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Marcelo Ribeiro dos Santos

TANDIR E MOGUL
Vol. 1: O Despertar dos Drachs

Nº 5: O Regato

Seriado Eletrônico Mensal de Realismo Fantástico


Esta é uma obra real. Qualquer semelhança com
seres ou acontecimentos imaginários é mera
coincidência.

ISSN 2595-9891

Expediente:

Criação: Marcelo Ribeiro dos Santos

Editor de Arte: Brian S. R. Santos

Revisão: Tânia V. Barela

Contato Comercial: Eric S. R. Santos

Editora: Naos Likaion (CNPJ: 32.216.134/0001-30)

Rua Arthur Nazareno Pereira Villagelin, 125 – Barão Geraldo (CEP:13085-638) Campinas/SP

fone: (19)997231562 mail: naoslikaion@gmail.com

Campinas

07/2020

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Capítulo 5: O Regato

A solidão é algo tangível, real. Pode-se apalpar as suas paredes de


vidro inexistente. Caminha-se para lá e para cá em meio a fantasmas, sons,
odores, sabores. Companheiro de espectros. Enquanto pulsa a vida bruta em
meu peito, não há o alívio de compartilhar. As ações alheias são sem sentido
e sinistras, como sonhos que não se completam. Temas que se desenrolam
para um espectador só, que tromba aleatoriamente com aqueles que encontra.
Ou desencontra. Muitas lutas eu venci. Lutas falsas, de regras tolas. Mas
aprendi a jogar. Tudo para recobrar minha liberdade. Fui ungido Sangral,
após matar meu amigo gladiador: Zengrar. Um guerreiro que conquistou o
meu respeito. Mas foi inevitável que lutássemos. Éramos os melhores.
Sabíamos fazer nosso drama, de desfecho sempre sangrento e mortal. A
maldade de Queret me colocou para disputar o posto de Sangral em luta
contra Zengrar. Somente um gladiador Sangral pode ser livre e percorrer as
ruas da Cidade de Ferro. Somente um Sangral recebe as migalhas fartas dos
grandes apostadores. Para mim, era a chance de rever Mogul, Irien, Nadja e
meu povo. Não queria aquela luta contra Zengrar. Ele havia conquistado meu
respeito em lutas coletivas contra feras temíveis, sempre agindo em equipe,
com lealdade e eficiência. Zengrar era o melhor por nascer o melhor. Além
de pertencer a uma linha de Grahouls gladiadores, seu talento foi esculpido
pelo melhor dos treinadores: o velho cascudo Queret. Sabia fazer espetáculos
que levavam as plateias ao delírio, sempre mantendo o controle e a calma,
mesmo quando simulava ao contrário. Aprendi muito com Zengrar e,
lentamente, uma espécie de respeito afetuoso cresceu entre nós. Cresceu
como a planta teimosa que nasce entre as pedras, pois sabíamos que um dia
um de nós teria que morrer pelas mãos do outro. Não vou relatar aqui esse
combate funesto, que me deixou apenas o gosto amargo do gesto cruel que
de nada me serviu. Só posso dizer que não respeitei as regras do enredo.

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Matei Zengrar impiedosamente mal a luta começou. Olhei nos seus olhos
enquanto a vida se esvaía de seu imenso corpo musculoso, vendo ali
surpresa, seguida de compreensão e... perdão. Zengrar só tinha a riqueza e a
fama a conquistar. Eu tinha a oportunidade de voltar para os que me são
queridos. Ao menos achei que tinha. Deparo-me com outra realidade. Sim,
tenho riqueza e fama, ainda que Queret tenha reprovado minha vitória rápida
e pragmática. Ela foi, entretanto, sangrenta e espalhafatosa o suficiente para
fazer a multidão urrar de prazer. Fui imediatamente aclamado Sangral, com
todas as honras e regalias que o título comporta. Ganhei um recinto próprio,
dotado de certo luxo. Tenho a companhia de fêmeas belas, ainda que um
tanto obtusas e musculosas demais para meu gosto. Posso sair de meus
aposentos e passear pela cidade, contanto que esteja presente aos treinos
conduzidos por Queret. Obviamente tentei escapar para procurar Nadja, mas
logo percebi que isso é impossível. Toda vez que me aproximo do perímetro
do bairro da Arena, surgem guardas cascudos armados até os dentes, me
impelindo de volta para uma distância apropriada. Não sei como podem
detectar meus movimentos. Talvez mantenham espiões me vigiando o tempo
todo, mas nunca consegui detectar um deles. Não sou livre. Apenas os limites
de minha prisão se expandiram. Passei a frequentar os antros mais escabrosos
do bairro, sempre bem recebido e respeitado por minha fama de assassino
sanguinário. Foi assim que cheguei a esta espelunca onde estou agora. Suas
mesas sujas estão repletas dos tipos mais estranhos, todos mais ou menos
imbecilizados pelos efeitos da aguardente. Assim como eu. As paredes de
vidro da solidão só cedem aos goles amargos da bebida horrenda dos
cascudos. É uma bebida espessa e quase intragável, mas causa uma
embriaguez sonâmbula, na qual me refugio dos fantasmas sem sentido que
me cercam. Acabei por tomar um gosto excessivo pela aguardente, apesar
das dores de cabeça e moleza no corpo no dia seguinte. Que saudade do
Gulgur dourado e límpido da Taberna dos Dragões! Como anseio pela

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brandura sensual de sua embriaguez! Decido não tomar o terceiro copo de
aguardente, poupando forças para a volta trôpega para meus aposentos de
Sangral. Pressinto um corpo fedorento a meu lado e minha mão vai
instintivamente para a adaga em meu cinto. É apenas um cascudo gênero
fêmea, dos mais feios e grotescos que já vi na vida. Os cascudos não têm
sexos definidos. São hermafroditas inférteis e escolhem ao longo da vida a
polaridade de suas personalidades. Há cascudos masculinos, femininos e
andróginos. Chamam a isso de “determinação social de gênero”. A “fêmea”
que se encontra a meu lado é corpulenta e flácida, com papadas de um verde
doentio. Seus lábios estão pintados com um pigmento púrpura quase
fosforescente. Em minha embriaguez, julgo tratar-se de um sonho e começo
a fazer os sinais de Nanshe para espantar os maus espíritos. Uma voz
grasnante, fere meus ouvidos: “Ga notche d’amoror ardint com me, Sangral?
Non quiro moneta da te.” A oferta inusitada de uma noite gratuita de amor
ardente é acompanhada de um remexer das ancas disformes, que me lembra
os movimentos da gelatina de fígado que Rothrak me forçava a comer
quando eu era um filhote. A lembrança me causa um jorro de vômito, que
escorre pela gorda barriga cheia de pústulas da criatura. O urro regurgitante
que dou é logo seguido de uma gargalhada que sai do fundo de minha alma
e na qual me engasgo. Caio no chão, gargalhando em meio a tosses e arrotos.
Sujo-me em meu próprio vômito. O cascudo “fêmea” começa a esbravejar,
indignado. Limpando desastradamente, com uma feia careta de nojo, o
vômito em sua gorda barriga desnuda, xinga-me de nomes desconhecidos,
cujos sons me sugerem que seus significados não são lá muito amáveis.
Consigo me controlar e paro de rir, apenas arrotando de vez em quando.
Apoio-me na borda gordurosa da mesa e olho seriamente nos olhos da
“cascuda”. Reúno forças para dizer apenas uma frase definitiva: “Nem que
um Guruti me arranque os olhos!” A risada dolorosa volta sem que eu a possa
controlar. Sinto a mente de Mogul em contato com a minha, expressando

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desaprovação e nojo. Sento-me na cadeira balouçante e continuo
gargalhando, enquanto a “fêmea” cascudo se afasta grunhindo pragas
rascantes em seu horrendo e áspero dialeto. Vejo “ela” sair pela porta de
madeira manchada da espelunca. Atrás, vão mais três cascudos de aparência
igualmente grotesca. Os outros fregueses, que acompanharam o lamentável
episódio, voltam a se preocupar com seus próprios copos sujos e
transbordantes de aguardente. Eu faço o mesmo. Limpo meus pelos
lambuzados de vômito com a toalha da mesa, mais suja que eu, embebida na
aguardente fedorenta. Isso deve ao menos desinfetar provisoriamente meu
corpo imerso em imundície. Com a sobriedade momentânea causada pelo
vômito já se esvaindo nos goles que dou, demoro alguns instantes para notar
outro cascudo corpulento, dessa vez um “macho”, sentado no lado oposto de
minha mesa. Dou-lhe um aceno lânguido. “Não estou interessado, amigo,
tenho Grahouls fêmeas cheias de músculos me esperando em casa. Cascudos
não costumam despertar minha libido.” Dou uma risadinha sarcástica e
cansada, já pensando em me levantar e ir embora. Parece que um Sangral
não pode beber sossegado nesta taberna asquerosa. O cascudo não se move
do lugar e me responde em tom comedido. “Não estou interessado em seu
corpinho de Grahoul, Sangral.” Abaixando o tom para um sussurro, ele se
inclina para a frente para que eu possa ouvir. Sinto o odor repelente de seu
hálito podre de aguardente e fumo: “Chamo-me Gounihar e tenho
informações, Tandir, e talvez uma luta que você queira lutar.” Não é o fato
de ele saber meu nome que me surpreende. Desde que me tornei Sangral,
todos sabem meu nome na Cidade de Ferro. É o fato dele mencionar
“informações” que faz com que minhas orelhas fiquem imediatamente eretas
e atentas. O cascudo percebe que conseguiu minha atenção e continua: “Não
podemos conversar aqui, Grahoul. Temos que ir a algum lugar mais
reservado.” Respondo: “Amigo, parece que há olhos me observando por toda
a parte. Não há lugar reservado, para mim.” O cascudo olha para os lados e

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sussurra novamente: “Vamos resolver esse problema também, Grahoul.
Venha comigo.” O cascudo levanta-se e segue em direção à saída da taberna.
Decido segui-lo. O que tenho a perder? Mesmo bêbado, posso me defender
a contento. Além disso, poucos cascudos ousariam atacar um Sangral. O
taberneiro me chama com um grito rouco e lembra-me que preciso pagar a
aguardente que consumi. Busco algumas moedas no bolso de minha calça.
Deixo-as sobre a mesa, gritando minhas desculpas. Sigo o cascudo para fora
do aposento. Ele me espera do lado de fora, gesticulando para que eu o siga
pelas ruas estreitas e escuras do bairro da Arena. Entramos em uma viela
fedorenta, ladeada de casas altas com janelas e portas de madeira apodrecida.
Por detrás delas, eu farejo cascudos também fedorentos. Toscas lâmpadas de
banha penduradas nas paredes a intervalos, fornecem uma luz mortiça. Esta
cidade é um inferno odorífero para um Grahoul. Gounihar caminha na minha
frente em silêncio, minha audição aguçada, apesar de minha bebedeira,
percebe movimentos na próxima encruzilhada. Diminuo minha marcha
enquanto Gounihar segue sem aparentar perceber nada. Quando passa pelo
cruzamento onde ouvi ruídos, leva uma pancada na cabeça com um objeto
escuro que eu mal posso distinguir e cai como um fruto podre. Recuo
instintivamente alguns passos para trás. Um grupo de cascudos grandes e
corpulentos sai detrás da parede, formando um semi-círculo em minha frente.
Uma cilada. Pode Gounihar estar envolvido nisso? O sangue em sua cabeça
e seu corpo inconsciente desmentem essa possibilidade. Minha visão noturna
é razoável, mas principalmente focada em movimentos. Esses vultos
sombrios imóveis em minha frente confundem as imagens. Sinto um cheiro
inconfundível: aquela mistura de ovo podre e leite de Gosha azedo que senti
quando fui abordado na taberna por aquela grotesca cascudo fêmea. Uma
voz untuosa e grasnante confirma minhas suspeitas: “Non e Guruti qui vad
ranqar tus oius, Grahoul. Ce me e mi amice. Ma ante vumus violentere tu.”
A lua dourada e púrpura assoma sobre os telhados rotos acima de nós,

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lançando sua luz sombria sobre os meus oponentes. Vislumbro o batom
fosforescente obscenamente emoldurando a boca suja e banguela da
“cascuda”, que quer usufruir de minhas partes íntimas e levar meus olhos de
lembrança. Os três parceiros dela são tão grotescos quanto a própria, dois
deles também gênero fêmea e um andrógino indefinível. Se as fêmeas
Grahoul são quase tão fortes quanto os machos, sendo mais habilidosas por
vezes, no caso dos cascudos, cujo sexo não se define pela fisiologia mas sim
pela escolha, as “fêmeas” podiam ser muito mais fortes e maiores que os
“machos”. Esse é o caso. São os maiores e mais fortes cascudos que já vi,
em minha estadia por demais prolongada nesta cidade nojenta. Portam facas
longas. Tenho a minha própria faca, mas decido que a estratégia e a
dissimulação me servirão melhor. Caio de joelhos choramingando e pedindo
piedade, uivando fino como um filhote. Noto olhares furtivos em janelas
entreabertas nas casas circundantes. Obviamente ninguém virá me ajudar.
Gounihar continua caído e sangrando, mas agora emite gemidos desconexos.
Ao menos está vivo. Continuo choramingando e simulo uma tremedeira. Isso
parece encorajar minha gorda e grande “inimiga”, que se aproxima
balouçando as imensas nádegas. Para em minha frente, levantando o saiote
e expondo seu disforme órgão sexual, que emana o odor mais nauseabundo
que já senti na vida. Contendo minha ânsia de vomitar, preparo-me para o
movimento seguinte. Sinto meu ódio se transformando em cristal frio e
cortante. “Ela” balança seu membro em frente à minha cara e emite um
grunhido que mais parece um arroto, dizendo com voz aguda e lânguida:
“Carinha mi gologolo, Grahoul. Tu va amorare me. Sequente te ranqare tuis
oius.” Uma gargalhada mental ecoa em minha mente. É Mogul,
acompanhando atentamente o desenrolar dos acontecimentos. Ouço em
meus pensamentos sua voz irônica: “Gologolo?????” Quase começo a
gargalhar também, apesar de minha posição pouco digna. Concentro-me
então na situação. A monstruosa gorda segura a barra do saiote com as duas

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mãos. Não há obstáculo entre minhas presas e seu pescoço. Levanto-me
como um bólido, mirando o ponto exato acima de suas papadas, onde vejo
pulsar a grossa artéria de seu pescoço. Quando fecho a mandíbula e começo
a chacoalhar, sinto a pele e o músculo cedendo facilmente, enquanto um jorro
de sangue mostra que atingi meu objetivo, rompendo a artéria. Afasto-me
com um salto, enquanto a cascudo fêmea cai lentamente no chão, com ar
aparvalhado, tentando conter pateticamente o rio de sangue que sai em jatos
de seu pescoço dilacerado. Começa a convulsionar, enquanto seus amigos
olham com ar estúpido sua vida se esvair. Quando se dão conta, minha faca
já rasga o fígado do mais próximo. Coloco os outros dois alinhados entre
mim e o cascudo ferido de morte. Quando o segundo tenta se desviar para
me atingir, acompanho seu movimento cravando minha lâmina em seu olho
arregalado. Ele despenca sem nem um gemido. O terceiro inimigo vira-se e
tenta correr, mas arremesso minha adaga que crava em sua nuca, exatamente
sobre a cérvix. O pesado corpo desfalece molemente e tomba na lama da
viela. O silêncio é total. Vou até o corpo estertorante e retiro meu punhal de
sua nuca, terminando de seccionar sua coluna. O sangue se espalha cobrindo
o chão já gosmento. Vou até Gounihar, que começa a despertar, olhando
assustado a cena. “Parece que perdi o espetáculo...” – murmura com voz
pastosa, começando a gemer logo a seguir. Ajudo-o a se levantar, apoiando
seu braço sobre meus ombros. Temos que sair daqui. Os olhos invisíveis que
me vigiam podem trazer soldados armados a qualquer momento. Não sei
quais seriam as consequências do que acabo de fazer. Imagino que um
Grahoul que mata cascudos não será muito querido por isso, mesmo em se
tratando de um Sangral. Caminho cegamente carregando Gounihar, até que
ele recobra totalmente seus sentidos e pede para parar. Já consegue andar por
conta própria e me instiga a lhe seguir por caminhos tortuosos e ainda mais
sujos do que a viela em que lutei. Não tenho alternativa. Eu o sigo, esperando
não estar sendo levado para outra cilada. Infelizmente minha esperança é vã.

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Gounihar diminui o passo, mancando de modo um pouco forçado. Quando
continuo a caminhar, inadvertidamente dando-lhe as costas, ele para,
resfolegando, e saca sua adaga. No momento em que escuto o som metálico
mínimo da arma sendo sacada da bainha, meu corpo já está a algumas
passadas de Gounihar e minha própria adaga apontada em riste para o traidor.
Gounihar, arquejante e curvo, com a adaga pendendo da mão inerte ao lado
do corpo, começa a gargalhar e tossir alternadamente. Olho desconfiado o
cascudo e me pergunto se ele enlouqueceu com a violência do episódio.
Gounihar gesticula, enquanto se senta no chão, deixando a faca ao seu lado.
“Calma, Grahoul! Desculpe o mau jeito! Estou ainda meio aparvalhado, mas
me lembrei de uma questão urgente!”. Tosse mais algumas vezes e
finalmente recobra o fôlego, olhando-me com um ar amedrontado. Ainda
desconfiado, pergunto: “Seria, por acaso, me matar?”. Gounihar chacoalha a
cabeça como que com dó de um louco. “Não, Sangral. Temos que retirar o
cristal de rastreio de seu corpo.” E pega a faca novamente. Eu posiciono
minha adaga, e ele sabe que a qualquer gesto incauto estará morto em
segundos. “De que se trata?” Pergunto, dominando meus instintos. Gounihar,
explica brevemente: “Não temos tempo para grandes explicações, Tandir. Os
soldados em breve estarão aqui. Ultrapassamos há alguns metros os limites
do bairro do Coliseu. Seu cristal já emitiu o sinal e a nossa localização.”
Intrigado e ainda confuso, percebo que estas palavras podem explicar muita
coisa sobre o fracasso de minhas tentativas de fuga no passado. “Que cristal
é esse, Gounihar? Onde ele está? Não trago cristal nenhum comigo.”
Gounihar dá uma risada que mais parece um rosnado. “Todo lutador do
Coliseu recebe o implante, sem saber, em sua primeira ferida profunda. Qual
foi sua primeira ferida funda no Coliseu, Grahoul?” Lembro-me do ventre
rasgado e do gosto de sangue em minha boca, quando rasguei a aorta do
Grahoul gigante que derrotei em minha primeira luta. Apalpo, por cima da
calça de tecido grosso, a grande cicatriz em minha coxa. A imagem do

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médico magrelo suturando minha perna me vem à mente. Sinto um
pequenino bulbo quando toco a cicatriz cuidadosamente com o dedo. Olho
para Gounihar. Ele assente com a cabeça e lança um olhar desarmado apesar
da adaga em sua mão. Decido confiar nele e deixo que se aproxime. Sento-
me no chão lamacento, fazendo um rasgo na calça com minha faca, no local
da cicatriz. Olho para Gounihar e faço um sinal afirmativo com a cabeça.
Continuo a empunhar minha adaga em posição de rasgar seu pescoço, no
caso de alguma eventualidade. Gounihar, está sentado a meu lado e,
cuidadosamente, começa a rasgar minha pele, exatamente sobre o risco
rugoso da cicatriz. A luz tênue das lâmpadas de banha fedorenta une-se ao
brilho das luas e permitem que Gounihar tenha uma visão clara. Assim
espero. Quando afunda a ponta da adaga e cutuca minha carne em busca do
cristal, a dor é profunda. Uso a velha e boa técnica de me concentrar na dor
e relaxar meus músculos. A dor é um ente palpável com o qual tenho que
conviver por vezes. Já começo a me tornar seu amigo. Finalmente, Gounihar
retira a faca, enquanto um pequenino objeto cai ao lado de minha perna.
Gounihar pega o que parece ser uma pequenina pedra e me entrega. Rasga
com sua faca uma tira de minha calça e amarra em torno do ferimento aberto.
É pouco extenso e profundo. Já sobrevivi a coisas bem piores. Olho
cuidadosamente o cristal de rastreio ensanguentado que seguro entre meus
dedos, limpando-o na calça, e vejo que se trata realmente de um minúsculo
cristal, com estranhas ranhuras entalhadas. Gounihar me alerta com
urgência: “Jogue isso longe, Tandir, e vamos embora daqui imediatamente.”
Faço melhor. Entrego o cristal para Gounihar. Avanço fulminante e agarro
um pequeno animal feio que está se alimentando de um monte de fezes, a
alguns metros de nós. O bichinho guincha em minha mão, tentando me
morder, mas a pele fina de sua nuca está firmemente presa entre meus dedos.
Com a ponta de minha adaga entre seus pequeninos dentes, forço sua boca a
abrir e peço que Gounihar enfie o cristal em sua goela. O cascudo

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compreende e faz o que peço. Retiro a adaga e deixo que o animalzinho feche
a boca, um pouco engasgado com a pedrinha que foi colocada em sua
garganta, a qual acaba por engolir heroicamente. Deixo que o feiozinho fuja
guinchando em desabalada carreira pelas ruas escuras. Os soldados vão se
divertir esta noite, caçando um fantasma. Gounihar começa a andar
rapidamente à minha frente, em direção oposta à do bichinho que soltamos.
Eu o sigo. Embrenhamo-nos mais profundamente na teia de ruelas escuras,
onde agora as lanternas são quase inexistentes. Apenas a tênue luz purpúrea
e prateada das luas ilumina o vulto corpulento do cascudo, mancando e
resfolegando em minha frente. As casas têm um aspecto cada vez mais roto
e sujo e não se vê ninguém, nem mesmo espiando pelas janelas. Apenas meu
faro apurado no ar frio da noite me previne dos corpos de odor pungente dos
cascudos que se refugiam no interior das casas escuras. Gounihar para
defronte uma porta baixa, de madeira grosseira e escura. Bate três vezes na
porta e aguarda. No silêncio da noite, eu ouço ao longe o barulho de gritos,
ordens e o estouro de madeira de portas sendo arrebentadas. Os soldados
estão ocupados caçando meu pequeno fantasma. Finalmente, ouvimos um
murmúrio, na língua dos cascudos, vindo detrás da porta. Gounihar fala uma
palavra estranha. Uma senha, certamente. A porta se abre, e vemos um
cascudo imenso e gordo, vestindo um avental sujo rescendendo a comida
rançosa, que recebe Gounihar com um abraço escandaloso. Volta-se para
mim com olhar desconfiado. Gounihar lhe explica rapidamente a situação e
o gordo cascudo nos permite passar. Entramos em um salão amplo, de teto
baixo, muito enfumaçado com o odor de várias substâncias voláteis
estranhas. Uma música estridente sai de um aparelho de aspecto decadente
ao fundo do salão. Vejo cascudos de todos os gêneros dançando de uma
maneira que lembra a dança de Mogul na Taberna dos Dragões. Uma pontada
de saudade e temor por Nadja me invade o peito. Ouço a voz reconfortante
de Mogul ressoando dentro de mim: “Estamos quase livres. Aprenda.” Faço

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um assentimento mental que é também um abraço da alma em meu amigo
dragão. Percebo que Gounihar me cutuca há alguns momentos, convidando-
me para sentar em uma mesa de tampo áspero e gorduroso. Acomodo-me o
melhor que posso na cadeira baixa e tosca. O cascudo gordo, que percebo ser
o taberneiro, vem até nós e nos pergunta o que gostaríamos de comer e beber.
Percebo que estou realmente sedento e faminto e deixo a Gounihar a escolha
dos pedidos, algo prudente quando imagino o estado de higiene da cozinha.
O ferimento em minha coxa começa a latejar quando meus músculos se
relaxam, após tanta luta e tensão. O taberneiro traz duas grandes tigelas de
um guisado fumegante, com um cheiro muito apetitoso, apesar de meus
temores. Coloca as tigelas na nossa mesa e, ao lado, pousa duas canecas com
um líquido espesso, cujo odor me lembra a cerveja escura dos Grahouls do
Norte. Comemos com sofreguidão e, saciado, começo a beber a cerveja em
pequenos goles cautelosos. O gosto é um tanto ácido, mas refrescante e rico.
Começo a achar que a semelhança com a cerveja do Norte é grande demais.
Comento: “Isso é tão bom que parece a cerveja dos Grahouls do Norte.”
Gounihar dá uma risadinha cacarejante entre dois grandes goles. “Isto É
cerveja do Norte, Grahoul. Da melhor.” Fico intrigado. Pergunto a Gounihar
onde estamos e quem são estas pessoas, celebrando a madrugada neste antro
perdido da Cidade de Ferro. Gounihar responde: “Somos a Resistência.
Lutamos contra a opressão do Grande Líder e seu Sacerdote. Você vê a
pobreza e a sujeira ao seu redor. Queremos uma vida melhor para todos.”
Melancolicamente, penso no corpanzil do Dragão Pai adormecido em sua
caverna, com suas miríades de escamas arrancadas continuamente para gerar
aquela sociedade tão estranha. Pergunto: “Como você fala tão perfeitamente
o dialeto de meu povo, Gounihar? Conhece outros Grahouls que não aqueles
estúpidos brutamontes gladiadores?” O cascudo me olha durante alguns
segundos, piscando os olhos pequenos, como que calculando o que falaria a
seguir. “Sim, Tandir, temos um comércio constante com os Grahouls do

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Norte, que nos fornecem a cerveja que você está bebendo, além de outras
iguarias que vendemos a preço de ouro puro aqui na Cidade de Ferro. É assim
que sustentamos nosso movimento. É assim que estamos nos armando.
Talvez nossa causa seja comum, Grahoul, pois sabemos que o Grande Líder
está envenenando seu povo.” Repentinamente Gounihar conquista toda a
minha atenção: “Como, Gounihar! Como estão fazendo isso!” Lágrimas de
ódio escorrem de meus olhos. Gounihar fica pouco à vontade com minha
reação emotiva e diz: “Ninguém sabe, Tandir. Sinto muito. O fato é alardeado
pela propaganda oficial do Grande Líder, mas nunca se menciona como é
feito o ataque. Muitos de nós acreditam que é pura propaganda militar.”
Reajo um tanto violentamente: “Mas não é! Nossas fêmeas estão doentes!
Nossos filhotes estão morrendo! Por isso vim para cá!” Gounihar parece
triste. “O povo delira com as bravatas militaristas do Grande Líder. O plano
dele é extinguir os Grahouls selvagens. A massa ignorante aprova, mas nós
da Resistência somos amigos de vocês. Devemos nos aliar, Tandir!” Suas
palavras me deixam pensativo e soturno. Não vejo nenhum modo de
cascudos e Grahouls se unirem. Cascudos são parasitas do povo Grahoul e
do Dragão Pai. Pergunto-me se Gounihar sabe do modo como surgem suas
crianças. Faço uma discreta sondagem sobre o assunto. Percebo que ele nada
sabe além de vagas informações sobre o centro de reprodução, doação de
sêmen e bebês de proveta. Nada sabe sobre as mães raptadas de meu povo.
Nada sabe do cativeiro do Dragão Pai. Isso é uma vantagem para mim, até o
momento oportuno. Deixo que Gounihar me considere um aliado de sua
causa. Digo-lhe que preciso fugir da Cidade de Ferro. Conto-lhe sobre Nadja.
Digo-lhe que sei onde ela está e que se quiser ser meu aliado deve me ajudar
a resgata-la. Fico aliviado quando ele me responde: “Vamos fazer melhor,
Sangral. Tiro você daqui e lhe mostro ao vivo o que estamos enfrentando.
Depois resgatamos sua amada. Faço isso para que lute ao nosso lado quando
a hora chegar. Estamos a uma centena de metros da muralha. Temos

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passagens sobre as quais as autoridades nem sonham. Como acha que
fazemos nosso comércio? Mas o dia vai raiar em breve. Precisamos da noite
para nos acobertar. Venha, Tandir, vou levar você até onde possa esticar os
ossos.” Levanta-se e indica que eu devo segui-lo. A pança cheia e o torpor
agradável da cerveja dizem para minhas desconfianças irem dormir. É o que
faço imediatamente quando Gounihar me deixa a sós em um cubículo com
uma confortável cama de palha limpa. Durmo um sono cheio de imagens
violentas, imagens duras e sangrentas de um mundo ainda mais sombrio do
que este em que vivo. O Mundo dos Sonhos. O Mundo Duro. Acordo
sobressaltado, com pancadas na porta, buscando instintivamente meu
punhal. Ouço a voz reconfortante de Gounihar me chamando, dizendo que
precisamos nos preparar para sair. Levanto-me e abro a porta. Vejo o rosto
inchado de sono do cascudo, que me indica um banheiro no final do corredor
onde fica meu quarto. Os odores não testemunham muita higiene, mas o
alívio de minhas necessidades e o banho de água morna, cheirando a
produtos químicos, despertam meu corpo e minha mente. Finalmente sairei
daqui! Enxugo-me e me visto. Vou até o salão da taberna. Gounihar está
sentado em uma mesa ao fundo, aos beijos com um cascudo gênero fêmea.
Fico surpreso de ver que algumas “cascudas” podem ser muito femininas e
até atraentes, mesmo do ponto de vista de um Grahoul. Aproximo-me e
Gounihar me apresenta sua companheira, Suiale. Cumprimento-a com
gentileza e me sento junto a eles para desfrutar de uma refeição leve, à base
de Goflin defumado à moda dos Grahouls. Sinto-me quase feliz. Terminamos
a refeição e Gounihar diz que é hora de partirmos. Despede-se de Suiale
carinhosamente. Eu também lhe faço uma saudação e sigo o cascudo para os
fundos da taberna. Ele passa pela portinhola do balcão, onde o gordo
taberneiro enxuga alguns copos com um pano rescendendo à gordura
rançosa. Entramos na cozinha e Gounihar para em frente a um amplo forno,
onde o cadáver de um animal não identificado gira placidamente sobre as

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brasas. O cascudo pressiona um dos tijolos e o forno gira sobre o eixo de sua
chaminé, expondo uma abertura estreita. Esgueiramo-nos com alguma
dificuldade pela fresta quente na parede, desembocando em um túnel de
terra, sustentado por temerárias colunas de uma madeira que parece já ter
visto dias melhores. Gounihar pega em um canto uma tocha de resina. Sai
novamente pela fresta e a acende nas brasas do forno. Volta rapidamente e
começa a andar túnel adentro. Não tenho opção senão segui-lo através desse
buraco estreito de terra húmida e mofada, que parece poder desmoronar a
qualquer momento. Gounihar parece perceber minhas apreensões, pois faz
questão de me tranquilizar: “Esta madeira é centenária, Sangral. Não vai
desmoronar hoje.” Respondo: “Sim, ela com certeza parece centenária.”
Rezo à Nanshe para que ele tenha razão e sigo resolutamente atrás dele, rumo
à liberdade. Esta reluz à minha frente como um reflexo metálico da chama
azulada e fumarenta da tocha de resina que Gounihar carrega. Paramos
finalmente defronte a uma porta com os dizeres, no dialeto cascudo:
“Anarquia”. O objetivo da Resistência. Para mim aquela palavra significava:
estou livre! Gounihar pressiona a maçaneta e empurra a porta, que é muito
mais pesada do que parece. Quando saio para o exterior da muralha, vejo que
a parte externa da porta é feita com placas de pedra que se confundem com
a montanha. O cascudo fecha a passagem atrás de nós. Respiro o ar frio e
puro da noite, sem os cheiros podres da Cidade de Ferro. A escuridão é total
e seguimos próximos às rochas negras que constituem a base da Muralha de
Ferro. Gounihar fala em um murmúrio quase inaudível: “Você agora vai
conhecer o poderio do Grande Líder, amigo”. Confesso que, agora que estou
livre, dificilmente algum poderio pode me intimidar. Mas, não quero seguir
Gounihar. Quero ir buscar Nadja imediatamente. Todo o meu ser se volta
para isso e meu corpo acompanha minha alma, virando para oeste. Gounihar
já está caminhando sorrateiramente junto à parede de rocha. Ouço a voz de
Mogul em minha mente: “Calma. Aprenda. A salvação deve ser mais

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profunda.” Compreendo claramente. Volto-me para o leste novamente,
seguindo Gounihar. Como sombras, deslizamos junto à parede, com o faro
atento ao menor sinal de dragões. Mas a noite está tranquila e o tempo
transcorre como as sombras que somos, chegando enfim ao que se parecem
com degraus toscos quase invisíveis subindo uma encosta já afastada da
Cidade de Ferro. Subimos silenciosamente, com Gounihar liderando o
caminho, e eis que vejo o que me parece ser a aurora. Aurora cor de fogo,
estranha como nunca vi. Ouço gritos ao longe também. Gritos de meu povo.
Então, chegamos ao topo da encosta e o cheiro acre de carne queimada quase
desperta minha fome, exceto pelo horror do que vejo. Amarrados a postes
flamejantes, dezenas de Grahouls das tribos são queimados pelo fogo
incessante de um só Dragão verde. Sobre seu dorso, o condutor cascudo
vestido em grossa armadura, gargalha sonoramente, quase abafando o som
dos gritos. O ódio gela minhas veias. Gelo de fogo. Começo a descer a
encosta, mas Gounihar me detém: “Está indo para a morte, Grahoul. Não
quer salvar sua amada?” A visão mental de Nadja prisioneira afasta meu
transe guerreiro. Olho novamente para a cena atroz. Vejo os corpos
contorcidos já imóveis como galhos secos. Os gritos param. Só o crepitar das
chamas e a gargalhada insana do cascudo sobre o Dragão. Um comando e o
dragão verde para de emitir seu canto de fogo. A falsa aurora se desvanece e
a negra noite volta a engolfar minha alma e os arredores. Não há palavras
entre mim e Gounihar. Mas o silêncio diz mais. O cascudo acena para que eu
o siga e começamos a descer a encosta protegidos por uma crista de rochas.
Descemos até as bordas de um vasto campo com casamatas e aposentos para
milhares de soldados. Pela primeira vez eu me deparo com a força militar
dos cascudos e meu coração estremece. Gounihar parece notar, mas não se
incomoda em me consolar. Ao contrário, esclarece-me: “Vamos visitar o
centro do poderio de meu povo, Grahoul. Vocês têm Dragões livres, que
estão com vocês porque assim desejam. Nossos Dragões não possuem esta

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fraqueza.” Paramos defronte a um edifício estranho, um imenso salão
exalando um odor indefinível e azedo, um ruído incessante de vagidos
de...filhotes Daimons! Subimos cautelosamente até uma plataforma côncava
de pedra que nos permite uma visão do interior do prédio. Sob a luz
bruxuleante e obscura de tochas fedorentas, vejo uma imensa câmara
incubadora de ovos de dragões, de onde saem pequeninos Daimons azuis,
que vão se juntar a outros em um cercado, conduzidos por cascudos vestidos
de branco. Vejo um outro cercado com filhotes Daimons um pouco mais
velhos, mas magros e emaciados. Um cascudo aproxima-se com um
caldeirão contendo uma pasta verde fumegante com um odor estranhamente
familiar, adentrando o cercado dos filhotes, que avançam vorazmente sobre
a papa. Gounihar me alerta: “Veja isso agora, Tandir.” Os filhotes saciados
da gosma verde começam a cair e se contorcer no chão. Vão perdendo a
forma de Daimons e assumindo a forma de Dragões...verdes. Fico pasmo
observando as pequenas criaturas que se levantam titubeantes, olhando ao
redor confusas. Alguns cascudos adentram o cercado e conduzem os jovens
Dragões verdes com chicotes, desaparecendo com eles por um corredor
sombrio. Dou um pulo quando Gounihar me chama, sussurando: “Venha,
Grahoul. Conheça o fim do processo.” Sigo-o noite adentro e nos
embrenhamos nas rochas ainda mais, atravessando um túnel escuro,
aparentemente um duto de ventilação, que parece levar ao outro lado do
edifício. Nos esgueiramos por trás de imensas colunas que sustentam um
salão ainda mais amplo e alto que o primeiro, com divisórias colossais entre
as quais imensos Dragões verdes fêmeas mastigam morosamente grumos de
uma substância pastosa, com o mesmo odor da que vi ser dada aos filhotes
Daimons. Ao lado de algumas delas, vejo alvos ovos recém botados!
Gounihar me explica, em um sussurro quase inaudível: “A gosma verde é
uma mistura química secreta do exército. Quando ela é dada a Daimons
normais, eles se transformam irreversivelmente em Dragões verdes. Aqui são

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todas fêmeas e elas não precisam ser fecundadas para procriar. A gosma faz
com que se reproduzam por partenogênese. No entanto, os filhotes nascem
como fêmeas normais e precisam tomar a gosma novamente. O exército
nunca conseguiu estabilizar uma linhagem de Dragões verdes sem a gosma.”
Uma pergunta óbvia me vem à mente: “Mas como os Dragões fêmeas se
submetem? Dragões não são animais submissos! Dragões são livres!”
Gounihar balança tristemente a cabeça: “A gosma é uma poderosa droga
psicoativa, Tandir. As Dragões fêmeas não tem opção senão obedecer. Além
disso, rapidamente se tornam dependentes de sua dose diária. A privação da
gosma é um sofrimento indizível para um Dragão verde. Assim, os
condutores as controlam totalmente.” Refletindo sobre o triste destino das
criaturas, observo uma delas defecar sobre uma calha onde passa um fluxo
de água. Meus pensamentos sombrios descem com a água suja e vejo que há
um dreno na parede onde desaparece o fluxo fétido. Novamente, sinto que o
odor me é estranhamente familiar. Pergunto a Gounihar: “Para onde vai essa
água suja?” Gounihar me observa de modo estranho, talvez duvidando de
minha sanidade. “E de que adianta saber isso, Grahoul?” pergunta,
desconfiado. Mas eu já começo a contornar o salão, em busca da saída da
água. Gounihar me segue, confuso. Contornamos o prédio seguindo o odor
e finalmente me deparo com o fluxo líquido de fezes de dragão, o qual é
despejado em uma grande cisterna. Noto um grande encanamento que
mergulha na terra. Sigo sua direção através de uma vegetação mortiça e
doente e minha suspeitas se avolumam. Ouço o ruído de um regato logo em
frente. Chegamos nas margens de um córrego fétido, onde o cano da cisterna
despeja a água suja. Noto que ao longo do riacho pouca coisa cresce. Não há
animais. A familiaridade do odor repentinamente me é desvendada: lembra
um fundo acre quase imperceptível que há muitos ciclos exala da água da
Aldeia da Falésia, tão tênue que os Grahouls se acostumaram com ele.
Preciso seguir o curso do regato. Mas antes preciso resgatar Nadja.

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