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FACULDADE DE PSICOLOGIA
2021
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE PSICOLOGIA
2021
i
Agradecimentos
Às professoras de Sistémica, que durante estes dois anos me mostraram que havia um lugar
de Ciência (e de Humanidade) à minha medida.
Ao Dr. Domingos Bié, pela sua investigação e recolha dos dados deste estudo, e aos
participantes cujas experiências foram os alicerces deste trabalho.
À Susana, que fez tanto parte deste tempo e trouxe novos olhares ao meu mundo interior.
Aos meus Pais e ao Tomás, que “fazem parte da mobília”, dos momentos de frustração e de
entusiasmo deste processo e que abdicaram da mesa de jantar durante vários meses de
trabalho. Em especial, à minha mãe, que se dedicou por mais do que uma vez a ler e rever
esta tese, contribuindo para a sua qualidade.
Aos meus avós, tias-avós, tios e primos, que retratam a Família como lugar de alegria e
descanso e, de forma especial, à Leonor e à Ana, pela cumplicidade e apoio.
À Rita, à Joana e ao João, por toda a atenção, paciência e incentivo; a este espaço de
alegria, acolhimento e família emprestada onde me sinto tão bem.
À Sara e ao Francisco, pelo trabalho de equipa e por serem espelho de crescimento; pela
disponibilidade, presença e companheirismo durante estes anos todos, pelos inúmeros
piqueniques no lago e passeios à beira-rio.
À Rita, à Margarida, à Pilar, à Rita e à Rafa, cada uma à sua maneira, que formaram um
grupo sistémico extraordinário e para quem o palco (ou o céu) é o limite.
A todos os Amigos que me aumentam, que me fazem rir; que são, de alguma forma,
inspiração e guardam lugares únicos dentro de mim, OBRIGADA.
ii
“The flower that blooms in adversity is the most rare and beautiful of all.”
Mulan (Walt Disney Company)
Resumo
As Experiências Adversas na Infância (EAI) são objeto de uma vasta literatura, dada a sua
relevância para as trajetórias de desenvolvimento e bem-estar, reflexo do impacto que têm na
saúde física, mental e ajustamento social dos indivíduos que as experienciam. Persiste, no
entanto, a necessidade de compreender de forma mais aprofundada como as EAI se manifestam
e são percebidas no contexto moçambicano, dadas as diferenças interculturais na sua definição.
A literatura sugere que, na África Subsariana, muitas crianças e jovens são expostos a EAI;
apesar da escassez de investigação sobre esta temática em Moçambique, as características
sociodemográficas do país remetem para a importância de aprofundar o conhecimento
científico relativo à perceção do risco, da experiência de adversidade e das trajetórias de
desenvolvimento das crianças e jovens locais, bem como às características da intervenção
terapêutica realizada. Enquadrado pelo paradigma ecológico, este estudo recorre a uma
abordagem qualitativa, analisando tematicamente um conjunto de entrevistas a psicólogos
moçambicanos com intervenção em EAI, atendendo, em particular, ao impacto percebido das
características do contexto multissistémico para a experiência, trajetórias de desenvolvimento
associadas, intervenção e prevenção das EAI.
A análise temática dos dados fez emergir três temas principais: Experiências Adversas na
Infância, Intervenção Terapêutica e Recomendações para Prevenção. Os psicólogos retrataram
as suas perceções sobre a Caracterização do Contexto das EAI, identificando fatores de risco
que contribuem para a sua experiência ou que são em si adversidades, e reconhecendo
especificidades mais e menos adaptativas das Trajetórias de Desenvolvimento associadas às
EAI. As características ecológicas e multissistémicas do contexto são predominantemente
identificadas como propiciadoras de risco para as EAI, para o desenvolvimento de trajetórias
de resiliência e para o sucesso da intervenção terapêutica, salientando a importância de uma
abordagem contextual preventiva para a diminuição da experiência de adversidade pelas
crianças e jovens em Moçambique. É reconhecida a importância de promover o apoio social,
dado o seu papel enquanto fator protetor do contexto. Os resultados deste estudo surgem
maioritariamente alinhados com a literatura existente sobre as EAI no mundo ocidental e
remetem para a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre a experiência e intervenção
nas EAI no contexto de Moçambique. Acentua-se a necessidade da colaboração entre diferentes
agentes participativos no desenho e implementação de um plano preventivo das EAI neste país.
Abstract
Adverse Childhood Experiences (ACEs) are subject to a vast body of literature, given their
relevance to the development and well-being of those who experience them. They are
recognized as having an impact on physical health, mental health and social adjustment.
However, the need to deeply understand how ACEs manifest and are perceived in Mozambique
prevails, since there are many intercultural differences that may play a role on its definition.
Research targeting ACEs in Sub-Saharan Africa suggests that children and youth are frequently
exposed to them. Even though studies on this subject in Mozambique are scarce, the country’s
sociodemography suggest the need to deepen the knowledge about how risk, adversity and the
impact on development are perceived, as well as about the therapeutic interventions practiced.
This study stems from the framework of the ecological model and uses qualitative thematic
analysis on a set of interviews with Mozambican psychologists that intervene with ACEs. It
focuses on the perceived impact of multisystemic features on the experience, associated
developmental trajectories, intervention and prevention of ACEs.
Three main themes emerged from the analysis: Adverse Childhood Experiences, Therapeutic
Intervention and Recommendations for Prevention. Psychologists portrayed their views about
ACEs’ Context Description and identified risk factors that contribute to their experience and
that sometimes express ACEs themselves, as well as specificities of the Developmental
Trajectories that reflect resilience or inadaptation to adversity. Multisystemic ecological
features of Mozambique are mainly identified as risk factors for ACEs, for inadaptive
developmental trajectories and for therapeutic success. Participants emphasize the need for a
contextual preventive approach to reduce ACEs, recognizing social support as an important
contextual protective factor that must be promoted. Results are mainly aligned with Western’
literature on ACEs and depict the need for more investigation on ACEs in Mozambique. This
research also highlights the need for collaboration between different participatory agents in the
design and implementation of a preventive plan to reduce ACEs in Mozambique.
Índice
Introdução ................................................................................................................................ 1
Enquadramento Teórico ......................................................................................................... 2
Contexto de Moçambique ...................................................................................................... 2
Experiências Adversas na Infância (EAI) .............................................................................. 4
Definição do Conceito na Literatura.................................................................................. 4
Vulnerabilidade e Risco na Etiologia das Experiências Adversas..................................... 5
Experiências Adversas na Infância no Seio dos Microssistemas ....................................... 7
Impacto das Experiências Adversas na Infância ................................................................ 9
Resiliência ............................................................................................................................ 10
O Papel do Psicólogo na Intervenção ................................................................................... 12
Método .................................................................................................................................... 13
Objetivos e Design do Estudo .............................................................................................. 13
Participantes ......................................................................................................................... 15
Instrumentos e Procedimento ............................................................................................... 16
Estratégias de Análise de Dados .......................................................................................... 17
Papel do Investigador: Etnocentrismo e Reflexividade ....................................................... 18
Resultados ............................................................................................................................... 20
Experiências Adversas na Infância ...................................................................................... 22
Caracterização do Contexto ............................................................................................. 22
Adversidade ...................................................................................................................... 25
Trajetórias de Desenvolvimento ....................................................................................... 27
Intervenção Terapêutica......................................................................................................... 31
Recomendações para Prevenção .......................................................................................... 35
Aprofundar os Resultados: um Olhar Intercategorial ............................................................... 37
Risco e Proteção a Diferentes Níveis do Ecossistema........................................................... 37
Interligação entre o Contexto e a Adversidade .................................................................... 38
Trajetórias de Desajustamento Psicossocial em Contextos de Adversidade .......................... 38
Quebrar o Ciclo da Adversidade: uma Abordagem Preventiva ao Contexto ......................... 39
Discussão ................................................................................................................................. 41
Panorama da Adversidade Precoce em Moçambique .......................................................... 41
Papel do Apoio Social Percebido ......................................................................................... 45
Atribuições dos Psicólogos ao Sucesso da Intervenção ....................................................... 47
“A stitch in time saves nine” : a Importância da Prevenção ................................................ 48
Remar contra a Maré: o Impacto Percebido do Contexto sobre a Prática da Psicologia ..... 50
Limitações e Forças .............................................................................................................. 51
Implicações e Sugestões para Estudos Futuros .................................................................... 52
Referências Bibliográficas ..................................................................................................... 54
ANEXOS
Índice de Figuras
Figura 1
Mapa conceptual……………………………………………………………………………..14
Figura 2
Mapa de categorias de resultados………………………………….………………………...21
Figura 3
Mapa de subcategorias: descrição dos fatores de risco e proteção do contexto………..…….22
Figura 4
Mapa de subcategorias: tipologias de adversidade identificadas pelos participantes……..…26
Figura 5
Mapa de subcategorias: trajetórias de desenvolvimento associados à vivência de EAI……...28
Figura 6
Mapa de subcategorias: caracterização dos fatores identificados pelos participantes como
facilitadores ou prejudiciais à intervenção terapêutica em EAI……………………………...31
Figura 7
Mapa de subcategorias: recomendações oferecidas pelos participantes para a prevenção de
EAI e da severidade do seu impacto percebido…...……………………………..……………36
Figura 8
Mapa mental de relações entre as categorias de resultados………………………..………...41
Figura 9
Esquema explicativo do papel central do apoio social percebido nas várias esferas
analisadas…………………………………………………………………………………….45
1
Introdução
As Experiências Adversas na Infância (EAI) são reconhecidas como uma violação aos
Direitos das Crianças com impactos nefastos à sua saúde e desenvolvimento social (Jewkes et
al., 2010). Apesar da frequência com que as crianças e jovens do contexto africano
experienciam diferentes formas de adversidade (Cluver et al., 2015), a investigação sobre as
EAI revela uma lacuna na exploração das suas características, risco e intervenção neste
contexto (Jewkes et al., 2010). Moçambique, com índices elevados de pobreza extrema (Roser
& Ortiz-Ospina, 2019), doença (World Health Organization [WHO], 2017), violência
doméstica e analfabetismo (Instituto Nacional de Estatística [INE], 2019), entre outros
problemas sociais (e.g., tráfico humano ou exploração infantil), parece desenhar um cenário
propício a que as crianças e jovens experienciem múltiplas e diversificadas EAI.
Adicionalmente, as características ambientais do país (e.g., United Nations International
Children’s Emergency Fund [UNICEF], 2017) e o seu passado recente de conflito (Chifeche
& Dreyer, 2019) acrescentam a uma configuração ecológica, aparentemente, de risco. Por outro
lado, as características culturais de Moçambique podem oferecer fatores de risco ou de proteção
para a experiência desta adversidade (e.g., o seu carácter coletivista (Cruz, 2017; Sartorius et
al., 2011) sugere a importância atribuída aos grupos sociais e às relações interpessoais para o
funcionamento da sociedade).
A conjugação de fatores stressores e de recursos do contexto enquadra-se no modelo de
resposta familiar de ajustamento e adaptação (modelo FAAR; Patterson, 1988) enquanto uma
alteração nas condições sociais do meio que pode produzir desequilíbrios no sistema familiar,
proporcionando a que a família se torne, também ela, contexto de risco ou proteção para a
experiência de adversidade. Deste modo, o contexto pode exercer um impacto percebido como
prejudicial ao desenvolvimento das crianças e jovens não apenas de forma direta, mas através
da sua influência sobre os processos vigentes no microssistema familiar. Apesar da
multiplicidade de características adversas identificadas num contexto que aparenta ser de risco,
nem todos os indivíduos que experienciam adversidade apresentam trajetórias de
desenvolvimento de desadaptação (Nelson & Prilleltensky, 2010), pelo que é adequada a
integração desta investigação com uma visão ecológica da resiliência (Ungar et al., 2013).
Este estudo surge com o objetivo exploratório de compreender as perceções de
psicólogos com experiência no acompanhamento a vítimas de EAI em Moçambique sobre o
panorama desta adversidade e sobre o seu papel e intervenção com esta população. O impacto
percebido do contexto sobre esta temática assume um papel preponderante na investigação,
justificando o seu enquadramento no paradigma ecológico (Bronfenbrenner, 1979).
2
Enquadramento Teórico
Contexto de Moçambique
A África Subsariana é um dos palcos mundiais de Experiências Adversas na Infância
(EAI) por crianças e jovens, incluindo contextos de abuso, violência doméstica e infeção
parental por HIV/SIDA, culminando na morte dos progenitores (Cluver et al., 2015); porém, é
identificada a insuficiência da literatura sobre esta temática no contexto africano (Jewkes et al.,
2010). Moçambique é um país do sudeste africano marcado por uma identidade cultural rica e
diversificada – bem como por uma história de vulnerabilidade, guerra, pobreza, fome, doença
e catástrofes ambientais. A turbulência que marca o contexto moçambicano revela-se um lugar
propício à experiência de adversidade, particularmente ao longo da infância e adolescência. O
impacto dos sistemas ecológicos envolventes assume um papel preponderante no
desenvolvimento dos indivíduos (Bronfenbrenner, 1979), não só por configurar um contexto
favorável à vivência crónica ou pontual de adversidade, mas porque é no seio destes
ecossistemas que se desenvolve a relação terapêutica (forte preditor do sucesso das
intervenções; Anderson et al., 2019); por outro lado, as características ecológicas dos mesmos
podem constranger a prática clínica (Anderson et al., 2000). Esta investigação propõe-se
analisar as perspetivas de uma amostra de psicólogos moçambicanos com prática de
intervenção com indivíduos que sofreram EAI sobre o seu trabalho com esta população,
atendendo à influência do contexto multissistémico sobre a sua atividade.
O protagonismo assumido pelos diferentes níveis do contexto nesta investigação
justifica o seu enquadramento no paradigma ecológico (Bronfenbrenner, 1979; 1986;
Bronfenbrenner & Ceci, 1994; Bronfenbrenner & Morris, 2006). Bronfenbrenner (1979)
conceptualiza o contexto como “um conjunto de estruturas encaixadas umas nas outras em
nichos, como uma série de bonecas russas” (p. 3). Na perspetiva ecológica, o desenvolvimento
reflete-se na acomodação progressiva e mútua entre o ser humano e as propriedades dos
microssistemas, influenciado pelas relações entre contextos e pelos sistemas mais abrangentes
nos quais os microssistemas estão inseridos (Bronfenbrenner, 1979; Bronfenbrenner & Ceci,
1994). O ser humano define-se como entidade dinâmica que progressivamente reestrutura o
contexto em que se insere e os microssistemas enquanto contextos que lhe são imediatos e onde
ocorrem os processos proximais – padrões de atividades, papéis e relações interpessoais
experienciados de forma regular e ao longo do tempo entre a pessoa e o contexto;
Bronfenbrenner, 1977; Bronfenbrenner & Ceci, 1994).
Simultaneamente, Rogoff (2003) alerta para a influência do contexto e da cultura
(conjunto de fatores contextuais manifestos nas práticas quotidianas, crenças e valores de uma
3
população) sobre o desenvolvimento, que aponta dever ser entendido à luz das práticas
culturais da comunidade que envolve a criança, dada a sua participação evolutiva e dinâmica
em atividades socioculturais comunitárias. Através do modelo ecocultural (Berry & Poortinga,
2006), que considera a própria cultura enquanto processo dinâmico e contínuo que inclui a
interação entre variáveis ecológicas, culturais e psicológicas, o comportamento individual pode
ser enquadrado nas influências culturais, económicas e históricas que o envolvem. A
identificação da influência da cultura no sofrimento psicológico sugere a importância de
integrar as experiências das crianças num enquadramento cultural que inclua a caracterização
do contexto sociopolítico e de relações de poder (Obasaju & LiVecchi, 2018).
A pertença a uma sociedade coletivista, como é a de Moçambique (Cruz, 2017;
Sartorius et al., 2011), tem implicações na forma como as pessoas se relacionam com os seus
microssistemas. A perceção do autoconceito é interdependente: os indivíduos consideram as
pessoas da sua família como continuações de si próprias, os objetivos individuais são
compatíveis com os do seu grupo, o comportamento social é concordante com a norma e os
indivíduos estabelecem relações sociais de partilha de recursos (materiais e não materiais) com
os outros, tendo o bem-estar coletivo em consideração nas suas decisões (Bhawuk, 2017).
As características dos contextos económico, sociocultural e histórico de Moçambique
assumem um papel central no quotidiano da população. Em 2014, 62,9% da população vivia
em situação de pobreza extrema (i.e., com rendimento inferior ao limiar internacional de
pobreza de 1,90$ diários; Roser & Ortiz-Ospina, 2019). Metade das crianças moçambicanas
(49%) é considerada financeiramente pobre – valor que é superior à taxa de pobreza monetária
nacional sem especificação etária (de 43,9%; UNICEF, 2020); a taxa de pobreza infantil
multidimensional (refletindo carência num conjunto de indicadores de saúde e bem-estar) é
uma das mais elevadas mundialmente (46,3%; UNICEF, 2020), com elevada disparidade entre
áreas urbanas (18,6%) e rurais (57,6%; UNICEF, 2020). Atualmente, mais de 10 milhões de
moçambicanos vivem em situação de pobreza alimentar (Chifeche & Dreyer, 2019).
Paralelamente a um contexto economicamente carenciado, Moçambique construiu-se,
nas últimas décadas, sobre uma tradição de conflito político com expressões de violência civil
e comunitária, entre as quais a guerra pela independência nacional com Portugal (entre 1964 e
1975) e um conflito civil entre dois movimentos políticos nacionais (entre 1975 e 1992). Este
violento conflito pós-colonial teve consequências devastadoras, particularmente, para os
grupos sociais mais vulneráveis (nomeadamente, crianças e jovens; Chifeche & Dreyer, 2019).
O final da guerra civil não aliviou o clima de tensões políticas e desafios socioeconómicos que
influenciam o acesso das crianças e jovens a serviços básicos como a educação e a saúde
4
(Chifeche & Dreyer, 2019), o que se expressa na elevada prevalência nacional de infeções por
HIV/SIDA (World Health Organization [WHO], 2017). O nível educacional da população é,
globalmente, baixo, com taxas de 39% de analfabetismo e de 38,6% de absentismo escolar em
crianças entre os 6 e os 17 anos (Instituto Nacional de Estatística [INE], 2019).
Diversos outros problemas do foro social são vivenciados pela população de
Moçambique, tais como contextos de violência e conflitos comunitários frequentes (Slegh et
al., 2017), violência doméstica (INE, 2019), tráfico humano (U.S. Department of State, 2017)
e trabalho infantil (para enfrentar situações de pobreza familiar; UNICEF, 2010).
Adicionalmente, o país vê-se, frequentemente, assolado por catástrofes ambientais que
podem criar contextos de emergência humanitária (UNICEF, 2017). No momento de recolha
dos dados deste estudo (ano letivo de 2016/17), o panorama de crise presente em Moçambique
era diverso, severo e complexo, incluindo situações de secas, cheias, ciclones, surtos de cólera,
conflitos político-militares e grupos de pessoas deslocadas, agravando seriamente as
necessidades desta população (UNICEF, 2017).
adversidade (e.g., Anda et al., 2010) ou refletir diferenças nas tipologias de experiências
infantis que são percebidas como adversidade (Malley-Morrison, 2004).
al., 2019; Parrish et al., 2011; Stith et al., 2009). É fundamental adotar uma perspetiva
multifatorial ao investigar estes fatores de risco, uma vez que, por exemplo, nem sempre um
mesmo fator predispõe as crianças a todas as formas de abuso e negligência (Stith et al., 2009).
Aos fatores microssistémicos acresce o efeito potencialmente prejudicial (ainda que
indireto; Belsky, 1980; Bronfenbrenner, 1977) dos contextos alargados. É o caso dos stressores
sociais (e.g., Brown & De Cao, 2018; Lawson, et al., 2020; Lynch & Cicchetti, 1998;
Rodriguez et al., 2018) dos diferentes exossistemas (contextos que não envolvem diretamente
o indivíduo, mas cujos eventos afetam ou são afetados pelo que acontece nos sistemas mais
próximos; Bronfenbrenner, 1979) ou dos valores culturais e sistemas de crenças (e.g., Alvy,
1975) ligados ao macrossistema (referente às consistências (e.g., culturais) na forma ou
conteúdo dos sistemas de ordem inferior, bem como às ideologias e sistemas de crenças
subjacentes a esses padrões; Bronfenbrenner, 1979). O modelo ecológico-transacional
(Cicchetti & Lynch, 1993) considera a complexidade dos contextos que envolvem a criança e
os fatores de risco e proteção para o desenvolvimento ativados pela sua interação recíproca.
Basilar a este modelo está a assunção de que a tolerância de uma sociedade a elevados níveis
de violência abre espaço à violência familiar (Belsky, 1980; 1993). Dada a história recente de
violência em Moçambique, esta experiência pode estar na etiologia da elevada prevalência de
casos de violência doméstica neste país (INE, 2019). Dos contextos envolventes emergem
ainda outros fatores de risco para a experiência de adversidades, como o estatuto
socioeconómico e dificuldades financeiras (Evans & Kim, 2012; Maguire-Jack & Font, 2017;
Parrish et al., 2011; Walsh et al., 2019), os níveis de violência comunitária (Lynch & Cicchetti,
1998), situações de guerra e conflito armado e condições de vida e disrupção social decorrentes
(Vindevogel et al., 2015) e fatores da cultura (e.g., estratificação social; Schell, 1997), entre
muitos outros (Lynch & Cicchetti, 1998).
A urgência e necessidade de intervenção com esta população é agravada pelo potencial
cumulativo que manifestam (i.e., o aumento gradual de experiências adversas aumenta o risco
para outcomes de inadaptação no futuro; Dong et al., 2004; Petruccelli et al., 2019),
contribuindo para a criação de contextos de polivitimização (inter-relação e coocorrência de
diversas adversidades em múltiplos contextos envolventes; Finkelhor et al., 2011). O contexto
moçambicano propicia a experiência de riscos em múltiplos níveis sistémicos (e.g., familiares,
comunitários, culturais e societais), e a literatura que evidencia o impacto nefasto desta
acumulação nas trajetórias de desenvolvimento é robusta (Burchinal et al., 2000; Dong et al.,
2004; Evans, 2003; Hunt et al., 2017; Parrish et al., 2011; Sameroff et al., 1987; Schneider,
2020; Wade et al., 2015). Evans e Kim (2012) sugerem a exposição elevada à acumulação de
7
Resiliência
Face à experiência de adversidade e risco cumulativo, alguns indivíduos manifestam
outcomes de resiliência (Nelson & Prilleltensky, 2010). A resiliência é a propriedade que
permite a uma entidade ou sistema regressar à sua condição normal após um evento que
perturbou o seu estado inicial (Hosseini et al., 2016), podendo ser concebida enquanto traço ou
resultado, estável no tempo (Oshio et al., 2018) ou como as forças, competências e recursos
11
que expressam uma adaptação positiva à adversidade (Vindevogel et al., 2015) e que podem
ser cultivados (Leys et al., 2020). Neste estudo, a resiliência é conceptualizada como o processo
dinâmico e o resultado de uma adaptação bem-sucedida a experiências desafiantes, através da
flexibilidade mental, emocional e comportamental e do ajustamento às exigências (American
Psychological Association [APA]; 2015; Luthar et al., 2000).
Para a manifestação da resiliência contribuem fatores como as significações individuais
e envolvimento com o mundo, a disponibilidade e qualidade dos recursos sociais ou as
estratégias de coping (APA, 2015), refletindo a influência das características individuais e
também dos recursos do contexto (Ungar, 2012), nomeadamente, familiar e comunitário
(Hegney et al., 2007). Realça-se a importância do apoio social, evidenciada quando, perante
situações de crise, as famílias, grupos, comunidades, escolas, locais de trabalho e outros
sistemas sociais podem tornar-se alicerces de resiliência (Herdiana et al., 2018). Muller et al.
(2000) levantam a hipótese de que a rede de apoio dos jovens possa moderar os efeitos de viver
numa família violenta, enquanto Ozer et al. (2017) salientam a importância do apoio familiar
para atenuar o efeito da exposição a violência comunitária na saúde mental dos jovens. Do
mesmo modo, Coulton et al. (2007) sublinham a potencial proteção da comunidade face à
adversidade, sugerindo o seu possível papel na definição, identificação e denúncia de situações
de maus-tratos familiares.
A resiliência comunitária (reflexão coletiva, planeamento e ação para lidar com desafios
que ameacem o bem-estar dos indivíduos e da comunidade; Vindevogel et al., 2015), reflete
um olhar sistémico e menos individualista sobre o construto. Pensar a resiliência à luz de uma
visão ecológica (Ungar et al., 2013) permite considerar a interação dinâmica multidirecional
entre os diferentes níveis sistémicos em reciprocidade com o indivíduo que neles se insere,
expressando a resiliência como produto da qualidade da interação entre o indivíduo e o
ambiente e a competência de ambos para providenciar os recursos necessários à manutenção
do bem-estar (Ungar, 2008; Ungar et al., 2013). Quanto mais uma criança está exposta à
adversidade, mais a sua resiliência depende da qualidade do ambiente e dos recursos
disponíveis (Ungar, 2013): um ambiente com recursos adequados potencia na criança as
competências para enfrentar situações adversas (Ungar et al., 2013) e um ambiente disfuncional
pode levar à seleção de estratégias de coping desadaptativas (de Anda et al., 2000) e contribui
para determinar o grau de influência das características hereditárias prejudiciais à resiliência
(Bronfenbrenner & Ceci, 1994). O alinhamento entre as forças do indivíduo e os recursos
disponíveis no contexto pode ainda maximizar a probabilidade de que estas forças sejam
valorizadas enquanto representações de um funcionamento saudável (Lerner, 2006), isto é, a
12
2012; citados por Ungar et al., 2013). A intervenção contextual para fomentar a resiliência,
porém, só acontece se a importância do papel do contexto for reconhecida pelos psicólogos.
Neste âmbito, o presente estudo procura colmatar a lacuna de estudos qualitativos que
permitam compreender com maior profundidade o contexto social no qual as crianças são
expostas a diferentes formas de adversidade e as dinâmicas sociais que influenciam práticas
abusivas (Jewkes et al., 2010), recorrendo a uma amostra de psicólogos com prática no
acompanhamento a indivíduos que vivenciaram EAI em Moçambique para analisar a sua
perceção sobre o contexto e a intervenção com esta população.
Método
Objetivos e Design do Estudo
O presente estudo1 procura indícios que permitam discernir o impacto percebido que as
diversas vertentes do contexto de Moçambique possam ter na construção do papel do
psicólogo, na sua intervenção e na perceção dos resultados terapêuticos com esta população.
Em função da questão de partida “Como é significado o papel do psicólogo em Moçambique
no contexto da intervenção clínica em experiências adversas na infância?”, foram definidas
duas questões de investigação: (1) como é que esta amostra de psicólogos em Moçambique
perceciona o seu papel na intervenção com indivíduos que viveram experiências adversas na
infância?; e (2) qual o papel do contexto (cultural, socioeconómico e histórico) nesta
intervenção?
O mapa conceptual apresentado na Figura 1 expressa as relações propostas entre
conceitos que fundamentam o desenho de investigação: a perceção da interação entre os fatores
de risco e proteção contextuais ilustra a configuração ecológica sobre a qual são vivenciadas
diversas tipologias de adversidade. A experiência desta adversidade, por sua vez, é percebida
como tendo um impacto no desenvolvimento, podendo conduzir as trajetórias individuais por
percursos de resiliência (facilitadas pelos fatores protetores do contexto) ou de inadaptação,
possibilitando o acompanhamento terapêutico; nesta situação, outcomes terapêuticos de
sucesso contribuem para a manifestação de resiliência. O contexto cultural, socioeconómico e
histórico de Moçambique constitui-se o cenário sobre o qual todas estas interações são
experienciadas, influenciando a caracterização das relações conceptuais e as definições dos
1
Este estudo está inserido no projeto de doutoramento do Dr. Domingos Bié, orientado pela Professora Doutora
Isabel Narciso (FPUL). A recolha de dados (i.e., elaboração do guião das entrevistas, condução e transcrição das
mesmas) ficou a cargo deste investigador, tendo sido realizada no ano letivo de 2016/17 em Moçambique.
14
Figura 1
Mapa conceptual
2
O objetivo geral desta investigação é comum ao da investigação de doutoramento em que se insere: analisar a
perceção de psicólogos clínicos moçambicanos com experiência de acompanhamento de crianças e jovens
moçambicanos vítimas de experiências adversas relativamente a: (a) experiências adversas mais associadas a
pedidos de ajuda terapêutica; (b) fatores que facilitam a adaptação; (c) sucesso vs. insucesso terapêutico; e (d)
fatores do processo terapêutico que contribuem para o sucesso terapêutico.
15
Participantes
Os participantes foram recrutados através de uma amostragem teórica (selecionada a
partir da sua relevância para a investigação, com base nos resultados quantitativos dos
16
Instrumentos e Procedimento
Após a assinatura de um termo de consentimento informado e do preenchimento de um
questionário de dados sociodemográficos, solicitando informação relevante para a
caracterização da amostra (sexo, idade, habilitações académicas, tempo de exercício
profissional, tempo de serviço na área, categoria profissional atual, vínculo à instituição e
responsabilidades de chefia assumidas), foram realizadas entrevistas semiestruturadas aos
participantes (consultar Anexo A – Guião de entrevista semiestruturada). Nestas entrevistas, o
entrevistador explora um conjunto de tópicos pré-definidos com cada entrevistado, mas não
necessariamente por uma ordem específica ou formulados exatamente da mesma forma
(Phellas et al., 2011), o que permite um questionamento aprofundado e, ao mesmo tempo, a
manutenção do diálogo dentro dos parâmetros definidos para os objetivos de investigação
(Berg, 2007) Foram exploradas as perceções dos participantes acerca das experiências adversas
mais associadas a pedidos de ajuda terapêutica e da sintomatologia associada (e.g., “Quais têm
sido as patologias e sintomas relacionados com a adversidade sofrida na infância e juventude
que, com maior frequência, lhe têm aparecido nas consultas?”), dos fatores que contribuem
para a experiência precoce de adversidade (e.g., “A nível individual, que características da
criança/jovem é que podem favorecer a vivência de experiências adversas?”), das
especificidades das trajetórias de (in)adaptação a situações de adversidade (e.g., “Olhando
para a sua experiência, que fatores (no indivíduo, na família, no meio/rede social, na
17
determinada cultura ou contexto que não os seus (Ungar et al., 2013). Havendo evidências de
processos de proteção diferenciados em função do contexto, cultura e época histórica (Phelps
et al., 2007; citados por Ungar et al., 2013), e sendo as expressões de resiliência moldadas pelas
suas circunstâncias socioculturais (Tol et al., 2013), o etnocentrismo e consequente
desconsideração pelos aspetos contextuais pode constituir um viés à investigação.
Neste estudo, o etnocentrismo era um desafio esperado, uma vez que a cultura da
investigadora e dos participantes era distinta e, adicionalmente, a investigadora tinha um
conhecimento limitado acerca das características culturais dos psicólogos da amostra. Numa
tentativa de negociar esta limitação, foi dado ênfase ao papel reflexivo da investigadora que,
ao reconhecer conscientemente as crenças e valores subjacentes à investigação, pode
transformá-los para reduzir o constrangimento que impõem aos resultados (Smyth &
Shacklock, 1998). Foi, por isso, dedicado tempo ao mapeamento do contexto de Moçambique
(incluindo à investigação de aspetos históricos e culturais específicos, através de leituras e
documentários) e a interpelar (1) dois psicólogos moçambicanos contactados que se
disponibilizaram a conversar sobre as temáticas refletidas nos dados e (2) duas pessoas
portuguesas que conheciam em primeira mão as culturas locais e a população. A conversa de
consultoria para a familiarização com o contexto tida com os dois psicólogos cumpriu o
objetivo de facilitar uma lente mais informada sobre a análise de dados, acrescentando
qualidade, precisão e segurança à descrição e análise dos temas emergentes e das relações entre
as diferentes categorias, que estavam a ser dificultadas pelo contraste de linguagens (i.e.,
impasse gerado pela dificuldade em compreender com precisão partes dos registos das
entrevistas, uma vez que estas eram transcritas a partir da oralidade da língua portuguesa de
Moçambique e a investigadora que analisou os dados não esteve presente durante a realização
das mesmas, além de não ter conhecimento sobre a estrutura e funcionamento da sociedade e
sobre as culturas locais). Kvale (1996) salienta a natureza de construção social das entrevistas
e as diferenças entre um momento de entrevista e um documento transcrito da mesma:
“transcrever significa transformar (…) [e as] transcrições são traduções de uma linguagem
para outra” (p. 166), remetendo para a ideia de que as transcrições das entrevistas são
abstraídas da sua base de interação social e do seu contexto interpessoal (Kvale, 1996). O
acesso único da investigadora às transcrições das entrevistas de recolha de dados (i.e., a
“conversas descontextualizadas”; Kvale, 1996) constitui uma das limitações deste estudo,
posteriormente endereçada.
Através desta conversa, foi possível clarificar substancialmente melhor diversos temas
que surgiram nas entrevistas da amostra original (e.g., organização e funcionamento do sistema
20
Resultados
Neste capítulo, serão abordados os resultados inferidos a partir da análise temática
realizada aos dados e da qual resultaram três temas principais emergentes: Experiências
Adversas na Infância (8/945), Intervenção Terapêutica (8/434) e Recomendações para
Prevenção (8/89). Como ilustrado na Figura 2, cada um destes temas é dividido em diversas
subcategorias que contribuem para a organização e descrição do seu conteúdo (consultar Anexo
B – Listagem final de categorias e respetivas definições operacionais).3
3
Para esta secção, foram selecionadas apenas categorias relevantes para os resultados, i.e., cujas referências
tenham sido mencionadas por um mínimo de três fontes (à exceção da categoria Recomendações para Prevenção).
As categorias surgem acompanhadas pelo número de fontes em que foram codificadas (entrevistas com os
participantes ou registo da conversa de familiarização com o contexto) e pelo número de referências que
englobam, num modelo (n.º F/n.º R) – e.g., (4/23). As citações apresentadas para ilustrar as principais categorias
surgem identificadas pelo número do participante (e.g., P3) ou número do memo da conversa de familiarização
com o contexto (i.e., M1), de acordo com a fonte de onde foram retiradas.
21
Figura 2
Mapa de categorias de resultados
Figura 3
Mapa de subcategorias: descrição dos fatores de risco e proteção do contexto
opondo-se ao papel protetor da Estrutura Familiar (5/5) para o indivíduo, se inclui viver numa
Família Desestruturada (8/60), como é o caso de crianças que Não Têm Pais Presentes (5/34) na
sua vida (devido à morte dos mesmos – tornando-se Órfãos (5/13) – ou por Abandono (3/5), e que
acabam por ficar à responsabilidade de Outros Cuidadores Principais; 5/9), ou de crianças que
experienciam uma Separação Parental (4/7) ou alguma forma de Inversão de Papéis (4/4) na
família, passando a assumir um papel de cuidadores de outros membros do agregado familiar, como
pais debilitados pelo HIV/SIDA. Reconhecendo o potencial de proteção e segurança da família, os
psicólogos percebem-na como um espaço que, frequentemente, não cumpre essa função. Outra
característica familiar de risco para a adversidade é pertencer a uma Família Disfuncional (8/45),
com Conflitos Familiares (4/12), Violência Doméstica (4/9), Falta de Apoio Familiar (4/9), com
a Pertença do Agressor à Família (4/6) (e.g., em situações de abuso físico, sexual ou psicológico)
ou com exposição a Consumo de Substâncias (3/4) por parte de indivíduos do agregado familiar –
“crianças [que são] consumidores passivos, os pais os mandam comprar e elas em algum momento
inalam os fumos (…) [ao] viver num ambiente em que tem lá um consumidor, as crianças acabam
passando por algumas circunstâncias que não podiam vivenciar” (P4) – este participante reconhece
que o consumo de substâncias expõe as crianças a riscos e contextos desadequados para a sua idade,
aumentando o risco para que se tornem consumidoras passivas e facilitando o seu próprio consumo
no futuro. Deste modo, além de não estruturar o indivíduo e oferecer uma perceção de segurança para
o seu percurso de vida, os psicólogos identificam variadas situações de risco a que as famílias podem
expor as crianças. Finalmente, constituem-se circunstâncias de risco viver em contexto de Pobreza
Familiar (5/13) ou de Doença (5/12) (particularmente, criado pela presença frequente de infeções
por HIV/SIDA (4/10) em algum dos membros da família – os participantes destacaram, ao longo da
análise, a perceção do impacto negativo do HIV/SIDA na estrutura e interações familiares). A família
é, assim, percebida como um espaço que frequentemente não proporciona a segurança ou estabilidade
que poderia oferecer e que expõe as crianças a riscos diversificados para o seu desenvolvimento.
Relativamente à Comunidade (8/58), as Características Protetoras (6/24)
identificadas referem-se sobretudo a Aspetos Sociais (5/22) do contexto comunitário,
nomeadamente: a frequência e suporte da Escola (4/7) (e.g., um participante refere como o
tratamento antirretroviral [TARV] já é ensinado e discutido no programa de um dos anos
curriculares, contribuindo para a educação da população através da intervenção num foco
central do contexto: “hoje em dia (…) existe determinada classe que já até fala de comprimidos
[TARV], não sei exatamente em que classe é, se é na quinta, mas falam”; P3) e o Apoio Social
(3/13) da comunidade, incluindo o papel ativo que assume na identificação e denúncia de
situações de adversidade. Simultaneamente, reconhecem-se Características de Risco (7/33)
24
vulneráveis (…). Muitos abandonam o tratamento pela falha do sistema.” (M1) – neste
excerto, os psicólogos expõem como a inexistência ou lacunas nas políticas públicas que
promovam os cuidados de saúde à população levam a que diversos indivíduos desistam do
tratamento para o HIV/SIDA, fragilizando ainda mais as comunidades e famílias e aumentando
o risco para a experiência de adversidade). As carências económicas que afetam grande parte
da população facilitam a criação de contextos de risco e propiciam a experiência de adversidade
(e.g., “famílias com dificuldades financeiras ou com rendimento baixo, por mais que seja uma
família estruturada, marido, mulher, filhos, mas se o rendimento é baixo, a dificuldade que
existe de fazer face às exigências do dia-a-dia acabam criando conflitos” (P1) – este
participante salienta o efeito que as dificuldades económicas podem exercer sobre as dinâmicas
familiares apesar das características protetoras da família) e são, em si, uma adversidade:
“[a] maior parte destas crianças e adolescentes são vulneráveis (…) [e] carenciadas
(…), estão integradas em famílias pobres que, muitas vezes, não têm nem o alimento
para garantir a saúde, a medicação, também para poder ir à escola, não têm
necessidades básicas supridas. Então, independentemente de vivenciarem a doença
crónica ou não, a vulnerabilidade e falta de recurso já é um problema para
desenvolvimento de qualquer ser humano.” (P6)
Este participante destaca a desvantagem económica e falta de recursos enquanto uma
forma de adversidade com efeitos negativos sobre o desenvolvimento e independente de outras
que possam ser propiciadas por estes contextos.
Na perspetiva destes psicólogos, a família é desenhada como um lugar de risco
predominante e fortemente influenciado pelas características do contexto externo; em particular,
dos sistemas mais abrangentes, percebidos como amplamente proporcionadores de risco. Neste
contexto, a experiência de adversidade relatada como frequente no seio familiar é quase percebida
pelos psicólogos como um fenómeno estrutural da sociedade que se traduz em comportamentos e
situações recorrentes e culturalmente enraizados na população que, na perspetiva dos psicólogos,
os percebe como vulgares. A categoria de Adversidade (8/287) emerge para organizar esta
diversidade de tipologias de EAI salientadas pelos psicólogos.
Adversidade
No âmbito das Experiências Adversas na Infância (8/945), considerando a categoria
de Adversidade (8/287), destacam-se três grupos distintos de EAI identificadas, ainda que
diversas experiências não possam ser exclusivamente alocadas a um deles: Disfunções
Familiares (8/112), a experiência de Maus-Tratos (8/106) e de Contextos Adversos (8/69).
26
Figura 4
Mapa de subcategorias: tipologias da adversidade identificadas pelos participantes
Trajetórias de Desenvolvimento
Na categoria das Experiências Adversas na Infância (8/945), ilustrada na Figura 5,
são reconhecidos aspetos das Trajetórias de Desenvolvimento (8/362) dos indivíduos
associados à experiência de adversidade. Em geral, os participantes identificam enquanto
trajetórias de Inadaptação (8/288) a manifestação de Sintomatologia Psicopatológica (8/101)
e aspetos de Desajustamento Psicossocial (8/159) relacionados com a vivência de
adversidade.
28
Figura 5
Mapa de subcategorias: trajetórias de desenvolvimento associadas à vivência de EAI
situação normal, vai achar que as famílias vivem assim, em conflitos, brigas, lutas, separações, e
acaba por ser uma vítima perpétua; cresce naquela situação, não tem mecanismos próprios para
perceber que pode mudar alguma coisa” (P1) – o participante caracteriza os modelos familiares
interiorizados pelos indivíduos que experienciam disfunções familiares, e que são, frequentemente,
transpostos para a família constituída por eles no futuro, podendo, como identificado, vir a subjazer
a um padrão de transmissão intergeracional de adversidade. Os psicólogos percebem uma
associação entre as EAI e o envolvimento em Comportamentos Desviantes (7/50), com o
Consumo de Substâncias (5/19), Comportamentos de Oposição (4/11), Delinquência (3/8) e
Comportamentos Sexuais de Risco (3/4) entre os mais comuns. Como evidencia um dos
participantes, “[a] maior parte deles (…) já está nas drogas, podemos ver que não têm uma
estrutura familiar, foram umas crianças que cresceram basicamente sem regras, que não têm uma
figura parental presente” (P3), salientando o risco de envolvimento em consumos de substâncias
como um fator associado à falta de estrutura da família de origem. É identificado o efeito da
adversidade na Esfera Ocupacional (6/23) – na manifestação de Dificuldades Laborais (5/5),
Dificuldades Escolares (4/8) e Absentismo Escolar (3/10). Esta população tende a evidenciar
uma Baixa Autoestima e Autoconfiança (6/12), remetendo para o impacto percebido da
adversidade no autoconceito: “tenho percebido que daqueles casos que tenho recebido (…) nas
consultas, que tenham sido vítimas na infância, para além de apresentar essa sintomatologia
psicológica, (…) são indivíduos que às vezes apresentam uma baixa autoestima, deficiências
naquilo que é o seu autoconceito” (P7) – este participante percebe um impacto negativo das EAI
no autoconceito, no papel da diminuição da autoestima. Por fim, quanto ao Bem-Estar (4/16)
individual, os psicólogos reconhecem nesta população uma Baixa Satisfação Pessoal (3/11).
A Gravidade (6/28) destas trajetórias depende de Fatores Individuais (5/12) e de Fatores
Contextuais (4/11). Os Fatores Individuais mais comummente identificados são os
Antecedentes e Comorbilidades (3/5) do indivíduo e aspetos da sua Personalidade e Recursos
Psicológicos (3/5). No âmbito dos Fatores Contextuais, é indicada a Falta de Apoio (3/3) como
agravadora da inadaptação: “E há situações em que este indivíduo (…) foi vítima de uma
determinada adversidade e não teve este suporte ou, pelo contrário, até passou a ser culpabilizado
(…) então isso também chega a agravar a situação.” (P7), ilustrando um contexto que culpabiliza
a vítima pela adversidade vivida e que pode agravar a desadaptação associada a essa experiência,
através da diminuição do apoio social disponível, que seria um potencial fator de proteção.
Apesar de os participantes reconhecerem tendencialmente trajetórias inadaptativas em
indivíduos que vivenciaram EAI, identificam também algumas manifestações de Resiliência
(8/71) face à experiência de adversidade – situações em que as vítimas de experiências adversas
30
Intervenção Terapêutica
Na categoria da Intervenção Terapêutica (8/434), os participantes identificaram diversos
fatores que Facilitam (8/203) ou Dificultam (8/231) o sucesso das intervenções, como representa a
Figura 6, reconhecendo como fatores de impacto sobre a intervenção aspetos que o cliente traz à
terapia, aspetos do psicólogo e aspetos do contexto da intervenção. Os participantes identificaram os
Fatores do Contexto (8/123) como os principais fatores que Dificultam (8/231) a intervenção, mas
os Fatores do Psicólogo (8/115) enquanto os principais aspetos que Facilitam (8/203) o sucesso
terapêutico, remetendo para a possibilidade de um viés atribucional ao sucesso das intervenções.
Figura 6
Mapa de subcategorias: caracterização dos fatores identificados pelos participantes como
facilitadores ou prejudiciais à intervenção terapêutica em EAI
32
Figura 7
Mapa de subcategorias: recomendações oferecidas pelos participantes para a prevenção de
EAI e da severidade do seu impacto percebido
cultural fomentada em algumas zonas do país que legitima que um homem que não conseguiu
encontrar esposa force a relação sexual com crianças e, tendo abusado delas sexualmente, possa
considerá-las comprometidas consigo, correspondendo às expectativas sociais de casamento e
construção de uma família).
particular, associações entre as características adversas dos ecossistemas e duas das trajetórias de
desajustamento: a de Comportamentos Desviantes (4/9) reconhecidos como associados às EAI e a
do impacto percebido na Esfera Relacional (2/8) das vítimas. O impacto percebido desta
sobreposição na Esfera Relacional (2/8) reflete a perceção dos psicólogos sobre o efeito dos
contextos de adversidade nas relações interpessoais – quer nas competências para estabelecer
relações, quer nos contextos relacionais e, em particular, na família constituída pelas vítimas,
podendo indiciar a criação de um contexto de adversidade para gerações futuras: “uma criança que
cresce a ver, por exemplo, pais a lutarem, a praticarem violência, essa criança tem probabilidade
no futuro também desenvolver o mesmo comportamento dos pais” (P5), e perpetuando um ciclo
intergeracional de adversidade. Este ciclo pode não ser exclusivo do contexto familiar: a trajetória de
Comportamentos Desviantes (4/9) estende-se à comunidade e, sendo semelhante a diversos fatores
de risco comunitário para as EAI, pode acontecer que as trajetórias associadas a estas experiências
funcionem como perpetuadoras de um contexto comunitário de risco para as gerações futuras.
Deste modo, os psicólogos parecem perceber uma relação bidirecional entre os contextos
caracterizados pela adversidade – Interligação entre o Contexto e a Adversidade – e as
Trajetórias de Desajustamento Psicossocial em Contextos de Adversidade: por um lado, a
experiência de contextos de risco e de diferentes tipos de adversidade pode levar a trajetórias de
desenvolvimento inadaptativas, como são os fatores de inadaptação psicossocial referidos. A
experiência deste desajustamento no dia-a-dia, por sua vez, pode manifestar-se em comportamentos
que perpetuam um contexto de adversidade familiar e comunitária que levará crianças das gerações
seguintes a vivenciar os mesmos contextos de adversidade e a seguir, globalmente, o mesmo tipo de
trajetórias de desajustamento – e assim sucessivamente.
nas suas dimensões. Os psicólogos identificam enquanto fatores que dificultam o sucesso das
intervenções os Problemas de Base (5/13) trazidos pelos clientes e sobre os quais a intervenção clínica
tem pouco efeito; a Falta de Respostas Sociais (3/9) a estes problemas e a Inação do Governo (3/3)
traduzem ainda a imagem dos psicólogos de um sistema governamental pouco apoiante da sua
intervenção, dificultando o trabalho com esta população. Os participantes realçam a importância do
Trabalho em Rede (7/35) (e das suas subcategorias), atendendo a vários níveis do sistema, como
facilitador da intervenção. A complexidade deste contexto encontra um olhar solucionador dos
psicólogos que remete, nas linhas preventivas propostas, para a necessidade de Envolver as
Comunidades (4/8), de incluir Profissionais de Múltiplas Áreas (3/10) e, inclusive, o Governo (3/5)
na prevenção das EAI. Os psicólogos salientam ainda a importância de uma intervenção
multissistémica vertical (expressa nas duas formas de Ações de Prevenção; 8/39) e horizontal
(relacionada com os diferentes microssistemas que propõem ser Alvos de Intervenção (7/22).
O segundo padrão remete para a formação dos psicólogos. É identificada a Falta de
Formação, Intervisão e Supervisão (5/6) enquanto fator que dificulta a intervenção e,
paralelamente, as Competências do Psicólogo (7/53) (e.g., Formação e Conhecimento; 5/12)
enquanto facilitadores do seu sucesso. Esta dualidade torna a espelhar-se na ação preventiva que
remete para a necessidade de possibilitar melhor Formação aos Psicólogos (2/3) em Moçambique.
Os recursos e condições de trabalho destacam-se enquanto fatores que dificultam o sucesso
terapêutico (e.g., Falta de Recursos (8/25) humanos e materiais e condições do Espaço de
Atendimento; 7/18). Na sequência destas fragilidades, os psicólogos recomendam a melhoria das
Condições dos Espaços de Atendimento (2/2) como ação de prevenção.
A educação e informação das populações é outro aspeto saliente na comparação entre as
categorias. São identificadas as Conceções Sociais (6/31) e a Substituição por Outros Apoios
(4/23) enquanto obstáculos à intervenção, refletindo o desconhecimento da população acerca da
Psicologia e doença mental e a desvalorização da intervenção terapêutica como útil e independente
de outros apoios cultural e socialmente privilegiados. As dificuldades emergentes desta
desinformação refletem-se no destaque das ações preventivas de Psicoeducação (5/16) em diferentes
microssistemas (i.e., identificados enquanto Alvos de Intervenção; 7/22).
Por fim, os participantes realçam a necessidade de promoção do apoio social. A importância
de uma rede social apoiante foi reconhecida de forma transversal ao longo dos temas de análise,
espelhando o olhar tendencialmente coletivista dos participantes e o seu reconhecimento das forças
e proteção que emergem de relações interpessoais positivas. O Envolvimento e Apoio da Família
(7/18) e o Envolvimento e Papel da Comunidade (4/8) foram identificados como fatores dos
Microcontextos dos Clientes (8/27) marcadamente apoiantes e promotores do sucesso terapêutico.
41
Discussão
Panorama da Adversidade Precoce em Moçambique
O mapa de relações ilustrado na Figura 8 sintetiza os resultados apresentados,
explicitando como o risco e proteção percebidos no contexto moçambicano interagem e
desenham o cenário sobre o qual são vivenciadas EAI. É reconhecido o potencial das EAI para
conduzir as trajetórias de desenvolvimento individuais por percursos de maior ou menor
adaptação; as trajetórias inadaptativas parecem poder contribuir para perpetuar o ciclo de
adversidade em gerações futuras. Para o sucesso das intervenções terapêuticas em EAI
contribuem fatores do contexto, do psicólogo e do cliente. Finalmente, e porque, num contexto
propiciador de adversidade, muitos indivíduos não têm acesso à intervenção clínica, os
participantes deixam algumas recomendações que poderiam ser englobadas num plano de
prevenção face às EAI e à severidade das trajetórias de inadaptação associadas.
Figura 8
Mapa mental de relações entre as categorias de resultados
42
psicólogos reconheceram igualmente que nem todos os indivíduos que experienciam EAI
manifestam outcomes de desajustamento. Os contributos que identificaram para potenciar as
trajetórias de resiliência e adaptação foram, porém, predominantemente centrados nas características
e estratégias de coping individuais, face aos fatores do contexto. No âmbito dos fatores contextuais
promotores da resiliência, reconheceu-se o papel da rede social e comunitária, suportando a
investigação relativa à importância deste aspeto na promoção da adaptação (Coulton et al., 2007;
Herdiana et al., 2018; Muller et al., 2000; Ozer et al., 2017). Apesar da importância das características
individuais na variabilidade interpessoal das manifestações de resiliência à adversidade (e.g., Oshio
et al., 2018), a literatura sublinha o papel das características do ecossistema do indivíduo nas
manifestações de resiliência (Ungar et al., 2013), como são as características do meio, a família, a
cultura ou o sentido de pertença a uma comunidade (Hegney et al., 2007), e a forma como o indivíduo
pode interagir com elas para transformar ambientes de risco em contextos de maior proteção
(Kumpfer, 2002). A menor medida do reconhecimento destes fatores na promoção da resiliência pode
traduzir uma convicção dos psicólogos de que a resiliência depende, sobretudo, de fatores individuais,
sobre-responsabilizando as vítimas das EAI com expectativas irrealistas para os outcomes da sua
adaptação à adversidade e negligenciando aspetos fundamentais do contexto que podem ser
promovidos enquanto potenciadores da resiliência a maior escala – inclusivamente, porque um
contexto adverso como os psicólogos reconhecem ser o de Moçambique levará a resiliência das
crianças e jovens a depender ainda mais da proteção dos fatores ecológicos (Ungar, 2013).
Figura 9
Esquema explicativo do papel central do apoio social percebido nas várias esferas analisadas
46
traduzir num menor apoio social percebido, dificuldades na interação e comunicação e maior
tendência a comportamentos agressivos). Estas dificuldades parecem traduzir um défice nas
competências sociais que pode dificultar a criação uma rede de apoio protetora face à adversidade
– a associação entre as EAI e redes de apoio social menores, menos satisfatórias e piores
competências para estabelecer relações sociais duradouras e positivas apoia a literatura existente
(Hill et al., 2003). Também os sintomas de psicopatologia podem apresentar um efeito negativo
sobre a construção da rede social, dificultando a criação de relações positivas e elicitando o conflito
interpessoal (Hammen, 2006; Pachucki et al., 2015), remetendo para uma possível circularidade
entre a perceção de apoio social e a saúde mental (Turner & Brown, 2010). Estas evidências podem
suportar a hipótese de que a falta de apoio social funcione não apenas enquanto risco do contexto
para a experiência de adversidade e para a severidade das trajetórias de ajustamento associadas,
mas como consequência das próprias trajetórias inadaptativas, dadas as limitações que impõem à
construção de uma rede social apoiante e protetora. O papel que a disponibilidade percebida deste
apoio poderia assumir enquanto protetor da vivência de adversidades cumulativas (Hatch, 2005) e
de trajetórias desajustadas (e.g., Ozer et al., 2017) deixa de se verificar e a ausência deste apoio
percebido permanece um fator de risco contextual.
Em algumas situações, a manifestação de comportamentos ou sintomas patológicos ou
inadaptativos pode levar a que o indivíduo seja alvo de intervenção, que pode ser bem-sucedida
(alterando a trajetória para um rumo de resiliência) ou mal-sucedida, mantendo o desajustamento
e, eventualmente, contribuindo para a criação de novos contextos de risco intergeracionais. Para o
sucesso terapêutico concorrem fatores do contexto multissistémico, entre os quais é reconhecido o
papel facilitador central do apoio familiar e comunitário. Neste contexto, surgem recomendações
para prevenção que promovem, direta ou indiretamente, o apoio social (em particular, da
comunidade), revelando o reconhecimento dos psicólogos da importância deste elemento na
proteção das EAI e na promoção da resiliência e do sucesso terapêutico com esta população.
4
“Um ponto a tempo poupa nove”, i.e., uma ação menor na altura adequada pode evitar dificuldades maiores no
futuro (provérbio citado em Nelson & Prilleltensky (2010), referindo-se à importância da abordagem preventiva).
49
(2017) sublinham a necessidade de alargar o foco de intervenção além do contexto clínico para
endereçar os determinantes sociais subjacentes às EAI, centrando a sua intervenção preventiva na
promoção de resiliência comunitária. Também os participantes deste estudo descrevem ações e
focos da prevenção que promovem a proteção das comunidades e famílias.
As recomendações para a prevenção da experiência de adversidade e severidade do impacto
associado sugeridas pelos participantes vão ao encontro das recomendações identificadas por Woods-
Jaeger et al. (2018) para quebrar o ciclo intergeracional de experiências adversas, expressas por
indivíduos que o vivenciaram. Em particular, as ações de psicoeducação e sensibilização relacionam-
se com a recomendação (a) de consciencializar a comunidade acerca das EAI (Woods-Jaeger et al.,
2018); a criação de centros de apoio social e comunitário e a ativação do papel da comunidade
enquadram-se na recomendação (b) sobre cultivar uma comunidade apoiante; e a melhoria da
qualidade dos serviços de saúde mental disponíveis, bem como as ações de psicoeducação,
correspondem à recomendação (c) que salienta a necessidade de facilitar o acesso a serviços de
educação e apoio parental e de saúde mental. O alinhamento de perspetivas entre os participantes
destas investigações salienta não apenas a necessidade de implementar estas recomendações de forma
adaptada ao contexto a que se referem, mas a importância de envolver as comunidades, famílias e
indivíduos que participam nestes contextos na procura de soluções adequadas aos problemas
psicossociais que se manifestam neles. A necessidade de envolver ativamente as comunidades foi
referida pelos participantes deste estudo, enquadrando-se na perspetiva de Nelson e Prilleltensky
(2010), que sublinham a importância do envolvimento cívico na construção de soluções,
ultrapassando a tendência de o desenho de políticas públicas de intervenção social ser feito
exclusivamente por entidades e profissionais que não são diretamente afetados por essas decisões.
A marcada discrepância entre o tipo de ações de prevenção propostas (focadas numa
intervenção psicossocial) pode dever-se à perceção de agência dos psicólogos (que se percebem
como mais capazes de atuar a nível microsistémico, acentuando essas ações) ou refletir também
uma perceção enviesada de que estas ações mais cirúrgicas tenham um impacto mais positivo
(i.e., promotor de resiliência) do que ações nos contextos abrangentes, contrariamente ao que
indica a literatura (Ungar et al., 2013). Adicionalmente, pode espelhar a falta de confiança dos
participantes na capacidade e motivação dos sistemas abrangentes (nomeadamente, políticos)
para cuidar e proteger a população das EAI (ideia refletida noutras categorias; e.g.,
Desvalorização da Psicologia pelo SNS, Falta de Respostas Sociais e Inação do Governo).
Apesar da perceção do contexto como pouco valorizador da Psicologia, os resultados
deste estudo espelham as autoperceções dos psicólogos enquanto elementos fundamentais ao
trabalho multidisciplinar de elaboração do plano de prevenção face às EAI; do mesmo modo,
50
Rog et al. (2021) salientam a mais-valia dos conhecimentos destes profissionais em áreas tão
diversas quanto a intervenção comunitária para a promoção da resiliência, a investigação e
divulgação do conhecimento acerca das EAI na população e a participação e envolvimento em
estruturas governamentais de desenho de políticas públicas apoiadas pela investigação em EAI
e promotoras de práticas informadas e potenciadoras da resiliência.
Limitações e Forças
As principais limitações deste estudo prendem-se com as diferenças culturais entre a
investigadora e a população-alvo, possibilitando um viés etnocêntrico à análise. Adicionalmente, a
distância temporal entre a recolha e análise dos dados e a falta de contacto entre os investigadores
responsáveis pelos dois processos pode ter impedido a relação de fluência, coerência e continuidade
entre o desenho da investigação e os resultados emergentes. Esta distância temporal impossibilitou a
certeza de que a saturação teórica (Richards, 2015) tenha sido alcançada, uma vez que ainda que
52
houvesse necessidade de recolher novos dados para explorar direções elicitadas pelos resultados, o
desfasamento entre dois momentos de recolha teria um impacto enviesado sobre os resultados.
O contraste entre a oralidade da língua portuguesa de Portugal e Moçambique poderá ter
também enviesado a interpretação e análise de dados, condicionando os temas emergentes, uma
vez que a investigadora apenas pôde ter acesso às transcrições das entrevistas realizadas,
oferecendo uma contextualização distinta dos dados (Kvale, 1996). A análise foi realizada por
uma única investigadora, impedindo o recurso a medidas de fiabilidade interavaliadores; porém,
o processo de consultoria com a orientadora da dissertação, a utilização de uma amostragem
teórica e o recurso à reflexividade da investigadora e a consultores externos para diminuir o
etnocentrismo valorizam a qualidade da metodologia qualitativa utilizada (Cameron, 2011).
A lacuna na investigação das EAI no contexto africano (Jewkes et al., 2010) levou a que
muita da literatura revista e contrastada na contextualização teórica do estudo e na discussão proviesse
de investigações em países desenvolvidos, com características sociodemográficas e culturais
distintas. Dada a importância dos fatores culturais nesta área de investigação (Karatekin & Hill, 2018;
Malley-Morrison, 2004), as comparações com amostras de outros contextos devem ser feitas com
cuidado e atenção, podendo resultar em enviesamentos à investigação. Por fim, a inexistência de uma
definição clara do que era considerado características do contexto (em particular, familiar) e de como
estas se distinguiam das EAI pode ter estado na origem da relação próxima e, frequentemente,
sobreposta entre estes dois temas, ainda que muitas EAI sejam experienciadas no seio familiar e,
como tal, afetem consideravelmente o funcionamento e descrição deste contexto (Scully et al., 2019).
O estudo apresenta ainda limitações inerentes ao design de investigação; em particular,
ao seu cariz qualitativo (e.g., subjetividade da investigadora e dificuldade em replicar a
investigação), transversal (e.g., impossibilidade de inferir relações causais) e retrospetivo (e.g.,
condicionamento das respostas por enviesamentos retrospetivos). A amostra reduzida de
participantes impossibilita a generalização dos resultados para a população investigada.
Este estudo contribui para levantar diversos problemas e necessidades relacionados com a prática
da Psicologia vigentes em Moçambique (e.g., as conceções sociais da população sobre o tema ou
as condições precárias de atendimento) e que dificultam o sucesso terapêutico, salientando a
urgência da necessidade de uma abordagem preventiva que colmate a lacuna entre a quantidade de
crianças que vivem EAI e o número de indivíduos que tem acesso a uma intervenção terapêutica
de qualidade. Ainda que não detalhadamente, esta investigação ilumina já alguns dos alvos e linhas
de ação que poderiam traçar este percurso preventivo, sugeridos pelos psicólogos no terreno.
Dadas as diversas limitações, foram levantadas questões que, não podendo ser respondidas
adequadamente nesta investigação, constituem sugestões para a investigação futura no tema. Seria
interessante compreender em detalhe os aspetos-chave reconhecidos como diferenciadores entre as
trajetórias inadaptativas e de adaptação, contribuindo para uma definição culturalmente relevante
da resiliência em Moçambique, o que permite reconhecer adequadamente as suas manifestações.
Seria útil compreender a relação entre os fatores de influência no sucesso terapêutico e as
características de risco e proteção contextuais e culturais, aprofundando a relação percebida entre
o risco contextual e os obstáculos terapêuticos e explorando em pormenor as potenciais forças que
este contexto pode oferecer à intervenção. Tendo o contexto sido reconhecido como fonte de
obstáculos à intervenção, seria ainda útil explorar os processos de resiliência desenvolvidos pelos
psicólogos perante a adversidade ecológica. O reconhecimento do efeito do stress dos contextos
alargados sobre os microssistemas salienta a necessidade de analisar os processos de resiliência
familiar culturalmente relevantes desenvolvidos em Moçambique e os mecanismos através dos
quais estes podem ser potenciados pelo contexto. Seria fundamental aprofundar as linhas
preventivas sinalizadas pelos psicólogos para criar um plano detalhado, sistémico e adaptado ao
contexto, podendo recorrer-se a metodologias participativas de investigação-ação que envolvessem
direta e ativamente os intervenientes dos sistemas de experiência e intervenção na adversidade (e.g.,
através de focus group, que permitissem a colaboração entre diferentes psicólogos, membros das
comunidades e equipas multidisciplinares, identificadas como essenciais à prevenção).
No âmbito das implicações para a investigação, ainda as EAI contem com vasta literatura
no mundo ocidental, dadas as relações identificadas entre características culturais de Moçambique
e as EAI e a natureza social construcionista dos processos psicológicos (Gregen, 1985), esta
investigação contribui para ressalvar a necessidade de aprofundar o conhecimento científico sobre
o tema em Moçambique; particularmente, derivada das perceções dos psicólogos sobre a sua
associação à diminuição do bem-estar e ajustamento. Os resultados suportam a importância de
considerar as características culturais dos contextos no estudo das EAI, identificando o seu papel
na determinação e perpetuação de contextos de adversidade que não pode ser negligenciado.
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ANEXOS
Anexo A: Guião de entrevista semiestruturada
6. Intervenção • Recolher informação Que modelos e estratégias terapêuticas tem usado no atendimento a
terapêutica sobre abordagens pacientes com psicopatologias derivadas da vivência de adversidade na
terapêuticas e estratégias infância?
utilizadas em função de
diferentes EAIA; duração Qual tem sido a duração média da intervenção em pacientes que
média ou mais frequente vivenciaram adversidade infantil, tendo em conta a idade, sexo,
dos processos escolaridade e condição social?
terapêuticos;
• Identificar sinais de Se um colega sem experiência clínica nesta área das experiências
evolução positiva adversas vividas na infância lhe pedisse conselhos sobre como agir em
processos terapêuticos com crianças, quais as principais
recomendações que daria?