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ISSN 1981-8874

Distribuição de rei-do-bosque
(Pheucticus aureoventris, 9 771981 887003 00142

Cardinalidae) no Brasil: revisão


dos registros históricos e recentes

Alessandro Pacheco Nunes

O rei-do-bosque (Pheucticus aureo-


ventris d'Orbigny & Lafresnaye, 1837) é
um Passeriforme de pequeno porte, apre-
sentando em média 20 cm de compri-
mento. P. aureoventris é um dos poucos
representantes da Família Cardinalidae
cujo dimorfismo sexual é bastante acen-
tuado. O macho, como pode ser visto na
Figura 1, possui as partes superiores, ca-
beça, garganta e papo negros, ventre
amarelo, asas e cauda com desenho bran-
co. A fêmea no entanto, possui o dorso,
asas e cabeça castanhos, enquanto as par-
tes inferiores são similares à do macho,
exceto pela ausência do papo e garganta
negra. Os imaturos são pardos, com os la-
dos inferiores manchados (Sick 1997,
Ridgely & Tudor 1994).
Esta espécie distribui-se principal-
mente ao longo da pré-cordilheira dos
Andes, em países como Argentina, Bolí-
via, Peru, Equador, Colômbia e Venezu-
ela. Habita paisagens áridas e semi-
abertas com árvores esparsas e matas se-
cas, bem como florestas tropicais e sub-
tropicais úmidas de montanha e campos Figura 1. Macho de rei-do-bosque (Pheucticus aureoventris). Foto: Phil Barden.
arbustivos de altitude (Ridgely & Tudor
1994, BirdLife International 2008). rer em Cáceres (16º08'S; 57º43'W), Ma- gia da Universidade de São Paulo
Entretanto, após o período reproduti- to Grosso entre 1825 e 1828. De acordo (MZUSP) durante a expedição científi-
vo empreende grandes movimentos mi- com Pelzeln (1870), Natterer também co- ca pelo antigo estado do Mato Grosso,
gratórios meridionais, dispersando-se letou exemplares de P. aureoventris em Pinto (1944) reporta a coleta de uma fê-
para regiões como o Chaco paraguaio, outras localidades do Mato Grosso, co- mea de rei-do-bosque no Pantanal de Mi-
planíce do Pantanal e planaltos do entor- mo em Arraial das Lavrinhas (15º19'S; randa (20º14'S; 56º22'W) em 1930. De
no (Short 1976, Ridgely & Tudo 1994, 59º13'W), Pontes e Lacerda (15º12'S; acordo com Stone & Roberts (1934), o
Sick 1997, Tubelis & Tomás 2003, 59º22'W) e Engenho do Capitão Gama naturalista J.A.G. Rhen coletou exem-
IBAMA/CEMAVE 2008, Nunes & To- (15º17'S; 59º15'W). Em agosto de 1926 plares de P. aureoventris em Descalva-
más no prelo). um espécime fêmea foi coletado no Ma- dos (18º40'S; 57º40'W) no ano de 1931.
Os primeiros registros desta ave em ter- ciço do Urucum (18º40'S; 57º40'W) por Demais registros hitóricos da espécie
ritório brasileiro constam na obra publi- George K. Cherrie a serviço do Field Mu- no Brasil foram são reportados por Wil-
cada por Pelzeln (1870) a partir da com- seum, Chicago (Naumburg 1930). lis & Oniki (1990) para Porto Limão
pilação dos dados e espécimes coletados Na compilação dos espécimes coleta- (16º10'S; 58º05'W) e Transpantaneira
pelo naturalista austríaco Johann Natte- dos pelos membros do Museu de Zoolo- (trecho entre Poconé e Porto Jofre,

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17º10'S; 57º00'W), regiões visitadas pe-
los autores em 1987 e 1988. Em julho de
1997, Silveira & D'Horta (2002) revisi-
taram as localidades estudadas pelo natu-
ralista Johann Natterer e os ornitólogos
Willis e Oniki na região do Alto Guapo-
ré, Mato Grosso e reavistaram a espécie
em uma floresta semidecidua do municí-
pio de Pontes e Lacerda.
Donatelli (2005) e Melo (2005) repor-
tam a ocorrência de P. aureoventris para
a planície pantaneira, notadamente na
RPPN Fazenda Rio Negro (19º30’S;
56º17’W) e Fazenda Caiman (19º56’S;
56º43’W, registro a ser confirmado), res-
pectivamente.
Durante a realização de um inventário
avifaunístico na Serra do Amolar, um ma-
cho de rei-do-bosque foi avistado numa
mata seca de enconsta em um dos mor-
ros da Fazenda Santa Teresa (18º19'S;
57º26'W) em maio de 2007. Esta, situa-
se no Morro Santa Teresa, o qual faz par-
te do complexo de formações geológicas
denominado Serra do Amolar, municí-
pio de Corumbá, Mato Grosso do Sul.
Os avistamentos de P. aureoventris no
Brasil ocorreram em julho e agosto, em-
bora na Serra do Amolar a espécie tenha
sido registrada no final de maio. Herzog
& Kessler (2002) e Jahn et al. (2002), re-
portam que no Chaco boliviano o rei-do-
bosque ocorrem principalmente no ve-
rão e outono.
A ocorrência de P. aureoventris na Ser-
ra do Amolar já era esperado uma vez que
a região encontra-se dentro da sua área
de dispersão no território nacional.
Entretanto, chama-se a atenção para a
sua ocorrência pontual no Brasil, pois até
o momento só foi registrada em apenas
doze localidades, pelo menos quatro de-
las dentro da planície pantaneira. Embo- Figura 2. Registros de ocorrência do rei-do-bosque (Pheucticus aureoventris)
ra, o registro para a Fazenda Caiman, ain- na Bacia do Alto Paraguai e arredores. Imagem: Luis Alberto Pelegrin,
da depende de confirmação (Melo 2006). Laboratório de Geoprocessamento, Embrapa Pantanal. Localidades:
1 (Arraial das Lavrinhas), 2 (Pontes e Lacerda), 3 (Engenho do Capitão Gama),
Tal padrão de ocorrência reforça o “sta- 4 (Cáceres), 5 (Porto Limão), 6 (Descalvados), 7 (Transpantaneira), 8 (Faz. Santa Teresa),
tus” de vagante dado pelo CBRO (2007) 9 (Maciço do Urucum), 10 (RPPN Rio Negro), 11 (Faz. Caiman), 12 (Miranda)
a esta espécie em território nacional. Sua
área de ocorrência ou rota migratória no Entretanto, algumas espécies com cen- tas secas da Bolívia, também conheci-
Brasil parece estar restrita ao sudoeste, tro de origem na região Central e Sudeste dos como Bosques Secos Chiquitanos
notadamente às zonas limítrofes com Bo- dos Andes estão amplamente difundidas (Ratter et al. 1988; Pott et al. 2000; Salis
lívia e Paraguai (Figura 2). na Bacia do Alto Paraguai e demais re- et al. 2004, 2007; Vasconcelos e Hoff-
Ao longo da pré-cordilheira dosAndina giões do centro oeste brasileiro (Willis mann 2006, Vasconcelos et al. 2008).
o rei-do-bosque está associado a paisa- 1992). Os planaltos do entorno atuam co- Harris et al. (2006) ressaltam que a su-
gens cujas altitudes variam de 1.700 a mo importantes corredores de dispersão pressão da vegetação nativa verificada
3.700 m (Ridgely & Tudor 1994, Ledesma para este e vários outros elementos de ma- na Bacia do Alto Paraguai pode compro-
etal.2006)edestaforma,suaocorrênciana cro-ecossistemas vizinhos ao Pantanal meter seriamente a biodiversidade na re-
planície do Pantanal é algo peculiar, pois (Brown Jr. 1986, Nunes & Tomás 2004a). gião. Analisando o mapa das regiões ma-
elementosAndinos são pouco representa- A borda oeste da planície pantaneira is desmatadas na Bacia do Alto Para-
tivos na avifana pantaneira (Brown Jr. apresenta elevada biodiversidade e fito- guai, verifica-se que a maioria das áreas
1986,Nunes&Tomás2004a). fisionomias singulares, tais como as ma- de ocorrência e rota migratória desta es-

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pécie em território nacional estão séria- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Pelzeln, A. Zur Ornithologie Brasiliens. Resulta-
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go. Sou grato à Phil Barden por ceder a Mus. Nat. Hist., 60:1-431, 1930. 3(1):1-15, 1992.
imagem da espécie enfocada neste arti- Nunes, A.P. & Tomás, W.M. Análise preliminar Willis, E.O. & Oniki, Y. Levantamento preliminar
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tanal por confeccionar o mapa de distri- pósio sobre Recursos Naturais e Sócio-
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Aves/FCEQyN/UNAM, Missiones) pe- ocorrentes no Pantanal: caracterização e con- Sul/Embrapa Pantanal, Laboratório de
lo envio de sugestões e informações so- servação. Série Documentos, EMBRAPA- Vida Selvagem, Rua 21 de Setembro
CPAP, 62:1-29, 2004b.
bre a espécie. Agradeço as considera- Nunes, A.P. & Tomás, W.M. Aves migratórias e nô- 1880, Bairro Nossa Senhora de Fátima,
ções dos revisores que muito contribui- mades ocorrentes no Pantanal. Embrapa Pan- Caixa Postal 109, CEP 79320-900, Co-
ram na versão final deste artigo. tanal, Corumbá. No prelo. rumbá-MS. E-mail: udu@ibest.com.br.

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