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De onde eu venho???

PRIMEIRA PARTE
Clarice Lispector
Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo
que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça. Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como
se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus. Exatamente porque é tão forte em
mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim.
Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei
mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro. Se meu desejo mais antigo é o de
pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por
exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às
vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter
a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente
embrulho com papel de presente os meus sentimentos. Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas
vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma
pessoa ou uma coisa. Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e, no entanto, premente sensação de precisar
pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida. No entanto fui preparada para ser dada à luz
de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de
uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para
uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram
por eu ter nascido em vão e têlos traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer
e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer
porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido. A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse
para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe
sôfrego o último gole de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!

Texto “Pertencer” de Clarice Lispector é uma crônica publicada originalmente no Jornal do Brasil, em 1968, e, posteriormente no livro “A descoberta do
mundo”.
a) Por que Clarice Lispector se sentia deserdada da vida?
b) Para Clarice Lispector, o que significa pertencer?
c) “Nasceu e ficou simplesmente nascida”, “Não recebeu a marca do pertencer”. Que marca é essa a que Clarice se refere?
d) Assim como Clarice Lispector, que histórias você tem sobre a sua origem?
e) O que você sabe acerca das expectativas dos seus pais sobre você, antes mesmo do seu nascimento? Vocês precisam respeitar a própria história por
aquilo que ela tem de diferente, pois é através dela que podem criar confiança no mundo e em si mesmas/os. Para a vida futura, é importante criar vínculos
seguros e saudáveis com a própria história.

Revendo sua vida pessoa:


1. Na família, além do nome, o que mais é herdado?
2. Quais as capacidades que você tem advindas de sua origem?
3. Em sua opinião, qual foi o legado mais importante que sua família deixou para você?
4. O que você gostaria de deixar como legado para a sua família?

SEGUNDA PARTE

Leia os parágrafos a seguir e responda:

Cada pai e mãe, avó ou avô, tio ou tia (entre outros) projeta seus sonhos, realizados ou não, em seus filhos, mas, independentemente de quais sejam, a
maioria deles se associa a um sonho só: Eles querem uma vida para nós melhor do que a que eles tiveram. Sobre isso, você concorda que os pais têm rica
experiência de vida e certo grau de sabedoria e por isso, não há dúvidas de que sabem o que é melhor para os filhos? Por quê?

O senhor tem saudades de Itabira ainda hoje? Tenho uma profunda saudade e digo mesmo: no fundo, continuo morando em Itabira, através das minhas
raízes e, sobretudo, através dos meus pais e dos meus irmãos, todos nascidos lá e todos já falecidos. É uma herança atávica profunda que não posso
esquecer. Sobre as raízes familiares, você concorda que, mesmo cada um sendo livre para traçar a própria história, a força da origem familiar nos conduz a
ser o que somos? Por quê?

TERCEIRA PARTE

Trechos da música de Belchior “Como Nossos Pais”.

E hoje eu sei, eu sei Que quem me deu a ideia De uma nova consciência E juventude Está em casa Guardado por Deus Contando o seus metais Minha dor é
perceber Que apesar de termos Feito tudo, tudo, tudo Tudo o que fizemos Ainda somos Os mesmos e vivemos Ainda somos Os mesmos e vivemos Como
os nossos pais Você me pergunta Pela minha paixão Digo que estou encantada Como uma nova invenção Eu vou ficar nesta cidade Não vou voltar pro
sertão Pois vejo vir vindo no vento Cheiro de nova estação Eu sei de tudo na ferida viva Do meu coração...

A música “Como Nossos Pais” foi composta em um momento de repressão social marcada pela Ditadura Militar. No entanto, mesmo com interpretações
específicas de uma época, sua mensagem alcança o nosso presente.

Nos dois primeiros trechos demonstra a existência de uma desilusão em relação a juventude da época, indicando que mesmo depois de tantas lutas
travadas existia um conformismo com a realidade. Mas na sua visão, por que foi colocada a ideia de conformidade comparada aos “nossos pais”?
No último trecho fala sobre o presente de uma nova invenção e também sobre o futuro de uma nova estação, sobre isso, você concorda que o presente
tem riqueza das experiências que o ajudarão a superar positivamente as dificuldades e as adversidades que surgirem?
Você acredita que essas vivências o ajudarão a desenhar o futuro? Por quê?

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