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Rita Isadora Pessoa

Madame
Leviatã

A
macondo
nota sobre a manufatura doméstica
de mitos autodestrutíveis

na nossa pequena fábrica de ruínas


eu pedalo indoors
porque não sei bem o que faço
com tamanha liberdade
tenho um pouco de medo dos grandes espaços abertos
por isso os círculos
por isso
eu puxo os aparelhos ergométricos pelos guidões
um suave deslocamento sem [realmente] sair do lugar
puxo a bicicleta pelo guidão riscando o chão da sala
como se segurasse
um touro pelos chifres
~um minotauro ex machina
de uma mitologia recém-criada~
e finjo assistir um seriado sentada
ou termino um romance russo esfarelando
páginas amarelecidas
compreendo bem todas as suturas
do mais célebre parricídio da literatura

por isso os círculos

por isso
as tentativas insalubres de figurinos extras
como se estivesse finalmente preparada
para ocupar o papel de protagonista
e esses furos acidentais
seguem perpetrados pelos dedos
ou pela máquina de costura?

por isso
os capilares intradérmicos
perfurando invisíveis
partes ainda por vir
do meu corpo

e o aprendizado lentíssimo
da pecilotermia
meus minidemônios meridianos
brotando barbatanas brânquias
braços

enquanto fraturo
ossos imaginários
para acolher
em silêncio
uma nova ordem

de feras

por isso
você sabe
os círculos
diana, a caçadora ii

[você],
que arrebata vertiginosa
morcegos do incêndio,
figura em espelhos baços,
com a mochila cheia de empáfia
e rimas brancas,
arruinou a minha vida
[por delicadeza].
ainda guardo no armário
seus estilhaços,
seu vestido de raposa,
a trança holandesa
na gaveta.
encaixotei por medo
a nossa criança estrelada
de mãos gretadas
sob a cama, mas eis que
um bater de asas, de repente
a reconstrói
inteira em fragmentos.
ouço o teu caráter difícil
de ciclone litorâneo
encrespando a superfície
dos cílios, a chuva de vento
a sacudir venezianas,

abafando
seus gritos
entre os travesseiros.
das ruínas preliminares [ou]
dos papéis individuais no fim do mundo

aquela sou eu esperando a catástrofe


com as mãos seraficamente pousadas
sobre o colo
a verdade é que só preciso
me agarrar violentamente
a um ponto fixo
na disco-voragem
deste sonho

e permanecer submersa

acontece que eu engulo tua indiscrição gulosa


descendo pelas minhas pernas
e devolvo delicadas ossadas
sob o signo da carnificina moderada
(uma forma de canibalismo contemporâneo?)
expostas em seu tutano todas as comissuras dos ossinhos
equilibrados sobre a porcelana
frágil do meu prato, porque uma coisa que acontece é que
o meu corpo
ele não se quebra
não quebra como se quebra um prato
ou um fêmur
não como se quebra uma linha
no fim de uma frase longa e deselegante
alinhada à esquerda
o que tenho a ser feito
pode até ser chamado de ofício
de linha e agulha
mas eu contenho hemorragias
é o que eu faço
— deveria ter sido médica
mas me coube ser dique

: eu contenho hemorragias
com as mãos
todos os dias
— um ofício que empresto
da pedra
para subjugar o rio
vênus em uso

conhecerá os ângulos
úmidos
de cada morte miúda
a cada vez, a cada vez,
a
cada
vez,
a cada vez conhecerá a fundo
o estremecimento do núcleo
lúbrico
que me parte ao meio
em duas:
a pura delicadeza em fúria;
das nossas pelves conjuntas
escorrerão sucos acidulados
em giros escarpados, sonoros,
até o fim,

e que não haja fim, até que


haja fim, até
que eu diga que houve tudo,
menos fim.
título: Madame Leviatã
autora: Rita Isadora Pessoa
páginas: 84
isbn: 978-65-990151-7-5
lançamento: 17/08/2020
preço: r$38,00

para maiores informações:

edicoesmacondo.com.br/madame-leviata
contato@edicoesmacondo.com.br

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