinha pensado em qual era a minha cor favorita porque não
tinha visto nenhuma que fosse digna desse título. Até agora, é claro.
— Azul — digo, com a voz baixa.
— Hmm — está a olhar para mim, estudando-me com sinceri­dade. —
Nunca teria adivinhado.
Eu também não.
— E a tua? — pergunto-lhe, observando-a enquanto pensa.
Abre a boca e depois fecha-a, pensando em algo. A sua mandí­bula está
tensa.
— Não tenho nenhuma. — Com um pequeno encolher de om­bros,
pergunta: — Comida ou sobremesa preferida?
— Estamos a meio da Prova e estás a perguntar-me qual é a minha
comida preferida?
Ela ignora-me.
— Bem, sei que não é coelho. Vejo a forma como a tua boca se torce
quando o comes...
— Não torço nada... — Faço uma pausa, a sorrir. — Estiveste a olhar
para a minha boca, Gray?
Ela abre a boca para argumentar e acaba por suspirar.
— Responde ao raio da pergunta, Azer.
Dou uma gargalhada e rodo-a lentamente.
— É fácil. Tarte de limão.
Ela sopra para o ar.
— Estás a brincar. Tarte de limão? Tu és um Príncipe rico que podes
comer o que quiseres e escolhes tarte de limão?
— Sim, tarte de limão — imito-a. — E agora vou obrigar-te a comer
algumas comigo quando finalmente sairmos daqui.
— Nem pensar. Nem morta.
O meu sorriso é perverso.
— Isso pode arranjar-se.
E lá vai ela, cumprindo a sua ameaça de me pisar os dedos dos pés,
visto que isso é a sua única arma neste momento.
— Oops.
— És má — murmuro baixinho.
— Nem imaginas quanto, Príncipe.
— Oh, mas espero um dia saber.
Ficamos em silêncio por um momento, estudando-nos um ao outro,
antes de eu finalmente perguntar.
— Diz-me, qual é a tua comida preferida, já que parece que tens algo
muito melhor do que tarte de limão.
— Acredita em mim quando digo que é muito melhor do que tarte de
limão.
— Então, diz-me, Gray.
Inclina a cabeça para cima, na direção da minha, e diz com confiança:
— Caramelos.
— Caramelos — repito, gravando a informação na memória.
— Sim — Sorri, mas eu vejo-lhe a tristeza. — O meu pai costumava
distribuir doces pelos seus doentes. E sempre que ele tratava de uma das
minhas feridas, ou eu o ajudava a tratar das feridas de outra pes­soa,
comíamos caramelos como uma espécie de recompensa.
Ficamos em silêncio por um momento.
— Vocês eram muito chegados.
— Sim, — responde-me. — Mas tu e o teu pai não são, pois não? Não
depois do que ele te fez passar.
Fico grato pela ausência de piedade na sua voz, embora o seu desgosto
seja evidente. Escapa-me uma gargalhada silenciosa e amarga.
— Não. Eu sou mais soldado do que filho, e ele é mais Rei do que pai.
É difícil sermos próximos quando o único tempo que passámos juntos foi a
treinar, e eu não estava propriamente ansioso por esses encontros.
— E a tua mãe? — pergunta-me calmamente.
— Ela é tudo o que eu podia desejar — digo-lhe simplesmente.
— Tudo o que eu precisava em miúdo. Ela tem sido uma das únicas
constantes na minha vida, uma fonte de bondade e carinho.
— E mesmo assim — diz Paedyn, hesitante —, ela deixou que o teu
pai te fizesse tudo o que fez?
Faço uma pausa, falando enquanto as memórias se apoderam de mim.
— Ela nunca teve uma escolha. E tornar-me no futuro Executor é o
meu dever, não importa os métodos que sejam necessários para lá chegar.
Olha-me com aquela expressão que nunca consigo identificar. Será
espanto? Confusão? Num momento é um livro aberto e, no outro, mal
consigo abrir-lhe a lombada.
E depois começa a fazer-me perguntas. A maioria delas alea­tórias,
embora todas sejam consideradas igualmente importantes para ela. Conta-
me histórias da sua infância e eu faço o mesmo, ouvindo-a rir-se da minha
estupidez e da do Kitt.
— Já agora, fala-me do lábio ferido que tinhas quando nos conhe­‐
cemos? — pergunto-lhe, com as sobrancelhas levantadas.
Ela ri-se e o som sobe-me pela espinha.
— Não estava a mentir quando te disse que era um presente de um dos
teus Imperiais.
— Certo. Creio que me informaste disso quando encostaste a tua adaga
à minha garganta?
— Exatamente.
— Bem, ainda não sei os pormenores de como tudo aconteceu. — Os
meus olhos escurecem ao pensar nisso. — Não gosto que os meus Imperiais
batam em mulheres.
— Então devo informar-te que esta não foi a primeira vez. — As suas
palavras são casuais, sem rodeios. — Resumindo, ele não acre­ditava que eu
era Psíquica, por isso provei-lhe que o era. E, clara­mente, não gostou do
que eu tinha para dizer.
Fico a olhar para ela incrédulo.
— E tu levaste com um golpe?
— Sim, mas não sem antes de lhe afetar o orgulho.
— Porque é que isso não me surpreende?
Ela devolve-me um sorriso malicioso.
— Provavelmente porque já estás habituado a que eu te humilhe,
Príncipe.
— Estou mesmo. — Faço uma pausa, para a absorver. — Tu nunca
deixas de me surpreender, Gray.
Sorrio e solto-lhe a mão para tocar levemente na ponta do nariz.
Ela afasta os meus dedos com um suspiro.
— E tu nunca deixas de me irritar.
Agarro-lhe de novo a mão e conduzo-a pelo meu braço até que ambas
as palmas das suas mãos repousem nos meus ombros. De­pois passo as
minhas mãos à volta da sua cintura e atrás das suas costas, tendo cuidado
com o seu lado ferido enquanto a puxo para mais perto.
E depois balançamos.
Não há passos chiques, não há valsa para acompanhar o ritmo. Apenas
nós, no meio de uma floresta, rodeados por milhares de es­trelas a piscar. As
suas pestanas tremem, e depois os seus dedos estão entrelaçados atrás do
meu pescoço.
A tensão entre nós intensifica-se, como uma eletricidade invisível que
nos liga. O meu pulso acelera e a sua respiração também, o seu Peito sobe e
desce rapidamente.
— Nunca deixo de te irritar, não é? — observo-lhe o rosto en­quanto a
puxo para mais perto. — E agora? É esta a exceção?
Ela engole em seco e baixa a cabeça, sem me dar uma resposta. Sorrio
ligeiramente enquanto tento fazê-la falar, um problema com que nunca tive
de lidar antes.
— Pae?
Continuo sem resposta.
Os meus dedos agarram-lhe o queixo, guiando gentilmente o seu olhar
para o meu. A sua cara está cheia de confusão e ela solta uma gargalhada
trémula.
— Estou irritada por não estar a achar isto irritante.
A minha mão aperta-se à volta da sua cintura como se pudesse pegar
fogo ao senti-la. Sinto-me envergonhado com o quanto esta rapariga me
absorve, com medo do quanto ela me afeta. Faz-me sentir igualmente fraco
e maravilhoso. Alarmado, mas vivo.
— Porque não me acertaste, Paedyn?
A pergunta sai-me da boca, curiosa e silenciosa. Ela inclina a cabeça,
estudando-me.
— Vais ter de ser mais específico do que isso, Azer.
O desvio.
Sorrio, sabendo que ela sabe do que estou a falar.
— Podias ter-me acertado há uns dias, mas disparaste para o chão.
Quero saber o porquê.
Faz uma pausa, ponderando a sua resposta.
— Só porque estava condenada à morte, não quer dizer que te quisesse
amaldiçoar com tal destino.
Os seus olhos percorrem-me, e eu gosto dessa sensação.
E depois afasta-se.
As suas mãos estão de novo nos meus ombros, tensas e teimo­samente
imóveis. Depois os seus olhos estão no céu, escolhendo as estrelas e não o
meu rosto. Suspira profundamente, recolhendo-se em silêncio.
E eu estou a fazer o mesmo, a tentar recompor-me depois de ela se ter
afastado.
Sim, somos adversários. Sim, eu sou o futuro Executor. Sim, sou um
assassino que não tem o direito de querer ficar com ela. Mas há algo mais,
algo que a faz recusar-se a admitir esta ligação confusa que partilhamos.
Pestes, estou chateado por o ter admitido a mim próprio.
As minhas máscaras ainda estão prontas, as minhas paredes ainda
estão no lugar, mas ela está lentamente a derrubar as minhas fachadas e
fortalezas. E de repente estou zangado comigo mesmo por o permitir. Por
me permitir preocupar-me. Por me permitir pensar nela de outra forma que
não o facto de ela ser minha adversária.
Porque ela deixou claro que isso é tudo o que eu sou para ela.
— Kai — diz-me baixinho, o som do meu nome nos seus lábios
arranca-me dos pensamentos. — Eu...
Uma voz suave e feminina interrompe-lhe as palavras.
— Desculpem interromper, mas vocês têm algo de que preciso.
A voz dela ecoa à nossa volta. Kai e eu afastamo-nos, virando-nos
instintivamente para encostar as costas um ao outro. Espreito através da luz
fraca, onde os contornos de figuras altas e escuras começam a tomar forma.
Um suspiro relutante ressoa na escuridão, amplificado pelos numerosos
corpos que nos rodeiam.
Estamos encurralados.
Todos eles dão um passo em frente, cercando-nos numa gaiola humana
de corpos. Dezenas de olhos cor de avelã brilham à luz da lareira, cabelo e
pele escuros reluzentes.
Sadie.
— Tudo o que quero são as vossas faixas e vou-me embora. — E de­‐
pois quase sorri ao olhar à volta para as suas cópias. — Quero dizer, vamos
embora.
Kai suspira, aparentemente irritado com tudo isto.
— Tu sabias que não te daríamos as nossas faixas e, mesmo assim,
interromperam-nos.
— Está bem — diz Sadie, de forma brusca. — Então dá-me uma faixa
e ninguém tem de sair magoado.
Os meus olhos dirigem-se para o meu arco que se encontra a al­guns
metros de distância e atrás da parede de Sadies. Não tenho uma única arma
para me defender e nunca me senti tão exposta. É como se estivesse
despida. Quase consigo sentir o fantasma da adaga do meu pai contra a
minha coxa, fazendo-me desejar mais do que tudo tê-la aqui comigo.
Vários pares de olhos cor de avelã percorrem-nos aos dois, ainda de
costas, antes de se fixarem nos meus.
— Não quero fazer-te mal, mas faço-o se for preciso. — Faz uma
pausa, e a sua voz é uniforme, insensível, quando afirma: — Fá-lo-ei se isso
significar que vou ganhar.
Estou prestes a abrir a boca para responder quando sinto os calos de
Kai, que agarra a minha mão atrás das costas. Quase me arrepio com esse
contacto, mas ele abre-me o punho, pressionando algo frio e duro na minha
palma antes de enrolar os meus dedos à sua volta. Depois, com a mesma
rapidez, a sua mão desaparece.
A coisa magoa-me a pele, com as suas pontas afiadas. Luto para
manter o sorriso no rosto quando percebo o que ele me deu.
Uma arma. Ele deu-me uma oportunidade de lutar.
É pequena, mas é uma arma. Agarro a estrela de arremesso, sem me
importar se as pontas afiadas me perfuram a pele. Este pequeno objeto pode
ser a diferença entre a vida e a morte.
A única arma que Kai tem é a espada que traz ao lado do corpo, mas,
por outro lado, ele próprio é uma arma. Estou chocada por ele não ter
sentido o poder de Sadie a aproximar-se, mas suponho que não o posso
culpar, tendo em conta o quão distraída eu estava por ter as mãos dele no
meu corpo, as suas palavras com significados subjacentes, o meu coração a
bater quando ele se aproximava mais.
Respiro fundo.
Vamos lidar com um problema de cada vez.
— Então acho que terás de me magoar se tiveres alguma espe­rança de
ficar com a minha faixa — respiro, olhando para as Sadies enquanto dão
um passo lento em frente.
Abana a cabeça, como se estivesse desapontada com a minha decisão.
— Está bem. Mas não digas que não te avisei.
De repente, já está à minha frente, a aproximar a ponta de uma adaga
pequena à minha garganta. Antes do próximo batimento do meu coração, já
puxou o meu braço e encostou-me contra si. A lâ­mina que ainda segura
contra a minha garganta afunda-se mais na carne a cada respiração
superficial.
— Só te vou perguntar mais uma vez. — A voz de Sadie é aguda, tão
diferente do tom suave a que estou habituada. — Dá-me a tua faixa, Kai, ou
corto-lhe a garganta.
O Príncipe fica em estado de alerta perante a cena, parecendo
completamente imperturbável.
Ele sabe que eu sei tomar conta de mim e, apesar de me sentir
frustrada com esse facto, a sua ajuda dava-me jeito neste momento. O
sangue quente começa a escorrer-me pelo pescoço, e eu esforço-me por
manter a calma.
Kai limita-se a encolher os ombros perante a ameaça.
— Então, vai em frente. — Acena com a cabeça para a lâmina en­‐
costada à minha garganta. — Vê se me importo. Afinal de contas, somos
apenas adversários. Menos competição.
Quase consigo ouvir Sadie a pestanejar atrás de mim. Está cla­ramente
espantada com a sua falta de preocupação, sobretudo de­pois de nos ter visto
a dançar há poucos minutos. Eu própria ficaria espantada se não estivesse
tão habituada a ver as suas máscaras — se não reconhecesse a que ele
acabou de colocar, responsável pela frieza.
Ela fica tensa atrás de mim.
— Estou a perceber o que estás a fazer, Príncipe.
A sua mão está a tremer, começa a fazer um corte mais fundo na minha
pele. E depois ataco.
Consigo atingi-la com a estrela de arremesso afiada no tecido mole do
seu estômago, empurrando-a para dentro enquanto lhe afasto a mão que
ainda segura a adaga. Ela grita e afasta-se, fa­zendo-me tropeçar em Kai.
Bem, num deles. Há agora várias formas musculadas, todas espelhando as
suas ondas negras desalinhadas e os seus olhos tempestuosos. Ele assumiu a
habilidade de Sadie.
Vou contra o peito dele antes sentir as suas mãos fortes a agar­rarem-me
os braços. Quando lhe vejo o rosto, ele tem a coragem de me piscar o olho
antes de dizer:
— Bom trabalho, Gray. Posso sempre contar contigo e com as tuas
tendências violentas.
Com isso, dá meia-volta e enfia a sua espada num dos clones de Sadie.
Uma multidão de Sadies rodeia Kai e as suas próprias cópias,
mantendo-o ocupado e incapaz de chegar à verdadeira e acabar com esta
luta rapidamente. Lembro-me de um dia de treino no cas­telo, quando vi
Sadie a lutar com Braxton. Eles lutavam e dançavam à volta um do outro
até que Braxton conseguiu chegar à verdadeira Sadie, derrubando-a
finalmente e terminando o combate.
E é exatamente isso que vou fazer. Exceto que, ao contrário das ilusões
de Ace, que já tive o prazer de enfrentar, Sadie e as suas có­pias podem
tocar-me e magoar-me. Com este pensamento inquietante em mente, movo-
me atenta, preparada para atacar. Viro-me para o lado contrário das cópias
que estão a cercar Kai, sabendo que ele consegue aguentar-se enquanto
confia que eu consigo fazer o mesmo. Restam apenas três Sadies, duas das
quais guardam a ver­dadeira, que está a segurar uma mão ensanguentada na
ferida do estômago. As suas cabeças olham na minha direção e mal tenho
tempo para me colocar em posição de combate antes que uma delas me
ataque.
Infelizmente para mim, Sadie sabe lutar. Uma vez que o seu poder é
simplesmente duplicar o seu próprio corpo, ela tem auto­maticamente força
em números. Mas está treinada para que esses números tenham a sua
própria força.
Um gancho de direita vem em direção à minha cara e eu esquivo-me,
dando-lhe um golpe rápido no estômago. Sadie cambaleia para trás com um
grunhido, e eu aproveito a oportunidade para lhe dar um pontapé que acerta
de lado no corpo. Ela agarra a minha perna e puxa-me para a frente.
Exatamente o que eu estava à espera. Agarro-lhe os ombros e salto,
enfiando-lhe o outro joelho bem fundo no estômago. Ela deixa cair a minha
perna com um grito de dor, e eu deslizo o meu anel para o dedo do meio
antes de lhe atirar um murro à têmpora. Murmuro um gracejo enquanto
sacudo a minha mão ma­goada, mas ela fica inconsciente antes mesmo de
chegar ao chão.
Uma mão puxa-me o cabelo, com força, e a minha cabeça é le­vada
para trás. Solto um suspiro aflito quando um cotovelo se agarra à minha
garganta, esmagando-me a traqueia. Não consigo respirar, tonta com a dor.
Mas piso-lhe o pé antes de lhe dar uma cotovelada forte no estômago. Ela
solta-se, e eu rodopio, agarrando-lhe a nuca e batendo-lhe com o nariz no
joelho. Ela cospe e estende o punho, conseguindo acertar-me no maxilar.
Ignoro a dor e deixo-me cair, esticando a perna antes que ela se levante.
Bate no chão com um es­trondo, mas eu já desviei a minha atenção da sua
forma esparramada.
O meu olhar percorre os olhos cor de avelã fumegantes da ver­dadeira
Sadie. Ela vem na minha direção, com sangue a escorrer-lhe por entre os
dedos enquanto cobre a ferida.
— Fica a saber que eu não quero fazer isto — diz-me, com a voz tensa.
— Mas tenho de o fazer.
E depois os seus punhos atiram-se a mim numa combinação de
ganchos, golpes e murros. Fico impressionada com a velocidade e força que
ainda tem depois de ter sido esfaqueada, obrigando-me a defender. Desvio-
me dos seus golpes até acertar-lhe com um dos meus, em cheio no maxilar.
Ela grunhe de dor antes de me dar um pontapé na têmpora. Eu mal a
bloqueio, e o seu calcanhar continua a bater-me. Andamos à volta uma da
outra, lançando várias combinações de murros e pon­tapés. O seu punho
acerta-me no lábio e a minha cabeça vira-se para o lado antes de cuspir
sangue. Dou-lhe um pontapé forte no lado já ferido e ela grita de dor.
Depois ataco-a com um golpe no maxilar, outro na ferida, um pontapé na
têmpora.
Ela grita, tentando acertar-me com um murro fraco, mas eu apanho-lhe
o pulso facilmente, torcendo-o num ângulo estranho antes de lhe dar mais
uma joelhada no estômago. Agarro-lhe a camisa com uma mão e a outra é
agora um punho pronto a atacar. Atiro à cara dela, pronta para acabar com
este combate com um último golpe.
Só que o meu punho não se mexe.
Mãos frias agarram-me os dois pulsos, puxando-me os braços até
ficarem bem apertados atrás das costas. Estou tão chocada, tão tensa e
cansada que não consigo lutar contra o aperto forte, não consigo fazer nada
para me libertar.
A minha cabeça dá uma volta e estou frente a frente com uma Sadie de
nariz ensanguentado, aquela com quem estava a lutar.
— Olha para mim, Paedyn. — A minha cabeça volta-se para a Sadie
original, agora agarrada a uma faca com as mãos ensanguentadas. Dou um
pontapé nas pernas da Sadie que está atrás de mim, mas ela dá-me um
pontapé na parte de trás dos joelhos, fazendo-me cair no chão.
Desamparada. Impotente.
Sadie está de pé sobre mim, parecendo contemplar algo en­quanto eu
me ajoelho.
— Nunca vais deixar de lutar contra mim, pois não? — Em resposta,
contorço-me do seu controlo, tentando desesperadamente libertar-me. Ela
abana a cabeça, com um olhar de arrependimento. — Talvez o Kai tivesse
razão. Quanto menos concorrência, melhor.
Agarra o cabo da adaga com as duas mãos, levantando-a acima da
cabeça.
Então é assim que eu morro.
Sobrevivi toda a minha vida como Vulgar, no entanto, é assim que
tudo acaba.
Com uma mísera adaga. Não sei se me apetece rir ou chorar.
Sadie segura a faca acima da cabeça, pronta para a enfiar no meu
coração que bate rapidamente, enquanto sussurra.
— Eu disse-te que não queria fazer isto. Mas tenho de o fazer.
Kai vai ficar furioso por me ter salvado a vida para nada.
— Desculpa — Sadie engasga-se quando lança a ponta da lâmina ao
meu coração. E, surpreendentemente, estou pronta para isso.
Vejo-te em breve, pai.
Nada.
A lâmina para a poucos centímetros do meu coração.
Estou a tremer, os meus olhos vão da faca parada até Sadie. O sangue
jorra-lhe da boca, seguido de um suspiro que escorrega por entre os lábios.
Ela olha para baixo, de olhos arregalados, e eu sigo o seu olhar até à espada
que agora se encontra cravada no seu peito.
A adaga escorrega-lhe por entre os dedos enquanto as lágrimas imitam
o movimento na face. Ela tropeça para trás, ofegante, contra um peito largo.
Kai envolve-a com os braços e guia-a gentilmente até ao chão, com um som
aflitivo a escapar-lhe dos lábios.
De repente, fica em silêncio, com os seus olhos cor de avelã a olhar
para o céu negro — arregalados, mortos e brilhantes.
As Sadies à nossa volta desaparecem, deixando-me as mãos li­vres para
tapar a boca enquanto me engasgo com um suspiro. Estou a tentar assimilar
o que acabou de acontecer, a tentar respirar.
Kai ajoelha-se ao meu lado, com a preocupação a franzir-lhe a testa.
— Estás ferida? — Os seus olhos percorrem-me o corpo ao mesmo
tempo que os dedos, procurando ferimentos, tal como tinham feito há umas
noites.
— Paedyn, olha para mim. — As mãos ásperas estão agora a segurar o
meu rosto, guiando o meu olhar para ele. — Diz-me, ela magoou-te?
— E... Eu estou bem. — Eu não estou bem.
Odeio estas Provas porque matam pessoas, e agora acabei de o
testemunhar em primeira mão. Fiz parte de uma morte. Eu não pedi nada
disto, não queria que ninguém morresse. E agora, outra vítima das Provas
jaz imóvel a poucos metros de distância.
«Já te disse que não quero fazer isto. Mas tenho de o fazer.»
Sadie não me queria matar e, no entanto, quase desejei que o ti­vesse
feito. Quase desejava ter uma razão para a odiar, uma razão para lhe desejar
este destino. Mas foram estas Provas distorcidas que forçaram a sua mão
trémula a erguer aquela adaga acima da cabeça, que a forçaram a quase tirar
uma vida.
Olho para o seu corpo ensanguentado, leve e próximo. Uma ima­gem
do meu pai surge diante dos meus olhos, substituindo a rapariga que tentou
matar-me pelo pai que teria matado por mim. Vi-o morrer da mesma forma,
e tento afastar a imagem. Mas o seu corpo ensan­guentado não se mexe...
— Ei, olha para mim, estás bem? Não olhes para ela, olha para mim.
— As mãos de Kai ainda estão a segurar suavemente o meu rosto quando
deslizo o meu olhar para o dele, tentando concentrar-me em algo que não
seja a morte à minha frente. Exceto que o próprio Prín­cipe parece ser a
morte encarnada, uma arma.
— Concentra-te nos meus olhos. Eu sei o quanto gostas de olhar para
eles. — O seu olhar cinzento brilha, e o canto dos seus lábios sobe enquanto
a minha boca se abre. Ele conhece-me suficientemente bem para saber que
estou prestes a ralhar, pelo pequeno comentário, por isso pressiona um dedo
nos meus lábios antes que eu tenha a oportunidade.
— Concentra-te nas covinhas que tanto tentas convencer-te a odiar,
embora eu saiba que procura por elas sempre que sorrio. — O seu sorriso
espalha-se, e os meus olhos traidores focam-se nas covinhas que o
emolduram.
O polegar que ele passa sobre o meu lábio inferior faz com que os
meus olhos se desviem das covinhas para encontrar o seu olhar.
— Concentra-te nos meus lábios. — A sua voz é um murmúrio, uma
carícia como os dedos que roçam o meu rosto e a minha boca. — Não sejas
tímida, eu sei que não é a primeira vez.
Os meus olhos vão até aos seus lábios, percorrendo a curva sen­sual. É
tão fácil olhar para ele, admirá-lo. Tudo nele é irritantemente sedutor, uma
distração...
Uma distração.
Quando os meus olhos se iluminam com a perceção do que está a
fazer, o seu ligeiro sorriso diz-me que tenho razão. Este rapaz cal­culista
acabou de me distrair de um cadáver, usando nada mais do que ele próprio
para o fazer.
— Tens a certeza de que isto foi para me distrair e não para au­mentares
o teu ego? — pergunto, com a minha voz falsamente calma.
— Porque é que não pode ser as duas coisas?
— Estúpido — murmuro.
Não parou de me sorrir.
— Posso ser estúpido, mas acabei de salvar a tua vida. — E depois,
sem aviso, o seu sorriso desaparece e é substituído por um olhar sério
enquanto me observa. — Como é que estás? Já te acalmaste?
Respiro e fecho os olhos por um momento. Uma imagem do corpo
ensanguentado de Sadie aparece na minha mente antes de passar para a do
meu pai.
— Estou bem agora — minto, odiando o som tenso da minha voz.
Ele abana a cabeça.
— Eu disse-te. Tu és uma péssima mentirosa, Gray.
Um riso trémulo escapa-me. O som é tão errado quando acom­panhado
por um corpo morto que está a poucos metros, mas parece que não me
consigo controlar. Nesta altura, as minhas únicas opções são rir ou chorar, e
recuso-me a fazer a segunda.
Kai estuda o meu rosto, parecendo ver a batalha que se trava den­tro de
mim. Sem dizer uma palavra, passa um braço à minha volta e ajuda-me a
pôr-me de pé. Sei que devia afastá-lo, devia dizer-lhe que não preciso da
sua ajuda. Mas sou fraca em muitos mais aspetos do que um, e a sua
proximidade é o meu único conforto neste momento.
Ele guia-me até um cepo e senta-me, agachando-se para olhar para a
minha cara.
— Pae — diz a sílaba tão suavemente —, fica aqui e acalma-te. Res­‐
pira, está bem? Ainda estás em choque.
Aceno com a cabeça, entorpecida, enquanto ele volta a avaliar-me. O
seu olhar nunca se desvia do meu enquanto levanta lentamente uma mão
para deslizar os dedos sobre os meus, parecendo procurar algo. Param no
aço frio que rodeia o meu dedo antes de rodar o anel, espelhando um
movimento que me é demasiado familiar.
— Distrai-te. Roda isto como sempre fazes para te manteres ocu­pada,
para não pensares em nada.
Pestanejo, chocada por ele conhecer os meus hábitos, por saber como
me ajudar. Fico espantada com a sua calma e concentração depois de matar
alguém, embora não devesse ficar. Foi criado para isto, moldado para se
tornar um assassino que fica entorpecido com a morte que distribuiu.
Reprimo um movimento ao pensar nos horrores que este rapaz assombrado
cometeu. Os horrores que su­portou. Kai levanta-se para caminhar.
— Vou... limpar isto. Volto em breve. E por uma vez que seja —
suspira — ouve o que te digo e fica quieta.
E depois foi-se embora, deixando-me a girar o meu anel.
Sem surpresas, não lhe dei ouvidos. Mal senti o meu rabo ficar
dormente de estar sentada naquele cepo ensanguentado, levantei-me e
comecei a andar em círculos à volta do acampamento antes de salpicar água
fria na minha cara e corpo. Depois o meu rabo ficou frio e fui para junto da
fogueira para me deitar no chão duro que me é tão familiar.
Recusei-me a ver Kai a levantar o corpo de Sadie por cima do ombro e
a ir-se embora com ela. Não faço ideia de onde a deixou. E não quero saber.
Mas deixo os meus pensamentos vaguearem en­quanto ele também vagueia
pelo bosque com um cadáver pendu­rado ao ombro.
Observo o fogo moribundo de onde me deito, com um braço dobrado
debaixo da cabeça, criando uma almofada desconfortável. A minha
respiração está agora sob controlo, os tremores provoca­dos pelos restos de
adrenalina e pelo choque já desapareceram. Até podia estar aqui deitada há
horas, se a noção do tempo que passa fosse algo que estivesse ao meu
alcance.
De repente, reparo numa sombra passageira, pertencente a al­guém que
está agora agachado atrás de mim.
Agarro o cabo da faca de Sadie e reajo com um movimento rá­pido,
levando a ponta da lâmina à garganta de quem quer que tenha decidido que
era uma boa ideia aproximar-se de mim. Os meus olhos chocam com os da
tempestade, mais divertidos do que assustados.
— Calma — murmura Kai, colocando suavemente uma mão ás­pera à
volta do meu pulso e afastando a adaga de si. — Sou só eu.
O canto da sua boca torce-se quando ele completa:
— Embora duvide que esse conhecimento te impeça de manter esta
lâmina da minha garganta.
Esboço um ligeiro sorriso ao pensar nisso, passando uma mão pelo
cabelo despenteado enquanto olho para ele, agachado ao meu lado.
— Como agora somos parceiros, não tens de te preocupar com o facto
de eu te apunhalar.
Ele solta uma gargalhada profunda, e espero que a luz fraca es­conda a
maior parte do meu sorriso ao ouvir o som.
— E quando já não formos parceiros? Devo temer pela minha vida?
— Isso seria sensato, sim.
Por pouco não o ouço murmurar.
— Tão má.
Ficamos em silêncio por um momento, e o meu sorriso começa a
desvanecer-se lentamente. Estou cansada e surpreendentemente confortável
na terra compacta, por isso não me mexo e digo:
— Tu...
— Sim — interrompe-me, poupando-me o discurso sobre o corpo de
Sadie.
O meu olhar fixa-se nas mãos dele e na fina camada de terra que as
cobre. Está debaixo das unhas, espalhada pelos braços. Um pó amarelo nas
pontas dos seus dedos chama a minha atenção, um pó fino que lhe mancha a
pele.
Sujidade. Pólen.
A minha voz é pouco mais do que um sussurro:
— Tu enterraste-a — Kai fica parado ao meu lado.
— Aliás, não só fizeste isso — os meus olhos deslizam lentamente
para se encontrarem com os dele —, como ainda deitaste flores na campa
dela.
O seu sorriso é quase triste, cheio de cansaço.
— Nada te escapa, pequena Psíquica.
Estende então a mão, passando pela ponta do meu nariz, como fez
quando dançámos. De alguma forma, o simples gesto parece muito mais
íntimo do que eu gostaria de admitir, como se ele estivesse a partilhar algo
precioso comigo, dizendo algo sem pronunciar uma única palavra.
Pego na mão dele antes que se afaste, tentando ignorar a sensa­ção dos
seus calos contra os meus.
— Obrigada, Kai. Foi muito simpático da tua parte fazeres isso por ela.
Os seus lábios contorcem-se e o seu olhar vai em direção às nos­sas
mãos unidas.
— Oh, não o fiz por ela.
A intensidade do seu olhar arrebata-me, mas não fujo. Não quero
desviar o olhar. Ele passa o polegar sobre os nós dos meus dedos, um gesto
tão suave, tão gentil.
Inclina a cabeça para o lado, inspecionando-me.
— Como te estás a sentir? — Abro a boca, mas Kai antecipa-se à
minha resposta ensaiada. — E não te ponhas a dizer que estás bem, porque
ambos sabemos que isso é mentira.
Mais uma passagem do seu polegar pelos nós dos meus dedos.
— Eu... — Os meus olhos fecham-se e respiro fundo. — Sinto-me
como se quase tivesse morrido hoje. Estou a sentir-me sobrecarre­gada e
sem saber o que fazer. Sinto-me furiosa e frustrada porque não sei como me
sentir em relação a tudo isto.
Faço uma pausa enquanto Kai espera pacientemente que eu continue.
— E sinto que te devo um agradecimento. Teria morrido hoje se não
fosses tu a salvar-me.
Aproxima-se mais, com os olhos a transbordar de emoções mal
contidas.
— E salvarei a tua vida vezes sem conta, esperando que me deixes
ficar nela.
Ficamos a olhar um para o outro.
Aquelas suas palavras bonitas fazem com que o meu coração bata
ainda mais forte e o meu cérebro confunde-se com os possíveis
significados. A tensão entre nós é palpável, tirando-me o fôlego à medida
que me envolve. Estou a tentar encontrar as palavras certas, qualquer coisa,
mas estou demasiado ocupada a olhar para ele para conseguir pensar.
De repente, uma pergunta silenciosa passa-me pelos lábios, que­brando
a tensão.
— Como é que estás tão calmo depois de tudo isto?
Eu sei a resposta e, no entanto, dou por mim a querer ouvi-la dele.
— Eu nem sempre fui assim — diz ele suavemente. — Mas a prática
leva à perfeição, e eu tive muita prática.
Mais uma vez, trocamos olhares em silêncio. Estou a tentar en­contrar
algo para dizer e é aí que me lembro da faixa de couro que lhe tinha
roubado e tiro a minha mão da sua para a tirar do bolso.
— Bem, suponho que esta é a única forma de te poder pagar. Até
porque te pertence.
Ele encolhe os ombros de forma preguiçosa.
— Fica com ela.
Eu suspiro.
— Não quero a tua pena.
— Não é pena, Paedyn. — Ele suspira as palavras, o meu nome. —
Além disso, eu agora tenho outra, e derrotar a Sadie foi um es­forço
conjunto.
Lanço-lhe um olhar, preparada para discutir, pois ambos sabe­mos que
não precisava necessariamente da minha ajuda com Sadie. Não sente falta
da luta nos meus olhos.
— Fica com a maldita faixa, Gray.
Se ele quiser oferecer-me a única coisa de que preciso para me ajudar
a vencer estas Provas, tudo bem.
Eu fico com o raio da faixa. Mas não antes de me divertir um pouco.
Um sorriso torce-me os lábios.
— Diz «por favor».
Desvia-me o olhar, abanando a cabeça para o céu estrelado.
— Estiveste à espera de que eu dissesse isto, não foi?
— Na verdade, estava a morrer de vontade.
Os seus antebraços apoiam-se nos joelhos dobrados e ele in­clina-se
mais próximo de mim ainda, com o rosto a pairar sobre o meu. O sorriso
que me dá é tão preguiçoso como o olhar que lhe percorre o meu rosto.
— Por favor, Pae.
Sinto um arrepio na espinha perante a carícia que é a sua voz.
— Parece ser uma palavra estranha para ti, Príncipe.
— Graças a ti, tenho a sensação de que vou ficar muito familiari­zado
com ela. Poucos têm o poder de me fazer suplicar.
Engulo em seco, optando por ignorar as suas palavras, enfio a faixa no
bolso e viro-me para a lareira mais uma vez, subitamente com frio e
contente por estar calada. A temperatura desceu signifi­cativamente esta
noite, e o meu top fino pouco faz para me manter quente.
— Mas tenho uma condição.
Reviro os olhos.
Claro que tem.
— E o mal seria? — pergunto entre dentes, sem me preocupar em
olhar para ele.
Um braço envolve-me, evitando cuidadosamente a minha ferida
enquanto me puxa contra um peito largo. Assusto-me com o con­tacto súbito
e uma gargalhada suave soa perto do meu ouvido.
— Posso usar-te para me manter quente.
Há uma certa hesitação, um tipo de timidez que só me deixa ver em
momentos como este. Abraça-me levemente, com delicadeza, como se os
sentimentos frágeis que partilhamos pudessem desfa­zer-se se fossem
manuseados com falta de cuidado.
Uma pergunta está presente em cada toque persistente, em cada olhar
demasiado longo, em cada camada de nós próprios que esco­lhemos divulgar
um ao outro. O braço à minha volta não é diferente, falando muito sob a
forma de dedos que pairam e de um agarrar hesitante.
Será aceitável?
Engulo com força. A minha garganta ficou seca.
A minha resposta é lenta e faz-se acompanhar por agonia en­quanto
deslizo para mais perto dele.
Mais do que aceitável.
A ânsia é uma emoção sentida por causa das circunstâncias e es­pero
desesperadamente que não seja o desejo a conduzir as minhas decisões.
Ouço-o a respirar, percebendo então de que eu havia sustido a minha
respiração.
E com a minha respiração, o resquício de hesitação desaparece.
A sua mão está no lado mais afastado da minha cintura, onde o meu
top começa lentamente a subir. Não perde tempo a puxar-me contra si,
permitindo-me sentir o subir e descer do seu peito, sentir o batimento
constante do seu coração a bater nas minhas costas.
— Diz-me, isto incomoda-te? — pergunta baixinho perto do meu
ouvido. Está a devolver-me as minhas palavras, e quase consigo senti-lo a
sorrir. Quer que isto me irrite. Quer que isto me penetre na pele e me faça
sentir a luxúria com cada dedo que tem no meu corpo.
Sacana.
Simplesmente não o posso permitir. Por isso, digo-lhe com uma
confiança que não sinto de verdade.
— Não. Não me consegues incomodar, Azer.
— Ótimo — diz ele com frieza. Depois deita a cabeça entre o meu
braço e o ombro, o seu cabelo macio e escuro fazendo-me cóce­gas na pele.
— Quem precisa de uma almofada quando te tenho a ti?
Eu suspiro esperando que se assemelhe a irritação. Graças a ele, estou
de repente bem acordada e incapaz de me concentrar em qual­quer outra
coisa que não seja o calor do seu corpo contra o meu. Por fim, retira a
cabeça do meu ombro, e praticamente enterra-a na minha nuca.
— Bons sonhos, Pae.
— Bons sonhos, Kai.
A sua mão aperta ligeiramente a minha cintura em resposta ao som do
seu nome a sair da minha boca. E depois o seu polegar está a passear
preguiçosamente, com leves pinceladas, sobre o tecido da minha camisola
fina. Reprimo um arrepio, engulo em seco e fecho os olhos.
Vai dormir.
É mais fácil falar do que fazer.
Estou demasiado concentrada no seu polegar, no seu braço
envolvendo-me, no seu peito que sobe e desce contra as minhas costas.
Odeio o facto de não o odiar. E é então que me apercebo. Distração.
Está a fazê-lo outra vez. Está a desviar a minha atenção da morte que
acabei de testemunhar, do facto de o ter visto a matar alguém porque me
iam matar a mim. Ele é a única coisa que afasta os meus pensamentos do
cadáver de Sadie, a única coisa que afasta os pe­sadelos desta noite, porque
estou demasiado ocupada com a ideia dele.
E esta é uma distração que nos beneficia a ambos.
Dou por mim a sorrir ao pensar no rapaz calculista que está atrás de
mim.
O rapaz calculista que, por alguma razão, se preocupa.
Passámos o nosso último dia na Whispers a tentar sair. Era fim de
tarde quando uma Visão interrompeu a nossa rotina de comer­mos coelho. A
rapariga era jovem e tímida, conseguindo apenas deixar cair um pedaço de
pergaminho dobrado num cepo próximo antes de desaparecer na floresta.
O bilhete, para nenhuma surpresa, era incrivelmente enigmá­tico. Não
oferecia pormenores, apenas nos informava que nos de­víamos encontrar na
orla da Whispers ao nascer do Sol.
Assim, depois de subirmos a mais um pinheiro para vermos para que
direção seguir, pusemo-nos a caminhar pela floresta. E depois de várias
horas, ficámos inquietos.
Ouço Paedyn praguejar, tropeçando atrás de mim.
— Estas malditas cobras! — Eu viro-me a tempo de movimentar a
adaga, segurando-a pela lâmina antes de a mandar sem esforço contra a
cabeça de uma cobra que se esgueirava pelos seus pés. O si­bilo morre em
conjunto com o resto da criatura antes de Paedyn arrancar a lâmina do seu
crânio.
Volto-me para o caminho de folhagem espessa à minha frente, com um
sorriso nos lábios graças à rapariga que me segue. Depois, ouço uma frase
murmurada, seguida de uma série de palavrões que só fazem aumentar o
meu sorriso.
— Desculpa, o que é que foi isso, Gray?
Pergunto-lhe, sem me dar ao trabalho de olhar por cima do ombro.
— Só estamos a ser forçados a ir para uma zona onde provavel­mente
irá acontecer um banho de sangue — diz ela, passando por mim.
— Exatamente — digo com um suspiro.
O céu escurece rapidamente e, sob a cobertura das árvores, a luz é
ainda mais fraca. Ela vira-se, e vejo-a abrir a boca para pro­vavelmente fazer
algum comentário espertalhão antes de a fechar quando o som de um galho
a estalar ecoa à nossa volta.
Paramos, com os olhos a examinar as infinitas árvores e plantas que
nos rodeiam. O que quer que seja parecia pesado e vinha na nossa direção.
Depois, ouço uma voz abafada que se torna mais alta à medida que o seu
dono se aproxima.
— Por favor, não há maneira de conseguir Saltar daqui até ao li­mite da
Whispers.
— Eu certamente que conseguia. Mas agora está escuro, por isso não
posso. Oh, e há demasiadas árvores a bloquear a minha vista. Mas se não
fosse por isso, era o que fazia.
— Claro. Bela desculpa.
— Acho que estás apenas com ciúmes.
— Continua a dizer isso a ti próprio.
Ouço o eco de gargalhadas e o som de pés a andar, sem dúvida o
resultado de brincadeiras. O poder dos dois oponentes próximos infiltra-se
nos meus ossos, mas não preciso de conhecer as suas ha­bilidades para saber
quem são.
Paedyn segue-me quando vou ao encontro deles. Empurro-me por
entre as árvores e as plantas, com o pulso acelerado pela expe­tativa. Ao
afastar um ramo, avisto as duas figuras que caminham na nossa direção.
Andy põe o pé de fora e apanha o tornozelo de Jax, quase ati­rando-o
para o chão. O seu riso tranquilo é abruptamente inter­rompido quando me
veem e param no caminho.
— Bem, não pareçam demasiado entusiasmados por me ver — digo
secamente, dando um passo.
— Kai? — Jax está a espreitar através da escuridão crescente, mas os
seus olhos iluminam-se com o reconhecimento. Está à minha frente a
apenas alguns passos, e eu pego-lhe na cabeça com a dobra do meu braço
para lhe pentear o cabelo curto, apesar dos seus protestos.
Andy aproxima-se com um sorriso.
— É bom ver que estás vivo.
— Sim, isso é ótimo — concorda Jax, esfregando a cabeça. — Mas eu
podia passar sem a tua saudação habitual.
— Então, como foi a tua estadia na Whispers... — Andy para, olhos
deslizando, até que encontra os de alguém que me segue.
Paedyn coloca-se a meu lado, oferecendo um sorriso hesitante. Ela não
confia neles, e eu não a culpo. Mas é claro que confia em mim, senão teria
fugido em vez de me seguir até aqui. Eu reprimo um sorriso ao pensar nisso
e respondo:
— Tivemos uma estadia bastante agitada aqui na Whispers.
Andy sorri para Paedyn e acena-lhe com a cabeça, enquanto Jax sorri
de forma envergonhada. O meu olhar dirige-se para o céu que está a
escurecer e suspiro.
— É melhor continuarmos a andar se quisermos chegar à orla até ao
amanhecer. Viramo-nos e começamos a dirigir-nos através da folhagem
espessa, tropeçando ligeiramente no escuro. — Então, digam-nos o que vos
aconteceu.
Andy ri-se amargamente.
— Uma pergunta melhor seria: o que é que não nos aconteceu.
— Encontrámo-nos no terceiro dia — interrompe Jax —, mas antes
disso, eu estava muito escondido, porque a minha habilidade não se dá
muito bem em terrenos muito movimentados como este. Vi a Blair uma vez,
mas Saltei para uma árvore antes que ela me visse e me arrancasse o braço
para me tirar o couro.
— E a Peste sabe que ela também o faria — murmura Andy em voz
baixa, enquanto Paedyn concorda.
Jax continua com um encolher de ombros.
— Mas, para além dela, não vi mais ninguém quando estava sozi­nho.
A minha maior competição foi sobreviver na floresta.
— E quanto a ti, Andy? — pergunta Paedyn com curiosidade.
— Bem, ao contrário do Jax, tive a sorte de encontrar dois adver­sários.
— Ela quase revira os olhos com o aborrecimento. — Deparei-me com a
Blair, e a luta foi... intensa. Mas, infelizmente, a cabra apanhou a minha
faixa. E depois — prossegue — no dia anterior a ter encontrado o Jax, a
Hera fez-me uma visita. Acordei a meio da noite com uma faca invisível a
tentar serrar o couro do meu braço. Acabei por conseguir a sua faixa, mas
não foi fácil, tendo em conta que não a consegui ver durante metade do
tempo.
— Depois o Andy encontrou-me e estamos juntos desde então. —
Ouço o sorriso fácil na voz de Jax. — O Braxton encontrou-nos, mas depois
de lutarmos, bem, principalmente o Andy, descobrimos que ele já não tinha
a faixa dele.
Os olhos de Jax arregalam-se e diz:
— Oh, e estava coberto de queimaduras horríveis. Era nojento.
Limpo a voz.
— Sim, isso é graças a mim.
Andy ri-se.
— Isso não é nada surpreendente.
— Oh! Nós também caímos num poço de cobras — diz Jax com um
arrepio. — Essas coisas eram piores do que a própria Prova.
Andy solta uma gargalhada.
— Sim, estou surpreendida por todos os participantes na Whispers não
terem ouvido o Jax a gritar como uma menina.
A isso, Jax limita-se a encolher os ombros, sem se dar ao trabalho de o
negar.
— E depois encontrámos o Ace. Como éramos dois, não foi muito
difícil apanhá-lo e roubar-lhe o couro. — Jax coça a cabeça, a pensar. —
Especialmente porque ele estava a coxear muito.
Eu consigo ver o sorriso de Paedyn mesmo na escuridão que co­meça a
engolir-nos.
— E isso é graças a mim.
Paedyn e eu contamos rapidamente aos dois o que passámos na
semana passada, embora ela evite cuidadosamente os pormenores mais
íntimos do nosso tempo juntos.
— Então, a Sadie morreu? — Andy pergunta, o que parece ser mais
uma afirmação.
— Sim — digo-lhe. — Morreu.
Falámos durante muito tempo enquanto continuávamos a ca­minhar
para a orla da floresta. Inevitavelmente, acabámos por ficar em silêncio, o
único som vindo dos pássaros e do ranger das folhas e galhos do caminho.
Vejo a abertura quando o céu começa a clarear. A liberdade surge a
centenas de metros de distância, à medida que as árvores começam a ficar
mais finas e o limite da Whispers se aproxima. O nosso passo acelera, todos
ansiosos por nos vermos livres deste lugar, enquanto o sol corre connosco,
dirigindo-se para o horizonte, enquanto nos dirigimos para a liberdade.
Um aglomerado de corpos surge por entre as árvores. A menos de um
quilómetro e meio do limite da floresta, centenas de pessoas estão reunidas
no vasto campo, esperando pacientemente para assistir ao espetáculo.
Um público.
Ficamos todos em silêncio quando finalmente chegamos ao limite da
linha das árvores. O sol abrandou o seu ritmo, demasiado pregui­çoso para
se levantar. Portanto, a prova ainda não terminou.
Olho para o mar de gente, todos a apontar na nossa direção. Em­bora os
seus poderes estejam fora do meu alcance, sinto o peso dos Visões à nossa
volta, preparando-se para documentar o final.
Um movimento surge na minha periferia. Todos rodamos na sua
direção, o arco de Paedyn já está armado e apontado para a figura que sai
das árvores e entra no campo aberto do outro lado.
O cabelo lilás emaranhado sopra sobre o rosto de Blair enquanto os
seus lábios se torcem numa careta, observando-nos. O seu olhar frio fixa-se
em Paedyn enquanto declara:
— Não sabes que as alianças estragam a diversão toda?
Paedyn suspira.
— Eu diria que estou feliz por saber que ainda estás viva, mas pelos
vistos sou uma péssima mentirosa, por isso, porquê tentar?
A minha boca contrai-se num sorriso com as suas palavras quando
Braxton sai por entre as árvores. Mira-nos a todos, parecendo determi­nado e
desesperado para conseguir uma faixa antes do fim da Prova.
Por isso, a sua solução é começar a atacar Blair.
Desvio os olhos dele quando ouço um ramo a estalar atrás de nós. Eu
viro-me, olhando para um vazio. E depois Jax dobra-se com o impacto de
um soco inesperado e invisível.
— Ai — sussurra.
Hera chegou.
Andy transforma-se na sua forma de lobo, farejando o ar para
encontrar Hera, antes de atacar subitamente.
Viro a cabeça para trás, à procura.
Só resta um Elite.
E depois vejo-o a ele. É o que está mais longe de nós, de braços
cruzados sobre o peito, observando o caos que se desenrola à sua frente
com um sorriso presunçoso. Os olhos de Ace fixam-se nos meus. O seu
sorriso cresce.
Encontrei o meu alvo.
A cena à minha volta é um borrão de sangue e corpos. Paedyn e Andy
estão a lutar contra Braxton e Blair, enquanto Jax e Hera desa­parecem e
dançam à volta uns dos outros, desferindo golpes certeiros antes de
desaparecerem.
Isso deixa-me sozinho com Ace.
Espreito a violência que me rodeia enquanto assumo o poder de Hera e
desapareço no meio do caos. Só largo a habilidade de Véu quando estou
mesmo à frente de Ace, para que possa ver a minha cara quando lhe enfio
um murro no nariz com um estalido doen­tio. Ele cambaleia, agarrado aos
olhos que se fixam nos meus.
E, de repente, não vejo nada. Uma grossa parede de pedra en­volve-me
e, no entanto, algo me perfura de lado. A dor aguda apenas apura os meus
sentidos, lembrando-me que isto é apenas uma ilusão, embora a dor seja
tudo menos isso. Atravesso a parede e ela desapa­rece numa nuvem de
fumo, revelando Ace a segurar uma lança na sua mão ensanguentada.
A mesma lança que quase matou Paedyn.
Salto atrás dele, tendo assumido a habilidade de Jax, e enfio o meu
joelho nas suas costas. Depois Salto à sua volta, batendo-lhe com força sem
hesitar. Estou a brincar com ele. Podia facilmente terminar esta luta, mas
não vou negar que sou um monstro que se quer divertir um pouco primeiro.
Depois de lhe desferir um golpe no maxilar, ele multiplica-se de
repente diante dos meus olhos. Dezenas de Ace rodeiam-me, todos movem-
se e misturam-se uns com os outros, deixando-me a adivi­nhar para onde
fugiu o verdadeiro.
Filtro os poderes à minha disposição, os que dançam sob a minha pele
e os que me rodeiam. O poder Tele de Blair, surge nas minhas veias,
implorando para ser usado.
Isso vai ser divertido.
Agora só preciso de encontrar o verdadeiro...
A dor percorre-me a perna quando a ponta da sua lança me atinge.
Cerro os dentes e viro-me para ele.
— Aí estás tu — sorrio enquanto o levanto do chão com nada mais do
que a minha mente.
Ele suspira, engasgando-se enquanto eu lhe esmago a traqueia, os seus
pés a uns bons dois metros do chão. A sua boca mexe-se, fa­zendo ruídos
estranhos, enquanto tenta levar ar aos seus pulmões.
Ainda estou a sorrir.
— O que é que estás a dizer? Não te consigo ouvir bem. — Os seus
clones desaparecem do meu lado, e os gritos de luta à nossa volta
desvanecem-se enquanto me concentro nele. Concentro-me na vida que
tenho nas minhas mãos, na minha mente.
Mas o grito de dor que ouço a seguir não lhe pertence.
Eu conheço esta voz. Já ouvi este som e desejei silenciosamente nunca
mais o ouvir. A minha cabeça vira-se para o corpo magoado, perto de mim,
com o cabelo prateado colado ao seu rosto febril e as lágrimas a passarem
sobre as suas sardas ténues. O sangue jorra de um rasgão sob as suas
costelas, e um soluço estrangulado escapa-lhe.
— Kai... ajuda-me. — O sussurro de Paedyn é tão silencioso, a um
sopro de distância da morte. O sangue cobre as suas mãos, o seu ca­belo, o
seu corpo — manchando-o de um vermelho revoltante. — Kai, isto dói!
Ela grita as palavras em agonia, o corpo contorcendo-se em solu­ços e
espasmos de dor.
Não me apercebi que a minha mão sobre Ace tinha escorregado, não
me apercebi que o tinha deixado cair no chão até ele estar em cima de mim,
tirando-me o fôlego dos pulmões. A ponta da sua lança está a cravar-se na
minha garganta, as suas pernas prendem os meus braços. De repente, aquele
sorriso presunçoso está de volta, como se ele não tivesse estado na minha
situação anteriormente.
— E eu a pensar que tu eras o mais forte. O Príncipe que não dei­xava
as suas emoções interferirem. — Sorri quando a ponta da lança me perfura
a pele, fazendo sair o sangue quente.
— Mas olha para ti — uma gargalhada condescendente —, cuidar dela
tornou-te fraco.
Está prestes a passar a lâmina pela minha garganta...
— Kai!
A voz de Jax assusta-nos aos dois, e eu viro a cabeça para o lado
mesmo a tempo de o ver atirar uma única seta na minha direção. É tudo o
que preciso. Apanho-a pela haste e, num movimento rápido, enfio-a
profundamente no ponto mais próximo e aberto da carne de Ace, enquanto
empurro a haste da lança para longe de mim.
Ele grita com a flecha afundada na carne macia do seu ombro. A sua
mão liberta-me e eu afasto-o antes de me levantar, com o corte no pescoço a
verter sangue. Viro-me para encontrar Ace atrás de mim, à minha direita, à
minha esquerda. Estou outra vez cercado.
— Aqui — diz um dos Aces, e eu rodopio, pegando na minha estrela
de arremesso esquecida no bolso. Os clones de Ace estão a desapare­cer e a
reaparecer enquanto eu procuro o verdadeiro.
— Atrás de ti — goza-me, e eu rodo, com a raiva a ferver-me o
sangue.
— Sabes o que vou fazer depois de te matar? — pergunta um deles,
enquanto outro sussurra em voz alta. — Vou fazer o mesmo à Paedyn.
Depois, outro Ace diz:
— É uma pena, também. Vou sentir falta de olhar para ela.
Eu vou matá-lo. Agora. Sem jogos. Sem brincadeiras. Estou farto
disto.
De repente, os vários Ace desaparecem, deixando apenas um.
E não hesito antes de erguer a minha estrela de arremesso para a enviar
pelo ar até ao seu coração.
Vejo os seus olhos arregalarem-se quando a lâmina se afunda no centro
do seu peito, cravando-se profundamente na carne. Ele cambaleia para trás,
ofegante, enquanto olha para a ferida fatal. Um sorriso retorcido surge nos
meus lábios.
Vou gostar de o ver morrer.
Demoro o meu tempo a aproximar-me, vendo-o cair de joelhos. Estou
agora em cima dele, a olhar para os seus olhos brilhantes, cheios de
lágrimas.
O meu sorriso abandona-me.
Estes não são os seus olhos.
Não, os olhos que olham para mim são quentes e grandes, do castanho
profundo de chocolate derretido. Doces, como o rapaz a quem pertencem.
Ponho-me de joelhos.
Pela primeira vez em anos, sinto um terror verdadeiro e terrível.
A ilusão é soprada pela brisa suave, enviando gavinhas de fumo para o
céu da manhã.
Deixando para trás um rapaz ensanguentado. O meu irmão.
Jax.
— Não! — A palavra sai-me da garganta enquanto a descrença e o
nojo se agarram a mim, ameaçando rasgar-me em pedaços.
Jax não faz um som, os seus olhos arregalados e fixos nos meus.
Lágrimas silenciosas escorrem-lhe pelas faces, agarradas às pes­tanas
grossas que rodeiam aqueles grandes olhos castanhos. Olha para mim,
horrorizado, enquanto começa a inclinar-se para trás sobre os joelhos,
incapaz de impedir uma queda nos seus últimos momentos.
Ele não. Não era suposto ser ele. Nunca ele.
Agarro-lhe o ombro e a nuca, baixando-o com cuidado até ao chão,
apesar da visão turva. Limpo os olhos, tentando recompor-me enquanto
inspeciono a ferida. A estrela de arremesso está cra­vada no peito dele, com
sangue a escorrer. Sangue escuro e pesado que não para, não abranda. O
tipo de sangue que acompanha uma despedida.
Eu fiz-lhe isto. Vai morrer por minha causa. Porque eu sou um
monstro.
Abano a cabeça, tentando livrar-me do pensamento horrível e, em vez
disso, concentro-me na cena à minha frente.
— Olha para mim, Jax, está bem, amigo? — A minha voz é suave,
trémula, mas os seus olhos encontram os meus. Consigo ver a ferida que lhe
está a tirar a vida, o olhar desfocado, a respiração superficial.
— Vais ficar bem, está bem?
Jax fecha os olhos e eu dou-lhe uma palmada na bochecha, obri­gando-
o a fitar-me, a ficar comigo.
— Estás a ouvir-me? Vais ficar bem.
Os meus olhos enchem-se de lágrimas, uma sensação estranha que me
faz pestanejar furiosamente.
— Vou resolver isto.
A minha voz quebra, tal como eu estou prestes a fazer.
O meu irmão mais novo.
O som dos Elites a lutar à nossa volta, de repente volto a focar, e
consigo ouvir o tilintar das armas e os gritos de dor. Tudo volta à tona.
Lembro-me porque é que estou aqui, o que se passa à volta, e quem é que
realmente fez isto ao Jax.
Uma gargalhada fria e arrepiante ecoa por perto. Este riso. Viro a
cabeça, procurando no campo qualquer sinal do cabrão que irá sangrar e
morrer brutalmente por isto. Mas não o encontro em lado nenhum. Ouço o
seu riso novamente, a apenas alguns passos de distância.
Não há nada. Não está lá ninguém. E depois apercebo-me.
Lançou uma ilusão sobre si próprio.
O cabrão moldou-se ao nosso ambiente, envolvendo o seu corpo numa
ilusão que me faz não ver nada enquanto deixa o Jax desem­penhar o seu
papel. Se não fosse pelo meu irmão moribundo, eu vas­culharia cada
centímetro deste campo até encontrar Ace. E depois rasgava-o em pedaços.
Lentamente. Jax grunhe com a fraqueza, os seus olhos fecham-se. O meu
olhar dirige-se para a ferida.
Se não for a um Curandeiro, vai morrer. E a culpa será toda minha. O
meu coração bate contra o meu peito, a minha cabeça às voltas. Não há
Curandeiros a quem eu possa recorrer.
A cabeça de Jax vira-se para o lado com um gemido suave.
O meu irmão mais novo. O meu irmão mais novo. O meu irmão mais
novo.
Olho para o céu e encontro o sol a espreitar. Já está quase a subir o
horizonte e, quando isso acontecer, estaremos livres desta Prova. Os meus
olhos pousam na multidão de pessoas a menos de um qui­lómetro do caos à
minha volta.
Haverá um Curandeiro no meio desta multidão.
Limpo as lágrimas que não me lembro de ter derramado e puxo o Jax
para os meus braços. No instante seguinte, estou de pé e a cor­rer em direção
à multidão de pessoas. Jax mal respira. Pode estar inconsciente, não tenho a
certeza, mas corro o mais depressa que consigo em direção à sua salvação.
Reclamo a habilidade de Forte de Braxton para os meus mús­culos,
tornando Jax significativamente mais leve e permitindo-me correr mais
rápido. Não preciso de chegar até à multidão, apenas o suficiente para poder
agarrar o poder de um Curandeiro e usá-lo para o salvar.
— Jax! — Grito-lhe. Ele mal se mexe. — Jax, aguenta mais um
pouco!
Estou ofegante, petrificado por ter chegado tarde de mais. Mas a
multidão de pessoas está a aproximar-se, e consigo vê-las a apontar e a
gritar enquanto me veem a correr diretamente para elas.
E depois começo a senti-lo — um formigueiro que se espalha por mim,
pelos meus ossos, pelas minhas veias. Torna-se um zumbido antes de se
tornar um rugido e uma onda de poder. Há tantas habili­dades à minha
disposição, proporcionadas pela multidão que ainda está a dezenas de
metros de mim. Sinto-me esmagado enquanto pro­curo a habilidade do
Curandeiro no meio da onda de poder que se abate sobre mim.
Aqui está.
Concentro-me nela, afino-a, e desligo todas as outras habilidades que
lutam para vir à superfície. Deitando Jax no chão, ajoelho-me ao seu lado.
Ignoro o facto de não ver o seu peito a subir e agarro a parte da estrela de
arremesso que ainda espreita para fora, precisando de a retirar antes de o
poder curar.
— Se me consegues ouvir, Jax, isto vai doer como tudo. Des­culpa. —
E depois puxei-o. Rasga-se da sua pele com um som doen­tio. Ele nem
sequer se mexe.
Ignoro o pavor que me invade as entranhas e coloco as minhas mãos
sobre a ferida agora exposta e aberta. Deixo que o poder do Curandeiro se
infiltre no seu corpo, no corte, e começo a remendar e a moldar a pele.
Lembro-me de ter aprendido a curar cada ferida que o meu pai me infligia
quando era miúdo e empurro esse poder para o rapaz ao meu lado.
O sangue para. A pele volta a unir-se. Deixando apenas uma grande
cicatriz cor-de-rosa a decorar o centro do seu peito.
Mas ele não se está a mexer.
— Jax?
Dou-lhe uma palmada na bochecha. Nada. Depois sacudo-o vi­‐
gorosamente. Nada. Agora estou a gritar-lhe com dificuldade.
— Jax!
A minha voz estala ao vê-lo ali deitado, sem vida. Os meus dedos
procuram freneticamente o pulso.
— Não, não, não, não, não, não...
Irmão mais novo. Irmãozinho. O meu pequeno...
Os seus olhos abrem-se rapidamente, e depois procura ar para inspirar.
Eu estou a rir, a soluçar, enquanto observo o pestanejar, a sua mão vai
ao encontro da pele macia onde antes estava a minha estrela de arremesso.
Ele olha em volta, os seus olhos castanhos pousam em mim. O seu sorriso é
fraco, a sua voz rouca mas cheia de humor.
— Vais tentar matar-me outra vez?
Solto uma gargalhada e passo a mão pela cara, limpando as lágrimas.
— Não estou a pensar fazer nisso, mano.
E depois estou a puxá-lo contra o meu peito e a apertá-lo num abraço,
com a minha mão a puxar-lhe o cabelo.
O som de tambores assusta-nos e viramo-nos para a multidão que não
está muito longe de nós. Estão a aplaudir, a gritar, a bater os pés em sinal de
celebração.
O sol nasceu um pouco acima do horizonte.
A primeira Prova está concluída.
Sinto a atenção de milhares de pessoas a recair sobre mim en­quanto
me sento, desconfortável. A Bowl está repleta de Ilyans irre­quietos, todos a
fervilhar de entusiasmo. Os últimos espectadores a chegar ocupam os
lugares no alto das bancadas do estádio, olhando com expetativa para o
fosso que os rodeia.
Já passaram três dias.
Três dias desde a última luta na orla da Whispers.
E já só restam sete.
Ouço o bater de pés impacientes da multidão à nossa volta, e o meu
coração dispara com o som. De repente, sinto-me de regresso àquela
clareira, o som de pés trovejantes transformando-se no bater de tambores,
sinalizando o fim da Prova.
Mas ninguém parou.
Os tambores não significavam nada para nós. Continuámos todos a
lutar uns contra os outros. Se não fosse a ajuda da Andy, Blair ter-me-ia
arrancado membro a membro e espalhado tudo pelo campo, para servir de
refeição aos muitos pássaros que por ali habitam. Mas lá porque não me
matou, não quer dizer que não tenha deixado a sua marca. Várias, na
verdade. Marcas e carne mutilada que os Curan­deiros levaram imenso
tempo a tratar.
Era como se nenhum de nós visse o Sol nascente ou ouvisse o som dos
tambores.
Estávamos famintos, recusando-nos simplesmente a depor as armas e
rendermo-nos uns aos outros. Os Flashes chegaram pri­meiro, contornando-
nos. Depois chegaram os Fortes, usando a força para nos separarem. Eu fui
arrancada à força de Blair enquanto a prendia, e atirada para cima do ombro
de um homem corpulento antes de ser carregada por entre a multidão. Mas
não fui a única. Os meus adversários estavam a ser arrastados e colocados
em carruagens separadas para se acalmarem.
Não foi difícil perceber porque é que o Rei quis interromper a luta,
antes que pudéssemos fazer mais estragos. Uma vez que é proibido lutar
com outro concorrente fora da Prova, manter a nossa raiva controlada só vai
garantir que o resto das Provas sejam ainda mais interessantes. Ainda mais
sangrentas.
De repente, sou trazida de volta à realidade, lembrando-me da cadeira
rígida em que estou sentada, do vestido pesado agarrado ao meu corpo e
dos concorrentes ao meu lado, igualmente tensos. Movo-me no meu lugar, o
meu braço roçando no braço rijo do Príncipe com quem não falo há dias.
Levo a mão à parte inferior da minha costela, quase sentindo a cicatriz
que me foi dada pelo mesmo rapaz que quase matou Jax. Olho de relance
para Kai, calmo e tranquilo como sempre, apesar de tudo o que aconteceu.
Ou, pelo menos, é o aparenta. Tornei-me muito boa a identificar as fendas
nas suas várias máscaras, desmon­tando a fachada.
De repente, apercebo-me de que Tealah está a falar para a multi­dão,
apontando para nós com movimentos entusiasmados. Não estou
suficientemente interessada em ouvir o que ela tem para dizer, mas a
multidão devora-a. Eles adoram isto, estas Provas. Dá-me nojo.
— ... Agora vamos ao que todos aguardavam!
Decido por fim dar atenção às palavras de Tealah enquanto ela as
amplifica pela arena.
— Como todos sabem, as Provas da Purga deste ano são... únicas.
Ela faz um gesto para Kai, indicando claramente que ele é a razão para
tal. Mais um teste para o futuro Executor.
Continua rapidamente, mostrando os dentes brancos e ofuscantes.
— E por isso, a primeira Prova foi fora da Bowl, sem público a
acompanhar. — A multidão murmura, claramente descontente por não ter
podido testemunhar a violência.
— Mas não se preocupem, cidadãos de Ilya! — exclama Tealah com
entusiasmo. — Ainda poderão assistir a tudo, mas sem as par­tes
aborrecidas.
Ela ri-se e o público junta-se a ela, fazendo vibrar o estádio.
— Aqui está a primeira Prova da Sexta Edição das Provas da Purga!
A audiência excitada ruge, antes de se calar, enquanto nos ajus­tamos
nos nossos lugares para ver o enorme ecrã no extremo oposto da arena oval.
As gravações ganham vida, com excertos de cada um de nós fornecidos
pela linha de Visões.
Vejo-me a mim, e a todos os outros concorrentes, a acordar na floresta,
confusos e preocupados, enquanto lemos o bilhete que nos foi deixado.
Assisto à luta de Blair com Andy antes da cena passar para Hera, a afundar-
se nas areias movediças em que tropeçou nas profundezas da floresta. Ela
está a suplicar à Visão que apenas ob­serva a cena de braços cruzados.
Desparecida do ecrã, passamos, de repente, para Kai. Mas ele não está
sozinho. Está a lutar contra Braxton junto a uma fogueira, trocando golpes à
luz fraca antes de se queimarem um ao outro com as chamas.
O público aplaude, fica em silêncio, bate palmas e bate com os pés
chão enquanto assiste à Prova como se estivesse lá. Eu perma­neço em
silêncio, quieta, com as costas tensas, igual aos demais concorrentes.
Estamos a ver-nos a lutar pela sobrevivência.
De súbito, o meu próprio rosto aparece-me diante dos olhos. E depois
estou novamente a ver os horrores daquelas ilusões. O ca­dáver de Kitt a cair
sem vida na piscina. As meninas esfomeadas a implorar por ajuda — eu.
Vejo o terror estampado no meu rosto, vejo-me a cair no chão.
O corpo sentado ao meu lado mexe-se, e o meu olhar dirige-se
lentamente para ele. Os nossos olhos cruzam-se e ignoro-lhe o maxilar
cerrado e as sobrancelhas tensas. É nos seus olhos frios que me concentro.
Nunca vi um olhar tão gelado, mas tão cheio de fogo. E arrepiante, e eu
tremo. Assemelha-se a pingentes de gelo. Bonito mas afiado. Fresco mas
mortal. Cativante mas cortante.
Não interrompe a atenção, e eu engulo em seco. Depois está a dizer
qualquer coisa, embora não abra a boca. Viro a cabeça nova­mente para o
ecrã e vejo-me em esforço para segurar o arco tal é a dor que me avassala.
Vejo Kai a correr na minha direção enquanto caio desamparada. Vejo a
preocupação cruzar o seu rosto enquanto tenta manter-me acordada. Tenta
manter-me viva.
Volto a olhar para ele, mas está concentrado no ecrã, sem se preocupar
em retribuir. Não me tinha apercebido de que ele conse­guia olhar para mim
daquela maneira. Olhar para mim como se eu importasse. Isso deixa-me
frustrada e deliciada ao mesmo tempo, mas não consigo desviar-me da cena
que se desenrola diante de mim, diante de toda a multidão.
Não me tinha apercebido da frequência com que os Visões nos
observavam, e o meu rosto fica quente quando a maior parte da minha
conversa com Kai, enquanto ele me cose, é transmitida para todos ouvirem.
E a multidão está a adorar. Juro que ouço um sus­piro coletivo cada vez que
Kai me toca ou diz o meu nome, acompa­nhado de murmúrios ciumentos
por essa mesma razão.
Vejo Jax a Saltar de árvore em árvore, e depois Andy que se junta a
ele, a gritar enquanto dezenas de cobras os rodeiam. Vejo Hera a tropeçar
em Blair antes de começar uma luta desleixada, em que Blair grita de
frustração quando não consegue encontrar o seu adversário invisível.
Kai e eu estamos de volta e, desta vez, estou a tratar-lhe das feridas. A
multidão vibra ao inclinar-se para ouvir as nossas provocações. Olho para
Kai, que não se dá ao trabalho de me procurar, embora o canto dos seus
lábios se contraia, dizendo-me que acha isto divertido.
Momentos de cada adversário ao longo dos dias acendem-se no ecrã,
lutando uns contra os outros enquanto lutam contra os perigos existentes na
Whispers. Kai e eu aparecemos novamente, e...
Oh, Pestes, não.
Felizmente, a Visão só apanhou o final da nossa dança antes de Sadie a
ter interrompido, mas é o suficiente para fazer a multidão gritar de alegria.
Não posso dizer que os culpo. Demasiado derrama­mento de sangue pode
tornar-se aborrecido, e esta é uma reviravolta inesperada. O futuro Executor
está a dar-lhes um grande espetáculo.
Olho fixamente para Kai que, para meu aborrecimento, está agora a
sorrir. A minha voz é rouca e muito agitada quando questiono:
— Porque não me disseste que havia tantos Visões a observar-nos?
Dirige-se por fim a mim, fazendo com que o meu coração bata forte
contra a caixa torácica.
Órgão estúpido, estúpido.
Aproxima-se tanto que os seus lábios tocam ao de leve na dobra da
minha orelha.
— Estava um pouco distraído.
Faço com que a minha pulsação abrande e afasto os meus olhos dos
seus, voltando a minha atenção para o ecrã onde me vejo a lutar com Sadie.
E depois vejo-a a morrer outra vez.
Parece que uma Visão não conseguiu apanhar Kai a enterrá-la, embora
parte de mim se pergunte se isso foi intencional. O Rei teria provavelmente
considerado que tal ação seria vista como uma fra­queza, uma falha no
Executor que criou. Por isso, o reino nunca verá aquele pedaço de bondade
que Kai demonstrou. Parece que esse segredo pertence apenas a nós os dois.
Há movimento na multidão, enquanto o público em redor pres­siona os
dedos indicador com os do meio, com o símbolo a pairar sobre os seus
corações. Um diamante. A imagem de força, poder e honra de Ilya.
Estão a prestar a sua homenagem aos mortos.
Os concorrentes ao meu lado fazem o mesmo, e a multidão fica em
silêncio, imóvel, até que o combate final na orla da Whispers ilumina o
ecrã.
Sangue. Tanto sangue. A cena é um caos total, e não faço ideia para
onde olhar ou em quem me focar. O ângulo muda rapidamente entre
diferentes Visões que documentam a luta, concentrando-se nos Elites. Vejo
cada um a lutar, em busca de sangue e faixas sangrentas.
Depois, por último, vejo como é que Hera morreu.
Eu sabia que ela não tinha saído viva da Prova, só não sabia o porquê.
A Visão centra-se em Braxton, com sangue a escorrer de uma ferida
enquanto uma faca invisível lhe perfura a pele repetidamente. Ele ruge de
raiva e angústia.
Hera apunhala-o de lado e ele grita, tentando agarrar cegamente a faca
invisível. Mas Braxton consegue enrolar os dedos em volta do pulso de
Hera, puxando-a para fora e dando-lhe a volta antes de a esfaquear.
Ouço o som doentio do aço a afundar-se na pele e nos ossos antes de
Hera aparecer à frente de Braxton, com a lâmina enterrada no pequeno
peito. Ela pestaneja, lágrimas a percorrem-lhe a cara, antes de cair no chão.
Os triângulos estão a ser pressionados contra os corações da rapa­riga
morta enquanto o resto do combate final é transmitido no ecrã. Mal vejo
Kai a correr em direção à multidão com Jax a morrer-lhe nos braços, antes
da cena ser cortada para uma última imagem dos Elites, cobertos e sedentos
de sangue. E depois o ecrã escurece, e a multidão fica em silêncio por
breves instantes antes de irromper em aplausos.
Mal ouço a Tealah quando começa a falar para o público que aplaude,
agradecendo-lhes por se terem juntado a nós para assistir à primeira Prova.
— Oh, e não se esqueçam! — ela praticamente grita. — O vosso voto
é mais importante do que imaginam. Honra para o teu reino, honra para a
tua família e honra para ti próprio.
A multidão recita o lema em conjunto, e depois são autorizados a sair.
Observo centenas de pessoas a deslocarem-se entre as filas de bancadas e
através dos túneis largos que conduzem ao exterior da Bowl. Atiram os seus
votos para taças de vidro gigantes ao lado das saídas à medida que passam,
sem se aperceberem do poder que detêm com o nome que escrevem.
Detesto a falta de controlo que tenho ou o medo que me perse­gue
constantemente. Odeio sentir-me tão impotente. Tão indefesa. Tão Vulgar.
Estou a competir nos jogos destinados a exibir os pode­res e a força dos
Elites — os poderes que eu não possuo.
No entanto, aqui estou eu. Viva.
E tenciono continuar assim.
Alguém está a seguir-me.
Estava a regressar ao meu quarto depois do jantar quando, de repente,
sinto alguém a aproximar-se. Volto-me, já com a minha mão
instintivamente a caminho da adaga, para me encontrar com uns olhos
verdes arregalados e assustados.
— Calma, Paedyn! — Kitt ri, levantando as duas mãos em sinal de
rendição. — Estás muito nervosa hoje.
Viro-me e recomeço a caminhada.
— Bem, não me apareças de surpresa e não tens de te preocupar em
ser esfaqueado.
— Tenho o pressentimento de que esfaqueavas alguém por menos. —
Consigo ouvir o entretenimento na sua voz, revestindo-lhe as palavras.
A sugestão de um sorriso faz-me baixar a cabeça. Estamos a des­cer o
corredor em direção ao meu quarto quando uma mão firme me agarra o
pulso e sou puxada para um dos muitos corredores que se ramificam à
minha esquerda.
Abro a boca para contestar, mas mesmo com as costas viradas, Kitt
sente-o.
— Não me apunhales ainda. Quero mostrar-te uma coisa.
Atira-me um sorriso por cima do ombro enquanto me guia pelo
labirinto de corredores.
Finalmente aprendi a orientar-me nos corredores principais, mas
quando se trata das dezenas de pequenos corredores espalhados pelo
castelo, estou completamente perdida. Kitt navega por eles com facili­dade,
entrando e saindo de diferentes percursos, passando por outras secções e
salas do enorme castelo que nunca vi. Tenho a certeza de que ele
conseguiria andar pelo palácio às cegas, uma habilidade que só se
desenvolve porque este labirinto é aquilo a que chama de casa.
A luz dourada do sol aquece-me o rosto quando Kitt abre uma grande
porta de madeira ao fundo de um corredor, acenando aos Im­periais que a
guardam antes de sairmos para a noite amena. A minha respiração fica
suspensa. Estou rodeada de cor, de vida. Um caminho largo e empedrado
está à nossa frente, onde vários outros se ramifi­cam, todos rodeados por
centenas de flores.
Os jardins.
É lindo, de cortar a respiração. Vivendo nos bairros de lata, ro­deada de
ruelas sombrias e cores baças, quase me tinha esquecido de como o mundo
pode ser brilhante. Todos os sítios onde os ca­minhos não tocam, estão
cheios de flores e plantas de todas cores e feitios. Os tons de fúchsia e azul-
real destacam-se entre os ama­relos-pálidos e a lavanda. As estátuas estão
espalhadas pelo jardim, com trepadeiras escuras agarradas a várias.
É o tipo de caos mais limpo que alguma vez vi, com filas de flo­res a
amontoarem-se à volta dos caminhos, criando gradeamentos de flores e
folhas. Cada um dos caminhos de pedra faz um grande círculo, criando
vários anéis à volta da enorme fonte no coração do jardim.
Nunca tinha visto nada tão brilhante, tão vibrante, e tenho de pes­‐
tanejar rapidamente, quase cega pelas cores que me rodeiam. Entre o meu
espanto, consigo perceber que Kitt observa-me com curiosidade, com
atenção.
Ele aclara a voz e dá um passo em frente, guiando-me ao seu lado.
— Prometi que um dia te mostrava os jardins.
Os meus olhos percorrem as flores enquanto caminhamos len­tamente
ao longo de um caminho. Kitt contenta-se em preencher o silêncio
contando-me as aventuras que viveu com Kai neste mesmo jardim,
apontando para as estátuas que derrubaram ou para a fonte onde não
resistiram mergulhar. Eu suspiro com as histórias, apesar dos meus
esforços, e levo a mão à boca para abafar o som.
Paro abruptamente, deixando de lado a cautela quando a minha
curiosidade leva a melhor.
— Porquê? Porque estás a fazer isto?
— Porquê fazer o quê, exatamente? — Está a tentar não se rir de mim
enquanto eu tento não lhe bater por essa mesma razão.
— Trazeres-me aqui. Contares-me coisas pessoais e... — Tropeço nas
minhas palavras com a frustração.
Atrevo-me a olhar para aqueles olhos verdes que combinam com a
folhagem à nossa volta quando ele diz lentamente:
— Com o futuro que tenho, é difícil conhecer pessoas. Conhecer
pessoas a sério. Conhecê-las de verdade. A maior parte das pessoas que
estão aqui — aponta para a parede de pedra do castelo — querem alguma
coisa. E dirão tudo o que acham que eu quero ouvir para o conseguir. Mas
tu...
O meu riso seco corta-lhe a palavra.
— Mas eu tenho tendência para dizer coisas que se calhar não devia.
— E, tenho tendência a gostar de ouvir essas coisas — confessa.
Distraio-me com as flores, em vez de encontrar o seu olhar.
— Portanto, não me vou esquecer disso da próxima vez que qui­ser
repreender-te.
Paro de falar. Posso dizer o que me apetecer a Kai, mas trata-se do
futuro rei. Se quiser manter a cabeça fria, terei de aprender a conter as
palavras.
Mas o rapaz ao meu lado apenas se ri, parecendo menos majes­toso a
cada segundo que passa.
— Ainda bem — declara — porque tenho algo para te pedir e não
espero outra coisa senão honestidade brutal da tua parte.
Fico nervosa.
Não há nada de honesto em mim.
— A Prova... — começa devagar. — O que pensas sobre isso?
Engasgo-me. Não era certamente essa a pergunta de que estava à
espera.
— O que penso? Queres dizer, para além do óbvio?
Ele para de andar e aproxima-se de mim, diminuindo a pequena
distância que nos separa.
— E o que seria o óbvio?
Os meus olhos estão presos ao botão de cima da sua camisa, para não
ter de ver os olhos do seu Pai.
— Que estas provas são uma forma retorcida de celebrar uma tragédia.
E lá vou eu outra vez, o arrependimento chega tarde de mais. Mas há
algo neste príncipe que me torna imprudente, que me faz querer dizer-lhe
exatamente o que está errado em tudo aquilo em que ele pensa que acredita.
— Tragédia — diz ele, com a voz calma. — Estás a falar da Purga.
— Sim, a Purga — respiro. — A expulsão de milhares e a contínua
matança que se seguiu.
Estou praticamente a vomitar, mas parece que não consigo parar agora
que comecei.
— Este é o teu povo, Kitt. Pessoas inocentes que ainda hoje estão a ser
mortas por causa de algo sobre o qual não têm controlo.
Ele olha para mim enquanto eu olho para o seu colarinho.
— A Purga precisava de ser feita, Paedyn. Tu sabes disso.
A sua voz é suave, enquanto a minha apresenta um tom contrário.
— Porquê? Porque os Vulgares estão doentes? Supostamente estão a
enfraquecer os poderes dos Elites? Apesar de terem vivido ao lado dos
Elites durante décadas?
Ele fica incomodado.
— Não crês que estejam doentes?
Estou a jogar um jogo muito perigoso.
Fecho a boca, sabendo que já falei de mais. Responder a essa per­gunta
com sinceridade é um risco que nem eu estou disposta a correr, por isso
respiro fundo antes de me apressar a mudar de assunto.
— Só acho que, como futuro rei, há muitas coisas em que tens de
pensar.
Não o encaro, mas sinto os seus olhos em mim.
— E vais esclarecer-me sobre essas coisas? Esclarecer-me sobre o meu
próprio reino?
Desempenha o teu papel. Desempenha o teu papel. Desempenha o teu
papel...
Solto uma gargalhada amarga.
— Não sejas parvo e não finjas que conheces o teu reino! Já viste os
bairros de lata? Viste a segregação, os cidadãos famintos? Os teus cidadãos
famintos.
Lá se vai o meu papel.
Levanto as mãos, abanando a cabeça em direção às camas de flores.
— Será que me ouvirias se eu tentasse ajudar-te, se tentasse dizer-te
para mudares? — Ele fica ali, silencioso e imóvel. Por isso, volto a
perguntar-lhe, com uma voz urgente: — E então? Vais ouvir-me?
As suas mãos estão subitamente a segurar o meu rosto e a guiá-lo na
sua direção, enquanto eu luto contra a vontade de me desviar.
— Se eu te ouvir, vais começar a olhar para mim?
A minha respiração fica presa na garganta.
— Olha para mim, Paedyn. Por favor.
E é a suavidade, a súplica na voz que me faz respirar fundo, fe­chando
os olhos por um momento. Quando finalmente os abro de novo, vejo
imensa compaixão e preocupação. E, pela primeira vez, permito-me estudar
esses olhos. Porque nunca foram tão parecidos como os do rei. O calor que
lhes pertence invade-me, domina-me.
— Todo este tempo — diz ele calmamente — tenho andado à pro­cura
de um olhar que tu não me dás, à espera que queiras olhar-me nos olhos.
Faz uma pausa para respirar.
— Porque é que evitas o meu olhar, porque é que me evitas?
Portanto, é óbvio que fiz um péssimo trabalho a desempenhar o meu
papel.
— Tu... — Suspiro. — Tu fazes-me lembrar alguém do meu... pas­sado.
Mas quanto mais te conheço, mais diferentes vocês são.
Observo-o por um momento, surpreendido pela minha hones­tidade. O
Rei e o seu herdeiro podem ser parecidos, mas neste mo­mento, nunca me
pareceram tão diferentes.
Exibe-me um sorriso suave.
— Isso significa que vais começar a olhar-me nos olhos?
— Só se começares a ouvir-me — respondo-lhe com um pequeno
sorriso.
— Combinado — declara, antes de começarmos lentamente a des­cer o
caminho mais uma vez. — Tenho outra pergunta para ti.
Estou prestes a rir-me.
— E eu provavelmente tenho uma resposta para te oferecer.
Sorri antes de ficar subitamente sério, e põe as mãos atrás das costas
enquanto caminhamos.
— Na Prova, o Ace fez com que tu... me visses. E ao veres-me morto,
tu pareceste... — Abana a cabeça, à procura da palavra certa. Lembro-me de
como assistiu a essa cena no ecrã da Bowl, viu a minha cara, ouviu o grito
fundo que me saiu da garganta.
— Triste? — digo-lhe com fraqueza. — Aterrorizada, até?
Pela primeira vez, olho para ele.
— Quando te vi morto, dei-me dei conta de todo o potencial que tinha
acabado de morrer contigo. Todo o potencial para seres um Rei melhor para
Ilya, para fazeres mudanças, para governares como deves e não como te
mandam.
Finalmente chegámos ao centro do jardim, onde parámos junto à fonte.
Agora que estou finalmente disposta a olhar para ele, os olhos de Kitt não
parecem querer sair dos meus.
— Obrigado — diz ele com um sorriso. — Sei que posso sempre
contar com essa tua honestidade bruta. És a primeira pessoa que tenho o
prazer de conhecer desde há algum tempo.
Se ao menos ele soubesse. Sou uma mentirosa e uma enganadora que o
usou como meu par para poder chamar a atenção das pessoas. Estou perante
ele como uma Vulgar, alguém que ele teria matado se soubesse a verdade, e
que morreria nas mãos do seu futuro Executor, pelo qual sou demasiado
teimosa para admitir a minha atração. E, no final, não importaria o quão
real ele pensasse que eu era.
Mas eu ofereço-lhe o que espero ser um sorriso doce antes de me virar
para a bela fonte que é tão grande que agora percebo porque é que os
príncipes não conseguiam lutar contra a vontade de nadar nela. Inclino-me
sobre a borda, olhando para a água cristalina e ob­servando com atenção.
Xelins.
Centenas deles, deitados casualmente no fundo da piscina. Lem­bro-me
de como me senti na minha primeira noite aqui, depois de ver toda a comida
desperdiçada. Senti-me enjoada. Tanto dinheiro deitado ao abandono. E
para quê? Para que os ricos possam ter os seus desejos mesquinhos?
Engulo o meu nojo.
Desempenha o teu papel.
— Muito bem, o que é que se passa? — pergunta Kitt.
— Hmm? Nada. — Faço uma pausa e olho para cima, para ele. — O
que é que queres dizer?
Ele ri-se profundamente.
— Estás a lutar contra a vontade de me repreender, não estás?
Pestanejo antes de gaguejar.
— Como é que...?
— Tu fazes uma coisa... enrugas o nariz antes de começar a dis­cutir.
Denuncia-te logo.
Abro a boca e, por uma vez, nenhuma palavra parece querer sair. Ele
sorri enquanto me vê a debater antes de eu finalmente acla­rar a garganta e
proferir:
— Está bem. A razão pela qual estou a torcer o nariz — lanço-lhe um
olhar irritado — é por causa de todos os xelins.
Quando não digo mais nada, Kitt insiste.
— Continua.
— Bem, dinheiro como este poderia alimentar dezenas de Ilyans nos
bairros de lata durante semanas, meses até — digo. — E, no en­tanto, aqui
está ele, desperdiçado pelos desejos das pessoas.
Os olhos de Kitt olham para a fonte e franze o sobrolho.
— Tens razão. Vou tratar de o mandar retirar e distribuir.
O meu coração salta-me contra o peito.
— A sério?
A sua cara séria transformou-se num largo sorriso.
— Fizemos um acordo, lembras-te? Se continuares a olhar para mim,
eu continuo a ouvir-te.
Quase suspiro antes de me voltar para a fonte. Relembro-me que esta
pequena vitória com os xelins pode não significar nada. De facto, retirá-las
e distribuí-las nos bairros de lata pode nunca acon­tecer. Mas ele está a
ouvir, e isso é um progresso. Tem potencial.
Aproximo o meu rosto da superfície, tentando ver através das
ondulações os xelins que estão por baixo.
— Quanto dinheiro é que achas que está lá em baixo?
As minhas palavras são interrompidas pela água fria que sobe da fonte
e vem de encontro à minha cara, salpicando-me ligeira­mente. Endireito-me
e rodopio para encontrar Kitt a rir, com a mão ligeiramente levantada.
A sua maldita habilidade de Duplo.
— Tinhas razão — digo-lhe com um sorriso falso. — Eu esfaquea­ria
alguém por menos. Talvez até por me ter atirado água à cara.
Ele levanta as mãos inocentemente e ri-se, um sorriso largo e
iluminando no centro do seu rosto bronzeado.
— Ei, foste tu que me maltrataste há pouco.
A minha boca abre-se ao perceber que, de facto, tinha maltra­tado o
futuro Rei de Ilya. O meu rosto fá-lo rir-se ainda mais e eu não penso antes
de mergulhar a mão na água, retribuindo-lhe o favor.
Isso foi um erro. Devia saber que não devia começar uma luta de água
com um Duplo que me podia afogar se quisesse. Depois de Kitt ter acabado
de me molhar completamente, a água escorre-me do cabelo e agarra-se às
minhas pestanas. E depois rio-me ao ver-nos, encharcados, no meio do
jardim do castelo.
Ainda estou a limpar os fios de cabelo que tenho colados à cara
quando afirmo:
— Não foi uma luta muito justa.
O cheiro familiar de Loot enche-me o nariz, e eu suprimo a von­tade de
vomitar.
Lar doce lar.
A longa e larga rua está coberta de sombras, livre de carroças de
comerciantes e mendigos durante a noite. Passo por aglomerados de sem-
abrigos que se amontoam nas ruelas adjacentes que saem de Loot, atirando
ou usando os seus poderes para se entreterem.
Já passa um pouco da meia-noite e, respirando, acelero o passo.
Porque esta noite tenho de ir a um sítio e tenho de obter respostas a algumas
perguntas.
Esta noite vou encontrar a Resistência.
Não foi difícil escapulir-me do palácio, sobretudo porque Lenny não
guarda a minha porta à noite. Os Imperiais que enchem o pa­lácio também
não foram um problema, dado estar habituada a esgueirar-me sem ser vista.
Saí sorrateiramente pelo jardim e segui a estrada junto à Bowl até Loot,
uma vez que não faço a mínima ideia de como montar um cavalo e achei
que esta noite não era a melhor altura para o fazer.
Passo pelo beco onde conheci Kai e sorrio com a boa memória de o ter
roubado.
Bons tempos.
Afasto os pensamentos sobre ele, não me deixo distrair enquanto viro
numa rua conhecida. A minha rua. Aquela onde se encontra a pequena casa
branca. Sinto um nó na garganta quando a vejo. Nunca mais cá voltei desde
que a abandonei há cinco anos. Quando estava coberta com o sangue do
meu pai, e sufocada pela dor.
Mas foi aqui que o bilhete do rapaz me trouxe, aquele que agora sei
fazer parte da Resistência. De repente, estou diante da porta, res­pirando
com dificuldade enquanto observo as fendas e buracos fa­miliares na
madeira.
Aqui vou eu.
Respiro fundo e tento abrir a porta. Trancada.
Mas as portas com ferrolho são trabalho fácil para um ladrão. Re­tiro a
minha adaga e abro a fechadura com facilidade, visto que o meu pai me
ensinou essa habilidade com esta porta e esta mesma lâmina.
A porta abre-se, rangendo nas dobradiças ferrugentas quando a
atravesso. Agarro a minha adaga com força enquanto espreito cau­‐
telosamente à volta da minha antiga casa. Parece completamente normal,
completamente igual. A mobília velha está exatamente no mesmo sítio onde
a deixei, as fendas nas paredes ainda sobem até ao teto. Teias de aranha
agarram-se a quase todas as superfícies da casa, parecendo que alguém não
vem cá há anos.
Talvez esteja enganada.
— Olha, olha. Olha quem a Peste arrastou até cá.
Tenho a minha faca levantada, apontada e pronta para atirar à figura
que se encontra nas sombras atrás de mim.
Na escuridão, vejo o contorno sombrio de uma das mãos levan­tadas
em rendição. Os meus olhos ajustam-se à luz fraca, captando uma madeixa
de cabelo ruivo e despenteado que cai sobre uma testa sardenta.
— Lenny? — sussurro, em choque. Ele dá um passo lento em frente e
os seus olhos castanhos e sorriso tornam-se visíveis.
— Eu mesmo. — A sua voz é tão leve e gentil como no palácio. Mas
isso não significa que deixe cair a lâmina ainda erguida na minha mão.
Agora estou confusa, desorientada e a precisar de respostas.
— O que é que se passa? — pergunto-lhe, olhando-o com descon­‐
fiança. — Porque é que estás aqui?
Faz parte da Resistência? Deve fazer, mas...
— Sim — esfrega a parte de trás do pescoço, envergonhado — temos
muito para te contar.
— Temos?
Sim. Aponta um dedo para as tábuas que rangem no chão de­baixo dos
nossos pés.
— Temos.
Fico a olhar para ele, à espera de uma explicação sobre o que raio se
está a passar, porque raio está aqui e com quem.
O seu olhar salta entre a minha cara e a faca que ainda está pronta para
lhe perfurar o coração.
— E quando pousares a faca, eu mostro e conto-te tudo.
Fala devagar, como se estivesse a tentar acalmar um animal sel­vagem,
e tenho a certeza de que pareço isso mesmo.
Baixo a faca lentamente e aceno com a cabeça, uma vez. Ele solta um
suspiro aliviado, os seus ombros perdem alguma da sua tensão.
— Pestes, tu às vezes és mesmo aterradora, sabias? Quero dizer, claro,
eu sou o Imperial aqui, mas, credo, tu provavelmente pode­rias dar-me uma
tareia...
— Oh, e talvez o faça se não me disseres o que se passa — digo, com
os dentes cerrados.
— Tão exigente — suspira Lenny, fazendo-me sinal para que o siga.
— Pensando bem, parece-me que te enquadras melhor na rea­leza do que
como uma Imperial, não é princesa?
Sorri por cima do ombro e vira-se para o escritório. O escritório do
meu pai. A sala onde foi assassinado. Sinto os meus pulmões a serem
esmagados, o meu coração apertado, quando entramos na sala.
Vulgar. Completamente vulgar, tal como eu. Não há sangue a ensopar
o chão ou a cadeira...
A cadeira em que foi assassinado.
Desapareceu. Uma pontada de tristeza atinge-me enquanto os meus
olhos percorrem a sala, tentando encontrar a cadeira onde ele tanto gostava
de ler. Sentava-me aos seus pés ou ao colo enquanto me contava histórias
sobre mundos mais agradáveis, com magia e heróis e raparigas que não
tinham de esconder quem realmente eram.
Lenny aproxima-se da estante inclinada no canto da sala, cheia de
livros cobertos de pó e teias de aranha. Estou prestes a perguntar-lhe o que
está a fazer quando, de repente, agarra na borda da estante e puxa. Observo,
atónita, como a estante de madeira desliza facilmente para a esquerda sobre
uma espécie de carril por baixo. E, atrás dela, há uns degraus de pedra.
Nunca tinha visto isto antes.
Lenny atira-me outro sorriso, apontando para a escuridão que se
encontra atrás da estante.
— Primeiro as senhoras.
Devia tê-lo feito descer as escadas primeiro, mas acalmei-me e fui
movida pela curiosidade. O som dos meus passos contra a pedra ecoa
quando apoio uma mão na parede suja e continuo a descer na escuridão.
Quando estou de pé sobre a pedra lisa e sólida no fundo dos degraus, paro.
Lenny vai direito a mim, quase atropelando-me.
— Oh, merda — quero dizer, desculpa —, eu não te vi a parar.
— Sim, bem, isso é porque não conseguimos ver nada — res­pondo,
assumindo que estou a olhar para a sua cara na escuridão.
— Acho que te posso ajudar com isso. — Uma voz feminina vinda da
escuridão faz-me saltar e choco novamente contra Lenny. Ouço o toque de
um interruptor e o zumbido de luzes fracas a acenderem-se. Depois
pestanejo, tentando perceber o que estou a ver.
Estou numa sala grande e húmida, cheia de mesas repletas de grá­ficos,
mapas e materiais. Notas e papéis estão colados nas paredes, formando um
papel de parede estranho. Do outro lado da sala, há ca­deiras desalinhadas
espalhadas em círculo com papéis em cima delas, e camas desarrumadas
estão alinhados na parede mais distante.
E, sem dúvida o pormenor mais importante, há pessoas nesta sala.
Uma delas reconheço imediatamente como o rapaz a quem roubei o bilhete,
o mesmo do baile. O homem à sua direita é mais velho, mais ou menos da
idade do meu pai, com cabelo cor de palha e olhos azuis-pálidos que me
observam atentamente. A rapariga ao seu lado parece ser apenas alguns
anos mais velha do que eu, uma mera cópia do homem ao seu lado.
A sua filha.
Depois, os meus olhos pousam na rapariga sorridente ao lado do
interrutor. A sua pele cor de azeitona parece brilhar contra o preto rico do
seu cabelo à altura da cintura, e os seus olhos castanhos profundos
observam-me com curiosidade.
— Desculpa por ter-te mantido no escuro — suspira —, literalmente.
A rapariga cruza os braços por cima da sua túnica cor de la­ranja,
olhando para mim.
— Os ouvidos de morcego do Lenny ouviram a porta a abrir-se, por
isso mergulhámos na escuridão, por precaução.
Lenny devolve-lhe um sorriso sarcástico antes de responder ca­‐
sualmente à pergunta que ainda não coloquei.
— Eu sou um Hiper. Tenho sentidos apurados, sendo algo de gozo por
parte de muita gente. Mesmo que tenha sido o responsável por lhe salvar a
vida algumas vezes.
Lanço-lhe um olhar confuso.
— És Mundano? Mas os Imperiais...
— Normalmente são Elites Atacantes ou Defensores — inter­rompe
com um suspiro. — Confia em mim, eu sei. Demorei uma eternidade a
subir na hierarquia para chegar à posição que tenho.
Bem, isso só esclareceu ligeiramente uma das dezenas de per­guntas
que andavam à volta do meu cérebro.
— Ok, alguém me pode explicar o que raio é que se está a passar?
Lenny abana a cabeça ao meu lado, murmurando.
— Tão mandona...
— Estava a pensar quando é que virias até aqui. — É o rapaz do baile
que interrompe antes que eu possa dar uma tareia ao Lenny, como
prometido. — Depois de teres roubado metade das minhas pratas e o bilhete
do meu bolso, pensei que acabarias por aparecer.
Ele está a divertir-se.
— Ainda demoraste um pouco.
Abro a boca para descobrir que estou sem palavras.
Pestes, o que é que se passa?
O homem louro clareia a garganta antes de dizer:
— Finn, podes pegar numa cadeira para a Paedyn, por favor? Temos
muito para lhe contar.
Finn acena com a cabeça e faz isso mesmo, acrescentando mais uma
cadeira ao círculo de lugares que nos esperam. Os quatro es­tranhos
aproximam-se e sentam-se sem dizer mais nada.
Num momento, tenho uma mão no meu ombro e, no seguinte, torço-a
num ângulo estranho por puro instinto.
— Merda, Paedyn! Calma! — Lenny suspira. Eu fico assustada, vejo o
que fiz e largo a sua mão.
— Desculpa — murmuro. — Estou um pouco nervosa.
Está a esfregar o braço dorido e olha para mim com cautela.
— Vejam bem, a princesa não gosta de ser tocada...
— Não me chames princesa, Lenny.
— Está bem, então a princesa também não gosta que lhe chamem
princesa. — Olho para ele com um olhar fixo, mas ele apressa-se a
continuar. — Está bem, olha. Esta noite vais ouvir muita informação.
Informação que te vai chocar. Por isso, apenas...
Os seus olhos perscrutam os meus.
— Ouve, estás bem?
— Claro. Sou uma ótima ouvinte.
Ele sopra para o ar.
— Isso é o que vamos ver.
— Porque é que estás aqui? — pergunto abruptamente, com a voz
mais calma do que as minhas emoções.
— Tem paciência, princesa. Dir-te-ei isso em breve. — Pousa lenta­‐
mente uma mão no meu ombro, olhando-me para ter a certeza de que não
lhe parto o pulso. Quando se considera seguro, guia-nos gentil­mente até ao
círculo de cadeiras e senta-se ao meu lado.
O homem louro está sentado à minha frente, suspirando en­quanto me
olha.
— Deves ter saído à tua mãe, porque não te pareces muito com o teu
pai.
O meu coração para, os meus olhos arregalam-se com as suas palavras.
— Mas tens o seu espírito, a sua vontade. Isso é evidente na forma
como apareceste esta noite. — Abro a boca para soltar as perguntas, mas ele
corta-me a palavra. — E vejo que ainda tens a adaga do teu pai. Ótimo.
Acena com a cabeça para a faca ainda presa no meu punho, o cabo
agora escorregadio pelo suor.
— Minha querida, tens... — Os seus olhos fixam-se nos meus com
tanta intensidade que eu luto contra a vontade de desviar o olhar. — Tantas
perguntas. Para começar, chamo-me Calum. Bem-vinda à Resistência. Bem,
uma pequena parte dela. Temos estado paciente­mente à espera da tua
chegada.
— Tem estado à espera...? — começo.
— Boa ouvinte, uma ova! — murmura Lenny ao meu lado. Eu lanço-
lhe um olhar que retira uma gargalhada de Calum e Lenny contorce-se,
olhando para a adaga ainda fechada na minha mão.
— Prometo que responderei a todas as tuas perguntas, Paedyn. Mas
antes, vamos fazer as nossas apresentações. Esta é a minha filha Mira —
gesticulou para a rapariga loura ao seu lado, que mal me sorri —, e esta é a
Leena.
Acena com a cabeça para a rapariga com o cabelo escuro a cair
elegantemente pelas costas.
— Tu és mais pequena do que eu pensava — diz Leena com a cabeça
inclinada para o lado. — Agora estou ainda mais impressionada por teres
sobrevivido à primeira Prova.
O seu tom não é de gozo, mas sim de curiosidade.
— Sou mais dura do que pareço, garanto-te. A arma mais forte que
uma mulher tem à sua disposição é o facto de ser frequentemente
subestimada — respondo-lhe com um pequeno sorriso. — E eu estou
sempre a usá-la.
O rosto de Leena divide-se num belo sorriso que ilumina as suas
feições enquanto diz para o ar:
— Gosto desta. Vamos ficar com ela, certo?
— Ela não é um cão — murmura Mira revirando os olhos.
— E já conheces o Finn — interrompe Calum. Finn pisca-me o olho e
eu quase que suspiro de aborrecimento. — Agora, tenho muito para explicar
num curto espaço de tempo, por isso vou direto ao assunto.
Respira fundo.
— O teu pai e eu éramos muito chegados.
E, no entanto, eu nunca vi este homem na minha vida.
— E eu sei que não sabes quem eu sou. — As suas palavras corta­ram
os meus pensamentos. — E isso é porque o teu pai me manteve... bem, em
segredo. Tal como manteve a Resistência em segredo.
A minha cabeça está a andar à roda e, de repente, sinto-me grata por
estar sentada.
— Mas o teu pai não sabia apenas da Resistência. Sabes, a Resis­tência
já existe há quase uma década e o Adam era um dos líderes originais. É por
isso que ainda estamos nesta casa, usando-a como quartel-general, como
fazíamos quando ele era vivo.
— Então porque é que ele me escondeu isto tudo? — Ignoro o olhar
que Lenny me dirige quando interrompo a conversa.
Calum solta um suspiro.
— Não foi só de ti que ele manteve o segredo da Resistência. Na­queles
primeiros anos, ficámos escondidos, espalhando silenciosa­mente a palavra
da nossa causa através daqueles em quem podíamos confiar. Era perigoso
para ti fazeres parte da Resistência, por isso ele quis esperar até que fosses
mais velha para te juntares a nós. — Faz uma pausa antes de acrescentar
calmamente: — Mas nunca teve opor­tunidade de te contar. E quando
encontrámos o teu pai... tu tinhas desaparecido.
Faço um ligeiro aceno de cabeça, engolindo o nó na garganta antes de
perguntar:
— Foi por isso que o Rei o matou? Porque soube do seu papel na
Resistência?
Um olhar de confusão atravessa o rosto de Calum enquanto ele
continua a olhar para mim. A intensidade do seu olhar é quase per­turbadora
antes de o desviar e acenar lentamente com a cabeça.
— É o que presumo, sim.
Suspiro, na esperança de me sentir mais leve depois de ter final­mente
descoberto a razão da morte do meu pai, após anos de culpa e suposições.
E, mesmo assim, não consigo sentir-me tão leve como queria.
— Tu, e a maior parte de Ilya, só agora começaram a ouvir falar de nós
porque crescemos — continua Calum. — Crescemos em tama­nho e força.
Mantivemos a Resistência em silêncio durante muitos anos, enquanto
ganhávamos mais membros e encontrávamos mais Vulgares. Mas agora o
Rei está a ter dificuldade em conter-nos. Di­ficuldade em manter-nos sob
sigilo e sob controlo.
— Então, onde e que estão os outros? — acrescento rapidamente. —
Quem são os outros?
— Estamos em todo o lado — diz Mira, mas o seu olhar pene­trante diz
tudo. É evidente que não confia em mim.
Calum continua calmamente.
— Durante a Purga, há três décadas, mais Vulgares se mantiveram em
Ilya depois do banimento. Mais do que originalmente se pen­sava.
Esconderam-se em segredo, mesmo debaixo do nariz do Rei. Há membros
da Resistência espalhados por toda a Ilya, uma vez que é obviamente
inseguro e pouco prático residirmos todos numa só área. Nem eu sei onde
ou quem são todos eles. Temos líderes diferentes para cada área do reino, o
que nos permite transmitir informações aos membros da Resistência sem
problemas e sem suspeitas. As no­tícias correm depressa quando os líderes
conversam e transmitem informações aos membros da sua secção.
— E foi por isso que nos encontrámos aqui esta noite — conclui Leena
com alegria. — Para discutir os planos e depois dar conheci­mento deles às
nossas secções.
Mostro-me em choque.
— Vocês são todos líderes? Quero dizer, vocês são tão... jovens.
— E bonitos — Finn suspira. — Mas sim, nós somos alguns dos
líderes que conseguiram chegar até aqui esta noite. Honestamente, somos
apenas pombos-correio que passam informações em segredo para que a
Resistência possa permaneça unida, apesar de não nos podermos reunir
todos.
— Eu não sou um pombo-correio — murmura Mira.
— Não sei bem porque estamos a falar de aves — suspira Lenny —,
mas, sim, eles supervisionam a informação dos membros da Resis­tência em
certas secções do reino. E não é uma tarefa simples. Os Vulgares continuam
a ser mortos constantemente, e se a informa­ção sobre quem faz parte da
Resistência se souber, morrerão ainda mais.
— Então — eu olho de relance entre eles —, vocês são Vulgares? Finn
sorri.
— Claro que sou.
— Eu também — diz Leena com orgulho.
Fico a olhar para os dois, estas pessoas que são como eu, tão Vulgares
quanto eu.
Os meus olhos fixam-se em Mira quando ela afirma:
— E eu sou uma Silenciadora.
Calum interrompe antes que eu possa fazer mais perguntas.
— Os Vulgares em Ilya tendem a adaptar a habilidade dos Hipers, uma
vez que é um poder bastante fácil de utilizar. — A isso, Leena lança a
Lenny um olhar presunçoso.
— Quando os Vulgares nos encontram e se juntam à Resistên­cia,
ajudamo-los a construir uma vida, ensinamo-los a sobreviver. — Oferece-
me um sorriso triste. — Nem todos tiveram um pai como o teu, que os
ensinou a tornarem-se realmente poderosos. A tua ha­bilidade de Psíquica
foi treinada desde criança, e é o disfarce mais convincente que já vi.
Faz uma pausa por um momento, para organizar os seus pensa­mentos.
— Quanto a quem somos, bem, obviamente a maioria de nós é Vulgar.
Mas também temos Elites do nosso lado.
— Os Fatais — respiro.
— Sim. — Parece ficar tenso com o nome. — E parece que já en­‐
contraste um. — Vem-me à mente o Silenciador com quem lutei no beco e
digo lentamente.
— Ele era...?
— Sim, ele era um membro da Resistência. — Calum levanta a mão,
silenciando o pedido de desculpas que eu estava prestes a fazer por ter
derrubado um dos seus membros. — Não precisas de pedir desculpa,
Paedyn. Foi a própria idiotice de Micah que fez com que ele fosse
apanhado.
— Ele sempre ferveu em pouca água — murmura Lenny. — E era um
parvo. Um parvo imprudente. Pensar que podia derrubar o Príncipe, o
futuro Executor, sem consequências...
Os meus olhos dançam entre os cinco.
— Vou ficar a saber exatamente porque é que este Micah é um idiota
imprudente?
— Porque viu o príncipe já enfraquecido e a sua raiva tomou conta —
diz Mira, com uma expressão desprovida de simpatia. — Re­sumindo, o
Príncipe Kai matou alguém muito próximo de Micah, consumindo o
Silenciador com raiva e necessidade de vingança. Quando viu o Príncipe
naquele beco, exausto e preocupado, apro­veitou a oportunidade para o
tentar derrubar.
Ela olha-me com um olhar tenso.
— Mas, em vez disso, foste tu que o derrubaste.
— Na altura, não sabíamos quem eras — acrescenta Lenny. Jun­támos
as peças quando vimos o teu nome no cartaz do Loot e te vimos nas
entrevistas.
— Eu pensei que estavas morta, Paedyn — Calum diz com serie­dade.
— E depois tu apareceste de repente nas Provas, e nós encon­trámos a filha
do Adam. Bem, tu encontraste-nos.
— Quem diria que a filha de Adam Gray, a filha de um líder da
Resistência, seria a pessoa que me roubaria e encontraria aquele bi­lhete —
diz Finn com um suspiro. — O bilhete que te trouxe até nós e de volta à tua
própria casa.
Ele olha para o teto e sorri para si mesmo.
— Quando te vi no baile, percebi que me reconheceste; eu sabia que
não irias demorar muito até nos encontrar.
Fico parada, incapaz de passar do assunto anterior.
— Lamento o que aconteceu com o Silenciador... com o Micah. —
Não consigo deixar de me sentir culpada, visto que foi por minha causa que
ele foi apanhado. — Sabem se ele ainda está vivo?
A expressão de Calum torna-se sombria.
— Não temos a certeza. Mas se tiver, é provável que não seja por
muito mais tempo. — Ele continua antes que eu possa desculpar-me
novamente. — E não precisas de te sentir culpada, Paedyn. O Micah foi
responsável pela sua própria ruína.
Respira fundo antes de continuar a conversa casualmente.
— Como eu estava a dizer, a Resistência é composta por Vulgares e
Elites, incluindo os Silenciadores, os Leitores e os Controladores. Como o
Rei também tentou matar os Fatais e continua a fazê-lo, eles também
querem justiça. Outros Elites juntaram-se à causa pelas suas próprias
razões. Aqueles que se preocupam o suficiente para pensar no assunto não
acreditam na ideia de que os Vulgares foram subitamente banidos por causa
de uma doença.
— Então, os membros da Resistência não acreditam que os Vul­gares
estejam a enfraquecer os Elites — digo, observando Calum que acena com
a cabeça. — Alguém tem provas para usar contra o Rei e os seus
Curandeiros?
Os olhos de Calum procuram os meus antes de suspirar.
— Não, não temos provas.
Lenny acrescenta.
— Nós somos apenas os Ilyans que se preocupam o suficiente para
perceber que isso não faz sentido. Os Vulgares viveram com os Elites
durante décadas antes da Purga e, mesmo agora, escondem-se de­baixo do
nariz do Rei e vivem ao lado dos Elites sem se queixarem da diminuição
das suas habilidades. — Ele suspira. — Mas só porque o Rei e os seus
Curandeiros disseram que os Vulgares estavam doentes, a maioria dos
Elites não vai pensar duas vezes se isso significar que os seus poderes e
vidas estão em risco.
Aceno lentamente com a cabeça enquanto o meu cérebro volta a ficar
inundado de perguntas.
Qual é exatamente o objetivo da Resistência, e o que é que eu lhes
posso oferecer?
Abro a boca para perguntar isto, mas Calum antecipa-se.
— A Resistência está finalmente pronta para entrar em ação. E ao
contrário do que o Rei disse sobre nós, não somos radicais que matam pelo
simples prazer de o fazer. Queremos justiça. Queremos que a ver­dade seja
dita. Queremos que os Vulgares e os Fatais voltem a viver em paz com o
resto dos Elites. Que não sejam caçados e mortos por coisas que não podem
controlar, simplesmente porque o Rei quer uma sociedade de Elite e está
disposto a mentir sobre os Vulgares para o conseguir. Portanto, é esse o
nosso objetivo. Essa é a nossa causa.
E isso é exatamente o que eu quero, exatamente o que esperei toda a
minha vida.
Para ser aceite e livre.
Nessa altura, apercebo-me do quanto quero fazer parte disto. O quanto
quero ajudar e fazer a diferença. Acho que tenho estado à espera para
encontrar este propósito.
— E o baile? — pergunto-lhe. — Porquê atacar o baile?
Lenny e Calum trocam um olhar antes do último confessar:
— O nosso ataque foi uma surpresa tanto para nós como para os
convidados. — Lembro-me de como os poucos membros da Resis­tência
pareciam inexperientes, de como estavam a tentar lutar para sair do salão de
baile.
— Nunca fez parte do plano — interpreta Lenny, enquanto eu ergo
uma sobrancelha, querendo uma melhor explicação. — Então, basicamente,
o baile foi o disfarce perfeito para infiltrar um pe­queno grupo para revistar
o castelo, usando a festa como distração. E, bem, digamos que foram
apanhados.
O meu olhar desliza para Finn.
— Tu estavas lá e escapaste. O que é que aconteceu?
Finn limpa a voz:
— Não te vou aborrecer com os pormenores, mas um guarda
encontrou-me num corredor das traseiras durante a minha busca e achou
bastante suspeito que um rapaz de serviço estivesse tão longe das
festividades. Por isso, quando ele fez perguntas indiscretas, na­turalmente,
menti-lhe. — Baixou a cabeça, abanando-a para o chão. — Só depois de me
ter arrastado de volta para o salão é que descobri que ele era um Detetor que
conseguia sentir cada uma das minhas mentiras.
— Mas o Finn não foi o único a ser apanhado — interrompe Mira,
com um ar sombrio. — Acontece que havia muito mais Imperiais a rastejar
pelo castelo do que o previsto.
Finn solta um suspiro pesado.
— Estávamos todos equipados com bombas leves, facas e cápsulas
suicidas, embora não estivéssemos a planear ter de usar nada disso. Mas
usámos discretamente as nossas armaduras de couro e tínhamos as nossas
máscaras como precaução para o caso de termos de lutar para sair. E foi
exatamente isso que aconteceu. Um Imperial foi o pri­meiro a fazer explodir
uma das nossas bombas, sem saber o que era, e foi então que o salão de
baile se transformou num caos. Tentámos fugir, mas os Elites começaram a
lutar e tudo o que podíamos fazer era tentar sair. — Faz uma pausa,
engolindo a sua tristeza. — No final, todos nós usámos as bombas,
enquanto os que foram apanhados usa­ram as cápsulas suicidas.
O rosto bonito de Leena está apertado pela dor, as suas próximas
palavras são ocas.
— Os nossos segredos são demasiado valiosos para serem perdi­dos, e
eles foram demasiado leais para os divulgarem. Sabiam que iam perder a
vida de qualquer maneira.
A sala fica em silêncio, como se estivesse a fazer uma pausa para
honrar a vida daqueles que perderam.
— Não era a nossa intenção que o reino tomasse conhecimento da
Resistência naquela noite, ou daquela forma, mas parece que o destino tinha
outros planos — avança Calum. — Infelizmente, por vezes são precisos
mártires para mostrar às pessoas que vale a pena lutar por alguma coisa.
Deixei a informação entrar, sentando-me no silêncio antes de fazer a
pergunta que me inquieta o pensamento.
— O que é que procuravam?
Lenny responde-me.
— Como Imperial, fui informado de que a Prova final terá lugar na
Bowl, e é aí que nos vamos mostrar a Ilya. Agora, o castelo está cheio de
passagens secretas e túneis que conduzem a vários sítios. Temos de
encontrar aquele que nos levará diretamente à sala de es­pera por baixo da
caixa na Arena. Proteger o Rei é a parte mais complicada disto, por isso
temos de usar o elemento surpresa con­tra ele, enquanto o resto da
Resistência entra pelos muitos túneis que conduzem à Bowl.
As minhas sobrancelhas unem-se perante a minha confusão.
— Como é que sabem que existe um túnel que conduz à sala de espera
por baixo da caixa? — Não me lembro de ter visto uma porta lá em baixo
antes das entrevistas, mas, por outro lado, acho que estava bastante
distraída.
— Porque já o vi — diz Lenny. Eu abro a boca, mas ele corta-me
rapidamente. — E isto parece simples, exceto que as portas do túnel só se
abrem por dentro e eu não faço ideia de onde fica a outra ponta da
passagem.
— Oh — digo-lhe suavemente.
O riso de Lenny é seco.
— Sim. Oh.
Olho para todos com expetativa.
— Então, precisam que eu encontre o túnel, é isso?
A resposta é praticamente uníssona.
— Sim.
Eu engasgo-me com uma gargalhada.
— Se o Lenny ainda não conseguiu encontrá-lo, não sei se vou
conseguir...
— Sim, seria muito mais fácil se eu tivesse o futuro rei sempre à
minha volta — murmura Lenny sob a sua respiração.
Lanço-lhe um olhar enquanto Calum diz calmamente:
— As tuas relações com os príncipes são... valiosas. Especificamente,
a tua ligação com o Príncipe Kitt. — Inclina-se para a frente, incitando-me
a compreender. — Paedyn, creio que tens muito mais influência sobre esse
rapaz do que aquilo que pensas.
Não tenho a certeza de que tenha razão, mas aceno lentamente com a
cabeça, absorvendo as suas palavras.
— Querem que use o Kitt para encontrar o túnel.
— Bingo — diz Finn.
— Ele já começou a confiar em ti — insiste Calum. — Por isso, usa-o.
O que é que disseste antes? «A arma mais forte que uma mu­lher tem à sua
disposição é que ela é frequentemente subestimada.» Então deixa-o
subestimar-te. Ele é um meio para um fim. Faz com que este rapaz se
humilhe se for preciso.
Os seus olhos estão fixos nos meus.
— Leva-nos até à Bowl. Estamos a planear isto há muito tempo, e será
a primeira vez que a maior parte da Resistência estará no mesmo sítio. Por
isso, tem de correr bem.
Aceno novamente com a cabeça.
— Eu consigo. Eu faço-o. — Faz-se um pouco de silêncio antes de eu
perguntar: — Qual é exatamente o plano?
— É muito simples — diz Calum. — A maioria de nós vai finalmente
juntar-se e mostrar ao povo de Ilya quem somos e o que temos para dizer.
Mostrar-lhes que não somos uma ameaça e, ao mesmo tempo, recordar-lhes
quem é que eles têm andado a matar há décadas. O Rei vai ter de admitir as
suas mentiras sobre os Vulgares ou simplesmente dar-nos a nossa liberdade.
E tu vais ajudar-nos.
— Precisamos que encontres o túnel — Lenny insiste. — Eu estarei lá
para te ajudar em tudo o que precisares, claro, e voltaremos a contactar o
Calum em breve.
Então, o Calum é o líder principal?
— Sim, suponho que me possas chamar isso, embora nenhum de nós
realmente tem títulos — informa Calum com frieza, passando uma mão
pelo seu cabelo castanho.
Pestes. Ele é um...
— Sim, eu sou um Leitor, Paedyn. — A minha respiração acelera.
Tem estado a ler-me os pensamentos este tempo todo. Provavel­mente
está a lê-los neste momento.
— Sim, tenho estado a ler os teus pensamentos este tempo todo e sim,
acabei de os ler outra vez. — Não tento esconder o olhar de trai­ção
estampado no meu rosto, o que apenas suaviza a sua expressão. —
Desculpa-me por invadir os teus pensamentos, mas tinha de me certificar
que estavas mesmo do nosso lado. Que estás verdadeira­mente disposta a
ajudar-nos.
Sai. Da. Minha. Cabeça.
Ele quase sorri.
— És muito teimosa, tal como o teu pai. Mas agora que vejo que és
digna de confiança, deixo-te com os teu pensamentos.
Lenny aclara a garganta e levanta-se, oferecendo-me a mão.
— É melhor irmos andando. Temos muito trabalho a fazer. E tu
precisas de passar o máximo de tempo possível com o futuro rei, para que
possas encontrar a nossa passagem.
— Sim, ainda tenho de descobrir exatamente como lhe vou ar­rancar
essa informação — admito.
— Namorisca com ele — diz Finn ao mesmo momento que Lenny
complementa: — Bate as pestanas ou algo do género.
Suspiro antes de Lenny me levar até às escadas.
— Vá lá. Temos de levar-te para o teu quarto.
Aceno com a cabeça para o pequeno grupo à minha frente.
— Obrigado. Vocês deram-me um propósito. Um motivo para lutar.
E com isso, afasto-me, dirigindo-me para os degraus de pedra atrás de
Lenny.
— Paedyn? — Viro-me para ver Calum a observar-me. — O teu pai
ficaria orgulhoso.
O treino e a tortura mantiveram-me são nos últimos dias, em­bora saiba
que só um louco admitiria isso.
Já passou quase uma semana desde o fim da primeira Prova. Quase
uma semana desde que enterrei uma lâmina no peito de Jax.
Quase uma semana a conter-me para não fazer o mesmo a Ace.
Por isso, mantenho-me ocupado, batendo com os punhos em tapetes
para que não cheguem à cara de alguém, visto que já não tenho o
Silenciador para bater.
É uma pena que o tenha matado.
De certeza que tinha informações, sim, mas não gosto de amea­ças em
vão. Prometi ao Micah que o matava se ele não provasse que a sua vida
merecia ser salva. E quando ele não me deu a informação que eu queria,
cumpri a promessa.
Ele era um risco e demasiado perigoso para o manter vivo como saco
de pancada humano. Eu sabia que ele não tinha intenção de se confessar, e
eu não tinha intenção de perder o meu tempo.
Embora sinta falta de descarregar a minha raiva e frustração nele.
Apesar disso, continuo a passar a maior parte dos meus dias com o
Silenciador do Pai.
A sua habilidade é uma das poucas com que nunca treinei, ou sequer
interagi até há um mês. Por isso, treino com Damion du­rante horas,
tentando compreender e desenvolver este novo poder o melhor que posso.
Não quero voltar a sentir-me impotente como quando Micah me emboscou
em Loot. Não, eu quero o poder. Quero ser capaz de o usar e de o desviar
para nunca mais ficar incapacitado daquela maneira.
É mais fácil falar do que fazer.
O treino é fastidioso e cansativo. Aprender a usar a habilidade de
Silenciador é muito mais fácil do que defender-me dela. Sou sufo­cado
diariamente pelo poder enquanto tento aproveitá-lo, tentando usá-lo contra
o meu oponente. Estou a lutar, para dizer o mínimo, apesar de estar
determinado, e desprezo sentir-me tão impotente.
Mas estou inquieto. Mantenho-me ocupado durante todo o dia, na
esperança de que os pesadelos estejam demasiado exaustos para me
perseguirem durante a noite.
A lâmina da minha espada afunda-se profundamente na ma­deira do
boneco de treino que estou a usar.
Irritado, agarro o pesado punho com as duas mãos, arrancando o aço
afiado da madeira estilhaçada. Sem pensar, coloco a arma ao meu lado antes
de voltar a desferir golpes no pedaço de madeira, deixando que a minha
mente se concentre no poder e na precisão de cada golpe — concentra-te na
sensação de controlares a morte, segurá-la na palma da mão, dobrá-la à
minha vontade.
E, no entanto, basta uma gargalhada familiar para quebrar essa
concentração.
Está encostada àquela árvore almofadada que tanto gosta de es­magar,
com Kitt por perto. Algo começa a arder dentro de mim, mas eu ignoro-o,
sem me preocupar em reconhecer os ciúmes que me dão tons a condizer
com as cores do reino de Ilya.
Os meus olhos estão colados nos dois enquanto conversam ca­‐
sualmente. Paedyn parece estar muito mais à vontade com Kitt
ultimamente, passando tempo com ele fora dos treinos e das refei­ções. Eu
quero que os ciúmes se esvaiam dos meus ossos, que sim­plesmente se
evaporem, mas atormentam-me a cada pensamento do tempo que passam
juntos.
Paedyn acena a Kitt com um sorriso antes de se virar e regressar ao
castelo, enquanto eu me esforço para manter a concentração no treino.
Corto e racho a madeira com a minha espada, a tensão nos meus ombros a
diminuir a cada golpe.
— Que tal uma desforra?
Eu bato na madeira com força, enfiando a espada no peito do boneco.
Paedyn espera pacientemente enquanto eu me viro, balan­çando a espada em
círculos lentos ao meu lado. Não me dou ao tra­balho de sorrir e digo
casualmente.
— Alguém está com vontade de perder.
Uma sombra apanha-lhe o rosto enquanto cruza os braços.
— E alguém está de mau humor.
Suspiro.
— Querida, não sou eu que estou de mau humor. Haveria muito mais
sangue se fosse esse o caso.
Ela sorri.
— Bem, não tenho de acreditar na tua palavra, porque depois de te
vencer, tenho a certeza de que vou testemunhar um dos teus maus humores
em primeira mão.
Suspiro, cedendo.
— Ótimo. Novamente sem habilidades?
— Não — diz ela lentamente —, estava a pensar que podíamos fazer
algo diferente.
— E porquê? — Aproximo-me um pouco mais, inclinando-me en­‐
quanto digo: — O corpo a corpo distrai-te demasiado, já que tens de estar
tão perto de mim?
Consegue, de alguma forma, aproximar-se ainda mais.
— Não, de todo. Eu não me distraio, Azer.
— Isso parece-me um desafio.
— Só se estiveres com vontade de perder.
Pestes, esta rapariga.
Ela sorri para mim.
— Então, o que achas de tiro ao arco? A não ser, claro, que o teu
orgulho não aguente perder. Outra vez.
— Oh, isso não será um problema. Porque eu não vou perder. —
Afasto o meu rosto do dela e toco-lhe no ombro quando passo. Sei o que
está a fazer, e gosto da distração. Preciso dessa distração. Tiro um arco de
uma das prateleiras de armas e atiro um punhado de flechas para o chão.
Paedyn já está com a arma na mão, a encarar o alvo a mais de treze metros
de distância.
— Três rondas — diz ela, sem tirar os olhos do alvo. — Cada um com
três tiros por ronda. A pontuação mais alta ganha.
— É justo. — Estendo-lhe a mão para que a aperte, como é habitual.
Ela agarra-a lentamente, segurando-a com firmeza enquanto os seus calos
embarram nos meus. Depois, puxo-a para mim, encostando-a ao meu peito,
murmurando perto do seu ouvido. — Boa sorte, Gray.
Ela revira os olhos, mas os meus estão fixos nela.
— Não preciso de sorte quando estou a competir contigo — declara
com frieza, o seu sorriso crescente e presunçoso.
Não posso deixar de soltar uma gargalhada. Passado algum tempo,
largo-a e ela vira-se para o alvo com um sorriso. Quando eu não me mexo
para colocar uma flecha, ela lança-me um olhar expetante, pelo que
respondo com um gesto em direção ao alvo:
— As senhoras primeiro.
— Oh, certo. Esqueci-me que eras um cavalheiro. — Ela resfolega
antes de colocar uma flecha. Inclino a cabeça, observando-a ao vê-la
segurar no arco como se fosse canhota, embora saiba que não é.
Interessante.
Pestanejo, e uma flecha está a navegar pelo ar, aterrando mesmo ao
lado do alvo. Coloca outra flecha no arco e recua, respirando fundo. Fecha
os olhos por um momento, disparando apenas quando os abre. Acerta no
alvo. Vejo-a seguir a mesma rotina com a última flecha. Vejo o seu braço
esticar-se enquanto puxa a corda do arco para trás. Observo os seus olhos a
fecharem-se para manter a concentração. Vejo-a a respirar fundo antes de
enviar outra flecha para o alvo.
Caramba.
Arco e flecha nunca foi a minha atividade favorita, e clara­mente, isso
não é o caso de Paedyn. Ela é natural. Tão confiante, tão controlada, como
se o arco fosse quase uma extensão do seu braço. A flecha obedece-lhe,
seguindo à letra as indicações do seu olhar.
E de repente estou a pensar que ela tem razão. Posso perder isto.
— É a tua vez. — Ela recua para o meu lado e, sussurra-me: — Boa
sorte, Azer.
Pestes, vou precisar.
Dou um passo em frente e coloco uma flecha no arco. Consigo sentir
os seus olhos em mim, a seguir cada movimento que faço, e isso distrai-me
de forma irritante. Puxo a corda do arco para trás, aponto e disparo. Depois,
mando vir comigo mesmo por ter fa­lhado o alvo por pouco, antes de
colocar outra flecha. Esta segue o mesmo padrão, e agora sinto-me
frustrado e com uma enorme ne­cessidade de esmurrar alguma coisa.
Disparo a última flecha e ela finalmente acerta onde eu queria. Por pouco.
A sua ponta prateada afunda-se na extremidade mais distante do alvo,
guiada pela sorte para lá chegar.
Paedyn não diz uma palavra enquanto dá um passo em frente e dispara
as suas próximas três flechas. E, tal como antes, duas acer­tam no alvo e
uma fica muito próxima. Ela é hipnotizante. Fico ma­ravilhado ao
testemunhar o seu trabalho com esta arma.
Vou perder. Não gosto de perder.
E Paedyn também sabe disso. Passa por mim, sorrindo como se já
tivesse vencido. E provavelmente já. Demoro a disparar as próximas três
setas, tentando concentrar-me e acalmar a respiração antes de os largar. Não
está a ajudar. Duas mal acertam nos anéis à volta do alvo, e apenas uma cai
no centro. Olho fixamente para o alvo enquanto Paedyn sorri. Ela encaixa
uma flecha enquanto diz:
— Agora percebo porque queres lutar corpo a corpo. Sabes que tinhas
mais hipóteses de ganhar.
Não está enganada. Continua a sorrir enquanto concentra a sua atenção
no alvo, acalmando a respiração antes mesmo de puxar a corda do arco para
trás.
Não tenho hipóteses de ganhar isto.
Luto com um pequeno sorriso perante a minha ideia repentina.
Se vou perder, mais vale divertir-me um pouco.
Dou um passo na sua direção. Depois passo lentamente por trás dela
— mesmo perto. O meu peito encosta-se às suas costas, en­quanto deixo a
minha mão encontrar a sua cintura. Ela assusta-se com o contacto súbito, e
eu rio-me baixinho, perto do seu ouvido.
— O que é que estás a fazer? — As suas palavras são ofegantes, mas
ela não se mexe, congelada contra mim.
Os meus lábios estão perto do seu ouvido enquanto murmuro: — Estou
a distrair-te.
Solta uma gargalhada forçada, a fingir um estado de confiança que já
não lhe pertence.
— Eu disse-te... — As palavras fogem da sua boca quando a minha
mão começa a explorar mais ao longo da sua cintura, do seu abdó­men, por
cima da sua camisola justa. Ela engole em seco. — Eu disse-te que não me
distraio.
— Sim — os meus dedos começam a traçar círculos para cima e para
baixo perto do seu abdómen — e eu podia jurar que bateste com o pé
esquerdo.
Aproximo-me ainda mais, sussurrando-lhe ao ouvido:
— E ambos sabemos que isso significa que estás a mentir.
A verdade é que sou eu que estou a mentir. O seu pé é a última coisa a
que estou a prestar atenção. Mas sei que está a mentir e vou prová-lo.
— Bem — limpa a voz, tentando concentrar-se em formar palavras e
não nos meus dedos —, estás enganado.
E com esse comentário inseguro, levanta o arco e puxa a corda.
Envolvo um braço à volta da sua cintura, lentamente, e deixo a minha
outra mão passar pelos nós dos dedos curvados à volta da corda do arco,
seguindo em direção ao seu ombro tenso. Com o corpo ainda pressionado
contra o meu, sinto um arrepio a subir-lhe pela espinha enquanto os meus
dedos dançam lentamente para cima e para baixo no seu braço. Sorrio-lhe
ao ouvido, e sei que ela também o sente, já que suspira.
Sinto-a respirar fundo e trémula enquanto tenta acalmar-se, tenta
recompor-se. E depois dispara. Rio-me contra o seu ouvido quando a flecha
aterra o mais longe possível do alvo. Ela vira a ca­beça para trás para que os
nossos rostos fiquem a centímetros de distância e aponta-me um esgar. Eu
divirto-me, sorrindo enquanto deixo os meus olhos vaguearem pelo seu
rosto, captando todas as sardas e pestanas escuras que emolduram os olhos
azuis.
Depois, aqueles olhos de oceano separam-se dos meus quando se vira
para o alvo, agarrando outra flecha. Mas nunca tenta sair do meu alcance. É
demasiado teimosa. Se se mexer agora, sabe que isso só vai provar o quanto
eu a distraio.
Depois, coloca a próxima flecha e respira enquanto a brisa sopra uma
madeixa de cabelo prateado na sua cara. Eu aproximo-me e, suave e
lentamente, coloco-a atrás da sua orelha enquanto lhe sussurro:
— Porque é que utilizas a mão esquerda? — É uma pergunta alea­tória,
usada para distrair e satisfazer a minha curiosidade.
Ela respira fundo antes de responder.
— Acreditarias em mim se eu te dissesse que é porque quero ser
branda consigo?
Eu rio-me, abanando a cabeça antes de pousar o queixo no seu ombro.
— Mentirosa. Tu nunca me irias facilitar a vida.
— Tens razão. — Ela exala um riso trémulo. — O meu pai ensinou-me
a disparar com as duas mãos e, depois da minha lesão na prova, achei que
devia praticar mais com a esquerda.
E, com isso, não hesita em recuar e disparar a flecha, que falha o alvo.
— Não. Digas. Uma. Palavra. — Murmura entre dentes cerrados, sem
se preocupar em olhar para mim enquanto agarra noutra seta com raiva.
— Eu não ia dizer nada — digo-lhe com uma inocência falsa.
— Mentiroso. Consigo praticamente sentir-te a sorrir.
Os meus lábios estão contra a dobra da sua orelha e eu estou, de facto,
a sorrir.
— Quando tenho razão, não consigo evitar.
Cheia de raiva, continua a rodar a seta. E com uma voz que está longe
de ser doce, avisa:
— Bem, se continuares a sorrir assim, dou a volta e aponto a seta ao
teu coração.
Mantenho o sorriso, os meus dedos continuam a desenhar cír­culos no
seu estômago. Ela respira fundo, prestes a recuar e a dispa­rar, quando eu
brinco.
— Sim, pelo menos podes acertar no meu coração, ao contrário do
alvo...
Não fico surpreendido quando sinto um golpe duro de um cotovelo no
meu estômago. O ar abandona-me, mas assim que recupero o fôlego solto
uma gargalhada. Paedyn suspira e eu puxo-a para perto de mim, usando este
jogo como desculpa para a abraçar, tocar.
A sua cabeça repousa no meu peito enquanto examina o alvo,
respirando profundamente. E eu estou a fazer o mesmo. O meu peito
ondula. Ao senti-la contra mim, sinto dificuldades em respirar. Encaixamo-
nos na perfeição. Mal consigo pensar, ou respirar, ou mexer-me quando os
meus dedos lhe deslizam pela pele, pela cintura, pelo corpo.
Depois, levanta a cabeça, ergue o arco e dispara a seta. Está no alvo.
Mas por pouco. Inclino-me e volto a pousar o meu queixo no seu ombro,
admirando a flecha que finalmente atingiu o seu alvo.
— Já não era sem tempo, Gray.
— Vamos ver se consegues fazer melhor — provoca-me, afastando-se
enquanto eu, relutantemente, a deixo ir. Suspiro e pego numa flecha,
colocando-a no meu arco. Disparo rapidamente, acertando no anel mais
próximo do alvo, praguejando sob a minha respiração. Depois pego noutra,
determinado a fazer com que a flecha aterre onde eu quero.
Algo me toca no braço, um sussurro contra a minha pele.
A minha cabeça vira-se para o lado, os meus olhos chocam com os
dela. Vejo-lhe os olhos ardentes, cheios de fogo. A sua mão paira mesmo
por cima da pele exposta do meu braço, provocando-me sem tocar.
— O que é que estás a fazer, Gray? — Pergunto-lhe, voltando a minha
atenção para o alvo.
— Estou a distrair-te — diz ela lentamente. A sua mão toca-me de
novo no braço. Tão levemente.
Eu sorrio-lhe.
— Querida, vais ter de fazer melhor do que isso.
— Não — diz ela com frieza —, acho que não preciso.
As pontas dos seus dedos encontram a minha pele. Ela deixa-os descer
pelo meu braço, parando no meu pulso antes de voltar a subir,
dolorosamente devagar. Os dedos percorrem o seu caminho sob a manga da
minha camisa de algodão, a subir...
Desapareceram.
O seu toque desaparece, deixando-me a desejar que ela volte a colocar
as suas mãos em mim...
É então que me apercebo.
Ela tem razão. Não precisa de fazer mais nada para me distrair.
Só de pensar que ela está tão perto e mal me toca, fico com a cabeça a
andar à roda. Estou derretido pela promessa que os seus dedos me fizeram,
uma promessa de algo mais. Nada. Não vai pôr as mãos no meu corpo. Em
vez disso, enlouquece-me, provocando-me com o toque, apenas para o
afastar, deixando-me a desejar que não pare. Deixando-me frio, sem o fogo
que os seus dedos criam ao passar na minha pele.
Exalo, ao reparar como a ação é trémula, como o meu corpo se tornou
hesitante. Puxo a corda do arco para trás enquanto outro dedo passa por
baixo do meu antebraço, passando pela minha pele.
A minha flecha cai a dois anéis de distância do centro, mas a minha
mente está noutro lugar, nos toques fantasma que sobem e descem pelo meu
braço. Não me lembro de ter pegado noutra fle­cha, mas ela está presa ao
meu arco atento.
Lentamente, muito lentamente, deixa os dedos deslizarem sobre a
minha pele, mais pesados do que antes. Um simples toque nunca me fez
sentir tão em chamas. E ela sabe exatamente o que está a fazer. Sabe que o
facto de não a sentir vai enlouquecer-me de uma forma que não consigo
explicar, de uma forma que nunca senti antes.
— Tu és uma coisinha muito cruel, sabias? — A minha voz é pro­‐
funda, desesperada.
— Mas mal te toquei com um dedo — assegura, sublinhando as suas
palavras com um único dedo a percorrer o meu antebraço.
— Exatamente.
Talvez o tenha feito de propósito. Talvez tenha escolhido distraí­da
porque sabia que ela era demasiado teimosa para não me fazer o mesmo.
Talvez o tenha feito só porque também queria as mãos dela no meu corpo.
Porque era uma desculpa para eu a abraçar, para ela me abraçar. E agora
que isso acabou, anseio pelo seu toque. Anseio por ela.
Disparo a flecha, sem me dar ao trabalho de esperar para ver onde cai
antes de atirar o arco ao chão. Dando a volta, agarro-lhe nos pulsos. Puxo-a
para mim, olhando para os seus olhos assustados. Os seus lábios
entreabrem-se, ou de surpresa ou porque está prestes a repreender-me, não
tenho a certeza.
— Não — faço uma pausa, engulo, expiro lentamente — brinques
comigo.
Fica a olhar para mim. A sua boca abre-se e fecha-se novamente,
esperando claramente que as palavras saiam. Mantenho o seu olhar
enquanto guio uma das suas mãos para o meu braço, baixando o outro pulso
para a puxar pela cintura. A palma da sua mão encontra a minha pele e é
quase como se me tivesse lembrado de como respirar novamente. Pressiono
a minha mão na sua, segurando o seu corpo firmemente contra o meu.
Sorrio, agora que está por fim a tocar-me, em vez de me provocar com as
pontas dos dedos.
Um simples toque seu, ou a falta dele, é suficiente para me
enlouquecer.
O que é que ela me fez?
Tiro a minha mão da dela, com os dedos a percorrerem-lhe o braço
antes de a deixar cair ao meu lado. Mas ela não deixa cair a sua, deixando a
palma da mão intacta. Fica a olhar para o local onde a sua pele se encontra
com a minha, antes do seu olhar chegar finalmente ao meu rosto. Sorri, mas
é tão fraco como a sua voz.
— Não sabia que um simples toque podia afetar-te tanto.
— Nem eu.
Os seus olhos desviam-se dos meus, tímidos, enquanto deixa a sua
mão percorrer o meu braço antes de a deixar cair completa­mente. Depois
estica o pescoço, espreitando para o alvo que está atrás de mim.
Sorri com o que vê.
— Perdeste, Azer.
«Concentra-te, Paedyn. Acalma-te e concentra-te. Tu consegues fazer
isso.»
Aceno com a cabeça em resposta às palavras tranquilizadoras de Kitt,
fecho os olhos antes de respirar fundo. Passado um mo­mento, espreito e
aceno de novo com a cabeça.
— Está bem. Estou pronta.
Kitt solta um suspiro dramático, bastante entretido. Depois conta:
— Três... — Sorrio-lhe. — Dois... — Inclino a minha cabeça para
cima. — Um.
Num ápice, atira algo para o ar. Abro a boca, pronta para saborear a
doçura do chocolate, mas ele aterra no meu nariz antes de saltar para o
chão.
O riso de Kitt ecoa nas paredes da cozinha movimentada, e eu observo
os criados a sorrir com o som familiar. Levanta-me a mão quando começo a
falar, precisando claramente de um momento para se recompor antes de
olhar para mim. Mas quando finalmente se endireita e encontra o meu olhar,
está a rir-se de novo.
— Ok, então a minha coordenação quando se trata de apanhar comida
com a boca não é... boa — murmuro, incapaz de impedir que o meu sorriso
se espalhe.
— Não é boa? — Kitt passa uma mão pelo cabelo despenteado, ainda
a engasgar-se com o riso. — Diz isso à Gail, que desperdiçou metade dos
chocolates em ti.
Cruzo os braços.
— Bem, também não apanhou todos os chocolates, Majestade.
Kitt aproxima-se e lança-me um sorriso.
— É verdade. Mas eu pelo menos comi as provas do crime. Tu, por
outro lado — o seu olhar desliza para o chão agora cheio de doces —, não
comeste estes.
Suspiro, deixo-me cair no chão e começo a apanhar os pequenos
chocolates. De repente, Kitt agacha-se à minha frente, ajudando a colocá-
los na palma da minha mão. Fico a olhar para ele por um momento, ainda
atordoada com cada a demonstração de bondade e sorriso partilhado. Mas
com todo o tempo que tenho passado com ele ultimamente, as diferenças
entre o Rei e o seu filho parecem sur­preender-me cada vez menos.
Uma parceria que só aceitei para ser notada pelo povo transfor­mou-se
agora numa amizade improvável. Não é difícil passar a maior parte dos
meus dias a falar e a passar tempo com o futuro rei para encontrar o túnel
para a Resistência. Nada disso é difícil, embora a culpa que me consome
seja algo difícil de ignorar. De forma egoísta, dou por mim a desejar que ele
fosse mais parecido com o seu Pai, porque isso tornaria esta traição muito
mais suportável.
Passa uma criada pequena e bonita, que inspira ao ver-nos.
— Eu sei, eu sei — diz Kitt justificando-se. — Ela é horrível a apa­nhar
coisas com a boca.
— Não, não, Vossa Alteza! — A criada apressa-se a falar, com o
choque estampado na cara. — Por favor, não se incomode! Eu limpo isto de
imediato!
Antes que eu possa falar, já ela está ao meu lado, arrancando os
chocolates da minha mão.
— Obrigado, Liza — agradece Kitt, levantando-se. Estende-me as
mãos e eu pego nelas, deixando-o puxar-me.
Liza sorri para o seu príncipe.
— O prazer é meu, Vossa Alteza.
É claro que conhece os seus criados pelo nome.
Dezenas deles agitam-se à nossa volta, esbarrando uns nos ou­tros com
a pressa de chegarem onde são necessários, enquanto uma voz estrondosa
nos chama.
— Kitt, gosto muito de ti, querido, mas acho que a minha cozinha não
tem capacidade para mais uma pessoa! — Vejo Gail a vigiar-nos do outro
lado da sala, sorrindo com o que vê. Depois, faz um gesto com as mãos,
empurrando-nos para fora da porta. — Mas já que vos estou a expulsar, vão
ter de me vir visitar em breve.
Kitt ri-se e coloca uma mão gentil nas minhas costas, e eu não me
afasto do seu toque. Ele guia-me até à porta enquanto anuncia:
— Oh, não me consegues afastar, Gail.
O corredor está repleto de criados, todos atarefados e nervosos na
preparação do próximo baile de amanhã à noite — um lembrete do tempo
escasso que me resta para encontrar o túnel que conduz à caixa.
Passei dia após dia com Kitt, conquistando a sua confiança, enquanto
elaborava um plano para obter as informações de que precisava.
Quase esbarro num criado, ou melhor, ele quase esbarra em mim. O
rapaz gordo grita as suas desculpas antes de se pôr a correr para onde quer
que tenha de ir.
Altura certa. Vamos lá.
Viro-me para Kitt e forço uma gargalhada.
— Nunca precisas de uma pausa do caos do castelo? — Mesmo
quando o digo, já sei a resposta. Ele praticamente admitiu que se sen­tia
preso no palácio, na sua posição, quando estávamos enfiados na sala de
segurança. E, no entanto, aqui estou eu, a usar a informação que ele me
confiou contra ele.
Ele olha para mim, os seus olhos parecem procurar os meus com uma
certa tristeza.
— Não imaginas o quanto.
Estendo os braços, exasperada.
— Então, porque não o fazes? Podias visitar Loot um dia. É ver­dade
que há tanto caos lá como no castelo, mas... é um tipo diferente de caos. Tu
misturas-te. Deixas o caos tomar conta de ti até se tornar uma sensação
familiar. Até te tornares parte dele!
Vá lá. Diz que sim.
Kitt está a olhar para mim como se não acreditasse no que está a ver.
Um sorriso lento está a espalhar-se pelos seus lábios, os olhos verdes
percorrem o meu rosto como se estivesse preocupado que eu deixe de olhar
para ele outra vez.
— O quê? — pergunto-lhe, um pouco preocupada.
Ele pestaneja e abana ligeiramente a cabeça, tentando desanuviá-la.
— Não é nada. É só... a maneira como falas de Loot. — Ele desvia o
olhar, murmurando algo que soa como: — Fogo, só a maneira como falas.
Não me debruço sobre o assunto antes de perguntar:
— Então... isso é um sim?
O seu sorriso desvanece-se.
— Gostava de poder visitar Loot. Mesmo. Não vou lá desde que era
um miúdo. Antes de ser...
— Preso aqui? — completo com calma.
Não me tinha apercebido que tínhamos parado de andar até Kitt me
retirar do meio do corredor, evitando que fossemos espezi­nhados pelos
criados.
— Exatamente — diz ele com um pequeno sorriso. — Tu és uma das
poucas pessoas que compreende isso.
Aceno lentamente com a cabeça, sorrindo.
— Kitt, estou prestes a repreender-te.
Ele ri-se com isso.
— Não esperava outra coisa de ti. Vá lá.
— Como futuro rei — confesso —, devias ver o teu povo. Ver como
vivem nos bairros de lata. Ver como sobrevivem.
— Eu sei — admite com um ar vazio.
— Então, o que é que te impede?
Solta uma gargalhada amargurada, esfregando a parte de trás do
pescoço enquanto diz.
— O atual rei. Nunca saio do castelo a não ser que seja absoluta­mente
necessário e, segundo ele, ver o meu povo não é algo neces­sário. Eu sou o
herdeiro do trono e ele não quer que arrisque sair do palácio, quanto mais a
ajudar, como tentei fazer quando a Resistência atacou o baile.
Tento não ficar tensa perante a sua ignorância, perante a ideia de que a
Resistência atacou o baile. Mas o melhor é não falar mal do Príncipe sobre
assuntos que eu não deveria saber.
— E concordas com ele? — pergunto-lhe com cuidado.
— Compreendo-o. E respeito-o...
— E nunca vais parar de tentar provar-lhe que és capaz, por isso vais
fazer tudo o que ele te diz. Eu sei. — Há um tom de julgamento na minha
voz que rapidamente tento esconder. — Anda lá, só uma noite, Kitt. Vai ver
o teu povo. Ver a minha casa e como vivia. Não te prendas aqui.
Kitt encosta a cabeça na parede e ri.
— Eu não posso ir embora, Paedyn. Há guardas por todo o lado e não
tenho autorização para sair.
E era exatamente isso que eu esperava que ele dissesse.
Mesmo assim, devolvo-lhe um olhar firme.
— Mas tu és o Príncipe.
— Sim, por vezes sou apenas um príncipe em título, não em pri­vilégio.
Não posso simplesmente sair pela porta da frente.
— Então, sai por uma porta diferente. — Aproximo-me um pouco
mais, levantando as mãos apenas para as deixar bater contra as mi­nhas
pernas. — Não me digas que não há uma saída que ninguém conheça? Uma
espécie de porta que não esteja a ser guardada?
Pareço totalmente casual, curiosa até.
Vá lá. Confia em mim. Diz-me.
Se conseguir que ele fale dos túneis, que me leve a percorrê-los, há
uma hipótese de ele me falar daquele que tenho de encontrar. Iria agir como
se estivesse curiosa, faria perguntas sobre os outros túneis para saber mais
sobre um em particular. Não é o meu plano mais só­lido, mas é um começo.
Ele olha para mim de uma forma que me faz lembrar vagamente Kai.
Afasto os pensamentos sobre o outro irmão, preferindo concentrar-me no
que está à minha frente. Aquele onde a proximidade não é um problema,
alguém que faz com que a nossa comunicação seja fácil.
Fácil de enganar, trair, usar...
— Oh, sim. Há muitas maneiras de eu sair do castelo sem ser visto —
assegura Kitt com um sorriso, cortando os meus pensamen­tos gritantes.
O meu coração bate forte, a minha voz é calma quando digo:
— Eu levo-te. Uma noite. Vais ver Loot e o seu povo. Como é que eles
são, como é que as suas vidas funcionam... — Ele olha-me tão fixamente
que eu paro por um momento, engolida por aqueles olhos esmeralda que
não me atrevia a olhar há uns dias. — Um Rei que não conhece o seu povo
não pode ser um Rei para o seu povo.
Apesar da verdade das minhas palavras, elas têm um sabor amargo na
minha boca pela razão que me levou a pronunciá-las.
Basta uma semente de dúvida, um grão de incerteza para apo­drecer e
crescer.
E acabei de a plantar.
Estou com um sorriso tranquilizador, como se não estivesse a mentir
com todos os dentes que tenho.
Confia em mim.
— Talvez — pondera Kitt, estudando-me. Luto contra a vontade de o
tentar convencer ainda mais, com cuidado para não parecer desesperada ou
levantar suspeitas. — Vou pensar na tua oferta.
— Kitt.
Os pelos da minha nuca levantam-se ao ouvir aquela voz. Aquela voz
fria e insensível. Viro-me lentamente para ver o Rei ao fundo do corredor, a
dirigir-se para nós. Faço-lhe uma pequena vénia, indig­nada, enquanto forço
um pequeno sorriso.
— Kitt, preciso de ti no escritório para terminar a nossa conversa com
os conselheiros. — Os seus olhos passam por mim, considerando-me
finalmente digna de ser vista. São do mesmo verde vivo que os de Kitt e, no
entanto, não podiam ser mais diferentes, mais... frios. Quase me arrepio,
lembrando-me da razão pela qual mal conseguia olhar para o seu filho. O
olhar do Rei volta a dirigir-se a Kitt antes de completar: — Agora.
Embora não pareça muito entusiasmado, Kitt responde com uma curta
frase.
— Claro, Pai.
Põe-se ao lado do Rei, pronto a acompanhá-lo de volta ao escritório.
— Vai lá, filho. Eu já vou ter contigo.
A sua voz severa não deixa espaço para discussões e Kitt acena
lentamente com a cabeça, antes de me lançar um pequeno sorriso e de se
pôr a andar.
Mal aguento olhar para ele, mas forço os meus olhos a encon­trar os do
assassino do meu pai. Está a olhar para mim como se eu fosse a escória que
ele raspou da sola dos seus sapatos brilhantes. Não consigo suportar, mas
forço-me a ficar quieta em vez de me contorcer. Por isso, ofereço-lhe um
sorriso brilhante, enquanto me pergunto se parece que estou a mostrar
demasiado os dentes.
— Vossa Majestade — digo-lhe como se me fosse despedir, antes de
passar por si, para escapar a este homem e aos meus pensamen­tos furiosos e
vingativos.
Os seus sapatos produzem eco ao bater no chão de pedra quando
estaca à minha frente. Paro, olhando para a sua grande estrutura. Está de
boa saúde para a idade que tem, o que faz com que seja fácil ver de onde os
seus filhos tiraram a sua constituição forte e os tra­ços bonitos. As
semelhanças entre Kitt e o pai são espantosas, mas é na habilidade de Forte
do Rei que me concentro, lembrando-me do facto de que ele poderia partir-
me o pescoço com facilidade.
— Miss Gray, é bom ver que conseguiu sair ilesa da primeira prova. —
Não parece nada satisfeito com o meu bem-estar. — Bem, graças ao meu
filho, claro.
Só posso imaginar a reação do Rei quando viu as imagens de Kai
comigo na Prova. Eu sei que ele odiou. Odiou que o seu filho me tenha
ajudado — uma zé-ninguém, uma Mundana, uma Miserável.
Uma Vulgar.
— Sim, estou grata por ter tido o Kai como meu parceiro — digo com
frieza, sem saber para onde esta conversa está a ir.
— Hmm — O Rei olha para mim, com os olhos semicerrados.
Antes que possa dizer mais alguma coisa, acrescento:
— E estou muito ansiosa pela próxima Prova. E a seguinte. Mentiras.
Só queria ver a expressão da sua cara, mostrando-me confiante de que
ia sobreviver tanto tempo. Depois da minha afirmação, faço-lhe um sorriso
falso, pronta para abandonar esta conversa, quando ele contrapõe.
— Deixe-me ser franco, Paedyn. Tu não estás a ganhar isto.
Eu fico tensa.
— Desculpe?
— Eu sei que é isso que queres. Ganhar as Provas da Purga e ter uma
vida melhor para ti e para a tua amiga costureira.
Ele ri-se, amargo e mordaz.
— Isso recorda-me. Devia dar-te os parabéns pela pequena proeza que
fizeste com o teu vestido no baile. Conseguiste mesmo o que querias.
Lembrar as pessoas que és a Salvadora Prateada.
Desvio o olhar, incapaz de o fitar enquanto continua a falar.
— Diz-me, já viste as sondagens?
Sim. Um dia depois da exibição da primeira Prova, as pontua­ções dos
concorrentes e os votos do povo foram combinados e con­tados. As
classificações dos restantes sete concorrentes estavam por todo o lado,
expostas em faixas e cartazes por toda a cidade. Kai estava no topo, seguido
de Ace e Andy logo atrás, em terceiro. Blair e eu ficámos empatadas em
quarto lugar, com Braxton e Jax empa­tados em último.
Parece que o reino de Ilya não sabe bem o que fazer comigo. Aqueles
que vivem nos bairros de lata estão provavelmente a votar na sua Salvadora
Prateada, enquanto aqueles que vivem fora deles estão provavelmente a
torcer contra mim, esperando ver a Miserá­vel ter uma morte divertida. E se
estou a receber algum voto dos que estão fora dos bairros de lata é sem
dúvida porque me acham divertida.
— Sim, já vi as sondagens — digo entre dentes.
— Ótimo. Duvido que a tua posição suba mais, por isso o que mais me
preocupa é o teu envolvimento com os meus filhos. Eles não pre­cisam que
os arrastes para baixo, ou pior, que os influencies. — Olho fixamente para o
peito do rei, vendo-o a ajeitar os punhos do casaco. — Duvido que precises
que te lembre do teu lugar, por isso não te metas no caminho deles e não
teremos problemas. Entendido?
A adaga enfiada na minha bota nunca me tentou tanto, ator­mentando-
me com a ideia de lhe enfiar a lâmina no peito como ele fez ao meu pai.
Mas ele não matou apenas o meu pai naquele dia, matou um pedaço de mim
no processo.
E nunca odiei tanto alguém.
Os meus punhos estão bem cerrados ao lado do corpo, as unhas a roer
as palmas das mãos. Mas eu formo uma expressão submissa e doce no rosto
quando indico:
— Entendido, Sua Majestade.
Se antes não queria ganhar, agora quero de certeza.
— Ótimo — diz ele com firmeza. — Então devemos agradecer à Peste
por estares viva e de boa saúde, não é verdade?
Há um certo desafio no seu tom de voz, um brilho nos olhos. Espelho
o seu sorriso, mesmo quando engulo o meu orgulho.
Nunca disse tal frase nojenta, e jurei que nunca o faria. E, no entanto,
aqui estou eu, a abrir a boca para deixar as palavras saírem como se não me
fossem estranhas. Como se não estivessem a deixar um sabor desagradável
na minha boca.
— Sim, de facto, graças à Peste.
— Está quieta ou vou arranco-te um olho.
Eu resmungo enquanto Ellie apenas sorri. Continua a passar o de­‐
lineador pelas minhas pestanas, apesar de ter estado perigosamente perto de
me cegar acidentalmente em várias ocasiões. Ela gosta de culpar a minha
agitação e eu gosto de culpar as suas mãos instáveis.
— Muito bem, está na hora de prenderes a respiração! — Adena está a
borbulhar de excitação, as suas mãos agarram os laços do meu vestido.
Permite-me um último suspiro antes de puxar os atilhos com força,
espremendo o ar da minha caixa torácica esmagada. Ata os laços, puxando
lentamente o corpete com mais força para pressionar as costas abertas.
Agarrando-me à cadeira à minha frente, inspiro.
— Mais um puxão, A, e perfuras-me o pulmão.
Duvido que Adena me consiga ouvir por causa dos gritos de alegria.
— Pae, é perfeito! Sabes, estava um pouco preocupada com a ba­inha,
mas olha para ela! Cai mesmo bem e o corte é incrível...
Faz uma pausa, soltando um suspiro.
— Esquece isso. Olha só para ti!
As suas mãos puxam-me os braços enquanto me conduz ao es­pelho, o
seu rosto brilhante a espreitar por cima do meu ombro. Eu pestanejo e a
rapariga no espelho faz o mesmo.
O vestido prateado que usei no primeiro baile era deslumbrante,
sedutor, enquanto este é simplesmente lindo, de cortar a respira­ção. Tecido
vermelho-escuro envolve-me, espalhando-se pelo chão. É cintilante e sem
mangas, mas em vez do corpete ser arredondado na parte superior, as
extremidades terminam em cantos elegan­temente pontiagudos. É justo e
aperta-me a cintura com os laços, agora atados num arranjo elegante e
expondo a pele entre o tecido que mantém o vestido unido. A saia é
voluptuosa, revelando a racha larga na minha perna direita, onde a adaga do
meu pai está exposta para todos verem e ficarem perplexos.
— Adena, eu adoro-o... — Deixo-me ser levada a percorrer o tecido
que abraça o meu corpo. Depois o meu olhar encontra a avelã exci­tada no
espelho e viro-me para a minha melhor amiga. — Eu amo-te, Adena.
Ela brilha, com um olhar luminoso.
— E eu amo-te a ti, Pae. — O seu sorriso torna-se malicioso. — E toda
a gente vai adorar-te neste vestido. Especialmente um certo Príncipe...
Não é difícil perceber que se está a referir a Kai. Lanço-lhe um olhar,
não querendo particularmente falar sobre este assunto.
— Adena...
— O quê? — pergunta com demasiada inocência. — Caso te tenhas
esquecido, vi a recapitulação das Provas. Vi o que aconteceu entre vocês os
dois.
Adena franze uma sobrancelha.
— E tenho estado à espera de que venhas falar comigo sobre isso.
— Bem, não há nada a dizer. — Digo enquanto evito um olhar de
reprovação, que me obriga a acrescentar: — Está bem, não sei o que dizer.
Ele é confuso e cativante e eu estou a falhar miseravelmente em manter a
distância.
— Certo — diz ela com uma voz baixa. — Porque tu és... tu.
— E ele é... ele — suspiro.
Porque eu sou uma Vulgar, e ele é o futuro Executor, Adena suspira
dramaticamente.
— Bem, não te culpo por não conseguires manter-te afastada. Quer
dizer, olha para ele...
Reviro os olhos, a rir. Numa tentativa de evitar a conversa, maravilho-
me ao espelho com a minha transformação. O meu cabelo está preso numa
trança complicada ao longo das costas, combinando com a maquilhagem
escura que emoldura os meus olhos com sombra e os meus lábios com um
brilho intenso.
Elas fazem milagres.
Estávamos a falar e a rir quando uma batida forte soou à porta. Lenny
assobia quando me vê.
— Olha para isto. Tu pareces mesmo uma Princesa, princesa.
— Se eu for picado, culpo-te a ti — murmura Lenny. Ele leva-me
pelos jardins, passando por dezenas de convidados que olham para mim. —
Não só o teu vestido está a atrair muita atenção, como tam­bém está a atrair
um monte de abelhas.
Tento abafar um sorriso enquanto olho para o meu vestido a com­binar
com as rosas que revestem o caminho de pedra que estamos a percorrer. Os
convidados passeiam-se pelos jardins, dirigindo-se para a zona de relva
decorada, para lá da fonte onde, apenas há alguns dias, dei um murro na
cara do seu futuro rei.
Uma vez que as Provas não são a única coisa diferente este ano, o
segundo baile realiza-se nos jardins, onde o sol poente brilha nas taças de
champanhe, acrescentando um dourado baço ao cenário da festa. Saímos do
percurso e vamos até à orla do relvado, observando as mesas de sobremesas
e as grandes grinaldas penduradas nas ár­vores circundantes. Os músicos
estão escondidos debaixo de um sal­gueiro, atrás de uma cortina de folhas
que balançam enquanto tocam uma música animada. No centro das
festividades estão tapetes com padrões sobrepostos na relva, todos de
tamanhos e estilos diferentes, criando uma pista de dança colorida onde
vários casais já estão a rodopiar.
— Bem, infelizmente para ti, eu não sou o teu par — diz Lenny com
um suspiro dramático. — É aqui que tenho de me despedir.
Solto uma gargalhada.
— Como é que vou conseguir passar a noite sem ti?
Ele goza-me enquanto faz uma vénia.
— Eu sei. Sê corajosa, princesa. Agora vai procurar o teu Príncipe. E
depois endireita-se, pisca-me o olho e sai pelos jardins.
Abano a cabeça, antes de retomar o fôlego e dirigir-me para o salão de
baile improvisado para a noite. Examino o turbilhão de cor­pos dançantes,
tentando encontrar Kitt entre eles.
— Ainda bem que estás a usar esse vestido, senão nunca te teria
encontrado.
Dou um salto ao ouvir a voz de Kitt atrás de mim e viro-me para o
encarar, com a minha saia a balançar à volta das pernas. Ele sorri, olhando-
me da cabeça aos pés.
— Embora, mesmo que estivesses vestida de verde, duvido que
conseguisses passar despercebida.
Engulo, sem saber o que responder a isso, antes de me contentar com
um suave...
— Obrigada.
Estende-me a mão.
— Danças comigo?
Coloco a minha palma na sua e aceno com a cabeça antes de ser
arrastada para a pista de dança. Sinto-me como se estivesse a dan­çar com
um rapaz completamente diferente do que dancei no baile anterior. Exceto
que a única coisa que mudou foi a perspetiva que tenho dele. Conversamos
casualmente enquanto dançamos, e é um alívio poder olhar nos seus olhos,
não fugir do toque.
— O meu pai disse-te alguma coisa ontem? Depois de eu ter saído? —
pergunta Kitt com curiosidade quando a música termina.
Abro a boca, pronta para dizer uma mentira, quando uma voz fria me
deixa suspensa.
— Posso interromper?
Respiro fundo, irritada, antes de virar a cabeça para Blair, que está à
espera para me roubar o parceiro de dança. Combinou o seu sorriso com um
vestido verde profundo decorado com contas.
O olhar que Kitt me lança é cómico. Eu sufoco uma gargalhada
quando os seus olhos se fixam nos meus, pedindo-me para não o deixar. Eu
devolvo-lhe um pequeno sorriso, esperando que ele veja o pedido de
desculpas nos meus olhos enquanto declaro:
— Claro. Ele é todo teu.
Abana a cabeça na minha direção, fixando-me com o olhar quando
saio dos seus braços e sou substituída pela Blair.
— Divirtam-se — acrescento, incapaz de esconder a minha satis­fação.
Kitt lança-me um olhar que promete vingança, e eu controlo uma
gargalhada ao vê-lo. Viro-me, ainda a sorrir...
E vou contra algo sólido. Não, alguém sólido.
Algo molhado salpica-me a bochecha enquanto me afasto do corpo
contra o qual bati tão desajeitadamente. O cheiro a vinho misturado com
pinho atinge-me, sabendo exatamente quem está à minha frente antes de
levantar o rosto para o encontrar.
Kai sorri, parecendo igualmente robusto e bonito perante os últi­mos
raios do sol poente. O seu cabelo está mais desalinhado do que o normal,
com as suas ondas a caírem onde lhes apetece. Os seus olhos são de um
cinzento brilhante e nublado, iluminados pela diversão. O fato que veste e a
camisa branca por baixo não só estão ligeira­mente amarrotados como
também parcialmente manchados de um vermelho profundo.
O vinho tinto espalha-se no copo que tem na mão. Bem, resta pouco,
visto que agora está a usar a maior parte dele graças a mim.
Os meus olhos fixam-se nos seus quando desata a rir.
Vários dos convidados que nos rodeiam lançam olhares de per­‐
plexidade na nossa direção, depois de terem ouvido o seu desabafo invulgar.
E tenho a certeza de que a minha expressão reflete a deles. Os ombros de
Kai estão a tremer de riso e eu paro, sustendo a respi­ração. O seu sorriso é
largo, selvagem, exibindo um aspeto deslum­brante acompanhado de
covinhas profundas.
De repente, fiquei preocupada.
O vinho está a pingar das extremidades do fato, mas ele não con­segue
parar de rir o tempo suficiente para reparar, ou mesmo impor­tar-se, que a
minha falta de jeito lhe tinha estragado a roupa. Limpo a voz, olhando para
os convidados que nos observam, e digo:
— Kai — mais uma gargalhada profunda ao ouvir o seu nome —,
porque não te ajudo a limpar?
Agarro-lhe na mão antes que tenha oportunidade de argumentar ou de
se rir mais, e levo-nos até às árvores que nos rodeiam, cons­ciente dos olhos
que nos seguem. Apanho um lenço de uma das mesas compridas antes de
nos enfiar debaixo dos ramos caídos de um sal­gueiro sombrio, protegendo-
nos dos convidados coscuvilheiros.
Kai encosta-se ao tronco áspero, sorrindo maliciosamente para mim.
Dou-lhe uma vista de olhos rápida, avaliando os estragos que lhe fiz na
roupa e o seu comportamento estranho.
Inclina-se para perto, demasiado perto, estudando-me minucio­samente.
— Sabes — declaro de uma forma que me provoca um arrepio na
espinha —, não precisavas de entornar bebida em cima de mim para me
apanhares sozinho. Podias simplesmente ter-me convidado para dançar.
Encontro o seu olhar antes de o dele começar a descer preguiçosa­‐
mente pelo meu corpo. Sustenho a respiração, praticamente a sentir o
caminho que os seus olhos estão a percorrer. Depois, o mais lento, sensual e
insuportável movimento do seu olhar, regressa aos meus.
— Melhor ainda, com esse vestido eu tinha-te encontrado, mais tarde
ou mais cedo.
Inspiro fundo. Os meus olhos percorrem-no, reparando nas roupas
amarrotadas, no riso estrondoso, nas divagações ousadas — embora
suponha que isso não seja novidade.
— Estás bêbedo. — Evidencio, abanando a cabeça.
Está novamente a sorrir para mim, embora seja um sorriso mais
selvagem do que aqueles a que estou habituada.
— Talvez um pouco.
Reviro os olhos, enquanto ajeito o pano que peguei e começo a
desapertar o botão do seu casaco para tentar limpar a camisa o melhor que
possa.
— Estás a despir-me, Gray? — O seu rosto está de novo perto do meu,
o hálito a fazer-me cócegas na bochecha. — Quero dizer, não posso dizer
que não tenha sonhado com esse dia.
Acrescenta com um sussurro divertido.
— Não me conseguiste resistir, querida?
Depois olho para ele, esboçando um sorriso com uma confiança que
não é um reflexo do meu estado atual.
— Oh, por favor — desabafo —, a única coisa a que resisto quando
estou perto de ti é à vontade de te cravar uma adaga na garganta.
Os seus olhos estão fixos nos meus.
— Adoro quando ameaças matar-me, sabias?
— E porquê?
O canto da sua boca contrai-se.
— Porque de cada vez que não o fazes, só provas que não o queres
mesmo fazer.
E depois toca-me na ponta do nariz com um sorriso de satisfação.
Afasto-lhe a mão, irritada e frustrada e a odiar que ele seja a razão do
meu estado de fúria. Fixo a minha atenção na sua camisa manchada, o
tecido agora colado ao seu corpo musculado.
Pestes, bem, isto não está a ajudar.
Começo a esfregar a mancha vermelha, forçando-me a concentrar na
tarefa e não no rapaz. Tento esquecer que é ele que estou a ajudar ao mesmo
tempo que tento lembrar-me porque é que o estou a ajudar.
Depois, os dedos agarram-me o queixo e a minha respiração prende-se.
Kai inclina a minha cabeça para cima para encontrar o seu olhar, os
dedos dançam ao longo da minha boca. Está a olhar para mim como se
apreciasse um quadro — absorvendo cada detalhe, deli­ciando-se com a sua
originalidade, considerando-o uma obra de arte.
Inclina a minha cabeça para o lado, virando-me a face para a luz.
Devia afastá-lo.
O seu polegar acaricia-me.
Não quero afastá-lo.
Ele ri-se e é um som delicioso de bêbedo.
— Esqueci-me de como tu és talentosa. Conseguiste entornar a minha
bebida em cima de nós os dois.
O seu polegar passa pela minha bochecha, limpando o vinho entornado
na minha cara.
— Bem, talvez se tivesses mantido os olhos na pista de dança e o nariz
fora do copo, não estaríamos nesta situação — digo-lhe com frieza.
— Oh, querida, os meus olhos estavam na pista de dança — diz ele
casualmente. — Estavam em ti a dançar com o meu irmão.
Depois solta uma gargalhada, esticando o pescoço para abanar a
cabeça em direção à copa das folhas por cima de nós.
— Porque achas que estive a beber?
O meu coração está a bater contra a minha caixa torácica, con­tra os
limites apertados deste vestido, ameaçando rebentar e rasgar a costura
cuidadosa de Adena. Ele está a olhar para mim outra vez, encolhendo os
ombros de forma desleixada.
— Além disso, isto — olha para a sua camisa manchada —, foi sem
dúvida obra dos teus pés desajeitados.
Olho para ele com um olhar fixo, esforçando-me para não sorrir.
— Ai sim?
— Shh.
Os seus dedos voltaram a encontrar o caminho sob o meu queixo, a
minha boca, segurando o meu rosto. Os seus olhos cinzentos caem para a
minha boca, o olhar pesado. E depois está a arrastar o polegar ao longo do
meu lábio inferior.
Vinho.
Consigo saboreá-lo ainda a cobrir o polegar que ele passa na minha
boca. Estou atónita, imóvel, enquanto os seus olhos seguem o traço do seu
dedo, muito lentamente, para trás e para a frente.
Devia afastá-lo.
Mas não faço.
Em vez disso, vejo-o a observar-me. Vejo os seus olhos percorre­rem o
meu rosto. Observar o seu peito a arfar com respirações trému­las. Observar
um músculo a mexer na sua bochecha. Ver um sorriso a contorcer-lhe os
lábios.
As suas palavras seguintes são um murmúrio, como se estivesse a
murmurar os seus pensamentos mais íntimos enquanto o seu po­legar
continua a passear pelo meu lábio.
— Serás para sempre o prémio que eu tento ganhar sem sucesso?
Inspiro bruscamente, olhando-o enquanto digo.
— É só isso que eu sou para ti? Um troféu?
Um pequeno sorriso contrai-lhe os lábios enquanto abana a cabeça.
— Oh, querida, um troféu implica que o ganhei, que o mereci, que o
mereço. — Inclina-se mais para a frente, com uma certa reve­rência a
refletir-se no seu olhar. — Mas se eu te tiver, será porque tu me deixas.
Inspiro, a minha boca fica de súbito demasiado seca.
São apenas as divagações de um homem bêbedo, nada mais.
O seu polegar traça a minha boca e eu permito-me a mais um momento
para memorizar a sensação.
E depois empurro-o para longe.
Uma das minhas palmas encontra o seu peito, forçando algum espaço
entre nós, enquanto a outra lhe agarra o pulso. Afasto os seus dedos da
minha boca, os meus lábios ainda a formigar com o seu toque. Sinto-me
tonta, como se me pudesse embebedar só com o seu toque.
Perigoso.
— Tu não estás sóbrio. — Brinco, inclinando a cabeça. — Por isso,
não estás autorizado a tocar-me.
Ele copia-me, inclinando a cabeça para o lado enquanto olha para
baixo, para onde estou a segurar o seu pulso.
— Mas tu estás a tocar-me.
— Pois, mas eu estou sóbria.
Um sorriso brinca-lhe nos lábios.
— Então, estás a dizer que me é permitido tocar-te quando estiver
sóbrio?
O seu tom soa mais como um desafio do que como uma pergunta.
Eu penso nisso. Depois rio-me.
— Só vou dizer que sim porque duvido que te lembres desta con­versa
pela manhã.
O seu olhar passa entre a minha boca e os meus olhos, um sorriso
embriagado a torcer-lhe os lábios.
— Oh, querida, duvido que possa esquecer isto.
Abano-lhe a cabeça, sem me preocupar em reprimir o meu sor­riso
antes de me lembrar que ainda lhe prendo a mão. Baixo-a len­tamente,
deixando-a cair enquanto me distraio a avaliar novamente a mancha.
Suspiro, exasperada.
— É óbvio que esta nódoa não vai sair assim. Vais ter de despir a
camisa e pô-la de molho.
O seu sorriso é perverso.
— Estás a tentar deixar-me nu? Outra vez? — diz isto demasiado alto
e tenho a certeza de que muita gente o ouviu. Prendo-o contra a árvore,
tapando-lhe a boca com uma mão para que não lhe saiam mais disparates.
Estou a tentar não me rir e a falhar miseravelmente. Sinto os lá­bios de
Kai a sorrir contra a minha palma e puxo a mão para trás antes que possa
mudar de ideias.
— Não pares — murmura.
Quase que me engasgo com o riso.
— Parar o quê?
— Isso. De rir.
Fico imóvel perante as suas palavras, incapaz de me impedir de ficar
em silêncio.
— Nunca me ouves, pois não?
E com isso, estou a ser puxada para a pista de dança alcatifada.
— O que é que tu...?
Gaguejo quando ele para abruptamente à beira dos casais que estão a
dançar e vira-se. As palavras falham-me quando ele leva as costas da minha
mão aos seus lábios, beijando os nós dos meus dedos. Depois, a sua boca
encontra a pele macia do meu polegar, os lábios pressionam-na levemente
antes de desaparecerem rapidamente, deixando-me com dúvidas se de facto
aconteceu.
Fico atordoada e em silêncio. Kai parece satisfeito.
Ainda a segurar a minha mão e a sorrir, faz uma vénia surpreen­‐
dentemente firme e diz:
— Dás-me a honra desta dança?
Não tenho oportunidade de responder antes de ele me puxar pelo
braço, em direção à pista de dança. Estou envolvida nos seus braços,
apertada com força contra ele. A sua boca está de repente junto ao meu
ouvido, a murmurar:
— Não estava a perguntar.
Afasto-me para poder olhar para a sua cara, que me goza.
— Pensei que me tinhas dito que eras um cavalheiro?
— Só quando quero.
Os meus olhos vagueiam até à sua camisa manchada, visível a todos.
— Kai, a tua camisa. Talvez devesses mudar...
— Querida — interrompe-me, bem-humorado —, estou habituado a
estar coberto de outros líquidos vermelhos e pegajosos muito pio­res do que
vinho.
É verdade.
Tento afastar o pensamento sangrento e deixo-o levar-me pelos tapetes.
O sol já se pôs, fundindo os convidados ao nosso lado com as sombras e
lamparinas. É algo tão familiar — a sensação um do outro, o trabalho de
pés, o flirt. Familiar. Mas o que mais me sur­preende é a firmeza e a
segurança com que Kai se mantém de pé. Como consegue ser articulado
mesmo quando está embriagado. Suponho que algumas máscaras nunca o
abandonam.
E depois, finalmente acontece. Kai tropeça, por breves segun­dos. Um
ligeiro tropeço.
— Olha quem tem os pés desajeitados agora? — sorrio, sem me
aperceber do quanto queria vê-lo a debater-se durante uma dança. Durante
qualquer coisa.
Ele lança-me um olhar aborrecido.
— Sim, bem, isso tende a acontecer quando se está bêbedo.
— Disseste que estavas apenas um pouco bêbado, lembras-te?
— Ótimo. Então podes dar-me um desconto. — Está a olhar para mim,
abanando a cabeça com o que vê. — Além disso, o teu vestido distrai-me
imenso. Gosto muito.
Solto uma gargalhada.
— Essa é uma péssima desculpa.
— Isso é porque eu estava a dar-te um elogio, não uma desculpa.
— Bem, então foi um péssimo elogio.
Vejo o desafio nos seus olhos antes de lhe ouvir a voz.
— Então, porque não me dás um exemplo de um bom elogio, Gray?
Devia ter previsto isto. É claro que vai usar isto como uma des­culpa
para eu finalmente o elogiar — só que não o vou fazer.
— Está bem — digo-lhe, sem rodeios. — O teu cabelo parece muito...
macio.
— Macio? — Kai ecoa com uma tosse que poderia ter sido uma gar­‐
galhada. — Oh, vá lá, consegues fazer melhor do que isso.
Ele aproxima-se, a sua voz é tenebrosa e ele acrescenta:
— E se quiseres passar os dedos pelo meu cabelo, não me oporia...
— O teu sorriso. — Corto-lhe a palavra antes que a sua oferta me
possa tentar. — Gosto quando sorris de verdade. Quando não estás a usar a
máscara do futuro Executor ou do Príncipe e simplesmente permites que eu
te veja. É um sorriso que gostaria que partilhasses comigo mais vezes.
Engulo e calo-me. Não era nada disso que queria dizer e, no en­tanto,
isso não faz com que seja menos verdade. Ao ver aquele sorriso, é fácil
esquecer quem ele é e o que faz. Ao ver aquele sorriso, vejo um rapaz em
vez do peão mortal do Rei. Ao ver aquele sorriso, vejo al­guém que é mais
do que um amigo, em vez de alguém que me mata­ria se soubesse o que eu
sou.
E, de repente, esse sorriso parece-me muito perigoso.
— Mesmo com as minhas covinhas estúpidas, ainda gostas do meu
sorriso? — As palavras de Kai são suaves, ligeiramente sem fô­lego, e a
minha resposta reflete esse estado.
— Mesmo com as tuas covinhas estúpidas, Azer.
Os seus lábios contorcem-se numa variação daquele sorriso que eu não
devia procurar, embora seja mais suave do que os que já vi antes. Abre a
boca e...
— Malakai.
Os nossos olhos dirigem-se para a Rainha que está agora a al­guns
metros de distância, com um sorriso agradável nas suas fei­ções
deslumbrantes.
— Partilha-a com outro cavalheiro, está bem?
— Ela é minha por esta noite, mãe. — Os olhos de Kai voltam-se para
mim. — Um pequeno preço a pagar por me ter estragado a roupa.
Mas a Rainha foi-se embora, levada por convidados tagarelas e figuras
dançantes mesmo antes das palavras lhe saírem da boca.
Reviro os olhos, incapaz de impedir que o sorriso se espalhe pelos
meus lábios.
— O teu nome é Malakai?
— Sim, também já me chamaram diabolicamente bonito, devas­‐
tadoramente poderoso e, mais recentemente, sacana convencido.
— Quem te chamou isso deve conhecer-te muito bem.
— Sim, mais do que gostaria de admitir — diz calmamente. O som dos
violinos preenche o silêncio que se estende entre nós. Finalmente pergunta-
me com calma: — Estás pronta para amanhã?
Lembro-me da mesma pergunta de Kitt no baile anterior quando
respondo:
— Tu estás?
Ele exala lentamente.
— Tenho de estar.
Há uma longa pausa.
O sorriso que lhe devolvo é triste.
— Não foi isso que te perguntei.
— Esperta — murmura baixinho, conseguindo fazer-me sorrir de
verdade. — A verdade, então?
— A verdade, sempre.
— Então, não. Não estou pronto — suspira, baixando a cabeça para
junto da minha. — Mas nós vamos ficar bem. Ficamos sempre.
Aceno com a cabeça, sem precisar que me explique o que quer dizer.
As nossas vidas têm sido uma série de provas a que tivemos de sobreviver.
Só que agora, estamos a passar por uma juntos, da qual lutaremos para sair,
tal como fizemos no passado.
Para enfatizar as suas palavras, estende a mão e toca-me na ponta do
nariz, partilhando comigo aquele seu sorriso. E em vez de o afas­tar, como
sei que devia, dou por mim a sorrir de volta.
Enquanto giramos, ficamos num silêncio confortável. O jardim está
agora banhado pelo luar, e os candeeiros estão a difundir uma luz quente
sobre os rostos que giram próximo.
Kai mergulha-me de repente, os seus dedos tocam-me na pele nua que
espreita pela racha do meu vestido antes de deslizarem pre­guiçosamente
para cima da adaga fria que repousa sobre a minha pele quente. Eu dou um
grito de surpresa e ele ri-se.
— Não te disse que as adagas não são necessárias para dançar?
Levanta-me e eu respondo sem fôlego:
— Depende de quem é o meu par.
Odeio que me faça sentir como se estivesse sempre a tentar re­cuperar o
fôlego. E o que eu odeio ainda mais é que ele sabe disso.
Odeio. Odeio. Odeio.
Forço estas palavras a enterrarem-se na minha cabeça.
Recuso-me a ficar fascinada por ele.
Deve ser capaz de ver a batalha que se trava dentro de mim, por­que
sorri.
Covinhas.
Aquelas malditas covinhas.
Estou praticamente ofegante, a tentar respirar, a tentar ignorar o rapaz
que tenho em frente. A tentar ignorar os seus sorrisos des­lumbrantes e o
passado difícil que agora conheço tão bem. O seu lado carinhoso e
encantador, as pequenas coisas que o compõem, as suas mãos que me
tocam...
Odeio. Odeio. Odeio.
Os olhos cinzentos focam-se nos meus, a preocupação refletida. —
Está tudo bem?
Não tinha reparado na rapidez com que respirava, como estava a tentar
engolir ar e a falhar miseravelmente. Kai parece subitamente sóbrio e sério,
o que só posso presumir que significa que consegue ver o pânico estampado
no meu rosto. O seu braço aperta-se ligei­ramente à minha volta, de forma
protetora.
Odeio. Odeio. Odeio.
— Pae...
Oh, porque é que não posso odiá-lo?
— O que se passa? — A sua voz é severa, atravessando a minha névoa
de histeria.
Há tantos corpos à minha volta, tão perto, tão pressionados. O ar
parece tão rarefeito, tão quente nos meus pulmões. Sinto-me tão con­finada,
tão presa. O corpo bloqueia, o coração salta, a mente ri-se de como sou
fraca.
A minha cabeça está a girar e nós também. Paro — o meu par, os meus
pensamentos, a minha respiração, tudo para comigo. Não con­sigo engolir o
pânico, não consigo engolir o ar, não consigo engolir o meu orgulho para
admitir a mim própria que algo está errado.
Acalma-te. Tu estás bem.
De repente, voltei a ser aquela rapariga pequena e indefesa. Aquela
com o pai morto e sonhos assassinados. Aquela que estava a ser es­pancada
contra um poste por roubar para sobreviver, correndo para se livrar de
memórias assombrosas. A que se enroscava numa bola, paralisada pela dor
e consumida pelo pânico. A que não conseguia estar em grandes multidões
ou pequenos espaços sem respirar ou lutar para fugir. Fraca, impotente.
Não, apenas impotente.
Acalma-te. Tu estás be...
Estou a ter um ataque de pânico.
O vestido fica abruptamente demasiado apertado, pressionando-me as
costelas, sufocando-me, forçando o ar dos meus pulmões. A multidão à
minha volta está subitamente a fazer o mesmo: a aper­tar-me, a sufocar-me,
a pressionar-me, sem se aperceber de que o jardim cheio de gente está
subitamente a petrificar-me.
— N... Não consigo respirar. — As palavras são um suspiro, e sinto-
me envergonhada por ter de o admitir a ele, a mim própria, um medo que
não me assombrava há anos. — Claustrofobia.
Mal consigo pronunciar a palavra sem fôlego, mas ele não espera que
eu me esforce para dar uma explicação para que eu seja agarrada, deixando
que conduza até a beira das árvores.
— Só mais um bocadinho. Aguenta-te — murmura, empurrando-nos
através da multidão e de volta para debaixo do salgueiro es­curo. Sinto a
casca áspera de um tronco contra as minhas costas e abro os olhos, sem me
aperceber que os tinha fechado.
Nas sombras, mal consigo distinguir Kai à minha frente, com o mesmo
olhar que tinha quando eu estava a sangrar no chão da floresta.
— Respira, Pae. Respira.
Parece que ele próprio está a lutar por ar, os seus olhos exami­nam a
minha cara enquanto os meus se movem freneticamente.
— Ei, ei, ei. Olha para mim — diz ele suavemente, mais suave do que
alguma vez o ouvi falar. E, por uma vez, eu ouço-o. Pestanejo rapidamente,
estudando o seu rosto sombrio na escuridão, tentando acalmar-me. Apesar
de, tecnicamente, ter sido ele a razão deste ata­que de pânico em primeiro
lugar. Ele fez-me entrar em pânico. Ele faz-me entrar em pânico. Deixei a
minha mente descontrolar-se e entrar numa espiral, o meu medo enraizado
de claustrofobia ape­nas desenraizado após o pânico inicial que foi causado
por ele.
Causada dos sentimentos frustrantes por ele.
Ainda estou a respirar de forma pesada, a lutar para conseguir colocar
ar suficiente nos pulmões. Ele manteve-se afastado, dando-me espaço. Mas
agora está a passar um braço à volta das minhas costas, suave e lentamente.
— O que é que tu...?
O ar entra-me nos pulmões como se tivesse estado debaixo de água
este tempo todo e só agora tivesse saído à superfície. Engulo-o, avidamente,
saboreando a sensação de voltar a respirar comple­tamente. O pânico
começa a dissolver-se, a minha mente acalma-se finalmente depois de ter
andado fora de controlo.
— Muito melhor, tenho a certeza. — Kai parece aliviado, embora o
mais leve sorriso esteja a levantar os seus lábios.
E é então que o sinto. O meu vestido está diferente.
Olho para baixo e quase ofego ao ver o tecido aberto que outrora me
esticava o peito. A cintura está solta, já não está apertada para se ajustar à
minha figura.
O vestido está quase a cair-me.
Agarro na parte de cima do vestido sem mangas e puxo-o, especando-
o.
— Em que é que estavas a pensar...?
— Estava a pensar — Kai enfia as mãos nos bolsos, a imagem per­feita
da despreocupação —, que tu não conseguias respirar. E por muito que
goste desse vestido, achei que ficarias igualmente bem com os laços
desapertados. — Ele baixa a cabeça e sorri para si próprio, aparentemente
divertido com isto. — Para que possas respirar, claro.
Ele pisca o olho. Ele pisca-me o olho. Estou a fumegar.
— Eu vou...
— Agradecer-me? — interrompe, puxando os punhos do casaco. Os
meus olhos já se adaptaram à luz fraca e não me surpreende ver o
divertimento refletido nos seus quando encontra o meu olhar. Não há
vestígios do homem preocupado de há momentos.
Tenho uma mão a segurar a parte de cima do vestido enquanto a outra
segura as duas peças das costas, uma vez que, graças ao Kai, os laços já não
estão a fazer o seu trabalho.
— Se eu tivesse uma mão livre neste momento — digo entre den­tes
cerrados — ias encontrar-te com a minha adaga.
— Fico contente por ver que te sentes suficientemente bem para me
ameaçares de novo. — Inclina a cabeça, lançando-me um olhar avaliador.
Ele tem razão. Devia agradecer-lhe. Não me tinha apercebido de como
o vestido era apertado até o pânico me ter feito ofegar por ar. Não me tinha
apercebido de que o simples facto de poder respirar fundo de novo me
desanuviava a cabeça mais do que alguma vez pensei ser possível.
Desamarrar os laços foi brilhante. Mas não estou disposta a dizer-lho.
Distração.
A palavra ecoa na minha cabeça, e começo a pensar se é isso que Kai
está a fazer. De novo. Usando a brincadeira como um amorte­cedor.
Desviando a minha atenção do meu pânico e colocando-a sobre ele. Usando
a minha raiva e aborrecimento para distrair, des­viar. Mas já não é o seu
cálculo que me choca, é o seu cuidado. É o facto de ele perceber
exatamente o que eu preciso.
— Pae — Agora está mais perto de mim, com toda a diversão apa­gada
do rosto. — Tu estás bem? Mesmo?
— Sim, obrigada. — Os seus lábios contorcem-se. — Não por me
despires, — suspiro, — mas por... me ajudares.
Ele encolhe os ombros.
— A mesma coisa.
Reviro os olhos enquanto a minha mão brinca com os laços do meu
vestido, apesar de saber que não os vou conseguir atar.
— Podes... — suspiro, irritada por ter de lhe pedir isto. — Podes voltar
a atar os laços por mim?
Estuda-me durante um longo momento.
— Devias dar a noite por concluída. Descansar um pouco.
— Bem, então vou ter de voltar para o meu quarto sem que este
Vestido me caia.
Os seus lábios contorcem-se, e eu conheço-o suficientemente bem para
saber que, provavelmente, está a conter-se para não dizer algo
extremamente inapropriado em resposta. Mas quando dá um passo na
minha direção, diz apenas:
— É justo.
— Não precisa de ser apertado — digo, virando-me lentamente para a
árvore. — Mas preciso que fique no sítio.
Mal ouço ele colocar-se atrás e já sinto os seus dedos nas minhas
costas nuas enquanto aperta os laços.
Puxa-os suavemente, como se estivesse quase inseguro de si pró­prio.
Dá-me vontade de rir. A ação parece demasiado tímida para pertencer
àquele príncipe.
— Tenho de admitir que sou muito melhor a desapertar laços do que a
fazê-los — diz distraidamente.
Solto um suspiro fundo.
— Claro que sim.
O seu riso calmo agita-me o cabelo e eu fico quieta. Ele puxa os laços
uma última vez antes de os atar rapidamente, os seus calos a passearem pela
minha pele.
Reprimo um arrepio e viro-me para ele, alisando a saia do ves­tido.
Aquele olhar cinzento desliza pelo meu corpo antes de encon­trar os meus
olhos, a sua voz áspera decide falar:
— Não estás a sufocar?
— Não — rio-me —, estou a respirar muito bem. Obrigada.
Saio debaixo da cobertura dos ramos caídos do salgueiro com Kai ao
meu lado.
— Eu acompanho-te ao teu quarto — diz ele.
— Não precisas de fazer isso.
— Tens razão. Não preciso. — Passa-me o braço pelo seu, en­quanto
começamos a caminhar pelo jardim cheio de gente em dire­ção ao castelo.
— Mas eu quero.
Baixei a cabeça e sorri.
— Podia habituar-me a que tu fosses um cavalheiro, Azer.
Fica calado durante tanto tempo que penso estar a conseguir dar
resposta. Mas quando responde, ouço o sorriso na sua voz:
— E eu poderia habituar-me a ser um. Mas só por ti, Gray.
— Tu és terrível neste jogo.
Kitt responde com uma gargalhada alta que só é cortada quando ele
leva o frasco aos lábios e bebe um gole. Depois de engolir, ele gagueja.
— O jogo é beber cada vez que o Jax pisa os pés da Andy. Como é que
posso ser péssimo nisto?
Observo as bochechas coradas e o cabelo desalinhado do meu irmão,
sabendo que provavelmente tenho o mesmo aspeto. Há quase uma hora que
estamos sentados na relva a ver os convidados a girar sobre os tapetes
coloridos debaixo de um céu estrelado. A casca ás­pera da árvore a que me
estou a encostar toca-me nas costas, agora que me desfiz do meu casaco, e
vestindo apenas a minha camisa manchada.
Kitt lança-me um olhar, ainda pacientemente à espera de uma resposta
à sua pergunta. E eu não hesito em dar-lhe uma.
— Tu és péssimo nisto porque estás sempre a entornar a bebida.
Estamos ambos a rir quando Kitt limpa o uísque que lhe escorre pelo
queixo. Parece que ainda não ultrapassámos a nossa tradição de beber
durante estes bailes, e fico contente por ver que há coisas que nunca
mudam.
— Espera... — Kitt murmura, com os olhos postos em Andy e Jax a
dançar com os outros casais. Jax tropeça e as suas longas pernas ficam
entrelaçadas nos degraus antes do seu pé aterrar em cima do de Andy. — E
aí está. Ele nunca desilude.
— Saúde — inspiro, pegando no frasco e bebendo um gole que me
queima a garganta.
Kitt observa-me.
— Tens a certeza de que deves continuar a beber? Afinal tens uma
Prova amanhã.
— Tem um pouco de fé no teu Executor, irmão. Já enfrentei coi­sas
piores do que uma ressaca.
Quando não responde, sigo o seu olhar e encontro-o fixado no Pai e na
Mãe que se balançam lentamente.
— Nunca o vi tão feliz... — diz Kitt calmamente. Eu aceno em
concordância, vendo o Rei a sorrir para a sua Rainha de uma forma
destinada exclusivamente a ela. Nunca deixa de lhe dar o afeto que nunca
nos deu a nós. A mim.
Com esse pensamento em mente, estou a beber outro gole.
— Talvez quando a Resistência for aniquilada, ele seja um homem
mais feliz.
Kitt acrescenta com um encolher de ombros desleixado:
— Por falar nisso — desvia os olhos dos dançarinos para me fitar —,
conseguiste obter alguma informação do Silenciador?
— Matei-o — digo com um encolher de ombros igualmente
desleixado.
Não se sente minimamente incomodado com isso.
— Então, isso é um não?
Suspiro.
— Sim, é um não.
— Hmm — Kitt franze o sobrolho. — E quanto à Vulgar perto de Loot
que foste enviado para encontrar? Conseguiste alguma infor­mação nessa
altura?
O rosto da menina aparece-me na mente, o seu cabelo ruivo bri­lha
como o fogo dos seus olhos.
— A Vulgar era uma criança. Duvido que saiba alguma coisa sobre a
Resistência.
Ficamos em silêncio por um momento antes do Kitt limpar a voz.
— Quão nova?
— Demasiado nova.
Acena lentamente com a cabeça.
— Então, não foste para a frente com isso?
Fico ligeiramente tenso. Kitt e eu nunca falamos sobre este as­sunto.
Nunca falamos sobre a altura em que me encontrou nos es­tábulos, coberto
de sangue e a vomitar, depois de uma das minhas primeiras missões na
cidade para matar um Vulgar. Eu era um rapaz, tinha apenas catorze anos
quando tirei a vida a uma criança não muito mais nova do que eu. E jurei
nunca mais fazê-lo.
O Rei enviou-me em inúmeras missões desde então, todas como parte
do meu treino. Kitt pode ser aquele que está preso no palácio, mas eu nunca
saboreei a liberdade por matar. Nunca tive escolha. Por isso, obtenho o
único sinal de sanidade que posso, banindo as crianças Vulgares com as
suas famílias.
Mesmo que ainda os esteja a condenar à morte.
— Não, não fui para a frente com isso — respondo lentamente,
confiando ao meu irmão o peso dessas palavras. Foram precisos anos a
juntar peças até que, numa noite, foi ao meu quarto beber, confrontando-me
quando eu já não conseguia ver ou pensar direito.
A destruição é o meu dever, e o Rei deixou-me entorpecido para matar.
Mas pelas crianças, forço-me a sentir.
Até os monstros podem ter moral.
Eu suspiro, levando o frasco aos meus lábios.
— Não estou suficientemente bêbedo para falar sobre isto agora.
— Nem eu — Kitt arranca o frasco da minha mão com um sor­riso,
antes de ver a mancha na minha camisa, como se a visse pela primeira vez.
— Que raio é que te aconteceu?
— Paedyn — Suspiro de novo. — A Paedyn aconteceu.
Kitt ri-se, mas o som é tenso.
— Ela é de facto... qualquer coisa.
— Tens o dom das palavras, Kitty.
Ele abana a cabeça e passa uma mão pelo rosto.
— Nem sequer tenho palavras para a descrever, mas, Pestes, ela nunca
cessa de me impressionar.
Os meus ombros ficam tensos, mas forço-me a parecer descon­traído.
— A sério?
Ele solta uma gargalhada.
— Sim. É a única pessoa que não me diz o que eu quero ouvir, que não
tem medo de dizer o que pensa. E com bastante frequência, devo
acrescentar.
— Queres que eu te chame à razão mais vezes, irmão? — per­gunto-lhe
casualmente. — É isso que estou a perceber?
Ele dá-me um empurrão preguiçoso, ignorando o meu comentário. —
Ela tem um fogo. Até me chamou idiota no outro dia.
Os meus lábios contorcem-se apesar da tensão que me percorre.
— Parece-me bem.
— É estranho — diz ele em voz baixa, os seus olhos a examinar o
jardim cheio de gente. — Não a conheço há muito tempo e, no entanto, dou
por mim a querer conhecê-la por muito mais tempo.
O silêncio estende-se entre nós, com as suas palavras a pairem no ar.
— Talvez me tenha enganado — digo-lhe com rigidez. — Talvez
tenhas mesmo o dom das palavras.
Vira-se para mim com um sorriso torto.
— O que pensas dela?
Os meus olhos caem para a mancha na minha camisa. Cheira-me a
vinho e a uísque e a um ligeiro travo a lavanda que pertence a Paedyn. E a
forma como ela se agarrou a mim esta noite, o seu doce aroma infiltrou-se
na minha roupa para me distrair.
O que é que eu penso dela?
Quando é que não penso nela?
Pego no frasco que está nos dedos de Kitt e repito as mesmas palavras
que disse antes.
— Não estou suficientemente bêbedo para falar sobre isto agora.
Mentiras.
Mesmo sóbrio, ela põe-me a cabeça a andar à roda. Não preciso de
estar bêbedo para admitir o que ela me faz, como me faz sentir.
O balançar das saias e a conversa animada fazem-me olhar para cima.
Vejo como os convidados começam a sair dos jardins e a di­rigir-se para os
campos de treino. Lanço a Kitt um olhar confuso, ao qual ele responde.
— Não faço ideia.
Levantamo-nos, com os pés ligeiramente instáveis, e seguimos a
multidão. Antes mesmo de chegarmos ao pátio de treinos ilumi­nado por
tochas, avisto plataformas elevadas à volta de um grande ringue de terra
batida onde os convidados começam a sentar-se.
Tealah vai para o meio do ringue, acenando e sorrindo para os
convidados que a rodeiam.
— Isto é tão divertido! Não só temos um baile, como também temos
uma rixa!
Não estava a planear lutar esta noite.
O público aplaude e aplaude enquanto olha em redor, provavel­mente à
procura dos concorrentes. E eu estou a fazer o mesmo. Não há sinal das
raparigas, apenas Jax, Braxton e Ace no lado oposto.
Passo a mão pelo cabelo, subitamente tonto por causa do álcool e de
todos os poderes que me cercam. O frasco está suado na minha mão e
começo a desejar não ter bebido tanto, mesmo quando penso em beber o
resto. Quando me dirijo para junto dos concorrentes, uma mão agarra-me o
braço.
— Kai — viro-me para encontrar os olhos de Kitt fixos em mim. —
No caso de não te ver antes...
— Eu sei — digo, sem precisar de ouvir as três palavras para saber que
ele as quer dizer. — Eu sei.
— Tem cuidado — diz ele com um sorriso. — E não te atrevas a
morrer.
— Não te preocupes. Não te vais conseguir livrar de mim tão fa­‐
cilmente, Kitty.
— Porque é que demoras tanto tempo? Sabes, às vezes és mesmo uma
princesa. — O resmungo de Lenny é abafado pela porta que o separa do
meu quarto enquanto arranco o meu vestido.
— Acalma-te — murmuro de volta. — Estou a tentar não rasgar o
vestido.
— Sim. Isso é algo que uma princesa diria.
Reviro os olhos e visto as minhas calças de treino justas, combi­nando-
as com uma camisa de algodão larga.
— Bem, será que uma princesa iria entrar numa luta para entre­ter os
convidados de um baile?
Calço as botas e as minhas mãos sentem a tentação de pegar na minha
adaga e enfiá-la numa delas. Mas quando Lenny bateu à porta para me
informar que eu precisava de ir para o pátio lutar numa rixa, também se
certificou de mencionar que armas externas eram proibi­das. Solto um
lamento ao ver a minha adaga de prata, a desejar poder tê-la comigo só para
me sentir confortável.
Quando abro a porta, Lenny quase que cai por se apoiar nela com
força. Eu suspiro e ele devolve-me um sorriso sarcástico antes de co­‐
meçarmos a andar a passo rápido pelo corredor.
— Isto é normal? — pergunto-lhe num sussurro abafado, apro­‐
ximando-me, para que nenhum dos outros Imperiais possa ouvir. —
Obrigar-nos a lutar num baile? E mesmo antes de uma Prova?
Ele lança-me um olhar, e mesmo com a máscara branca a ocul­tar
metade do rosto, vejo-lhe a preocupação. As emoções de Lenny estão
sempre à vista, sempre escritas nas suas feições.
— Nada nas Provas deste ano é normal.
Aceno com a cabeça quando dobramos a esquina e nos dirigi­mos para
o campo de treinos. As plataformas que se erguem à volta do ringue de terra
batida estão cheias de convidados elegantemente vestidos de verde e preto,
destoando do pátio lamacento. Tochas ro­deiam o ringue, lançando sombras
sinistras sobre os rostos excita­dos da multidão.
— Já obtiveste alguma informação do teu Príncipe? Talvez sobre um
certo túnel? — Lenny pergunta-me calmamente.
Inspiro e lanço-lhe um olhar.
— A resposta continua igual à mesma que te dei há umas horas. Não.
Ele abre um sorriso, mas este desaparece rapidamente quando nos
aproximamos do ringue e da multidão que o rodeia. Os meus olhos
percorrem a cena, reparando em Tealah no centro e na multi­dão atenta.
— Uma vez que não podem assistir às Provas em primeira mão, como
é habitual, temos uma surpresa especial esta noite! — A multi­dão bate
palmas enquanto Tealah continua, — Os concorrentes serão selecionados
aleatoriamente para lutar, e o resultado pode ajudar-vos a decidir em quem
votar!
O meu coração para.
Não só vou perder isto, como também vou perder os seus votos.
Procuro na multidão os meus colegas concorrentes, vendo-os do outro
lado do ringue. Parece que só as raparigas foram autorizadas a mudar de
roupa enquanto os rapazes continuam a usar as suas calças e camisas
formais.
Os meus olhos vagueiam por uma Andy que se estica ao lado de uma
Blair tensa. Ao lado deles, Jax e Braxton falam baixinho en­quanto este
último começa a arregaçar as mangas para revelar uns braços enormes. Ace
está mais afastado, contente e convencido, en­quanto observa a multidão.
E depois os meus olhos param nele, percorrendo as suas calças
arregaçadas e a camisa, agora transparente, colada ao corpo. Ele des­pejou
água sobre si próprio num esforço para ficar sóbrio, e um leve sorriso toma-
me conta dos lábios ao vê-lo sacudir o cabelo molhado.
Quando Tealah chama pelo seu nome, Kai levanta a cabeça e en­contra
os olhos do seu adversário. Braxton olha para o príncipe por um momento
antes de lhe fazer um aceno de cabeça e entrar no rin­gue. Com as batidas
frenéticas do meu coração, os rapazes começam a lutar.
Não é surpresa que Kai esteja mais desleixado do que o normal, o que
é de esperar, uma vez que não está propriamente sóbrio. Mas mesmo com a
sua desvantagem, os anos de treino fazem-no ser rá­pido e entrar num ritmo
familiar. O combate é feroz, cativando o público com cada murro e desvio.
Só quando Kai mal consegue imo­bilizar Braxton no chão durante alguns
segundos é que a multidão entra em erupção. Os Imperiais separam-nos
rapidamente antes que possam causar mais danos.
Os nomes de Andy e Ace são chamados a seguir, e o seu combate é
rápido. Ao entrar no ringue, Andy transforma-se num lobo com um elegante
casaco cor de vinho. Ela rosna quando Ace usa o seu truque típico de rodear
os adversários com ilusões idênticas de si próprio. Mas com Andy na sua
forma animal, consegue apurar o cheiro do verdadeiro Ace, atacando antes
que ele possa reagir. Atira-o ao chão e crava-lhe as garras no peito, num
estado mais animal que humano.
— A seguir, Blair Archer e... — Tealah folheia o cartão antes de dizer:
— Paedyn Gray!
Deixo escapar um suspiro trémulo enquanto o meu coração bate contra
a caixa torácica.
Tinha de ser ela.
Dirijo-me para o ringue, pronta para enfrentar o meu destino, quando
dedos ásperos me envolvem o pulso e me puxam para trás. A minha trança
cai sobre o meu ombro e quase me acerta na cara quando me viro para ver
Kai. Mal me apercebo dos cortes san­grentos e das nódoas negras que
começam a aparecer no seu rosto quando me puxa contra si.
Para qualquer outra pessoa, é provável que pareça que tropecei no
Príncipe.
Ele baixa a cabeça de modo que os seus lábios toquem na minha
orelha, enquanto começa a falar num tom abafado e apressado:
— Fica atenta e continua a mexer-te. Tu és mais forte do que ela, por
isso usa a cabeça e usa tudo o que puderes. Ela é fraca fisicamente, mas tu
não, tira partido disso. — Depois inclina-se para trás o sufi­ciente para que
eu possa olhar para aqueles olhos cinzentos enquanto murmura: — Distraia-
a. Tu és boa nisso.
E depois os seus dedos encontram o fundo da minha trança, dando-lhe
um ligeiro puxão antes de me piscar o olho rapidamente e afastar-se.
Pestanejo, tentando desanuviar a cabeça enquanto me viro e entro no
ringue.
Os meus olhos percorrem a multidão, parando apenas quando
encontram os do Rei, sentado numa cadeira de madeira esculpida ao lado da
sua Rainha. Acho que não imagino a satisfação presunçosa que lhe passa
pelo rosto, fazendo-me pensar até que ponto estes pares são realmente
aleatórios. Não me surpreenderia minimamente se isto fosse obra do Rei,
que quer ver a Blair a despedaçar-me tanto quanto as pessoas que me
observam.
O sorriso de Kitt não podia ser mais diferente do que o do seu Pai.
Acena-me com a cabeça, encorajando-me com um pequeno gesto. Um
vislumbre lilás chama a minha atenção para o ringue e para a adversária que
tenho diante de mim. Tem o cabelo preso numa fita, balançando para trás e
para a frente enquanto avança.
No momento em que os seus pés encontram a terra, o jogo começa.
Uma faca passa-me por cima da cabeça no momento em que caio no
chão. Ouço uma gargalhada cínica a sair da sua garganta en­quanto um
machado voa pelo ar na minha direção. Está a atirar-me com armas das
prateleiras que rodeiam o ringue e, embora não tenha a certeza de que isso
seja permitido, não tenho tempo para pensar.
Atiro-me para o lado quando uma faca pequena e afiada cor­tando o ar,
traça caminho pela minha pele. Uma dor quente e abra­sadora atravessa-me
a maçã do rosto, provocada pela lâmina.
— As tuas habilidades de Psíquica não te avisaram que isto ia na tua
direção? — zomba, continuando a atirar-me com as armas espa­lhadas.
Consigo distinguir vagamente os gritos vindos da multidão em redor através
do sangue que me lateja nos ouvidos.
A única coisa que consegui neste combate até agora foi cansar-me. É
óbvio que não quer que o combate acabe tão cedo, senão estrangulava-me e
acabava com isto. Não, primeiro quer divertir-se comigo, quer mostrar ao
público do que é capaz.
Não posso ficar defensiva durante muito mais tempo, mas tam­bém não
quero acabar como uma almofada de alfinetes, agulhada com facas.
Aqui vou eu.
Ataco-a. Mas em vez de a atacar de frente, faço um ziguezague. Os
seus olhos arregalam-se um pouco, claramente não estavam à espera disto,
mas recupera depressa e continua a atirar-me armas, ramos e pedras.
Se conseguir atingi-la...
Não é uma lutadora, e sabe-o bem. É por isso que se esconde atrás do
seu poder, como a maioria dos Elites. Este combate já teria terminado se
não fosse pela sua habilidade.
Apesar de todos os meus ziguezagues, ela continua a empurrar-me
para a extremidade do ringue. Não consigo ganhar terreno com ela a atirar
objetos afiados e a obrigar-me a desviar-me deles.
Uma pedra bate-me no ombro, com força. Pensa. Pensa.
Blair para o seu ataque de objetos afiados apenas para me levan­tar do
chão com um movimento do seu pulso. Grito enquanto pairo a um metro
acima da terra batida.
E depois deixa-me cair.
Bato no chão com um estrondo. O ar sai-me dos pulmões, dei­xando-
me sem fôlego. Uma nuvem de poeira levanta-se do local onde me encontro
espalmada no chão, engasgando-me com o ar húmido.
Levanta-te.
Dói-me tudo, mas eu ponho-me de pé enquanto a Blair parece
ligeiramente surpreendida pela minha reação.
Distraia-a.
As palavras de Kai soam na minha cabeça, seguidas de uma ideia.
Apanho uma pedra do chão, aquela que me acertou no ombro, e
agarro-a com força. Ela voltou a atirar-me objetos e, enquanto me esquivo,
baixo e rolo, os meus dedos encontram uma faca no ringue, juntamente com
outras armas.
Num movimento rápido, puxo o braço para trás e atiro-lhe a faca à
cara, logo seguida da pedra. Ela para e, preguiçosamente, le­vanta as mãos
para parar a lâmina e a pedra antes que estas a atin­jam, divertida por isto ser
o melhor que consigo fazer.
Pelo menos é o que pensa.
Com toda a sua atenção focada em parar os objetos no ar, não perco
tempo. Agarro-a pelo tronco e caímos na terra. Com um sopro, o ar é-lhe
retirado dos pulmões, dando-me uns segundos antes de cair em cima dela.
Mas isso é tudo o que preciso.
Nunca se tratou de ganhar — tratou-se de marcar uma posição.
Provando a mim própria, e a todos os que estão a ver, que ainda sou
uma ameaça. Quer tenha um poder como o deles ou não, vou encontrar uma
forma de os magoar.
Dou-lhe um murro, fazendo-a virar a cabeça para o lado. Pro­‐
vavelmente não está familiarizada com a dor que acompanha um murro,
não está familiarizada com pessoas que se aproximam tanto para tentar.
Está atordoada. Dou-lhe outro murro sólido no seu pe­queno e perfeito nariz,
e vejo o sangue a jorrar. Levanto o punho uma outra vez...
Mas finalmente ganhou juízo.
Com um grito, atira-me ao ar como se fosse uma boneca de tra­pos.
Choco contra o chão duro e dou por mim, mais uma vez, a olhar para o céu
estrelado, a implorar por ar.
Ouço-a gritar de frustração, provavelmente a esfregar o maxilar dorido
e a agarrar o nariz ensanguentado. O som das botas a afas­tarem-se com
raiva diz-me que está a correr para um Curandeiro, recusando-se a ser vista
com ferimentos no rosto. Especialmente quando fui eu que lhos infligi. Não
se atreveria a ser vista com uma ferida causada por uma Miserável.
Ouço gritos, aplausos e conversas confusas que se espalham pelo
público. Um sorriso tece-me os lábios e, quando dou por mim, estou a
tremer de riso. Não consigo evitar que saia de dentro de mim enquanto me
deito na terra.
Posso ter perdido o jogo, mas Blair perdeu o orgulho.
Acordei no cimo de uma montanha.
Montanha Plummet.
Só sei isto porque já estive aqui com o Pai, a superar medos e coisas
do género.
Mas não estou sozinho.
Andy geme ao meu lado, abrindo os olhos antes de se pôr de pé, com a
cabeça a girar enquanto examina o que a rodeia, tal como eu tinha feito há
alguns minutos.
Sinto a cabeça a latejar. Entre todo o álcool, as lutas de ontem à noite e
a droga que me deixou inconsciente para ser arrastado até aqui, já me senti
melhor no campo de batalha. Mas ao chegar a Plummet, a primeira coisa
que notei foi um rabisco na minha mão. A minha caligrafia inclinada e
apressada está espalhada pela minha palma, transmitindo uma mensagem
muito importante:
Ela disse que eu podia tocar-lhe quando estivesse sóbrio.
Estou chocado com o facto de não me lembrar de ter escrito isto, tendo
em conta o quão vividamente me lembro do resto da noite passada. Paedyn
pressionada contra mim, a nossa conversa, o seu pânico antes de eu
desfazer os laços do seu vestido. Os meus lábios contorcem-se ao pensar
nisso antes de reprimir um sorriso quando me lembro de como ela prendeu
Blair durante a luta e a fez sangrar.
— Pestes, o que é que se passa?
Braxton já se levantou, pestanejando ao sol da tarde. O cabelo lilás de
Blair brilha atrás dele enquanto ela se senta, parecendo igual­mente confusa
e tensa. Olhamos um para o outro, lembrando-nos de como lutámos
brutalmente ontem à noite e de como fomos sepa­rados antes de podermos
terminar.
Tiro o bilhete amarrotado do bolso e atiro-o para a terra à nossa frente.
— Deixaram-nos com isto.
Ouço Blair a gozar enquanto pega no pergaminho e o lê em voz alta,
com um tom aborrecido:

— Só podem estar a brincar comigo — resmunga Andy ao meu lado,


passando as mãos pela cara suja.
— Desculpa — diz Blair —, é suposto trabalharmos juntos?
O Pai está a divertir-se connosco.
Pôs-nos a lutar uns contra os outros ontem à noite para alimen­tar a
tensão entre os concorrentes e deixar-nos com vontade de nos destruirmos.
Fomos obrigados a passar por várias rondas de com­bates contra adversários
aleatórios, que se prolongaram pela noite dentro e só contribuíram para
aumentar o cansaço. E agora, somos obrigados a trabalhar lado a lado
enquanto lutamos contra a von­tade de acabar o que começámos ontem à
noite.
Ponho-me de pé, com a cabeça a latejar, enquanto olho para o céu. O
sol diz-me que estamos praticamente a meio da tarde, o que significa que
vamos subir durante a noite.
Fascinante.
— Estamos a perder a luz do dia — digo com um suspiro. — Vamos
pôr-nos a mexer.
Depois, estamos a escalar, confusos com esta prova e com a forma
como se espera que trabalhemos em conjunto. Plummet não é uma
montanha enorme, mas é no mínimo intimidante. Por enquanto, estamos a
caminhar através da espessa barreira de árvores e ter­reno rochoso. Quando
chegarmos a um ponto mais alto, as árvo­res irão diminuir, substituídas por
rochas mais íngremes e encostas escorregadias. Para além do seu terreno
mortal, Plummet é também o lar de animais ainda mais mortíferos. Vamos
escalar durante doze horas seguidas, sem comida, sem água, sem armas e
sem confiança uns nos outros.
Vejo as Visões pelo canto do olho, rápidas e silenciosas ao nosso lado,
enquanto documentam o nosso progresso. Devem estar aqui uma dúzia
delas ao longo da encosta da montanha, trocando entre si, à espera de
capturar as melhores imagens.
Blair e o Braxton estão ferozes, escalando nas proximidades. Olhando-
se mutuamente com igual dose de desconfiança, enquanto Andy se mantém
ao meu lado, assegurando-me de onde está a sua lealdade. Ela tornou-se a
minha única fonte de entretenimento, as suas divagações fazem-me
esquecer a montanha que se aproxima. Ouço-a queixar-se de como já se
teria transformado num falcão e nos teria deixado a todos a comer poeira se
não fosse por a termos condicionado ao trabalho de equipa.
— Muito bem — anuncia um pouco sem fôlego depois de já ter su­bido
durante quase duas horas —, eu consigo ver...
— Oh, Pestes, faz com que isto pare — queixa-se Blair, apanhando
uma pinha com a mente e atirando-a a Andy. — Tu estás a ver coisas há
quase uma hora, apesar de seres a única a vê-las. Estou tentada a esquecer
esta coisa do trabalho de equipa e a arrancar-te a cabeça.
Ela está praticamente a rosnar enquanto Andy está a sorrir.
— Sabes — diz Andy com um sorriso presunçoso, — Tu não mu­daste
nada, Blair.
Ela encolhe os ombros.
— Uma vez cabra, cabra para sempre, suponho.
Com isso, Blair levanta um exército de pinhas do chão, numa ameaça
silenciosa.
— Eu, se fosse a si, calava-me. Ou podes acabar por encontrar uma
pinha alojada na garganta...
— Tu só estás a provar o meu ponto de vista — silva Andy.
Blair substituiu as pinhas por uma das muitas pedras gigantes que se
encontram no chão. Atira-as na direção de Andy e, inevitavel­mente, na
minha. Com o movimento de uma mão e o empréstimo da habilidade de
Blair, a pedra muda de direção, afastando-se de nós e embatendo numa
árvore próxima.
— Já chega, meninas. — O meu tom é aborrecido, retratando o meu
estado de espírito atual. — Preferia não estar no meio disto.
Braxton grunhe, concordando comigo, e nós ficamos em silên­cio
enquanto continuamos a subir. O sol arrasta-se pelo céu a um ritmo lento, a
bater-nos até o suor me escorrer pela cara e a garganta suplicar por água.
Depois, um grito quebra o silêncio.
Viro-me para encontrar Andy a agarrar-se à barriga da perna, com os
olhos colados no chão.
— Kai! —A sua voz é pouco mais do que um sussurro. — Não. Te.
Mexas.
Sigo o seu olhar até onde dezenas de olhos negros e redondos me
miram, com línguas bifurcadas em movimento. Cobras. Enormes e
esfomeadas. Nem consigo perceber quantas são, com todos os ar­bustos e
pedras espalhados pelo chão, mas sei que são suficientes para me preocupar.
Blair reprime um grito quando vê as criaturas rastejantes que nos
rodeiam, enquanto Braxton pragueja sob o seu fôlego.
— Muito bem — digo lentamente, sem tirar os olhos do chão. — Blair,
eu e tu temos de tomar conta disto.
Ela olha para mim, o seu comportamento frio e congelado com o
medo.
— O que é que fazemos? — sussurra com dureza, tentando esconder o
horror. Eu respiro fundo, sem saber se tenho uma resposta para lhe dar. A
cobra mais próxima de mim está a aproximar-se e eu olho para ela, com a
mente a divagar.
— Eu trato das cobras aqui — aceno com a cabeça para Andy, levan­‐
tando-me —, e tu tratas das tuas ali.
— Trato? — sibila, parecendo uma das cobras que nos rodeiam.
— Sim. Tratas. — Eu suspiro. — Não é um grande plano, mas trata...
delas. Atira-as.
— Atiro-as?
— Estás pronta? — pergunto-lhe, ignorando a sua pergunta. Ela res­‐
munga qualquer coisa, e eu interpreto isso como um sim.
— Ótimo. — Faço uma pausa. — Agora.
Estendo a mão ao poder da Blair em direção às cobras que se ar­rastam
aos nossos pés. Levanto três dos seus corpos maciços do chão e mando-as
para longe da montanha. Ouço um coro de assobios e avisto mais duas antes
de as deixar voar pelo ar seguindo as amigas.
Há dezenas delas. Blair e eu estamos a mandar cobras por todos os
lados, enquanto nos esquivamos numa dança, quando elas se apro­ximam
demasiado. Ouço um grito vindo de Andy e viro-me para ver uma cobra
lançar-se na sua direção, com a boca escancarada e as presas prontas a
afundar-se na carne. Suspendo-a no ar antes que possa dar outra dentada na
perna de Andy.
Depois de se ter finalmente levantado e afastado do ninho de cobras,
Andy cambaleia até mim.
— Foste mordida. — Não é uma pergunta. — Deixa-me ver.
A sua cara está pálida quando tira a mão da perna, revelando duas
feridas profundas, com sangue a escorrer-lhe até aos sapatos.
Afasto uma madeixa de cabelo ruivo da sua testa suada, pers­crutando
os seus olhos.
— Como te sentes?
— Bem. — engasga-se com uma gargalhada. — O meu orgulho parece
estar mais magoado do que eu. Eu nem sequer vi a cobra a aproximar-se. E
depois apareceram as outras e... desculpa.
Ela perde o fio à meada, concentrando-se no sol que começa agora a
esconder-se atrás da montanha.
— Ei, nenhum de nós as viu, OK? — Mas preciso que me digas como
te sentes.
Pestes, por favor, que não sejam venenosas.
— Sinto-me bem. Dói-me imenso, mas estou bem.
Para já.
As palavras não ditas pairam no ar entre nós.
Espero que o nosso único problema seja a dor que ela está a sen­tir e
nada mais. Espero não perder mais uma das poucas pessoas de quem
verdadeiramente gosto.
— Consegues andar? — pergunto-lhe.
Ela dá um passo, com a cara contraída pela dor.
— Sim, estou bem.
— Tretas — murmuro antes de me agachar à sua frente. — Anda cá.
Sobe para as minhas costas.
Lanço-lhe um pequeno sorriso por cima do ombro.
— Como nos velhos tempos.
Ela ri-se.
— A sério, eu estou bem...
— Bem, é óbvio que não estás — interrompe a voz agitada de Blair.
— Por isso, sobe para as costas dele para podermos avançar.
Ela começa a subir, murmurando algo que se parece com...
— Pestes, odeio trabalhar em equipa.
— E que tal se me transformar num animal pequeno para ser mais fácil
de transportar? — pergunta Andy. — Só não sei se conseguiria manter esse
estado durante muito tempo...
— Poupa a tua energia. Vá lá. Sobe. — Eu ajudo-a a pôr-se nas mi­nhas
costas, agarrando a parte de trás dos seus joelhos enquanto ela agarra os
meus ombros. Ela é alta e esguia, o seu peso quase não me incomoda.
Para já.
E depois estamos a subir novamente.
Há uma pedra no meu sapato. A mesma que tem estado lá na última
meia hora, mas as minhas mãos estão demasiado ocupadas a impedir-me
que caia para a morte para fazer algo a esse respeito.
Estamos a subir há horas. Agora há muito menos árvores, dando lugar
a encostas íngremes cobertas de plantas escorregadias. As mi­nhas mãos
agarram-se a grandes pedras enquanto recupero o fô­lego e olho para o
nosso destino.
O pico.
Apesar de estarmos sempre a subir, ainda está muito acima de nós. Jax
está ao meu lado, ofegando tanto quanto eu.
— Acho que estamos fora de forma — digo sem fôlego.
Ele esboça um sorriso antes de dizer.
— Achas que sim?
Solto uma gargalhada enquanto forço os meus pés a mexerem-se
novamente. As minhas pernas estão trémulas, cansadas de escalar sem parar
há horas, sem comida e sem água para nos ajudar. Es­tendo a mão a Jax,
ajudando-o a passar por um pedaço de rocha particularmente íngreme,
retribuindo um favor que ele já fez por mim várias vezes.
— Que giro.
Jax e eu ficamos tensos ao ouvir aquela voz, que pertence a uma
pessoa que já tentou matar-nos aos dois. Suspiro, forçando-me a re­primir a
onda de raiva que se acende dentro de mim.
Ace sopra dramaticamente enquanto continua a trepar por perto.
— Bem, isto é estranho. Nós os três a formarmos uma equipa.
Não é estranho — é intencional.
Tudo o que o Rei faz é deliberado. Deturpado. E esta Prova não é
exceção. Os combates, as equipas e a tensão entre os concorrentes, tudo é
calculado.
— O quê? Vais ignorar-me até chegarmos ao topo? — Ace provoca.
Estou grato pelo Jax ser o outro Elite com quem estou, por isso não
tenho de lutar contra a vontade de matar ambos os meus colegas de equipa.
No entanto, isso pode ser uma coisa má, tendo em conta que provavelmente
confio demasiado em Jax. Mas ignoro o pensamento, tal como o rapaz atrás
de mim, continuando a subir com cuidado.
— Pelo menos... — As palavras de Ace fazem-se ouvir antes dele
gritar. — Paedyn! Cuidado!
Viro-me para o encarar e, em vez disso, vejo a serpente gigante a
deslizar à volta dos meus tornozelos. Um grito sufocante sai-me da garganta
antes de o conseguir parar e cambaleio. O meu tornozelo prende-se numa
rocha e tropeço, caindo para trás. A última coisa que vejo antes de estar
prestes a cair pela montanha abaixo e, pro­vavelmente, para a minha morte,
é a serpente a espalhar-se pelas sombras quando o meu pé lhe toca.
Ilusão.
Mas é demasiado tarde. O meu corpo está em queda e eu vou rebolar
pela encosta abaixo sem ter forma de parar.
Que maneira patética de morrer.
De repente, sinto umas mãos nas costas, empurrando-me e levan­tando-
me antes que colida com as rochas e rolar montanha abaixo.
— Apanhei-te — grita Jax atrás de mim. — Acho eu.
Estendo uma mão e agarro-me à rocha mais próxima, o que me ajuda a
equilibrar. Quando estou quase em pé, com as pernas bam­bas, Jax Salta
diante de mim, suado e ofegante. Tenho a certeza que não pareço diferente,
mas ofereço-lhe um sorriso fraco e espero que ele veja a gratidão no meu
olhar. Este rapaz Saltou e salvou o seu adversário... salvou-me.
O pensamento desaparece da minha cabeça. Olho para Ace, mesmo
quando me agarro a uma rocha, sem confiar no meu corpo trémulo.
O seu sorriso é frio.
— Tem cuidado. Não quero que a minha colega de equipa se magoe.
— Tu — cuspo. Estou prestes a deslizar pela encosta e a estran­gulá-lo
com as minhas próprias mãos...
— Não — diz Jax com uma voz baixa. — Ainda não.
Hesito, voltando-me lentamente para ele. Depois de uma longa pausa e
de respirar fundo, aceno com a cabeça. Jax não só tem razão em lembrar-me
que não posso matar o nosso colega de equipa, como é claramente muito
melhor do que eu a controlar a sua raiva. Por isso, viro-me com rigidez para
a montanha, concentrando toda a minha atenção para a escalar.
Subimos em silêncio durante um tempo antes de eu aclarar a minha
garganta seca e afirmar:
— Obrigada, Jax. Não precisavas de me ajudar, mas ajudaste.
— Claro que te ajudei — diz com um encolher de ombros. — Além
disso, não tenho a certeza de que os meus irmãos me iriam perdoar caso não
o tivesse feito.
Os seus irmãos.
Naquela noite em que Kai e eu dançámos durante a primeira Prova —
a noite em que falámos tão abertamente sobre as nossas vidas — foi quando
eu soube pela primeira vez o quão próximos os príncipes são realmente de
Jax. Kai contou-me brevemente sobre o naufrágio dos conselheiros no
Shallows, e como eles acolheram o seu filho quando ele mal tinha seis anos.
Forço uma gargalhada tranquila.
— Não sei, de certeza que o Kai não se importava de ter menos
concorrência.
Ele lança-me um olhar estranho, claramente a tentar não se rir.
— Não se essa competição fores tu. — Solto um suspiro a essa res­‐
posta, mas Jax continua alegremente. — Por falar em Kai, pergunto-me
como é que ele está a lidar com isto.
— A lidar com o quê?
Jax sobe uma rocha irregular com um grunhido antes de dizer, sem
fôlego:
— A montanha. — Quando a minha expressão continua confusa, Jax
acrescenta: — Ele odeia alturas.
— O quê? — engasgo-me. — Mas eu vi-o a subir a um dos pinhei­ros
na Whispers durante a primeira Prova. Ele parecia...
— Bem? — Jax termina por mim com uma gargalhada. — Calmo até?
Sim, ele é muito bom a esconder o que sente.
— É só mais uma máscara que ele usa — murmuro baixinho.
Jax acena com a cabeça, fazendo com que uma gota de suor lhe
escorra pelo rosto.
— Mas melhorou muito com as alturas, mas só por causa de todo o
treino que o Rei lhe deu.
Eu sabia o suficiente sobre os treinos do Rei, mas Kai nunca tinha
mencionado nada sobre o seu medo das alturas.
— O que é que o Rei lhe fazia?
— Ele... fazia-o subir às árvores mais altas da Whispers, vezes se­‐
guidas até convencê-lo de que tinha ultrapassado o medo.
— O quê? — A minha voz está tão trémula como as minhas pernas. O
próprio pai obrigou-o a reviver o seu pior medo vezes sem conta. Parece
que a tortura que Kai falou em suportar não era só física.
— Eu era pequeno quando o Kai estava a cumprir a fase mais intensiva
do seu treino para ser futuro Executor, mas nunca me irei esquecer das
noites em que ele chegava a casa coberto de sangue e lágrimas. — Jax olha
para os seus pés, mais sério do que alguma vez o vi. — Acho que ele tinha
receio que eu ficasse com medo dele, por isso voltava para o seu quarto
todas as noites. Mas eu ainda o via de relance e ouvia-o a atacar os postes
da cama com uma espada.
Voltámos ao silêncio, e eu a tentar ignorar os meus pensamen­tos
gritantes, o aperto na garganta e a pressão atrás dos olhos. De­pois um
sorriso cansado espalha-se pelos lábios de Jax quando ele conclui:
— Mas eu não poderia pedir melhores irmãos.
— Detesto interromper a conversa fofa — diz Ace —, mas serei o
único a sentir isto?
Estou prestes a rejeitar o que é provavelmente mais uma tentativa de
me enganar com uma ilusão quando começo a senti-lo. Um ligeiro tremor
atravessa-me, vindo da montanha. As pequenas rochas estão a chocalhar à
nossa volta e eu inclino-me para o chão, agarrando-me a qualquer coisa que
esteja no caminho.
— Derrocada — respiro.
O medo apodera-se de mim, seguido rapidamente de determi­nação.
Eu não vou morrer hoje. Muito menos por levar com pedras em cima.
Engulo o meu pânico ao ouvir o som de pedras pesadas a cair na nossa
direção, batendo umas contra as outras enquanto correm para nos esmagar.
— Então — Jax respira ao meu lado —, qual é o plano?
— Não morrer — digo-lhe simplesmente.
— Que grande ajuda — murmura Ace, de forma demasiado ca­sual
para a nossa situação atual.
O estrondo das rochas aumenta à medida que vejo os pedre­gulhos a
caírem à nossa volta. Esquivarmo-nos deles é muito mais fácil de dizer do
que de fazer. A encosta da montanha é íngreme, o que torna difícil saltar
sem medo de cair para a morte. Estou a agarrar-me a plantas e a fendas nas
rochas, enquanto me afasto do caminho das pedras que rolam.
Jax está a Saltar para fora do caminho das rochas que caem, en­trando e
saindo do meu ângulo de visão. Ace está algures atrás de mim e, se eu tiver
sorte, uma pedra já o fez cair pela montanha abaixo.
Corro para a direita, evitando por pouco que o meu braço seja
esmagado. Depois salto para a esquerda e...
Algo me bate na cabeça.
Fico com a visão afetada. Estou tonta, atordoada, mas consigo ainda
ouvir o meu nome a ser gritado. Olho para cima mesmo a tempo de ver que
estou prestes a ser atingida por uma pedra. Mergu­lho para fora do caminho,
aterrando com força enquanto me agarro a qualquer coisa. E tão depressa
como aconteceu, a montanha parece ficar imóvel debaixo de mim, enquanto
as rochas param lentamente o seu deslizamento.
Levanto-me com dificuldade, pestanejando para afastar o lí­quido
quente e pesado que ameaça derramar-se nos meus olhos. Sinto o sangue a
escorrer-me pelo rosto, sinto a dor aguda da ferida.
Tenho quase a certeza de que tenho um traumatismo craniano, tal
como tenho quase a certeza de que vou vomitar.
— Jax? Estás a sentir-te bem? — pergunto, dando um passo em frente
e estendendo a mão para me firmar contra as rochas. Sim, acho que vou
vomitar.
— Estou bem — responde, Saltando à minha frente. Estamos os dois
cobertos de arranhões e nódoas negras.
— Obrigado por perguntares, Paedyn. Eu estou bem — diz Ace, sem
simpatia ou ternura na voz.
Limpo o sangue que escorre da minha ferida.
— Que pena.
Dói-me tudo. Os pés. As costas. O corpo.
Estou dolorosamente cansado, dolorosamente esfomeado e dolo­‐
rosamente consciente de como estou aborrecido comigo mesmo por causa
disso. Já suportei torturas, enfrentei os meus piores medos, li­derei exércitos
em batalha e, no entanto, escalar uma montanha com uma ressaca pode ser
a minha morte.
Andy agarrada às minhas costas também não está a ajudar. O problema
não é o seu peso, sobretudo porque estou a usar a força de Braxton. Não, é o
facto de ela ser tão magra que os seus membros longos estão a dificultar a
minha subida.
— É um absurdo como tu és ossuda — murmuro, levando com um
murro fraco no ombro.
É bom. Pelo menos tem força para me bater.
— Quando sairmos daqui — continuo casualmente —, eu próprio vou
alimentar-te com pães doces para te engordar.
Ela grunhe, aprovando a ideia, com a voz fraca. Está a desvanecer-se
rapidamente. A sua pele está muito pálida, apenas realçada pelo luar, e a sua
respiração é rápida e superficial.
Eu sei a diferença entre dor e veneno, e este é certamente o último.
Por isso, mantenho-a acordada, mantenho-a ocupada. A minha voz é
baixa e eu falo com ela calmamente, provocando-a e relem­brando-a dos
velhos tempos. A maior parte das vezes, responde com sorrisos ofegantes
ou com um aceno de cabeça, mas prefiro qualquer coisa ao silêncio.
A lua é o nosso único guia, lançando uma luz pálida que pouco
ilumina a montanha que estamos a escalar desde que acordámos. O terreno
é tão íngreme que Andy está agarrada a mim com as per­nas à volta da
minha cintura, libertando as minhas mãos para con­seguir apoiar-me.
Sinto a sua cabeça cair no meu ombro, vencida pela exaustão e por
uma dor excruciante.
— Ei — digo-lhe suavemente, empurrando-a com cuidado para a
manter acordada. — Estamos quase a chegar. Só mais um bocadinho.
Percebo que acena com a cabeça e tento acelerar o passo.
Consigo ver o planalto do pico a pairar sobre nós.
Quase a chegar.
Estou a escalar, com as mãos a raspar nas pedras e nas rochas que
escorregam por baixo de mim. Perdi o pé, perdi o controlo mais do que uma
vez e quase que fiz com que caíssemos para uma morte infeliz. Mas
estamos quase lá. Este pesadelo está quase a acabar. Es­tamos quase livres.
Vejo as sombras de figuras alinhadas à nossa volta. Esperam-nos. As
Visões observam-nos enquanto subimos até ao cume, sem fôlego e suados,
esfomeados e exaustos.
Exultante.
Está feito.
Arrasto-me para a extremidade, Andy agarra-se a mim feroz­mente.
Apenas a minha dignidade me obriga a levantar-me, embora a fadiga
ameace paralisar-me.
— Conseguimos — Braxton exala ao meu lado enquanto estamos
todos de pé, atordoados.
O planalto é uma grande laje de rocha e terra irregular, que se estende
muito mais do que parece visto de baixo. Olho à minha volta, analisando o
que me rodeia, vendo dezenas de Visões a pontilhar o pico.
Depois, os meus olhos passam por um poste alto de madeira, enterrado
no chão, no extremo do pico. Uma bandeira verde e gasta está pendurada no
seu topo, movendo-se ao vento.
Que novo jogo é este?
Um movimento surge no canto, e eu semicerro os olhos na luz fraca
para me concentrar nas figuras que sobem pelo lado oposto do planalto,
juntando-se a nós. E, apesar da escuridão, sei exata­mente quem são.
Jax. Ace. Paedyn.
Ficamos todos a olhar uns para os outros, cada grupo atónito e imóvel.
Uma Visão dá um passo em frente, a sua voz é clara enquanto lê uma
mensagem no papel esfarrapado que tem na mão.
— Ficamos contentes por terem aprendido a trabalhar em conjunto,
mas esta Prova ainda não terminou. As regras do jogo mudaram um pouco,
por isso o primeiro a capturar a bandeira ganhará. — Aclara a voz antes de
continuar: — Só pode haver um vencedor entre vós. A única questão é
saber quem será?
O silêncio. A quietude.
Assimilo aquelas palavras. Não me devia surpreender. Isto vai ser um
ótimo entretenimento, ver-nos a trabalhar juntos apenas para nos
destruirmos uns aos outros logo a seguir.
Porque seria demasiado fácil, apesar de ter sido extremamente di­fícil
chegar ao topo da Plummet. E eu já devia saber que há sempre um senão,
sempre um preço. O meu próprio pai ensinou-me isso.
Ficamos atónitos, intercalando a nossa atenção entre nós e a ban­deira
irregular que de repente se tornou tão vital para a nossa vitória.
E depois viramo-nos uns contra os outros. O caos.
A escuridão e a destruição são tudo o que conheço. Os dois gru­pos
chocam entre si, os poderes chocam-se, os gritos atravessam a noite. Mas
quando os meus olhos encontram os seus na luz ténue, não hesito em dar-
lhe um murro.
Ace tropeça para trás, atordoado pela força e fúria. Sorrio ao ver. Esta
tem sido a minha vontade durante o dia inteiro. Todos os dias.
A luta à nossa volta desvanece-se. Tudo o que vejo é ele e o verme­lho
que me turva a visão, a causa do meu sangue e da minha raiva.
Eu vou matá-lo.
O meu pé afunda-se no seu estômago, expelindo o ar dos seus pulmões
antes de lhe dar um murro no nariz, sentindo-o estalar com um prazer
doentio. O meu corpo é a minha única arma. Não tenho facas, nem arco,
nem espadas para me esconder. Mas não o faria de outra forma. Quero fazer
isto com as minhas próprias mãos.
Estou quase impressionada com o quão retorcido e talentoso o Rei é a
construir um espetáculo. Ele sabia que tínhamos entrado nesta Prova com a
esperança de nos vingarmos e, em vez disso, disse-nos para trabalharmos
em conjunto. Assim, os nossos inimigos torna­ram-se nos nossos
companheiros de equipa. Mas agora, o Rei é ge­neroso e oferece-nos o que
mais queremos. Tudo isto sob o olhar de público agradado.
Estamos a destruir-nos uns aos outros.
Ace recuperou finalmente o fôlego, e lança-me um sorriso, com as
mãos apoiadas nos joelhos.
— Oh, tens estado à espera para fazer isto, não tens?
— Desde a viagem de carruagem até ao castelo, na verdade — digo,
lembrando-me de como já não gostava dele, mesmo antes de ele tentar
matar-me. Duas vezes.
— Bem, eu também nunca gostei muito de ti — admite, enquanto o
sangue lhe escorre do nariz e lhe pinga para o queixo. Mexo-me, com o
objetivo de lhe dar um pontapé na têmpora, mas de repente estou envolta
numa escuridão.
É como se me tivessem atirado um cobertor pesado para cima da
cabeça, abafando a luz à minha volta.
Agora estou zangada e aborrecida.
Mas eu sei como este jogo funciona e agito os meus braços, dando
alguns passos em frente. A ilusão desfaz-se e, como fumo, a escuridão é
levada pelo vento. Pestanejo, com os olhos a ajustarem-se enquanto tento
encontrar Ace no meio da confusão.
E depois estou a engasgar-me.
O ar está a ser cortado dos meus pulmões, a minha traqueia está a ser
esmagada. Um objeto duro e áspero é pressionado contra a minha garganta,
forçando-me a arfar enquanto tento inspirar. Arranho a coisa que me está a
pressionar o pescoço, a coisa que me separa da vida e da morte.
Dou pontapés ao Ace, que se encontra atrás de mim, torcendo-me e
lutando para me libertar do seu controlo. Sinto uma casca áspera a magoar-
me as unhas enquanto a arranco, tentando livrar-me do seu domínio
sufocante. Estou a ser estrangulada com um pau.
Um pau.
A minha visão está a ficar manchada, a ferida na minha cabeça a
latejar, os meus pulmões a gritar por ar.
Não. Hoje não. A morte pode reclamar-me quando encontrar uma
forma menos patética de acabar com a minha existência.
Acalmo as minhas mãos frenéticas e paro de me debater, dei­xando-me
cair, afundar, parando de fingir que estou viva e a fervilhar de raiva. Deixo
que os meus joelhos se dobrem, que o ramo escorre­gue do meu pescoço e
que eu caia no chão duro.
«Nunca te esqueças que a tua inteligência é uma arma que pode ser
empunhada se a tua mente for tão afiada como a sua lâmina.»
As palavras do meu pai ecoam na minha cabeça, lembrando-me que
nem todas as batalhas são ganhas com força. Por isso, vou ganhar esta com
o cérebro.
Os meus membros estão emaranhados na terra e a minha cabeça bateu
dolorosamente numa rocha irregular. Mas consigo respirar novamente. Mal.
Forço-me a respirar superficialmente, desejando que o meu atacante se
aproxime e termine o trabalho.
Botas rangem sobre pedras soltas antes de um corpo se agachar sobre o
meu. Um suspiro profundo e difícil apodera-se de mim e o leve toque dos
seus dedos sobre a minha testa quase me faz cair.
— É uma pena que as bonitas sejam sempre cabras. — Ace põe uma
madeixa de cabelo atrás da minha orelha, quase gentilmente. Fico enojada.
— É uma pena. Um desperdício.
A sua mão começa a afastar-se e eu sei que tenho de agir. Os meus
olhos abrem-se e os dele fazem o mesmo, enquanto olha para mim,
chocado. Está agachado sobre o meu corpo, uma das suas mãos a prender a
minha e a outra agarrada a uma pedra apenas ligeiramente mais pequena do
que o tamanho da minha cabeça.
Ele vai esmagar-me o crânio.
Num movimento rápido, torço-lhe o braço num ângulo estra­nho,
ouvindo o osso estalar e um grito sair-lhe da garganta. Levanto as pernas e
empurro os meus pés contra o seu peito, atirando-o para o lado com um
forte empurrão. Cai de costas ao meu lado, com a pedra a cair-lhe da mão.
Estou em cima dele quando o meu coração bate mais forte.
Os meus joelhos pressionam os seus braços contra o chão, dei­xando
todo o meu peso assente no seu peito. Levo a minha mão até ao pulso dele,
pressionando o osso partido que agora se projeta. Nunca pensei que um
grito pudesse trazer-me tanta alegria.
— É uma pena que não tenha a minha faca para a cravar no teu
coração negro. — Estou a sorrir, saboreando o ódio puro que bri­lha nos seus
olhos, sabendo que ele deve ver o mesmo em mim. — É uma pena.
Quando é que me tornei tão cruel?
Algo me chama a atenção e o meu olhar dirige-se para os vultos que
nos rodeiam.
Sou eu.
Dezenas de Paedyns pálidas e doentes. Estão a aproximar-se aos
tropeções, com os braços estendidos e a tentar alcançar-me. Empurram-se
implorando por ajuda, implorando para sair do seu sofrimento.
Olho para elas, e elas olham para mim. E depois sorrio, triste e
lentamente.
— Já não tenho medo de mim própria — sussurro.
Esta rapariga — assombrada e fraca a implorar por ajuda, por amor —
sou eu. Sem ela, eu não seria quem sou hoje. Ainda me sinto assombrada,
talvez até ainda esteja à espera de amor, mas já não sou fraca por causa
disso.
E quando o meu olhar desliza de novo para Ace, já não estou a sorrir.
— Achas que podes usar-me contra mim? Outra vez? — O meu riso é
sério. — Engana-me uma vez e a culpa é minha. Engana-me duas vezes...
bem, não parece que vás ter oportunidade de o fazer, pois não? — inclino a
cabeça, olhando para o seu rosto agora torcido pela dor.
Pego na pedra que estava destinada ao meu crânio e levanto-a por cima
do seu.
— Adeus, Ace — digo sem fôlego, perguntando-me se deveria sen­tir
algum remorso por este rapaz.
Algo se move na minha periferia.
As ilusões desaparecem à medida que Ace enfraquece de dor de­baixo
de mim, permitindo-me olhar para a figura mais próxima.
Está coberto de sangue, a maior parte provavelmente nem se­quer lhe
pertence. Os nossos olhos encontram-se e o som da luta à minha volta, que
outrora era tão ensurdecedor, começa a baixar. A ligação é elétrica, até
mesmo fortalecedora, enquanto ele me ob­serva, mas não faz nada para se
meter no meu caminho. Não faz nada para tentar convencer-me a não tirar
uma vida. Não faz nada porque sabe que consigo desenrascar-me sozinha.
Não faz nada porque Kai não faria isto de forma diferente.
O rapaz que encontra debaixo de mim tentou matar-lhe o irmão, tentou
que Kai o fizesse por ele. E quando olho fixamente para os olhos cinzentos
do Príncipe, o futuro Executor, o Entregador da Morte, sei que ele tem
estado pacientemente à espera de o matar. Pacientemente à espera de
vingança.
E, no entanto, está simplesmente ali parado, a pingar sangue, e não faz
nada para me impedir de lhe arrancar a sua vingança.
Esta morte não me pertence.
— Eu matava-te... — A minha voz é severa e forte, suficiente­mente
alta para Kai a ouvir. Vejo os olhos de Ace iluminarem-se com a suposição
de que sou demasiado fraca para acabar com a sua vida. Está tão enganado.
— Mas tu não és uma morte destinada a mim — termino, vendo os seus
olhos escurecerem, o ódio substi­tuindo a esperança.
Volto a fixar Kai, os seus olhos brilhantes ao luar e a arder como o
fumo de uma fogueira. Um músculo estala-lhe na mandíbula, as suas mãos
contorcem-se ao lado do corpo. Faço-lhe um único e lento aceno de cabeça.
E depois caminha na nossa direção, com sombras agarradas à sua
silhueta. Mal tenho tempo de sair de cima de Ace antes que Kai o esteja a
levantar com os seus braços poderosos.
— Tens sorte por eu não ter tempo nem paciência para te arran­car
membro a membro neste momento.
Depois os olhos de Kai olham para mim. O futuro Executor está a
resistir ao seu desejo de vingança e, em vez disso, examina o meu corpo à
procura de ferimentos. A ideia faz-me engolir o nó que tenho na garganta
enquanto o olhar dele se prende no corte que ainda jorra na minha cabeça,
antes de deslizar lentamente para o meu pescoço, que também está ferido.
Depois, os seus olhos diri­gem-se para algo que se encontra atrás de mim.
A bandeira.
Ainda ninguém chegou lá, demasiado ocupados a lutar e con­centrados
na vingança para se afastarem. Quando volto a olhar para Kai, está de olhos
postos em mim.
— Vai — murmura, acenando com a cabeça para a bandeira que me
trará a vitória. — Ganha esta merda, Gray.
Aceno, mas a sua atenção está de volta à tarefa que tem à frente. Por
isso, viro-me para a bandeira. As minhas botas raspam contra as rochas
debaixo dos meus pés enquanto caminho em direção àquele pedaço de pano
aparentemente insignificante.
Os gritos juntam-se aos choros da luta, e não preciso de me virar para
saber que Kai começou a sua vingança. Ignoro-o, concen­trando-me apenas
na bandeira.
E, de repente, estou a olhar para o meu prémio. A olhar para a minha
vitória.
E ninguém me para quando arranco a bandeira.
Engraçado, não sei porquê, mas matar faz-me sentir mais vivo. Há uns
dias que não me sentia tão leve. A minha mente está mais ní­tida, agora que
os pensamentos de Ace já não me estão a consumir.
O meu único arrependimento é não ter tido mais tempo para brincar
com ele e, se fosse melhor pessoa, esse pensamento poderia ter-me
repugnado.
A recapitulação da Prova foi entediante, consistindo sobretudo em
cada equipa a subir a montanha em silêncio. Mas a luta final no cimo do
pico foi suficiente para pôr a multidão aborrecida a aplau­dir. O caos foi
captado pelas Visões e reproduzido para eu reviver essas memórias
sangrentas.
Vi Paedyn a encontrar os meus olhos e a conceder-me um pre­sente. A
dádiva de uma vida. O dom de tirar uma vida.
Entregou-me o Ace, apesar de querer ser ela a responsável pela sua
morte. Deixou-me ter a minha vingança sem sequer saber que tam­bém lhe
pertencia parcialmente. Porque antes de querer matar Ace, pelo que fez a
Jax, eu queria matar Ace por quase ter matado Paedyn.
A morte não me é estranha. Já matei mais pessoas do que aque­las que
consigo contar, e o sangue que se agarra às minhas mãos e mancha a minha
alma nunca poderá ser limpo. E, no entanto, ela olhou para mim como se eu
merecesse um Ace, uma bondade...
Ela. Eu só a quero merecer.
Vi a Morte a fazer outra vítima. Blair foi a responsável pela morte de
Braxton. Bem, não pode ficar com todos os louros. Eu posso ter ajudado. A
sua mente enviou um ramo grosso, estava espalhado no chão, na direção do
peito dele. A carne e o osso rasgaram-se, abrindo espaço para a nova flora
que lhe empalava o corpo. Lentamente, a vida nos seus olhos surpreendidos
foi-se esvaindo até cair no chão.
Mas a surpresa no olhar de Braxton refletiu-se no de Blair.
Ela não estava a apontar para Braxton. Não, aquela morte brutal estava
a dirigir-se para a rapariga de cabelo prateado que caminhava para a sua
vitória. Posso ter enganado a Morte quando lhe troquei os planos, mas
mesmo assim dei-lhe uma vida. Pedi emprestado o poder de Blair e
empurrei o destino noutra direção. Na direção de Braxton.
E não hesitaria em fazê-lo de novo, e de novo, para salvar aquela
rapariga de cabelo prateado.
Uma bela equipa, a Morte e eu.
Tive três dias para recuperar da Prova. Três longos dias passados no
pátio de treino, encharcado em suor, ou fechado num estúdio com o
Silenciador do meu pai, onde provavelmente também estou encharcado em
suor. Damion empurra-me com força, sufocando-me com a sua habilidade
enquanto eu luto para a usar contra ele.
Quer seja o meu corpo ou o meu cérebro a doer por causa de um ou
outro tipo de treino, dou-lhe as boas-vindas. A distração é a melhor forma
de passar o tempo, e parece que nos dias que correm, tenho muitas coisas
para me distrair.
— Kai, estás a ouvir, rapaz?
Sacudo a cabeça e volto à conversa.
— Claro, Pai.
O Rei suspira profundamente e Kitt lança-me um olhar sério. Estamos
enfiados no seu escritório há horas, a discutir um con­junto de situações,
desde a rotação dos guardas até à Resistência, sobre a qual não temos
informações novas, uma vez que os poucos prisioneiros do ataque do
primeiro baile estão agora todos mortos. No entanto, o Pai não parece
particularmente preocupado com esse facto e, em vez disso, tem estado a
falar sobre as Provas há muito mais tempo do que eu tenho estado a ouvir.
Ele olha para nós enquanto pergunta calmamente.
— É interessante como a rapariga Miserável ganhou este último, não
achas?
Eu fico tenso e acho que o Kitt pode ter sofrido da mesma reação.
Fui eu que lha entreguei, escolhendo a vingança em vez da vitória. A
tortura em vez do triunfo. Pergunto-me se o Pai sabe disso. Sabe que a
deixei caminhar até àquela bandeira sem pensar duas vezes. Sabe que eu
sorri ao vê-la, forte e segura, enquanto ela levantava a bandeira no ar.
— Ganhou de forma justa. Não acho isso interessante. — As pala­vras
saem-me da boca antes que possa pensar melhor.
Um riso irónico.
— Aí está, — diz o Pai, com os olhos verdes a atravessarem-me de
uma forma que os de Kitt nunca conseguiram. — Os Miseráveis não
ganham.
Fico incomodado com a palavra que ele grita, mas não me atrevo a
quebrar o contacto visual.
— E, no entanto, ela ganhou.
Kitt lança-me um olhar, mas os meus olhos estão fixos no Rei quando
ele declara:
— E é bom que não deixes que isso volte a acontecer. Não te esque­ças
que és tu que tens de vencer estas Provas, e se precisares que eu te lembre
do que vai acontecer se não o fizeres, eu faço-o.
Ele inclina-se para a frente, a sua voz letal.
— Eu treinei-te para isto, por isso não me vais desiludir. Perce­beste,
Executor?
A ameaça no seu tom é clara, e eu ouço-a a ressoar nos meus ouvidos.
Tu não és ninguém se perderes.
— Entendido, Vossa Majestade.
E com isso, ponho-me de pé e saio porta fora. Ando pelos corre­dores,
sentindo que preciso de bater em alguma coisa, que preciso de espetar a
minha espada na coluna da cama pela enésima vez. Depois de todos os anos
de treino e de domínio das minhas máscaras, o meu pai foi sempre o único
capaz de me fazer perder o controlo. Passo a mão pelo cabelo enquanto me
dirijo para o meu quarto, recom­pondo-me a cada passo.
— Kai.
Passo a mão pelo rosto, suspirando enquanto me viro para enca­rar um
Kitt muito infeliz.
— Que raio foi aquilo? — pergunta com dureza.
Quase que me ri.
— Foi uma das conversas mais civilizadas que tivemos, e tu sabes bem
disso.
Kitt solta um suspiro. Está com um ar cansado.
— Olha, eu sei que a tua relação com o Pai é... difícil. Eu percebo.
Depois de todo o treino por que ele te fez passar e das expectativas que tem
relativamente ao futuro Executor, acredita, eu percebo bem porque é que
vocês os dois têm dificuldade em dar-se. Mas tudo o que ele faz é para o teu
bem.
Eu suspiro e abano a cabeça para o teto, perguntando-me se Kitt
alguma vez deixará de tentar provar o seu valor ao Rei.
— Sabes, talvez pensasses de maneira diferente se ele te tivesse feito
um corte quando eras criança, só para ficar a observar-te enquanto tentas
coser a ferida. — Dou um passo na sua direção. — Ou talvez depois de
seres forçado a enfrentar os teus piores medos vezes sem conta, percebesses
que nem tudo o que ele faz é para o nosso bem.
Rio-me ionicamente e Kitt quase que se desvia com o som.
— Tornou-me num assassino, transformou-me num monstro. Mas isso
foi pelo melhor, não foi? — Coloco-lhe um dedo no peito enquanto
continuo: — Foi para o teu benefício, para que me possas usar quando fores
Rei. Tal como ele fez.
Não devia ter dito isto.
As palavras atingem-no como um golpe físico. Vejo o choque e a
mágoa estampados no seu rosto e forço-me a dar um passo para atrás, para
acalmar-me. Estou a perder a calma por razões que nem sequer
compreendo, e isso só me está a deixar mais zangado. É como se cada
pedaço reprimido do meu passado estivesse a lutar para se libertar, a lutar
para vir à tona.
— Kai...
— Acho que vais ser um grande Rei, Kitt — digo-lhe calmamente,
cortando as suas palavras. — E eu irei servir-te com orgulho. Mas tens de
aprender a pensar por ti próprio porque, um dia, o Pai não estará lá para te
ajudar. Por isso, sugiro que comeces a pensar no que achas que é melhor
para ti.
E com isso, viro-me e desço o corredor.
Os jardins são tranquilos à noite. Apenas o coro de grilos e o suave
uivo do vento me seguem enquanto me dirijo para o conhe­cido salgueiro
que ladeia o relvado aberto onde se realizou o último baile.
Desde essa noite, tenho vindo aqui muitas vezes, encontrando conforto
no abrigo do salgueiro sombrio quando não consigo dor­mir. Habituei-me a
ficar ali sentada durante horas a pensar.
Afastando os ramos baixos, passo por baixo da copa das folhas.
Suspiro, sentindo-me subitamente mais tranquila enquanto respiro o ar
quente da noite.
Mas a paz que sinto é de curta duração quando uma sombra se desloca
ao lado do tronco.
Eu viro-me. Os meus dedos vão em direção à adaga que tenho na coxa,
mas são apanhados por uma mão áspera.
— Calma, Gray, sou só eu.
Pestanejo na escuridão enquanto os meus olhos se ajustam à luz fraca,
pousando nos cinzentos que se divertem à minha frente.
— O que é que estás a fazer aqui?
— Podia fazer-te a mesma pergunta.
— E eu podia ter-te dado uma facada!
As sobrancelhas de Kai erguem-se.
— Então não vais tentar? Eu diria que isso é um progresso.
— Olha que devia mesmo, por me teres assustado desta maneira.
Solta a minha mão lentamente, observando-me durante esse tempo.
— Assustei-te? Foste tu que me apanhaste de surpresa.
— Bem, eu não sabia que tu ias estar aqui — sussurro.
— Claramente — diz ele com um sorriso nos lábios. — Mas és mais
do que bem-vinda a ficar.
E depois instala-se no chão, parece bastante confortável com o braço
atrás da cabeça.
Fico a olhar para ele.
— O que é que estás a fazer?
— À espera de que te venhas juntar a mim.
Fico ali, a ver um sorriso lento a espalhar-se pelo rosto.
— Tens medo de sujar o vestido? — pergunta enquanto se senta,
começando a tirar o casaco do fato, deitando-o de seguida no chão ao seu
lado. — Pronto, assim não o sujas.
Olho para o vestido de seda simples que vesti para o jantar com o Rei e
a Rainha. É bastante confortável, e eu estava com demasiada preguiça para
o tirar antes de vir para aqui. Kai deve ter sentido o mesmo, uma vez que
ainda está a usar o seu belo traje.
Mas a minha hesitação em juntar-me a ele nada tem que ver com sujar
o meu vestido, mas sim tem tudo a ver com o facto de que eu não devia
ficar aqui. O que eu devia fazer era ir embora, desejar-lhe boa-noite e voltar
para o meu quarto sem dizer uma única palavra. E, no entanto, os meus pés
não fazem nenhum movimento para me afastar.
Dá palmadinhas no casaco, expetante, e tal visão é responsável por
uma gargalhada que se forma nos meus lábios.
— Muito cavalheiro da tua parte, mas esse casaco não é suficien­‐
temente grande para evitar que o meu vestido fique sujo.
— Se quiseres, posso também tirar a minha camisa — diz ele
casualmente.
— Pensando melhor — murmuro —, o casaco é suficiente.
Ele ri-se e eu, de repente, caminho na sua direção, ignorando os
pensamentos que lhe gritam para fazer o contrário. Sento-me e deito-me
lentamente ao seu lado, com os nossos ombros a partilha­rem um toque.
Ficamos em silêncio por um longo pedaço, ambos contentes em admirar a
cobertura das folhas que caem sobre nós, enquanto ouvimos o chilrear dos
grilos.
Sinto-me quase relutante em quebrar o silêncio confortável, mas
pergunto baixinho:
— Porque é que estás aqui?
Ele ri-se.
— Venho aqui desde que era miúdo. Na verdade, eu caí desta mesma
árvore depois do Kitt me ter desafiado a escalá-la. Parti o braço, também...
— Uma bolha de riso passa-me pelos lábios, cortando-lhe a palavra. —
Estás a rir-te de mim, Gray?
Ele tenta lutar contra o seu próprio sorriso e acrescenta:
— Ainda bem que achas a minha dor tão divertida.
Limpo a voz, tentando recompor-me.
— Então vens aqui para te recordares dessa boa memória?
— Algo do género. — Ele suspira. — Venho aqui para pensar, para me
acalmar. Sempre gostei do sossego que me proporciona. Uma fuga do
palácio.
Olha para mim antes de perguntar.
— E tu, porque é que estás aqui?
Sorrio ligeiramente e copio-lhe as palavras.
— Para pensar. Gosto do sossego. Da fuga.
Vejo os seus lábios contorcerem-se pelo canto do olho, e ficamos em
silêncio mais um pouco até que pergunto:
— Há alguma razão para me teres arrastado para a terra?
Olho para o seu perfil sombrio enquanto ele olha para os ramos.
— Para falar. Para ficarmos deitados aqui em silêncio. — Encolhe os
ombros preguiçosamente. — Tanto faz.
Desvio-lhe o olhar.
— Então, só queres alguém para te fazer companhia?
— Não é alguém. Tu.
Sinto os seus olhos na minha pele, mas não me viro.
— Queres uma companhia tranquila ou faladora?
Faz um som que me parece ser de uma gargalhada.
— Só mesmo tu para me perguntares o que prefiro perante a tua
companhia.
Viro finalmente a cabeça para encontrar o seu olhar.
— Isso não foi uma resposta.
Fica calado por um longo momento, parecendo observar o meu rosto, à
procura dos meus olhos.
— Fala comigo.
Fico a olhar para ele, e com uma minha voz subitamente muito calma,
pergunto:
— Sobre o quê?
Vejo um leve sorriso a curvar-lhe os lábios.
— Qualquer coisa. Tudo. O que te está a passar pela cabeça neste
momento, querida.
Suspiro com um pequeno sorriso.
— Bem, neste momento estou a pensar que este casaco onde estou
deitada faz imensa comichão, o que não me parece ser algo digno para um
príncipe usar. — Ele ri-se enquanto eu acrescento. — E tam­bém me
pergunto quantos ossos tu e o Kitt já partiram.
— Demasiados — suspira Kai, abanando a cabeça. — Por norma, era
eu que partia os ossos e que me magoava, embora nem todos fossem devido
às ideias brilhantes do Kitt.
Faz uma pausa.
— A maior parte veio do meu treino. Especialmente quando es­tava a
aprender a usar a habilidade de Curandeiro.
Quando as suas palavras são absorvidas, fico tensa.
— Não estás a falar a sério... — Eu movo-me para olhar para ele. —
Não tinhas de...
— Sim, tinha — confirma com calma, olhando-me diretamente nos
olhos. — Tive de partir os meus ossos e depois curá-los. Ou, por vezes,
sofria um corte com espada e tinha de aprender a coser a minha própria
pele.
Diz isto de forma tão casual que nem consigo imaginar os hor­rores a
que foi forçado.
— Como é que não o odeias? — sussurro-lhe.
O silêncio estende-se entre nós.
Porque tornou-me forte.
Diz isto com demasiada calma, e eu quero sacudir-lhe a com­postura
fria. Não importa o quão forte o Rei o tornou. O Príncipe diante de mim não
passou de um peão criado pelo homem a quem chama de Pai. A ideia deixa-
me doente, dá-me vontade de gritar.
E, no entanto, eu compreendo.
As suas palavras atingem-me, mesmo em cheio. As nossas vidas
parecem partilhar tristes semelhanças, destinos infelizes. Ambas as nossas
infâncias consistiram em treino para nos tornarmos naquilo que tínhamos de
ser, nenhum de nós cresceu da maneira que de­sejava. Exceto que os pais
que nos criaram não podiam ser mais diferentes — um fez tudo por amor, o
outro por ganância.
As pessoas não nascem fortes; elas são criadas. E o Príncipe e eu
sabemos isso melhor do que a maioria.
Kai continua casualmente, como se as suas palavras não me ti­vessem
tirado o ar dos pulmões.
— Bem, o Kitt e eu sofremos vários ferimentos devido à nossa es­‐
tupidez, mas nem todos os nossos jogos eram perigosos. Na verdade, como
as nossas atividades favoritas de rapazes consistiam provavel­mente nalgum
tipo de violência, a minha tutora obrigava-nos a sentar e a jogar jogos que
ela considerava seguros. — Ele solta um suspiro. — Nós considerávamo-
los aborrecidos.
— A sério? — solto uma gargalhada. — Que jogos?
— Bem — estende a mão para pegar na minha —, o preferido da
Senhora Platt para nos torturar era a guerra de polegares. Mas nós
arranjávamos maneira de a tornar violento.
— Guerras de polegares? — As minhas sobrancelhas demonstram o
quão confusa fiquei. — Isso tem a palavra guerra, e ainda é consi­derado
seguro?
Nunca tinha visto Kai com um ar tão desnorteado e quase que me ri de
novo.
— Nunca ouviste falar da guerra de polegares?
O seu próprio polegar passa sobre os nós dos meus dedos, obrigando-
me a concentrar nas minhas próximas palavras.
— Bem, nos bairros de lata, o único jogo que costumava jogar era
tentar adivinhar quantas moedas estavam no bolso de alguém antes de as
roubar.
O canto da sua boca fica tenso.
— E jogaste esse jogo antes de me roubar?
— Não, mas teria perdido se o tivesse feito — suspiro. — Tu tinhas
muito mais pratas do que eu alguma vez vi numa só bolsa.
— Bem, isso até me roubares metade.
Sorrio com isso e ele observa-me em silêncio durante um tempo.
Quando os meus olhos descem até às nossas mãos, distraindo-me com o
polegar ainda a deslizar sobre os nós dos dedos, ele aclara a voz e revela:
— Bem, tenho a certeza de que o jogo que te vou ensinar não é tão
divertido como o teu.
Depois abana a cabeça, murmurando baixinho:
— Não acredito que não sabias o que era a guerra de polegares.
— Bem, pela forma como falas, não parece que esteja a perder muito.
— Muito bem visto. — Os seus lábios contraem-se num sorriso. — E é
exatamente por isso que vou ensinar-te, para que possamos sofrer em
conjunto.
Vira-se de lado e apoia-se num cotovelo, observando-me en­quanto
faço o mesmo.
— As regras deste jogo fascinante são simples. — Enrola os nossos
dedos enquanto eu observo. Depois ri-se e estende a outra mão para puxar o
meu polegar para o ar. — Agora, ganhas ao prender o pole­gar da outra
pessoa, mas tens de manter a mão e o braço imóveis.
Ele olha para mim e pergunta.
— Percebeste?
Franzo o sobrolho ao ver como as nossas mãos ainda se encon­tram
unidas.
— Começo a perceber porque é que achas este jogo tão aborrecido.
Ele ri-se antes de murmurar.
— Vamos.
Nem sequer tenho tempo de reagir antes do seu polegar esmagar o
meu, prendendo-o à minha mão. Quando olha para mim, o seu sorriso é
presunçoso.
— Achava mesmo que os teus reflexos seriam mais rápidos, Gray.
— Eu não estava pronta, Azer.
— Bem, é para isso que servem os reflexos.
Reviro-lhe os olhos.
— Tu és insuportável.
— E, no entanto, tu ainda aqui estás — diz ele suavemente, os seus
olhos brilhantes mesmo na luz fraca enquanto se cruzam com os meus.
Ficamos em silêncio, enquanto avalio como posso vencer neste jogo.
Como de costume, a distração parece ser a melhor opção, por isso avanço:
— Diz-me algo que eu não saiba sobre ti.
Parece ligeiramente surpreendido com o meu pedido aleatório, mas
não se demora muito a responder.
— Mirtilos. Não gosto.
Eu engasgo-me a rir.
— Não gostas de mirtilos?
— Não, retiro o que disse. — Faz uma pausa, enquanto pensa. —
Odeio mirtilos.
— Alguma razão para tal aversão?
— Já provaste? — pergunta-me, e eu aceno com a cabeça.
— Então, estás a ver. Essa é a minha razão. São nojentos.
Solto uma gargalhada e, quando ele abre a boca para dizer al­guma
coisa, corto-lhe a palavra com um silencioso.
— Vamos.
O meu polegar pousa sobre o seu e estou prestes a gabar-me da minha
vitória quando ele o tira facilmente de debaixo do meu. E depois, o meu
polegar fica novamente preso.
— Adorável esforço para me distrair, querida.
Suspiro de frustração.
— Estou a ver porque é que odeias este jogo.
— Não, eu odeio este jogo porque é aborrecido. Tu odeias este jogo
porque não és boa a jogá-lo.
Olho-o fixamente e ele sorri para mim. O seu polegar percorre o
comprimento do meu, e eu recuso-me a desviar o meu olhar.
— Agora — diz ele lentamente —, diz-me algo que eu não saiba sobre
ti.
— Fácil — Eu devolvo-lhe um sorriso brilhante. — Eu adoro mirtilos.
Kai sopra para o ar.
— Claro que gostas.
— São simplesmente deliciosos. Quero dizer, aquela mistura per­feita
de ácido e doce e...
— Isso não pode ser normal...
— Honestamente, acho que é capaz de ser o melhor fruto que existe.
Podia facilmente comê-lo em todas as refeições e...
Kai inclina-se para mais perto e suspira exasperado:
— Paedyn — Eu calo-me ao ouvir o meu nome. — Fico contente por
te ouvir falar durante horas, mas se tens de falar de fruta, pelo menos
escolhe uma que agrade a ambos.
Aperto os lábios para abafar o meu sorriso. O futuro Executor está
disposto a ouvir-me falar de fruta. A ideia deixa-me à beira de uma
gargalhada e a corar da cabeça aos pés.
— É justo — digo-lhe. — E que tal laranjas?
Ele faz uma careta.
— Não gosto da polpa.
— Ótimo. Bananas?
— Detesto a textura.
— Há alguma fruta de que gostes? — suspiro, abanando a cabeça. —
Tu és o Príncipe mais picuinhas que eu conheço.
— Eu sou um dos dois príncipes que conheces e, acredita, o Kitt não é
muito melhor do que eu.
Lanço-lhe um olhar incisivo.
— Ainda estou à espera de ouvir uma fruta que não te pareça
repugnante.
Fica calado por um momento, a ponderar a sua resposta enquanto o seu
polegar passa ociosamente sobre o meu.
— Morangos.
Fico espantada.
— Adoro morangos.
Um sorriso lento aparece nos seus lábios.
— E não os acho repulsivos.
— Ótimo.
— Ótimo.
— Vamos.
A palavra sai-me da boca e eu aproveito-me da sua surpresa. A
determinação toma conta de mim enquanto luto para lhe prender o polegar,
movendo a minha mão e o meu braço no processo. Quase caio em cima dele
para finalmente conseguir pousar o meu polegar no seu, apesar de ter
infringido as regras.
E, de repente, estou a ser puxada contra o seu corpo.
Puxa-me pelo braço, aproximando-me o suficiente para contar as
pestanas escuras que lhe envolvem os olhos.
— Tu fizeste batota, Gray.
— Fiz o que tinha de fazer para ganhar, Azer.
— Hmm — ele sibila, e eu sinto a vibração no seu peito. — Supo­nho
que a culpa é minha por me ter esquecido do quão cruel és.
— Bem, eu...
As palavras morrem na minha garganta quando ele solta a sua mão da
minha e percorre o meu braço com os seus dedos. Reprimo um arrepio ao
toque repentino, mas o sorriso que lhe ergue os lá­bios diz-me que não
passou despercebido.
— Retiro o que disse — diz ele suavemente. — Este jogo não é nada
aborrecido quando toco em ti.
O seu olhar foca-se nos dedos que deslizam sobre o meu braço, e eu
continuo sob o seu toque suave.
Não sei ao certo quanto tempo ficamos assim, a ouvir o vento a mover
as folhas por cima de nós, enquanto nos observamos um ao outro. E é só
quando os seus dedos sobem pelo meu pescoço para colocar uma madeixa
de cabelo atrás da minha orelha que finalmente recupero os sentidos.
— Tenho de ir.
As palavras inseguras pairam entre nós, pouco mais do que um
sussurro que o vento quase rouba.
— Não creio que seja o que queres fazer — murmura.
Recuso-me a pensar no que quero fazer e, em vez disso, fujo à
conversa.
— Um dia destes, vou ganhar-te numa guerra de polegares, e de­pois já
não estarás tão divertido.
Ele ri-se suavemente, seguido de um murmúrio igualmente suave.
— Não é a vitória que me diverte. És tu, querida.
Depois de um momento longo, liberto-me do seu aperto e sento-me
lentamente. A noite está cada vez mais fria e, sem o calor do corpo de Kai
junto ao meu, o meu vestido fino pouco faz para me manter quente.
Kai senta-se ao meu lado e envolve-me os ombros com o seu casaco.
— Tens razão. Este casaco faz-me demasiada comichão para eu o usar.
Depois os seus lábios contorcem-se num sorriso.
— Por isso, vou deixar que sejas tu a usá-lo.
Coloco as mãos sobre os ouvidos, abafando os guinchos altos.
— Muito bem, o que é que achas? — Adena está radiante, gesticu­‐
lando como uma louca para o vestido parcialmente feito que está pendurado
na minha cama.
— Uau — suspira Ellie, inclinando-se sobre o meu ombro para o ver
melhor. — É... — interrompe-se enquanto os seus olhos percor­rem o tecido.
— Perfeito — termino por ela. — Absolutamente deslumbrante. Tu
superaste-te, A.
Devolvo-lhe um sorriso, largo e cheio de admiração por uma pessoa
poder ser tão talentosa.
— Bem — resmunga, tirando o vestido meio feito da cama e
pousando-o novamente no colo. — Ainda não está terminado. Só tenho
mais dois dias até ao último baile, e tem de estar absolutamente perfeito...
— A. — Eu lanço-lhe um olhar conhecedor. — Não te preocupes, vai
ficar perfeito.
Depois suspiro, abanando a cabeça.
— Tu poderias colocar-me num saco de farinha e mesmo assim iria ser
o melhor vestido da festa.
Adena parece verdadeiramente alarmada com essa sugestão.
— Eu nunca te poria num saco de farinha. — Leva um dedo aos
lábios, pensativa. — E não só porque ficarias horrível, mesmo em ti, mas
porque o tecido é demasiado áspero, demasiado rígido para...
Os seus grandes olhos cor de avelã passam por mim e Ellie, ten­tando
reprimir os nossos sorrisos.
— O quê?
Ás suas mãos estão nas ancas, as sobrancelhas arqueadas, as pernas
cruzadas e cobertas de tecido. Nunca vi alguém a tentar pa­recer tão severo
e, ao mesmo tempo, tão inocentemente doce.
Sabe bem rir, fazer qualquer coisa que não seja treinar e bisbilho­tar o
castelo na esperança de encontrar o túnel sozinha. Mas parece que Kitt é a
única chave, e eu estou indefesa sem que ele me mostre a passagem.
Desamparada se ele não confiar em mim. Passei quase todos os dias com
ele, com cuidado para não parecer desesperada quando menciono
casualmente detalhes sobre Loot, tentando seduzido para fugir comigo.
Nada.
Estávamos a conversar calmamente quando uma batida na porta nos
faz saltar. Ellie lança-me um olhar, perguntando-me silenciosa­mente se eu
estava à espera de alguém, ao que lhe respondo com um encolher de
ombros sem saber o que fazer. Ela corre até à porta e abre-a hesitantemente,
revelando uma figura alta e sorridente.
Kitt.
Ellie faz uma vénia e eu estou subitamente ao seu lado, com um
sorriso ligeiro nos lábios enquanto digo.
— Vossa Alteza, que surpresa inesperada.
Kitt inclina a cabeça graciosamente na minha direção.
— Porquê, Miss Gray, espero não me estar a intrometer?
O seu olhar divertido passa de Ellie para a minha cama, onde Adena
está sentada, de olhos arregalados e coberta de tecido.
— Miss Ellie, Miss Adena, importam-se que eu vos roube a Paedyn?
Ellie oferece-lhe um sorriso tímido enquanto Adena tenta aba­far um
grito antes de dizer.
— Não, Vossa Alteza, de modo algum!
Baixo a cabeça, tentando reprimir um sorriso envergonhado e de
entretenimento. Kitt já está a olhar para mim quando eu espreito na sua
direção.
— Vamos?
As suas gargalhadas acompanham-nos ao longo de todo o cor­redor e
eu inspiro antes de perguntar:
— Então, para onde me vais levar?
— Na verdade — Kitt olha de forma nervosa à nossa volta —, estava à
espera de que tu me levasses daqui.
O meu coração começa a bater depressa. Mas controlo a minha
fisionomia, fingindo estar confusa.
— Não sei se estou a perceber.
Kitt abranda e leva-nos para um canto antes de se inclinar sobre mim.
Estou assustada com esta súbita mudança de acontecimentos, com a sua
súbita proximidade e com o súbito aroma a especiarias que me invade.
A sua cabeça aproxima-se da minha, e a sua voz baixa um tom.
— Loot.
E aí está.
Essa única palavra que me faz bater o coração.
— Quero que me leves até lá.
— A sério? — A palavra sai ofegante e um pouco ansiosa de mais para
o meu gosto.
Kitt não parece reparar, demasiado ocupado a analisar o corre­dor para
se certificar de que ninguém ouve.
— Sim. — Os seus olhos estão de novo nos meus. — Não devia,
mas... devia. O que tu disseste é verdade. Tudo. Preciso de ver o meu povo.
Não posso governar um reino que mal conheço, com pessoas que têm
necessidades que eu não conheço. — Faz uma pausa, pensa­tivo. — Preciso
de começar a decidir o que acho melhor.
Ele suspira.
— Preciso de fazer isto. Por muito que não queira contrariar o meu pai,
e por muito que saiba que esta é uma ideia terrível — ri-se, mas o som é
tenso —, sei que se não o fizer agora, nunca o farei. E tenho de agradecer-te
por me lembrares do tipo de Rei que nunca quero ser.
A alegria que me aquecia há momentos desapareceu, substituída pelos
dedos gelados da culpa. De repente, lembro-me da sua bon­dade, da sua
tolerância para comigo, da sua vontade de ouvir.
E olha onde é que isso o levou. Traição.
Engulo o nó que me está a subir à garganta.
— Estás a fazer o que está certo. E terei todo o gosto em mostrar-te a
minha casa, já que tão gentilmente me mostraste a tua.
Sorrio, tentando parecer casual e nada calculista, enquanto es­pero que
me mostre a única coisa que ando à procura.
Os túneis.
Ele acena lentamente com a cabeça, domado por uma expressão séria.
— Tens a certeza de que me consegues levar lá e voltar sem que
ninguém me identifique?
— Confias em mim?
As palavras sabem a cinzas e, no entanto, deslizam da minha língua
como seda. O meu peito aperta-se, e, no entanto, respiro um pouco mais
fundo. Os meus joelhos ameaçam tremer e, no entanto, fico um pouco mais
alta.
Estás a trair um homem para salvar a vida de centenas. Para sal­var
as vidas do teu povo.
O sorriso de Kitt é suave.
— Sim.
É espantoso como uma simples palavra pode condenar alguém.
E depois a minha mão está na sua, enquanto ele me conduz ao
primeiro passo para encontrar a salvação do meu povo.
Nunca pensei que a salvação estivesse nas masmorras.
Kitt empurra uma porta grande e pesada ligada a um dos cor­redores
antes de descermos a escadaria atrás dela. O ar torna-se bafiento e frio a
cada passo que damos. Acena aos guardas espa­lhados por esta masmorra
húmida por baixo do castelo, com um ar completamente casual. Como se
trouxesse sempre as suas amigas cá abaixo.
Passamos por dezenas de celas sujas e desarrumadas, algumas das
quais ainda decoradas com os ossos dos seus antigos residen­tes, enquanto
outras são ocupadas pelos vivos. Eles observam-nos à medida que
passamos, os seus olhos fazem-me cócegas na pele, os braços esticados
através das grades ferrugentas.
— Por aqui — diz Kitt, chamando a minha atenção para a tarefa que
tenho em mãos. A sua cabeça percorre o corredor de um lado para o outro e,
depois de considerarmos que a costa está livre, en­tramos na última cela.
O meu coração salta-me para a garganta e engulo. A passagem é numa
cela. É brilhante, a sério. Nunca teria adivinhado que uma fuga para fora do
castelo estaria ligada ao único sítio de onde não querem que ninguém fuja.
— Não colocamos prisioneiros nesta cela, embora eles nunca con­‐
seguissem entrar na passagem mesmo que soubessem que estava aqui uma
— murmura Kitt enquanto as suas mãos deslizam pela parede.
Empurra uma pedra grande mesmo por cima da sua cabeça, uma que
parece completamente vulgar ao lado das outras. Desliza para trás, e eu
desvio o olhar enquanto conto as pedras, marcando o seu lugar na parede.
Kitt tem um anel grande com chaves a tilintar na sua mão, e com o
metal brilhante a cintilar na luz fraca, agarra na última chave. É grande e
está marcada pela idade, com relevo de círculos des­botados a passar pelo
topo. Kitt lança-me um sorriso por cima do ombro enquanto enfia a chave
num pequeno buraco que só ficou visível depois de ter empurrado a pedra
para trás. Fala casualmente enquanto trabalha para rodar a chave.
— Como estava a contar, mesmo que mantivéssemos prisio­neiros
nesta cela, e mesmo que encontrassem esta pedra em par­ticular, não
conseguiriam sair. Tenho sempre o meu porta-chaves comigo. — Ouço um
estalido metálico na parede. — Achei que o sítio mais seguro para ele era
na minha pessoa.
Concordo com um aceno, o meu pulso acelerado a sofrer com a
antecipação. Kitt coloca a chave de volta no seu anel de prata antes de as
deixar cair no interior do seu bolso.
Depois empurra uma parte da parede e esta abre-se.
As pedras que outrora pareciam totalmente normais, transfor­maram-se
agora numa porta camuflada. Kitt agarra a minha mão e puxa-me atrás dele
antes de fechar a porta, mergulhando-nos na escuridão. O escuro cai sobre
nós como um cobertor, pesado e imediato.
Nem sequer consigo ver a minha mão à frente da cara, por isso salto
quando ela toca no seu peito. Esse peito que vibra com um riso antes das
chamas se acenderem no seu punho, quase cegando-me com o seu brilho.
— Vamos? — pergunta Kitt com um sorriso.
Caminhamos por um túnel largo, húmido e viscoso, com os nossos
passos a ecoar nas paredes. Penso cuidadosamente nas mi­nhas próximas
palavras, sabendo que preciso de as elaborar como se estivesse
simplesmente curiosa e não desesperada.
— Onde vai dar este túnel, exatamente? E há muitos deles, como um
labirinto por baixo daquele que é o castelo? — pergunto, man­tendo a minha
voz casual.
Os meus pés oscilam quando chegamos a uma bifurcação no túnel
onde o caminho se divide em dois. Kitt para comigo, a sua resposta é tão
casual como a minha pergunta.
— Na verdade, este é um dos túneis principais, por isso é um dos
únicos para os quais tenho a chave. Muitos deles estão bloqueados ou são
demasiado perigosos para serem usados neste momento.
Mantenho o meu rosto neutro, apesar da preocupação que pesa sobre
os meus ombros. E se a passagem que conduz à Bowl for um dos túneis
mortos? E se tiver sido bloqueada ou escavada ou...
Kitt acena com a cabeça para o túnel à esquerda, cortando os meus
pensamentos enquanto diz:
— Aquele leva-nos até perto dos campos de treino, mas não podes
abrir a porta do lado de fora.
Depois faz um gesto em direção ao túnel da direita.
— E aquele para onde estamos a ir, leva-nos à Arena Bowl e à sala por
baixo da caixa. Aquela onde ficámos antes das entrevistas.
Quase me engasgo. Entre tosses, culpo o ar sujo pela explosão e não a
informação que tão facilmente partilhou comigo. A informa­ção exata que
eu precisava.
A minha cabeça está a girar. Pensei na ideia de Kitt a usar um dos
túneis para ir ver Loot, para saber onde estavam os outros e qual deles
levava à Bowl. E aqui estamos nós, a passar casualmente pelo túnel exato
que eu precisava de encontrar.
Kitt puxa-me pelo túnel em direção à Bowl e eu fico aliviada por
finalmente ter descoberto a passagem. Caminhamos e conver­samos durante
quase dez minutos antes que a luz do fogo de Kitt ilumine uma porta
pesada.
Aqui está. A salvação.
Abre-a, revelando a sala escura por baixo da caixa, antes de esco­rar a
porta com uma pequena pedra para podermos voltar a entrar quando
regressarmos. Depois, dirigimo-nos para o alçapão no teto, empurrando-o e
abrindo-o antes de eu voltar a subir. Sinto o movi­mento das suas mãos nas
minhas costas antes de subir para a caixa de vidro. Kitt segue-me
rapidamente e saímos para a arena vazia.
— Como é que estamos a planear chegar a Loot? — pergunto-lhe,
erguendo as sobrancelhas.
— Uma vez que os rapazes do estábulo não podem saber que es­tamos
literalmente a cavalgar para o pôr do Sol — Kitt sorri —, vamos para o
campo ao lado da Bowl, onde muitos dos cavalos pastam du­rante o dia.
Saímos da Arena através de um dos muitos túneis de betão, amea­çador
mesmo com a ausência de um público agitado. Quando final­mente
chegamos à clareira, o calor do sol é bloqueado pela imponente Bowl ao
nosso lado.
Um belo cavalo branco vem a galope para nos cumprimentar,
claramente entusiasmado por também se afastar de um lugar aban­donado
pela Peste. Aclaro a garganta e engulo o meu orgulho antes de murmurar:
— Eu não sei montar.
— Então é melhor agarrares-te bem — responde Kitt com um sor­riso,
os seus olhos encontrando-se brevemente com os meus.
Sem sela, Kitt ajuda-me a subir para o cavalo antes de o montar
graciosamente. Não sei onde colocar as minhas mãos, sentindo-me
subitamente estranha com o meu peito pressionado contra as suas costas.
Vira a cabeça para olhar para mim, com o seu cabelo dourado a brilhar
à luz do sol.
— Tens a certeza de que queres fazer isto comigo?
— Claro! Eu sou a melhor pessoa para te mostrar o Loot.

Kitt não para de tossir desde que chegámos ao Loot.


— Pestes, isto aqui cheira mesmo mal. — Tosse, tentando limpar os
pulmões do ar espesso. — Caramba.
Eu resmungo, observando-o enquanto ele examina o novo am­biente,
ainda a tentar assimilar tudo. O seu olhar percorre as carro­ças gastas dos
comerciantes espalhadas por Loot, todas decoradas com estandartes
desbotados ou letreiros rasgados. Observa os pré­dios em ruínas e as lojas
que cercam a rua larga, ao ver o seu povo a entrar e a sair deles.
Volta-se a cada grito, ouvindo um homem a anunciar o peixe fresco
enquanto outro regateia ruidosamente com uma mulher o preço de um
tecido. À nossa volta, há um caos, uma espécie de lou­cura feliz. E nós
estamos no meio dele, rodeados por um enxame de pessoas que vivem a sua
vida. Vendem e compram. A viver e a tentar sobreviver. Loot parece
fervilhar com os seus habitantes e, no entanto, tudo o que vejo é o fervilhar
da existência.
Levanto-me e puxo para baixo o chapéu que está na cabeça de Kitt
Roubei um chapéu e uma camisa gasta para ele vestir, embora duvide que
alguém esteja a nos esteja a prestar atenção. Ele retri­bui o meu gesto, rindo-
se enquanto puxa o meu próprio chapéu, deixando mechas prateadas de
cabelo caírem à volta do meu rosto. Resmungo novamente, reajusto o
chapéu, com um sorriso nos lá­bios, antes de o levar pela rua, desviando-me
das crianças que brin­cam à volta das nossas pernas.
Kitt está a tentar absorver tudo, absorver cada pedaço de Loot. Cada
cartaz sem cor, cada pessoa que se cruza connosco na rua cheia de gente.
Um Véu está a fazer magia com alguns espectadores, impressionando a
multidão e usando o seu poder para ganhar algu­mas moedas. Elites
Defensores dão-se bem nessa parte dos bairros de lata, destacando-se entre
os muitos Mundanos.
Observo Kitt enquanto ele espreita pelas vielas e ruas mais pe­quenas
que saem de Loot, vislumbrando tendas improvisadas e os sem-abrigo que
nelas se amontoam. Ele fica tenso ao ver crianças solitárias e pequenas
movendo-se entre os carrinhos, com as mãos claramente desejosas de
apanhar qualquer tipo de comida.
— Serão chicoteados quando forem apanhados — digo-lhe, rapi­‐
damente.
Os seus olhos estão agora fixos nos meus.
— Quando forem apanhados?
— Sim. Quando. — Suspiro e continuo a conduzi-lo pela rua cheia de
gente. — Os mais novos são imprudentes e demasiado impacien­tes para
serem bons ladrões nesta idade. E como a maioria dos Elites dos bairros de
lata são Mundanos, os seus poderes são provavel­mente inúteis quando se
trata de sobreviver. Algo que me familiar.
Paro-nos em frente ao poste sangrento que fica no centro de Loot, onde
ladrões e criminosos são espancados.
— É aqui que os teus Imperiais castigam estas crianças pelos seus
crimes. — Abano a cabeça em direção aos guardas que ladeiam a rua,
atualmente a examinar a multidão em busca da próxima vítima.
Kitt aproxima-se de mim, diminuindo a distância entre nós. Os seus
olhos verdes brilham com uma emoção que ele não tenta esconder.
— Alguma vez...
— Sim. Eu já fui uma dessas crianças. Mais do que uma vez. E tenho
as cicatrizes como prova. — As marcas ao longo da parte inferior das
minhas costas parecem formigar com a menção e a lem­brança de como
foram feitas. Ele olha para mim com tanta dor, tanta pena nos seus olhos
que, pela primeira vez desde o nosso passeio no jardim, não consigo encará-
lo.
Por isso, afasto-o antes que possa dizer mais uma palavra.
— Anda lá. Quero mostrar-te uma coisa.
Arrasto-o pela rua, segurando-lhe a mão com firmeza para que não se
deixe levar pela multidão. Ninguém presta atenção ao futuro rei que
caminha entre eles, nem à Vulgar que o conduz à vista de todos.
Paro no fim de um beco familiar. A minha pequena casa impro­visada
ainda está escondida num canto. Memórias agridoces vêm à tona enquanto
me aproximo da barreira de lixo e tapetes que co­nheço como o Fortaleza.
Kitt está de repente ao meu lado, o seu braço tocando no meu enquanto
olha para o monte.
— Era aqui que dormias — Não é uma pergunta.
— Lar, doce lar — sussurro, surpreendida com a tensão da minha voz.
E, de repente, o meu rosto está entre as suas mãos e a sua voz assume
uma espécie de seriedade suave.
— Lamento imenso. Lamento imenso que tenhas tido de viver assim.
— Ele suspira enquanto os seus olhos procuram os meus. — Obrigado.
Obrigado por me teres mostrado isto. Loot. O meu povo. — Faz uma pausa.
— E por ti. Obrigado por me teres confiado os teus pormenores.
A minha garganta treme quando a culpa me atinge novamente,
obrigando-me a lutar para manter a voz firme quando lhe respondo:
— Não, obrigada por confiares em mim, Kitt.
— Porque é que está a demorar tanto tempo? Pestes, está imenso frio.
Os meus dentes batem graças a uma noite estranhamente fria e a minha
camisa fina pouco faz para evitar que a brisa fresca me beije a pele.
— Paciência, Princesa — murmura Lenny ao meu lado. Estou a
empurrá-lo com um sorriso irritado. Ele reprime a vontade de me empurrar
de volta e eu devolvo-lhe um sorriso malicioso, deixando-o tentado a fazer
o mesmo.
E quando penso que as coisas estão prestes a ficar interessantes, a
porta abre-se.
— Desculpem interromper a vossa brincadeira, mas está muito frio
aqui fora e vocês deviam entrar antes que se constipem. — A voz de Calum
é brincalhona, quando ele se afasta para nos deixar entrar em casa.
A minha casa.
Dirigimo-nos para o escritório e descemos as escadas escondi­das até à
cave. Já estive aqui várias vezes desde a noite em que me aventurei pela
primeira vez a regressar a casa, e já me sinto indife­rente com a visão do
escritório do meu pai. Estou menos assom­brada, mas ainda longe de estar
bem com isso. Suponho que até o trauma se canse do seu tormento
interminável, nem que seja só por algum tempo.
Uma voz profunda e provocadora saúda-me quando chego ao fundo
das escadas.
— Olha ela.
Aceno para Finn, que está com as pernas cruzadas sobre uma mesa e
os braços atrás da cabeça. Ele sorri e o meu olhar salta para Leena, sentado
no chão cheio de mapas à sua frente.
Para além de serem diferentes líderes da Resistência em Ilya, aprendi
que cada um deles tem um objetivo, algo que usam para con­tribuir para a
causa. Leena é uma artista talentosa e todos os nossos mapas detalhados são
dela, enquanto Finn se dedica a desenhar as armaduras de couro e as
máscaras. Lenny é os olhos e ouvidos no castelo, enquanto Mira é uma
Silenciadora, o que a torna obviamente valiosa.
Leena sorri quando me vê e deixa o seu trabalho para trás para se
juntar, Finn segue-a para se sentar no círculo de cadeiras.
— A Mira hoje não veio? — pergunto, olhando à volta da grande sala
cheia de mesas cobertas de documentos e camas cobertas de lençóis
desarrumados.
— Não — diz Calum com uma voz baixa. — Teve de ficar em casa a
tomar conta da mãe.
Estou a pensar em fazer perguntas que provavelmente não deve­ria
estar a fazer quando Calum rapidamente redireciona a conversa.
— Então, Paedyn, o que é que tens para nós? Alguma coisa? — Con­‐
sigo ouvir o mesmo desespero que tem estado presente de todas as vezes
que o visitei e tive de admitir os meus fracassos.
Mas hoje não.
— Encontrei o túnel. Bem, na verdade, o Kitt conduziu-me atra­vés
dele hoje de manhã. — Estou praticamente sem fôlego, finalmente exalando
as palavras. Todos se inclinam, de olhos arregalados, en­quanto lhes conto o
meu plano e a impossibilidade de ter funcionado.
Quando termino, é Finn quem quebra o silêncio.
— Eu sabia que tu ias conseguir enganar o futuro rei.
— Estou orgulhoso, princesa — diz Lenny com um sorriso torto.
Com isso, começo a explicar-lhes tudo o que vi e onde começa e acaba
exatamente a passagem.
— Depois de entrarem no túnel pela última cela à esquerda, a meio do
caminho verão uma bifurcação. O caminho da esquerda vai até à porta que
está junto aos campos de treinos, e o da direita leva-nos até à Bowl e à sala
por baixo da caixa.
Leena está a anotar avidamente as informações, absorvendo cada
palavra e transferindo-as para o papel. Numa questão de mi­nutos, sabe onde
está a passagem, para onde vai e como a encontrar.
— Só há um problema — acrescento, rodando ansiosamente o anel no
polegar. — Precisamos de uma chave para entrar na passa­gem, e o
problema é que ela está sempre com o Kitt.
Finn resfolega.
— Fácil. Tira-lhe a roupa.
Lanço-lhe um olhar antes de me voltar para Calum.
— Eu posso tratar disso. No baile, pego na chave e entrego-a ao
Lenny. Como a Prova é no dia seguinte, Kitt não vai ter tempo de se
aperceber que a chave desapareceu antes disso. — Mastigo o interior da
minha bochecha antes de acrescentar: — Assim espero.
— Parece-me um plano — diz Lenny com um bocejo.
Eu fixo-lhe o olhar.
— Qualquer pessoa que vá atravessar o túnel e entrar na caixa tem de
entrar pela porta junto ao campo de treinos. Por isso, Lenny, tens de os
deixar entrar, uma vez que a porta só abre por dentro, e, a partir daí, podem
descer o túnel em direção à Bowl. Entendido?
Lenny acena-me com a cabeça.
— Entendido.
Falamos durante pelo menos mais uma hora, discutindo os por­‐
menores. Depois, Lenny e eu levantamo-nos para sair, espreguiçando os
nossos corpos rígidos antes de nos despedirmos e subirmos as escadas.
Quando saímos, a brisa fresca bombardeia-me e dou por mim a tremer
mais uma vez. Lenny coloca um braço à volta dos meus om­bros e
aconchega-me, despenteando o meu cabelo com a outra mão. Eu rio-me,
empurrando-lhe a palma da mão enquanto tento alisar as madeixas
prateadas que me caem sobre os ombros.
— O baile é amanhã — lembra Lenny, com um tom quase solene.
— O baile é amanhã — repito, com um mero sussurro.
— E depois é a Prova final. — Ele está a olhar para as estrelas que nos
olham de cima.
Exalo uma gargalhada trémula, aparentemente incapaz de pro­duzir as
minhas próprias palavras, pois digo:
— E depois é a Prova final.
Lenny olha para mim.
— O que é que tu és, um papagaio ou uma Paedyn?
Resmungo e deixo a minha cabeça cair para trás para olhar para o céu
estrelado. A minha resposta é calma, pensativa.
— Eu não sei o que sou.
Sinto um aperto no meu ombro e viro-me para ver Lenny a sor­rir para
mim.
— Tu és Paedyn Gray. A Salvadora Prateada, língua de prata, e rápida
a enfiar a sua adaga de prata nas pessoas.
Gritos. Gritos terríveis e torturantes ressoam no meu crânio, ecoam na
minha mente.
Ela.
É ela.
Corro pelos corredores do castelo, a suar, enquanto procuro e grito por
ela.
A única resposta é um grito a pedir ajuda, um pedido de mise­ricórdia.
Abro-lhe a porta do quarto, entro de rompante e procuro na es­curidão.
Algo prateado brilha ao luar que entra pela sua janela aberta.
Ali.
O seu cabelo. Aquele cabelo prateado lindo. Mas o que os meus olhos
veem não é algo bonito.
Não, é algo aterrador.
Está coberta de sangue, sentada numa poça. As lágrimas cor­rem-lhe
pelo rosto, agora contorcido pela agonia.
Dor inacreditável. Sofrimento que não tem salvação.
Volto a ver aquele brilho prateado, mas não é o cabelo a brilhar como
eu pensava.
Adaga.
É a sua adaga.
A ponta afiada está pressionada contra o peito, fazendo escor­rer
sangue pelo seu corpo e espelhando as lágrimas que lhe correm pelo rosto.
Que simetria horrível.
De repente, estou ao seu lado, ajoelhado numa poça de sangue. O seu
sangue. Não me vê, não fala, não faz nada a não ser gritar. An­gústia. Nunca
vi tamanha angústia.
— Paedyn! Pae, olha para mim! — Nada. Nenhuma reação.
Mais soluços. Mais sangue.
Agarro o cabo escorregadio da adaga que ela lentamente pres­siona
sobre o seu coração.
Está coberta de sangue.
Sangue tão pegajoso que se agarra às minhas mãos, sobe pelos meus
braços, cobrindo-me com a única coisa que nunca consegui­rei lavar.
Nunca quis ter o seu sangue nas minhas mãos. Nunca o seu sangue.
A sua cabeça vira-se, muito lentamente, e um rosto cheio de lá­grimas
está agora virado para mim.
— Faz com que isto pare. — Ela está a choramingar.
Paedyn não choraminga.
— Está a doer muito. Por favor, faz com que pare. Faz com que pare.
Faz com que pare!
Os soluços estão a assolar o seu corpo, e eu estou a segurar a faca
enquanto ela tenta desesperadamente cravá-la no seu belo coração.
— Dói-me o coração.
Mais soluços. Mais gritos implorando pela morte. Isto é errado.
Isto é muito errado.
Paedyn é demasiado forte, demasiado teimosa, demasiado especial.
Ela não pode morrer. Não o vou permitir. Nem pela sua mão nem pela
mão de ninguém.
Os seus gritos estão a dividir-me a alma, a cabeça, o coração.
Não consigo aguentar. Não aguento mais. Não aguento mais.
Sinto as lágrimas, a escorrerem-me pelo rosto.
Agora estou a implorar.
Estou a implorar-lhe para ficar. Para viver. Por mim.
Dou por mim a gritar, a soluçar e a tremer.
— Kai?
A minha cabeça vira-se e, através da minha névoa de histeria, vejo
uma figura magra a pairar sobre mim.
Tem um sorriso familiar no rosto, apesar do sangue que jorra do seu
peito, onde uma estrela de arremesso está alojada.
Cai de joelhos, com os olhos brilhantes a fixarem-se nos meus.
Desta vez, ouço o grito a sair da minha garganta enquanto me atiro a
ele, abraçando-o, enquanto imploro para que viva.
Os passos ecoam nas paredes e, quando olho para cima, vejo de­zenas
de corpos à minha volta. Todos ensanguentados e a suplicar. São todos
vítimas minhas.
Eles olham-me fixamente, com o ódio a arder nos seus olhares
enquanto fixam o homem que os matou.
Conheço cada um dos seus rostos. Cada uma das suas feridas que eu
infligi.
Eles cercam-me. Abutres a antecipar uma morte. Depois ouço um som
que conheço demasiado bem.
O ruído doentio do metal a cortar o osso, dos tendões a rasga­rem-se,
dos músculos a transformarem-se à volta de uma lâmina.
Ela cai no chão — adaga no coração, lábios a sorrir. Estou a gritar.
Levanto-a com os meus braços, penteio-lhe o cabelo ensanguen­tado,
digo-lhe qualquer coisa, mas não sei o quê.
A minha mente está dormente. O meu coração está dormente.
Tudo está dormente.
Está a sorrir para a morte, como se estivesse feliz por se livrar da vida.
Feliz por se ver livre de mim.
Eu sou a dor. Eu sou a tristeza. Sou também a angústia.
Acho que também posso estar morto. Apodrecendo por dentro.
Gritos. Nunca tinha ouvido falar da agonia de uma forma tão crua.
Tinha acabado de me deitar na cama, depois de ter regressado de Loot,
mas atirei os cobertores e pus-me de pé. Cambaleio pelo quarto escuro,
tropeço nas botas, que estão no chão.
Quando os meus dedos se agarram finalmente ao puxador frio da
minha porta, abro-a com força e saio para o corredor sombrio.
Um grito ecoa, e eu paro ao ouvir o som. É ele.
Não sei como percebi, uma vez que nunca ouvi o futuro Execu­tor a
gritar, mas algo me puxa na direção do seu quarto. Os meus pés movem-se
por si próprios, guiando-me para mais perto dele a cada passo.
Paro diante da sua porta, arrastando os meus pés insistentes até parar.
O que é que eu estou a fazer?
Não posso simplesmente entrar-lhe pelo quarto dentro. Certo?
Errado.
Isto é uma má ideia.
Sim, mas esta é uma má ideia que quero seguir.
Outro grito de angústia sai-lhe da garganta e eu não hesito em abrir a
porta. A escuridão envolve-me e eu, mais uma vez tropeço, com os olhos
semicerrados para ver, as mãos estendidas para me guiar.
O contorno da cama aparece, juntamente com o contorno do corpo em
cima dela. Dirijo-me a ele, pestanejando à para me ajustar à feita de luz,
apenas para percorrer o seu peito exposto, pesado e manchado de suor.
A sua cabeça está atirada para trás contra uma almofada, com
madeixas de cabelo escuro coladas à testa. Está a respirar de forma trémula
e superficial, cada centímetro dele está tenso. Nem consigo imaginar o que
lhe estará a assombrar o sono, o que lhe está a rou­bar o descanso e a deixá-
lo tão descomposto. Que pesadelo é assim tão terrível que nem o Príncipe
se consegue defender?
Os seus lábios movem-se com palavras murmuradas que não consigo
entender, e agora estou verdadeiramente preocupada.
Estou preocupada com ele.
Deixo o pensamento assentar por um momento antes de colocar uma
mão suave no seu ombro e quase ofegar com o calor da sua pele. Está a
arder.
— Kai — digo-lhe baixinho, sem o querer assustar. Nada.
— Kai — chamo, desta vez mais alto, abanando-lhe o ombro para
tentar tirá-lo do pesadelo.
Ele grita de novo e eu quase faço o mesmo. Agora estou ofe­gante, em
pânico, a pedir-lhe que acorde para podermos voltar a brincar, em vez de
lhe implorar que abra os olhos.
Subo para a sua cama, passando uma perna por cima do seu corpo, de
modo que ele fique pressionado entre as minhas coxas, enquanto coloco as
duas mãos no seu peito escorregadio.
— Kai! — Abano-o com força, desejando que acorde.
— Kai! — Irrita-me o facto de me preocupar tanto. Irritada por me
preocupar se ele está a sofrer ou não. Irritada por não conseguir suportar vê-
lo assim...
E depois aqueles olhos cinzentos abrem-se.
De repente, mãos fortes agarram-me a cintura e retiram-me de cima
dele. As minhas costas são pressionadas contra o colchão enquanto ele me
prende, as mãos esmagam os meus braços, o seu corpo esmaga o meu.
E depois sinto algo frio a pressionar a minha garganta.
Reconheceria a sensação de uma adaga em qualquer lado, por isso não
me dou ao trabalho de olhar para o que ele está agora a encostar ao meu
pescoço. Respiro pesadamente, mantendo os meus olhos fixos no seu olhar
selvagem, falando de seguida com uma voz suave.
— Kai, sou eu.
A sua força é chocante, e acho que não conseguiria sair de de­baixo
dele, mesmo que tentasse. Está a ofegar tanto quanto eu, praticamente
paralisado por cima de mim.
— Kai. Foi só um pesadelo.
Mantenho a minha voz calma enquanto ignoro o meu coração
trovejante que diz que eu sou tudo menos isso.
— Kai, sou eu. Paedyn.
Pestaneja, uma e outra vez, como se estivesse a limpar a cabeça. Como
se estivesse a ver-me pela primeira vez. O ar fresco cobre-me o pescoço
enquanto ele afasta a adaga, os seus olhos nunca se desviam dos meus.
— Sou eu. Pae. — A minha voz treme, libertando um sussurro. —
Kai?
Sinto a minha voz rouca e algo parece que estala dentro dele.
Ele respira fundo, ao ver o que passa. Libertando o meu braço do seu
aperto assustador, volta a enfiar a adaga debaixo da almo­fada, enquanto
tenta acalmar a respiração. A sua máscara de frieza está exposta, desfeita
pelo pânico, e eu consigo ver todas as emoções que se manifestam no seu
rosto.
Nunca o vi tão assustado, tão desorientado, tão enojado de si próprio.
Os seus olhos estão assombrados, cheios de horrores, enquanto
vagueiam pela sala, recusando-se a encontrar o meu olhar. Percebo que está
prestes a sair de cima de mim sem dizer uma palavra, e recuso-me a deixar
que isso aconteça. Recuso-me a esquecer este mo­mento em que o príncipe
era apenas um rapaz.
Aqueles olhos cinzentos e fantasmagóricos fecham-se ao sentir a
minha mão na sua face. Eu acaricio-lhe o rosto, timidamente, com ternura,
enquanto me maravilho silenciosamente com a sensação de o ter contra a
minha palma. Tem o rosto definido, e sinto um mús­culo a ficar tenso
quando deslizo o meu polegar pela sua bochecha.
Baixa a cabeça, com os olhos ainda fechados para não ter de se cruzar
com os meus.
A minha ordem é ao mesmo tempo suave e severa, segura e tré­mula. A
minha outra mão está agora no seu rosto, ajudando-o a erguer-se para se
encontrar com o meu olhar. Ele respira fundo e estremece antes de abrir os
olhos. A sua firmeza é tão surpreen­dente quanto deslumbrante.
— Não te escondas de mim — respiro, de repente incapaz de recu­perar
o fôlego com a forma como ele olha para mim. — Nunca mais.
Quero olhar para o seu rosto, aquele sem a máscara que já vi tantas
vezes. Vejo os seus olhos a vaguearem sobre mim, sobre o meu corpo ainda
apertado debaixo do seu, sobre os meus cabelos desalinhados e espalhados
pela sua almofada.
Quase como se me estivesse a gravar na memória.
Suspiro sob o seu olhar, que apenas consegue ir até ao meu pes­coço,
onde sinto um rubor a aparecer. Não, não é só um rubor. O meu pescoço
arde. De repente, lembro-me que as minhas mãos ainda estão no seu rosto,
deixo-as cair lentamente para levar os dedos até ao meu pescoço.
A sua mão rápida agarra-me o pulso antes de passar os dedos
suavemente pela minha garganta. Mal consigo reprimir um estre­mecer
quando a minha pele encontra o seu toque, a sensação dos seus calos a tocar
na minha pele corada.
— Olha o que te fiz. — A sua voz é áspera, ainda cheia dos restos de
sono e crua com os gritos que lhe saíram da garganta. Puxa os dedos para
trás, agora manchados de sangue pegajoso.
Parece tão magoado com a ideia de me espetar uma adaga que solto
uma gargalhada ofegante, apesar da situação atual. Parece alar­mado com a
minha explosão, o que só me faz rir ainda mais.
— Engraçado — suspiro —, normalmente sou eu que levo uma adaga
à tua garganta.
Desejo silenciosamente que um sorriso lhe apareça nos lábios, que
aquelas covinhas me venham dizer olá. Mas ele limita-se a olhar para mim
antes de dizer baixinho:
— Vais ficar com sangue no cabelo.
Podia ter-me rido outra vez se não fossem os seus dedos na minha
garganta, fazendo-me calar. Ele senta-se ligeiramente, deslizando uma mão
até à minha nuca, antes de levantar a minha cabeça da almofada e pentear-
me o cabelo para trás com a outra. É uma ação lenta, e deixo que os seus
dedos percorram os fios prateados enquanto embala a minha cabeça.
— Eu até voltava a fazer tranças, mas já me informaste que não tenho
jeito nenhum para tal — relembra com seriedade, o que con­trasta com a
forma gentil como volta a pousar a minha cabeça na almofada. Sem hesitar,
agarra no canto de um cobertor e começa a limpar o sangue que resta no
meu pescoço.
— Precisas de praticar mais, é só isso.
Ficámos ambos quietos, satisfeitos por deixar que o silêncio se estenda
entre nós.
Ele olha para mim, e eu olho para ele. Estou perdida no momento,
perdida nos seus olhos. Não se vê ou partilha nenhum sorriso, ne­nhuma
frase sarcástica a ser dita. Só nós os dois, com o coração a bater
descontroladamente, a respiração trémula.
Pestanejo, apercebendo-me do que estou a fazer, do que se está a
passar, do que está a acontecer entre nós. Por isso, limpo, mexendo-me
lentamente por baixo dele. Ele respira fundo, percebe o que eu quero e sai
de cima de mim lentamente. Só quando o ar fresco me atinge é que me
apercebo de como estou corada, de como a minha pele está quente.
Levanto-me, puxando a camisola para cima e deslizo para a beira da
cama. Sinto o seu olhar penetrante enquanto me levanto, subitamente
consciente do pouco tecido que cobre o meu corpo.
Dou um passo em frente. Outro.
Os seus dedos tocam no interior do meu pulso.
— Fica.
Eu fico quieta. O tempo para. A respiração para.
É espantoso como uma simples palavra pode afetar alguém.
— Por favor.
O meu coração tropeça em si próprio ao ouvir este apelo.
«Poucos têm o poder de me fazer suplicar.»
O peso das minhas próximas palavras está a pressionar-me, esmagando
os meus pulmões para que nenhum som possa sair. O que vou dizer a seguir
pode criar um fosso entre nós ou criar uma liga­ção ainda mais próxima.
Demasiado próxima.
Fico? Vou-me embora?
A minha mente está a gritar-me para que faça uma coisa, mas o meu
coração está a bater, implorando-me para fazer outra. Apesar do silêncio
que se estende entre nós, os meus pensamentos confusos são
ensurdecedores.
Mesmo de costas, sinto os seus olhos em mim, sinto o movi­mento das
suas mãos, sinto o que ele me está a fazer.
E se eu não disser nada?
As palavras só podem ser condenadas se forem ditas.
Por isso, é isso mesmo que vou fazer. Não vou falar, não vou pen­sar —
vou sentir. Vou abafar os pensamentos insistentes e simples­mente sentir.
Viro-me lentamente e encaro-o. A sua respiração fica presa, o seu
olhar suaviza-se. Não pensou que eu ficasse.
Espera que todos o abandonem.
E com esse pensamento desolador em mente, não hesito em le­vantar os
cobertores da sua cama. Ele segue o movimento, observa as minhas mãos a
dobrarem os cobertores, o meu corpo a enfiar-se por baixo deles.
Acho que não está a respirar, e a minha cabeça está de tal ma­neira à
roda que também não me parece que eu esteja. Afundo-me no colchão, nas
almofadas macias, no perfume que as cobre. Ele. Estou rodeada por ele.
Encolho-me, com o coração acelerado quando sinto a roupa da cama em
movimento.
E depois fico mesmo rodeada por ele. O seu peito encosta-se às minhas
costas, perguntando-me silenciosamente se o quero mais perto ou mais
longe. Eu engulo antes de me inclinar para trás, muito ligeiramente, dando-
lhe uma resposta.
Quero-o mais perto de mim.
Ele não hesita. O seu braço está à volta da minha cintura e puxa-me
contra ele antes que tenha a oportunidade de recuperar o fô­lego. Estou
apertada contra o seu corpo forte, entre os cobertores e ele. Sinto-me
segura, protegida e mais tranquila nos seus braços do que alguma vez me
senti em anos.
Eu sinto-o.
Algo nisto, em nós, parece diferente. Intencional. Ambos quería­mos
isto. Não fomos forçados a ficar juntos por causa do frio ou de uma lesão.
Eu podia ter-me afastado, mas escolhi isto. Não, nós esco­lhemos isto.
Escolhemo-nos um ao outro.
E isso assusta-me.
O seu polegar desenha círculos na parte inferior do meu estô­mago e o
meu top pouco faz para impedir que o calor dos seus dedos se infiltre. Os
meus olhos fecham-se, sentindo-me de alguma forma cansada, mas
demasiado consciente do seu corpo pressionado contra o meu para me
deixar dormir.
Apoia a cabeça na curva do meu pescoço, o seu hálito faz-me cócegas
na pele enquanto murmura:
— Obrigado.
Essa palavra assusta-me o suficiente para me fazer virar a ca­beça e
fitá-lo. Pergunto-me como é raro o príncipe, o futuro Execu­tor, dizer tal
palavra com tanta seriedade.
O seu rosto está perto do meu, e ele estuda-o com atenção, como se
tivesse todo o tempo do mundo para o fazer. Inclina a cabeça para o lado,
colocando uma madeixa de cabelo atrás da minha ore­lha. A minha
respiração fica suspensa quando os seus dedos per­correm a lateral do meu
pescoço, e ele sorri, suave, doce e satisfeito. Muito satisfeito com este
momento.
Vejo um sorriso que criou só para mim.
— Isto choca-te? Que eu te agradeça? — pergunta, com a voz baixa e
tranquila.
Observo os planos do seu rosto, a perfeição que é ele.
— Não. Já não.
Eu engulo enquanto a verdade dessas palavras afunda-se em mim. Eu
conheci-o, vi o homem por detrás das muitas máscaras que tem, vi mais do
que o molde que lhe foi incutido pelo pai.
Não sei ao certo há quanto tempo estou a observá-lo quando me
apercebo de como as minhas pálpebras se tornaram pesadas. Pes­tanejo,
tentando ao máximo escapar ao sono que me persegue de­sesperadamente,
para poder continuar a memorizar o seu rosto um pouco mais.
Ele está a fazer o mesmo, observando cada centímetro que me
pertence, com um olhar de admiração. Pestanejo e as minhas pálpe­bras
ameaçam não se abrir de novo, o sono atreve-se a arrastar-me para longe.
Os seus lábios estão subitamente junto à minha orelha e isso é tudo o
que preciso para manter-me acordada.
— Por mais tentador que seja ver-te a olhar para mim toda a noite — a
sua voz é uma carícia, embalando-me para dormir com uma única frase —,
dorme, Pae.
Consigo dar-lhe um sorriso grogue antes de perguntar.
— Vais dormir?
— Oh, querida, já estou a sonhar.
Ele puxa-me para mais perto, e eu viro a cabeça para o lado. Os meus
olhos fecham-se, o bater constante do seu coração é uma canção de
embalar. Sinto os dedos a pentearem-me o cabelo, entre­laçando as madeixas
soltas enquanto sussurro:
— O que é que estás a fazer?
Baixa a cabeça para junto da minha e sinto os seus lábios a toca­rem no
meu cabelo quando murmura:
— A praticar.
Deixo-me levar pela sensação de Kai a entrançar-me o cabelo,
perguntando-me vagamente se deveria ter medo da segurança que sinto com
ele. Se devia preocupar-me com o facto de me sentir sa­tisfeita e
reconfortada nos seus braços.
Sinto-me feliz, sinto palavras murmuradas ao meu ouvido e o sussurro
de dedos a acariciar-me o cabelo.
E depois só sinto um sono feliz.
Não consigo tirar os meus olhos dela.
Não consigo desviar os meus pensamentos dela. Não consigo afastar o
meu corpo dela.
A luz do sol da manhã, que entra pela minha janela, bate-lhe no
cabelo, com as madeixas prateadas a brilhar. Tem os olhos fechados, as
pestanas escuras encostadas às suas bochechas e escondendo o olhar azul
que eu sei que lhe habita. Respira profundamente, dorme profundamente. É
uma confusão de membros emaranhados e ca­belos espalhados.
Uma obra-prima desordenada.
Conto as sardas ténues que lhe cobrem o nariz. Uma vez. Duas vezes.
Vinte e oito.
Ela mexe-se, e eu fico quieto enquanto ela coloca as mãos no rosto,
agora coberto de fios de prata. Apoiado no cotovelo, passo suavemente os
dedos pela pele macia, afastando-lhe o cabelo para poder continuar a
admirar o rosto que estive a memorizar.
Culpo-a pelo cansaço que se instala nos meus ossos. É culpa dela que
eu não tenha dormido muito. Passei a maior parte da noite acordado a ouvi-
la respirar — a inspirá-la. Tal como tenho feito há muito mais tempo do que
gostaria de admitir. Ela é cativante, mesmo quando está encolhida e
embalada pelo sono.
Suspiro, com os meus dedos a passar por uma última madeixa de
cabelo prateado antes de me levantar da cama e de me arrastar até à porta.
Visto as minhas calças justas e uma camisa antes de en­trar no corredor e ir
para a cozinha. O mínimo que eu podia fazer era deixá-la acordar com o
cheiro a comida fresca, especialmente depois do que ela fez por mim ontem
à noite.
Depois de um pesadelo em que segurei o seu cadáver frio, acordar e
encontrá-la bem viva e quente ao meu lado foi, no mínimo, assusta­dor. E eu
reagi sem pensar. Magoei-a. Embora um pequeno arranhão não signifique
nada para a rapariga que está habituada a sangrar, significa tudo para mim.
Matar é o que eu faço. Fui treinado e criado para matar e magoar.
Controlado para o fazer sem remorsos.
Mas não com ela.
Eu estava a um movimento rápido de segurar no seu verdadeiro
cadáver nos meus braços e, no entanto, ela nada fez para ripostar. Segurou o
meu rosto com as suas mãos enquanto eu segurava a sua vida com as
minhas. Olhou para mim como se eu fosse digno de ser visto, como se me
quisesse ver. E quando disse o meu nome, o som a sair da sua boca fez com
que a minha cabeça ficasse limpa, o meu coração acelerado, os meus
pensamentos a cambalear.
E depois pedi-lhe algo que nunca tinha pedido a ninguém.
Fica.
Numa questão de minutos, estou a sair pela porta da cozinha e a
equilibrar um tabuleiro de comida quente pelo corredor. A so­brancelha
franzida de Gail faz-me sorrir, e não demoro muito a encostar-me e a abrir a
porta do quarto, segurando um tabuleiro à minha frente.
Viro-me e...
Um sapato é apontado à minha cara.
Está de pé à beira da cama, com uma mão agarrada a um cober­tor à
volta dos ombros e a outra ao meu sapato, uma arma improvi­sada. O seu
braço está armado para trás, preparado para afastar o intruso lançando o
calçado. Vejo-a exalar de alívio quando se aper­cebe que sou eu e,
relutantemente, baixa o sapato.
— Não é a tua típica arma de eleição. — Estou a sorrir, a sufocar com
uma gargalhada.
Paedyn lança-me um olhar exasperado que me é muito familiar. —
Assustaste-me.
Ela afasta a cortina de cabelo que protege os seus olhos com um
sorriso presunçoso.
— E tenho a certeza de que podias fazer muitos estragos com um
sapato.
— Não duvido.
Estou agora à sua frente, embora não me lembre de me mexer.
Passando a mão pelas suas costas, coloco o tabuleiro em cima da cama, com
o sumo a escorrer pela extremidade dos copos enquanto os biscoitos se
agitam. Depois endireito-me, e espreito os olhos que ameaçam afogar-me.
— Bom dia, Gray.
O mais ligeiro franzir de sobrancelhas é o que lhe acontece com o uso
do apelido.
— Voltámos às formalidades? — diz isso de forma casual, mas os seus
olhos mostram uma pergunta que ela nunca irá fazer.
O que é que se passa entre nós?
— Bem, tu estavas prestes a atacar-me. As formalidades parecem-me
justas. — Aproximo-me um pouco mais e ela inclina a cabeça para trás para
fixar o meu olhar.
— Sim, bem, já deves estar habituado a isso.
— Oh, mas duvido que alguma vez me habitue a ti ou às tuas
tendências violentas, querida.
Ela dá-me um sorriso malicioso.
— Gosto de pensar que é para te manter em alerta, Príncipe.
— Sim, porque a vida é muito mais divertida quando não se está à
espera de uma faca na garganta ou de um sapato na cara. — O meu olhar
desce para o dito sapato ainda na sua mão. — Por falar nisso, ainda estás a
pensar em usá-lo?
— Ainda estou a decidir.
O sorriso que lhe devolvo é verdadeiro, uma raridade que se tor­nou
recentemente uma ocorrência bastante comum quando estou com ela. Vira a
cabeça para logo acenar para o tabuleiro que está na minha cama.
— Tu trouxeste-me o pequeno-almoço.
Cruzo os braços sobre o peito.
— E como é que sabes que não é para mim?
— Há mirtilos nas papas, Azer.
Ainda com vontade de brincar com ela, encolho os ombros.
— Depois de teres falado da fruta, convenceste-me de como é
deliciosa.
Ela dá uma gargalhada.
— Então isso significaria que admites que eu tinha razão, e isso é
altamente improvável.
— Tu conheces-me tão bem — suspiro, sorrindo-lhe. — Claro que a
comida é para ti. Eu não tocaria nessa papa.
Um sorriso puxa-lhe os lábios.
— Príncipe picuinhas.
— Pae espertinha.
Ficamos a olhar um para o outro, cada um de nós a sorrir ligei­ramente.
Os meus olhos caem para a sua mão livre que ainda segura o co­bertor
à volta dos ombros, puxando-o com mais força quando o meu olhar a
percorre.
— Tens frio?
Ela fica tensa.
— Não.
— Então, o que é isto? — olho para o cobertor antes dos meus dedos
tocarem nos dela, ferozmente apertados nas dobras do tecido. O seu olhar
passa do meu rosto para a minha mão, que agora lhe percorre os nós dos
dedos, o seu pulso, o seu punho e o tecido que a envolve.
A forma como a sua respiração se contrai faz-me parar o coração.
— É um cobertor.
O meu riso é calmo.
— Eu consigo ver isso, espertalhona.
Os meus dedos sobem preguiçosamente pelo seu braço. Embora o
movimento me faça parar a mente, o pulso salta. Cada toque é ine­briante,
cada olhar partilhado é fascinante.
— Estás corada, Gray. — Os meus dedos apanham uma madeixa de
cabelo comprido que lhe cai sobre o ombro.
— Provavelmente graças ao cobertor. — Consigo sentir o sorriso a
espalhar-se pelo meu rosto quando digo. — A não ser que eu seja a razão.
Observo as emoções que manifesta no rosto. Primeiro, é algo pa­recido
com o que eu tenho a certeza estar refletido no meu próprio olhar — desejo.
Depois pestaneja, e eu vislumbro choque, realização e negação antes de se
conformar com o aborrecimento.
— Não, estou mesmo ficar com calor por causa do cobertor. — Está
confiante, como sempre, apesar da tensão na sua voz.
Inclino a cabeça, com os olhos a dançar entre o cobertor e o seu olhar
frio.
— Então suponho que te vou ajudar, só que desta vez vai ser um
cobertor a cair no chão e não o teu vestido.
Sorrio ao pensar no último baile, mas antes que os meus dedos se
possam fechar à volta dos seus, ela deixa o cobertor cair à volta dos
tornozelos.
Está tão perto de mim, vestida apenas com uns calções e uma camisola
de seda. Está a provocar-me, a brincar comigo. Não tinha sido capaz de ver
o tecido preto agarrado ao seu corpo na noite ante­rior, misturando-se com a
escuridão à nossa volta. Mas agora consigo vê-la com clareza.
Há um fogo nos seus olhos, ardente e de cortar a respiração.
— Só para que fique claro. Príncipe, não preciso da tua ajuda — para
me despir ou outra coisa qualquer.
— Oh, claro que não. Apenas vivo na esperança.
Ela solta uma gargalhada.
— Consegues não ser tão atrevido?
— É claro que não, principalmente quando estou contigo.
— E que mais és quando estás perto de mim? — fez-me engolir em
seco, meteu-me nervoso.
— Sou um parvo.
O sorriso que me dá é igualmente divertido e sedutor.
— Só quando estou perto de ti?
— Só para ti.
Os seus olhos fixam-se nos meus e ela fica em silêncio, subita­mente
imóvel. Dou um pequeno passo em frente e ela dá um ligeiro passo para
atrás, com as pernas agora encostadas à borda da cama. Eu suspiro,
escondendo a cara.
Porque é que ela se afasta?
— E como também sou mais amável quando estou contigo, tenho de te
agradecer. Mais uma vez. — Acho que nunca tinha falado tão suavemente,
com tanta calma com alguém. E o que mais me assusta é que acho que
nunca o farei para mais ninguém para além dela.
De repente, a minha mão toca-lhe no pulso, subindo pelo seu braço, o
fantasma de um toque a percorrer a sua pele. Arrepios se­guem o caminho
que os meus dedos percorrem, trazendo um sorriso aos meus lábios.
Depois, volto a rodar aquele pedaço de cabelo sedoso à volta do meu
dedo.
— Obrigada, Pae. Por ontem à noite.
Ela treme e, no entanto, o seu rubor ainda está bem presente. Não
consigo resistir ao sorriso que se espalha pelo meu rosto en­quanto
murmuro:
— Apesar de querer ajudar, parece que ainda estás demasiado quente.
— E tu ainda pareces ser o culpado por isso — diz rapidamente,
parecendo irritada consigo mesma.
Ponho-lhe essa madeixa de cabelo prateado atrás da orelha com um
sorriso preguiçoso, deixando que os meus dedos se demorem.
— Estás a admitir que eu te deixo ruborizada? Que te deixo nervosa?
— Que tal aborrecida? — responde. — Porque é exatamente isso que
estás a fazer.
Desvio o olhar, abanando a cabeça.
— Mentirosa.
— Foi o meu pé esquerdo que me denunciou ou chegaste a essa
conclusão por sozinho?
O meu olhar volta-se para ela e vejo um azul desconcertante e belo.
Depois, os meus olhos caem para os seus lábios, suaves e fran­zidos numa
cara trancada que ela parece lutar para manter no rosto.
Aproximo-me ainda mais. Ela inclina-se.
— Não consigo tirar os olhos de ti o tempo suficiente para me im­portar
com o que o teu pé está a fazer. Por isso, sim, cheguei a essa conclusão
sozinho.
O seu olhar está a arder, a fixar-se no meu, a implorar-me para que me
aproxime.
Por isso, faço-o.
Não consigo ficar longe dela.
Não quero ficar longe dela.
Tiro-lhe o cabelo dos olhos, deixo os meus dedos deslizarem pela sua
pele. O simples facto de lhe tocar provoca-me um choque, faz com que o
meu coração dispare. E sei que ela também o sente. Os seus olhos, agora
focados nos meus e na minha boca, as pestanas a mexer.
Não consigo aguentar mais. Não consigo impedir-me de querer isto.
De a querer.
Aproximo-me mais, os seus lábios separam-se e...
E há algo que me está a pressionar a garganta.
Mas que raio...
Ela tem merda do sapato encostado ao meu pescoço.
— Tenho de ir. — As suas palavras são pouco mais do que um sus­‐
surro murmurado contra os meus lábios, como se estivesse a falar consigo
mesma, lembrando-me do tempo que passámos debaixo do salgueiro,
quando ela proferiu essas mesmas palavras inseguras.
Aclaro a garganta, tiro as mãos do seu cabelo e endireito-me. O que
raio é que aconteceu? E por que raio é que não aconteceu nada?
— Está bem. Vais precisar de muito tempo para te pores toda bo­nita
para o meu irmão. — Não me dou ao trabalho de disfarçar a minha
amargura, os meus ciúmes, a minha confusão.
Queres ver-me sem máscara? Está bem. Deixa-a ver tudo. Deixa-a ver
a minha frustração com os sentimentos que existem por sua culpa.
Ela recua.
A rapariga que matou lobos, escalou montanhas, e sobreviveu aos
bairros de lata, apenas recuou. Nunca tinha visto nada assim. Nunca pensei
que veria. A visão fez-me afundar o coração, deu-me vontade de a puxar
para os meus braços e segurá-la.
Mas, em vez disso, dou por mim a dar um passo atrás, a colocar espaço
entre nós. Não confio em mim ao pé dela. Não confio em mim próprio. O
que mais quero é tocar-lhe e saboreá-la.
Abre a boca, lutando contra as palavras que quer desesperadamente
dizer. As que eu nunca chego a ouvir, porque ela cerra o maxilar, ve­dando-
me os seus pensamentos. Observo-a durante vários e lentos se­gundos. Vejo-
a respirar fundo antes de fixar um olhar calmo.
— Não tens de quê — diz ela suavemente. — Pela noite passada. Nin­‐
guém deveria ter de suportar sozinho os terrores dos seus próprios
pensamentos. Os pesadelos podem ser o nosso pior inimigo. Eu sei o que
isso é.
E depois agarra na minha mão, dando-me o sapato antes de sair do
quarto.
Estou a pensar em embebedar-me outra vez.
O álcool que se agita no copo agarrado entre os meus dedos é tentador,
provocando-me para o beber, seguindo para os próximos copos que avisto.
Tudo para que consiga aguentar este último baile.
Os casais começaram a dançar, agora que começam a chegar as
últimas mulheres. Parece que este último baile será o único indício de
normalidade nas Provas deste ano.
Troquei Blair com um jovem cavalheiro por um copo de vinho e
pergunto-me porque não o fiz mais cedo. Enquanto pondero se devo ou não
beber o conteúdo restante da minha bebida, olho para cima e vejo um grupo
de senhoras à minha volta, todas vestidas com vários tons de verde. São só
risos e sorrisos enquanto eu aceno e falo educa­damente, aborrecendo-me
com a minha falta de jeito.
Estou quase a sair da conversa com uma desculpa medíocre quando
alguém me capta a atenção.
Alguém que me deixou atónito. Alguém que está parada num mar de
preto.
Envolta num tecido da cor da meia-noite, os ténues brilhos que
polvilham o seu vestido piscam como a luz das estrelas. Como uma sombra,
o tecido agarra-se ao seu corpo. Como uma segunda pele, delineia as suas
curvas enquanto desce as escadas.
Os seus braços bronzeados e o seu peito brilham contra o tecido escuro
que os envolve. Da cintura para cima, o vestido é um esparti­lho detalhado,
que a prende e mostra o seu peito e clavículas. A bar­riga do espartilho é
transparente, com desenhos de flores e missangas a contrastar com a pele
bronzeada que se faz aparecer. Tiras soltas de mangas pretas e intrincadas
ligam-se à parte de cima do espartilho e pendem dos seus ombros de forma
leve. Camadas de cetim derramam-se da sua cintura para o chão numa
grande piscina à sua volta. Os meus olhos percorrem as suas pernas nuas,
expostas através das rachas que sobem pelos dois lados do vestido e
terminam no alto das suas coxas. E ali, presa e exposta para todos verem,
está a sua adaga de prata, com o cabo ondulado a condizer com o seu traje.
O seu cabelo prateado está preso num nó solto perto da nuca, com
caracóis a caírem-lhe nas costas e à volta do rosto, tentando-me a colocá-los
atrás das suas orelhas.
Cada pedaço do seu corpo está revestido de escuridão, envolto numa
noite. Dou por mim a agradecer silenciosamente à Peste pelo seu traje
diferente e escuro, porque gosto quando ela se destaca. Não quero que se
perca no meio da multidão.
Não que ela já tenha tido esse problema.
Não que alguma vez tenha tido problemas em encontrá-la.
Vê-la num preto escuro é suficiente para me tornar daltónico, para
fazer com que apenas me concentre nela.
As suas pernas deslizam pelas rachas do vestido enquanto desce a
escadaria, com a adaga bem visível. Centenas de olhos seguem cada um dos
seus movimentos e, de repente, fico com ciúmes por todos os outros
poderem testemunhar a sua presença.
Não olha para mim e, pela primeira vez desde que a conheci na­quele
beco, acho que é apenas sinal de cobardia.
Ela está assustada. Assustada com o que quer que sejamos. Sem­pre
esteve. É por isso que escolheu ser minha inimiga, minha rival, em vez de
se deixar sentir — o que é algo a que eu próprio não estou habituado.
Culpo-a por isso. Culpo-a por ter destruído a minha máscara cui­‐
dadosamente elaborada, partindo-a aos pedaços quando ela está por perto.
Nunca senti ou temi tanto. Mas se tenho de suportar as conse­quências de
sentir algo por ela, então ela também terá de as suportar.
É como se existisse uma ligação tangível entre nós, esta ligação que
nos consome. Eu quero que ela encontre os meus olhos, e quando eles o
fazem...
Faíscas. Eletricidade.
Tudo o que é belo, tudo o que é ousado, tudo o que é arrebatador — é
isso que sinto no seu olhar.
Isso, e terror. Sinto-me aterrorizado com o que ela me está a fazer. Ela
é uma visão, um pesadelo, um sonho.
Um ceifeiro vestido de preto, que me veio roubar a alma e o coração.
Nunca vi uma coisa tão bonita, tão ousada, tão claramente errada para
mim.
Ela é um demónio. Ela é uma divindade.
Ela é a ruína de um homem em forma humana. Ela é a minha ruína.
Depois os seus olhos desviam-se para Kitt. A ligação quebra-se.
E fico a sentir-me vazio, para além dos ciúmes que crescem dentro de
mim. Porque é que alguma vez pensei que a podia ter, alguma vez pensei
que ela me iria ter? Porque os monstros não merecem beleza.
Estou a evitá-lo. Não é a melhor maneira de lidar com um pro­blema,
admito. Mas Kai é um problema muito urgente. Uma distra­ção muito
desejável.
Por isso, mantenho-me ocupada, embora ainda consiga reparar que ele
está a fazer o mesmo. Raparigas com sorrisos brilhantes e vestidos verdes,
todas vão parar aos seus braços e à pista de dança.
Enterro a emoção que não quero identificar como sendo ciúmes, mas
que, no entanto, me atormenta.
Tenho um trabalho a fazer.
Volto a minha atenção para o meu par pela enésima vez. Kitt sorri,
continuando a nossa conversa calma da qual a minha mente continua a
querer desviar-se. Forço-me para me concentrar nas suas palavras e não na
coisa que preciso de lhe roubar. Rodamos, e eu vislumbro o aro de prata
com chaves que está no interior do bolso do seu casaco. Os meus dedos
contorcem-se, ansiosos por usar os instintos de ladra que suprimi enquanto
estive no castelo — na sua maior parte.
— Tu estás linda.
Assusto-me com as palavras suaves de Kitt, forçando o meu olhar a
encontrar o dele. Ele sorri ao ver a minha cara e afirma:
— Não devias ficar tão chocada com isso.
Ficamos em silêncio por um momento antes de eu finalmente formar
palavras.
— Tu chocas-me.
— A sério?
— Sim — respondo-lhe honestamente. — Tu não és o que eu
esperava.
O seu sorriso parece demasiado infantil para pertencer ao fu­turo rei.
— Desiludi-te?
Gostava que o tivesses feito.
— Não — o seu sorriso alarga-se com a palavra, e eu apresso-me a
acrescentar. — Ainda não.
Depois estou a mergulhar em direção ao chão e ele está a rir-se por
cima de mim enquanto inspiro de surpresa. Ele segura-me ali, e a minha
oportunidade chega. Este é o momento que eu temia, que eu planeava. Tem
o casaco aberto, os olhos fixos em mim, e os seus pen­samentos estão
focados em tudo menos nas chaves que tem no bolso.
Por isso, faço o que sei fazer melhor: roubar.
Atrapalho-me, fingindo que escorrego, embora seja bastante cre­dível
por causa dos sapatos que estou a usar. Estendo as mãos para me firmar,
uma no seu ombro e outra no seu peito, perto do bolso do fato.
Os seus braços apertam-se com força à volta da minha cintura
enquanto foco o seu olhar, sorrindo mesmo quando enfio a mão no seu
bolso. Sorrindo enquanto traio o rapaz que sempre foi gentil comigo.
Sorrindo mesmo quando lhe consigo tirar a chave, sentindo a decoração do
relevo que agora se pressiona contra a minha palma.
Puxa-me lentamente para cima, com os seus braços fortes man­tendo-
me de pé. Mas a minha mão já está fora do bolso e pousada atrás do seu
ombro, inocente e insignificante.
— E eu que pensava que a tua dança estava a melhorar — comenta
Kitt com um sorriso provocador.
— E aqui estava eu, a pensar que me ias avisar antes de me man­dares
para o chão. — Solto um suspiro, sorrindo, acrescentando: — E agora
apetece-me uma bebida.
— Não bebas demasiado. Já mal te consegues lembrar dos passos. —
Atira-me um sorriso antes de se virar para a mesa das bebidas. — Mas vou
buscar-te uma, mesmo assim.
Deixo escapar um suspiro trémulo enquanto o vejo caminhar no meio
da multidão, o meu espartilho subitamente demasiado aper­tado. A chave
está escorregadia na minha palma, quente contra a minha pele.
— Dá-me o prazer desta dança?
Viro-me, com a cara cheia de sardas. O cabelo de Lenny, nor­malmente
desalinhado, está penteado, com as madeixas ruivas domadas para esta
noite. Está vestido com um belo fato preto, mis­turando-se com o resto dos
homens à nossa volta.
— Claro que sim — respondo-lhe, forçando um sorriso com os lá­bios.
A sua mão encontra a minha cintura, a minha encontra o seu ombro, e
depois as nossas mãos livres encontram-se.
A chave está entre as nossas palmas, e Lenny entrega-me um sorriso
largo ao senti-la.
— Muito bem. Foi fácil, não foi?
A minha voz é distante, distraída.
— Sim. Foi fácil.
— Lembras-te do plano?
Suspiro.
— Bem, também não tenho muito mais para fazer, não é? Agora só
tenho de sobreviver à última Prova.
— Sim, bem, essa pode ser a tarefa mais difícil de todas.
Aceno uma vez, concentrando-me nas figuras que giram à nossa volta,
vendo Andy a dançar com uma rapariga corada que nunca tinha visto antes.
Os meus olhos vagueiam, encontrando Kitt e Jax a rir, o primeiro a puxar o
cabelo do irmão mais novo com um sorriso largo. Vi Blair há pouco,
embora não seja difícil encontrá-la novamente com o seu vestido verde
brilhante que tanto ardor me causa nos olhos. Desvio o olhar antes de dar
por mim a procurar mais uma vez um certo príncipe no meio da multidão.
Já só somos cinco.
Pergunto-me brevemente quantos sobreviverão para ver o pôr do Sol
de amanhã. Pergunto-me brevemente que pais estarão de luto pelo filho. A
morte é o que estas Provas trazem — não honra, não glória, não felicidade.
Só morte.
— Estás bem? — A voz suave de Lenny invade-me, e eu volto a
minha atenção para os seus grandes olhos castanhos.
— Algum de nós está bem?
Ele encolhe os ombros.
— Bem visto.
A dança termina e as nossas mãos caem, mas não antes de Lenny
transferir a chave para a sua palma e depois para o seu bolso.
— Tem cuidado amanhã. — A sua voz é um sussurro baixo, mis­turado
com preocupação.
— Ah, estás preocupado comigo, Lenny? — brinco.
— Talvez um bocadinho, Princesa. — Ele revira os olhos. — Não
morras, está bem?
— Não posso prometer nada, mas, para teu bem, vou tentar man­ter-me
viva. Não quero que tenhas de viver sem mim.
Sorri e abana a cabeça, mas eu agarro-lhe o braço antes de ele se poder
virar.
— Boa sorte. E lembra-te do que te disse sobre a passagem. Ah, e...
O seu riso interrompe-me.
— Pestes, tem um pouco de fé em mim, Paedyn. Eu trato disto.
Suspiro e faço-lhe um ligeiro aceno de cabeça antes de ele se virar e
desaparecer no meio da multidão.
Passo uma mão suada sobre o espartilho grosso do meu ves­tido antes
de a passar pelo tecido macio que se desenrola por baixo. Depois viro-me,
com as pernas a deslizarem facilmente pelas aber­turas altas da saia. Um
pedido que fiz a Adena para não me sen­tir limitada pelo tecido. Talvez seja
a claustrofobia a falar ou talvez goste simplesmente de ter a opção de dar
um pontapé alto na cara de alguém, se necessário.
Quase me cruzo com Jax na pista de dança, e ele sorri ao ver-me.
— Paedyn, olá! Queres dançar? A Andy abandonou-me. Já para não
falar que bebeu demasiado vinho, e não confio que não caia em cima de
mim.
Com uma gargalhada, aceno com a cabeça antes de começarmos a
girar à volta do salão. Uma valsa suave começou, onde há passos
específicos e troca de pares, o género musical que eu normalmente tento
evitar. Mas deixo que os meus pés me guiem, confiando que me vou
lembrar dos passos corretos enquanto tento esquecer exa­tamente porque é
que os consigo fazer. Tenta esquecer-te de seres abraçada no escuro,
conduzida por braços fortes e...
Para.
Pestes, controla-te.
Olho para o rapaz à minha frente, cheio de sorrisos e entusiasmo.
— Estás muito elegante, Jax.
O seu sorriso é agora invadido pela timidez.
— Obrigado. Tu também estás...
Giramos e sou puxada para os braços de um outro cavalheiro. Aceno
educadamente para o jovem, e ele faz o mesmo, enquanto continuamos o
passo. Quando dou por mim, estou a ser passada de um lado para o outro,
nas mãos de homens que nunca tinha visto antes. A valsa é longa, fazendo-
me com que o arrependimento de ter entrado na pista de dança, seja
bastante evidente.
Os meus pés estão a matar-me.
Depois estou a ser enviada para outro corpo, envolvida por bra­ços que
pertencem a um Kitt sorridente.
— Aí estás tu. Eu sabia que te ia trazer de volta.
Faço um pequeno sorriso.
— Demoraste bastante tempo.
Ouço-o a rir antes de ser puxada para um novo par.
— Tu estás a evitar-me.
O meu coração agita-se ao ouvir aquela voz, as borboletas no meu
estômago fazem o mesmo enquanto o leve aroma a pinho me invade. Olho
para o peito largo, muito consciente da estrutura forte que se esconde por
baixo da camisa branca. Respirando fundo, le­vanto o meu olhar para o
encontrar.
Gostava de não o ter feito.
Os seus olhos são hipnotizantes, como aço derretido, nevoeiro matinal.
Atravessam-me como se não tivessem medo de ver cada parte de mim. O
seu olhar parece-me certo, familiar. E quando os seus olhos se fixam nos
meus, pergunto-me porque me dou ao tra­balho de olhar para mais alguém.
Não. Não. Não.
Apesar de sentir que ele é tão certo, eu sinto-me tão errada e tão
confusa.
Não tira os olhos de cima de mim, e o peso do seu olhar é pre­mente,
enquanto me observa pacientemente a tentar entender o que se passa. A
perceber estes sentimentos.
— Não lhe chamaria «evitar»... — Pareço muito pouco convin­cente, e
com razão, uma vez que tenho estado a fazer exatamente isso. E apesar da
minha vida ser uma mentira, parece que as mi­nhas habilidades de engano se
esgotaram por esta noite, porque não o estou a enganar.
O canto da sua boca contrai-se, e tenho de fazer um esforço consciente
para não olhar para os seus lábios. Mas, tal como esta manhã, dou por mim
a querer encostar-me a ele. Não sei o que teria acontecido se tivesse ficado
mais tempo no seu quarto e, no entanto, durante todo o dia, tenho-me
culpado por não ter descoberto.
Foi preciso tudo o que havia em mim para o afastar, apesar de querer
muito puxá-lo para mais perto. Mas depois lembro-me de quem ele é, do
que ele é. Enquanto ele é o príncipe, o futuro Execu­tor, o filho do homem
que odeio, eu sou uma Miserável, uma Vulgar, a encarnação daquilo que ele
foi ensinado a odiar.
Os meus pensamentos dispersam-se quando uma covinha me chama a
atenção.
— Então esclarece-me. Como lhe chamarias, Gray?
Gira-me com uma mão antes de me puxar de novo para ele, as minhas
costas unidas ao seu peito. As minhas mãos estão cruzadas sobre o meu
estômago, e ele segura-as atrás de mim, os nossos corpos balançam juntos
ao ritmo da música.
— Tu parecias ocupado e eu não queria interromper — digo-lhe,
recordando as mulheres com quem ele já dançou. Solta uma gargalhada.
O roçar do seu queixo no meu cabelo faz-me acelerar o coração.
Inclina-se para que o seu rosto fique junto ao meu, com os lábios a tocar na
dobra da minha orelha.
— Queres saber o que penso? — Ele agarra as minhas mãos, pu­xando-
me para mais perto. — Acho que estás a evitar dançar co­migo porque não
consegues aguentar estar tão perto de mim.
Quase me engasgo com o riso que me escapa.
— Por favor. Não tenho nenhum problema em estar perto de ti.
Mentiras. Mentiras. Mentirosa.
Parece que a minha habilidade para enganar está de volta.
— A sério? — Os seus lábios estão encostados à minha orelha, os
dedos entrelaçados aos meus, o corpo apertado.
Sou quente e frio, sim e não, certa e errada. Sou a encarnação dos
opostos, um emaranhado de confusões e contradições.
Eu quero isto.
Eu não quero isto.
Baixa a cabeça para que o seu queixo se apoie no meu ombro.
Oh, eu quero mesmo isto.
Oh, mas não devia.
— Então porque é que me afastas?
Eu continuo a mover-me. Havia tanta emoção na sua voz, tanta
incerteza crua quando as palavras saíam dos seus lábios. Faz-me girar para
o encarar lentamente, sem se preocupar em dar um passo atrás ou em
colocar espaço entre nós.
O meu peito incha, o meu coração martela. Está de olhos postos nos
meus e eu deixo-me levar, admirando este rapaz que acabei por conhecer.
Ele é devastador. Tudo nele é deslumbrante e nítido e rouba-me o
fôlego. Mas é a forma como me olha que, de repente, faz com que en­golir
pareça uma luta e respirar uma tarefa árdua. Nunca me olharam como se
fosse um privilégio estar na minha presença, uma honra, uma dádiva pelo
vislumbre da minha pessoa. Não até o conhecer.
A sua máscara cai, parte-se, estilhaça-se, deixando apenas um rapaz a
olhar para uma rapariga como se ela fosse digna do seu desejo.
E o que me aterroriza ainda mais é que acho que posso estar a olhar
para ele da mesma forma, a olhar para ele com esse mesmo desejo. Por
mais que tente lutar contra, não consigo deixar de sentir saudades deste
rapaz que já me salvou a vida mais vezes do que gos­taria de admitir. Este
rapaz que é igualmente calculista e encantador, igualmente frio e carinhoso.
Aquele que tratou das minhas feridas, aprendeu sobre o meu passado, foi a
minha distração quando mais precisei.
Aquele que me compreende.
E depois o meu coração para, a pulsação desce.
Mas não compreende mesmo, pois não?
Nem sequer sabe quem eu sou verdadeiramente. O que eu realmente
sou. E se soubesse, matava-me. Porque isso é o que o Executor faria.
Porque isso é o que o filho do Rei faria. Porque foi para isso que foi criado.
E por essa razão, eu afasto-o. Porque se não o fizer, vou puxá-lo para
mais perto. E se o puxar para mais perto, acabarei com uma adaga cravada
no meu coração. O coração que bate demasiado de­pressa quando ele está
por perto, que se parte com demasiada facili­dade e que sofre demasiado por
ele.
Fico a olhar para ele, sem saber o que dizer ou fazer ou...
De repente, sou arrancada dos seus braços e levada para os de outro
antes de ter oportunidade de responder.
Na altura certa.
— Tu estás linda — diz Jax, sorrindo de orelha a orelha. — Era isso
que eu ia dizer há pouco.
Ele inspira, orgulhoso de si mesmo por finalmente ter proferido o
elogio.
— Obrigada, Jax — digo-lhe, sorrindo. Quando a música chega ao
fim, saio rapidamente da pista de dança. Ansiosa por me afastar da
multidão, pego numa bebida do tabuleiro de um criado e dirijo-me para a
extremidade do salão de baile. Exceto que não consigo escapar à multidão.
Para onde quer que olhe, há grupos de convidados bisbi­lhoteiros ou criados
silenciosos.
Os meus olhos percorrem o salão de baile, pousando nas grandes
janelas e no ar fresco do lado de fora. Anseio por um momento a sós, um
momento livre da sala fechada e cheia de gente.
Bebo um gole do vinho, observando os convidados a rodopiar, antes de
pousar o copo na mesa e dirigir-me para a saída do salão de baile. Sou
forçada a deslizar entre os corpos, detestando a sensação de aperto.
Respiro fundo e dirijo-me para as portas gigantescas que dão para o
pátio. O som dos meus saltos a bater no chão preenche o silêncio quando
me aproximo das portas assustadoras.
A minha mão está estendida, desejosa de abrir a saída, quando um
Flash se interpõe rapidamente entre mim e a minha salvação.
O sorriso do Imperial é frio quando me olha de cima a baixo, com o
seu uniforme branco e a cheirar a amido.
— Não a posso deixar fazer isso, menina. — O seu tom deprecia­tivo
faz-me morder o lábio com a raiva.
Não estou para isto.
— Só preciso de uns minutos para apanhar ar fresco. — Se eu es­‐
tivesse em Loot neste momento, nem me daria ao trabalho de ser educada.
— Como eu disse, não a posso deixar. — Ele sorri e alguns dos
Imperiais que se encontram no corredor riem-se com ele, aparen­temente
fazendo parte de qualquer piada hilariante que eu não es­teja a entender. —
Não tem autorização para estar fora do castelo, menina.
Cerro os punhos ao lado do corpo, resistindo à vontade de o de­safiar a
chamar-me menina mais uma vez para ver o que acontece.
— Tudo o que estou a pedir é um momento.
— A sério? E o que estás disposta a fazer para o conseguires? — Ele
inclina-se e o bafo a álcool é evidente quando diz: — O que é que eu ganho
com isso?
Depois coloca um braço à volta da minha cintura, puxando-me para si.
Escolha errada.
Os meus dedos envolvem o cabo da minha adaga, sentindo o aço frio
que estou prestes a mover...
— Cuidado, ou ela leva-te a lâmina à garganta. E eu que o diga.
Viro ligeiramente a cabeça e vejo Kai a alguns metros de distân­cia,
com as mãos enfiadas nos bolsos.
— Agora deixa-a ir e abre a porta. — A sua voz é como o aço da
minha adaga, fria e afiada.
O Imperial limita-se a gaguejar.
— Mas, senhor, temos ordens para que os concorrentes não saiam do...
— E agora tens novas ordens. Por isso, sugiro que abras o raio da
porta.
A expressão vazia de Kai não se alterou apesar do seu tom mor­tífero.
Agora até está encostado à parede, com as mãos ainda enfia­das nos bolsos.
A imagem perfeita do poder.
— Ah — acrescenta —, e se quiseres manter o teu emprego, a tua mão
e a tua cabeça, sugiro que libertes a menina.
Quase que sorrio com isto. O Imperial não perde um segundo antes de
praticamente saltar para longe de mim. O Imperial sabe tão bem como eu
que as ameaças de Kai nunca são em vão.
O Imperial passa rapidamente por Kai, mas não antes da mão do
Príncipe lhe agarrar a camisa e o atirar contra a parede.
— Eu menti — murmura Kai perto da cara do homem. — Terás sorte
se eu te deixar ficar com a cabeça, quanto mais com a mão. E isso só por
lhe teres tocado.
As portas abrem-se, desviando os meus olhos da cena que não sei se
quero presenciar. O ar húmido e pegajoso atinge-me quando começo a
descer os degraus para o pátio. O céu está escuro e denso, com nuvens
pesadas que anunciam a promessa de chuva.
Respiro fundo, saboreando o ar fresco e o espaço aberto à minha volta.
Algo molhado salpica a minha bochecha e eu levanto o rosto para o céu
nublado recebendo o chuvisco que cai sobre mim. Es­tendo os braços e
inclino a cabeça para cima, adorando a sensação da chuva a cair sobre a
minha pele.
Depois, o chuvisco transforma-se num aguaceiro. A chuva cai
rapidamente enquanto sorrio de forma estúpida. Há vários dias que a minha
cabeça já não ficava assim tão clara. A água fresca cobre-me a pele, o
vestido, o cabelo. Começo a rodopiar, as saias do meu vestido balançam à
volta dos meus tornozelos, sentindo-me uma idiota por estar a adorar esta
sensação.
Tiro os sapatos dos pés doridos e passo por poças de água como fazia
quando era pequena, lembrando-me de um tempo em que era mais nova e
ansiava pelo amor de um pai que já não estava comigo. Quando estava
aterrorizada e traumatizada. As ruas apinhadas de Loot pressionavam-me
constantemente, fazendo-me sentir enjau­lada e claustrofóbica.
Mas depois subia para os telhados de lojas e edifícios antigos, tendo
apenas as estrelas por companhia. Sentia-me mais livre ao ar livre, mais
tranquila. Fiz isso durante meses, anos, até o meu medo desaparecer e Loot
tornou-se mais num lar do que num horror.
Começo a rir. Estou histérica. Estou completamente histérica.
Pestes, quanto vinho é que eu bebi?
A chuva cola-me os fios de cabelo à cara e escorre-me pela ponta do
nariz, enquanto eu sorrio, esquecendo momentaneamente os meus
problemas e aproveitando apenas um momento para existir.
— Não sei se alguma vez comtemplei alguém como tu.
Eu rodopio, pestanejando através do fluxo constante de chuva
procurando encontrar os olhos cinzentos que se misturam com o lençol de
água que cai. O seu cabelo está molhado, todo ondulado e despenteado. A
sua camisa branca de botões está ensopada e trans­parente, mostrando um
peito marcado e um torso bronzeado.
Vê-lo faz-me sorrir.
— Tenho a certeza de que dizes isso a todas as mulheres —, digo eu,
num estado meio risonho, meio histérico.
— Oh, mas o meu olhar apenas alcança a forma de uma mulher e a
dificuldade de o afastar é incomportável. — O seu peito sobe e desce tão
rapidamente como a chuva, enquanto o meu coração tro­veja tão alto como a
tempestade.
Ficou subitamente sério, examinando-me o rosto.
— Precisavas de apanhar ar fresco? Uma pausa da sala cheia de gente?
Lá está ele outra vez, a compreender-me.
— Sim — respondo-lhe em voz baixa. — Sinto-me muito melhor aqui
fora. Mais livre.
Inclina-se junto aos canteiros de flores ao lado da escada e ar­ranca
uma da terra encharcada antes de se levantar.
— Ainda bem — diz ele calmamente —, porque eu vou aproximar-me
muito, muito de ti.
Solto um suspiro lento quando ele dá um passo na minha dire­ção.
Depois outro. E mais outro. Já está suficientemente perto para que possa
sentir o calor do seu corpo, sentir o calor que se espalha por mim quando se
aproxima demasiado.
Levanto o rosto para encontrar o seu olhar, pestanejando en­quanto
tento ver através da chuva. Limpo os olhos, subitamente ciente de que é
provável que a maquilhagem me esteja a escorrer pela cara antes de decidir
que não me interessa.
Os seus lábios estão contraídos num sorriso enquanto ele me mos­tra a
flor, caída e a pingar água. As suas pequenas pétalas são de um
deslumbrante tom de azul vibrante que quase se aproxima do roxo.
— Um miosótis, já que pareces estar sempre a esquecer-te de quem eu
sou — diz Kai com um sorriso suave, uma gargalhada suave. Le­vanta a
mão, colocando o cabelo atrás da minha orelha antes de pas­sar os dedos
pelo meu cabelo molhado.
— Oh, eu sei quem tu és — digo-lhe sem fôlego. — Um sacana
convencido.
Abana a cabeça, com os dedos ainda a brincar com as madeixas do
meu cabelo.
— Estou-me nas tintas se te esqueces do meu título, desde que te
lembres de quem eu sou para ti.
Olho-o fixamente, e alguma coisa deve estar a diverti-lo porque,
através dos meus olhos, que piscam rapidamente, vejo um sorriso lento
espalhar-se pelos lábios de Kai. Abro a boca para dizer al­guma coisa, mas
fecho-a quando ele começa a tirar o casaco do fato. O casaco escorrega-lhe
dos braços, deixando-o diante de mim com uma camisa branca
completamente encharcada.
Bem, isso nem me distrai nem nada.
Aproxima-se ainda mais e, com o casaco nos braços, segura-o sobre a
minha cabeça para me cobrir da chuva.
— Kai...
O sorriso que lhe ilumina o rosto interrompe-me, rouba-me o fô­lego. É
um daqueles sorrisos raros e verdadeiros que eu confessei que queria ver
mais. Um que me pertence.
Covinhas.
Ambas em exposição. Ambas a distrair-me. Ambas devastadoras.
— O quê? — pergunto-lhe, com uma gargalhada.
Ele encolhe os ombros, com um sorriso ainda estampado no rosto.
— Adoro o som do meu nome dito por ti.
Tento limpar a voz que, de repente, ficou demasiado seca.
— Bem, Kai não é o teu nome verdadeiro, pois não?
Está em silêncio, apenas um sorriso e uma súbita intensidade nos seus
olhos, desafiando-me a dizer o seu nome completo. A que­rer que eu o diga.
E, aparentemente, eu também o quero dizer, por­que quando abro a boca,
sai-me uma palavra:
— Malakai.
Os seus olhos fecham-se, a sua cabeça cai para trás, permitindo que a
chuva tenha acesso total ao seu rosto.
— Só tu consegues com que o meu nome valha a pena ser dito.
— Bem, o que queres que te chame? Kai? Malakai? — A minha voz
soa tão ofegante, e quase desejava que fosse devido a um ataque de pânico.
A sua resposta é simples, direta, enquanto baixa a cabeça para olhar
para mim.
— Chama-me o que quiseres. Nunca perderei a oportunidade de ouvir
a tua voz, querida.
Sinto um sorriso a subir-me aos lábios.
— Muito bem, então, que seja sacana convencido.
Não estava preparada para o riso que lhe escapa. É um som rico e belo
que gostaria de ter tido tempo para memorizar.
— Cuidado, Kai — o seu sorriso cresce ao ouvir o seu nome mais uma
vez —, estás a ser um cavalheiro outra vez.
O meu olhar dirige-se para o casaco preto que ele ainda segura por
cima da minha cabeça para me proteger da chuva.
— Sabes que continuo encharcada, não sabes?
— Sim, bem... — Suspira e baixa a cabeça para cara a cara. — Por
mais adorável que seja ver-te a piscar-me olhos através da chuva, quero que
me vejas com toda a clareza do mundo.
Lá está aquela estúpida vibração no meu peito.
— Estava a falar a sério. Não consigo tirar os olhos de ti. Não consigo
deixar de pensar em ti.
Desvio os olhos do seu olhar ardente, abanando a cabeça en­quanto
murmuro:
— Kai, eu...
— Paedyn.
Paro e tremo. Diz o meu nome como se fosse sagrado, como se fosse
um juramento que está a fazer.
Inclina a cabeça para o lado, com os olhos a percorrerem-me o rosto.
— Diz-me — murmura —, o que queres que te chame?
Os meus olhos encontram lentamente os seus, confusos com a sua
pergunta.
— Como é que me queres chamar?
— Quero chamar-te minha.
Ficamos a olhar um para o outro. Ambos respiramos com difi­culdade,
ambos nos absorvemos um ao outro. A chuva continua a salpicar Kai,
agarrando-se às suas pestanas grossas e pingando pelo queixo.
— Sei que também o sentes — afirma ele calmamente.
— Sinto o quê?
— Sentes-te viva. Sentes-te em chamas. Sentes.
Há uma intensidade nos seus olhos, na sua voz, que faz com que o meu
coração acelere ainda mais. Ele desvia o olhar, praguejando sob o seu
fôlego, antes de regressar aos meus olhos.
— Pae, quando olho para ti... Fico destruído. Sinto-me a afogar-me.
Entro numa luta para recuperar o fôlego.
O ar deixa-me os pulmões e agora o meu pestanejar não tem nada a ver
com a chuva. As suas palavras seguintes são quase um sussurro:
— Olha para mim e diz-me que não sentes o mesmo.
Silêncio. E depois...
— Não sinto o mesmo, Kai.
Mentiras. Mentira. Mentirosa.
Baixa a cabeça e, quando a levanta para voltar a olhar para mim, o seu
sorriso é desalinhado. Depois, baixa lentamente o casaco que me protege da
chuva e envolve-o à volta dos meus ombros, com os dedos a demorarem-se
nas minhas clavículas nuas e a provocarem-me um sobressalto.
É demasiado grande, e as suas mãos enrolam-se à volta do tecido antes
de me puxar, aproximando-me tanto que o meu corpo fica pressionado
contra o seu. Ainda está a agarrar a parte da frente do casaco, os nós dos
dedos tocando a pele nua antes de levar os lábios a encostarem-se à minha
orelha.
— Agora responde outra vez — o seu murmúrio é divertido —, mas
desta vez sem bater com o pé esquerdo.
A minha boca fica aberta.
Os seus lábios estão a sorrir contra a minha orelha, e eu tento não me
concentrar na sensação.
— Eu... Eu não...
O seu riso profundo interrompe-me.
— Peste, tu és espantosa.
Os seus dedos ásperos nunca foram tão suaves contra a minha pele,
enquanto tira uma madeixa de cabelo molhado dos meus olhos.
— Mas tão teimosa.
Não posso continuar a fazer isto. Não consigo não ceder à ten­tação que
é ele. De repente, não consigo pensar numa única razão para estar a lutar
contra isto, para não fechar a distância entre nós neste momento. Eu quero...
Os seus lábios encontram-se levemente com os meus.
É o sussurro de um beijo, uma promessa de paixão. E, no en­tanto,
quase me derreto com o contacto. A sua mão segura-me o rosto, o polegar
acaricia-me as maçãs do rosto e depois...
Nada.
Ele afasta-se.
Fico sem ar, com vontade de o agarrar, de o puxar para mais perto, de
encostar os meus lábios aos dele. E estou prestes a fazê-lo quando me
lembro subitamente de uma altura em que os nossos papéis se inverteram.
Quando era eu que o provocava com toques.
Agora percebo exatamente como Kai foi afetado pela falta do meu
toque durante a nossa competição de arco e flecha e aquela distração. A
sensação e a promessa de algo que desaparece do nada, é uma coisa cruel
para se conceder a alguém, e ele deixou-me a arder por causa disso.
Coloca a outra mão à volta da minha cintura, por baixo do seu grande
casaco, e o calor da sua palma através do meu espartilho é uma marca.
Inclina a cabeça, observando-me com um pequeno sorriso.
Sabe exatamente o que está a fazer.
E, no entanto, está a tocar-me como se não quisesse apressar este
momento. O seu polegar encontrou o meu lábio inferior, onde agora se
desliza indolentemente, acendendo um fogo dentro de mim.
— Prometeste que eu te podia tocar quando estivesse sóbrio.
A minha respiração fica suspensa e os seus lábios contorcem-se em
resposta. Não estava à espera de que ele dissesse aquilo. Nem se­quer estava
à espera que se lembrasse da minha promessa apressada no último baile.
Baixa a cabeça, a sua boca fica de repente a um sopro de distância da
minha, mais uma vez.
— Mas eu nunca estou sóbrio ao pé de ti, Pae. Nunca estou só­brio
porque todos os pormenores que fazem parte de ti, deixam-me embriagado.
Estou sem palavras. Totalmente sem palavras por este rapaz conseguir
sentir tanto.
Sentir tanto por mim.
— Se eu te beijar, beijar-te a sério, como sempre quis, como sem­pre
esperei, devo aguardar a chegada de uma adaga à minha gar­ganta? — A sua
voz é áspera, o seu olhar ganancioso.
E depois levanto-me lentamente e toco-lhe na ponta do nariz.
Desta vez, dedico um momento a memorizar o sorriso que me devolve.
— Acho que vais ter de me beijar para descobrir.
Tocou-me no nariz. Nunca pensei que um coração pudesse sen­tir tanto,
que pudesse ser tão afetado pelo toque de um dedo.
— Acho que vais ter de me beijar para descobrir.
Oh, e tenciono fazer isso mesmo.
Mal tenho conseguido conter-me para não a agarrar.
Ela é tão bonita que mal consigo acreditar, mal consigo respirar. A sua
alma é deslumbrante. O seu próprio ser é brilhante e ousado e tão
inacreditavelmente melhor do que eu. Ela é uma maravilha que está para
além do meu alcance, uma maravilha de que não sou digno de vislumbrar,
quanto mais de agarrar.
E, no entanto, aqui está ela apesar de tudo. Escolhendo-me a mim.
É um privilégio olhar para estes olhos, afogar-me na sua essência.
Porque tudo nela é demasiado certo e tudo em mim é demasiado
errado. Mas eu sou egoísta. Pego no que quero, e parece que pela primeira
vez, o que quero, também me quer.
O meu casaco ainda está pendurado nos seus ombros, enquanto a
chuva cai pelo seu rosto, cabelo, agarrando-se às suas longas pestanas e
borrando a maquilhagem. As gotas de água juntam-se às leves sar­das que
lhe salpicam o nariz, todas as vinte e oito. O fluxo constante de chuva bate
na calçada, encharcando-nos até aos ossos.
— Vou correr o risco — murmuro enquanto os meus dedos lhe
seguram o queixo, inclinando o seu rosto para o meu. A sua boca apresenta-
me um sorriso suave que apenas atrai os meus lábios ainda mais.
Não se afasta.
Talvez o monstro, afinal, mereça a beleza.
Os seus olhos fecham-se contra a chuva que ainda cai implacavel­‐
mente sobre nós, e acho que nunca assisti a um momento tão belo.
— Minha linda Pae, o que é que me fizeste? — murmuro, com o meu
nariz a tocar no dela.
É esta a sensação de um sentimento real?
Mais perto.
As faíscas entre nós são quase tangíveis, subindo pelo meu corpo e
chocando-me.
Mais perto.
Os nossos lábios tocam-se.
— Sua Alteza. — Eu paro.
Depois suspiro contra os seus lábios, fazendo-a estremecer.
Afasto-me um pouco, apenas o suficiente para admirar os olhos e a
boca que eu tinha toda a intenção de explorar lentamente.
Nem sequer reconheço o Imperial que se atreveu a desviar a minha
atenção. Os meus olhos estão fixos em Paedyn, a minha voz mostra uma
calma falsa enquanto declaro:
— Espero que o que quer que tenhas a dizer valha a perda da tua
língua por nos interromperes.
De soslaio, vejo o Imperial a mexer-se, igualmente desconfortá­vel e
preocupado.
— Senhor, hum, está...
Paedyn parece querer esfaqueá-lo, e estou a considerar deixá-la fazer
isso mesmo. Ainda sem olhar para o guarda, falo em direção a Pae enquanto
reclamo:
— Desembucha antes que eu te obrigue. Ou antes que deixe a se­nhora
fazer as honras.
Os seus lábios contorcem-se e a ação faz-me perder o controlo, faz-me
puxar o seu rosto para o meu, ignorando completamente o guarda que está à
espreita.
— É o Rei — diz o Imperial, sabendo que não conseguirá desviar a
minha atenção quando a minha boca se encontrar com a dela. — É urgente.

Não era, de facto, urgente.


E estou, de facto, a pensar seriamente em cortar a língua da­quele
Imperial por causa disso.
Mesmo sabendo que ele não tem culpa, preciso de descarregar a minha
raiva em alguém, e esse alguém não pode ser o meu Pai.
— Não preciso que tome conta de mim — resmungo, sem me dar ao
trabalho de esconder o meu aborrecimento.
— Então deixa de te comportares como uma criança e talvez eu deixe
de te tratar como uma. — O olhar do Pai é penetrante, pren­dendo-me ao
local. As memórias de quando eu era um miúdo vêm ao de cima, memórias
daqueles olhos severos a verem-me passar teste após teste. A ver como me
obrigava a torturar alguém pela primeira vez, a obrigar-me a lutar contra
ele.
Um riso frio sobe-me à garganta, mas perde-se no som da música e da
conversa que enchem o salão de baile.
— Isto é um disparate.
— Não, é necessário. — A sua voz ergue-se, fazendo com que os
convidados se virem rapidamente na outra direção, evitando o tem­‐
peramento do Rei. — O que é um disparate é que o meu povo acabou de ver
o seu Príncipe, o seu futuro Executor, a correr pela pista de dança atrás de
uma Miserável.
Ele cospe a palavra como se o sabor das letras que a compõem lhe
dessem nojo.
— Esqueceu com rapidez que os Miseráveis também são o seu povo,
Pai. O meu povo, — ripostei, com os punhos cerrados ao lado do corpo,
para não fazer algo de que me arrependa.
Mas não me arrependo de ter corrido atrás dela.
Encara-me, com o peito a subir e a descer de raiva, prometendo
castigar-me. Se eu fosse cinco anos mais novo e doze centímetros mais
baixo, este olhar poderia ter-me assustado. Mas agora não.
— Não te vou ver a sacrificares o respeito do teu reino por uma
rapariga. Por aquela rapariga — diz-me, com uma voz baixa e letal. —
Encontrar-te-ei outro brinquedo bonito que não seja uma Mun­dana, se é
disso que precisas.
Mais uma vez, fico intrigado com o seu claro ódio por Paedyn, e o
claro ódio dela por ele. Mas, sabendo que ele não vai responder a essa
pergunta, questiono-o.
— Então enviou um dos meus próprios Imperiais para me es­piar? Para
mentir ao seu Príncipe e dizer que havia uma urgência? — baixo a voz e
dou um passo na sua direção. — Um homem inocente vai perder a língua
por causa da ordem que lhe deu.
— O facto de não achares que isto é urgente alarma-me. — As na­rinas
do Rei dilatam-se de uma forma que eu associei ao castigo que se vai
seguir. — Pensei que te tinha treinado melhor do que isto, rapaz. Talvez
precises de mais algumas lições.
Quase que vejo um sorriso seu.
— Os teus deveres são para com este povo, para com o teu reino. O teu
lugar é aqui, neste baile, onde todos te podem ver. Ver o teu futuro.
Os seus lábios curvam-se.
— Não lá fora a brincar com o teu novo brinquedo.
Olho-o fixamente, com o meu sangue a ferver.
— O que é que achas que pode acontecer entre vocês? — O riso do Pai
é frio. — Quem sabe, podes ter o prazer de a matar na próxima Prova.
Algo dentro de mim rebenta.
O poder corre-me nas veias quando todas as habilidades na sala me
pressionam, implorando-me que as liberte. Quando estou fu­rioso desta
maneira, é mais difícil manter o controlo, é mais difícil suprimir todo o
poder que pulsa dentro de mim. As palavras do Rei ecoam na minha cabeça,
gozam-me, fazendo com que eu me sinta fraco por ter perdido o controlo.
«Pensei que te tinha treinado melhor do que isto, rapaz. Talvez
precises de mais algumas lições.»
Uma mão forte cai-me no ombro.
— Calma, irmão — murmura Kitt, antes de se meter entre mim e o
Pai. O seu sorriso parece aliviar a tensão, como sempre. Esta não é a
primeira discussão que ele resolve entre nós.
Kitt aperta as suas mãos de forma casual, como se não tivesse acabado
de nos ver quase no início de uma luta.
— Desculpe interromper. Pai, está com ar de quem precisa de uma
bebida. E talvez uma dança ou duas com a Mãe.
O sorriso que faz é o mesmo desde que éramos crianças. O sor­riso que
apenas é destinado para procurar ser digno aos olhos do Pai. O sorriso que
ele ostenta, na esperança de fazer com que o Rei se orgulhe dele. Esperando
estar à altura das grandes expectativas de conseguir seguir os passos reais.
Sempre desejou a aprovação e a atenção do Rei. Kitt adora ser amado,
e até ele sente falta disso quando se trata do Pai, apesar de terem uma
relação muito mais próxima. Por isso, fará tudo o que for preciso para o
merecer.
E não o culpo. Talvez se eu não tivesse crescido com um pai que me
torturava com treinos, eu o amasse o suficiente para querer que ele também
me amasse. Mas Kitt cresceu com uma versão diferente do Rei, um que o
instruía e lhe ensinava com uma mesa cheia de papelada entre eles, em vez
de uma lâmina afiada. Alguém que lhe ensinou os caminhos de um Rei em
vez dos caminhos da tortura. Alguém que o moldou para ser um homem e
não um monstro.
Kitt coloca uma mão encorajadora no braço do Pai, empurrando-o para
as bebidas e sobremesas. Ambos me lançam um úl­timo olhar, um deles
gentil e o outro completamente oposto.
Felizmente, nunca fui de cobiçar o amor. Especialmente o do nosso
Pai. Desisti no dia em que a sua lâmina encontrou a minha pele pela
primeira vez.
Eu procuro Paedyn pela sala, já sabendo que não a encontrarei. Deve
ter sido levada para os seus aposentos para se recolher mais cedo, por
ordem do Rei. Quase me rio das suas fracas tentativas de me manter longe
dela.
Se eu não me consigo manter afastado, não há forma dele conse­guir.
A Bowl está cheia de gente. Podíamos ouvir os seus gritos e pas­sos
desde o castelo enquanto caminhávamos alinhados em direção à Prova
final.
Pela terceira vez, enfrentamos o que pode ser o nosso último dia.
Pelo menos nesta Prova, não fomos drogados antes de sermos
arrastados para um local aleatório. Acordei com uma pancada na minha
porta, seguida de um bilhete enfiado por baixo dela, informando-me de que
a Prova final teria lugar na Bowl.
Isso não me deixou com tempo para falar com Paedyn, muito menos
para pensar nela antes de ser silenciosamente escoltado para fora do castelo.
Desta vez, temos uma audiência ao vivo, que ruge quando en­tramos na
grande arena. Os Imperiais pressionam-nos de todos os lados, conduzindo-
nos até ao corrimão que dá para o fosso, vários metros abaixo. Ouço um
suspiro coletivo dos meus colegas concor­rentes, os nossos olhares fixos no
que está por baixo de nós.
É um labirinto.
Todo o fundo arenoso do fosso está coberto por fileiras de sebes e
plantas entrelaçadas. As paredes são densas e altas, preenchendo todo o
fundo da arena oval.
É enorme.
Somos conduzidos pelos largos degraus que descem em dire­ção ao
labirinto. Sou o último da fila de concorrentes e, quando os meus pés se
afundam ligeiramente na areia, paramos.
— Bem-vindos, jovens Elites, à vossa Prova final.
Volto a minha atenção para a confortável caixa de vidro ao fundo das
bancadas, decorada com os seus três assentos almofa­dados. Kitt senta-se à
direita, os seus olhos percorrendo o labirinto antes de pousarem em mim.
Reconheço-lhe um jeito, desejando-me boa sorte. Depois de lhe ter acenado
lentamente com a cabeça, os meus olhos deslizam até à Mãe, elegante como
sempre, de pernas cruzadas e com o rosto descontraído, enquanto observa o
marido de pé, olhando para nós enquanto discursa:
— Apesar de todos terem chegado até aqui — continua o Pai, Tea­lah
projetando a sua voz com uma mão suave no seu ombro —, só pode haver
um vencedor.
A multidão aplaude, o barulho soando a um grito de guerra que me é
demasiado familiar.
— A vossa última Prova está diante de vocês. Um labirinto. — A
diversão fria contorce-lhe o rosto. — Embora nada seja tão simples como
parece.
Depois o labirinto desloca-se.
Vejo o movimento de soslaio e viro a cabeça na sua direção, ob­‐
servando como as paredes de folhagem se dobram e se reformam. As sebes
movem-se em novas direções, alterando os caminhos e criando.
Brotos.
Vejo-os agora, dúzias de figuras ao longo das margens do labirinto, de
braços estendidos. Eles criaram esta Prova e agora controlam-na.
— Para ganharem esta Prova, e assim aumentarem as vossas hi­póteses
de serem os campeões desta edição das Provas de Purga, têm de ser os
primeiros a chegar ao centro do labirinto móvel.
O Rei faz uma pausa.
— Mas isso não é tudo.
Há sempre um senão.
— Não só têm de ser os primeiros a chegar ao meio, como tam­bém
terão de matar a pessoa que lá vos espera.
Os murmúrios espalham-se pela multidão, mas a voz estron­dosa do pai
atravessa-os facilmente.
— A pessoa que ali está merece este castigo. Cometeu crimes contra o
reino e vai pagar por eles com a sua vida.
Não me surpreende. Desta forma, o Rei garantira pelo menos uma
morte para entreter o povo durante esta Prova. Mentalmente, passo por
todos os prisioneiros que sei que estão a apodrecer nas nossas masmorras,
perguntando-me que alma triste irá encontrar o seu fim hoje.
— Que todos tragam honra ao vosso reino, à vossa família e a vós
próprios.
A multidão ecoa as palavras do Rei enquanto um Imperial con­duz cada
um de nós a uma abertura separada do labirinto. Os meus olhos percorrem o
fosso, examinando os Imperiais e os concorren­tes que eles acompanham.
E depois vejo-a.
Cabelo prateado preso, balançando a cada passo. Vinte e oito sardas a
pontilhar o seu nariz, embora não as possa contar daqui. Lábios que ainda
não provei verdadeiramente, e olhos oceânicos a chocarem com os meus.
Apresento-lhe algo — um sorriso. Um que é destinado apenas a ela.
Não há nada que eu lhe possa dizer, não há tempo para a pro­vocar com
palavras, nem que seja para garantir que ela se mante­nha viva o tempo
suficiente para me dar um murro na cara quando tudo isto acabar.
Por isso, não digo nada.
Levanto a mão e aceno enquanto me mantenho concentrado no seu
olhar.
Pestes, o sorriso brilhante que ela me dá é lindo. Levanta a mão, acena,
e...
E depois vai-se embora.
Hoje é o dia. De facto, hoje pode ser o meu último dia.
O Imperial guia-me para uma abertura perto do outro lado do labirinto,
deixando-me ali a olhar para as imponentes paredes de folhagem que me
desafiam a entrar. Lançando-me o desafio de me perder nas suas voltas e
reviravoltas.
Tenta apenas sobreviver hoje. É tudo o que tens de fazer.
O som de galhos a estalar e de sebes a torcer, vindo do interior do
labirinto, diz-me que os caminhos estão a mudar novamente. O labirinto
está a mover-se.
Um movimento à minha esquerda faz-me virar a cabeça para uma
jovem, com os olhos brilhantes e sem pestanejar enquanto me olha
fixamente com uma mão levantada para cima, projetando a minha
expressão sem emoção num dos ecrãs gigantes para todos verem. Deve
haver dezenas deles pacientemente à nossa espera no labirinto, prontos para
transmitir o derramamento de sangue.
Mantenho uma expressão vazia enquanto me viro para a aber­tura do
labirinto à minha frente, embora esteja ansiosa por entrar, correr e acabar
com isto.
Tudo vai mudar depois de hoje.
— Que comece a Prova final.
Mal ouço as palavras do Rei ecoarem na arena antes dos gritos da
multidão enlouquecida as abafarem. Afasto os meus pensamen­tos, olhando
para a abertura diante de mim e para as paredes que me aguardam.
E depois estou a correr.
Assim que entro no labirinto, sou sufocada pelo manto de som­bras.
Está escuro e húmido, mas não abrandei o meu ritmo. Corro pelo caminho
de plantas e muros com sebes, parando quando me deparo com a minha
primeira decisão.
Esquerda ou direita.
Não tenho tempo para ponderar as minhas opções, por isso viro à
esquerda e sou imediatamente confrontada com a mesma decisão.
Direita.
Eu corro e corro e — beco sem saída.
Volto para trás, virando à esquerda em vez de virar à direita, e acelero
o passo apesar de estar ligeiramente ofegante. Começo a seguir palpites ao
acaso, refazendo os meus passos e praguejando. Muitas e muitas asneiras.
— Caramba! — Estou a gritar por causa do sexto beco sem saída em
que tive o prazer de tropeçar. Viro-me e volto pelo caminho por onde vim,
sem reparar na Visão que acabou de testemunhar e gravar a minha pequena
explosão. Suspiro, sentindo-me aborrecida neste labirinto húmido. Os gritos
da multidão lá fora são abafados, silenciados pelas camadas de folhagem
espessa que me separam deles.
Está tudo estranhamente calmo aqui dentro, apenas o som dos meus
pés a andar, do meu coração a bater e da minha respiração ofegante a
preencher o silêncio.
E depois o labirinto muda.
O caminho em que me encontro estreita-se, as sebes de ambos os lados
pressionam-me.
Estou prestes a ser esmagada.
Este é o meu pesadelo. O meu pesadelo mais aterrador e claus­‐
trofóbico. Corro para o fim do caminho onde me espera outro, que não se
mexe e que não me esmagará se eu chegar lá a tempo. Os meus pulmões
estão a arder, os meus pés balançam na areia a cada passo que dou.
Galhos, folhas e vegetação espessa tocam-me nos ombros de ambos os
lados, ameaçando engolir-me à medida que se aproximam. Mas eu continuo
a correr para a minha salvação, para o caminho que me espera a poucos
metros de distância.
Ramos e espinhos que nunca tinha visto antes rasgam agora a pele
exposta dos meus braços, implacáveis, enquanto as paredes continuam a
empurrar-me. Mais um pouco e ficarei presa entre a folhagem, espetada por
ramos e espinhos.
Morta. Estarei morta se não sair daqui. Agora. Mergulho.
Aterro com força no caminho livre, rebolando para amortecer a queda.
E é então que a dor me sobe pela perna acima.
Deitada de lado, com o peito a arfar, sigo a sensação de picada até ao
meu pé esquerdo — o que ficou preso entre as duas sebes que agora se
moldaram uma à outra.
Um grito seco escapa-me dos lábios, e ponho uma mão sobre a boca
para o abafar. Sangue vermelho e quente escorre pela perna, pingando na
areia por baixo dela. Sento-me, tentando acalmar a minha respiração,
enquanto estico as mãos trémulas para o torno­zelo que agora mal se
encontra tapado pela minha bota rasgada.
Inclino-me para a frente e arranco o emaranhado de ramos, fo­lhas e
espinhos que me prendem a perna. Depois de mal ter conse­guido partir um
ramo, nunca desejei tanto ter a minha adaga.
Este labirinto é obra dos Brotos, obra dos Elites. O poder preenche a
folhagem que cria estas paredes, entrelaçadas com os ramos, folhas e
espinhos para as tornar mais espessas, mais fortes e mais mortífe­ras. Eu
engulo o ar, forçando-me a ignorar a dor aguda no meu pé. As minhas mãos
agarram-se ao meu gémeo. Respiro fundo. E depois puxo.
É como fogo. A dor é tão quente, tão abrasadora. Mordo a língua até
sentir o sabor do sangue, observando enquanto retiro mais e mais do meu
pé, enquanto descalço a bota rasgada. Paro, ofegante, a tentar respirar e
libertar-me da dor.
Sem a minha bota para proteger o meu pé dos espinhos e dos ramos
irregulares, fico apenas com uma pele mutilada de carne ras­gada. Bem, pelo
menos a parte que consigo ver. A outra metade do meu pé ainda está
engolida pelas sebes, agora fundidas, recusando-se a libertar-me.
Controlo o meu grito de dor quando volto a puxar o pé. Apa­rece mais
carne rasgada, ensanguentada, como fitas vermelhas a atravessar a minha
pele. Mas com um último puxão seguido de um último grito, o meu pé fica
livre.
Caio de costas, ofegante e a arfar de dor. Pestanejo para o céu, dando-
me mais um momento para respirar antes de me sentar e ar­rancar a faixa
inferior do meu top. O tecido cor de vinho mistura-se com o sangue que
escorre da minha ferida e enrolo-o à volta do pé o melhor que posso.
Adena ficaria fascinada e enojada com a perfeição com que as cores
combinam.
Empurro-me do chão e ponho-me de pé. A dor. Uma dor aguda e uma
série de asneiras.
Coxeio em frente, tentando ignorar a dor latejante do meu pé que sobe
pela minha perna. Mas consigo andar, o que prova que a lesão podia ter sido
muito, muito pior.
O suor agarra-se a mim, encharcando o top que agora está peri­‐
gosamente rasgado, mostrando um bom pedaço de pele antes das minhas
calças. E apesar da brisa húmida e fresca que sopra através das sebes do
labirinto, estou desconfortável mente quente e pegajosa.
Continuo a avançar, desequilibrada pela dor e pela falta dos dois
sapatos. A escuridão aprofunda-se à medida que me aproximo do que
espero ser o centro do labirinto e da morte que me aguarda no centro.
Se chegar lá primeiro, terei a vida de alguém nas minhas mãos.
Esquerda, direita. Esquerda. Esquerda. Sem saída. Direita. Es­querda.
Sem saída.
A minha claustrofobia faz-me sentir como se as sebes estivessem a
pressionar-me.
Abrandei até parar. Estão a aproximar-se de mim...
Em pânico, viro a cabeça em todas as direções, tentando en­contrar um
caminho que não esteja a tentar engolir-me. Não tenho sorte. Forço-me a
uma espécie de corrida cambaleante, deslizando por caminhos ao acaso e
encontrando-os todos a mudar.
Alguma coisa não está bem...
O Rei não atiraria os concorrentes para este labirinto só para nos
esmagar por diversão, certo? Não era suposto a diversão ser esmagarmo-nos
uns aos outros?
Faço uma pausa ofegante e entro em pânico. Se o Rei pretende cercar-
me com sebes, não há nada que possa fazer. Por isso, paro e fico a olhar
para as paredes de vegetação que se fecham de cada lado.
Depois fecho os olhos, preparando-me.
Parece que vai ter menos uma Vulgar com que se preocupar.
Os ramos tocam-me nos ombros e eu fico tensa, subitamente cheia de
tristeza e preparada para saudar a Morte.
Vejo-te em breve, pai.
Nada.
Abro um olho e deparo-me com uma parede de vegetação. Pes­tanejo.
As sebes já não se mexem. Viro-me, um ramo prende o te­cido da minha
camisola com o movimento.
O caminho é agora tão estreito como a largura dos meus ombros.
Cambaleio até ao fim e viro para outro, que é igualmente aper­tado.
Engulo e viro à esquerda por um caminho que tem as mesmas dimensões.
O Rei é cruel e astuto. Quase me apetece aplaudi-lo por este jogo
terrível. Eu tinha razão. A diversão das Provas é ver-nos a matar uns aos
outros. E ele acabou de preparar o cenário para o espetáculo.
Um grito corta a quietude, soando por breves instantes antes de ser
silenciado de imediato, provocando um arrepio na espinha.
Mais uma vez, estamos a ser forçados a lutar. E nestes caminhos só há
espaço suficiente para a passagem de um corpo.
Respiro fundo, sentindo a claustrofobia a apertar-me como se as
paredes me tocassem.
Só pode entrar um concorrente de cada vez nestes caminhos.
Por isso, se me deparar com um...
— Graças à Peste — a voz atrás de mim está a pingar veneno —,
estava preocupado porque não sabia se te ia conseguir matar antes do fim
destas Provas.
Direita.
Direita. Esquerda. Beco sem saída. Merda.
Inclino a cabeça para trás em direção ao céu nublado, que pa­rece ainda
mais escuro neste labirinto sombrio. Respiro fundo, viro-me e volto a correr
pelo caminho por onde vim, optando desta vez pela direita.
Caminho errado.
Um outro beco sem saída irrita-me e só quero atacar as sebes, mas sei
que isso vai-me causar mais danos a mim do que às folhas.
Acelero o passo e passo por um Visão, ignorando a sua presença e o
seu olhar inquietante. Estou de mau humor. Não é propriamente
surpreendente, tendo em conta que tenho andado a correr à volta de um
labirinto ao calor, encontrando apenas becos sem saída e que dão comigo
em doido.
Para além de ter evitado ser esmagado por paredes móveis e de ter
encontrado algumas dezenas de cobras, tenho-me mantido re­lativamente
ocupado com a corrida constante. Não tenho noção do tempo aqui dentro,
mas com o meu coração a bater rápido e a minha respiração irregular, sei
que já ando nisto há umas horas.
A areia move-se sob os meus pés, e depois as sebes movem-se ao meu
lado.
Ouço os gritos abafados de excitação da multidão quando o la­birinto
começa a reorganizar-se de novo, por isso saio do caminho e entro noutro
que também está a encolher com a mesma rapidez. Ao virar à direita,
deparo-me apenas com mais sebes a fechar.
Olho à volta, numa procura incessante. Para onde quer que olhe,
parece que promessa final é de morte. Uma forma lamentável de morrer.
Fico no caminho, a ver as paredes a aproximarem-se de mim. Nunca me
senti tão impotente, tão incapaz de fazer qualquer coisa para impedir esta
desgraça iminente.
E depois as paredes param.
Os meus ombros pressionam as duas sebes que agora ameaçam
esmagar-me. Dou um passo em frente, com os braços a raspar con­tra as
paredes demasiado apertadas de folhagem de cada lado.
Um riso amargo escapa-me, o som é engolido pelas paredes espessas.
Inteligente, Pai.
Suspiro, continuando a avançar pelo labirinto, sabendo que, se me
cruzar com outro concorrente, só há uma forma de o contornar.
Esquerda, direita. Direita. Jaguar. Pestanejo.
Não era disto que estava à espera.
O jaguar pisca-me o olho, o seu pela cor de vinho profundo, os seus
olhos da cor do mel doce.
— Olá, Andy.
Inclina a cabeça para o lado, os seus maneirismos espelham os de um
gato a brincar com um rato. E isso preocupa-me. Não sei há quanto tempo
está na sua forma animal, mas vejo que está há tempo suficiente para se
perder nela.
A habilidade de Andy é tão perigosa para si como para os outros.
Quanto mais tempo fica fora da sua forma humana, mais difícil é de manter
a mente controlada. Esta é a razão exata pela qual ela treinou tanto com a
sua habilidade, e a razão exata pela qual eu não a uso com muita frequência.
Quando éramos crianças, Andy ficava na sua forma animal durante dias
seguidos, incapaz de voltar a transformar-se, até que finalmente acordava
como humana, sem se lembrar do que tinha acontecido.
Ao longo dos anos, aprendeu a controlá-la, aprendeu a manter-se no
seu juízo perfeito mesmo estava num corpo diferente. Mas com toda a
adrenalina, o seu controlo parece estar a ausente. E é exatamente por isso
que está a olhar para mim como se eu fosse um pedaço de carne.
— Calma, Andy — levanto as minhas mãos lentamente no ar, dando
um passo atrás.
Dá um passo em frente. Não, ela avança.
Merda.
Este caminho é tão apertado que não há maneira de ela conse­guir
passar pacificamente à minha volta, mesmo que quisesse. Não que haja algo
de pacífico na forma como olha para mim, na forma como se agacha na
areia.
Não lhe quero fazer mal, mas raios, ela quer fazer-me mal. Está a olhar
para mim como um predador faria, prometendo à sua presa uma morte
dolorosa.
Tento agarrar uma habilidade que esteja por perto, como já fiz várias
vezes desde que entrei neste labirinto. A Peste sabe que tentei agarrar o
poder de um Broto para poder destruir estas paredes e ir diretamente para o
centro. E é exatamente isso que eu faria se eles não estivessem tão
deliberadamente fora do meu alcance.
O som da habilidade de Andy é avassalador, o único que está
suficientemente perto para o sentir...
Espera.
Sinto uma leve cócega nas veias, a sensação de um poder a apro­ximar-
se. Agarro-me a ele e...
Andy lança-se.
Garras estendidas em direção à minha garganta, dentes à mos­tra, uma
mancha de pelo cor de vinho a atacar-me.
E depois estou atrás dela.
Andy embate na areia onde era suposto eu estar. Solta um ru­gido de
frustração e mal consegue virar-se no caminho estreito. Só com a agilidade
de um gato é que poderia dobrar-se para me en­frentar neste pouco espaço.
Com outro rugido, ela ataca-me novamente. E com outro Salto da
habilidade de Jax, estou atrás dela. Novamente. Ela segue o mesmo padrão
de rodar para tentar cravar-me com os seus dentes.
E depois o poder de Jax a correr nas minhas veias oscila, afasta-se.
Não, não...
E depois falha.
Está demasiado longe de mim neste momento, perdido no labi­rinto e
levando a habilidade com ele.
Bem, isso não me deixa outra alternativa.
Com apenas uma habilidade disponível ao meu alcance, eu fi­nalmente
decido usá-la. Transformando-me.
Pestes, esqueci-me do quanto odiava isto. Vejo um raio de luz antes
dos meus ossos começarem a deslocar-se, os músculos a es­ticar, cada parte
do meu corpo dolorosamente consciente de cada mudança. Estou perto do
chão, o meu corpo é liso e forte e está co­berto por um pelo brilhante. Sinto
os meus caninos a alongarem-se, afiados como pontas mortais. A minha
visão melhora, estreitando-se sobre o jaguar mais pequeno à minha frente.
Tem calma. Controla-te. Controla-te.
Com o pouco treino que tive em comparação com Andy, é muito mais
fácil para mim perder o controlo para o animal em que me tornei. Por isso,
quanto mais depressa este combate acabar, melhor.
Andy parece apenas ligeiramente surpreendida por eu ter pas­sado de
humano a jaguar, espelhando o seu aspeto. Mas ela recu­pera rapidamente, e
o golpe repentino das suas garras apanha-me o lado da cara, quase
acertando-me no olho.
Eu queixo-me da dor. Não, rosno com a dor.
Salto na sua direção, atacando com as minhas próprias garras afiadas.
Atingi-a no peito, e ela solta um grito de dor antes de saltar para cima de
mim.
Este é capaz de ser o combate mais estranho em que já estive. E isso é
dizer muito.
E, no entanto, estar neste corpo parece ser algo tão natural. As mi­nhas
garras e os meus caninos sabem exatamente o que fazer quando a ataco. O
sangue vermelho mistura-se com o seu pelo cor de vinho enquanto rolamos
um sobre o outro, rosnando e cortando a carne dos nossos corpos onde seja
possível.
Estamos literalmente a lutar como animais raivosos.
Deixei que o instinto se apoderasse de mim, deixei-me levar de­‐
masiado pelo lado animal.
Controla-te. Controla-te. Tem calma.
Ela está em cima de mim e os meus dentes estalam, encontrando a pele
macia do seu pescoço. Ela grita e eu atiro-a, vendo-a cair na areia e a
embater numa sebe. Esgueiro-me na sua direção com as patas a moverem-
se silenciosamente enquanto me aproximo da minha presa.
Não. Não a vou matar. Ela é a minha família. Andy.
Está a tentar levantar-se, a tentar atacar-me com as suas garras e dentes
quando me aproximo. Agacho-me sobre ela, este pequeno jaguar que se
atreveu a desafiar-me. Os meus dentes estão à mostra, e um rosnado cresce
na minha garganta.
Eu sou Kai Azer, príncipe e futuro Executor de Ilya. Eu sou Kai Azer,
príncipe e fu...
A dor.
Dentes irregulares estão agora presos ao meu ombro, rasgando-me a
carne e o pelo. Eu rugi e levantei o meu braço não ferido, pronto para
terminar com esta luta com um simples golpe.
Um raio de luz cega-me momentaneamente e eu cambaleio para trás,
atordoado quando recupero os meus sentidos.
Eu estava prestes a matá-la.
Preciso de voltar a mudar. Agora.
Pestanejando, olho para onde Andy deveria estar deitada. Mas não está
lá nada. Uma sombra repentina surge por cima, fazendo-me olhar para o
céu. Ou onde o céu estaria se o pudesse ver.
As videiras e a folhagem espessa criaram uma barreira no topo do
labirinto, uma cúpula de vegetação que nos envolve completa­mente. Ouço o
farfalhar de penas e o bater de asas vermelho-vinho contra o teto espesso.
Transformou-se num falcão, tentando desesperadamente subir e
atravessar este labirinto sem sorte. Um esforço valente, mas que os Brotos
não podem permitir. Andy grita, tentando arranhar os ramos que a prendem
nesta gaiola. Depois mergulha de novo em direção à areia, cegando-me com
uma luz ofuscante. Pestanejo e ela está de volta à forma de jaguar, sem
olhar para mim antes de se afastar a coxear.
Não perco nem mais um segundo antes de voltar a deslocar-me. As
minhas roupas ainda estão intactas, embora encharcadas de sangue. Estou
coberto de cortes profundos, o do meu rosto arde enquanto o sangue me
escorre para o olho. Mas é a marca da den­tada que me chama a atenção. É
profunda e está a pingar sangue, o contorno de um conjunto de dentes
afiados gravados na pele do meu ombro.
E dói imenso.
Arranco uma tira de tecido da bainha da minha camisa e enrolo-a à
volta da ferida, tentando estancar o fluxo constante de san­gue. Os meus
próprios ossos parecem doer quando me ponho de novo a andar pelo
labirinto, depois de ter perdido demasiado tempo a lutar com a minha
prima.
Direita. Esquerda. Esquerda. Grito. Eu paro.
Outro grito. Direita.
Esquerda. Direita.
Paro, de repente.
O mais ténue formigueiro de poder borbulha nas minhas veias.
Concentro-me nele, desejando que se torne mais forte. E fica. E eu não
hesito em agarrá-lo.
Um sorriso divide o meu rosto ensanguentado.
Parece que um Broto se aproximou demasiado.
— Não te preocupes, eu faço isto depressa. Infelizmente, não tenho
tempo suficiente para brincar contigo.
Viro-me lentamente no caminho estreito, para olhar para a dona
daquela voz fria e dos olhos castanhos a condizer.
— Blair — digo-lhe com firmeza.
Ela vem na minha direção com um sorriso nos lábios.
— Olá, Paedyn.
— Tens a certeza de que queres fazer isto? — pergunto-lhe com frieza.
— Tu já te esqueces-te do que te fiz ao nariz da última vez que lutámos?
— Não — ela praticamente rosna —, não me esqueci.
Dou um passo atrás, com os ramos a arranharem-me os braços e o pé a
protestar de dor. Abro a boca para fazer outro comentário para ganhar mais
tempo, mas não sai nada. De facto, o ar não entra.
E depois os meus pés deixam o chão.
Estou a arfar, agarrada ao meu pescoço, embora saiba que não há uma
mão a apertar-me a traqueia. Não, isto é obra de nada mais do que a mente
distorcida de Blair. O seu movimento característico. Estou a balançar no ar,
a vários metros do chão, a sufocar.
— Só porque vou fazer isto depressa, não quer dizer que não seja
doloroso — avisa com ironia. — Desculpa, Paedyn. Nem sempre con­‐
seguimos o que queremos, não é?
A minha visão fica desfocada, o que torna difícil ver a mão es­ticada
em direção a mim ou o sorriso perverso que curva os seus lábios. Mal
consigo respirar. Apesar de a sua promessa de ser rápida, ela está a
prolongar isto.
Pensa. Pensa.
Preciso de me aproximar o suficiente dela para lhe dar um golpe. A
nossa luta depois do baile ensinou-me tudo o que preciso de saber sobre a
falta de força física que ela tem. Se conseguir aproximar-me dela...
Se conseguir respirar.
— Deves saber muito sobre não conseguir o que queres.
A minha voz é débil, resultado da sua tentativa de me inferiorizar. Só o
facto de usar o pouco ar de que disponho para dizer aquelas palavras deixa-
me tonta e fez-me rezar para que ela morda o isco.
O seu aperto fica mais leve. Mas pouco.
Há uma pergunta nos seus olhos, uma que tenciono responder:
— Kai — o nome sai-me da boca, sem fôlego.
O olhar da Blair é mais afiado do que a adaga que eu desejava tão
desesperadamente ter neste momento.
— Os príncipes — continuo com uma tosse. — O Kai e o Kitt. Não
podes ficar com nenhum deles.
Eu faço uma pausa antes de me engasgar.
— Porque eles não te querem.
Manda-me ao chão.
O pouco ar que tinha sai-me aos bocados. Fico ofegante, com a cara
meio enterrada na areia.
Levanta-te.
Ergo a cabeça e empurro os braços trémulos como apoio para
conseguir levantar-me. E, por surpresa, Blair liberta-me. Um ataque de riso
escapa-me quando os meus olhos encontram os dela.
Mantém o olhar firme, agora a arder de raiva.
É isso mesmo. Fica suficientemente zangada para me quereres ma­goar
com as tuas próprias mãos.
— Diz-me, como é que é? Ser rejeitada vezes sem conta e...
Nem sequer tenho a oportunidade de terminar a frase e sou ati­rada ao
ar para logo cair de novo na areia. A tossir e a recuperar o fôlego, viro-me
de costas.
Uma dor cega atravessa-me as costelas.
Encolho-me, a minha única defesa contra a bota dura que me atinge o
estômago. Abro um olho, vendo o rosto lívido de Blair acima de mim,
contorcido de raiva.
«Nunca te esqueças de que a tua inteligência é uma arma a ser
empunhada, se apenas a tua mente puder ser tão afiada como a tua
lâmina.»
Sorrio apesar da dor.
Tenho-a exatamente onde quero.
Bate-me de novo com o pé na barriga e, desta vez, eu seguro-o. Ouço o
seu suspiro de surpresa quando o torço com força antes de o puxar para
mim, fazendo-a cair ao chão.
Deixei-a sem fôlego, algo que sei que não está habituada a sentir, não
quando sempre teve o poder para se esconder. Num instante, estou a rastejar
para cima dela, prendendo-lhe os braços debaixo dos joelhos. Ela rosna-me,
o seu olhar cheio de raiva gutural.
Sei que só tenho tempo para um golpe antes que ela recupere e me
empurre com a sua mente. Por isso, faço com que esse golpe valha a pena.
Coloco o anel do meu pai no meu dedo médio e dou-lhe um forte
gancho de direita na têmpora, atingindo o ponto sensível da sua cabeça com
muito pouca sensibilidade.
E, sem mais nem menos, está inconsciente.
Mas não por muito tempo. Irá acordar nos próximos minutos e, nessa
altura, eu já estarei perdida no labirinto e, espero, bem longe. Porque da
próxima vez que nos encontrarmos, tenho a sensação de que ela vai
esmagar o meu coração à primeira oportunidade.
Levanto-me aos tropeções, com o corpo a doer. Cada centímetro de
mim grita em protesto, cambaleia a cada passo. Mas eu forço-me a avançar,
forço-me a ganhar velocidade.
Perco-me de novo na loucura deste labirinto, duvidando de cada
caminho que tomo, perguntando-me se o outro me teria conduzido à vitória.
Esquerda ou direita?
Esquerda. Definitivamente de esquerda.
De certeza que não, visto que é um beco sem saída.
De tempos a tempos, ouço um grito de dor ou sons de luta que se
misturam com os gritos da multidão para lá destas paredes. As Visões
surgem nos caminhos, assustando-me de tal forma que quase esmurro
metade delas. Mas assim que me veem chegar, afastam-se do meu caminho
o melhor que podem. Tenho pena deles, tenho pena que as coisas que
testemunharam tenham ficado gravadas para sem­pre nos seus cérebros.
O labirinto rearranja-se pela enésima vez, forçando-me a sair do meu
caminho para entrar noutro.
Apetece-me gritar.
Viro à direita por um caminho ao acaso, antes de parar. Ali, no fim
deste caminho estreito, há um círculo arenoso e aberto. O centro.
A vitória.
A minha vitória.
A própria terra está sob o meu controlo. Poder-se-ia dizer que tenho o
mundo na palma da mão, embora seja uma expressão muito dramática do
meu poder. Bem, o poder que estou a pedir emprestado.
A parede do labirinto diante de mim desmorona-se. As videiras e a
folhagem que compõem a sebe afundam-se no chão, escorre­gando para
debaixo da areia. Corro para a frente, estendendo a mão com o poder do
Broto para derrubar paredes ou parti-las ao meio.
Estou a destruir cada pedaço do labirinto perto de mim, desfa­zendo
vinhas e ramos.
Crio um caminho claro e largo enquanto espero estar a correr na
direção certa. E não abrando. As sebes desfazem-se para que eu possa
passar por elas, enquanto outras se arrastam de volta para a terra de onde
brotaram.
Os gritos da multidão amplificam-se a cada parede que derrubo. O som
do meu nome ecoa pelo público, mas eu ignoro-o, concentrando-me na
minha habilidade.
Concentrando-me na habilidade que me está a tocar. O poder dentro de
mim diminui.
Os Brotos perceberam finalmente o que estou a fazer e estão sem
dúvida a fugir do labirinto, tentando sair do meu alcance.
Furei uma parede à minha frente, criando um caminho para correr.
Cresce e cresce e depois...
Para.
A habilidade escorre-me dos ossos, deixando-me sem for­ças e sem
sentido, com uma mão estendida para a sebe. Empurro o meu caminho
através do buraco que criei, espinhos e ramos arranham-me.
Ouço o labirinto a reconstruir-se atrás de mim enquanto os Bro­tos
tentam reparar os estragos que fiz. Mas é demasiado tarde.
Já cheguei ao centro.
Entro no círculo aberto, preenchido apenas com areia e com as duas
figuras que lá se encontram. A primeira veio de um caminho no labirinto
oposto ao meu, e o brilho prateado na luz diz-me exata­mente quem é.
Paedyn está a coxear. Todo o corpo parece arrastar-se, mesmo quando
faz força para correr. Tem a perna e o corpo ensanguentados, magoados.
Eu começo a avançar.
Mas o seu olhar nunca encontra o meu. Não, aqueles olhos azuis estão
fixos na figura ao centro do círculo. Os passos de Paedyn os­cilam, como se
ela estivesse de volta ao meu quarto, onde a ensinei a dançar.
E depois corre em direção ao criminoso que está destinado a morrer.
De repente deixo novamente de respirar, e pergunto-me se Blair estará
de volta, espremendo o ar dos meus pulmões com o seu aperto invisível.
Balanço-me no local, com os pés a afundarem-se na areia por baixo de
mim, no limite do círculo.
Estou a ver coisas. Tenho de estar a ver coisas.
Cambaleio, tropeço e começo a correr. Forço-me a ir mais de­pressa,
ignorando o protesto da dor que me sobe pelo pé.
— Adena?
Isto não pode estar certo. Isto não pode estar a acontecer.
A sua bela forma está magoada e a sangrar. Os seus joelhos afundam-
se na areia e as mãos estão firmemente atadas atrás das costas. Lágrimas
correm pela sua pele outrora brilhante e escura, agora baça e encharcada de
sangue.
Um soluço trémulo escapa-lhe, e o meu coração ameaça falhar-me
com o som. Nunca tinha ouvido Adena chorar. Mesmo depois de ter
perdido os pais, como eu, depois de ter sido espancada por ter tentado
roubar os pães doces de que tanto gosta, depois de ter pas­sado frio nas ruas
— nunca nada a deitou abaixo. Nada apagou a luz que ela tem.
Ela é a minha luz.
Estou a tropeçar na sua direção, entorpecida e enjoada.
Isto não está certo. Isto não pode estar certo.
— Paedyn! — A sua voz falha e acho que o meu coração faz o mesmo.
Ela esforça-se para ficar de pé, tentando caminhar até mim mesmo com os
pés amarrados. O pânico está nas suas próximas palavras, rápidas e
frenéticas. — Pae, desculpa. Eu...
O tempo parece estar a parar.
A cena parece abrandar, desenrolando-se de forma tão viva, tão
violenta.
E sei, neste momento, que a verei sempre que fechar os olhos. Um
ramo bruto na sua direção é suficiente.
Um único ramo partido é o suficiente para a destruir.
A madeira nodosa voa, guiada por uma força invisível antes de ir de
encontro às suas costas, espetando-se mesmo no peito. Nem o grito que saiu
da minha garganta conseguiu ser tão rápido.
— Adena!
Ela move-se, olhando para o ramo ensanguentado que se projeta do
seu peito. Depois, o seu olhar sobe lentamente até ao meu, en­quanto eu
tropeço numa corrida, com as lágrimas a toldarem-me a visão.
O som de gritos enche-me os ouvidos. Acho que são meus. Ela
encolhe-se.
E quando o faz, avisto o sorriso de soslaio e o cabelo lilás do outro
lado do círculo, com a mão estendida. A mão que guiou e concedeu o dom
da morte, usando apenas a sua mente para atingir o alvo.
— Não!
O meu grito é cru, arrancado da minha garganta.
Chego a Adena antes que ela caia no chão, pego nela nos meus braços
e levo-a suavemente até a areia. Estou a embalar a sua cabeça enquanto o
corpo ensanguentado jaz no meu colo. As lágrimas cor­rem-me pela cara. Os
gritos sobem-me à garganta.
A sua pele está coberta de suor e eu afasto-lhe os caracóis escuros do
rosto, alisando a franja irregular, que ela me pediu parar cortar na Fortaleza,
confiando nas minhas mãos instáveis. Aqueles olhos largos e cor de avelã
estão a olhar para mim, prenhes de lágrimas não derramadas.
— Vais ficar bem, A.
As minhas mãos tremem enquanto toco com cuidado na ferida, a
minha voz treme enquanto as palavras saem de mim tão rápido como as
minhas lágrimas.
1
— Estás a ouvir-me? Vais ficar bem e, quando ficares, vou arranjar-te
todos os pães doces que quiseres até te fartares deles. Está bem?
Olho para cima, freneticamente, e gritou:
— Socorro! Por favor, alguém me ajude! — Mas os meus gritos são
abafados pelos aplausos da multidão, deixando-me a sussurrar as mi­nhas
súplicas: — Ajudem-na. Ajudem-na. Por favor. Ajudem-na. Por favor.
Olho para Adena através das lágrimas.
— Tens de ficar comigo. — A minha voz falha. Eu sinto-me des­truída.
— Tens de me prometer que vais ficar...
Adena inspira com força, fraca e hesitante.
— Pae.
O soluço que tenho estado a abafar escapa-me dos lábios quando ela
diz o meu nome, tão suave e doce. Como se fosse eu que precisasse de ser
consolada.
— Sabes que eu não faço promessas que não posso cumprir. — A sua
voz torna-se mais suave a cada palavra, a sua energia esgotada. E com outra
inspiração ofegante, ela apresenta um sorriso com os seus lábios rachados.
Mesmo perante a morte, ela sorri.
Morte.
Está a morrer.
— Não, não, não... — As minhas palavras são um soluço, um grito
trémulo. — Não digas isso. Tu estás bem. Vai correr tudo bem!
Continua a sorrir-me, enquanto as lágrimas lhe escorrem pela cara,
vindas daqueles olhos quentes cor de avelã, agora ligeiramente desfocados.
— Prometes que o vai usar por mim?
Pestanejo, mas a minha visão fica ainda mais turva com as lágrimas.
— O quê?
— O colete. — A sua voz é apenas um sussurro, obrigando-me a
inclinar para a frente para a ouvir enquanto diz: — O verde com os bolsos.
Ela respira ofegante antes que farrapos de tosse lhe assolem o corpo. O
sangue mancha-lhe os lábios e escorrega-lhe dos cantos da boca, mas ela
continua, determinada como sempre.
— A costura levou-me imenso tempo e não gostaria que todo o meu...
trabalho árduo fosse desperdiçado.
Um soluço e um riso histérico escapam-me.
— Prometo, A., que o usarei todos os dias por ti.
Sorri um tipo de sorriso triste que se poderia pensar que o Sol faz
quando se põe. Quente e maravilhoso. Desgastado e cansado. Pronto para
dizer adeus, para fazer uma pausa de ter de ser uma fonte constante de luz.
Alívio perante a perspetiva do descanso.
Os seus olhos fecham-se e, de repente, fico tão aterrorizada por não
poder voltar a vislumbrar aquele olhar cor de avelã.
— Por favor — sussurro-lhe, puxando-a para mais perto de mim. —
Por favor, não me deixes, A. Tu és tudo o que me resta.
Ela é a única pessoa que me conhece. O meu coração dói.
A morte é demasiado horrível para Adena, demasiado sombria para o
seu brilho, demasiado indigna para a sua alma deslumbrante.
As suas pálpebras abrem-se, revelando um pedaço daqueles olhos cor
de avelã para eu memorizar uma última vez. Esforça-se por falar, esforça-se
por respirar superficial mente.
— Isto não é uma despedida... apenas uma boa maneira de dizer adeus,
até à próxima!
O meu corpo treme com os soluços enquanto acaricio o seu belo rosto,
lembrando-me de que aquelas palavras eram as mesmas que me dissera
antes de eu sair de Loot. Só que nessa altura, a sua frase foi acompanhada
de sorrisos e acenos, tão certa de que me voltaria a ver.
E agora nunca mais o fará.
Devia ter sido eu. Era suposto ser eu. Era eu que devia morrer nestas
Provas, não ela. Qualquer pessoa exceto ela.
Uma onda de culpa cai sobre mim, ameaçando afogar-me com as
minhas lágrimas. A culpa é toda minha. Ela só está aqui por causa do meu
esquecimento, do meu egoísmo. Trouxe-a para aqui depois de me ter
esquecido dela. Trouxe-a para a sua morte.
— Preciso que saibas que nunca te esquecerei, A. — sufoco entre os
meus soluços. — Nem nesta vida, nem na próxima.
Nunca mais.
Mal consegue acenar com a cabeça antes de os seus olhos se fecharem.
Soluço, o meu corpo cai sobre o dela enquanto encosto a minha testa à
sua.
— Tu és a minha favorita, A.
Com os lábios apertados num sorriso suave, ouço-a respirar fundo.
Dá o seu último suspiro. Deixando-me a tremer. Deixando-me a gritar.
Deixando-me a soluçar.
Deixando-me.
Angústia absoluta. Uma agonia absoluta. Apenas um horror.
É isso que ouço no seu grito.
Estou enraizado no local, incapaz de tirar os meus pés da areia ou os
meus olhos da sua forma amassada. Mal vi o ramo antes de ele ter
atravessado o criminoso.
Não, não é um criminoso — Adena.
A confusão toma conta dos meus pensamentos quando mais um dos
gritos de Paedyn atravessa o ar. Adena não deveria estar aqui. Ela não era
minha prisioneira, e certamente não era uma criminosa digna desta morte.
Paedyn está a afundar-se na areia, balançando-se para trás e para a
frente enquanto aperta a forma sem vida da sua melhor amiga con­tra o
peito. Ouvi inúmeras histórias sobre as duas durante a primeira Prova. O
amor de Paedyn pela sua amiga era evidente naquela época, mas agora está
estampado no seu rosto, a cada soluço. Nunca imagi­nei que a veria chorar,
mas até mesmo os mais fortes quebram, sobre­carregados e enterrados pela
dor.
Quero ir ter com ela. Quero abraçá-la, distraí-la, confortá-la da forma
que sei que devo, mas não sei como. Magoar é o que eu sei fazer. Ajudar
quem está magoada é algo que não me é familiar.
A multidão irrompe em aplausos e cânticos. Blair aproxima-se mais do
círculo, sorrindo após o ato horrível que cometeu. Acaba de ganhar esta
prova e o público elogia-a por isso.
Está a acabar.
Está tudo acabado.
Dou um passo em direção a Paedyn e aproximo-me do ringue aberto.
Vejo a cabeça de Jax espreitar por detrás de uma parede antes de ele Saltar
vários metros para dentro do círculo. Pelo canto do olho, vejo Andy a
cambalear para dentro do círculo, na sua forma humana e coberta de
sangue. Está a agarrar-se à cabeça, de­sorientada depois de finalmente ter
conseguido voltar à sua forma humana. A dor das feridas que lhe infligi
deve ter sacudido a sua mente, permitindo-lhe pensar com clareza suficiente
para se trans­formar de novo.
Estou suficientemente perto de Paedyn para poder ver as lágri­mas a
escorrerem-lhe pela cara, por entre a sujidade e o sangue que lhe cobrem a
pele. A sua testa está encostada à da amiga, com os olhos fechados e os
soluços a sacudir-lhe o corpo.
Os gritos da multidão são ensurdecedores enquanto me dirijo devagar
até ela, pronto para me ajoelhar e...
Há qualquer coisa na multidão que muda.
Os gritos de euforia e excitação transformam-se em gritos de horror.
Eu estava muito concentrado em Paedyn para ouvir, mas agora o som chega
como um estrondo, confunde-me.
Ouço o grito de um Imperial ofegante ali perto, parecendo can­sado
como se tivesse corrido até aqui.
— Os túneis! Eles vieram pelos túneis até à caixa!
Viro-me, quase tão frenético como a multidão que enche as ban­cadas.
Estão todos a gritar ao mesmo tempo, presos nos seus luga­res por figuras
com máscaras negras que bloqueiam as saídas de cada uma das bancadas. E
com o Mudo a cobri-los, as pessoas não têm poder para ripostar. Os meus
olhos percorrem os seus rostos assustados antes de pousarem na caixa de
vidro onde estão os meus pais e Kitt.
E é aí que eu vejo. Vejo-os.
A Resistência.
Um homem está ao lado do meu Pai, a usar uma máscara preta e
encostando-lhe uma faca à garganta. Há outros membros da Resis­tência no
camarote, rodeando o Rei, a Rainha e Kitt. Estão a enfrentá-los, todos com
adagas nas mãos, embora não pareça que tencionem usá-las. O que só pode
significar uma coisa.
São Silenciadores. Talvez até outros Fatais.
Caso contrário, o meu pai já lhes teria arrancado os membros, Kitt já
lhes teria pegado fogo e a minha Mãe teria ajudado, eletrocutando-os, se os
seus poderes não fossem suprimidos ou controlados.
Mal consigo distinguir os seus rostos retorcidos, reagindo ao peso do
poder de um Fatal a esmagá-los. Mas eu conheço a agonia de­masiado bem.
A agonia de ser suprimido enquanto o próprio poder que possuis te é
retirado. Eu conheço a cara que eles estão a mostrar porque eu já a usei
muitas vezes antes.
Estão a ser sufocados por Silenciadores. E eu também.
— Por favor.
Estou sempre a murmurar as palavras, uma e outra vez, como se isso a
pudesse trazer de volta. Como uma oração, um apelo.
— Por favor, por favor, por favor.
Mal ouço os aplausos da multidão por cima da dor que ruge na minha
cabeça, no meu coração. Aperto-a contra mim, com a minha testa pousada
sobre os seus caracóis macios. Ainda consigo sentir o mais leve aroma a
mel, colado ao seu cabelo e corpo. Ela sempre cheirou a mel. Sempre
cheirou a casa.
A minha cara está entorpecida e já não sinto as lágrimas a rola­rem-me
pelas faces. Levanto-a suavemente, segurando-lhe as cos­tas para a poder
abraçar mais de perto. Os meus olhos desfocados veem as suas mãos atadas
atrás das costas, uma visão que me faz estremecer e soluçar.
Partiram-lhe os dedos.
Estão dobrados em ângulos estranhos, a sangrar, magoados. Aquelas
mãos pequenas e esguias estão mutiladas, uma falta de res­peito pelo que já
foram, pelo que conseguiam fazer. Antes da morte, a coisa que a fazia
sentir-se mais viva foi-lhe tirada.
As suas mãos de costureira. Os seus dedos talentosos. Partidos.
Depois destruíram-na a ela.
Uma onda de raiva varre-me, lavando a culpa e tristeza para a
substituir por uma raiva abrasadora.
Ela destruiu-a. Blair.
Eu vou matá-la.
Olho para a forma sem vida de Adena. Mesmo na morte ela e linda,
brilhante, de tirar o fôlego. Só o facto de a ver tão quieta, tão silenciosa,
alimenta a minha fúria, e direcionando-a para outro assassino.
Ele destruiu-a. O Rei.
Ele trouxe-a aqui para ser morta. Adena não é — não era — uma
criminosa. O meu ódio por ele aumenta. Ele fez isto de propósito. Ele
avisou-me que eu não iria ganhar estas Provas, certificou-se disso. Não
quando tinha de matar a minha melhor amiga para o fazer.
Este homem tirou-me tudo.
Este Rei matou a única família que eu conhecia. Primeiro o meu pai, e
agora Adena.
Os gritos da multidão chegam finalmente aos meus ouvidos, tirando-
me do meu estado patético em que me encontro. Olho para cima e vejo que
as paredes do labirinto desapareceram, deixando-me sentada no centro do
poço de areia. Os outros concorrentes estão por perto, todos igualmente
confusos. A multidão está louca. Os Elites estão a gritar e a apontar e...
— Os túneis! Eles atravessaram os túneis até à caixa!
Fico tensa.
Estão aqui.
Os meus olhos procuram na multidão por alguém familiar antes de se
focarem na caixa de vidro. De facto, vejo Calum a conduzir o Rei para fora,
com uma mão a segurar uma adaga na garganta e a outra a segurar-lhe o
braço. Um homem que nunca tinha visto antes, que só posso presumir ser
um Silenciador, segue-o de perto até à grade que dá para o fosso.
— ... vieram pelos túneis!
Ouço outro Imperial a gritar por entre a multidão, dando-lhes ordens.
Mas são poucos os guardas que não estão presos nas ban­cadas envoltas por
Mudo, onde os membros da Resistência estão a bloquear as saídas. E o
punhado de Imperiais que está livre não faz nenhum movimento para correr
para o Rei. Não podem. Não por­que têm medo de que o seu líder seja
degolado caso se aproximem demasiado.
Por uma vez na sua vida, os Elites sentem-se verdadeiramente
impotentes. E depois sinto os seus olhos lançando-me fogo.
São como esmeraldas verdes, afiadas e cortantes, a partir do mo­mento
em que encontra o meu olhar dentro da caixa de vidro. Como me enganei ao
pensar que os seus olhos não eram semelhantes.
Porque quando o seu olhar atravessa o meu, eu não o vejo. Vejo o seu
pai. O futuro rei sabe que a culpa é minha.
Ele sabe, porque me mostrou o túnel e a chave. Sabe porque con­fiou
em mim com essa informação. Kitt sabe que eu o traí.
Fixa o meu olhar, com um ar tão magoado, tão horrorizado, tão cheio
de ódio. Os seus olhos são tão frios que quase me arre­pio. O rapaz que me
olha fixamente é desprovido de todo o calor, de todo o encanto que conheci.
É frio. É insensível. Está assim por minha causa.
Ele é o seu Pai.
Ouço a areia a tremer debaixo dos pés e afasto os olhos de Kitt para
encontrar quatro Silenciadores a caminhar na nossa direção, de mãos
estendidas.
Os grunhidos ecoam dos concorrentes perto de mim e o meu olhar vai
ter com Kai, a poucos passos de distância, com os olhos fechados contra a
dor. O meu coração aperta-se ao vê-lo a agarrar a cabeça, afundando-se de
joelhos na areia. Blair, Jax e Andy fazem o mesmo, com caretas de dor ao
sentir os seus poderes a serem silen­ciados, sufocados, subjugados.
— E assim termina a Sexta Edição das Provas da Purga. — A voz de
Calum ecoa pela arena, acalmando e silenciando todos com uma única
frase. Tealah está ao seu lado, parecendo aterrorizada com a mão
pressionada contra o seu braço. O Rei, por outro lado, parece calmo,
enquanto tenta parecer completamente indiferente à adaga que tem na
garganta e aos membros da Resistência que o rodeiam.
— Muitos de vós podem não saber quem somos — continua Calum,
com a voz clara e os olhos a percorrer a multidão. — E isso é por­que nós
somos o segredo mais mortal do vosso Rei. O seu segredo mais sujo. Nós
somos os Vulgares. Nós somos os Fatais. Nós somos a Resistência.
Um suspiro coletivo ecoa pelas bancadas, com o choque a assolar a
multidão. Não podem fazer nada a não ser assistir ao desenrolar da cena,
com os seus poderes suprimidos pela Bowl e os membros da Resistência a
bloquearem a sua fuga.
— Hoje, saímos da escuridão e mostramos-vos quem somos. O que
queremos mudar.
Não me consigo mexer, com os olhos tocados em Calum quando ele se
vira para olhar para o Rei. Todos os guardas, todos os cida­dãos observam
em silêncio, incapazes de impedir isto.
— Tudo isto pode acabar. Sem mais mortes, sem mais lutas.
Ele gesticula agora para a multidão, acenando com a mão.
— Nós estamos por todo o lado. Não estamos extintos deste reino,
apesar daquilo que o vosso Rei vos fez crer. Nunca parámos de cres­cer,
nunca parámos de lutar contra as injustiças que a Purga trouxe. E reunimo-
nos aqui hoje.
As pessoas parecem aterrorizadas com a perspetiva de tantos Vulgares
doentes a viver entre elas. É evidente que os Elites farão tudo para manter
os seus poderes, para sobreviver, e se continua­rem a acreditar que os
Vulgares os vão matar, então só continuarão a matar-nos.
Suplico silenciosamente a Calum que lhes conte a mentira do Rei, que
lhes diga que estamos saudáveis. Podemos não ter provas, mas o facto de
termos vivido entre eles durante décadas sem surtos de doenças ou perda de
poderes dos Elite terá de ser suficiente por agora. No entanto, parece que a
maior parte do reino não se preocupa o sufi­ciente com os Vulgares para
sequer considerar isso. Apenas confiam cegamente no seu Rei retorcido.
O olhar de Calum desloca-se entre o futuro rei na caixa de vidro e o
seu futuro Executor que está a sofrer com dores ao meu lado.
— Podemos unir-nos pacificamente, ou não. Seria de pensar que a vida
dos únicos herdeiros seria suficiente para o persuadir a pôr o seu orgulho de
lado e a reunir o povo de Ilya.
O meu coração para antes de voltar à vida.
Eles vão matar os príncipes se o Rei não ceder. Estão a apostar o futuro
de Ilya. A apostar as suas vidas.
Não me disseram isso.
Não, não, não.
A reação da multidão é um rugido de raiva. Não era suposto ser assim.
Ameaçar a vida dos príncipes só fará com que a raiva do povo seja dirigida
a nós, à nossa causa. É prejudicial, não ajuda.
A minha cabeça está a andar à roda enquanto os Ilyans gritam em
protesto.
A voz de Calum é severa.
— Povo de Ilya, deem-nos as boas-vindas a casa. Não somos uma
ameaça para...
Uma respiração aguda vinda da minha retaguarda assusta-me,
desviando a minha atenção de Calum e do Rei. O Silenciador que está
diante de Kai fica tenso. Os seus olhos estão arregalados, o suor a cobrir-lhe
a testa. Ele abre a boca como se fosse gritar algo, um aviso. E depois...
Kai irrompe em chamas.
A minha mente sente-se confusa, a minha cabeça turva. Isto não pode
estar a acontecer. Quatro Silenciadores estão à frente de cada um de nós,
sufocando os nossos poderes.
Todos os concorrentes, exceto Paedyn, sentem que a sua cabeça está a
partir-se. Eu sei que ela não é afetada pelo poder do Silenciador, mas
porque é que nenhum membro da Resistência lhe toca, protege, ou se
aproxima dela?
O pensamento escapa-me quando outra onda pesada se abate sobre
mim.
A dor e a agonia são dificilmente suportáveis, mesmo com todo o
treino que tenho feito com Damion. A minha cabeça a latejar dificulta-me a
concentração no homem ao lado do meu Pai, o seu rosto oscila na minha
visão.
Pelo que consigo ouvir através do zumbido nos meus ouvidos, o seu
discurso consiste em como os Vulgares querem viver, mesmo apesar da
doença que vão espalhar às Elites.
Mas se há tantos Vulgares a viver entre nós como ele diz, então porque
é que não sentimos os efeitos? A perda de poder?
A minha cabeça lateja ainda mais enquanto tento perceber o que se
passa. O homem continua a falar, mas eu cerro os dentes e bloqueio-o.
Respiro fundo, pondo de lado a dor para me concentrar na sensação de
poder que está por detrás. Concentro-me no homem que me está a silenciar,
à medida que o formigueiro da sua habili­dade cresce sob a minha pele.
Fechei os olhos, tentando alcançar esse poder, tal como tinha feito
tantas vezes com Damion. Claro que nunca tinha sido capaz de o fazer...
Não. Estás. A. Ajudar.
A adrenalina mistura-se com aquela leve sensação de poder, tão leve
sob a minha pele.
Eu agarro-me a ela.
É estranho pensar que o mesmo poder que o Silenciador está a usar
para suprimir a minha habilidade continua a ser o meu poder.
Agarrando-me à habilidade do Silenciador, sentindo-a inundar o meu
corpo, atiro-lha de volta.
Os seus olhos arregalam-se com a súbita sensação do seu pró­prio
poder a lutar contra ele. Não estava preparado para isto, não estava à espera
disto. Baixou a guarda.
Só um Silenciador pode vencer um Silenciador.
E é exatamente isso que eu faço.
Derrotei-o com a sua própria habilidade.
O peso do seu silêncio escorrega-me dos ombros.
E depois destruo-os com chamas.
Gritos enchem o ar. Os Silenciadores estão cobertos de chamas, e o
cheiro de carne queimada faz-me engasgar.
Os Silenciadores estão a rebolar na areia, tentando abafar as chamas
que lhes consomem a pele, queimando-lhes a roupa. O seu silêncio
sufocante sobre os concorrentes rompeu-se, libertando-os.
Ainda não faço ideia de como aconteceu, como é que Kai de re­pente se
libertou do controlo do Silenciador e assumiu a habilidade de Duplo de Kitt
A sua rajada de fogo, o seu ataque brutal, levou toda a arena ao caos mais
uma vez. Os meus olhos dirigem-se para as bancadas, onde a multidão
começa a empurrar a Resistência para trás, e segue-se uma luta.
De repente, os Imperiais entram na arena para se juntarem à luta e fico
chocada com o número de pessoas que chegaram tão depressa. Olho para
trás, consciente de que o número de figuras de máscara negra está a
diminuir.
Não estávamos à espera disto. Não estávamos preparados para lutar,
para perder.
Preciso de sair daqui. Agora.
A ideia de fugir numa altura destas não é viável, mas o futuro rei sabe
o que eu fiz. O pensamento martela-me enquanto procuro por ele na Arena.
Está agora a empurrar a multidão que se juntou à volta da caixa de vidro,
depois de terem dominado a Resistência e se terem dispersado das suas
bancadas. As chamas espalham-se pelos braços enquanto luta com qualquer
um que se aproxime.
Kai foi juntar-se à luta, os seus movimentos são precisos, perfeitos,
enquanto derrota membros da Resistência ao acaso. A visão disto deixa-me
doente. Não faço ideia de onde está Jax, mas vejo um cabelo curto cor de
vinho no meio de um mar de gente e sei imediatamente que pertence a
Andy.
E, para seu bem, a Blair tem sorte por eu não a conseguir encontrar.
Oh, mas eu vou. E vou gostar de a matar.
Levanto-me e paro abruptamente ao sentir um peso pesado no meu
colo.
Adena.
As lágrimas voltam aos olhos, mas afasto-as, obrigando-me a ter
calma. Olho para o seu rosto calmo e imóvel, para o caos à nossa volta e
para a batalha sangrenta a decorrer. Tento levantá-la comigo, mas ela é
pesada — um peso morto. Literalmente. Engasgo-me com a ideia enquanto
a empurro do meu colo e a coloco na areia.
Não a posso levar comigo.
Nunca terá um enterro digno. Nunca terá o adeus que merece.
— Des... Desculpa-me, A — sussurro, beijando-lhe a testa. — Perdoa-
me...
Ponho-me de pé, limpando as lágrimas que tentei impedir que caíssem.
Começo a afastar-me do seu corpo sem vida, incapaz de suportar a sua
visão por mais tempo.
— Eu amo-te.
E depois estou a correr.
Cobarde. Tal como com o teu pai.
A simetria das suas mortes é doentia. Ambos com armas atra­vessadas
no peito.
Ambos a esvaírem-se em sangue à minha frente.
Ambos deixados no chão, a apodrecer sem um enterro. Ambas as
mortes terminaram com a minha fuga.
Apetece-me gritar.
A mim própria. Aos seus assassinos. Com o mundo.
Empurro-me através de um aglomerado de pessoas, passando pela
enorme multidão que luta no fosso, nas escadas, nas bancadas. Máscaras
pretas e brancas chocam enquanto os membros da Re­sistência lutam contra
os Imperiais. Mas a luta não é justa. Ali são tantos os Imperiais, e mesmo
com o poder dos Fatais ao lado dos Vulgares, a Resistência está em
desvantagem numérica.
Eu passo pelos corpos e desvio-me de socos enquanto subo as escadas
lotadas que vão em direção ao exterior do fosso e para um caminho
igualmente lotado. Os meus muitos anos de desvios e de corridas sem ser
vista nas ruas de Loot serviram-me bem, e os meus pés entraram num ritmo
familiar, com passos suaves e rápidos.
Os gritos inundam-me, os gritos ecoam pela Arena. A luta é um rugido
monótono nos meus ouvidos, mas forço-me a seguir a multi­dão de pessoas
que tentam fugir da luta em vez de se juntarem a ela.
Quero dar a volta. Quero lutar com a Resistência, com o meu povo.
E isso ia ajudar no quê?
Aquelas seis palavras entram na minha cabeça, envolvendo-me com
tanta força que sinto que vou sufocar. O sufoco desse pensa­mento só aperta
quando nove pequenas letras se juntam, criando uma palavra tão
devastadora como as últimas cinco.
Impotente.
Em todos os sentidos da palavra.
A corrente humana em que me deixei arrastar larga-me finalmente à
porta da Bowl. O vento passa-me pelo cabelo quando saí­mos, espalhados
pelo longo e largo caminho ladeado de árvores. O caminho que conduz ao
palácio.
Os Ilyans ao meu redor dispersam-se. Eles saltam e correm à volta do
exterior da Bowl até que os seus pés encontram outra es­trada que vai na
direção oposta. A estrada que leva à cidade.
Começo a segui-los, as minhas pernas movem-se por vontade própria,
levando-me a Loot. Levando-me para casa.
E depois paro.
Há algo no meu peito que me dói — o meu coração.
O colete de Adena.
Dou a volta, olhando para o castelo que guarda a promessa que fiz.
«Vou usá-lo todos os dias por ti.»
A promessa ressoa na minha cabeça, e é tudo o que preciso para
começar a correr pelo caminho ladeado de árvores. As flores cor-de-rosa e
as pétalas delicadas que choveram sobre mim da pri­meira vez que percorri
este caminho já desapareceram há muito.
Agora estão mortas e pisadas no chão, deixando apenas botões vazios
e ramos frondosos a balançar por cima de mim enquanto corro.
Que se lixe o maldito pé e os ferimentos. Os poucos Imperiais que me
perseguiram em Loot por roubo nunca me teriam conse­guido fazer correr
tão depressa e tão longe.
Quando os meus pés atingem o pátio da calçada, não me preo­cupo em
abrandar. Corro sobre ele enquanto as gotas de chuva começam a tocar-me
na pele e a escorregar pelo chão. Subo os de­graus de pedra que conduzem
às gigantescas portas douradas do castelo.
Vai para dentro. Pega no colete. Sai. Vai até Loot e...
— Miss Gray!
Assusto-me, olho para cima e vejo quatro Imperiais estacionados do
lado de fora das pesadas portas. Eu estava demasiado ocupada a correr para
os ver. Um homem mais velho vem a correr ao meu encontro, com os olhos
cheios de preocupação à volta da máscara branca que usa.
— Menina, sente-se bem? Os combates pararam? A Resistência foi
derrotada? — Os seus olhos perscrutam os meus, à procura de respostas.
Portanto, eles sabem claramente o que se está a passar dentro das
muralhas da Bowl, e mesmo assim estão presos aqui. Sem dú­vida que
receberam ordens específicas para ficarem a guardar o castelo, juntamente
com os muitos outros Imperiais que, tenho a certeza, andam a rondar lá
dentro. Aqueles por quem tenho de pas­sar para chegar ao meu quarto.
— Sim, eu... — Preciso de um plano. Rápido.
E a que me vem à cabeça é algo de que não me orgulho.
Deixo que o meu corpo fique mole e tropeço nos degraus. Es­tendo as
mãos para apoiar a queda, mas o Imperial chega antes de mim. Envolve um
braço à volta do meu corpo para me segurar, e eu reprimo a vontade de o
partir ao meio.
Agarro no meu pé e no pano ensopado de sangue que o envolve
descuidadamente, agora quase a cair com toda a corrida que fiz. Faço a
minha melhor careta, embora não seja difícil, pois a adrena­lina está a
esvair-se lentamente do meu corpo para ser substituída pela dor.
— Está magoada. — Os olhos do Imperial dirigem-se para o meu pé
quando eu sibilo de dor.
Que observador.
— Sim, mas eu estou bem. Só... — Coloco o meu pé de volta no
degrau e ofego dramaticamente de dor. Estou mesmo a aproveitar tudo o
que isto tem para dar. Os meus dedos enrolam-se à volta do uniforme
branco e amiláceo do Imperial, os meus olhos suplicam.
— Mal consegui sair dali. Está um caos. E eu... — Respiro fundo. —
Estou tão assustada e o meu pé dói-me tanto e não sei o que fazer...
Pestes, não acredito que me tenha reduzido a isto.
Pareço histérica, e era exatamente o que eu queria. O Imperial olha de
relance para os seus amigos no cimo dos degraus antes de voltar o seu olhar
preocupado para mim.
— Porque não a levamos para o seu quarto para que possa des­cansar e
curar esse pé?
Isto vai acabar em breve.
Uma lágrima rola-me pela face enquanto lhe aceno fervorosa­mente
com a cabeça, esperando parecer assustada e atordoada, em­bora isso não
esteja a acontecer. Só preciso dele para poder ir para o meu quarto sem
parecer suspeita. Sem chamar a atenção dos outros Imperiais que farão
perguntas para as quais não tenho resposta. Mas se tiver um Imperial como
meu acompanhante, o problema que eu represento já estará resolvido e sob
controlo.
— Ranken, leva a Miss Gray para o seu quarto. Depois informa um
Curandeiro de que ela precisa de assistência. — O Imperial ges­ticula para
um homem largo com músculos salientes que são evi­dentes mesmo através
do uniforme rígido que usa.
Forte.
Ele acena com a cabeça e aproxima-se de mim, dizendo com uma voz
profunda:
— Isto será mais rápido e muito menos doloroso para si se fizer­mos
isto à minha maneira.
Aparentemente, a sua maneira de agir envolve pegar em mim e
carregar-me como uma criança incompetente. As suas mãos estão debaixo
dos meus joelhos e à volta das minhas costas, segurando-me facilmente
contra ele enquanto atravessamos as grandes portas e entramos no corredor.
O meu primeiro instinto é passar as mi­nhas pernas por cima dos seus
ombros e prendê-lo com um estran­gulamento antes de o mandar ao chão.
Mas isso foi antes do meu instinto mais inteligente e estratégico me lembrar
que é isto que eu quero, que é isto que eu preciso de fazer.
Por isso, engulo o meu orgulho e deixo-o levar-me. Deixo-o percorrer
cada corredor comigo nos braços e com dezenas de Impe­riais a zumbir à
nossa volta. Luto contra o meu sorriso quando eles mal olham na nossa
direção.
Antes que me aperceba, o Imperial deita-me na minha cama, res­‐
mungando algo sobre mandar chamar um Curandeiro. Espero que o som
dos seus passos se distancie antes de sair do colchão e abrir as portas do
meu roupeiro.
Passo por entre os vestidos e o equipamento de treino elegante até
chegar a uma prateleira nas traseiras. Calças e camisas confortáveis estão
ali bem dobradas, obra de Ellie e da sua limpeza constante. Ao passar a mão
por baixo de uma pilha de camisas de algodão, os meus dedos roçam num
tecido áspero e familiar.
O meu coração aperta-se quando tiro o colete que tinha escon­dido. O
seu tecido cor de azeitona é baço e, no entanto, nunca vi nada mais perfeito.
Passo os dedos pelos bolsos que revestem o interior e o exterior do colete,
tornando-o o acessório ideal para um ladrão.
Respiro fundo antes de o vestir por cima do meu top, agora man­chado
de suor. Depois pego num novo par de botas e estou prestes a calçá-las
quando a porta se abre, revelando um homem robusto que só pode ser o
Curandeiro.
— Ouvi dizer que estava ferida?
— Sim — digo, antes de fingir um tropeçar na sua direção. — É o meu
pé.
— Estou a ver — o homem aproxima-se, gesticulando para que eu me
sente na cama. Penso em dar-lhe um murro antes de decidir tirar partido da
sua cura rápida. Pega gentilmente no meu pé com as mãos e eu vejo os seus
dedos a dançar sobre os cortes irregula­res que se estendem pelo meu
tornozelo. A visão da minha carne a juntar-se novamente traz-me memórias
do meu pai aos meus pen­samentos, doendo-me mais do que o ferimento.
Pestanejo quando o Curandeiro acaba, deixando apenas linhas cor-de-
rosa ténues como prova das minhas feridas.
— Bem, se isto é tudo...
Tiro a minha adaga de debaixo da almofada ao meu lado, e o
Curandeiro fica inconsciente quando o punho da adaga lhe acerta na
têmpora. Tento o meu melhor para amortecer a sua queda, mas ele quase
que me esmaga quando se despenha no chão. Passo por cima do seu corpo,
calçando as minhas botas e murmurando o meu agradecimento, embora ele
nunca o vá ouvir.
Deslizo-me silenciosamente para o corredor. Os Imperiais pen­sam que
estou em segurança no meu quarto, a queixar-me da minha ferida, e embora
essa imagem me enfureça, gostaria de manter as coisas assim. Se me virem,
o meu disfarce está arruinado.
Felizmente, tenho muita prática em passar despercebida.
Estou com os pés no chão enquanto me arrasto pelo corredor,
preparada para saltar para uma sala ou mudar de direção a qualquer sinal de
movimento.
Corro pelos corredores, evitando o melhor possível os maiores e mais
utilizados.
Os poucos Imperiais que se cruzam no meu caminho são distraí­dos e
facilmente evadidos enquanto me dirijo para a minha fuga — os jardins. É a
saída mais próxima de onde estou, bem como a única que provavelmente
está desprotegida. Com o caos atual a fazer com que o castelo esteja com
pouca gente, aposto que a saída estará longe da cabeça de todos os
Imperiais.
E eu tinha razão.
Chego à porta que dá para a bela paisagem e abro-a. A chuva é
implacável, continuando a cair do céu nublado. Apressei-me a per­correr os
caminhos ladeados de flores de todas as cores, tamanhos e formas. Depois
passo a correr pela fonte onde eu e Kitt quase que atirámos metade da água
um ao outro.
Kitt.
Afasto a ideia dele e da minha traição, concentrando toda a minha
atenção em regressar a Loot o mais rápido possível. O que não vai ser de
todo rápido, tendo em conta que vou ter de lá chegar a pé.
Estou de novo no caminho que leva à Bowl, dirigindo-me por aquele
que levará até Loot Estou ofegante, com as pernas a doer, en­quanto corro
mais uma vez pelo caminho ladeado de árvores. A dor e a raiva misturam-
se com a adrenalina, fazendo-me sentir igualmente energizada e exausta.
A Bowl parece mais assustadora do que nunca. Vigas de metal e betão
erguem-se sobre mim, e os gritos e sons da luta no interior apenas
aumentam a sua presença intimidante. Todos os cidadãos que não se
juntaram à luta já devem ter partido há muito tempo, dei­xando a Resistência
e os Imperiais a combater na arena.
Passo por um túnel que vai até à Bowl. E depois outro.
Mantenho os meus olhos na estrada de regresso a casa, que se
aproxima cada vez mais.
O vulto largo de um homem cambaleia para o caminho a que quero
desesperadamente chegar. Está a agarrar a cabeça, mas não consigo
distinguir nenhuma das suas feições porque pestanejo ra­pidamente à chuva.
Tudo o que sei é que ele está no meu caminho.
Vira-se, com a mão ainda pressionada na têmpora, e vê-me. Não me
dou ao trabalho de abrandar o passo. Quem quer que seja este homem, não
hesitarei em derrubá-lo se tentar impedir-me.
Estou a correr, aproximando-me a cada passo, enquanto olho de
soslaio através da chuva, tentando ter uma visão clara do seu rosto.
Está a sorrir para mim.
É o tipo de sorriso que me provoca um arrepio na espinha. O tipo de
sorriso que é tudo menos gentil. O tipo de sorriso que me diz que este
homem sabe exatamente quem eu sou.
Os meus pés param. Menos de uma dúzia de metros separam-nos
agora. E é então que o vejo.
Vejo olhos verdes, mais frios do que a chuva que me encharca a roupa
fina.
Vejo cabelos dourados, mais baços que o céu nublado.
Eu vejo os lábios torcidos num sorriso, mais perverso do que a
tempestade que se enfurece acima de nós.
— Ah, Paedyn Gray — chama-me por cima do vento, a sua voz aguda
e sedosa ao mesmo tempo. — Ou devo chamar-te um mem­bro da
Resistência? Uma Vulgar? Uma traidora?
Aproximo-me, embora já saiba exatamente quem está à minha frente.
Estou a ver o Rei.
Raiva não é uma palavra suficientemente forte para a emoção que me
percorre quando olho para este homem — este monstro, este assassino.
Os seus olhos estão cheios de loucura, o seu cabelo ensanguentado por
causa de um corte profundo perto da sua têmpora que ainda goteja sangue.
Como é que conseguiu fugir da multidão que lutava dentro da Bowl, não
sei. E no entanto, aqui está ele, a tropeçar no meu caminho. Sozinho.
O Rei está completamente só.
Quase que quero agradecer à Peste por este presente. Quase.
Continuo a avançar, recusando-me a fugir-lhe, a fugir desta opor­‐
tunidade. O som do aço a deslizar sibila através do trovão estrondoso
enquanto ele tira uma espada da bainha ao seu lado.
— Oh, não fiques tão chocado por eu ter descoberto — proclama,
fazendo com que o meu sangue ferva. — Eu sabia que isto ia acontecer. Tu
conseguiste entrar na cabeça do meu filho ingénuo, no seu cora­ção, e
conseguiste o que precisavas para a tua pequena Resistência. E quanto a
saber que tu és uma Vulgar, bem, já o sei há algum tempo.
Um sorriso torce-lhe o rosto perante o meu olhar de choque.
— Já para não falar que sabia quem era o teu pai, do que é que ele
fazia parte. Sabia muitas coisas sobre ele antes do seu triste fim.
O seu sorriso é a encarnação do mal.
— Apunhalado no peito, não foi?
Fico tensa, com todas as partes de mim energizadas de raiva.
Mas forço uma máscara fria sobre as minhas feições, ignorando a sua
última afirmação e referindo-me à primeira.
— E o que é que lhe devo chamar? Rei ou cobarde? Mentiroso ou
assassino? Todos seriam apropriados, não acha?
Ele solta uma gargalhada, e eu mal consigo controlar a minha fúria ao
ouvi-la. As minhas mãos tremem enquanto as cerro, com as unhas a
vincarem-me as palmas das mãos. As palavras saem da minha boca antes
que as consiga parar:
— Matou-a.
Ele suspira como se isso o divertisse.
— Quem, a tua amiguinha? — Os seus olhos brilham, traindo a raiva
que tem mantido enterrada. — Não. Tu é que a mataste. Eu avisei-te sobre
as Provas. Avisei-te para te afastares dos meus filhos. Tu fizeste o meu
reino parecer fraco. Fizeste com que os meus her­deiros parecessem fracos.
Ele cospe a palavra, enojado com a sua própria carne e sangue.
— Tu tinhas o Kai a ajudar-te nas Provas, a correr atrás de ti du­rante
um baile. Tu tinhas o futuro rei enfeitiçado por ti, a contar-te todos os
segredos e informações de que precisavas. Tu és a assas­sina, Paedyn.
Ele dá um passo na minha direção, e eu fico parada no local, abanando
a cabeça:
— Tu esqueceste do que és, Miserável. Uma Vulgar condenada a
morrer. Tu não és nada.
— Então porque não me matou? — grito. — Se sabia o que eu era,
porque não me matou como fez com todos os outros Vulgares?
— Porque eu precisava de ti viva — diz ele. — Mas agora não me
serves para nada e, como as Provas não te mataram, terei o prazer de o
fazer.
Faz uma pausa e uma carranca torce-lhe os lábios.
— Consegues perceber o que vou fazer a seguir com essa tua ha­‐
bilidade de Psíquica?
Um súbito golpe de prata mistura-se com a chuva. Uma espada está a
balançar na minha direção.
O seu joelho bate-me na coluna. Portanto, alguém tem um desejo de
morte.
Viro-me, enterrando facilmente a faca, que arranquei do último homem
que matei, no peito deste, atravessando o duro couro que o envolve. Sinto o
familiar jato de sangue a salpicar a minha roupa e a cara. Estou coberto de
sangue. Arranco a lâmina, deixando o homem cair no chão com um
estrondo.
Todos eles têm um desejo de morte.
A Arena está um caos total. Imperiais e membros da Resistência
enfrentam-se, uns de branco, outros de preto. Vulgares, Elites e Fa­tais lutam
lado a lado.
É bizarro.
É também a única razão pela qual esta luta ainda não acabou. Se não
fossem os Fatais e os Elites a juntarem-se à Resistência, isto teria sido um
banho de sangue. Mas eles ainda estão em desvanta­gem numérica
significativa em relação a todos os Imperiais que agora enchem a Bowl.
Uma figura de máscara negra vem a correr na minha direção, com a
armadura de couro encharcada de sangue e chuva. Coloco os meus pés no
cimento escorregadio, deixando-o vir até mim. A parte mais difícil desta
luta é não saber se vou estar a enfrentar um Vulgar, um Elite ou um Fatal.
Mal tenho tempo para o alcançar com o meu poder antes que ele esteja em
cima de mim.
Não sinto nada. É Vulgar.
Mas não deve ser subestimado.
Atira-me com duas facas, mortalmente afiadas e habilmente
manejadas. As suas adagas cortam com movimentos rápidos, for­çando-me a
recuar. Esquivo-me de um ataque que servia para me cortar o pescoço e
dou-lhe um golpe rápido no abdómen aberto. Ele grunhe, mas o couro que
cobre o seu peito e estômago ajuda a am­parar o golpe. Procuro os poderes
que me cercam, sentindo dezenas deles a zumbir sob minha pele.
Porque é que parece errado lutar contra um Vulgar de uma forma
extraordinária? Até agora, usei apenas a minha própria força para os matar,
evitando o uso de uma habilidade. Por alguma razão, parece batota, e eu
gosto de ganhar as minhas lutas de forma justa. Ainda não toquei em
nenhum dos poderes dos Fatais, embora os sinta, po­tentes e poderosos. Usar
uma das suas habilidades corretamente pode levar anos de treino, por isso
fico-me pelo que sei, matando com as minhas mãos e as habilidades
familiares que me rodeiam.
Espeta a faca no meu peito.
Previsível.
Agarro-lhe o pulso e torço-o, ouvindo vagamente o seu grito de dor
quando a outra adaga é lançada na minha direção, apontada ao coração.
Viro-me, escapando por pouco à facada fatal, e em vez disso recebo um
corte raso ao longo das costelas.
Ainda a segurar no seu braço torcido, dobro a lâmina na sua di­reção
enquanto lhe agarro o ombro. Depois, puxo-o para a frente. A sua própria
faca enterra-se profundamente no seu peito, e os seus olhos arregalam-se
enquanto observa a adaga que tem mão e a lâ­mina agora enterrada no peito.
Cambaleando, cai no chão de cimento, mas eu viro-me antes que o seu
corpo colida. Pressionando uma mão já ensanguentada sobre o novo corte
nas minhas costelas, examino a multidão. O meu olhar pousa em Kitt,
observando-o enquanto ele atinge os que o rodeiam com chamas.
Algo não está bem.
Nunca tinha visto o meu irmão assim. Tão sedento de sangue, tão
brutal.
Normalmente, essas palavras são reservadas para mim, o futuro
Executor, e não para Kitt, o bondoso e carinhoso futuro rei. Mas neste
momento, ele parece enfurecido, feroz de uma forma que eu nunca vi.
Continuo a lutar no meio da multidão, mas tentando vislumbrar o Pai e
a Mãe. Fico ao mesmo tempo aliviado e preocupado quando não consigo,
esperando que os Imperiais os tenham apanhado pri­meiro e escoltado de
volta até ao castelo.
E só então reparo no quanto a multidão diminuiu. Os meus olhos
dirigem-se para uma figura que sai de um túnel, afastando-se da Bowl.
Outro segue-o, vestido de couro com uma máscara preta.
Estão a tentar fugir.
E eu tenciono segui-los.
O aço da espada faz-me um corte profundo no antebraço. Eu desviei-
me, mas ainda assim fui atingida. Reprimo um grito de dor e agacho-me,
tirando a minha adaga da bota e agarrando-a com a palma da mão suada.
O Rei ri-se e ataca com outro movimento de espada, obrigando-me a
dançar para evitar mais uma lesão. É evidente que está em vantagem com a
sua arma mais comprida para acompanhar a habi­lidade de Forte. Mas,
apesar disso, está instável graças à ferida que tem na têmpora.
Por isso, faço exatamente o que ele sugeriu, com a minha falsa
habilidade de Psíquica: leio-o.
Balança-se a cada movimento de espada, tendo de se estabilizar
ligeiramente antes de desferir outro ataque. O seu pé direito dá um passo
sempre que ataca, seguido de um pequeno passo com o es­querdo. Segura a
espada com a mão direita, mas tem duas bainhas ao seu lado, o que me diz
que já teve outra arma e que também pode lutar com a mão esquerda.
Ele lança-se novamente, desta vez mais alto, obrigando-me a bai­xar e a
rolar para a direita. Fazemos um círculo em torno um do outro, o seu sorriso
retorcido é visível mesmo através do fluxo cons­tante de chuva.
Preciso de me aproximar dele. Preciso de o distrair.
Porque não saio daqui até matar este assassino. Talvez isso não faça
com que seja melhor do que ele.
— Matou-o! Matou o meu pai!
Eu grito por cima do trovão que se desenrola sobre nós.
Aproximo-me e a sua espada desce num arco largo que me teria
cortado ao meio se eu não me tivesse esquivado a tempo. Ele balança como
eu sabia que iria fazer depois de um golpe como este, e eu apro­veito a
oportunidade para enviar a adaga ao seu peito. Rasga-lhe a camisa e a pele,
deixando o sangue florescer no seu rasto.
Algo duro bate-me na têmpora e a minha visão fica turva. Cam­baleio,
pestanejando. Mesmo zonza, vejo o peito ensanguentado do Rei e a espada
que de segura, com o cabo ainda estendido depois de a ter atirado contra o
meu crânio.
Ele ri-se. Mas eu ouço-lhe o tremor. Está preocupado. Odeia que eu —
uma Miserável, uma Vulgar, uma ninguém — lhe tenha deixado uma
marca.
Oh, vou fazer muito mais do que deixar uma marca.
— Sim, um amigo falou-me das suas intenções e desta Resistência de
que de fazia parte. — A sua voz está cheia de escárnio. — Por isso, fiz o
que tinha a fazer.
Outro movimento com a sua espada apanha-me desprevenida e fere-
me o abdómen antes que consiga distanciar-me.
— Não te preocupes, Paedyn, eu não matei o teu pai só por causa de
um boato, embora já tenha matado homens por menos. Eu matei-o para
garantir que a minha sociedade de Elite permanecesse.
Parece que não consigo entender o que ele está a dizer, mas isso pode
ser apenas devido à raiva que me está a toldar a razão.
— Admita — grito. — Mentiu para criar a sua sociedade de Elite. Não
há nenhuma doença espalhada pelos Vulgares. Nós não enfra­quecemos os
Elites ou os seus poderes.
— Eu fiz o que era necessário e tu não tens provas.
— É um monstro — digo sem fôlego.
Ele encolhe os ombros.
— Um monstro? Talvez. O Rei mais poderoso que Ilya já teve? Sem
dúvida. Nenhuma cidade é como Ilya, nenhum povo é como os meus Elites.
E tenciono mantê-lo assim.
Eu atiro-me a ele, com a faca em riste. O aço da sua espada encon­tra o
aço muito mais curto da minha adaga, com força. Muita força. Mesmo
enfraquecido, ele é um Forte com uma força muito superior à minha. A
adaga cai-me da mão, atirada ao chão pela força do mo­vimento de espada.
Nem sequer hesito, nem sequer me autorizo a entrar em pânico, e
agarro-lhe o pulso estendido e fazer subir o meu joelho até ao cotovelo. O
estalido doentio do osso a partir-se mistura-se com o estrondo do trovão que
nos fustiga.
A espada escorrega-lhe da mão e cai no chão, enquanto ele grita.
E depois a terra vem ao meu encontro.
Atirou-me para o chão usando toda a força de Forte e raiva bruta que
conseguiu reunir. A minha nuca bate na terra compacta e, de repente, perco
a visão.
Não consigo ver.
Estou a pestanejar ferozmente, tentando desesperadamente lim­par a
minha visão. A minha cabeça está a latejar, parece que se está a dividir em
duas, e talvez esteja. Algo quente e pegajoso escorrer-me da nuca, e mesmo
no meu estado nebuloso, tenho a certeza de que não é um bom sinal.
Retomo lentamente a visão, clareando o suficiente para que possa ver
o que está a pairar sobre mim.
O Rei, de espada em punho com o seu braço intacto, e um sor­riso a
curvar os seus lábios gretados.
Não.
Esforço-me para me sentar, mas um objeto pesado empurra-me de
novo para o chão. A sua bota esmaga-me as costelas, prendendo-me por
baixo dele, impotente.
Não assim. Recuso-me a morrer assim.
— É só isso que lhe interessa? — A minha voz soa estranha aos meus
próprios ouvidos, áspera e assustada. — Poder? Governar um reino de
Elite? A vida humana não significa nada para si?
— Os Vulgares são forma fraca de vida. Uma vergonha — rosna. —
Deviam ter morrido com a Peste, mas em vez disso atormentam-nos. Há
muito tempo que planeava este dia, à espera de me livrar desta Resistência.
E suponho que tenho de te agradecer pela sua queda.
O seu sorriso é retorcido e a minha cabeça está a latejar en­quanto tento
decifrar o que está a dizer.
— Só os mais fortes, os mais poderosos, prevalecerão. — Inclina-se
ligeiramente para baixo, o seu olhar frio fixando-se no meu en­quanto diz:
— É a sobrevivência dos mais aptos, e os mais aptos são os Elites.
Ele endireita-se, a bota ainda pressionando.
— Então, onde é que íamos? — ri-se como se tivesse dito algo ane­‐
dótico. — Ah, sim. Estava a livrar o meu reino de mais uma Vulgar inútil.
Aponta-me a ponta da sua espada e eu contorço-me debaixo da sua
bota. Ele é tão forte e eu sou tão fraca...
— Infelizmente, o Kai tornou-se mais hábil do que eu quando se trata
de brincar com as suas mortes. Aprendeu muito depressa. Eu ensinei-lhe
tudo o que ele sabe, ele contou-te? Tens de me agradecer pela sua
crueldade. — Estremeço quando a ponta afiada da sua es­pada encontra a
pele da minha bochecha, mesmo acima do maxilar.
E depois arrasta-me para baixo.
Talvez tenha gritado — não tenho a certeza. Tudo o que sei é a dor
lenta e lancinante que se estende do meu maxilar até ao pescoço. O sangue
quente jorra do corte e acumula-se na minha pele enquanto a chuva me
magoa a ferida aberta. Sinto a minha boca a mexer-se, mas não ouço nada a
sair, apenas o zumbido nos meus ouvidos.
Está a sorrir quando finalmente arrasta a sua espada até parar na minha
clavícula.
— Isto é muito divertido. Mas talvez devesse ter deixado o Kai fazer
as honras, não achas?
Sinto-me mal, e tudo o que vem ao nariz é o cheiro metálico do meu
próprio sangue. O aço frio encontra a minha pele novamente, ficando
imóvel no topo do meu estômago agitado. Escolheu o local mesmo por
baixo da minha outra clavícula — mesmo por cima do meu coração.
Ele começa a tagarelar.
— Quase me impressiona que esse teu coraçãozinho patético ainda
esteja a bater. Com toda a traição, desgosto e experiências quase mor­tais
que de alguma forma suportaste como uma Vulgar.
— Tudo o que sofri foi por sua causa — rosno, levantando a minha
cabeça do chão, apesar do peso que sente.
— Hmm — Parece pensativo. — É verdade.
Uma dor lancinante atravessa o meu corpo mais uma vez quando a sua
espada faz uma linha sobre o meu coração. Um grito grave escapa-me,
quase abafando as suas palavras suaves.
— Então deixarei a minha marca no teu coração, para que não te
esqueças de quem o partiu.
Os seus cortes são profundos e repugnantemente lentos. Repete cada
linha que esculpiu uma e outra vez enquanto gritos saem da minha garganta.
Fecho os olhos contra o sorriso que lhe torce o rosto, incapaz de olhar para
este homem por mais tempo. Não, não é um homem. Um monstro.
As lágrimas escorrem-me pelas bochechas contra a minha von­tade,
misturando-se com a chuva e o sangue. Sei exatamente o que ele está a
gravar na minha pele, sinto-o a cada movimento da sua espada. Está a
marcar-me antes da morte, e isso é mais tão doloroso do que a agonia que
assola o meu corpo.
Não sei quanto tempo passou quando finalmente levanta a es­pada para
admirar o seu trabalho.
— Pronto — Casual. Parece tão casual, tão cruel. — Algo para te
lembrares de mim na vida após a morte.
Depois levanta a espada, apontando a ponta para o meu peito.
Não. Não, não, não...
Sorri.
— Apunhalada no peito. Tal pai, tal filha.
Não posso morrer.
O Rei eleva-se sobre mim, agarrando o punho da espada, pu­xando-a
para cima, para cima...
Eu não vou morrer.
Estou desesperada, levada pela loucura. Mesmo levantando os braços,
sinto uma dor lancinante no meu corpo, mas ignoro isso enquanto os meus
dedos agarram a sua bota sobre o meu peito, uma mão agarrada ao seu
tornozelo e a outra à biqueira de couro.
E com todas as forças que me restam, torço. Ele grunhe de dor,
balançando-se de forma instável.
Perfeito.
Puxo-lhe o pé para a frente, com força. O ferimento na sua ca­beça,
combinado com os ferimentos que tão graciosamente lhe dei, tornaram-no
mais fraco.
E aterra com um forte estrondo no chão molhado.
Não hesito antes de correr em direção à espada que lhe escorre­gou da
mão. Rastejo, a dor e a adrenalina misturam-se para criar uma sensação
perigosa de imprudência. Uma mão áspera agarra o meu tornozelo,
arrastando-me para trás na lama.
Grito, frustrada e com medo, enquanto os meus dedos roçam o cabo da
espada antes de ser puxada para longe. A minha cabeça volta-se para ver o
rosto do Rei contorcido de fúria, igualmente en­sanguentado e enlameado.
Dou um pontapé para trás com toda a força que o meu corpo destruído me
permite, e quando ouço um estalo, sei que o meu calcanhar encontrou o seu
alvo.
O Rei grita, o som gorgoleja à medida que o sangue que escorre do seu
nariz esmagado lhe abandona a boca. Liberto o meu tornozelo do seu aperto
e mergulho em direção à espada, dobrando finalmente os meus dedos à
volta do cabo.
Arrasto-me, cada movimento é doloroso. Estou ensopada em sangue,
encharcada até aos ossos pela chuva torrencial. Cambaleio em direção ao
Rei, respirando com dificuldade enquanto arrasto a espada pela lama.
Agora estou a pairar sobre ele. É engraçado como os nossos papéis se
inverteram rapidamente. Eu. prestes a tirar uma vida. Ele, prestes a ser a
vida que eu tiro.
Os dentes que ele me mostra estão manchados de sangue.
— Não queres saber quem é que matou o teu pai, Paedyn?
Essa frase faz parar a espada que estou prestes a espetar-lhe no peito.
Ele solta uma gargalhada antes de se engasgar com o seu pró­prio sangue.
— Eu já sei quem foi — digo com os dentes cerrados. — Vi-o atra­‐
vessar-lhe a espada no peito.
Volto a concentrar-me na arma que tenho na mão, incapaz de suportar
mais esta situação e pronta para o fazer...
— Errado.
Fico parada antes de repetir.
— Errado?
Ele solta outra gargalhada ofegante, e eu não espero que ele pare de
tossir sangue antes de cravar a ponta da minha lâmina no seu peito enquanto
digo lentamente.
— Foi o senhor.
Tosse as suas seguintes palavras.
— Engraçado como a mente pode fazer-nos ver o que desejamos. Tu já
me odiavas pelo que eu fiz à tua espécie, por isso deve ter sido fácil
convenceres-te de que fui eu que enfiei aquela lâmina no peito do teu pai.
— Um sorriso sangrento esboça-se nos seus lábios. — Mas não fui.
— Mentiroso — respiro, pressionando a espada mais fundo no seu
peito.
As suas palavras seguintes são como um sussurro histérico.
— Digamos que o teu primeiro encontro com um príncipe não foi
quando salvaste o Kai no Loot.
Não. Não.
— Foi quando ele matou o teu pai.
O mundo gira à minha volta, ameaçando atirar-me ao chão.
Isto não pode estar a acontecer. Ele está a mentir. Ele é um men­tiroso.
Ele está...
— Foi a sua primeira morte, também. — O Rei continua com um
sorriso sangrento e reminiscente. — Foi a primeira missão que lhe dei, e
acho que o rapaz até deve ter chorado depois. Vê o quão longe ele chegou.
Vê como o treinei bem. Agora mata às minhas ordens e sucumbe às dúzias
de mortes provocadas pelas suas mãos.
Mal consigo respirar. O rapaz que me ensinou a dançar, curou as
minhas feridas, perguntou-me a minha cor preferida sob as estrelas...
— Está a mentir — disse eu, sufocando.
Ele solta um riso rouco.
— Não, tu estás a mentir a ti própria, Paedyn.
A lembrança da noite em que meu pai morreu, parece de repente tão
difusa, tão desfocada. Onde antes julgava ver o rosto do Rei, vejo agora um
corpo desfocado. Não consigo perceber nenhum dos por­menores, não me
lembro de nada sobre o assassino do meu pai.
Abano a cabeça. Não posso pensar nisso agora. Recuso-me a deixar
que os meus pensamentos sobre Kai me distraiam da tarefa que tenho em
mãos.
Porque agora vou matar o seu pai.
Mais uma vez, acho que a simetria é uma coisa doentia.
Não vou falhar.
O sorriso do Rei é sangrento.
Não vou recuar.
Segue-se um riso histérico e gozão.
Não sentirei remorsos.
— Fraca. Tal como o teu pai...
A espada que lhe enfio no peito cala-lhe a boca.
As minhas palavras são ocas, horrivelmente calmas.
— Isto é pelo meu pai.
Ele solta um suspiro fraco e ofegante enquanto levanta a cabeça do
chão para olhar para o estrago que eu fiz. Os seus olhos arregalam-se ao ver
a sua própria espada enterrada no peito. Um ruído gorgolejante segue-se ao
seu suspiro, com o sangue a escorrer-lhe pelos cantos da boca e a jorrar da
ferida.
Nada — não sinto nada por este homem que está a morrer aos meus
pés, a morrer pela minha mão.
— E isto — torço o punho da espada, arrancando um grito do Rei à
medida que provoco mais lesões na sua carne já despedaçada —, é pela
Adena.
Ele solta um soluço quando eu arranco a espada, atirando-a para o
chão. Viro-me e encontro a minha adaga a alguns metros de dis­tância. Cada
passo na sua direção faz-me sentir mais forte, apesar de cada ferida
enfraquecer o meu corpo.
O cabo prateado da adaga do meu pai está manchado com água da
chuva, sangue e lama — a condizer comigo. Gotas de água escor­rem pelo
meu rosto, pungindo as minhas feridas abertas, enquanto viro a adaga na
minha mão. Viro-a uma, duas vezes, sentindo o seu peso familiar.
— E isto é por mim, seu filho da mãe.
Atirei a adaga.
A lâmina encontra o seu alvo, guiada pelo meu ódio, o meu desgosto, a
minha insensibilidade. Afunda-se no centro da sua gar­ganta, cessando
instantaneamente a sua respiração rouca.
Estou toda a tremer, a olhar para o cadáver de um assassino que está a
olhar para a criatura que acabou de se tornar um.
A cabeça do Rei está inclinada para o lado, com a adaga do meu pai
cravada na garganta, os olhos arregalados e atentos. Uma lágrima
escorregue-me pela face, misturando-se com as gotas da chuva que
escorrem pelo meu rosto. Limpo-a com as mãos ensanguentadas, sem saber
porque me apetece chorar.
Estarei arrependida?
Não. Não é arrependimento. Nem remorsos. Nem nada remotamente
próximo da culpa. É alívio.
Dou um passo instável na sua direção, com a intenção de pegar na
minha adaga e fugir.
Algo capta a minha atenção.
Volto-me na direção do movimento, apesar do meu corpo gritar em
protesto. Os meus olhos focam-se num olhar brilhante, que não pestaneja. A
rapariga é pequena, de pele escura e cabelo ainda mais escuro. Pestaneja, os
seus olhos iluminam antes de um olhar de terror se instalar na sua cara.
E depois começa a correr.
Uma Visão.
Pestanejo à chuva, olhando para a retirada da rapariga que pro­‐
vavelmente acabou de me gravar a matar o Rei. Mal tenho tempo para
processar isto antes de ouvir passos pesados a ecoar no túnel de pedra à
minha direita.
Eu hesito. A minha adaga.
Preciso de a ter. Tenho de a ter. Eu...
Quem quer que esteja a atravessar este túnel está a vir depressa.
Preciso de sair daqui agora. Não faço ideia se esta pessoa é amiga ou
inimiga, e não tenciono descobrir.
Não tenho um instante de sobra. Nem um segundo para pegar no meu
bem mais precioso, e o meu coração partido é a minha fe­rida mais dolorosa
neste momento.
Depois começo a correr.
Cada parte de mim está a arder. O meu corpo está a gritar, cheio de
sangue, cambaleando de fraqueza. Mas não posso parar. Quando chegar
mais longe na estrada, haverá bosques à minha direita e...
Uma faca passa por mim, raspando no meu antebraço com a sua
lâmina afiada. Viro a cabeça para trás e paro para ver.
Cada pedaço do seu corpo está coberto de sangue. O seu ca­belo
desalinhado está cheio de ondas escuras, inundadas de suor e manchadas de
sangue. Uma lâmina fina está guardada entre os seus dedos, a sua mão está
levantada e pronta para a enviar na minha direção.
E algo começa a fazer sentido assim que o vejo.
De repente, estou de volta à minha antiga casa, escondida atrás de uma
porta rachada, enquanto vejo uma espada a cravar-se no peito do meu pai. A
espada empunhada por um rapaz de cabelo preto on­dulado, um rapaz com
olhos cinzentos cheios de medo, um rapaz que acabou de se tornar um
assassino.
Tremo enquanto os meus olhos percorrem aquele mesmo cabelo preto,
aqueles mesmos olhos cinzentos, e o mesmo assassino diante de mim. A
sua visão torna a memória daquela noite mais clara do que nunca.
As peças do puzzle que pertencem à minha memória dispersa co­‐
meçam a encaixar-se.
Naquela noite, há tanto tempo, a minha mente fez-me acreditar que foi
o Rei que matou o meu pai, fez-me culpar o homem que eu já odiava. E, de
certa forma, foi o Rei que o matou, mas não pelas suas próprias mãos. Foi o
seu filho que cravou a lâmina no peito do meu pai.
A minha respiração treme enquanto olho para ele. De repente, tudo faz
sentido.
A atração. A ligação. A familiaridade. Sentia-me tão facilmente atraída
por ele porque, no fundo, o conhecia, o reconhecia, lembrava-me dele. Ele
era-me familiar.
E agora o assassino do meu pai vai matar-me a mim.
Olhamos um para o outro, e eu vejo o rapaz que foi o instru­mento da
morte do Rei durante toda a sua vida, comandado e con­trolado para ser um
assassino. Ele foi feito para ser assim. Feito para espelhar o monstro que o
seu pai é — era.
Mas isso não o torna menos assassino.
Os seus olhos são mais surpreendentes do que a sua aparência
esfarrapada e enfurecida. Aquele olhar cinzento é como o fumo que sai do
fogo mais quente e, no entanto, frio como lascas de gelo, pe­netrante como
as pontas de pingentes. Aqueles olhos traem o horror que sente, iguais,
como na noite em que o vi tirar a sua primeira vida.
Eu fiz-lhe isto. Matei o seu pai.
Mas ele matou o meu primeiro.
Ele sabe o que eu fiz. Duvido que esqueça o olhar distinto da adaga
que pressionei tantas vezes contra a sua garganta — a mesma adaga que
está agora a sair da garganta do pai.
E, no entanto, a sua faca não me acertou.
Kai não falha. A não ser que queira.
— O que é que me fizeste?
As suas palavras quase que se perdem na tempestade, mas arre­piam-
me até aos ossos, mais do que a chuva que cai. Já ouvi essas palavras exatas
caírem dos seus lábios antes, quando tocavam nos meus. Já senti esta chuva
arrefecer a minha pele quente quando estávamos a centímetros de distância.
Já tive o seu olhar cinzento sobre mim — quando estava carregado de calor
e não de ódio.
«Minha linda Pae, o que é que me fizeste?»
Como pode um momento espelhar outro de uma forma tão mórbida?
Terá sido ontem que os seus lábios formaram aquelas pa­lavras com
saudade, e hoje com repugnância?
Mas as únicas semelhanças entre a noite passada e este momento são o
fogo e a força dos sentimentos que enchem os seus olhos. Sem a sua
máscara, ele é um rosto livre, permitindo-me vislumbrar cla­ramente a dor
que lhe marca as feições. A sua mão que segura a faca, pronta para atacar,
treme no ar. Quase consigo ver as peças a encai­xarem-se na sua mente, a
perceção do que sou e do que fiz.
Ele inclina o braço mais para trás, pronto para enterrar a sua lâ­mina no
meu peito. Os meus olhos fecham-se, e eu endireito-me, aceitando o meu
destino.
Dói-me. Tudo dói. Talvez mereça esta morte. Talvez até a deseje...
Os meus pensamentos deploráveis são interrompidos por um grito
grave de frustração que me faz abrir os olhos. As mãos de Kai estão a
arrastar-se pelo seu cabelo, com a cabeça baixa. Quando os seus olhos
finalmente se encontram com os meus, atravessando a chuva e a distância
que nos separa, vejo a batalha que se trava dentro deles.
Sabe o que tem de fazer e, no entanto, não o faz.
A voz de Kai treme como as suas mãos.
— Eu devia enterrar esta lâmina na tua garganta.
E também o pode fazer facilmente. Não tenho armas, nem von­tade,
nem energia para o tentar impedir.
A minha voz soa tão derrotada como me sinto.
— Então faz.
Está a abanar a cabeça, parecendo tão enojado consigo próprio como
comigo.
— Eu faço-o. Devia fazê-lo.
Faz uma carranca enquanto agarra a adaga, apontando-a a mim. Outro
som de frustração sai-lhe da garganta. Passa as duas mãos en­sanguentadas
pelo cabelo, abanando a cabeça em direção ao chão.
— Então porque é que não o consigo fazer? — declara, olhando para a
arma que tem na mão, para a arma com que poderia facilmente tirar-me a
vida. — Porque é que quando se trata de ti, de repente sou um cobarde?
Porque é que quando se trata de ti, de repente me preo­cupo? Porque é que
não posso atirar esta maldita faca à assassina do meu pai?
O seu peito sobe e desce rapidamente com cada respiração irre­gular.
Eu, por outro lado, penso que deixei de respirar quando ele confessa:
— Eu disse-te que era um idiota por ti, e parece que tinha razão.
O seu riso é mordaz.
— Sou um tolo quando se trata de ti.
As palavras que lhe saem da boca são condenatórias, mas falsa­mente
calmas.
— Talvez quando me livrar de ti, encontre a minha coragem. Por isso,
vou dar-te um avanço.
Pestanejo. Os meus pés parecem estar enraizados no local. Não me
mexo um centímetro, demasiado chocada e assustada para fazer outra coisa
senão olhar.
— Pelo menos mantiveste a tua promessa. Ficares viva o tempo
suficiente para me apunhalares pelas costas. — Ri-se amargamente,
lembrando-se do ataque depois do primeiro baile, quando lhe tratei da
ferida. — E agora eu prometo retribuir-te o favor.
A sua voz fica tensa com a emoção.
— Corre, Paedyn. Porque quando eu te apanhar, não vou falhar. Não
vou recuar. Não cometerei o erro de sentir algo por ti.
Estou congelada, ainda de pé na chuva gelada.
— Vai! — Grita ele, com a voz embargada. — Vai antes que eu en­‐
contre alguém que não seja cobarde, alguém que não seja tolo, e deixe que
te enterrem esta adaga nas costas, aqui e agora.
Tropeço, tropeço num terreno irregular antes de me afastar. E de­pois
volto a correr como sempre fiz durante este dia, toda a minha vida. Olho de
relance por cima do ombro e vejo Kai a ajoelhar-se ao lado do Rei, com os
olhos postos em mim.
Engulo as emoções que me sobem pela garganta e que ameaçam sair-
me pelos olhos.
Não olho para trás.
Como é que eu posso ter sido tão cego, tão desatento?
Vejo a sua forma em retirada ficar cada vez mais pequena, vejo-a a
escapar de mim — a escapar de um assassino.
Exceto que não agi como a única coisa que nasci para ser. Não agi
como um assassino.
Deixei-a ir.
Deixei-a ir.
Olho para a sua adaga apertada no meu punho, a sua lâmina afiada
manchada de sangue.
O sangue do meu pai.
Os meus olhos desviam-se para o seu corpo sem vida, para os olhos
que olham vidrados para o sítio de onde Paedyn deve ter ati­rado a faca. Eu
estendo os dedos trémulos e fecho-os, incapaz de su­portar ver os olhos de
Kitt tão sem vida.
Não derramei uma única lágrima. Sinto-me entorpecido.
Sinto-me chocado. Sinto-me traído.
Será que alguma coisa era real para ela? Era tudo uma mentira? Tudo a
fingir?
Eu sei que os meus pensamentos deviam estar no Rei morto ao lado do
qual estou ajoelhado, mas eles continuam a querer voltar para ela.
Nunca consegui sentir o seu poder. Ela era intocável para os Si­‐
lenciadores.
A Resistência não lhe tocou com um dedo quando atacou.
Porque ela é uma Vulgar.
Porque faz parte da Resistência.
Bem, fazia. Depois de hoje, já não há Resistência. Como é que eu não
vi isso antes?
Abano a cabeça, já sabendo a resposta a essa pergunta.
Porque eu estava cego por tudo o que ela é.
Ela matou-o. Ela matou o Rei. Ela matou o meu pai.
E mesmo assim deixei-a ir.
Mas não por muito tempo.
Ponho-me de pé, olhando para o Rei morto antes de voltar a olhar para
a mancha que o seu corpo deixou no horizonte, agora pouco visível através
da chuva.
O título de Executor nunca pesou tanto nos meus ombros. Vou ter de a
encontrar.
E quando o fizer, terei encontrado a minha coragem.
Não paro de correr até tropeçar no bosque ao lado da estrada que me
leva a casa. A corrida é rapidamente substituída por tro­peções, quando as
raízes me prendem os tornozelos e as pedras se espetam nos dedos dos pés.
A chuva não abrandou na sua tenta­tiva de me afogar, caindo em cima de
cada uma das minhas feridas abertas.
O meu dedo encontra o caminho para o corte que vai do meu maxilar
até ao pescoço, seguindo o caminho rasgado e sangrento que sei que nunca
mais será o mesmo. Depois os meus dedos per­correm o meu peito, parando
apenas quando encontram a pele ras­gada mesmo por cima do meu coração.
Eu estremeço, e gostava que fosse por causa da dor.
V.
Traço as linhas irregulares que formam aquela única letra. Aquela
única letra que ficará para sempre marcada. Marcada com a memória dele e
do que eu sou.
V de Vulgar.
A marca está tão estropiada como o coração que mal bate por baixo.
Cambaleio para a frente, com a mão pressionada contra o V gra­vado
na minha pele e todos os significados por detrás da letra apa­rentemente
simples.
Um toque de cor chama a minha atenção, brilhante contra a fo­lhagem
escura do bosque húmido. O meu coração parte-se ao ver aquilo, os
pulmões apertam-se e as pernas tremem. Ainda ontem esta visão fez-me
sorrir, quando o símbolo me foi introduzido no cabelo por mãos fortes,
dedos seguros.
Um miosótis, já que pareces estar sempre a esquecer-te de quem eu
sou.
Olho fixamente para o feixe de flores azuis, marcando-me com a
memória de toques roubados, promessas silenciosas.
Agora, tudo o que resta são gritos de vingança, olhos de aço que não
prometem misericórdia e uma adaga de prata roubada que me é tão querida,
mas que é tão provável que seja a lâmina que me apu­nhalará o coração.
Estou-me nas tintas se te esqueces do meu título, desde que te lembres
de quem eu sou para ti.
Abro a boca para me rir, mas em vez disso, um soluço escapa-me dos
lábios, o meu corpo decide tremer de dor em vez de humor.
Oh, eu lembro-me de quem ele é para mim.
Como poderia esquecer o assassino do meu pai?
Tropeço para a frente, pestanejando através do fluxo constante de
chuva e lágrimas.
Um líquido espesso e quente escorre pela minha marca, pelo meu
corpo, pelo meu ser.
Mel.
É o que digo a mim própria.
É apenas mel.
Já passaram três dias desde que vi o meu pai morto na lama.
Três dias desde a última vez que dormi.
Há três dias que não consigo fechar os olhos sem ver o seu corpo
ensanguentado.
Três dias desde que a Resistência atacou a Prova final.
Três dias desde que a rapariga em quem confiava, a rapariga que
comecei a desejar, se tornou uma assassina e uma traidora.
Três dias desde que me tornei Rei.
A coroa no cimo da minha cabeça é pesada, tal como as minhas
pálpebras, e tal como o peso do reino que agora é atirado para os meus
ombros. Pestanejo, lembrando-me do que verei se ceder ao cansaço.
Depois da morte da minha mãe, este era o meu único pai. E agora está
morto. O pai que eu tentei agradar, deixar orgulhoso, toda a minha vida.
Deitado sem vida ao meu lado. Os meus joelhos afun­dam-se na lama
enquanto as minhas lágrimas caem sobre o seu peito ensanguentado, o seu
pescoço cortado...
Silencio os pensamentos gritantes que ecoam na minha cabeça há
horas. O meu olhar dirige-se para a cadeira preferida do Pai, de pele
castanha gasta por anos de uso. Dou por mim a observá-la com frequência,
mesmo quando ele estava vivo e sentado nela, a assinar tratados e a traçar
estratégias. Estudei tudo o que ele fez. Antes de ser brutalmente
assassinado.
— Kitt.
Kai.
O meu executor.
Entra no escritório depois de bater levemente com os nós dos dedos na
porta aberta, parecendo quase tímido. Quase me rio ao ver Kai a tentar o
seu melhor para ser cauteloso ao pé de mim. É um esforço valioso, embora
eu não tenha pedido a sua piedade.
Eu não sou como Kai. Não sou calmo e controlado e sempre a usar
uma máscara cuidadosamente construída. As minhas emoções estão à flor
da pele, sou um livro aberto. Sou Kitt, o irmão que é suposto ser gentil e
encantador. Diz-se que se tornou o Rei mais bondoso que Ilya já viu.
Não é verdade.
Sinto-me tudo menos gentil. Sinto tudo menos bondade.
Sinto raiva e tristeza. Insuficiência e vazio. Desespero e...
— Querias ver-me? — As palavras do meu irmão são suaves, soando
ligeiramente preocupadas.
E devia estar. O bom Kitt não age como um louco. O bom Kitt é
carinhoso, não é um assassino.
O bom Kitt mudou.
O luto é uma merda.
— Sim, senta-te. — Faço-lhe um gesto casual para a cadeira habi­tual
de Kai. Os seus olhos passam pela cadeira gasta do Pai antes de se sentar,
cruzando as pernas.
Inclina-se para a frente, com os olhos à procura de respostas que não
encontra nos meus.
— Como estás, Kitt?
A preocupação que enche a sua voz faz estalar algo no meu cora­ção —
aquele que se tornou tão frio nas últimas setenta e duas horas. O meu olhar
suaviza-se ligeiramente, mudando por breves instantes para uma versão
mais Kitt e menos Rei. Ele continua a ser o meu irmão, o único sangue e
carne que me restam. Talvez até a única pessoa que me resta.
— Cá... estou.
Cá estou? Que raio de resposta foi esta?
Limpo a voz.
— Como está — hesito — a Mãe?
Ela não é minha mãe. A minha mãe está morta, tal como o meu pai.
— Cá está. — Kai dá-me um sorriso fraco.
— Não quer sair do quarto. É como se a dor de o ter perdido esti­vesse
lentamente a... — parou, voltando a sua atenção para a cadeira gasta do Pai
para se distrair das palavras não ditas.
— Estou a ver — percebi. Percebo como se sente. Como se sente ao
ser tão devorado, tão sufocado, pela dor.
Os meus olhos deslocam-se para Kai, observando os seus om­bros
rígidos, os seus nós dos dedos feridos e ensanguentados.
Tenho pena de quem ou o que é que ele bateu para se distrair.
Quase que lhe dou um sermão, querendo castigar o meu irmão mais
novo por usar aquela sua máscara de frieza junto de mim. Ele nunca faz
isso, nunca me exclui dos seus sentimentos como está a fazer agora.
Não sei ao certo o que Kai sentia pelo nosso Pai, mas sei que nunca
gostou dele como eu gosto — como gostava. Talvez fosse uma mistura de
amor e aversão que sentia pelo homem que o tornou naquilo que ele é. O
homem que era um Rei para ele, não um pai.
Mas para mim, o Pai era o meu alicerce. Ele era quem eu me es­forçava
para ser, quem eu desejava que me amasse. Mas agora está morto, e eu
continuo disposto a fazer o que for preciso para o deixar orgulhoso. Passei
toda a minha vida à espera de seguir as suas pisa­das, e aqui estou eu, de
repente, a tentar ocupar o seu lugar. E farei o que for preciso para que, na
morte, ele fique orgulhoso.
Olho de relance para o meu irmão, sabendo que ele também sente a
dor. Apesar da relação difícil que tinham, Kai perdeu o homem a quem
chamava Pai, nem que fosse só no título. Consigo vislumbrar essa dor no
seu maxilar rígido, no franzir constante das sobrance­lhas, no ressalto do seu
joelho.
Mas sei que está de luto por mais do que uma pessoa.
Eu sei que estou.
— Kai. — A sua atenção volta-se para mim. — A minha coroação está
terminada, o enterro do meu pai já foi tratado.
Faço uma pausa, preciso de um momento para afastar a emoção da
minha garganta.
— E tu és agora o meu verdadeiro Executor.
Ele acena lentamente com a cabeça, já conhecendo toda esta
informação.
— Então, está na altura da tua primeira missão.
Acena novamente com a cabeça, com a mesma lentidão. É uma
formalidade. Ambos sabemos que não poderia recusar, mesmo que
quisesse. Jurou servir-me, apesar da nossa dinâmica se ter tornado muito
estranha. Eu sabia que um dia iria dominar o meu irmão, só não pensava
que esse dia chegasse tão cedo, tão de repente.
Eu controlo as minhas feições até à neutralidade.
— Encontra-a.
E lá se vai a máscara de Kai. Fica incomodado, inundando o seu rosto
com sentimentos que passam demasiado depressa para eu in­terpretar. Mas
eu não sou cego. Eu vi a forma como ela o afetou. Vi a forma como baixou
a guarda ao pé dela, algo que costumava reservar só para mim. Parece que
ela tirou o melhor de nós os dois antes de nos apunhalar pelas costas, ao
apunhalar o Pai no peito e na garganta.
Depois da morte da minha mãe, este era o meu único pai. E agora está
morto. O pai que eu tentei agradar, deixar orgulhoso, toda a minha vida.
Deitado sem vida ao meu lado. Os meus joelhos afundam-se na lama
enquanto as minhas lágrimas...
— Quero que a encontres — digo por cima da tristeza que grita na
minha cabeça — e quero que a tragas até mim.
Kai não me enfrenta enquanto inclina a cabeça num único e so­lene
aceno.
— Sim, Vossa Majestade.
O título nos seus lábios soa estranho, mas gosto de o ouvir. Le­vanto-
me do meu lugar e dirijo-me para a cadeira de couro casta­nho desbotado,
cheia de memórias de um Rei morto.
E depois sento-me, dizendo lentamente:
— Traz-me a Paedyn Gray, Executor.
Antes de começar a falar das pessoas que ajudaram a tornar Powerless
possível, gostaria de fazer uma pausa para me passar for­malmente com o
facto de ter chegado ao ponto de escrever uma pá­gina de agradecimentos. A
viagem até ao fim deste manuscrito foi longa, uma aventura que vivi
aterrorizada pelo facto de achar que não seria capaz. E por essa mesma
razão, de todos os milhares de palavras que escrevi antes disto, escrever
agradecimentos no topo desta página pode ser a que mais me orgulha.
Dito isto, vou começar a agradecer.
Mais importante, e mais óbvio, quero começar por tentar expres­sar a
minha gratidão e apreço aos meus pais maravilhosos. Mãe e pai, vocês
apoiaram-me em cada passo desta viagem louca e eu não teria conseguido
realizar este sonho sem vocês. Obrigada por acreditarem em mim, adoro-
vos tanto.
Seguindo a temática da família, há três outras pessoas com quem me
relaciono que merecem os meus agradecimentos. Nikki, obrigado não só
por me ouvires falar de problemas no enredo, mas também por me ajudares
a encontrar formas de os resolver. Devo-te muito. Josh, eu não poderia ter
pedido um melhor agente falso. Obrigada pela tua disponibilidade em
ajudar e pela tua sabedoria durante todo este processo, Foo. Jessie, o amor e
o apoio que graciosamente me deste significam mais do que imaginas. O
teu entusiasmo por mim e pelo meu sonho é verdadeiramente contagiante.
Por uma vez, parece que não tenho palavras para exprimir o meu
imenso apreço pela minha incrível editora, Michelle Rosquillo. Estou
incrivelmente grata por toda a dedicação e trabalho árduo que dedi­caste a
Powerless, Michelle. A tua orientação e sabedoria ajudaram a fazer do meu
manuscrito o que ele é hoje, e eu não poderia ter pe­dido uma mulher melhor
para enfrentar a tarefa de editar este longo livro. Obrigada por tornares este
processo divertido e emocionante, incluindo as chamadas telefónicas de
quatro horas que eu te fazia. Simplificando, tu és a melhor.
A capa de cortar a respiração que tem diante de vocês é tudo gra­ças à
Stefanie Saw da Seventhstar Arl. Tu és verdadeiramente mágica, e eu
ficarei para sempre hipnotizada pelo teu trabalho. Quanto ao mapa
deslumbrante na frente deste livro, todos temos de agradecer à JoJo Elliott.
Fico maravilhada sempre que admiro a forma como ambas deram vida ao
meu mundo.
À incrível equipa da Simon & Schuster, é uma verdadeira honra poder
trabalhar ao vosso lado. E por mais piroso que soe, isto é um sonho tornado
realidade. Se ao menos a pequena Lauren me pudesse ver agora.
Resumindo, obrigada por terem acreditado em mim. Estou eternamente
grata por esta oportunidade e não consigo expressar de­vidamente o meu
entusiasmo por continuar esta viagem convosco. Mal posso esperar para ver
o que o futuro nos reserva.
Agora, se eu fosse escrever sobre cada pessoa que me ajudou a chegar
onde estou hoje, seja por incentivo ou ajuda, receio que tería­mos outro livro
em mãos. Com isso em mente, gostaria de dar um agradecimento geral e
enorme aos meus incríveis amigos. O vosso entusiasmo e a vossa
disponibilidade para me ouvirem divagar sobre a minha escrita é mais do
que eu alguma vez poderia pedir. Obrigada por me aturarem — esta tarefa,
por si só, não é para os fracos.
Muito bem, está na altura de agradecer a alguns milhares de pes­soas
que desempenharam um papel importante não só na escrita de Powerless,
mas também na minha vida. Para a família caótica que tenho a sorte de ter
através do TikTok, vocês são a razão pela qual consegui escrever esta
página. Powerless não existiria se não fosse o apoio e o amor que me têm
dado desde que publiquei o meu primeiro vídeo no BookTok. Vocês são os
meus flagelos favoritos e nunca serei capaz de agradecer a cada um de vós
o suficiente por me terem dado esta oportunidade. Vocês são todos uma
personagem principal, e nunca se esqueçam disso.
Gostaria agora de agradecer Àquele que me presenteou com o meu
amor pelas palavras e o desejo de escrever. Não estaria onde estou hoje sem
o meu Senhor e Salvador, e agradeço a Deus a opor­tunidade que me deu.
Pronto, já estou quase a acabar de ser lamechas. Isto é um agra­‐
decimento a ti, caro leitor. Simplesmente não consigo imaginar um mundo
em que as pessoas queiram ler as minhas divagações, por isso agradeço-te
por passares tempo no mundo que criei com as perso­nagens a que estou
ligada, talvez de uma forma não muito saudável. Tu és a minha inspiração,
e espero ter o privilégio de continuar a escrever para ti.
Agora, vamos fingir que vos estou a dar um abraço.
XO, Lauren
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