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Dedico estas histórias da Hora Morta primeiramente à musa sombria que me acompanha
nestas histórias vindas de lugares distantes. Em segundo a todos aqueles que de alguma
maneira me incentivaram durante o processo de criação/escrita desse volume. E
especialmente para você

Renata!!! Com amor

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Não se joga com a morte
I

Damasco, a mais bela cidade do oriente, seu perfume, seu sabor; suas ruas
povoadas por tamareiras embelezam as vias e fazem da vista de visitantes e habitantes
um belo matiz de cores e sabores nunca vistos em nenhum outro lugar do mundo;
Damasco era a joia do oriente, o orgulho do império, erguida para a glória de Allah o
justo e misericordioso, não havia ali sofrimento, não havia ali dor e desalento, era uma
bela cidade, seus palácios, mesquitas, jardins retratavam a beleza e o mistério do
oriente, todos ali eram felizes, até mesmo os habitantes da baixa Damasco, nas pobres
ruelas onde os menos afortunados se amontoavam, mesmo ali todos eram felizes e
bendiziam Allah por poderem morar na Joia do Oriente, mas mesmo a mais fina e rara
cidade do império é visitada pela morte, e hoje mais uma vez ela chega, trajando o
manto escuro como a noite e trazendo junto de si o frio hálito de mistérios insondáveis,
seu olhar traz uma sabedoria profunda reservada somente a Allah, ou talvez nem mesmo
ele não tenha o conhecimento que a Dama de Negro traz em seu olhar profundo, com
sua voz anciã, ela chama pelo seu convidado:

“Hassan, é chegado o momento, teve seu quinhão de vida neste mundo e agora é
chegada a hora de iniciar jornada em outras paragens, sob as bençãos de Allah o justo e
misericordioso, vem segura minha mão e segue-me...”.

Hassan ib Haqin, um morador das ruas de Damasco, mas não da bela e


perfumada Joia do Oriente, Hassan morava nas ruelas da baixa cidade, a pobre e
desafortunada. Vagava pelas ruelas em busca de comida e dinheiro, sempre reclamando
de sua sorte, amaldiçoando a tudo e a todos que, a seu ver, eram mais afortunados que
ele; Hassan era o mais infeliz dos homens do mundo e ele sempre culpava a todos de
sua infortuna vida e quando a Dama de Negro chegou Hassan, deitado nas sarjetas das
sujas ruelas da baixa Damasco, chorou pela última vez seu triste destino.

“Pobre de mim, o mais desafortunado dos homens viventes sob o céu de Allah o
bondoso pai, não fiz fortuna, não tive belas damas a deitarem em meu leito, não leguei
ao mundo, filhos, e tu agora vens, ceifa minha vida e leva-me como um trapo imundo
que deve ser escondido, tivesse eu mais dez anos, ahhh se a fortuna me sorrisse, mas é
tarde e tu oh Dama trajando o Negro, vens ceifar-me a pobre existência, maldita sejas
tu, maldito sejas Allah o justo e misericordioso”.

Ela ouve as queixas sem se alterar, afinal as queixas são as mesmas em qualquer
parte que ela vá, em qualquer parte do universo, mas a Dama é caprichosa, e algumas
vezes ela gosta de jogar, um jogo que quebra sua rotina de divisora entre a vida e a
morte, e hoje ela jogaria com Hassan.

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“És um pobre desgraçado, choras que jamais teve sorte e que tudo lhe foi
negado, apiedei-me de ti, dar-te ei teus dez anos, terás tudo aquilo que desejas e findo
estes dez anos virei te buscar Hassan ib Haqin, até lá viva uma boa vida, deixe seu
legado ao mundo e tenha boa fortuna...”

Então ela se vai, um frio vento sopra em sua passagem, e Hassan atordoado vê a
ceifadora adentrando a escuridão e desaparecendo rumo às pradarias que só os mortos e
os corajosos visitam.

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II

Os anos sorriram para Hassan, a fortuna o visitou e deu-lhe bons frutos,


ergueu um império comercial que de Damasco percorria toda rota da seda até o extremo
oriente, onde o povo adorava a outros deuses, ele comerciava também com o pálido
povo adorador de um filho de carpinteiro e esse comércio proporcionou-lhe fortuna e
luxos reservados apenas ao califa, seu harém fazia inveja a muitos sultões e seu palácio
era quase tão grandioso quanto o do imperador, Hassan ib Haqin, não mais maldizia a
sorte, ele conquistara tudo o que ele tinha direito, filhos, belas esposas, grandes palácios
e todo poder que o ouro poderia comprar, mas um funesto pensamento o assaltava a
mente, seu prazo estava findo, dia mais dia menos a Dama viria buscá-lo, era este o
trato e ela havia cumprido sua parte, mas Hassan não desejava morrer, havia ainda
muito a se fazer, muito a ser conquistado, muito ouro a ganhar, muitas mulheres a amar
e em sua mente começou a arquitetar um plano para enganar a Dama de Negro e pôs seu
plano em prática

“Bashir meu filho, o mais dócil e sábio dentre os rebentos que tive, virá esta
noite a procurar-me uma Dama, ela dirá que tenho negócios inacabados com ela, uma
divida antiga que ainda não estou pronto para saldar, diga a esta Dama que negócios
urgentes reclamaram minha presença no extremo oriente e que não sabes quando irei
retornar, mas dê a ela tudo que ela lhe pedir, parto hoje a noite rumo à Riad, mas Bashir
meu filho não diga a Dama meu destino, apenas que parti em uma longa viagem rumo
ao extremo oriente e quando retornar eu a procuro.”

E partiu, o plano era simples, ele iria para Riad e deixaria seu filho no seu lugar,
ofereceria seu filho à Dama como um sacrifício, talvez ela se contentasse com o jovem,
deixando-o em paz por mais alguns anos, sem remorso algum Hassan deu
prosseguimento com seu plano, filhos ele teria mais, sua vida não; e assim partiu rumo à
Riad.

Caiu a noite e com ela chegou a Dama trajando o negro, ela chega trazendo
ventos gélidos que arrepiam a pele daqueles que o sentem, ela viera buscar Hassan, e
adentrou no palácio dele, procurando-o, mas encontrou apenas seu jovem e belo filho, o
bondoso e doce Bashir.

“Meu jovem, venho de distantes terras e há muito caminho, busco pelo seu pai,
tenho com ele negócios inacabados, antigos negócios firmados antes de sua vinda ao
mundo de Allah, mas hoje finda-se o prazo e vim cobrar-lhe a dívida, poderia meu dócil
Bashir, fazer a gentileza de chamar vosso pai?”

Por mais que não saibamos quem é, quando a Dama de Negro se aproxima, um
sentido natural nos desperta e identificamos sua presença e qual a sua intenção, Bashir
ao ouvir a voz profunda e olhar naqueles olhos carregados de visões de todos os seres
que já viveram neste mundo, soube quem era a Dama e com todo respeito que lhe era
devido e com certo temor lhe disse:

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“Saiba ó grandiosa Dama, negócios urgentes solicitaram a presença de meu pai
em paragens distantes no extremo oriente, não sei para quais lugares ele se dirigiu e nem
qual será o dia de seu retorno, mas ele deixou-me a cargo de satisfazer todos os vossos
desejos e orientou-me a dar-lhe o que a senhora desejar...”.

Um olhar de misericórdia e de desencanto despontou na ceifadora e ela com sua


voz profunda e sábia dirigiu-se ao jovem e dócil Bashir:

“És jovem e tens uma bela alma meu jovem, serás um homem tocado pela
fortuna e dela saberá tirar proveitoso deleite, terás uma bela jornada e quando for tua
vez de empreender a última jornada, um bom lugar estará reservado a ti, tem bom
coração, és puro e não foi tocado pela maldade e iniquidade deste mundo, serás dela
preservado e terás uma longa e fortuita vida, mas devo agora me desculpar meu jovem,
já sou muito velha e as vezes a memória me falha, acabo de me lembrar que marquei
compromisso com vosso pai não aqui em Damasco e sim no seu destino em Riad, vou
rumar para lá e encontrá-lo ei, adeus meu jovem e que os ventos da fortuna e as bênçãos
de Allah o justo e misericordioso lhe cubram de alegrias”.

E partiu, deixando o jovem Bashir olhando-a cruzar o horizonte, indo de


encontro ao seu pai, que ele soube neste momento que não mais tornaria a vê-lo com
vida.

Nós que aqui estamos por vós esperamos

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É chegada a Hora Morta, a hora do meu desespero, a escuridão se faz
presente e palpável, quase palatável. Sinto a dor e a opressão se aproximando, e
antevejo mais uma história macabra surgindo ante meus olhos estupefatos.

“Nós que aqui estamos por vós esperamos”, não sei aonde eu vi ou ouvi esta
estranha frase, não me lembro sequer se foi em um sonho ou em algum filme que eu
havia visto, ela surgiu em minha mente como um rompante e tem me atormentado desde
então.

Alguns conhecidos meus chegaram e me dizer que esta frase está gravada em
um portão de um antigo cemitério nos arredores de Londres, outros me disseram que
pode ser fruto de minha própria imaginação e que eu não deveria gastar minhas energias
nisso. Mas o fato é que junto a estes bizarros dizeres várias imagens surgem em minha
cabeça, são visões aterradoras e negras e isto tem feito com que eu perca minhas noites
de sono, que já são bastante agitadas, com macabras imagens de campos devastados e
seres desformes vagando por este mesmo campo.

Não há nada que eu possa usar para fazer um paralelo com o que vejo, nem
mesmo os mais horrendos locais de batalhas das guerras de outrora chegam aos pés do
que me é apresentado nesta projeção de minha mente. E junto dela, a estranha frase, que
dita por vozes incorpóreas, surge em minha cabeça. Isto chegou ao ponto de prejudicar
minhas funções corriqueiras o que me levou a realizar por minha própria conta uma
investigação. Utilizei como ponto de partida a pista que me foi dada por um amigo que
me disse que esta frase se encontrava gravada em um antigo cemitério nos arredores de
Londres. E tão logo consegui organizar meus negócios embarquei para a velha capital
inglesa em busca de uma explicação para o que estava me perturbando.

Não foi nada fácil encontrar informações sobre o velho cemitério, todos os guias
turísticos e bibliotecas pareciam desconhecer a existência de algum Campo Santo na
cidade que possuía gravado em seus portões a estranha frase. Excursionei por todos as
Necrópoles da cidade, mas em nenhuma encontrei o que procurava e já estava quase
desistindo de minha busca, quando um estranho homem, apareceu diante de mim
dizendo que tinha a resposta para minha busca. Inicialmente não confiei muito naquele
estranho homenzinho franzino, mas havia algo em seu olhar que me fez mudar de ideia
e resolvi encontrá-lo no horário e local estabelecido por ele. O local, uma região de
Londres mal frequentada e bastante perigosa mesmo durante o dia era ainda mais
inseguro nas altas horas da noite escura, mas não fui incomodado por nenhum dos
bêbados ou prostitutas que infestavam as ruas e becos imundos daquele lugar infecto,
chego a arriscar que eles nem mesmo pareciam notar minha presença ali junto a eles.

Mas ali naquele lugar, estranhamente eu me sentia em “casa” aquilo me era


familiar e até mesmo chagava a me atrair, dirigi-me ao local que o homenzinho havia
marcado comigo e lá chegando percebi que o mesmo não se encontrava ali,
decepcionado e um pouco bravo comigo mesmo, pela minha ingenuidade em acreditar

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em alguém que não conhecia, já estava indo embora quando ele apareceu. Não era mais
o franzino homem de meia idade que eu vira anteriormente, agora era um homem de
grande compleição física, olhos negros e voz cavernosa, trazia junto de si um estranho
artefato que de início não pude distinguir o que era. Desnecessário dizer que aquilo me
perturbou bastante, mas eu já estava ali e iria arriscar, o homem se aproximou de mim
dizendo que tinha as respostas para o que eu procurava e pediu que eu o seguisse sem
questionamentos ou medo, nada ali poderia me ferir se eu ficasse ao seu lado.

Entramos por um beco escuro e lamacento, até mesmo os habitantes daquele


lugar fétido pareciam evitar o lugar, a luz não parecia penetrar ali e nem mesmo o som
era ouvido. Não era um beco longo, ou, pelo menos, parecia, meu desconhecido guia ia
a frente silente, e alheio aquela escuridão que permeava a ruela, ele apenas se limitava a
olhar para trás para verificar se eu o estava seguindo e quando ele constatava que sim,
esboçava um sorriso e seguia adiante. As coisas começaram a ficar estranhas, ou mais
estranhas se assim preferirem, quando no final do escuro beco deparamos com um
pesado portão de ferro, era um grande portão já carcomido pelo tempo, tomado pela
ferrugem e no alto lia-se a tão famigerada inscrição. Não é preciso dizer o quão
admirado e estupefato eu fiquei diante do que estava vendo – “Então realmente existe!”
– pensei. Eu estava diante daquilo que estava me consumindo haviam meses, e ao ver
tal frase tive uma estranha sensação de que eu já a havia visto, tive a impressão de que
eu já estive neste lugar, seja lá qual lugar era.

O homem, retirou do estranho objeto que ele carregava uma chave tão antiga
quanto o portão, abriu e me deu passagem. Disse que só poderia me acompanhar até ali,
ele era apenas o porteiro, e que a partir daquele ponto eu estaria só em minha busca.
Fiquei apreensivo no início, mas o medo foi sendo aos poucos substituído por uma
curiosidade que impelia-me a entrar em estranho e desconhecido lugar. Tão logo
adentrei o cemitério o pesado portão atrás de mim foi fechado e a escuridão foi
substituída por uma pálida luz, esta luz emanava de um sol vermelho sangue, mal dava
para ver o caminho que estava a minha frente, mas segui adiante.

Era uma Necrópole esplendorosa, os túmulos e jazigos eram belos e antigos,


nunca tinha visto nada semelhante em nenhum cemitério que visitara anteriormente, as
estátuas pareciam vivas – as vezes chego a suspeitar que estavam mesmo vivas – A luz
pálida do sol vermelho emprestava ao local um aspecto ao mesmo tempo lúgubre e belo,
e eu me sentia em casa ali. Comecei a caminhar a esmo pelo lugar, a princípio apenas
observando com interesse alguma lápide ou túmulo, outras demorando-me na análise de
alguma estátua. Elas eram horríveis se vistas de perto, anjos distorcidos, rostos pútridos
feições de sofrimento e pesar, mas eu não me sentia desconfortável, eu sentia-me
familiarizado com aquilo que estava testemunhando.

Após um tempo que não pude marcar, analisando as estátuas, túmulos, minha
atenção foi atraída para um caminho ainda mais misterioso, parecia me levar ao centro
da Necrópole. A luz que era pálida, ali se mostrava ainda mais opaca e quase extingue,
nem mesmo a luz da lamparina que o homem me emprestara parecia iluminar os meus

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passos. Não sei por quanto tempo caminhei naquele lugar o tempo não tinha a mínima
importância e quando cheguei ao centro do imenso cemitério eu tive o vislumbre
daquilo que mudou tudo que eu acreditava. As vezes chego a estremecer quando me
lembro do que vi e senti, as vezes até mesmo tento negar a experiência pela qual passei,
mas as evidências não deixam dúvidas, e sei que por mais estranhas e macabras possam
parecer, aquilo que vivi foi real e me atormenta até hoje, já no fim da vida.

Quando me deparei no que parecia ser o centro do cemitério, um coro de


pessoas, se é que posso chamar aquilo de pessoas, entoava apenas a frase que me era
familiar, todos ali pareciam alheios a minha presença e nada parecia perturba-los
naquele coro estranho, enquanto alguns entoavam ininterruptamente os dizeres outros
dançavam uma estranha dança, homens e mulheres trajando farrapos velhos e sujos,
alguns copulavam, outros se mutilavam e se agrediam, outros choravam e gritavam em
desespero. Fiquei observando aquela cena dantesca não sei por quanto tempo, eu estava
ao mesmo tempo hipnotizado e enojado com o que via, mas não era capaz de sair
daquele lugar, eu estava preso.

Comecei a temer por minha vida, se é que eu ainda estava vivo, mas nada
poderia me tirar daquele torpor que tomava conta de minha alma de meu ser. No meio
daquela dança macabra, no meio daquele festim maldito, uma bela Dama surgiu, ela
trajava uma túnica tão negra quanto a noite, talvez mais escura, ela saiu do meio
daquela assembleia e se dirigiu a mim, ela era a única que dava conta de minha presença
ali e parecia contente. Ela se aproximou e tirou sua túnica exibindo seu corpo escultural,
com suas frias mãos tirou minhas roupas e ali mesmo naquele chão sujo nos amamos.
Eu nunca havia tido uma mulher como aquela, fui transportado em êxtase a lugares
jamais sonhados por ninguém e no momento do gozo, mesmo tomado por um fogo
ardente que consumia minha alma eu vislumbrei o imenso campo de batalha de meus
sonhos.

Vi as almas torturadas e que pediam por uma clemencia que jamais alcançariam,
vi os algozes que se regozijavam torturando as pobres vítimas, vi a bela Dama sentada
em um trono de ossos distorcidos observando tudo, tinha em seu olhar alguma coisa de
satisfação. Em meu êxtase vi também que eu estava ao seu lado, eu via tudo e também
me satisfazia, fui tomado por uma sensação de prazer e desespero ao mesmo tempo.
Não estava suportando mais aquelas visões e com um grito que espantaria até mesmo as
Banshees irlandesas eu me libertei daquela visão macabra.

Não havia coro, não havia Dama de Negro, não havia sequer cemitério, eu
estava encolhido em um beco sujo e pútrido de uma região desconhecida de Londres,
atordoado eu segui em direção ao hotel que estava hospedado e lá me dei conta que
estive ausente por quinze longos dias. Paguei a conta e fui embora.

Já se passaram anos desde esta experiência macabra que tive, a princípio eu


disse a mim mesmo que aquilo tudo fora fruto de alguma droga que me fora dada, ou de
algum delírio ou febre. Mas a terrível verdade veio à tona quando notei uma pequena

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marca em meu antebraço direito, uma ampulheta e uma foice pequenas quase
imperceptíveis e que ao serem tocadas davam me um desconforto imenso. Até hoje,
depois de anos dessa macabra experiência, eu ouço também o coro dizendo “Nós que
aqui estamos por vós esperamos” e estremeço de prazer e medo ao me lembrar do
êxtase que senti ao amar a misteriosa Dama de Negro...

A Estrada

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Eu caminhava pela estrada, não havia ninguém ali naquela hora da noite apenas
eu e meus pensamentos profundos. A pouca iluminação oferecida pelos postes mal
bastava para clarear o caminho e a lua em sua fase minguante também não contribuía.
Imerso em meus pensamentos segui pela estrada escura rumo não sei para onde, para
dizer a verdade não sei como fui parar nessa estrada. A última coisa que me lembro foi
do funeral de minha esposa, minha amada esposa...

Mal pude acreditar quando recebi a ligação tarde da noite, era um policial, sua voz
estava carregada de pesar, foi ele que me deu a notícia da morte de minha mulher. Ela
retornava para casa depois de um dia intenso de trabalho. Seu carro capotou na estrada
molhada, diversas vezes indo parar em uma ribanceira, ela não sobreviveu. Minutos
depois eu estava no local do acidente, não pude vê-la, os policiais me impediram, eles
disseram que foi terrível demais...

O velório foi carregado de tristeza, minha sogra, apesar de não demonstrar,


culpava-me pelo acontecido, era evidente em seu olhar carregado de rancor e ódio pela
minha presença ali, os poucos amigos que tínhamos, todos presentes, demonstravam
seus respeitos e pesar frente ao meu sofrimento. E eu apenas queria dar o fora dali o
mais rápido possível, a morte sempre foi algo que me incomoda, eu não sei lidar muito
bem com o fim da vida, não sei lidar com perdas.

Após o enterro, permaneci junto ao túmulo de Anna me perguntando o porquê


daquilo tudo, mas não havia respostas, apenas o vento frio do inverno e uma chuva fina
que me faziam companhia. Como não encontrava respostas fui embora, foi nesse
momento que em encontrei nessa estrada escura e deserta.

A chuva, antes fina agora aumentava, e grossos pingos caiam misturando-se com
minhas lágrimas que também caiam grossas, mas não eram lágrimas de desalento, sim
de raiva e medo, raiva por Anna ter me abandonado e medo por não me lembrar de seu
rosto lindo e alegre e nem de seu sorriso contagiante – como isso podia acontecer? Não
fazia nem um dia que eu a vi sorrindo para mim, e agora eu não conseguia me lembrar
de seu rosto? – Eu não compreendia.

Eu prosseguia pela estrada, a chuva caindo pesada em meus ombros, o frio


gelando meus ossos, a escuridão como única parceira e meus pensamentos como algoz.
O caminho era longo eu não sabia para onde estava indo, eu apenas seguia adiante rumo
a um destino incógnito. Quando eu estava imerso em meus mais profundos
pensamentos, preso a considerações sobre o que fazer dali adiante, surge a minha frente
minha amada esposa, ela estava bela, usava o mesmo vestido de nosso casamento, seu
sorriso iluminava o sombrio caminho que eu percorria, mal contive o meu espanto, era
um misto de medo e alegria, afinal Anna retornara, ela estava ali junto a mim e eu não
deixaria que nada mais nos separasse, nem mesmo a morte. Havia em seu olhar uma
tristeza que não pude compreender, ela olhava para mim, mas aparentemente não me

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enxergava, eu a ouvia me chamar, mas ela não percebia minha presença e então da
maneira que ela apareceu foi se, deixando-me novamente só...

Despertei horas depois sobre o túmulo de Anna, o zelador do cemitério me


despertou, achando que eu era um ladrão de corpos me tratou rudemente, mas depois
que percebeu quem eu era acompanhou-me até os portões do pequeno lugar. Sem mais
nada a fazer ali fui embora para nossa, agora minha casa.

Quase pude ver Anna em casa, cuidando do jardim que tanto amava, ou fazendo o
jantar, eu a via em cada canto do ambiente, não suportaria ficar ali, não sem Anna, mas
eu estava cansado demais para tomar alguma decisão e logo adormeci.

Novamente eu estava na sombria estrada, mas diferente de minha visita anterior


agora a estrada não estava vazia, era percorrida por milhares de criaturas grotescas, uns
sem rostos, outros com seus olhos e bocas toscamente costurados, outros ainda unidos
em uma cópula sinistra, o cheiro de sangue a carne putrefatas dominavam o ambiente,
gritos e lamúrios eram ouvidos a todo momento. Essas criaturas pareciam seguir o
mesmo rumo que eu; cada uma delas imersa em seus tormentos e não pareciam notar
minha presença entre eles, ou talvez – esse pensamento me encheu de asco e medo –
elas também me vissem como eu as enxergava, uma criatura grotesca, sem rosto, com a
boca e olhos costurados, preso a outro corpo como siameses...

Anna estava lá, mas não era minha amada, era uma daquelas criaturas
repugnantes, atada a outro corpo da cintura para baixo em uma cópula infernal, seus
seios, antes belos, a mostra, e de sua boca saiam vermes e outras coisas nojentas, junto
às coisas repugnantes que brotavam de sua boca eu ouvia meu nome sendo sussurrado
em um misto de luxúria e dor, ela clamava por perdão e salvação. A dor que surgia em
meu peito a ver essa cena grotesca tomava conta de meu ser, Não pode ser minha Anna,
não minha amada, não ela...

Perdido eu dei as costas àquela que amei durante muito tempo e segui pela estrada
escura povoada de seres em estado de putrefação, cegos e perdidos, como eu. Acordei
banhado em suor e lágrimas brotavam de meus olhos, a lembrança era vívida e aquela
imagem de Anna atada a outro corpo em uma luxúria desenfreada persegue-me até os
dias de hoje. Volta e meia ainda me pego perambulando por aquele caminho nefasto,
hora povoado das criaturas nojentas, hora vazio e frio como o ártico, mas apenas uma
coisa não muda, a total ausência de luz e esperança. Temo ser aquele lugar, aquela
estrada maldita o meu destino final, o lugar que estarei condenado a vagar por toda a
eternidade sendo torturado com visões de minha amada e com pensamentos nefastos.
Espero por este dia como uma criança espera pelo dia de Natal, ansioso por abrir os
presentes na árvore, mas no meu caso já sei qual será meu presente. A dor e a escuridão,
minhas únicas companheiras nesta minha vida de tormentos e dor.

O Último Vislumbre
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A noite já vai ao longo, a hora morta chega e a escuridão se aproxima, sou
tomado por terríveis sensações, de desconforto, de confusão, de dor, desespero e
desolação. O medo toma posse de mim e sou levado a um lugar desconhecido tomado
que pelo desespero. Sinto que mais uma história se aproxima, mais uma psicografia que
atormentará minh’alma já atormentada, pego a pena e o papel e começo a escrever.

Acordo, uma dor lancinante toma conta de minha cabeça dou poucos e
vacilantes passos e logo dou de cara com o chão, giro meu corpo no chão frio tentando
me habituar com a escuridão. A escuridão é muito intensa e mal consigo enxergar
minhas mãos em frente de meus olhos, o chão é úmido, e um frio sepulcral preenche
todo o ambiente. Não faço a mínima ideia de onde eu possa estar e nem sei como
cheguei e este lugar. A última coisa que me lembro é que estava voltando para minha
casa após um exaustivo dia de trabalho, lembro me que estava passando por uma
pequena praça, mal iluminada por sinal, e depois tudo se apagou e despertei aqui – seja
lá onde for este aqui.

Levanto-me novamente, a dor retorna e vacilo, novamente ao chão, estou


começando a achar que levei uma forte pancada na cabeça ou que talvez ainda esteja
sob o efeito de alguma droga, resolvo não me levantar de novo e engatinhando começo
a “explorar” o recinto que estou, pude perceber que é um cômodo pequeno, não deve ter
menos que dois metros, tateando pude perceber uma cama, um vaso sanitário e bem à
frente da cama uma porta de metal, passei alguns minutos esmurrando essa porta, mas
sem nenhum resultado, nem mesmo o som de passos ou algo parecido. O desespero
toma conta de mim, e pensamentos ruins tomam conta. – Fui sequestrada. O que os
meus captores querem com uma simples estagiária de jornalismo? Mal tenho dinheiro
para me manter, ainda mais para pagar o resgate. – Minha cabeça começou a latejar
novamente, rastejo-me para a cama e com muita dificuldade deito-me nela, não quero
pensar em nada mais, a dor é excruciante. Tudo se apaga novamente.

Desperto não sei quanto tempo depois, tive a vaga esperança de que tudo não
passasse de um pesadelo, mas para minha decepção tudo está na mesma, com uma única
exceção, consigo ver algumas coisas agora, vultos, mas são meus olhos se acostumando
com a escuridão, bem à minha frente, em direção à porta, noto que há algo de diferente,
engatinho até lá, não me arrisco a levantar, ainda temo dar de cara novamente com o
chão. Chego até a porta e percebo um pequeno prato com algo que parece ser pão e uma
garrafa de água, devoro todo aquele pão ali mesmo, nem sequer me importo com o
gosto mofado, assim como devorei o pequeno pedaço de pão, seco a garrafa de água.
Estive tão preocupada com minha situação que mal pude perceber o quanto estava
faminta. Deixo o prato com a garrafa ali mesmo e tento enxergar alguma coisa pela
pequena fresta da porta, mas a escuridão é igualmente aterradora do lado de fora.
Engatinho para a cama novamente, nada me resta a não ser deitar-me e esperar pelo meu
destino seja lá qual for.

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Desperto assustada com um grito que acabei de ouvir, ainda confusa, não
consegui saber se era do meu sonho ou se realmente ouvira este grito pavoroso. Será
que há mais alguém na mesma situação que eu? Ouço passos vindo em direção ao meu
quarto – se é que posso chamar isso daqui de quarto. – Uma pequena portinhola se abre
e por ela são colocadas mais um prato com pão e uma outra garrafa de água, pergunto
aonde estou e quem são os meus captores, mas não obtenho resposta, com a pouca luz
que entrou pela portinhola pude notar que o chão é de pedra cinzenta, mas a pouca luz
que entrou não me permitiu ver mais nenhum detalhe. Arrisco-me a ficar de pé, a
tontura passou, e com passos ainda um pouco cambaleantes vou até a comida,
novamente devoro o pão e bebo a água. Enquanto estava comento ouço novos passos e
um choro, mais de uma pessoa estava passando em frente à minha cela, o choro e os
passos se distanciam. Desamparada retorno para minha cama.

Um grito me desperta, um grito de horror, assustada demais para levantar apenas


abro os olhos e fico olhando para a escuridão – mas afinal, o que está acontecendo? –
Ouço mais passos, dessa vez param em frente à minha cela, será que meu destino
chegou, a pequena portinhola se abre e por ela vejo um prato com pão e uma garrafa de
água serem introduzidas dentro de minha cela, a portinhola não se fecha, rastejo-me até
lá na esperança de ver o rosto de meus carcereiros, mas nada vejo, apenas um corredor
de pedra e mal iluminado, escuto mais choros e gritos de socorro, não sou a única a
estar presa neste inferno. Como o pão e bebo a água ali mesmo, olhando para aquela
portinhola aberta, meu único contato com o exterior deste cárcere escuro. Uma estranha
luz se aproxima, é fraca a princípio, mas vai se tornando mais forte a medida que se
aproxima, tem uma cor estranha, é azul esverdeada, não emite muito brilho e não parece
que ninguém a porta. Quando essa luz passa pela minha cela me escondo, temo que o
que a carrega perceba que a portinhola está aberta e que eu estou espionando.

Uma cela próxima a minha é aberta, escuto um choro tímido e um fraco pedido de
socorro, a luz está voltando. MEU DEUS, QUE COISA HORRÍVEL, à medida que a
luz ia se aproximando de minha prisão, pude perceber que aquilo estava carregando uma
outra garota, devia ter mais ou menos minha idade, ela estava desmaiada, ou pelo menos
parecia estar, quando passou por mim, pude ver que ela estava pálida, terrivelmente
pálida, como se todo sangue tivesse sido extraído dela, era a luz que a levava para um
lugar desconhecido, não sei se foi de propósito ou não, mas a coisa iluminada se deteve
por breves momentos em frente à minha cela talvez para que eu visse sua forma. Não
tenho palavras para descrever o que vi. – Para falar a verdade nem sei por que estou
escrevendo isso em papel higiênico com um pedaço de carvão que encontrei na sala,
ninguém vai encontrar isso. – A luz azul-esverdeada se tornou um imenso globo,
disforme inicialmente, mas depois foi se convertendo em uma forma grotesca, meio
humanoide, porém no lugar de braços havia tentáculos e os olhos eram negros como o
mais profundo abismo. Tive a impressão de que aquilo olhou para mim e sorriu. Seja o
que for aquilo, meu destino será o mesmo da pobre garota que estava nos “braços”
daquela criatura. Impotente fui novamente para minha cama, esperar pelo meu fim que
não seria nada agradável.

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Adormeci não sei por quanto tempo, só sei que quando acordei, havia duas
garrafas cheias de água mais uma que pelo cheiro identifiquei como vinho e alguns pães
com um pedaço de carne, apesar da fome não me arrisquei a comer a carne, mas devorei
os pães e bebi toda a garrafa de vinho e deixei a água de lado. Embora minha
consciência dizia que eu não me embebedasse e me mantivesse alerta ignorei essa
intuição. Maldita intuição que nunca erra, minutos após ter “secado” a garrafa de vinho
a minha cabeça começou a rodar e perdi os sentidos.

Uma luz intensa me trouxe de volta do mundo dos sonhos, uma terrível dor de
cabeça me atormentava, estava sentada em uma cadeira, nua e amordaçada, era uma
cadeira de metal desconfortável, a luz incidia diretamente sobre meus olhos fazendo
com que eu não pudesse ver nada que estava a minha volta, mas mesmo assim eu
percebia que não estava só, havia mais alguém ou algo ali comigo, me observando, eu
podia ouvir sua respiração ruidosa. Não sei por quanto tempo permaneci ali, sei que em
um determinado momento tudo se apagou novamente e despertei em minha cela ainda
nua, eu estava no chão rastejei-me até minha cama e me deitei, somente depois de
algum tempo percebi que havia uma túnica para que eu pudesse me vestir.

Mais gritos e mais choros vindos do corredor, vejo o reflexo da luz verde
pairando, ouço um fraco lamento pedindo por misericórdia. O desespero toma conta de
mim, o que fizeram comigo nos momentos em que estava inconsciente? Qual o destino
dessas outras pessoas que eu percebo passando pelo corredor? O que é essa luz verde?
Sem respostas e desesperada adormeci. Juro ter ouvido aquela respiração ofegante sobre
mim, e também senti o peso de algo ou alguém sobe o meu corpo, uma dor lancinante
me tirou de meu sono. A porta de minha cela estava aberta, mas eu não me atrevi a me
levantar de minha cama, a dor em meu corpo era demais, então fiquei ali deitada
olhando para a escuridão daquele corredor, a minha salvação estava ali bem a minha
frente, mas eu não me arriscava a me levantar e dar o fora dali, e se fosse uma
armadilha, se houvesse alguém esperando para ver o que eu faria, não iria dar o
gostinho de vitória aos meus captores, se eles quisessem que viessem aqui e me
matassem.

O tempo passa devagar quando não estamos fazendo nada ou quando estamos em
uma situação que não nos agrada. Naquela escuridão a única coisa que me restava eram
minhas lembranças, de meus pais, meus amigos, meu amado – Deus eu jamais os veria
novamente. – Estariam eles procurando por mim? Há quanto tempo sumi? Voltarei a vê-
los? Imersa nesses pensamentos comecei a chorar descontroladamente, uma dor
lancinante e um peso oprimiam meu peito, eu não conseguia respirar. Não sei se foi o
desespero ou se era algo real, a luz verde que antes eu apenas via de relance passando
pelo corredor estava entrando em meu quarto, não tinha forma era apenas um globo de
luz esverdeada, aquilo estava vindo diretamente para mim, e eu como se aceitasse meu
destino apenas abracei meus joelhos e fiquei esperando pelo inevitável, apaguei.

O sol batia na minha cara, ouvia o canto dos pássaros e ao longe carros passando
por alguma rodovia, desnorteada eu me levantei, mas logo fui ao chão novamente,

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estava vestida apenas com a túnica que encontrei em minha cela, nenhum sinal de meus
captores ou do que era aquela luz esverdeada. Aos poucos fui me acostumando com a
luz do sol e seu calor acalentador, levantei-me vagarosamente e segui em direção ao
barulho dos carros, iria pedir uma carona para a cidade mais próxima e dali voltar para
minha casa e tentar esquecer isso tudo. Estava tudo bem, o pesadelo havia terminado,
acho que meus sequestradores não gostaram de mim, ou – algo que me recuso a pensar
– de alguma maneira servi aos propósitos obscuros deles e me libertaram. Cambaleante
sigo em direção à rodovia, ouvindo o barulho dos carros.

Um grito terrível me trouxe de volta à minha cela escura, era apenas um sonho, eu
não havia sido libertada, estou ainda nessa cela fétida e escura como um túmulo, os
gritos e choros estão me enlouquecendo, grito para que se calem, desafio aqueles que
me sequestraram, por que não nos matam de uma vez, qual o propósito mórbido que os
leva a fazer isso? Pela fresta da porta vejo a luz se aproximando, vem em direção a
minha cela, está cada vez mais próxima, ouço novamente aquela respiração ofegante do
meu lado, sinto uma mão fria me tocar, um arrepio percorre meu corpo todo, a porta se
abre, a luz paira na soleira da porta de meu cárcere, ela vem até mim, meu Deus o que é
isso, sinto frio, sinto medo, meu Deus me perdoe...

O bater de suas asas.

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Aproxima-se a hora escura, deitado em meu quarto, insone sou assaltado por
visões de tremendo desespero, o medo e a incerteza tomam conta de meu peito. Sinto o
peso oprimindo meu coração, ouço os gritos de desespero de uma mãe que acabara de
perder seu filho, o choro de um bebê faminto tentando sugar o leito do peito morto e
seco de uma jovem. Vejo meu reflexo em um espelho, mas o que enxergo não é meu
rosto e sim o pesado e sombrio olhar de Desespero. Tomo a pena e me preparo...

Florença – Itália 1472: Tempos difíceis esses, Deos Domine Noster nos pune
tal qual Sodoma e Gomorra, agora somos também punidos pelos pecados que
cometemos. A luxúria e a usura dominaram as ruas da bela cidade. Os homens de bem e
os maus são igualmente punidos, cada qual com o seu quinhão. Os ricos e poderosos há
muito abandoaram a cidade, escondendo-se em seus refúgios abastados certos de que
estarão livres das mãos de Deus. Os poucos abnegados que sobraram pouco ou nada
podem fazer para aplacar a fúria da Morte Negra, por todos os lados se veem corpos
tomados pelas pústulas negras, não há ninguém para recolher estes corpos e dar a eles
um destino cristão. São tempos difíceis!

Logo a minha frente vejo uma mãe desesperada, seus gritos são de cortar o
coração, acabara de perder seu filho e seu marido, restaram apenas ela e sua pequena
filhinha, as autoridades estão lacrando sua casa com todos dentro, a jovem mãe tenta
argumentar com os guardas truculentos, mas os mesmos não a ouvem, ela é arrastada
para dentro da casa junto com sua filha. Seus gritos de desespero são intensos, tento
fazer ouvidos moucos, mas seu lamento é terrível. Um dos guardas a ataca com um forte
soco no estômago, ela arfa e logo em seguida cai impotente, a pobre garotinha por sua
vez chora fracamente, já não tem mais forças, a pobrezinha está tomada pela terrível
doença. Sigo adiante tentando não me envolver, se essa é a vontade de Deus nada posso
fazer.

Junto de mim outro espectador observa impassível, ela não demonstra nenhum
sinal de incomodo ou de compaixão pelo que está acontecendo bem a nossa frente. A
misteriosa Dama se encaminha em direção à pequena casa, nem os guardas e nem a mãe
em prantos parecem notar sua presença, a Bela mulher se dirige a garotinha e a toma em
seus braços. Tudo se silencia, os gritos de dor e desesperança cessam, ouço apenas o
bater de asas e um forte vento, a garotinha não mais chora e de mãos dadas com a
mulher, desaparece por entre uma densa neblina. “Mia figlia!!! Dio mio mia figlia!! Dio
mio, mia figlia.” Os gritos da mãe trazem-me de volta, a casa é lacrada, restando apenas
lá dentro uma pobre mãe junto aos seus que não habitam mais esse mundo de dor e
desesperança. É findo o espetáculo, não há mais nada para se ver neste lugar, sigo
adiante.

De profundis clamavi ad te Domine, in potentia tua liberate nos ex inferis. O


lamento é ouvido em todos os templos erguidos para adorar a Deus, adentro em um

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desses templos. A misteriosa Dama está ali também observando impassível aos cânticos
entoados, ninguém exceto eu parece notar sua presença, talvez seja o negro de suas
vestes, ou a sua atitude discreta que faz com que ela não seja notada, ou talvez ela não
seja membro da casta dos mortais, talvez seja algo muito maior. Uma deusa ou algo
maior que uma deusa. Ela dirige um olhar em minha direção e acena com sua cabeça
dando a entender que estou certo. Uma voz profunda ecoa em minha mente, “Ouça o
cântico dos desesperados, regozijai com a melodia de Desespero e atentai para o bater
das asas e o farfalhar dos ventos. Esses são os tempos de Desespero e ela os clama
para si...” Sua voz é profunda como os abismos e poderosa tal qual a tormenta,
novamente a Dama de Negro se movimenta, segue em direção ao sacerdote que entoa o
De profundis. Ela toca sua fronte e o homem tomba ali mesmo, diante de todos os
presentes, ouço mais uma vez o som de asas e o vento a sussurrar mistérios insondáveis
às almas mortais, a neblina os envolve, eis o fim.

O alvoroço toma conta da pequena igreja, alguns correm para socorrer o


sacerdote, já morto, outros saem em desabalada pelas ruas da cidade, “se Deus não
poupa nem os seus sacerdotes, por que nos pouparia? É o fim, estamos todos
condenados.” Novamente o desespero toma conta, prantos incontidos e preces dirigidas
a um Deus omisso povoam o recinto, não há vivalma que não se abale. Saio daquele
lugar, o espetáculo ali me incomoda. Vago pelas ruas da cidade atordoado, sou tomado
pelo mesmo sentimento de desesperança. Sem rumo ando a esmo pelos becos
lamacentos e tomados por mendigos e ratos. Por todos os lados ouço a música do
Desespero, seu som ecoa em meus ouvidos como o grito de mil Banshees, anunciando
um fim inevitável.

A Dama de Negro se aproxima, sua pele é alva como a neve da manhã, seus olhos
são negros como o mais profundo dos abismos e sua voz assemelha-se ao sussurro dos
ventos invernais. A Bela Dama de Negro traz junto de si a sapiência das eras, não há
nada que possa descrever tamanha beleza sobrenatural. Ela estende suas alvas mãos
dando a entender que deseja que eu a siga. Não ouço o bater de asas, sinto apenas o
toque gélido da mulher linda que está diante de mim, tal qual uma criança deixo-me
conduzir, ninguém parece notar nossa presença, caminhamos lado a lado, adentrando
casas pobres e ricos palácios homem ou mulher alguma nos incomodam, prosseguimos
nessa procissão por um tempo que não saberia precisar. Em cada casa, em cada recinto,
apenas ouço o bater de asas e o farfalhar do vento entoando um cântico negro. Sinto o
toque da Dama, silente ela se aproxima de mim, seu beijo é doce e suave ouço
novamente o bater de suas asas, a neblina nos envolve, “não temas...”.

Londres – Inglaterra 1942: As bombas pararam de cair, Londres está tomada de


sacos de areia e canhões de artilharia antiaérea, nas estações de metro se veem todo tipo
de pessoas buscando abrigo das bombas nazistas, homens, mulheres e crianças usando
máscaras de gás e a todo o momento se ouve as sirenes tocando contribuindo para
aumentar o desespero que toma conta da cidade.

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Uma mãe tenta acalentar seus dois filhos que choram sem parar, ela entoa uma
antiga canção de ninar, mas que não parece surtir efeito. A garotinha segura com suas
pequenas mãos uma boneca e o garotinho sorve o pouco de leite que ainda resta de sua
mamadeira. A jovem mãe dirige um olhar para mim, um misto de pedido de socorro
com vergonha de suas pobres e rotas roupas que usa, paro um minuto diante dela e
ofereço auxílio, dou-lhe as poucas moedas que possuo e digo a ela que compre algo para
seus filhos comerem. Os tempos de guerra são difíceis e a todo o momento ouço o
discurso de nossos líderes falando de sacrifício e luta em prol da liberdade e contra a
tirania.

Adiante um homem bêbado assedia uma jovem, a garota mal consegue se


desvencilhar dos avanços do bêbado, ela grita por socorro, mas as pessoas estão alheias.
Todos mergulhados em seus próprios pensamentos funestos para se preocuparem com
os problemas dos outros. O homem agarra a jovem e a arrasta para um canto escuro da
estação, eu apenas ouço o pranto de dor e desespero da jovem mulher, “tempos de
guerra, tempos difíceis.” Eu poderia fazer algo, mas sigo impassível, sem ser notado.

Novamente as sirenes tocam, o teto sobre a estação treme, mais bombas caem o
barulho de suas explosões se misturam com o choro das crianças, homens e mulheres,
não há mais nada a se ver ali. Sigo para as ruas, enquanto subo os degraus noto a
presença de uma bela mulher, ela veste negro, suas mãos são brancas e delicadas, há
algo em seu olhar que me atrai. A Dama parece notar minha presença e faz um sinal
para que eu a acompanhe, impotente estendo minhas mãos e toco as dela, um toque
gélido e poderoso. Seguimos em direção aos túneis que anteriormente vi o homem
arrastar a jovem para saciar seus desejos carnais nefastos. A garota, que não deve ter
mais que vinte verões, agarra-se ao que restou de suas roupas tentando
desesperadamente cobrir seu corpo franzino ela chora copiosamente. A Dama de Negro
se aproxima da garota, sussurra algo em seus ouvidos, o pranto da jovem cessa. Ouço o
bater de asas, uma neblina envolve a Mulher de Preto e a jovem mulher, um vento
gélido sopra vindo de lugar algum.

“Não temas,” Sua voz soa como uma leve melodia, meu ser é tomado por uma
compreensão profunda. Tomo novamente as mãos da Bela Mulher e caminho com ela,
ninguém no local parece notar nossa presença e sem sermos incomodados, caminhamos
entre o amontoado de pessoas que buscam abrigo na estação. Seguimos adiante, agora
nas escuras e vazias ruas de Londres, apenas os soldados e alguns poucos caminham
apáticos. A Dama me guia pelas ruas da cidade, ela parece saber aonde ir. Adentramos
uma rica casa, o ambiente é de dor e desesperança, um rapaz se agarra a uma velha
senhora em seu leito, o pranto do jovem é intenso, clamando a Deus, pedindo que poupe
sua amada mãe, do lado uma jovem observa o jovem, seu olhar é de desprezo e cobiça.
A velha senhora dirige o olhar à mulher que não demonstra sentimentos. Minha
acompanhante se aproxima da senhora e sussurra algo em seus ouvidos, o semblante da
velha mulher se transforma. Ouço o bater de asas...

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Sinto novamente o toque da Bela Dama de Negro, ela se aproxima de mim, seu
beijo é doce e suave, tal qual o mais fino néctar dos deuses. Ouço o bater de suas asas.
Imagens de uma vida anterior assaltam-me a memória, uma paz se apossa de mim.
“Estou em casa!” Esse último pensamento passa pela minha cabeça. Enfim a paz.

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Incidente em Rio Negro
Percorra qualquer caminho nas Sendas do Destino, e você terá que escolher não
uma mais muitas vezes, os caminhos se bifurcam e se dividem. E nem mesmo o
portador do Velho livro não sabe aonde cada um deles irá lhe levar...

Visões de tempos anteriores à Aurora do Tempo tomam minh’alma já cansada e


atormentada, deuses e daemons em suas assembleias brincam com os destinos humanos
como uma criança brinca com suas bonecas. Há ali um regozijo e um êxtase que domina
meu espírito. É chegada a hora.

Tudo começou na terrível enchente de 1973, a enchente mais rigorosa que os


habitantes da pequena cidade de Rio Negro enfrentaram, jamais havia tido uma cheia
tão rigorosa no pequeno povoado, e os velhos habitantes da região diziam que “as águas
que tomavam conta da cidade eram uma coisa sobrenatural.”

A pequena cidade de Rio Negro, distante 10 km da cidade de Cruz das Almas é


uma pequena vila de pescadores e aposentados, e como toda pequena cidade essa
também tem seus segredos. E um desses segredos, talvez o mais bem guardado, ocorreu
em 1973. Esse segredo mudou todos os habitantes daquele lugarejo e até os dias atuais
pouco se fala sobre os eventos que tomaram parte naquele lugar.

Não fui testemunha direta dos eventos que ali se sucederam, mas tendo contato
com muitos moradores da pequena cidade tive acesso à história, sussurrada entre as
testemunhas com um olhar de temeridade. Os habitantes que vivenciaram os
acontecimentos resistem em narrar os fatos, acho eu que por temerem que o que
aconteceu naquele ano pudesse novamente acontecer, ou como se fosse uma maldição
que é melhor ser esquecida.

Naquele ano de 1973 as chuvas de início de ano foram mais abundantes que os
anos anteriores o que fez com que o rio que dá o nome à cidade enchesse além do
normal isolando a pequena Rio Negro das demais regiões próximas. As autoridades
sejam por incompetência ou negligência pouco puderam fazer para amenizar o
problema dos moradores e Rio Negro ficou completamente sem contato com o mundo
exterior. Neste mesmo ano, as luzes começaram a ser avistadas, inicialmente na
“rotunda” – uma antiga instalação da rede ferroviária. – Essas luzes, inicialmente
avistadas pelos pescadores, eram fortes e seu brilho era anormal. O boato dos
avistamentos se espalhou como “rastilho de pólvora” entre os moradores da pequena
cidade, alguns diziam ser “papo” dos pescadores, que ávidos por histórias, sempre
contavam “lorotas” já outros temiam as histórias e evitavam falar delas. Os mais antigos
moradores de Rio Negro narram que estas luzes sempre foram vistas, mas não com
tamanha intensidade como em 1973.

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Os eventos só começaram a ser levados a sério quando o pároco da cidade, o Sr.
Josué Marcondes, confidenciou ao seu amigo ter testemunhado a luz que o perseguiu
enquanto ele retornava da casa de uma de suas beatas, tarde da noite após o jantar. O
sacerdote retornava à casa paroquial e resolveu “cortar caminho” pela rotunda. O
mesmo contou que ao se aproximar do local, um intenso brilho esverdeado foi visto
dentro da arruinada rotunda. O mesmo curioso com o que poderia acontecer ali resolveu
checar... O pobre homem foi encontrado horas depois vagando pelas margens do rio
balbuciando palavras desconexas, o pouco que se conseguiu entender do que era dito
pelo padre era que Ele havia chegado para punir os homens pelos seus crimes e que
Deus havia abandonado Rio Negro.

Ninguém ousou a perguntar ao velho padre quem poderia ser Ele, e os policiais
locais não encontraram ninguém na região próxima às ruínas da rotunda. Quando a
cidade ficou isolada os eventos se intensificaram, o que antes era visto apenas pelos que
se aventuravam pelas ruas desertas, tarde da noite, passou a ser testemunhado por todos
os moradores da cidade. Após uma forte tempestade, povoada de trovões e relâmpagos
que riscavam o céu negro a luz esverdeada se fez visível a todos os habitantes
apavorados de Rio Negro. Alguns a descreveram como uma bola de fogo imensa, um
brilho intenso e pavoroso dominou toda a cidade e uma forte neblina se formou fazendo
com que todos os habitantes não conseguissem enxergar um palmo a sua frente.

Visões de uma imensa e terrível planície dominaram os moradores. Em seu


vocabulário simples eles me narraram terem visto o Inferno, ou o que eles imaginavam
ser o Inferno. Uma planície dominada corpos espalhados pelo chão, corvos bicavam os
olhos dos mortos deleitando-se com sua sombria refeição, um sol negro pairava sobre o
descampado tornando a cena ainda mais terrível aos olhos das apavoradas testemunhas.
Junto aos corvos, os corpos e ao sol negro, uma sinfonia de vozes e gritos lancinantes
dominavam o cenário. Os moradores da cidade não souberam precisar quanto tempo
permaneceram nesse êxtase macabro, mas disseram que quando a visão cessou todos
estavam tomados de um pavor que não sabiam explicar. Alguns se dirigiram às suas
casas e outros correram em busca de consolo na pequena igreja da cidade, mas o
martírio dos habitantes de Rio Negro estava apenas em seu início. Nada os havia
preparado para o que estava por vir, a outrora pequena e aconchegante igreja da cidade
agora se convertera em uma imensa catedral, que nas palavras daquele povo simples,
assemelhava-se a um grande castelo de pedras negras tomado pelo “barro” e povoado de
criaturas demoníacas. No interior desse “castelo” um coral sinistro entoava lamentos
dolorosos, o coral era regido pelo velho sacerdote.

“Devolvam-me!” Foram essas as palavras que todos ouviram sair dos lábios do
padre. Visões dominaram todos os presentes, seres grandiosos em uma assembleia
observavam enquanto milhares de almas eram torturadas e massacradas em campos de
morte e destruição. “Devolvam-me!” Da mesma maneira que a luz e a neblina se
formaram elas se findaram, as tenebrosas visões, ainda fortemente impressas nas mentes
dos moradores de Rio Negro terminaram também abruptamente, deixando todos
atordoados. Aqueles mais ousados os que se atreveram adentrar o templo profanado não

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se tiveram mais notícias e diante dos olhos espantados de todos habitantes da pequena
cidade, jazia, crucificado, o velho sacerdote agarrado a uma imagem de Nossa Senhora,
seu olhar, agora frio e vazio estampava pavor e dor e de seus lábios emudecidos pela
morte, um grito silente clamando pela sua alma. “Devolvam-me!” O grito ainda foi
ouvido pelos moradores, e ao olharem em direção das ruínas da rotunda, a luz, pairando.
Foi essa avistada antes de desaparecer.

Aquele lugar passou desde então a ser evitado pelos moradores de Rio Negro, e
aqueles que ousam adentrar o arruinado local sentem um desconforto tomar conta de
seu ser, e dizem que se você permanecer em silêncio ainda consegue ouvir o coro
sombrio daqueles que pereceram na fatídica noite de 1973. Confesso que minha visita
àquele lugar deixou-me deveras assombrado. E em noites tempestuosas, quando os
trovões ressoam pode-se ouvir ainda o sombrio grito “Devolvam-me!” E uma luz
esverdeada é avistada.

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Paralisia

Desperto. Não sei onde estou, tudo está escuro, úmido, apertado. Sou tomado por um
pavor incontrolável dominado pela claustrofobia me imagino confinado em um caixão, preso em
um túmulo em algum lugar desconhecido. Não há espaço para me movimentar e a escuridão a
minha volta se torna cada vez mais opressora, um grito lancinante sai de minha garganta. Ouço
uma gargalhada, não sei de onde vem, mas ela zomba de mim, como se dissesse, “de nada
adiantam seus berros, ninguém te ouve, é o teu fim.” A zombaria continua e somente após algum
tempo percebo que a gargalhada vem de mim mesmo, de minha mente, entrego-me, deixo-me
levar pela loucura.

Não estou mais naquele espaço apertado. Agora me vejo em um campo aberto, uma
imensa planície, o vento sopra frio e sussurra coisas ininteligíveis aos meus ouvidos. Acima de
mim uma lua pálida quase negra flutua em um vazio negro e sem estrelas. Abaixo de meus pés,
sinto uma relva seca que se quebra com meus passos. O vento sopra e com ele lamúrios em uma
língua incompreendida. Estou em um mundo morto...

Desperto em minha cama, banhado em suor, não consigo me mexer, apenas movimento
meus olhos. Algo pressiona meu peito, um peso insuportável; não estou só, próximo a minha
cama uma entidade me observa silente, ouço os mesmos lamúrios trazidos pelo vento, a pálida luz
do luar pouco ilumina meu quarto e não traz nenhum conforto. A entidade se aproxima; pelo canto
de meus olhos vejo seu sorriso de escárnio e zombaria e indefeso começo a rezar. Um riso
maléfico ecoa em meus aposentos e uma voz sinistra e zombeteira apenas diz que meu deus nada
pode fazer.

De minha garganta um grito ecoa, um grito lancinante; consigo me mexer, mas a entidade
ainda está ali, silente, observando à espreita. Não consigo mais conciliar o sono e vago pela casa
tal qual um fantasma até que os primeiros raios da alvorada surgem e a paz toma conta de meu
atormentado ser. O dia enfim surge, trazendo seus matizes de cores e sons, mas nada parece
desanuviar a terrível sensação que se apossou de mim.

Desperto novamente, mais uma vez a terrível sensação de paralisia, de impotência, não
consigo mover um músculo sequer, nem mesmo minha voz. A Entidade está ali, observando. Ela
se aproxima, nada me prepara para o que ela me mostra, para o que ela me conta; paralisado,
impotente eu apenas ouço. O pavor se apossa de mim...

Novamente estou na planície, a lua “brilha” negra no vazio sem estrelas, a relva seca espeta
meus pés, o vento traz consigo os sussurros e lamúrios que não consigo compreender, mas que se
assemelham a pedidos de misericórdia ou seriam pedidos de socorro? A Entidade agora
acompanha minha caminhada nesta planície morta. Não sei se estou no Hades ou em alguma
outra dimensão morta, não vejo nenhuma alma, apenas eu, a entidade e o vento...

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Enquanto caminho na relva seca, ouço o farfalhar da grama sob meus pés, o vento torna-se
mais frio e forte, os sussurros trazidos com ele se tornam gritos desesperados de dor, gritos de dor,
prazer e escárnio, percebo que esses gritos são os meus gritos... desperto a paralisia toma conta de
meu corpo, não consigo me mexer, a Entidade está ali, observando.

Não consigo me mexer

Não consigo me mexer

Não consigo...

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A Espiral Dançante

No início... antes mesmo do início quando o Nada ainda predominava e as trevas


imperavam existia apenas Algo, pela falta de uma palavra melhor para defini-la. A Espiral
Dançante, a criadora de tudo que existe e ainda existirá.

A Espiral Dançante que executava sua dança em meio ao Nada, um bailar elegante e
grotesco ao mesmo tempo e assim tudo que antes era Nada passou a ser preenchido e o Nada se
tornou Tudo. Assim nasceu o Universo, em meio a dança, luz e caos; em um doloroso parto.

Nesse momento, quando houve a explosão advinda da dança, quando o Nada foi tomado
pelo Tudo, a Espiral enlouqueceu – Não necessariamente enlouqueceu, ela perdeu a consciência e
o que era Um tornou-se Três, mas dos outros dois falaremos mais adiante. – A Espiral manteve
apenas o que a definia, a sua dança. Criando ininterruptamente a partir do centro do Universo,
executando seu bailar incessante, cercada de luzes ofuscantes.

(Os Manuscritos de Mú, Tomo I – A Dança da criação. – Tradução livre de John Dee 1565)

Dos poucos manuscritos que chegaram até os dias de hoje, o único que nos dá alguma
informação sobre a poderosa entidade chamada de a Espiral Dançante são os Manuscritos de Mú,
um conjunto de tábuas de obsidiana negra que datam de períodos além do reconhecido pela
história oficial, mas não estamos aqui para falar sobre esse manuscrito cheio de mistérios, mas sim
da Espiral Dançante.

Entidade máxima e criadora de tudo que existe e ainda existirá, a Espiral Dançante vive
(por falta de uma palavra melhor para definir sua existência) no centro do Universo, ali essa
poderosa entidade executa seu bailar elegante, frenético, ininterrupto e grotesco, criando
infindavelmente. Desprovida de consciência plena de si, a Espiral Dançante apenas cria, não tendo
discernimento ela apenas cria. Não se sabe ao certo o que ocorreu para que a Espiral perdesse sua
consciência, as poucas informações que o Manuscrito de Mú nos fornece dão conta de que na
grande explosão que deu início ao Universo a Espiral se dividiu em três e assim ela perdeu a
lucidez. No entanto a Espiral Dançante não é totalmente alienada, mesmo desprovida de sua
sanidade ela tem certo conhecimento de seu papel no Universo como a criadora de tudo que
existe.

A Espiral Dançante existe por existir, não foi criada, ela é. Não interage com a sua criação,
já que não tem ciência do que criou ou se teve ciência ela perdeu quando sua consciência se
dividiu em três. Porém alguns místicos ao longo do tempo afirmaram ter tido contato com algum
avatar desse ser poderoso, mas os relatos são contraditórios ou com poucas informações e, devido
a isso esses mesmos relatos são postos em dúvida.

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Até mesmo nos Manuscritos de Mú tem se poucas informações do que realmente é a
Espiral Dançante, apenas que ela executa sua dança criadora no centro do Universo, rodeada de
luzes ofuscantes e que não possui nenhum conhecimento do que realmente está fazendo.

Em meio ao caos ofuscante, no cerne do Universo a Espiral faz sua dança criadora, alheia
ao que cria, ela apenas dança em um bailar caótico, frenético, elegante e grotesco...

Sua dança, executada em meio ao caos inicial, cria, cresce e reverbera no Nada, permeando
o Vazio de luzes, sons e fúria...

O Nada fez-se Tudo no bailar turbulento da Espiral...

(Fragmentos dos Manuscritos de Mú – Tradução do Dr John Dee 1568)

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A lenda do cavaleiro da Estrada dos Farias

Certas regiões são marcadas por lendas ou acontecimentos estranhos que


entraram para o imaginário popular, fazendo com que esses lugares sejam ao mesmo
tempo alvo de curiosidade e aversão. Um desses lugares, cercados de mistérios e
acontecimentos bizarros, conforme relatos de várias testemunhas, é uma estrada vicinal
já bastante desgastada e pouco usada atualmente. Conhecida como Estrada dos Farias, a
estradinha de terra tem esse nome devido ao fato de que era o único caminho que levava
a antiga fazenda dos Farias, uma fazenda abandonada na zona rural de Cruz das Almas.
A estrada em si nada tem de especial, apenas uma estrada de terra cercada de mato
como qualquer estrada que se vê pelo interior de Minas Gerais, porém dois fatores
contribuem para que esta seja “especial” o primeiro fator é que ela leva à Fazenda dos
Farias, onde segundo alguns moradores mais velhos, os escravos ali, sofriam maus
tratos e torturas terríveis, fazendo com que a fazenda ficasse mal falada e ganhasse fama
de assombrada.

O segundo fator, conta a história de um misterioso cavaleiro trajando um capotão


preto montado em um cavalo igualmente negro e persegue as pessoas que passam por
aquela estrada durante a noite, principalmente durante o período da Quaresma.

A versão mais conhecida dessa lenda conta que este cavaleiro na realidade era um
justiceiro libertador de escravos que foi capturado e aprisionado pelo proprietário da
antiga fazenda dos Faria. Lá, ele foi torturado com requintes de crueldade e enfim
encontrou sua morte nas mãos do malvado dono daquelas terras, mas antes de morrer o
justiceiro entregou sua alma ao demônio, jurando perseguir todos que por aquela estrada
passassem. Outra versão diz que o justiceiro era o filho do fazendeiro, que ao descobrir
o que ele fez ao próprio filho foi tomado pela loucura e montou em um cavalo negro
perseguindo todos que passassem pela estradinha que dava acesso à sua fazenda.
Independente da versão contada dessa lenda, o que é ponto comum é a presença desse
misterioso cavaleiro que persegue suas vítimas e que esta estradinha desde então é
evitada por alguns e visitada por outros que, atraídos pela história, tentam a todo custo
se encontrar com o cavaleiro.

A versão mais aceita dessa lenda e, provavelmente a mais verossímil, é a de um


jovem idealista que não concordava com o tratamento dispensado aos escravos e assim
buscava libertá-los; mas que foi capturado, torturado e morto por um cruel fazendeiro e

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que desde então ele vaga, atormentando e perseguindo as pessoas que passam por
aquela estrada, em busca de vingança contra aqueles que o mataram.

Conta-se um cavaleiro misterioso, nos tempos da escravidão, rondava as fazendas


da região libertando os escravos que eram vítimas de maus tratos. Esse cavaleiro trajava
negro e montava em um cavalo igualmente negro. Dizem as histórias que ele invadia as
senzalas, incitava a rebelião entre os cativos e os auxiliava em sua fuga, algumas dessas
fazendas, segundo contam, foram totalmente arrasadas e destruídas por incentivo e
auxílio deste cavaleiro que estava, com isso, ganhando a antipatia dos fazendeiros da
região.

Esse cavaleiro atuou, durante um bom tempo, sem que ninguém conseguisse
captura-lo ou sequer descobrir sua identidade. Corria, entre os mais simples, a versão de
que este cavaleiro era na verdade um fantasma justiceiro e protetor das almas sofridas
dos escravos e, que por esse motivo, os donos das fazendas e as autoridades jamais
conseguiriam capturar o misterioso cavaleiro. A reação dos fazendeiros que, para
proteger suas terras e seu patrimônio, foi a de criar milícias que rondavam toda a zona
rural de Cruz das Almas afim de capturar e levar à justiça esse homem que era
considerado uma ameaça.

O misterioso cavaleiro ficou um bom tempo ameaçando e atormentando os


fazendeiros locais. Porém, quando ele invadiu a fazenda do Sr. Maurílio César de Faria,
sua sorte mudou e ele foi capturado pelos homens do Sr. Faria o mais cruel e sádico
senhor de escravos da região, sendo inclusive evitado até pelos outros fazendeiros
devido a crueldade com que ele tratava seus escravos e demais empregados, fossem
livres ou não. O Sr. Faria, sabendo da constante ameaça desse cavaleiro, contratou os
mais cruéis homens para vigiar sua fazenda e se possível, capturar esse homem e assim
por um fim em seus atos.

As histórias sobre a captura do cavaleiro são contraditórias, algumas dizem que o


homem foi capturado sem luta e que se rendeu facilmente. Esta foi a versão da história
divulgada pelo Sr. Faria e seus homens, já outras versões, contam que o misterioso
cavaleiro antes de ser dominado derrotou muitos dos homens do cruel fazendeiro, sendo
que só foi possível sua captura após um tiro que o mesmo levou nas costas, vindo assim
a tombar.

Moribundo, o cavaleiro foi levado a presença do Sr. Faria que, com requintes de
crueldade vistos somente nos inquisidores espanhóis, torturou o cavaleiro durante dias.
E, por fim, no dia 8 de março de 1875, o homem foi queimado diante dos escravos da
fazenda do Sr. Maurílio. O cavaleiro, no entanto, não se deu por vencido e vendo que
sua morte se aproximava proferiu um juramento de vingança. Suas palavras ecoaram
por toda fazenda e todos os presentes as ouviram. Assim nascia a lenda do Cavaleiro da
Estrada dos Farias e, todos que a partir daquele momento, passassem pela estrada que
levava à Fazenda dos Farias seriam perseguidos por esse homem vestido de preto.

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Conta-se que, após a morte do cavaleiro, o Sr. Maurílio foi tomado por uma febre
mental que o debilitou e, que o mesmo vagava na sua casa gritando que estava sendo
perseguido pelo homem de preto. Os homens envolvidos na captura, tortura e morte do
justiceiro, também foram acometidos de mal semelhante e alguns deles até se
suicidaram.

Logo no primeiro ano após a execução do cavaleiro, o Sr. Faria, tomado pela
loucura, pereceu, mas não sem antes, vitima de pavorosos delírios gritar para quem
quisesse ouvi-lo que ele estava sendo perseguido pelo cavaleiro negro.

Os relatos, publicados em um jornal da época e preservados até hoje na Biblioteca


Municipal de Cruz das Almas, registram várias aparições desse cavaleiro trajando um
capotão negro e montado em um cavalo cujos olhos eram vermelhos e ardiam feito
brasas. Alguns diziam que o homem montava a Escuridão completa e trajava as trevas e,
que aquele que cruzasse seu caminho, fosse ou não alvo de sua vingança, estava
eternamente condenado e era dominado pelo desespero e loucura.

Um dos mais impressionantes relatos da época, embora pareça bastante


inverossímil, é o diário do Sr. Faria; um relato impressionante de seu último ano. Neste
diário podemos ver um homem que, atormentado pela sua consciência, sucumbiu ao
delírio. Se foi perseguido ou não pelo fantasma do cavaleiro somente Deus pode nos
responder.

Deixo aqui, não na íntegra, mas grande parte do que o Sr. Faria escreveu em seus
últimos dias.

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II

O Diário

5 de maio de 1875

Deixo aqui, nestas páginas, não somente um relato de um homem atormentado


pelo seu passado, mas um desabafo. Sejam quais forem os tormentos que me aguardam
após a morte, acho que Deus, ou o Demônio os anteciparam e as torturas as quais fui eu
o algoz sou agora uma vítima.

Confesso que nem sempre fui um bom cristão. Alguns até achavam-me cruel,
tirano. Inclusive dentro de minha própria família, ingratos que são, assim também
pensavam. Porém sempre pautei minha vida pelos preceitos ensinados pela Santa Sé e
busquei agir dentro da caridade, da fé e da observância dos mandamentos de Deus
Nosso Senhor. Fui sim rígido, mas assim o fui com meus negócios e se não o fosse,
talvez não teria legado aos meus descendentes o patrimônio que hoje tão lautamente
usufruem.

De todos os pecados que cometi em minha vida, os quais me arrependo, o que


mais consome minha alma e corrói minha consciência, foi o que cometi há alguns
meses, no fatídico episódio da captura e execução do maldito cavaleiro negro que
rondava as fazendas da região, aterrorizando a todos. Pus um fim nesses atos nefastos
cometidos por este homem, que hoje arde nas profundezas do inferno. Mas esse
facínora, em seus últimos momentos, proferiu uma maldição que me persegue desde
então.

Trajando a própria noite e montado em um demônio de escuridão e de olhos


vermelhos como o sangue que há em minhas mãos, o cavaleiro persegue-me a todo
momento, não dando um instante de paz para minha já fustigada alma. Todos de minha
família acham que enlouqueci, mas sei que não, sei que estou sendo punido pelo
cavaleiro, que em seu momento de morte, amaldiçoou-me. Não me resta nem o consolo
da fé e a absolvição de meus pecados me foi negada, pois o clero negou-me esse
refrigério.

Já faz dois meses que o cavaleiro foi executado, dois meses em que eu fiz justiça
contra esse cruel bandido pondo fim e seus crimes. São dois meses que meu tormento
começou, na fatídica noite posterior a execução, quando eu retornava da cidade tarde da
noite e passava pela estrada que dá acesso à minha propriedade. Inicialmente pensei que
se tratava de algum animal ou algum viajante que, vezes ou outras, utilizava aquela
estrada. Ledo engano, quando me aproximava, montado em meu cavalo, que por sinal
jamais me deixou na mão, vi uma estranha figura montado em um imenso cavalo negro
e trajando um capotão também negro, seus olhos, em brasa, faiscavam e meu cavalo se

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recusou a continuar no caminho. Os pelos de minha nuca se eriçaram e somente então
percebi, para o meu desgosto e desespero, que a estranha figura que estava parada na
estrada era o cavaleiro que eu e meus homens executamos na noite anterior.

Não sei descrever o que senti no momento, inicialmente pensei se tratar de uma
peça que meus homens estavam pregando em mim, ou mesmo minha mente brincando
comigo, já que no escuro enxergamos mais do que realmente está ali. Mas não, havia
algo mesmo naquele caminho, algo maligno e que estava ali para se vingar de mim.
Aquele demônio veio para cima de mim, oh meu Deus seus olhos...

Acho que perdi os sentidos, pois acordei em meu leito com o sol na minha cara. O
que achei que era apenas um pesadelo se tornou na verdade um tormento, um tormento
que há dois meses consome minha alma e domina meu espírito. Somente comecei a dar
crédito no que vi quando, alguns dias depois, ouvi meus alguns de meus homens e
alguns pretos cochichando a respeito da misteriosa figura que estava rondando a estrada
da fazenda. Desnecessário dizer que minha reação, ao ouvir tais comentários, foi de
reprimir e punir qualquer um que comentasse algo a respeito, eu não desejava que esse
boato se espalhasse novamente entre os pretos e lhes dessem “esperança” de serem
resgatados. Mas no meu íntimo, eu sabia que era verdade e que o misterioso cavaleiro
voltara do inferno para se vingar de mim.

8 de maio de 1875

Três dias não escrevo nessas páginas, tomado de uma lancinante febre mental que
consumiu todas as minhas energias, fiquei aprisionado em meu leito sendo
constantemente açoitado pelo flagelo do cavaleiro que insiste em zombar de minha
sanidade. Sinto sua presença a todo momento em minha casa, em minha propriedade,
acabando com minha paz. Esse demônio, que retornou das profundezas do inferno é,
agora, minha única, fiel e amaldiçoada companhia.

Mas retornando a narrativa, por mais que me aflija. O boato estava se espalhando
entre meus homens que, temendo represarias minhas, falavam “a boca miúda” da
presença do homem de preto, ou como ficou conhecido entre os pretos “O cavaleiro da
estrada dos Faria.” Eu tentava a todo custo reprimir tal falatório, inclusive ameaçando
os homens e quem quer que comentasse a respeito. O falatório se alastrou e logo os
pretos de outas fazendas e mesmo outros donos de fazendas estavam comentando sobre
o misterioso cavaleiro, mas, para minha desgraça, constatei que eu era o único
atazanado por esse espírito maléfico, que ao que parece estava em busca de vingança.

A situação se agravou quando um dos meus homens de confiança, ao retornar da


esbórnia, tarde da noite, foi atacado pelo cavaleiro. O pobre homem chegou aos berros
na porta da fazenda, dizendo que estávamos condenados pelo mal que fizemos, que
nossas almas estavam fadadas a arder nas chamas eternas do Hades. Ante todos os
presentes eu o ameacei, mandei-o para sua casa sob ameaça de severa punição, pois ele
apresentava-se severamente embriagado e o que ele viu foi apenas fruto de seu estado,

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mas intimamente eu sabia que o que o pobre homem estava contando era real, que ele
também foi mais uma vítima do cavaleiro.

Passado o “susto” inicial, fui ter com o pobre, que ardia em febre na cama e a todo
o instante ficava gritando que o cavaleiro iria pegá-lo, iria puni-lo. “Seus olhos, seus
olhos...” repetia o pobre, ardendo em febre. Três dias depois recebi de sua filha a triste
notícia de que seu pai havia falecido, não sem antes em delírio, dar gritos de desespero.
A morte do meu capataz, fez com que os boatos sobre o misterioso homem de capotão
preto ganhasse mais força e, mesmo entre os mais cultos, o alarido era de que o
“Cavaleiro da Estrada dos Farias” buscava vingança contra aqueles que o mataram, e
que ele não iria descansar até que sua missão estivesse cumprida. Estou inclinado,
devido a tudo que tenho visto desde o dia seguinte a morte desse maldito, que os
rumores eram de fato verdadeiros e que estávamos condenados.

15 de maio de 1875

Queira Deus em sua infinita misericórdia que, no momento derradeiro, eu


encontre a paz. Temo estar sendo dominado pela insanidade, minhas noites são
pavorosas e meus dias funestos.

Nos dias posteriores à morte de meu capataz o rebuliço a respeito do misterioso


cavaleiro da Estrada da Fazenda dos Farias estava na boca do povo e todos de Cruz das
Almas comentavam sobre a maldição que se abateu sobre mim e minha família. Até
meus amigos mais chegados começaram a se afastar, acredito eu por medo de que a
suposta maldição também caísse sobre eles. Entre os pretos o falatório era maior e nem
mesmo a ameaça de castigos severos, castigos estes que eu realmente infligi a alguns,
serviu para pôr termo ao mexerico.

Foi então que, tomado de raiva pelos boatos que já prejudicavam meus negócios,
eu decidi juntar um grupo de homens de minha confiança e patrulhar a estrada, nosso
objetivo era capturar esse cavaleiro e acabar de vez com esse problema. Apesar da
resistência de alguns de meus empregados, e da forte oposição de minha filha que,
temendo pela minha saúde mental e física, não desejava meu envolvimento nisto tudo.
Mas eu já estava envolvido era inevitável. Eu deveria ter levado em consideração a
opinião de minha filha, ou mesmo os receios de meus homens, talvez assim pudesse
evitar grandes sofrimentos.

Passamos duas noites, eu meus homens e mais cinco pretos fortes, patrulhando a
estrada; nestas duas noites nada de estranho foi avistado, nada de extraordinário
aconteceu e eu e os homens já estávamos começando a achar que tudo não passava de
mentira, que tudo era apenas invencionice desse povo ignorante. Infelizmente na
terceira noite de patrulha, quando estávamos mais confiantes, ele apareceu. Era uma

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noite típica de fins de março, porém mais escura, havia algo de lúgubre no ar, todos nós
estávamos incomodados, alguns mais outros menos, mas todos estávamos bastante
incomodados.

Meu Deus, quando me recordo daquela noite sinto os pelos de minha nuca se
eriçarem, e sou tomado de um pavor inenarrável. A noite estava escura, como se tomada
por trevas sobrenaturais, uma densa neblina se formava ao longo da estrada e até mesmo
nossas montarias demonstravam sentir algum incômodo. Tomado de um pavor
desesperador, um dos pretos que nos acompanhava, adentrou a neblina que se formava,
apenas ouvimos seu grito e o que pudemos distinguir foi apenas algo relacionado a
olhos vermelhos como brasas... Hoje tenho pena desse pobre homem, que foi brigado
por mim, eu o condenei.

Do momento que o preto desapareceu em diante, pouco me lembro, recordo-me


apenas de ouvir um galopar ruidoso semelhante a trovões provindos de uma grande
tempestade, meus homens dispersaram, meu cavalo se recusava a prosseguir. Apenas
me lembro de ver diante de mim, quando estava me levantando de uma queda do meu
cavalo, o cavaleiro, ele trajava um capotão negro, parecia que ele vestia a própria
escuridão, seus olhos eram de um vermelho sangue e ardiam como brasas infernais...

Daquele dia em diante não houve mais paz em minha vida e agora passados quase
dois meses, sinto que é chegado o fim e, o cavaleiro, que hoje me persegue a todo
instante, virá em breve me buscar, para junto com ele vagar pelas trevas. Eu me despeço
de todos os meus, aqueles que amei peço suas orações e aqueles que feri peço seu
perdão...

III

Esse foi o último registro no diário do pobre Sr. Faria, o resto são apenas rabiscos
e frases soltas e desconexas, sabe-se que o homem morreu algumas semanas após,
tomado de febre e delirando. O padre que lhe deu a extrema-unção disse, depois em
conversas com amigos, que o Sr. Faria, no momento derradeiro, foi tomado de uma
pavor e que o próprio padre sentiu a presença de algo maligno no quarto, mas ele se
recusou a confirmar se era ou não o misterioso cavaleiro.

Após a morte do Sr. Faria, sua filha abandonou a fazenda, deixando-a aos
cuidados de administradores, e foi embora para a então capital do país, Rio de Janeiro.
O cavaleiro, ainda foi visto algumas vezes na estrada e na fazenda, e aos poucos aquele
caminho foi sendo evitado e decaindo; junto com ele a fazenda, que nas mãos de
homens inescrupulosos foi aos poucos sendo destruída. Hoje não resta mais nada de sua
gloria antiga e os descendentes do Sr. Faria não têm nenhum interesse na mesma, porém
se recusam a vendê-la.

A Lenda do Cavaleiro da Estrada dos Farias continuou e até os dias de hoje, ainda
há aqueles que contam histórias do encontro com o homem vestido de preto e olhos
vermelhos como brasa, que persegue quem passa pela velha estrada.

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Não se pode afirmar com toda certeza se o cavaleiro ainda permanece naquela
estradinha abandonada, ou se o que o Sr. Faria escreveu em seu diário era apenas fruto
de uma mente perturbada e tomada pelo arrependimento do que fez durante sua vida,
mas o fato é que todos que passam por aquele caminho tarde da noite, ou nas noites de
quaresma, sente uma presença ou tem a estranha sensação de estar sendo perseguido por
algo maligno.

Seja como for, a Lenda do Cavaleiro da Estrada dos Faria, faz parte do rico e
peculiar folclore da cidade de Cruz das Almas e verdadeira ou não, enriquece as
tradições dessa cidade. Queira Deus que isso seja apenas mais uma história, fruto da
imaginação, pois só de pensar o contrário já causa arrepios...

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