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Sob Livros

Copyright © 2022 by N.S. Park


Copyright da arte da capa e das demais ilustrações & © 2022 by Nicah Park
Proibida a utilização das imagens no e-book!

2ª edição.

Arte da Capa: Bluebble


Design de Capa: Bluebble
Diagramação E-book: Bluebble
Todos os outros elementos ilustrados neste livro: Bluebble
Revisão do Livro: Patrini Viero (@pedaletrarevisao)

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer
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PIRATARIA É CRIME!

Park, N.S.
Sonho de um dia de verão / N.S. Park. – Romance
2. Ed. — Sob Livros, 2022

Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.


PRÓLOGO

PARTE UM

CAPÍTULO 01

CAPÍTULO 02

CAPÍTULO 03

CAPÍTULO 04

CAPÍTULO 05

CAPÍTULO 06

CAPÍTULO 07

CAPÍTULO 08

CAPÍTULO 09

CAPÍTULO 10

CAPÍTULO 11

CAPÍTULO 12

CAPÍTULO 13

PARTE DOIS

CAPÍTULO 14

CAPÍTULO 15

SONHO DE PALETAS CINZAS


CAPÍTULO 16

CAPÍTULO 17

CAPÍTULO 18

CAPÍTULO 19

CAPÍTULO 20

CAPÍTULO 21

CAPÍTULO 22

CAPÍTULO 23

CAPÍTULO 24

PARTE TRÊS

CAPÍTULO 25

CAPÍTULO 26

CAPÍTULO 27

CAPÍTULO 28

CARTA PARA JULIETA

CAPÍTULO 29

CAPÍTULO 30

CAPÍTULO 31

CAPÍTULO 32

CAPÍTULO 33

PODE BEIJAR A NOIVA

TE DEVO UMA DANÇA

EPÍLOGO

CONVIDADOS ESPECIAIS

OBRIGADA!

SOBRE A AUTORA
POSSÍVEIS GATILHOS:
Menção a suicídio, traição, separação, luto.
Pegue uma moeda,
Faça um pedido.
Este livro é para você,
Sonhador.
“Às vezes, você precisa de
um tempo para pensar;
outras vezes você só precisa
fechar os olhos por um segundo e agir.”
Biscoito da sorte do restaurante Wang’s
As cordas da harpa começaram.
O choro melancólico do oboé veio logo depois.
O fim daquele tormento estava tão perto, mas eu não sabia se conseguiria
alcançar o desfecho.
Fora difícil demais até ali. Agulhas pareciam fincar meus pés, as pernas
queimavam com o treino excessivo e violento daquela semana e o coração
estava quebrado em pedaços irremediáveis.
Eu estava furiosa.
Bem mais do que isso.
Segui a fila de bailarinas, acompanhei cada passo perfeitamente — como
fizera nos últimos atos da peça. Encarei minhas mãos e meus pés se
movendo automaticamente. Jamais levantei os olhos para as centenas de
pessoas que nos assistiam.
Jeremmy deveria estar em algum lugar, contendo a mesma raiva que eu
sentia no peito para se orgulhar da irmã mais nova que se apresentava no
palco. Talvez Gina estivesse com ele; minha melhor amiga segurando a mão
do meu irmão para impedi-lo de avançar até os bastidores quando tudo
acabasse.
Minha mãe... Bem, eu não a culpava por não ter saído de baixo das
cobertas para vir me ver. Ela mal conseguira falar quando me despedi
naquela tarde, sua voz desgastada pelo choro.
Não a julgaria.
Se eu pudesse... teria feito o mesmo: me enfiado de baixo das cobertas e
ignorado o mundo.
Não senti a música. Não da forma que pensei que sentiria. Ensaiara por
semanas, e não me importara que não fosse a principal. Estar sob aquele
anfiteatro, me apresentando para aquelas pessoas...
Era meu sonho.
Mas não consegui sentir a emoção da canção tocada pela orquestra
principal de Nova Iorque. Não consegui me emocionar com as luzes e com
as fantasias lindas de plumas brancas.
Nada.
Eu não senti nada além de raiva genuína.
Eu estava destruída.
Segui, levada pelas notas dramáticas e pela harmonia mágica de todos
aqueles instrumentos. Ninguém perceberia o quão machucada eu me sentia.
Decepcionada. Não, meus passos eram precisos e perfeitos, o professor me
fizera ensaiar meses para aquela apresentação. Muito mais do que isso.
Mas meu mundo precisou ruir bem antes disso.
No dia em que meu sonho começava.
Continuei atenta às outras bailarinas, meus olhos fixos em cada
movimento, a mente concentrada — me esforçava ao máximo para focar e
esquecer aquela manhã desastrosa — nos próximos passos que deveria dar.
Eu dancei.
E dancei.
Tentei.
Até os olhos do professor encontrarem os meus.
Até o mar de lágrimas e tristeza me olhar com uma súplica.
Um pedido de desculpas.
Uma segunda chance.
O olhar de um pai arrependido.
O ápice da música chegou, notas mais fortes e dramáticas acompanhando
meu coração acelerado. Eu girei e dancei, me obriguei a ignorar a dor, tentei
afastar tudo o que me impediria de dar o melhor.
Mas o esforço e a dedicação não foram o bastante.
Outro olhar na direção do homem que me mostrara o melhor da música.
Outro olhar na direção do homem que me ensinara a extrair o melhor de
mim.
E eu errei um passo.
E outro.
Tropecei.
Laila me fuzilou quando interrompi bruscamente sua coreografia,
levando as outras a falharem também.
Mas continuei. Pedi desculpas baixinho e continuei, tentei voltar ao
ritmo. Só mais um pouco e acaba, repeti para mim mesma, só mais alguns
passos e você vai para casa.
Lágrimas quentes rolaram pelo meu rosto quando, outra vez, o encarei.
Havia preocupação nas feições bonitas do meu pai. Aquele olhar que me
dera tantas vezes nos últimos dezenove anos.
Continue. Você consegue.
Imagens embaçadas voltaram à minha mente, de novo e de novo. Eu me
lembrava dos passos, sabia perfeitamente como executá-los, mas a cena que
me despedaçava retornava mais uma vez.
Ele.
Ela.
Os dois.
Foi tão rápido. A música foi interrompida no exato momento em que a
tragédia aconteceu, a orquestra parou quando o maestro se deu conta, a
plateia arfou em choque e preocupação.
Não vi exatamente quando uma das meninas trombou em mim, sequer
me dei conta quando meus pés seguiram ritmos furiosos e descompassados,
me desequilibraram e um deles se torceu — provavelmente aquele mais
prejudicado pelas horas de treino, mal recuperado da torção de uma semana
atrás. O impacto do meu corpo no chão não pareceu importante. Só percebi
que algo havia dado errado quando uma dor aguda e intensa irradiou da
minha perna.
A cabeça também doía. Era insuportável. Não a perna, não o resto do
corpo caído, mas a dor latejante no meu coração. Era insuportável.
Eu tinha caído. Não conseguia me mexer, e lágrimas não paravam de
rolar.
Abri os olhos, a sombra de dezenas de pessoas se amontoando ao redor
turvando minha visão, todas fazendo perguntas idiotas.
Não, eu não estou bem!
Vários rostos pintados e mascarados me encararam do palco, mas apenas
um se destacou.
O cisne, branco como outras bailarinas no palco, com uma dor diferente
nos olhos.
Lyssa.
A dançarina principal.
A destruidora de lares.
Pensar que meu pai dera a ela o papel de protagonista porque estavam em
um caso me deixava ainda mais enjoada.
Perceber que a bailarina me encarava com culpa e preocupação me
causava repulsa.
Ela não tinha aquele direito. Se uma lágrima sequer rolasse por seu rosto
jovem e bonito, me forçaria a levantar para quebrar algo nela também.
Nutria aquele sentimento desde o momento em que a vira enroscada nos
braços do meu pai, me contivera ao vê-la no camarim mais cedo.
Tentei xingar. Tentei gritar para que todos naquele teatro soubessem que
o professor de balé mais prestigiado da cidade mantinha um caso com uma
das alunas.
Mas não consegui.
Apenas chorei.
— Valentina!
Quando o rosto familiar enfim abriu espaço na multidão que me
sufocava, quando encarei o cisne branco e então nosso instrutor novamente,
decidi: não dançaria outra vez. Não queria dançar.
A pessoa que me presenteara com minhas primeiras sapatilhas; o homem
que me fizera voar pela primeira vez; a pessoa que me ajudara nos
alongamentos todas as manhãs...
Era ele.
Eu dançava por causa dele.
Quando aprendia uma peça nova, era para fazer seu peito inflar de
orgulho. Quando executava passos extremamente difíceis, era para ver seus
olhos brilharem como quando ele via mamãe dançar pela casa.
Meu melhor amigo.
Meu professor.
Meu... pai.
— Tina! — Ele se ajoelhou ao meu lado, me tomando em seus braços.
Seus olhos continham terror e lágrimas, o rosto jovem demais para a idade
se contorcendo em preocupação e culpa. — Filha, onde dói?
Não respondi.
Queria me afastar, mas não consegui.
Meu pai tocou minha perna, o ponto onde a dor era crucial.
O grito escapou da garganta, turvando minha visão.
Estava doendo tanto...
Aquele homem tinha destruído tudo o que construíra. Todo amor, carinho
e admiração. Tudo. Tudo acabou quando a mulher de Cisne virou o rosto
naquele dia, se revelou. Quando declarou que estava apaixonada por ele.
Eu a admirara também.
Fora minha inspiração, a de todas as outras na academia.
— Tina, pelo amor de Deus! — Papai tocou meu rosto, aflito. — Diga
alguma coi...
— Tire essas mãos imundas dela! — Jeremmy avançou pelo mar de gente
que cochichava. Todos sabiam como eu idolatrava meu pai, sabiam como
éramos próximos.
A filha prodígio de Matt Ward.
Meu irmão o empurrou para longe, fazendo-o cair sentado, as mãos no
chão. Era como se o homem ao seu lado não passasse de um ser repugnante,
e não a pessoa que o criara com tanto amor, sempre nos tirando risadas, nos
lançando olhares de repreensão quando fazíamos algo errado. Jeremmy, que
era sempre tão gentil e reservado, olhou para nosso pai com um aviso.
— Toque nela, desgraçado, e eu quebro sua maldita perna também.
— Jeremmy...
— Perdeu o direito de se importar quando traiu nossa família — ralhou o
jovem, passando uma das mãos em minhas costas. — Volte para suas
alunas.
Meu pai não se moveu, como se o filho tivesse, de fato, quebrado alguma
parte de seu corpo.
— Tina... — Meu irmão me pegou com cuidado no colo, me tirando com
facilidade do chão. Não demorou muito para eu avistar o rosto da minha
melhor amiga. — Vai ficar tudo bem.
Me agarrei ao pescoço do rapaz, manchando de maquiagem e choro a
camisa social branca que ele fizera questão de comprar apenas para usar
naquela noite.
— Quero ir embora — sussurrei.
— Vamos para o hospital — rebateu, praguejando quando precisava pedir
a alguém para abrir espaço.
Tentei protestar, mas fui interrompida quando Gina berrou com uma
mulher curiosa que não saía da frente. Apenas afundei o rosto no ombro do
meu irmão e apertei os olhos fechados, desejando que aquele pesadelo
acabasse.
Tudo doía: minha perna quebrada, a cabeça que bati na queda, os pulsos e
os braços... Mas a dor no peito era a mais aterrorizante.
Eu não conseguia respirar.
— Você vai ficar bem — meu irmão continuou, sussurrando em meu
ouvido enquanto se apressava cada vez mais para me tirar do anfiteatro.
Gina estava empurrando os curiosos. Jeremmy, me mantendo presa em seus
braços. As feições bonitas do rosto dele pareciam misturadas ao ódio, e à
preocupação, e à tristeza. — Vamos ficar bem.
Quando o céu escuro e estrelado alcançou meus olhos, me permiti
encarar o cenário atrás de Jeremmy, o prédio em que eu passara anos
sonhando em me apresentar ficando para trás.
Diminuindo e diminuindo.
Naquela noite, deixei ali a coisa que mais me motivava a levantar pela
manhã:
Meu sonho.
“Não há nenhuma combinação de palavras
que eu poderia colocar na parte de trás de um cartão postal
A canção que eu posso cantar.
Mas eu posso tentar pelo seu coração.
Nossos sonhos, eles são feitos de coisas reais
Como uma caixa de sapatos de fotografias
Do tom sépia amoroso.
Amor é a resposta,
Pelo menos, para a maioria das perguntas no meu coração
Como “por que estamos aqui?” e “para onde vamos?”
E “por que é tão difícil?”.
Não é sempre fácil e às vezes a vida pode ser enganadora.
Vou te dizer uma coisa:
É sempre melhor quando estamos juntos.”
Better Together (Jack Johnson)
TINA

— Tá bom, mãe... — Revirei os olhos apoiada na sacada do hotel, o


celular em uma das mãos. Mais de quinze minutos se passaram e minha
mãe continuava a repetir as mesmas orientações que me dera em casa, e no
carro, e minutos antes de eu embarcar. — Eu vou ficar bem.
— Ah, minha filha, eu sei que sabe se cuidar, é só que... — Suspirou. —
Você está do outro lado do mundo! Sozinha! Com a Gina!
Ri.
— Foi você quem me fez querer vir para cá, pra começo de conversa.
— E estou começando a me arrepender disso.
Senti o sorriso em meus lábios.
— Sei que está preocupada, mas vou tomar cuidado, ok? — Me inclinei
um pouco sobre a balaustrada, estreitando os olhos para ver melhor através
do vidro da loja rodeada de tijolinhos e flores.
Era uma floricultura?
— Só prometa que vai me ligar todos os dias, ouviu, Valentina? —
Tentou usar seu tom de voz mais ameaçador. — Se eu não receber uma
notícia sua em vinte e quatro horas, juro que...
— Mãe — a interrompi, rindo —, eu vou ficar bem, relaxa.
Sabia que a Sra. Ferreira tinha mais a dizer, mas, vencida, ela soltou um
suspiro cansado.
— Certo. Tudo bem — disse, cedendo. — Se divirta e... tente esquecer
tudo por um tempo. Ok?
— Sim, senhora.
— E fique de olho na Giovanna, ou ela vai se ver comigo.
Lancei um olhar de esguelha para dentro do quarto onde minha melhor
amiga roncava e babava.
Dormindo como uma pedra.
— Ela vai se comportar — garanti.
Gina e eu chegamos tarde da noite por conta de uma bagunça com nossas
malas e um mal-entendido com o quarto que resultou em muita dor de
cabeça. Só pudemos disfrutar da maciez do colchão do hotel quando o
relógio apontou para as duas da manhã.
Estávamos exaustas, mas, diferente de Gina, acordei com o nascer do sol.
Meu irmão normalmente dizia que eu tinha o espírito livre de um velho
de setenta anos. Acordando às cinco da manhã para preparar o café e ler as
notícias do dia, saindo de casa para caminhar e se preparando para dormir
às sete da noite.
Era verdade.
Quando abri os olhos naquela manhã, não passava das seis. Mesmo com
o fuso-horário, não conseguira permanecer deitada por muito tempo.
Não podia dizer a mesma coisa da minha companheira de quarto...
— Mensagens com relatórios até as dez, pelo menos trinta fotos no
grupo por dia e um chaveiro de cada lugar que passar. — Foram as ordens
de uma mãe super preocupada. — Entendido?
— Sim, chefe.
— Ótimo. — Outro suspiro. — Se divirta muito, filha. Te amo.
— Também te amo.
Joguei o celular sobre a cama e voltei a me concentrar na loja de flores.
Não conseguira ver muito do aeroporto até o caminho para o hotel e
me impressionara com a visão da Fontana, do Coliseu e das ruínas que vira
de passagem, mas aquela pequena rua de paralelepípedos recheada de
pequenos prédios e sacadas, flores por todo lado e tanta cor...
O sol ainda estava longe de pintar toda aquela viela, mas já adornava com
seu brilho alaranjado alguns pontos das construções.
Parecia... mágico. Pontos de luz estrategicamente distribuídos sobre
tijolos desgastados pelo tempo e calçadas simples.
Roma.
Ruelas estreitas, asfaltos de pedras e cardápios de variados tipos de
massas e vinhos, o cenário de tantos filmes e livros bem diante de mim.
Ainda era cedo. Não havia muitas pessoas na calçada, e as poucas que era
possível ver começavam a abrir seus comércios. O tumulto de turistas em
Roma iniciaria em breve.
Jeremmy e minha mãe me compraram aquela viagem dos sonhos de
aniversário. Não era o meu plano inicial: eu não permitira que gastassem
comigo nos dois anos anteriores, mas os dois conseguiram me convencer
naquele ano. Um pacote completo, uma viagem mágica pela Itália.
Se quisesse, poderia ir a pé até o Coliseu ou ao Palazzo, até mesmo
visitar a cidade do Vaticano, sem gastar absolutamente nada em locomoção.
Mas não o faria, não com o sedentarismo em pessoa como companhia. Eu
conseguiria visitar todos os pontos turísticos interessantes de Roma em um
único dia se Gina não reclamasse tanto.
Observei uma senhora de cabelos cinzentos finalmente sair da loja de
flores. Ela parecia ser tão baixa quanto aparentava, a pele marrom-clara
bronzeada contrastando lindamente com o xale vermelho e preto que cobria
seus ombros. A mulher pendurou mais alguns vasos de flores e plantas
antes de virar a placa na porta de vidro e entrar.
Decidi que a primeira coisa que faria no início da minha estadia em
Roma seria descobrir o que havia dentro daquela loja.
Me troquei rapidamente, prendendo parte dos meus — agora curtos
demais — cabelos dourados, deixando alguns cachos livres do elástico.
Peguei o cartão do quarto e meu celular, enfiando-os dentro da minha
pequena bolsa marrom e passando a alça por meu pescoço logo em seguida.
Sabia que Gina não me deixaria em paz se eu a acordasse antes das nove
para o café da manhã, então deixei uma mensagem avisando que voltaria
logo.
Saí do quarto colocando meus inseparáveis fones de ouvido, pronta para
mais uma playlist surpresa que minha prima, Helena, me enviava
semanalmente.
“Essa eu fiz especialmente para a sua viagem”, dissera a garota dois dias
atrás. Aquela baixinha tinha um gosto bem diversificado para músicas: ele
ia desde clássicos a pop, músicas dos anos oitenta a rap. Depois que eu
deixara o balé, me desconectei daquela parte minha que respirava música.
Ainda adorava peças clássicas e as composições melancólicas de Ludovico
Einaudi, mas vinha evitando qualquer conexão com a dança e meu pai
desde o dia em que vira mamãe fazer as malas e sair de casa. Desde o dia
em que vira papai pela última vez.
Passei um tempo com minhas primas no Brasil. Helen e Lena se
recusaram a me deixar viver aquele momento de luto e silêncio. Viver sem
música é viver sem respirar, Helen dissera.
E era verdade.
Então, pedia que minhas primas me enviassem suas playlists favoritas
toda semana. As duas se revezavam e competiam para ver quem me
impressionava mais no gosto musical.
Helena tinha um gosto indiscutível para música e me ganhava sempre.
Aquela playlist em especial fora perfeitamente escolhida para a magia de
uma viagem pela Itália.
Deixei que a música tocasse e, mesmo cantada em coreano, ela se
conectava bem com o lugar onde eu estava. O Sole Mio.
Atravessei o saguão do hotel segurando a alça fina da bolsa com as duas
mãos, batucando os dedos no ritmo da música. Quando finalmente alcancei
a fachada de flores, percebi que o exterior era apenas um atrativo para o que
havia no interior.
Não existiam mais flores lá dentro, mas prateleiras diversificadas de
potes e doces.
Meus ombros caíram um pouco, decepcionada.
— Entra — a voz disse em italiano ao meu lado, me fazendo recuar
assustada. De onde ela saíra? — Dê uma olhada.
— Eu... — pigarreei, evitando os olhos curiosos da senhora de idade. —
Desculpe, pensei ser...
— Uma floricultura — respondeu em um inglês claro, mas carregado de
sotaque. — Todos pensam. É proposital. — Suas mãos pequenas e
enrugadas seguraram as minhas. — Entre. São doces caseiros, eu mesma
que fiz.
Contive a careta.
— Não gosto de doces.
— Talvez por isso sua vida esteja tão amarga ultimamente — comentou a
dona da loja simplesmente, me empurrando até a entrada.
A encarei boquiaberta.
— Minha vida não é...
— Per favore... — insistiu. — Faça o dia desta velha entediada feliz.
Suspirei.
— Certo.
Fui recebida por um aroma sutil e delicioso de flores e doces. Tudo era
muito organizado e limpo; os potes e embalagens eram artesanais,
claramente preparados com muito amor. Gina adoraria passar ali mais tarde.
Talvez eu levasse um daqueles quitutes para que ela provasse. Minha amiga
sonhava em abrir uma confeitaria em Boston, vivia sujando a cozinha da
mamãe nos fins de semana, quando testava uma receita nova.
Segurei um dos vidros. A embalagem consistia em um retalho de pano
verde e vermelho com uma corda de sisal mantendo-o preso ali, fechado
com um laço que segurava uma flor seca.
Sorri.
— Este é o mais encomendado. A especialidade da casa. — A mulher
sorriu, revelando rugas profundas nos cantos dos olhos. — Gostaria de
provar, bambina?
— Acho que vou levar pra minha amiga, se a senhora insiste — respondi,
entregando o pote a ela, para que cobrasse e embalasse.
— E pra você?
— Não gosto de...
— Todos gostam de doces. Alguns mais do que os outros, mas vida fica
mais bonita quando a adoçamos um pouco. Não acha? — Se direcionou até
o balcão.
Não é tão simples
Suspirei, a seguindo.
— Chegou faz pouco tempo? — perguntou enquanto colocava o pote
escolhido na sacola.
— Cheguei ontem.
— Ah, então não pôde conhecer Roma ainda?
— Não... — Cutuquei a folha de uma planta que enfeitava o balcão de
madeira. — A senhora me indicaria por onde devo começar?
Um sorriso gentil iluminou o rosto dela.
— La Fontana di Trevi. — Então, me estendeu a sacola. — É um lugar
mágico.
Sorri.
— Mesmo?
— Meu filho conheceu a esposa lá — revelou. — Foram um casal feliz
por bons anos.
Foram, hã? Não eram mais. O clichê da fonte do amor não parecia ser
muito eficaz.
— Uma doença levou Isabela de nós — explicou a dona da loja. — E
meu querido Pietro... faleceu há um ano.
Me senti envergonhada, mesmo não tendo dito nada. Criticar um casal
apaixonado por se conhecer em uma fonte, mesmo que em pensamento, me
constrangeu. Não acreditar que pessoas podiam ser felizes porque minha
mãe e meu pai não se amavam mais me fez querer pedir perdão à senhora
parada diante de mim.
Ela me respondeu como se soubesse daquilo.
— Sinto muito — consegui dizer. — Deve ser... solitário.
— Não se preocupe. — Me olhou de um jeito materno. — Tenho meu
nipote pra me fazer companhia.
Nipote... imaginei ser seu gato ou algum bichinho de estimação.
Quando estendi o dinheiro para que a dona da loja cobrasse, a mulher me
olhou bem nos olhos, como se visse algo além do físico.
— Qual seu nome, bambina?
Pensei se deveria mesmo responder.
— Er...Valentina.
— Valentina... — Seu sotaque acentuou o “tina” de uma forma
melodiosa. — É um nome lindo. Sabe o que significa?
— Hm... Eu...
— Forte. Vigorosa. — Sorriu. — Valente.
— Não sabia.
— Bom, agora sabe. Deve se lembrar disso sempre. — Ela apontou para
as prateleiras atrás de mim. — Quero que escolha um, por conta da casa.
— Eu não posso.
— Eu insisto. — O canto dos lábios continuou esticado; parecia natural
para ela sorrir. Não de um jeito sinistro (afinal, era uma velha solitária em
uma loja de doces), mas gentil, como se não custasse para a mulher ser
amável com qualquer um que cruzasse seu caminho.
Meu instinto me garantiu que, de alguma forma, poderia confiar naquela
nova conhecida.
Assenti.
Girei o corpo sobre os calcanhares e caminhei entre as fileiras de doces,
dessa vez observando cuidadosamente cada embalagem, passando a ponta
dos dedos nos rótulos dos biscoitos caseiros, barras coloridas... Tentei ler e
fracassei em entender o que cada um dizia. Todos eles tinham um pequeno
bilhete dependurado.
O sininho na porta tocou, anunciando a chegada de um novo cliente. Não
me virei para confirmar, apenas continuei pesquisando o que faria Gina
sorrir mais quando entregasse a sacola de guloseimas para ela.
— Sono arrivato![1] — a voz masculina disse em tom alegre. — Come stai
stamattina[2], nonn...
O rapaz continuou falando com a senhora. Me dei conta, então, que não
perguntei seu nome, e a mulher iniciou uma conversa animada com o
cliente em sua língua nativa.
Fiquei alguns minutos concentrada no que escolher e acabei, por fim,
selecionando um dos biscoitos envoltos por plástico transparente e fita
vermelha.
Os olhos escuros da italiana desviaram do cliente para mim, e o sorriso
estava de volta quando ela percebeu o que eu tinha nas mãos. O comprador
continuou de costas, anotando algo sobre o balcão.
— Cantuccini — disse, tomando o biscoito das minhas mãos para
[3]

colocar na sacola artesanal. — Esse aqui fica delicioso com o doce que
você comprou, ou com vinho.
— Tenho certeza que a senhora é uma excelente cozinheira — comentei,
aceitando a sacola personalizada, seguida da pequena flor branca que a
dona da loja me estendeu. — Grazie![4]
O jovem ao meu lado abandonou a caneta sobre o papel e sorriu para a
mulher.
— É a melhor cozinheira da... — Ele parou de falar quando seus olhos
escuros encontraram os meus.
O sorriso em seu rosto morreu imediatamente.
Ele era novo e bonito, mas não analisei muito seu porte físico nem tentei
compreender a surpresa em seus olhos, pois meu celular começou a tocar
alto. Giselle: Andantino ecoou pela loja, anunciando uma chamada.
Desconectei rapidamente o fone e atendi, pedindo licença para as duas
pessoas que me encaravam.
— Oi — cochichei em português, me virando para a saída.
— Você saiu sem mim?!
Revirei os olhos.
— Só estou do outro lado da rua, Gina.
— Ah! — Suspirou, bocejando em seguida. — Então sobe pra gente
tomar café e ir ver o templo lá. Eu queria dormir mais um dia, mas parece
que não vou conseguir.
— Tô subindo.
— Ótimo. Vou tomar banho. — E desligou.
Me virei para a senhora atrás do balcão, reparando que o rapaz italiano
ainda parecia um pouco intrigado comigo, como se visse um tipo de
fantasma. Sabia que minha pele ficava extremamente pálida pela manhã,
mas não era motivo para me olhar daquele jeito.
— Er... Obrigada por isso. — Ergui a flor e a sacola para a mulher. —
Não vou mais incomodar a senhora.
— Você não é incômodo, bambina. Volte sempre que quiser.
Retribuí seu sorriso.
— Tenham um bom dia — falei, acenando para os dois. — Ciao.[5]
Empurrei o vidro, mas, antes de sair, escutei a voz grave falar mais baixo,
em italiano:
— Nonna, chi é quella ragazza?
TINA

— É, não achei grandes coisas. — Gina jogou as tranças do cabelo escuro


para o lado, parando um momento para erguer o celular e tirar uma última
selfie com a Cidade do Vaticano que ficava para trás.
A olhei incrédula.
— Claro que não. — Bufei. — Não largou o celular por um minuto!
Não me importara se Giovanna prestava ou não atenção. Na hora, só
conseguia pensar em como aquelas paredes e tetos eram incríveis. Havia
pinturas minuciosas por toda parte, contando histórias que eu não entendia,
revelando um passado que eu não conhecia.
Por mim, teria passado o restante da tarde naquele lugar, mas Gina
precisou ir ao banheiro e nos perdemos do guia turístico que
acompanhávamos às escondidas.
Minha amiga fez careta, limpando o suor da pele marrom-clara. O sol
estava no auge de sua atuação àquela hora do dia.
— Eu estou cansada, Tina — choramingou. — E com a fome de um leão
de jejum há uma semana.
— Você acabou de comer dois pedaços de pizza!
— Me deixe explicar como o corpo humano funciona, gracinha. — A
jovem acariciou a barriga exposta, o pequeno pingente do piercing prateado
em seu umbigo oscilando em resposta. — De duas em duas horas não é
“acabou de comer”. Eu andei por duas horas! Já queimei todo o
carboidrato. Preciso de mais.
Não consegui não rir.
— Então vamos passar naquela feira culinária que vimos a caminho do
hotel — sugeri, folheando o pequeno caderno que mantinha comigo desde
que soubera que viajaria. — Tem uma exposição de arte lá perto que
podemos visitar em seguida e...
A expressão no rosto dela me fez parar.
— Não pode largar esse cronograma por um segundo? — resmungou,
tirando da minha mão a caderneta de anotações onde estava tudo o que eu
precisava saber para sobreviver aos próximos dias na Itália: horários,
exposições, lugares, palavras-chaves para me comunicar... — Se diverte um
pouco, mulher!
— Eu estou me divertindo! — Tentei pegar o caderninho de volta, mas a
brasileira o enfiou entre o sutiã, como fazia com o celular. — É o meu
aniversário, sabia? Deveríamos fazer o que eu quero.
— O que você quer é chato. — Os lábios carnudos se esticaram em um
sorriso sacana. — Deveríamos estar vivendo nossas loucas aventuras
românticas na cidade do amor.
— A cidade do amor é Veneza — retruquei, voltando a andar.
— Então vamos para Veneza!
— Veneza é o nosso último destino, está no crono...
— No cronograma... — A escutei bufar. — Eu entendo que goste de
bancar a garota certinha, Tina, mas existe uma regra até mesmo para jovens
chatas como você.
— Que é...
— Não ser certinha na cidade do amor!
— Só quero aproveitar ao máximo a viagem, ok? Não quero desperdiçar
meu tempo com um italiano enquanto poderia muito bem estar conhecendo
cada parte do interior do Coliseu.
— Dá para conhecer bem o interior do Coliseu com um cara... — Aquele
sorriso insinuativo outra vez.
— Você é impossível!
— Sou, não sou? — Gina enganchou o braço no meu. Depois de alguns
minutos apenas andando na calçada de pedras e espantando alguns pombos,
ela disse, mais séria: — Só quero que pare de pensar demais, Tina. Não é
sempre que se ganha uma viagem dessas, sabia? Deveria ter deixado essa
agendinha no quarto pra se divertir de verdade. Quero minha amiga
sorrindo, e se apaixonando, e fazendo loucuras...
— Trouxe você nesta viagem, acredito ser loucura suficiente.
Ela cutucou a lateral do meu corpo.
— Me promete que vai pensar menos a partir de agora? — pediu. —
Huh? Só por quinze dias, então você volta a ser a clássica entediante
Valentina de sempre.
Observei as fileiras de barracas mais adiante, o movimento de pessoas.
Em algum lugar, um violão tocava. Turistas não paravam de falar e tirar
fotos, crianças brincavam de correr atrás dos pássaros que se amontoavam
na praça.
Suspirei.
Analisei o rosto da minha amiga, que esperava uma resposta.
Gina sempre fora a mais aventureira de nós duas, desde pequena. Às
vezes, meu irmão dizia que ela fugia e fazia suas bagunças por rebeldia,
para esquecer os pais, que não estavam mais vivos. Mas eu sabia que aquela
era ela, um pássaro livre que voava para onde bem entendesse.
Eu adorava a personalidade única daquela garota, o jeito incomum com
que se vestia, os comentários aleatórios que vez ou outra surgiam, as
crenças peculiares em coisas ridículas. Brigava com Giovanna todos os
dias, mas era a pessoa que me acolhia quando tudo parecia desmoronar.
Eu poderia tentar ser mais como ela por quinze dias.
— Tudo bem.
Um sorriso enorme iluminou o rosto da jovem.
— É isso aí! — Me deu um beijo estalado na bochecha. — Vamos
aproveitar o resto do dia sem planejamento algum!
— Certo, mas ainda tem um lugar que quero conhecer hoje.

O monumento mundialmente conhecido era de fato tão majestoso quanto


diziam.
A quantidade gritante de pessoas acumuladas ali fora me fizera torcer o
nariz várias vezes para a ideia de me aproximar tanto, mas com Gina as
coisas eram mais diretas e certas. Ela nos fez atravessar o mar de gente até
conseguirmos ver de perto, tocar. Ignorei os olhares feios em nossa direção
quando coloquei os olhos nela.
Fontana Di Trevi.
O barulho de conversa não conseguia sobressair ao som da cascata que
caía no centro, como o ponto focal da arte. O som de moedas tilintando e se
chocando contra a água era mais melodioso do que eu pensara. Quase
conseguia escutar os sussurros de desejos em diversas línguas sendo
direcionadas à fonte. Pedidos bobos como conhecer o amor de sua vida,
preces de agradecimento por terem conseguido chegar ali, outras orações
para que tivessem a chance de retornar a Roma um dia...
Toquei a borda áspera e fria, apesar do sol que fizera durante o dia.
Deixei meus olhos correrem pacientemente pelos detalhes de cada estátua
que emoldurava a Fontana.
No geral, todo o monumento deveria alcançar cerca de vinte metros ou
mais. Era maravilhosamente enorme. No centro, quatro pilastras que
compunham a fachada de Palazzo Poli separavam as três estátuas
perfeitamente esculpidas. Pareciam tão reais que eu poderia jurar que uma
delas me encarava diretamente.
O homem do meio, sob um grande arco, era o maior. O personagem
principal. Tinha vestes que pareciam um grande lençol. Elas o cobriam da
cintura para baixo e corriam para o chão, como se o vento tentasse despi-lo.
O resto daquela vestimenta iniciava o caminho para a fonte que jorrava,
como se fosse ondas. Outras esculturas se erguiam com elegância e beleza
barroca: homens montados em cavalos; água cristalina jorrando.
As luzes na água complementavam toda a imensidão divina do lugar,
criando nuances brilhantes com os tons e tamanhos diversificados de
moedas que se acumulavam ali dentro.
É um lugar mágico, a senhora da loja dissera. De fato.
— Preciso de mais moedas — Gina finalmente se virou para mim.
— O quê? — Ri. — Vai ficar dando gorjeta pra Fontana agora?
— É que eu já fiz meu pedido com uma, usei três para outro desejo mais
importante e agora preciso de mais três moedas para você.
Eu conhecia bem minha amiga, mas às vezes não me ocorria que a jovem
realmente falava sério.
— Não, obrigada.
— Qual é, Tina! — Massageou a têmpora com os dedos finos recheados
de anéis de todas as formas e tamanhos. — Como pode vir à Fonte de Trevi
e não fazer um pedido? Sabe quantas pessoas queriam estar no seu lugar
agora?
— Eu doei meu pedido pra você, não vou ficar bancando desejo que
sequer vai se realizar.
Gina arfou, ofendida.
— Como ousa?!
Gargalhei.
— Fez seu pedido. É o que importa. — Ergui meu celular para tirar mais
uma foto da Fontana para mandar para mamãe e Jeremmy. — Vamos.
— Disse que deixaria de ser a certinha incrédula por um dia.
— Eu fiz tudo o que você pediu, Giovanna! Até tomei gelato e provei
todos aqueles doces da feira.
Meu estômago se revirava ao pensar em todos eles.
— Você adorou o gelato que eu sei. — Me abraçou pelos ombros e
fez biquinho. — Só mais três moedas, vai? Dá má sorte deixar a Fontana
sem falar com ela.
E Gina realmente acreditava nisso. Eu sabia.
Os olhos castanhos de minha amiga brilharam como os de um cãozinho.
Inspirei como uma mãe paciente.
— Três moedas, e você paga o jantar.
— Yay! — Bateu palmas.
Enfiei a mão dentro da pequena bolsinha de moedas e tirei três delas de
lá, entregando à Giovanna, que as recebera como uma criança ansiosa. A
jovem se voltou para a água e fechou os olhos. Demorou mais dessa vez,
séria, como se realmente iniciasse uma conversa importante com a fonte.
Depois de sussurrar alguma coisa ininteligível para as moedas, abriu os
olhos e as jogou na Fonte do amor, o reflexo da água cristalina e recheada
de pedidos iluminando sua pele marrom de uma forma linda.
Tive vontade de tirar uma foto dela, sabia que minha amiga adoraria uma
nova para o perfil em suas redes sociais. Mas antes que pudesse realizar tal
proeza, ela abriu um enorme sorriso e se voltou para mim.
— Pronto.
— O que você pediu? — perguntei, curiosa.
— Não vou contar, dá azar.
Revirei os olhos, guardando o celular na bolsa.
— Fala sério...
— Quando se realizar, eu te conto. — Enroscou o braço no meu.
— Nunca vou descobrir, então.
Gina me deu uma cotovelada.
— Anote minhas palavras, Valentina Ferreira. — Apontou um dedo
pintado de preto para mim, usando o sobrenome de minha mãe em tom de
ameaça. — Quando meu pedido se realizar, não venha correndo até mim
pedindo moedas para jogar na Trevi.
Soltei uma risada, a puxando em direção ao canto mais isolado da fonte.
— Ela não funciona.
— É claro que funciona! — Falando ao pé do meu ouvido, completou: —
E dizem que falar mal dela é uma maldição.
Meus lábios repuxaram em um pequeno sorriso.
— Não funciona — repeti em desafio, desta vez encarando uma das
estátuas da fonte.
É um lugar mágico, a voz da senhora da loja de doces retornou.
— É apenas uma fonte que o governo italiano usa para atrair pessoas —
continuei. — Nada de magia e pedidos realizados.
Gina parou de andar e se virou para a fonte:
— Só pra constar, eu acredito em você, ok? — disse para o monumento.
— Não me puna pelas ações dessa incrédula.
— Eu... — parei, inspirando fundo.
Impulsionada pela discussão que sabia que poderia durar mais algumas
horas, olhei para os lados e me certifiquei de que ninguém nos observava.
Era arriscado e impensado, mas eu queria provar para Gina, para a
senhora da loja de doces e até para mim mesma de uma vez por todas que
Fontana de Trevi não era nada além de um ponto turístico.
— Ok! — Puxei o ar de novo, sentindo o coração acelerar, como se
estivesse prestes a pichar a Fontana. — Para te provar, vou pegar uma
lembrancinha com a sua amiga Trevi.
Giovanna franziu a testa.
Não dei a ela tempo para perguntar, apenas mergulhei a mão rapidamente
dentro da fonte e pesquei a primeira moeda que tocou meus dedos.
TINA

Gina continuou me encarando boquiaberta. O garçom tinha acabado de se


retirar com os nossos pedidos quando minha amiga puxou minha mão e
tirou a moeda de cinco centavos americanos com uma pequena lasca na
ponta.
Demorei um pouco para recuperar o fôlego da corrida, fugindo como se
realmente tivesse cometido um crime. Quando me vi longe da Fontana de
Trevi, comecei a rir, e depois passei a me preocupar com o fato de haver
câmeras escondidas pela praça. Por fim, ali estava, sentada à pequena mesa
em um restaurante tradicional perto do hotel.
— Não sei o que me preocupa mais — Gina finalmente disse, me
devolvendo a moeda prateada —: um ato espontâneo de rebeldia da Srta.
Toda Certinha ou o que essa moeda pode fazer com você.
— Nada. — Relaxei na cadeira de madeira, afastando os cachos dourados
que caíam em meus olhos. — É só uma moeda, não uma varinha mágica.
— E se algo de ruim acontecer com você? Algum tipo de maldição ou...
— É só uma moeda — repeti.
— Isso é crime, sabia? — continuou minha amiga, embasbacada. — Você
não pode roubar a Fontana, Valentina!
— Ninguém viu. — Eu achava. — E paguei sete moedas a ela, só peguei
o troco.
Gina riu com incredulidade.
— Certo, quero minha amiga de volta. — Apontou o indicador enfeitado
por um anel largo com pedrinhas verdes. — Você me assusta.
Ri.
Ergui a moeda na altura dos olhos antes de guardá-la na bolsa.
— É um souvenir, para eu me lembrar da primeira besteira que fiz.
— Rebelde — debochou, mesmo ainda parecendo nervosa, como se
uma das estátuas da Fontana fosse deixar o monumento para vir até aqui
nos cobrar a moeda de volta.
— Sabe que você não pode me julgar. Já fez coisas piores. — Como
passar a noite na cadeia por bater em um policial que cantou ela, quebrar o
nariz de um dono de petshop porque “era extremamente prejudicial para a
saúde dos coelhinhos deixá-los presos em gaiolas tão pequenas”, fazer um
protesto sobre o almoço no alto-falante da escola ou fingir namorar o amigo
gay para que os pais do garoto o deixassem em paz. — Você, Giovanna
Albuquerque, é capaz de fazer coisas bem mais absurdas do que furtar a
fonte do amor.
Gina pegou uma tira de torrada do prato no centro da mesa e revirou
os olhos.
Mas o canto dos lábios cheios a entregou.
— Com certeza.
Encarei meu celular com uma mistura intensa de raiva,
incredulidade e mais raiva.
Era o quê?!
Liguei para o número na tela, andando de um lado para o outro no quarto
do hotel, inquieta.
Não demorou para a voz enrolada atender.
— Como assim não vai voltar para cá hoje, Giovanna?! — Minha voz se
alterou em dois a três tons.
Eu sabia que deixá-la naquele restaurante com vinho e um italiano bonito
não fora uma boa ideia. Era de Gina que eu estava falando!
“Não me espere acordada, se divirta com o seu cronograma.” Quanto
vinho ela havia tomado para me enviar uma mensagem daquelas? Já
passava das onze da noite!
— Sabe o que é? — Ela riu para alguém que cochichou ao fundo. — Eu
estou apaixonada.
Massageei a têmpora, contendo a irritação e a preocupação ao perguntar
entredentes:
— Perdeu o juízo?
— Ah, sim, o amor não tem razão...
— O caramba para o amor, Gina! — praguejei. — Onde você está? No
restaurante? Vou ir te buscar...
— Estou em uma festa com o Paolo... E depois vamos para o
apartamento dele.
— Gina...
— Sou bem grandinha, então não tente agir como a minha mãe — disse,
parecendo mais sóbria.
Eu sabia, sabia que agir daquela forma a irritava profundamente,
mas o que ela queria que eu dissesse? Divirta-se?
— A gente conversa amanhã, ok? — Paolo a chamou no fundo, e escutei
risadas e música. — E não se esqueça de devolver a moeda para a
Fontana. Não vamos provocar a ira dela, capisce?[6]
Antes que eu pudesse responder, Gina encerrou a chamada.
Encarei meu celular por um longo tempo, piscando para o aparelho sem
acreditar, a boca escancarada com pura e genuína indignação.
Era Gina, eu não deveria estar surpresa, mas me trocar por um italiano
que conhecera em um restaurante qualquer? Fala sério!
Meu sangue fervia quando digitei uma longa mensagem para ela, usando
de todo lado dramático que herdara da família Ferreira para escrever o
maior texto da minha vida. Estávamos ali para comemorar o meu
aniversário! Eu aceitara ficar de vela por quase uma hora quando Paolo
aparecera — ignorando completamente os avanços do amigo dele, que mal
conseguia falar inglês. Mas me mandar para o hotel para passar a noite com
um estranho porque ele tinha uma voz grave sedutora e um cabelo de
propaganda de condicionador era demais para mim.
Gina era assim, desde pequena. Fazia o que bem entendesse sem se
incomodar com as consequências.
Ou com os outros.
Não ter os pais por perto sempre resultava na rebeldia dela.
Bufei, jogando o celular de qualquer jeito na cama, cada ação após essa
executada com raiva, ecoando pelas quatro paredes do quarto o quanto
minha amiga era egoísta e irresponsável. Desejei que Paolo fosse um
babaca cretino, que Gina voltasse para o hotel com a consciência abastecida
de remorso.
Depois de tomar um banho quente e enviar as fotos do dia no grupo com
minha mãe e Jemmy, me joguei na cama e encarei a parede, deixando a
raiva de lado para dar lugar aos questionamentos que me preocupavam,
retirando o desejo sobre Paolo a decepcionar e torcendo para que ele
cuidasse bem dela.
Suspirei.

TINA (00:23): Vê se não faz besteira. E não toma vinho demais. Toma
cuidado. Sei que sabe se cuidar, mas me preocupo mesmo assim. Vou te
esperar aqui amanhã.

Deixei o celular sobre a escrivaninha e tentei dormir, mas não consegui.


Fiz alongamentos por uma hora, mas nada adiantou. Não conseguia dormir.
Observei a bolsa sobre a cama de Gina e a peguei, voltando para o lugar
no meu colchão, apoiando a cabeça em uma das mãos ao erguer a moeda
que furtara mais cedo.
A girei entre os dedos, encarando o objeto fixamente por tempo demais.
Esqueci de Gina com ela, me perguntando a quem pertenceram aqueles
cinco centavos e qual fora o desejo que a pessoa fizera à Fontana antes de
jogá-los na água.
Senti um arrepio na nuca ao virar de coroa para cara. Cara e coroa.
Não acreditava em Fonte, desejos e magia, não tinha medo das lendas e
do que poderia receber de Trevi por roubá-la, mas a pessoa que jogara
aquela moeda na Fontana, sim.
Quem usara aquela moeda para fazer um pedido acreditava nessas coisas.
Não sentia como se tivesse roubado o monumento e o governo, mas
sim... o desejo de alguém.
Suspirei, analisando o objeto gasto uma última vez.
— Amanhã cedo — prometi baixinho, finalmente sentindo meus olhos
pesarem. — Amanhã cedo volto à fonte e te devolvo.
Coloquei a moeda sobre a escrivaninha.
Se eu acreditasse em fonte do amor e jogasse três moedas esperando meu
desejo se realizar um dia, não gostaria que alguém simplesmente furtasse
minha oferta da água por diversão.
Eu devolveria a moeda, apenas... por desencargo de consciência.
Seria a primeira coisa que faria pela manhã.
Bocejei, sentindo os batimentos cardíacos desacelerarem, os olhos
pesarem.
Pensei em Gina, pensei em Paolo, pensei em moedas e desejos e pedidos
não realizados... Não demorou muito até que meus olhos se fechassem e eu
caísse em um sono profundo.
TINA

A fincada aguda na cabeça foi a primeira coisa que senti quando tentei
abrir os olhos. Procurar distinguir o que era aquela luz exagerada em meu
rosto só tornou tudo pior. Um gemido rouco deixou minha garganta quando
reuni forças suficientes para me levantar. A dor de cabeça intensificou
quando entendi que aquela claridade era a luz forte de um dia ensolarado.
Senti o gosto amargo na boca ao tentar falar, mas nada compreensível
deixou meus lábios.
Tentei me levantar outra vez, mas uma mão me impediu com delicadeza.
A voz grave era abafada pelo zumbido em meu ouvido. A pessoa disse
algo em italiano, mas não para mim: respondeu a alguém. Pessoas se
aproximavam e se reuniam ao meu redor, me lembrando de uma
apresentação fracassada e uma perna quebrada.
Não consegui ver rosto algum, apenas sombras embaçadas pelo sol, que
parecia querer se exibir. Fechei os olhos e tentei me acalmar.
Respirei fundo e me sentei, a mão do estranho me dando apoio nas
costas.
Estreitei os olhos para o chão de pedras quentes e os turistas curiosos que
me encaravam de volta, murmurando em outras línguas, me perguntando se
eu estava bem.
O rosto do jovem preocupado à frente — a pessoa que mantinha a mão
em minhas costas — foi a primeira coisa que realmente consegui enxergar
com clareza.
E então o que se erguia majestosamente atrás dele.
Fontana Di Trevi.
Meu coração reiniciou uma corrida no peito. Confuso.
— O que... — Engoli em seco, voltando meu olhar para o rapaz diante de
mim. — O que aconteceu?
Corri os olhos pela multidão, que aos poucos se dispersava. Acima das
escadas, curiosos comentavam o ocorrido.
Um suspiro aliviado deixou os lábios do italiano.
— Você é americana — disse com um meio-sorriso. — Estava com medo
de ser russa ou algo do tipo. Não saberia como te pedir desculpas.
Balancei a cabeça com a esperança de me concentrar, entender por que
raios eu estava jogada no chão em frente à fonte dos desejos!
— O que aconteceu? — repeti a pergunta.
— Culpa minha. — O jovem afastou a mão que antes me sustentava e
coçou a nuca, envergonhado. — Estava com pressa para uma entrega e
acabei derrubando você com minha correria desnecessária.
Ele me observou daquele jeito outra vez, como se eu fosse uma criança
que caíra, ralara o joelho e estava prestes a chorar. Respirou fundo e franziu
as sobrancelhas escuras num misto de culpa e preocupação, levando uma
das mãos à minha testa, afastando os cachos dourados ali.
— Me perdoe, eu... não queria te machucar.
Toquei o ponto onde doía e reprimi outro gemido. O pouco sangue que
carimbou a ponta dos dedos me deixou enjoada.
— Está tudo bem... — comecei, tentando me levantar. O rapaz
rapidamente se adiantou em ajudar, me guiando ao banquinho mais
próximo. — Só estou um pouco confusa agora.
Por que eu estava na fonte? Onde estava Gina?
— Eu estava sozinha? — Busquei pelos longos cabelos de tranças
ornamentadas por anéis dourados.
— Alguns turistas estavam aqui, mas...
— Nenhuma morena alta?
— Não... — O estranho procurou ao redor também. — Você veio com
alguém? Eu estou com minha scooter, posso te levar até onde está
hospedada se quiser. — Os olhos pretos correram para minha testa outra
vez, e ele conteve uma careta. — Ou ao hospital.
— Obrigada, mas... — Pensei um pouco. Tentei recordar de detalhes que
deixara passar.
Não me lembrava de ter deixado o hotel sem Gina naquela manhã. Mas...
Também prometi antes de dormir que retornaria à fonte assim que
acordasse. Imagens borradas começaram a rodar em minha mente e, aos
poucos, deram lugar à compreensão. A Fontana, o restaurante, Gina e
Paolo, a última ligação da minha amiga e a moeda que deveria devolver
naquela manhã.
Girei a bolsinha presa ao meu corpo e a abri à procura da moeda que
furtara noite passada.
Meu corpo relaxou no assento. Estava bem ali.
Fechei a bolsa e encontrei os olhos escuros do rapaz me estudando.
— Você está bem? — Ele tocou minha testa com cuidado. — Quer que
eu te leve a um médico?
Neguei rapidamente e fiquei de pé. O italiano me imitou.
— Estou bem, não foi nada. — Ele não se convenceu.
— Eu tentei te segurar, juro, mas foi tão rápido e...
— Já sofri tombos piores, er...
— Theo. — Estendeu a mão para mim. — Me chame de Theo.
Sorri.
— Estou bem, Theo. Prometo.
— Certo. — Suspirou. — Vou tentar acreditar nisso. — Dessa vez, seus
lábios se esticaram em um sorriso largo e... lindo. Muito lindo.
Theo era bonito sim, eu notei desde o primeiro segundo em que colocara
os olhos nele, mas agora, mais calma, consegui notar o quão belo era. Mais
alto do que eu, e claramente se exercitava. Não era forte ou malhado, mas
tinha o porte físico de quem se alimentava bem e saía para correr todos os
dias. A pele era de um tom castanho-bronzeado, acentuando os olhos pretos
e os cabelos da mesma cor. Tinha o nariz reto e maxilar bem marcados e os
lábios avermelhados, o superior levemente mais cheio que o inferior, os
cantos bem puxadinhos.
E aquele sorriso...
Bem, talvez Theo derrubasse mais jovens por aí sem precisar
necessariamente atropelá-las.
E era italiano. Eu sabia porque o ouvira falar mais cedo. Um italiano tão
perfeito e natural quanto o inglês que usava para conversar comigo agora.
Notei os olhos negros me analisarem também, da mesma fora que eu o
estudava. Desviei o olhar rapidamente, sentindo o rosto esquentar mais um
pouco.
— Obrigada por... Bom, você me ajudou de alguma forma.
Theo soltou um riso baixo, cruzando os braços.
— Te joguei da escada e agora está me agradecendo? — Fez uma careta
fofa. — Americanos são estranhos.
— Outra pessoa poderia ter fugido da cena do crime. — Dei de ombros.
— Você ficou e se preocupou.
— Sendo assim... — Seus lábios repuxaram em um sorriso galante. —
De nada.
Sorri.
— Onde está hospedada, bella?
— Valentina — o corrigi rapidamente.
— Valentina — experimentou dizer, o sotaque italiano acentuando de
forma adorável o “Tina”. Contive a língua para evitar pedir a Theo que o
dissesse outra vez. — É um nome lindo.
Me perdi naqueles olhos pretos com uma sensação estranha brincando em
meu estômago. Já os vira antes, era o que eu sentia. Eram escuros como
obsidiana, mas brilhavam como um céu noturno e estrelado.
O som do celular tocando quebrou aquele contato, e as borboletas que
dançavam em minha barriga bateram asas para longe.
Pedi licença a Theo e atendi a ligação.
— Oi? — balbuciei, distraída.
— Hã... Tina? — Reconheci imediatamente a voz.
— Onde você está?!
— Eu acho que estou a caminho de Florença.
Pisquei, sem reação.
Um segundo...
Dois...
Três...
Ergui o antebraço em frente ao corpo e encarei o pequeno relógio de
couro preto que enfeitava meu pulso.
— Você tem um minuto para me explicar o que acabou de dizer.
— Os pais do Paolo tem um tipo de vinhedo por lá e vão fazer uma festa.
Ele me convidou e disse que me traria de volta amanhã.
Ela só podia estar brincando.
Soltei uma risada.
— Eu nunca entendo suas piadas, mas essa foi a melhor.
— Tina... Qual é! Você pode fazer o que quiser hoje e não vai me ter aí
para te atrapalhar, como foi ontem. Amanhã eu volto, então seguimos para
a próxima cidade que você quer conhecer.
Não respondi.
Não conseguia pensar em algo civilizado para dizer, sinceramente.
— A fonte funciona, Tina! — Giovanna suspirou. — Pedi a melhor
aventura romântica com um italiano, e esse pedido se realizou!
— Só pode ser brincadeira. — Apertei a ponte do nariz ao fechar os olhos
com força.
— Não é! Ela realmente funciona. E — soltou uma risadinha —, se
funcionou para mim, talvez o pedido que fiz para você também aconteça.
— Pediu para eu passar raiva? Está funcionando.
— Ha-ha. Só espere que vai acontecer.
Passei a mão no cabelo, prendendo os dedos nos cachos dourados.
— O que quer que eu faça, então, Giovanna?! Espere você voltar do seu
filme de verão na Itália com o Paolo?
— Ele está sendo maravilhoso, ok? Não precisa ficar preocupada
comigo, sei cuidar de mim mesma.
— Mal entende o que o cara diz, Gina!
— Leitura corporal não é difícil de ler, amor. É uma língua universal.
Ele me quer e eu quero ele. E ninguém conversa quando está beijando,
conversa?
Respirei fundo, sentindo o olhar atento de Theo em mim.
Abaixei o tom de voz e falei o mais calma e séria possível.
— Gina, volte para o hotel. Por favor. Essa porcaria de fonte não é
mágica, Paolo não é um príncipe encantado, é um idiota querendo se dar
bem com uma brasileira que conheceu em um restaurante. Só... volta.
— Só porque você não acredita não significa que não seja real. —
Bufou. — Tenho certeza que seu dia será mais divertido sem mim.
— Mas...
— Preciso ir agora. Te vejo amanhã. — E desligou.
Encarei o celular por um tempo, então deixei meu corpo cair sentado no
banquinho preto outra vez. Meus olhos fitaram a Fontana a alguns metros.
Alguns segundos de silêncio...
Então permiti que uma série de palavras feias deixasse minha boca.
Era comum Gina me abandonar nas nossas saídas, e eu normalmente
estava pronta para qualquer imprevisto relacionado à minha amiga, mas não
me preparei para aquilo. Não estávamos em Nova Iorque, onde eu poderia
muito bem pegar o metrô ou um ônibus e voltar para casa. Estávamos em
Roma, na Itália!
Ela só ganhara aquela viagem por minha causa!
Pisquei, tentando afastar a raiva que se transformava em ofensa e
lágrimas.
Não permiti que nenhuma caísse.
— Sua amiga? — Theo sentou ao meu lado.
— Ex-amiga — murmurei. — Sabe qual o melhor lugar por aqui onde eu
possa enterrar um corpo?
Ele riu.
— Quer me contar o que aconteceu?
O encarei.
— Ela fugiu para Florença! Consegue acreditar? Saiu correndo para
viver um romancezinho com um cara que conheceu noite passada! —
Bufei. — Italianos idiotas.
Os lábios de Theo tremeram com a tentativa de conter o sorriso.
Meus olhos se abriram mais, me dando conta de que o insultei
também.
— Eu não quis dizer... — Corei. — Nem todos devem ser... eu...
— Está tudo bem. — Ergueu a palma da mão direita, me interrompendo.
— Eu só sou cinquenta por cento italiano.
— Sério?
— Huh. — Assentiu, aquele sorriso lindo brincando em seus lábios. —
Minha mãe era americana, como você.
— Ah! — exclamei, não deixando passar despercebido o “era”, mas sem
coragem alguma para perguntar a ele o que tinha acontecido.
— Veio para Roma com sua amiga?
— Sim. — Fechei a cara outra vez. — Aparentemente, vou passar boa
parte da viagem sozinha. Gina disse que vai voltar amanhã, mas duvido
muito disso. Ela é... complicada. — Soltei o ar, passando a mão nas mechas
outra vez, contendo uma careta ao esbarrar sem querer na testa machucada.
— Vou só... voltar para o hotel e encomendar alguns filmes.
— Ei, o dia mal começou! Você pode conhecer Roma sem ela. Olha só —
girou meu pulso, indicando o relógio —, oito e meia ainda. Se quiser, posso
ser seu guia. Conheço Roma como a palma da minha mão.
Consegui sorrir e percebi que gostava muito do timbre de voz de Theo.
Era grave, melódico e muito bonito. Mas meus ombros caíram
desanimados, chateada por Gina ter me trocado daquela forma.
— A carona para me levar para o hotel ainda está de pé?
— Claro. — O rapaz se levantou e estendeu a mão para me ajudar a fazer
o mesmo. Não precisava, mas aceitei mesmo assim. — Minha moto está
estacionada no outro lado da rua, mas primeiro — Theo apontou para o
machucado em minha testa —, vamos cuidar disso.
— Não está tão ruim assim. — Torci o nariz em uma careta.
— Eu fiz isso com você, eu vou cuidar disso.
— Mas...
— Não é uma opção, bella. — Segurou firme minha mão. — De
qualquer forma, a farmácia não é longe.
Pensei em protestar, mas estava cansada demais para isso.
— Tudo bem — resmunguei, e me permiti ser levada por ele.

— Theodoro! — Um senhor barrigudinho de sorriso largo demais


cumprimentou assim que passamos pela porta de vidro, os olhos claros
seguindo para a mão de Theo sobre a minha.
Quebrei o contato, afastando a mão da que a prendia e a levando para a
alça da bolsa que eu carregava.
Theo não pareceu perceber.
— Ciao, signor Donalli — meu acompanhante cumprimentou bem-
humorado. — Come est la tua famiglia?[7]
— Stai bene, bambino. Chie è la bella ragazza?[8]
Não fazia a menor ideia do que estavam falando, mas, pelo modo que me
olhavam, com certeza era sobre mim.
— Fidanzata?[9] — O senhor ergueu duas vezes as sobrancelhas para o
rapaz ao meu lado e Theo riu, se apoiando à bancada.
— No, I’ho appena incontrata[10].
Pigarreei, lembrando-os que ainda estava ali e que não falava ou entendia
italiano.
— Claro, claro. — O rapaz que me atropelara mais cedo me olhou
rapidamente como quem pede desculpas e, por fim, se voltou para o homem
à sua frente. — Sr. Donali, puoi darmi un di quelle, per favore?[11]
Donali entregou ao jovem uma caixa de curativos.
Theo o pagou e rasgou a embalagem, pedindo ao dono do pequeno
estabelecimento mais alguma coisa. O homem prontamente se retirou para
buscar e meu novo conhecido me guiou até uma das cadeiras de plástico
nos fundos da farmácia.
O senhor de sorriso engraçadinho retornou com um pano úmido.
Theo se agachou diante de mim, deixando a caixinha de curativos em
meu colo enquanto esticava a mão em direção ao meu rosto. Ele afastou um
cacho loiro da minha testa e, com cuidado, limpou a ferida ali. Seus lábios
se comprimiram numa linha mais fina, as sobrancelhas escuras se juntando
de novo.
— Sinto muito por machucar você, bella — repetiu, baixinho.
— Valentina — corrigi. — E eu já disse que não foi nada.
— É, mas isso — me mostrou a pequena mancha vermelha de sangue no
pano claro — me faz ficar péssimo.
— Isso — peguei um curativo e balancei em frente ao rosto dele —
deveria fazer você se sentir melhor.
Theo me mostrou um curto sorriso e tomou a tirinha pálida dos meus
dedos, retirando a película de papel para colocar o curativo no canto
esquerdo da minha testa com cuidado, quase não tocando seus dedos em
minha pele.
O rapaz me analisou por alguns segundos, o rosto próximo demais do
meu.
— Quantos dedos tem aqui? — brincou, erguendo três dedos.
Sorri.
— Cinco.
Theo estreitou os olhos escuros.
— Hm... não sei, é melhor te levar ao médico pra dar uma checada na sua
cabeça.
— Um, dois, três... — contei os dedos em sua mão e indiquei os outros
dois que antes estavam abaixados — ...quatro e cinco. Estou muito bem.
— Engraçadinha. Você tem alguns arranhões aqui. — Ele indicou a mão
que contava. A outra sobre o vestido amarelo também estava machucada,
mas não era grande coisa. — Seus joelhos também.
Theo não me deu tempo de protestar: retirou mais curativos da caixa e,
depois de limpar rapidamente o machucado, colocou os band-aids nos meus
joelhos também.
Ele estava prestes a pôr um na palma da minha mão direita — aquela
com uma situação de arranhões mais graves —, mas seus dedos não se
moveram. Ergui os olhos para o rosto do jovem e o peguei me encarando
outra vez.
— Me desculpa, bella — murmurou, pensativo. — Mas... já nos vimos
antes?
— Acho difícil, não faz nem dois dias que cheguei em Roma.
— Não, eu quero dizer antes. — Estreitou o olhar. — Sinto que te
conheço de algum lugar.
— Da TV, talvez? Ganhei o Oscar uma vez — brinquei, e ele balançou a
cabeça, sorrindo.
Terminou seu serviço com o curativo.
— Talvez eu tenha batido a cabeça também — disse, ainda segurando
minha mão. — Desculpa mesmo por isso.
Me afastei.
— Eu já disse — pisquei para ele —: já sofri machucados piores. Não
fique se reprimindo por causa de alguns arranhões.
Theo me observou por mais um tempo antes de concordar e ficar de pé.
— Então podemos ir. — Virando-se para o homem que assistia a tudo do
balcão como um noveleiro, disse: — Ciao, Donali[12].
— Ciao, Abertinalli. Ragazzina.[13]
Devolvi o aceno de cabeça para o senhor.
Segui Theo até sua moto, pensando no que faria quando finalmente
chegasse ao hotel. Ainda estava preocupada e chateada com Gina. Minha
raiva amenizara consideráveis dez por cento, mas eu não viajara até o outro
lado do mundo para desperdiçar as férias num quarto de hotel.
Pensei em simplesmente seguir o que planejara na agenda sozinha. Pelo
menos, sem Gina, poderia ver com atenção cada monumento, ruína, estátua
ou pintura sem a série de reclamações da minha amiga. Mas seria... solitário
desse jeito.
Theo falava alguma coisa enquanto caminhávamos pela calçada,
mantendo o sorriso gentil nos lábios e a postura despreocupada de quem já
esquecera a entrega importante que tinha de fazer antes de me atropelar.
Eu gostava de como a voz dele era grave e rouca, mas ainda assim
melodiosa aos ouvidos. O tipo de voz que você colocaria para ler um livro
inteiro, o tipo de voz que facilmente apaziguaria uma confusão. Gostava
que o rapaz não parecia fazer careta com frequência. Também aparentava
realmente conhecer Roma como seu próprio nome: me contara umas cinco
curiosidades sobre a cidade só enquanto andávamos até a farmácia.
Talvez não fosse uma má ideia tê-lo como guia, no fim das contas.
— Hã... Theo? — chamei ao pararmos em frente a uma fileira de
scooters. O rapaz me olhou, franzindo a testa, esperando. — Já esteve no
Coliseu?
Os lábios dele se esticaram genuinamente, entendendo o que eu queria
com aquela pergunta. O italiano levantou o banco da scooter turquesa e
tirou de dentro um capacete da mesma cor. O estendeu para mim.
— Andiamo, bella! — Me lançou uma piscadela. — Você tem um dia
incrível pela frente.
TINA

— Questo è il Colosseo Romano![14] — Theo fez uma pausa dramática ao


falar e gesticular com a mão para a imensidão de ruínas que nos cercava.
Soltei um assobio baixo, maravilhada com a beleza de pedras e com a
história diante de mim. Theo me mostrara cada ponto possível, falando
sobre o lugar com tanto conhecimento e naturalidade quanto alguém
contava sobre si mesmo. Ousava dizer que meu guia conhecia cada buraco e
rachadura do lugar. Ele parecia feliz em poder compartilhar comigo o que
sabia.
Fazia tempo desde que me divertira tanto daquele jeito. Do meu jeito.
Aquele tour pelo Coliseu foi como um passeio na Disneyland para mim.
Também não me lembrava da última vez que um estranho me fizera rir e
sorrir tanto.
Theo era... radiante.
Eu confirmara uma teoria uma hora antes: aquele rapaz era o tipo de
pessoa que não guardava sorrisos.
O ponto turístico estava cheio e barulhento: mesmo ali, no topo mais alto
do anfiteatro, havia um burburinho de línguas de vários países e pessoas de
todo lugar do mundo. Uma parte minha também achava aquele barulho
diversificado lindo.
Me aproximei de Theo na grade de proteção e sorri para ele.
— É o lugar mais lindo que já conheci.
— Jura? — Riu. — Bom, pode se surpreender ainda.
— Bom — virei o rosto para ele —, você tem o resto do dia para me
impressionar.
Aqueles olhos lindos se estreitaram para mim e cintilaram com a emoção
de quem aceitava o desafio. Um dos cantos de seus lábios se esticou, e eu
evitei correr os olhos para eles. Não queria deixar transparecer que sabia o
quanto o rapaz era atraente. Apesar de parecer ser o tipo de cara que se gaba
por isso, gostaria de manter aquele limite entre nós dois. Do que adiantaria
fazer todo um monólogo repreendendo minha amiga por me abandonar por
um italiano para passar o resto do dia paquerando um?
Não estava ali para isso. Theo era um cara que certamente chamava
atenção por onde passava, não só pela aparência, mas pela boa educação.
Porém, seu físico não se comparava com a beleza dos lugares que Roma
apresentava para mim.
— Ali aconteciam as batalhas. — Apontou, escorado na barreira de ferro.
— Os gladiadores... — assenti, erguendo uma das mãos para cobrir o
rosto da luz exagerada do sol, ainda embasbacada com o céu azul
deslumbrante e as nuvens fofinhas.
— Gladiadores, cristãos e outros inocentes foram arrastados para serem
devorados por bestas famintas. Um passatempo de um governador idiota.
— O jovem suspirou, encarando o lugar de modo sério, como se
visualizasse claramente o fantasma do passado ali. — É um lugar lindo,
mas repleto de histórias sombrias.
Não respondi. Com isso, meu acompanhante e eu ficamos em silêncio por
alguns minutos, fitando a imensidão que um dia suportara milhares de
pessoas e o que restara da construção antiga. Estreitei os olhos para a cruz
do outro lado do anfiteatro, pequena de onde eu estava. Talvez a tivessem
colocado ali para nos lembrar das atrocidades cometidas naquele lugar.
Theo me contou que, para a inauguração do Coliseu, fizeram festas e jogos
que duraram cerca de cem dias. Nove mil animais e dois mil gladiadores
morreram.
Pensar que havia uma lista bem maior de cristãos e outros inocentes que
manchava de sangue a história daquele local fazia meu estômago se
contorcer.
O silêncio era em memória daqueles que partiram.
— Meu pai costumava me trazer aqui quando eu era mais novo. — Os
olhos escuros continuaram encarando a ruína, ou o passado, pelo tom mais
sério em sua voz rouca. — Ele era professor de história, apaixonado por
qualquer coisa mais antiga do que ele, por arquiteturas desgastadas pelo
tempo e livros de mitologia. — Aquele sorriso era diferente de todos os que
Theo havia me mostrado nas últimas horas. Era melancólico, continha
saudade. — Conhecia cada centímetro deste lugar.
— Ele...
— Morreu um ano atrás. — Enfim o italiano voltou sua atenção para
mim, e o vento soprou as mechas escuras de sua testa. — Minha mãe um
pouco antes, quando completei vinte anos. Cinco anos atrás. Foram embora,
como muita gente faz.
Engoli em seco.
Tão pouco tempo... Theo perdera os pais há tão pouco tempo...
Não era boa com isto: palavras bonitas que trazem conforto. Minha
garganta se fechava sempre que tentava dizer algo como “sinto muito” ou
“deve ter sido difícil para você”. Não conseguia imaginar a profundidade do
luto, a sensação de perder alguém que ama... bem, aquela eu conhecia um
pouco, mas não daquela forma.
O jovem ao meu lado pareceu notar meu desconforto, a falta de jeito em
manter aquela conversa, então segurou minha mão e, puxando meu
indicador, apontou para o outro lado. A arquibancada mais baixa.
— Ali ficavam os mais poderosos.
Soltei um suspiro aliviado, voltando a respirar normalmente.
— Os de classe baixa ficavam no lugar mais alto? — perguntei, ajustando
a visão. Não era meio-dia, mas o sol parecia brilhar como se fosse.
— Não tinham uma vista muito boa do show. — Theo soltou minha mão,
escondendo as suas dentro dos bolsos da calça jeans.
Depois de mais alguns minutos conversando e registrando no
celular algumas fotos, meu novo amigo e eu decidimos, por fim, deixar o
lugar. Já no corredor, deslizei a ponta dos dedos na parede áspera de pedras,
poeira e história, satisfeita por ter visualizado bem mais do que já vira em
livros e filmes. Estar dentro do cenário fazia tudo parecer real, e eu quase
conseguia escutar o sussurro do que um dia fora o tilintar de espadas,
público histérico e rugidos de leões.
Senti o olhar de Theo em mim depois que saímos do Coliseu, já a uma
distância considerável do anfiteatro. Não perguntaria por que ele me olhava
daquela forma ou por que seus olhos, às vezes, pareciam brilhar como se
vissem algo fascinante e mágico.
Apenas indaguei:
— Pra onde vamos agora, capitão?
— Hm... — Pensou um pouco. — Está com fome?
Assenti. Não me lembrava de ter tomado café naquela manhã.
Estava faminta.
— Ebbene![15] — exclamou, mais bem-humorado. Aquela sombra que
enfeitou seus olhos bonitos quando falou sobre os pais não estava mais ali.
— Conheço um lugar incrível que faz um spaghetto divino.
Sorri.
Ergui o braço e fechei os dedos em uma coxinha, balançando duas vezes.
— Perfetto! — falei.
Um sorriso de tirar o fôlego repuxou os lábios bem desenhados de Theo,
e ele segurou minha mão, me levando para longe das pessoas.

— Filme favorito? — Theo perguntou, limpando o molho do prato com


uma torrada.
O melhor spaghetto que eu já provara, de fato.
Encontramos uma das mesas do lado de fora do restaurante vazia. Era um
lugar pequeno e aconchegante, escondido em um canto de Roma, como
uma preciosidade que só se pode encontrar apenas se perdendo nas ruelas
estreitas e prédios antigos.
Os pombos bicavam o chão de pedras perto de uma pequena e humilde
fonte que jorrava no centro, metros de distância de onde eu estava. Toda vez
que via uma daquelas aves me lembrava do seriado coreano que minha
prima me obrigara a assistir certa vez. O nome me falhava, mas era algo
sobre um coreano que acabara sendo levado para a Itália quando criança,
que se tornara Consigliere da máfia italiana anos depois e tinha um pombo
de estimação chamado Inzaghi?
Lena iniciava uma chamada de vídeo todas as noites só para assistir aos
episódios comigo, certificando-se de que eu de fato veria. Fora divertido.
Me fizera rir e me aproximar mais daquela baixinha. Não admitiria que a
maior parte do vocabulário italiano que eu tinha fora extraído do seriado.
— Tina?
Despertei do devaneio quando Theo me chamou. O encarei,
buscando na mente a pergunta que ele fez. Filme favorito. Ok.
— Dirty Dance. — Sorri. — Um clássico.
O rapaz franziu a testa.
— Jura? Por isso o cabelo? — Indicou com o dedo.
— Você já viu? — questionei, apoiando o queixo em uma das mãos, o
cotovelo sobre a mesa de madeira escura.
— Claro! — Theo soprou a franja preta dos olhos. — É um clássico.
Estreitei os olhos diante do tom zombeteiro em sua voz.
— Sim — respondi à outra pergunta, afofando o cabelo repicado com
cachos de tamanhos irregulares. — Acho a atriz que fez o filme muito linda.
— Sério, por que é seu filme favorito? — ele quis saber. — Não vai me
dizer que é por causa do cara malhado dançando suado...
Gargalhei.
— Ah, ele era uma gracinha mesmo — provoquei, divertida pela careta
no rosto do rapaz. — Mas não. Não gosto desses caras ignorantes que
amolecem no final. Sei que o personagem era muito discriminado no filme
por ser de uma classe baixa e tudo mais, mas não vi motivos para ele ser tão
arrogante com a protagonista. Prefiro os mocinhos que sorriem facilmente e
cativam com o olhar.
Tombei levemente a cabeça, erguendo as sobrancelhas, acentuando para
Theo que eu falava dele. Era boa em mascarar os sentimentos, então
acredito que o jovem não reparou em como meu corpo reagiu ao sorriso que
repuxou os lábios dele.
Ter um sorriso como aquele deveria ser crime. Um crime tão grave
quanto roubar a Fontana.
— Então... Por quê? — insistiu, cruzando os braços bronzeados sobre a
mesa, se inclinando para mais perto.
— As músicas. — Dei de ombros. — A dança.
— Você gosta de dançar?
Me repreendi mentalmente por ter dado abertura para o assunto. Apesar
de ser boa em esconder quando algo me afetava, não subestimaria a
habilidade de Theo em captar detalhes importantes nas entrelinhas.
Por isso coloquei o melhor sorriso no rosto ao oferecer aquele resquício
de verdade:
— Não quero me gabar... — Aproximei o rosto do dele e falei mais
baixo: — Mas eu era uma excelente bailarina.
Os olhos escuros se abriram um pouco mais, surpresos.
— Você? — Soltou um assobio. — Inimaginável!
— Ei! — Sorri, voltando a apoiar as costas na cadeira. — É sério! A
música que o Jhonny dança com a Baby no final foi a primeira música que
apresentei sozinha. Eu tinha... hm... treze anos? Era um palco enorme, havia
muitas pessoas e foi até televisionado. Mas meu parceiro amarelou e acabei
dançando sozinha. Era um evento de musicais clássicos.
— Não consigo acreditar, bella. — Theo cobriu a boca com uma das
mãos, a pulseira de couro trançado escorregando em seu pulso. — Não
pode mentir, sabia?
Fiz careta.
— Acredite se quiser — rebati, girando o garfo no macarrão, tentada a
brigar com o garçom mal-encarado outra vez por um sachê de ketchup.
Theo me dissera que italianos se sentiam insultados quando
acrescentávamos coisas assim no prato, como se insinuássemos que faltava
algo e o sabor não estava do nosso agrado. Pensei ser brincadeira, mas o
garçom italiano não estava com graça quando eu pedira, da primeira vez,
algum molho para jogar por cima da comida.
— Então me responde uma coisa. — Meu guia de viagem se reclinou,
franzindo o cenho com dúvida. — Como se deixa de ser uma bailarina?
Minha mão com o garfo e macarrão parou no ar, hesitando.
Como se deixa de ser uma bailarina? Pegar meu professor agarrado à
minha colega de dança dias antes de uma grande apresentação, ver minha
mãe aos prantos depois de expulsar meu pai de casa... Ah, claro: errar a
dança por raiva, pisar em falso, cair do palco, interromper a orquestra e
quebrar a perna na frente de centenas de pessoas.
Fiz um gesto indiferente com os ombros, deixando o garfo de lado.
Não encarei Theo ao responder:
— Algumas coisas aconteceram, quebrei a perna e parei de dançar aos
dezenove.
— E quantos anos tem agora?
— Vinte e um. — Catei uma tirinha de pão do cestinho de palha. — Vinte
e dois em alguns dias.
— Não sente falta? — perguntou, baixinho.
— Nem um pouco. — Mentirosa.
Theo me estudou por alguns segundos. Os olhos pareciam mais escuros,
o rosto lindo tomado por uma expressão que revelava que ele também sabia
que eu mentia.
Mas aquele italiano era um jovem inteligente e não insistiu. Sabia que era
uma linha que não poderia ultrapassar.
Não ainda.
Eu tentava convencer mais a mim mesma do que aos outros de que estava
aliviada por não ter mais que acordar às cinco para treinar, que não sabia
onde minhas antigas sapatilhas estavam e que não me importava com os
dois anos desperdiçados.
Que eu estava bem sem o balé.
Mas aquela era uma história que, vez ou outra, soava falsa até para mim.
Então, resumia aquele “não sente falta?” com um simples “huh. Nem um
pouco”. Mesmo que me pegasse movendo os pés e mãos vez ou outra, em
um surto de saudade e depressão, colocava os fones de ouvido e assistia às
minhas apresentações favoritas na internet.
Balé não era magia: os pés doíam constantemente, hematomas e torções
eram comuns, uma peça complexa não era executada da noite para o dia...
No entanto, por quase vinte anos, a dança fora meu oxigênio. O gás que me
motivara todos os dias para alcançar um sonho de um futuro brilhante que
hoje já não existia mais.
Me convencia de que abandonar o balé era o castigo perfeito; sabia que
meu pai se ressentia todos os dias de não ver a filha no estúdio, mas uma
vozinha insistente cantarolava que a única realmente perdendo ali era a
bailarina sonhadora e sorridente que eu um dia fora.
Percebendo que meus pensamentos divagaram outra vez, Theo pigarreou
e abriu um daqueles sorrisos galantes.
— Então... — Me encarou por um segundo, correndo os olhos por meu
rosto e vestido que, convenientemente, lembrava o modelo que a atriz
Jennifer Grey usara no filme. Claro, aquele ali era amarelo com estampas
de margaridas, mas a roda da saia e o decote eram os mesmos. — Posso te
chamar de Baby a partir de agora?
Consegui sorrir.
— Faça isso e eu te jogo naquela fonte.
Theo soltou uma risada, um som rouco e delicioso que derreteu aquela
parte endurecida do meu coração como sol e gelato.
Grata pela mudança de assunto, senti o corpo relaxar e me permiti voltar
a desfrutar da companhia do meu novo amigo. Ele começou mais uma de
suas histórias: revelou que trabalhava como guia nos finais de semana e
como entregador nos outros dias; me falou sobre sua infância e sobre como
adorava aprontar com os turistas. Durante nosso passeio seguinte, emendou
suas narrativas às curiosidades sobre cada lugar que passava.
Em algumas horas, sentia que conhecia não só Roma, mas Theo melhor.
Descobrira mais sobre ele em um dia do que já soube de alguém em um
ano. Aquele rapaz de sorriso tranquilo fazia a tarefa de aproximação ser
mais natural. Gostava de como a risada saía espontaneamente de sua
garganta, da forma divertida como contava as histórias sobre cada canto
pelo qual passávamos.
Para alguém que pretendera passar o dia todo em um quarto de hotel, eu
estava tendo o melhor dia que poderia pedir em Roma.
Depois de algumas horas, Theo e eu havíamos circulado nos principais
pontos turísticos. Visitamos o Circo Máximo, a Piazza Venezia, o Panteão e
outros cantos escondidos que apenas o italiano parecia conhecer. Gina
queria que eu tivesse um dia produtivo. Bem, vira mais do que tinha
planejado na agenda que Theo descaradamente tomara de mim e guardara
no bolso de sua calça jeans.
Passamos a maior parte da tarde no Fórum Romano, rodeados de pilastras
e construções antigas. Era um pedaço da história que sobrevivera a tempos
e guerras. Havia várias áreas elevadas de onde se conseguia uma vista
incrível de diversos pontos famosos de Roma. Era... deslumbrante. Uma
cidade devastada pelo vento, igrejas e basílicas, história e ruínas; Theo
tivera o prazer de me contar tudo o que sabia sobre o lugar.
Fora de tirar o fôlego, literalmente. Andamos por horas, e eu já
sentia as pernas — acostumadas a corridas matinais — exigirem descanso.
Percebia que pontos do corpo cobravam pela queda de mais cedo,
certamente prometendo hematomas mais tarde. Mas valera cada segundo.
— Você acredita em todas essas histórias? — perguntei enquanto
andávamos pela rua de paralelepípedos vazia. Já conseguia avistar a scooter
azul-turquesa de Theo, que eu docemente apelidara de Vespinha, no final da
ruela estreita.
— Você não? — Theo me olhou, levando mais uma colher de gelato à
boca.
— Fontes dos desejos e tudo mais? — rebati, e ele riu.
— Principalmente fonte dos desejos e tudo mais.
Ri, saboreando o gelato que Theo insistira em comprar para mim.
Gostava — surpreendentemente — da suavidade, do sabor adocicado. Não
experimentara o doce que levara para o hotel, mas o faria assim que
voltasse. Queria contar à dona da pequena loja sobre o sabor do gelato, que
ela tinha razão: todos deveriam adoçar a vida de vez em quando.
— Você está falando sério?
— Huh. — Theo assentiu.
— Magia? A lenda das três moedas da Fontana?
— Fervorosamente. — Balançou a cabeça outra vez.
Parei de andar.
— Como pude pensar que um dia seríamos amigos? — Suspirei com
pesar, e ele deu risada.
— Me diga, bella — Theo se virou depois de jogar o copinho descartável
no lixo mais próximo, cruzando os braços ao parar a poucos centímetros de
mim —: qual seu problema com fontes do desejo?
— Elas deixam as pessoas cegas! — A raiva por Gina retornou à medida
que falava. — Levam elas a gastarem moedas e salivas em pedidos que
sequer vão acontecer. Tudo bem, é uma atração turística, a coisa toda de
pessoas de todo mundo se aproximando da Fontana para pedir algo a ela é
lindo mesmo, mas realmente acreditar que algo mágico possa acontecer...
Me trocar por um cara qualquer para viver uma aventura na Toscana por
achar ser uma resposta da Trevi? É demais pra mim.
— Primeiro — Theo tentou conter o sorriso que teimava em brincar em
seus lábios —: todas as moedas jogadas na fonte vão pra caridade,
Valentina. E segundo: Gina disse que voltaria amanhã, ela não foi para tão
longe.
— Ainda. — Revirei os olhos. — Você não a conhece.
— Bom, se é ou não feito da Fontana, não sei dizer. Mas não deveria
ficar tão irritada com Gina à essa altura. — O rapaz se inclinou para mais
perto, abaixando a voz, dizendo o restante em tom brincalhão: — Caso
contrário, eu não teria trombado em você essa manhã.
Verdade.
E eu adorei cada minuto ao lado de Theo. Só não revelaria aquilo em voz
alta.
— Mesmo assim... — Desviei o olhar, segurando a alça marrom da bolsa
de camurça que carregava com uma das mãos. — Não dá pra acreditar em
algo tão... — Bufei. — Só acho idiota, só isso.
— Só porque não acredita em algo não significa que não seja real — o
italiano retrucou, escondendo as mãos nos bolsos da calça.
Gina dissera a mesma coisa.
Apenas caminhei em silêncio, como uma criança emburrada e
repreendida.
— Já joguei três moedas lá uma vez... — O rapaz quebrou o silêncio
novamente.
Resmunguei.
— Já roubei uma moeda de lá uma vez.
Foi a vez de Theo parar de andar e me encarar, surpreso.
— Sabe que pode ser até presa por isso, não sabe? — Apesar do choque,
ele não conseguia esconder a diversão, provavelmente tentando me
imaginar roubando uma moeda.
— Sei, sim — declarei, com um misto de medo e orgulho. Imagine só,
ligar para minha mãe e dizer que fui presa em Roma. — Foi a coisa mais
impensada e arriscada que já fiz na vida. Bom, isso e sair por aí em um
passeio com um estranho em um país desconhecido.
— Uma decisão arriscada, questo è vero[16] — brincou. — Não está
arrependida, está?
— Você é um ótimo guia, não posso negar. — Ergui o copo rosado. — E
pagou gelato pra mim, então...
Theo tomou o copinho que eu segurava e o jogou no lixo, logo voltando
sua atenção para mim.
— Me conte, então, como uma jovem tão certinha como você cometeu
um crime tão imperdoável — pediu.
Minha risada ecoou pela ruela praticamente deserta.
Contei a ele sobre a noite anterior, sobre a senhora da loja de doces —
percebi o brilho de reconhecimento nos olhos pretos, não seria surpresa se
Theo a conhecesse também — e sobre Gina, explicando o motivo que me
levara a pegar a moeda e o que me fizera acordar cedo naquela manhã para
devolvê-la à fonte.
Theo escutou atento, como eu mesma fizera em todas as suas histórias
nas últimas horas. Estava feliz por finalmente ter algum relato meu em
Roma para contar.
Me lembrei então que, com toda aquela confusão, não devolvera a moeda
à Fontana.
— Olha. — Abri a bolsa e tirei de lá a carteira, pescando de dentro dela a
moeda lascada de cinco centavos americanos.
Theo a pegou, a analisou e então exclamou algo em italiano,
baixo demais para que eu pudesse entender. Parecia incrédulo e, ao mesmo
tempo, fascinado demais para dizer qualquer coisa em inglês. Por alguns
segundos, girou a moeda nos dedos compridos e, por fim, me olhou.
Havia um brilho diferente ali.
— O que foi? — perguntei, curiosa.
— É minha — murmurou, me estudando como se eu fosse um novo
achado da arqueologia histórica de Roma. — Esta moeda, Tina... É minha.
TINA

Soltei um riso desacreditado.


— O quê?
— Eu a joguei ontem à noite antes de voltar pra casa. — Se afastou um
passo, passando a mão no cabelo, bagunçando as mechas. Uma risada rouca
deixou seus lábios, e um sorriso inacreditavelmente lindo se ampliou em
seu rosto. — Você não roubou a fonte, Valentina, você roubou meu desejo.
— Não tem graça, Theo! — Tentei tirar a moeda da mão dele, falhando.
Ele riu outra vez. — Está dizendo isso porque sabe que não acredito nessas
coisas.
— Não estou brincando, bella... — Ele desviou da minha segunda
tentativa, e da terceira. Por fim, segurou meus ombros, me fazendo parar. —
Você roubou meu desejo.
— Tenho certeza que está confundindo essa moeda. Sabe, tinha vários
cinco centavos lá, posso garantir.
Theo, apesar de ser bem convincente e aparentemente sincero, também
não parecia acreditar naquela coincidência. Mas seus olhos brilhavam como
nunca e não mentiam.
Rapidamente, o rapaz ergueu a moeda para mim, o rosto do homem
estampado, a falha e os vestígios de tempo bem ali.
— Eu guardava esta moeda no bolso por causa desta lasca. — Mostrou.
— Sei que é idiota, mas era minha moeda da sorte. Pode acreditar no que
quiser, Tina, mas não mudará a verdade incontestável: você roubou meu
pedido.
Me permiti acreditar por um segundo.
O arrepio que subiu da minha coluna para a nuca cantarolava que era,
sim, verdade.
É uma fonte mágica, repetia a voz da senhora na minha cabeça, como um
disco estragado.
— O que... — Limpei a garganta. — O que você pediu para a fonte?
Os olhos de Theo correram por meu rosto de um jeito que fez aquelas
asas inquietas baterem em meu estômago, como se olha para alguém na
esperança de guardar cada detalhe da pessoa. Sua voz saiu baixa, quase um
sussurro, e a intensidade nas quatro palavras fizeram meu coração bater um
pouco mais rápido.
— Un raggio di sole — murmurou, descendo o olhar para os meus
lábios. Theo engoliu em seco. — Mio raggio di sole.
A forma como disse aquilo, olhando para mim daquele jeito...
Me fez ignorar que estávamos no meio da rua, que pessoas poderiam muito
bem estar nos observando.
— O que significa? — perguntei baixinho, perdida no desenho perfeito
dos lábios de Theo, percebendo que era a primeira vez que realmente me
pegava pensando na textura deles, em como se encaixariam nos meus caso
eu ousasse me aproximar e me inclinar um pouco mais.
Ele os umedeceu, talvez estivesse pensando o mesmo.
O encarei.
— O seu pedido — repeti. — O que significa?
Para o meu descontentamento, Theo recuou um pouco, segurando minha
mão e depositando ali a moeda que antes ele mantinha entre os próprios
dedos.
— Pode ficar com ela. — Piscou um olho, os lábios levemente esticados.
— Como uma lembrança.
Então, retomou a caminhada até a Vespinha, que agora estava só a alguns
metros de distância.
Pisquei, atordoada.
— Theo! — chamei, acelerando o passo para alcançá-lo. — O que
significa?!
Ele não respondeu; continuou andando até parar diante da moto, subindo
no banco e tirando de lá os capacetes.
Me estendeu um.
— Quero te levar a um lugar. — Certo, ele não ia me contar. Era só
pesquisar no tradutor depois.
Tomei o capacete e o coloquei, emburrada.
— Qual lugar? — perguntei.
Raggio di Sole. O que era? Rádio de solo? Algum tipo de material para
escavação? Instrumento de arqueologia? O pai dele teve um, talvez?
— Apenas... um lugar. — Sorriu, subindo na scooter, esperando que eu
fizesse o mesmo e abraçasse sua cintura.
Permaneci de pé na rua de pedras, apoiando as mãos no quadril.
— Vai ficar com esses joguinhos misteriosos agora? — questionei,
carrancuda. — Não quer me contar o que é seu pedido e não vai dizer pra
onde vai me levar?
Theo riu.
— É o meu lugar secreto quando quero pensar um pouco — disse, por
fim. — Costumava ir com meus pais quando novo, e hoje é um canto só
meu. Quero te levar lá.
Estreitei os olhos para ele.
— Prometo te trazer de volta para o hotel até meia noite, Cinderela —
insistiu.
Pensei um pouco.
— Vai me contar o que é raggio di sole?
— No. — Negou com a cabeça.
— Qual é, Theo! — Bufei.
— Desculpe, bella, mas é um segredo. — Alcançou minha mão e me
puxou para perto. — Sobe aí.
Suspirei, cedendo cedo demais.
Me acomodei atrás de Theo na moto e abracei sua cintura, entrelaçando
as mãos sobre o abdômen dele. Inclinei a cabeça para apoiar o queixo em
seu ombro.
— Vai me contar o que é depois? — insisti, e Theo virou o rosto, a ponta
de seu nariz roçando levemente no meu.
— Na hora certa.
— Promete?
— Huh. — Sorriu um pouco. — Prometo.
TINA

Não estávamos mais em Roma.


Percebi quando deixamos a cidade caótica e trocamos as ruínas e os
prédios pálidos e alaranjados por um cenário verde e vasto. Havia
plantações por toda a parte, campos, vinícolas e céu aberto.
Era lindo.
Mas nada comparado às fileiras e mais fileiras de girassóis. Parecia um
quadro perfeito: o céu ainda azul acima, nuvens brancas enfeitando a maior
parte da tela, o ponto focal nas flores que exalavam alegria e esperança.
Pedi a Theo que registrasse em seu celular — já que o meu descarregara
há um tempo — aquela pintura deslumbrante. Como minha avó gostava de
dizer: a prova viva de que um pintor celestial existia.
Quando o jovem italiano sugeriu que eu ficasse no centro para uma foto,
obedeci. Theo me olhou daquele jeito outra vez, com aquele brilho que
dizia tanta coisa que eu não compreendia.
Olhou para mim como eu olhara maravilhada para aquele campo de
flores.
Talvez fosse o dia mágico que passara com ele, o clássico de verão
pela Itália, mas... Havia algo. Entre nós dois, cantarolando a mesma coisa
repetidas vezes, mas fingíamos ignorar.
Depois de uma hora de estrada e vinte minutos adentrando ruelas
estreitas, Theo finalmente estacionou sua scooter. Ele passou em uma
vendinha no vilarejo perto e, quando retornou, segurou minha mão, me
guiando em direção à pequena colina que se estendia acima. Até a árvore
solitária e gloriosa no topo.
Ficamos em silêncio por todo o percurso.
Me permiti apreciar aqueles minutos de caminhada, a mão grande que
mantinha a minha escondida, a diferença dos tons de pele que contrastavam
deliciosamente. Os dedos firmemente entrelaçados aos meus.
Me permiti, por alguns minutos, adorar aquela sensação de ter alguém tão
perto.
Mas não durou muito.
Theo se afastou cedo demais quando alcançamos o topo.
Depois de nos acomodarmos na grama, apoiando nossas costas no tronco
da árvore, meu acompanhante tirou da sacola o que havia comprado mais
cedo.
Pão, queijo e vinho.
Sorri.
— Isso é um encontro? — provoquei, erguendo uma sobrancelha.
Theo, que até então estivera calado e pensativo demais, enfim me
ofereceu um de seus sorrisos, mas esse era simples e tímido.
— Não poderia finalizar este dia sem te oferecer o bom e velho vinho.
Ri, aceitando o copo descartável que ele me estendeu.
— Nunca pensei que tomaria vinho com um italiano ao pôr do sol.
O rapaz sorriu, se recostando, observando, contemplativo, o céu
acima e diante de nós mudar suas cores, pintar tudo ao redor de laranja e
amarelo. Eu conseguia ver, lá embaixo, as ruelas pelas quais passamos.
Mais ao longe, havia uma minúscula praça e diminutos pontos pretos a
enfeitando: pessoas andando. Era um tesouro escondido. Uma cidade
pequena e simples, que exalava calma e paz.
Fechei os olhos.
O vento fresco do fim de tarde beijou minha pele, brincou com os cachos
do meu cabelo.
— Isso é bom — murmurei.
Um minuto de silêncio seguiu minha frase, o som do vento correndo
pelas folhas das árvores era tudo o que se podia ouvir. Aquela quietude rara
e mágica que dificilmente eu conseguiria vivenciar outra vez.
Não diria em voz alta, mas não queria que aquele dia acabasse. Não
queria me despedir de Theo e voltar para o hotel. Não queria dizer adeus à
Itália em duas semanas e voltar a ser a Valentina apagada outra vez.
Só desejava congelar aquele momento.
Viver ele pelo tempo que eu quisesse.
Senti os olhos cor de ônix me observarem.
— O quê? — perguntei, ainda de olhos fechados.
— Acha que já confia em mim o bastante pra me contar o que
aconteceu... — A voz de Theo preencheu o som do vento e das folhas. —
Com você. A dança.
Abri os olhos, encarei minhas pernas esticadas sobre a grama, a saia godê
amarela enfeitada por margaridas pequenas que escondiam os joelhos, as
sapatilhas pretas de boneca que cobriam meus pés.
Não era uma porta que eu gostava de revelar, mas, depois daquele dia, de
ouvir todas as histórias que Theo me contara sobre si... Não pedira a ele
para se abrir, não fizera perguntas pessoais, mas também não o impedira de
me contar como sofrera com a perda dos pais ou como se esforçava para
ajudar a sustentar a avó que parecia cada vez mais cansada. Na verdade, me
sentia mais próxima dele.
Não perguntara, mas ficara ansiosa para conhecer mais sobre aquele
jovem lindo, gentil e de sorriso contagiante.
Era justo que Theo quisesse saber mais sobre mim também.
Suspirei.
— Meu pai é dono de uma academia de balé importante em Nova Iorque.
— Fazia tempo que não dizia aquelas duas primeiras palavras em voz alta,
que me permitia pensar nas memórias boas que antecediam as ruins. Não
olhei para Theo enquanto narrava, apenas perdi meu olhar no copo de
plástico que segurava, no líquido vinho e ácido dentro dele. — Ele
conheceu minha mãe em uma apresentação em Boston. Os dois se
apaixonaram, mas ela precisou voltar para o Brasil. Ambos eram bailarinos
muito dedicados, a dança era tudo pra eles.
Me lembrava de experimentar as roupas de dança da minha mãe quando
ela saía para resolver algo. Jeremmy sempre ameaçava contar, mas um dia a
bailarina aposentada me pegou no pulo. Meu pai estava com ela. Eu queria
impressionar os dois. Mostrei a eles os passos novos que havia aprendido,
cheia de orgulho e expectativa.
Guardava aquela lembrança no coração: a imagem do meu pai
sorrindo, as covinhas fundas enfeitando suas bochechas, um braço rodeando
o ombro da minha mãe enquanto ela me filmava com a câmera. Os dois se
amavam naquela época. Os olhos deles sempre se encontravam, um sempre
sorria para o outro.
Pigarrei, percebendo que parara de falar ao abrir aquela porta trancada às
sete chaves.
Pensei que superaria, que a saudade já não existia mais.
Mas doía.
Não viver mais aquela realidade doía.
Narrá-la, então, foi pior do que pensei que seria.
— Bom, resumindo? Meu pai foi atrás dela, se casaram e, quando me
tiveram, decidiram voltar para os Estados Unidos. Papai herdou a academia
da mãe dele e, quando completei cinco anos, ele e minha mãe decidiram me
ensinar a dançar. — Ri, piscando um pouco mais rápido para afastar as
lágrimas que queriam vir com força. — Costumava pensar que éramos um
tipo especial de família de dançarinos. Bem, tirando meu irmão mais velho,
ele não tem ritmo algum; prefere resolver contas e se aventurar na
engenharia. — Aquele cara irritante e protetor. — Éramos felizes.
Theo permaneceu quieto, ouvindo atentamente.
— Meu pai, bem, ele... era um cara incrível. Quando o vi dançar pela
primeira vez com a mamãe, pensei: Nossa, quero um parceiro de dança e de
vida que me olhe como meu pai olha para a minha mãe. Quero que me ame
como ele parece amá-la.
O natal em que ganhei minha primeira sapatilha de balé ainda estava
vívido em minha mente. Foi uma das raras vezes em que visitamos a vovó
no Brasil. O casarão rústico no sítio cheirava à fogão a lenha e broa de fubá.
Minhas primas corriam pela casa, brigando pelo último pedaço da pizza
barata que minha tia Julieta sempre fazia quando nos reuníamos.
Minha mãe estava abraçada ao meu pai quando os dois estenderam a
caixa para mim e anunciaram que me colocariam na escola de balé.
Oficialmente.
Tudo era tão mágico naquela época.
Como se vivêssemos em uma bolha particular de alegria.
— Eu era boa, sabe — murmurei baixinho. — Muito boa. No começo,
me contentei em treinar na escola de balé infantil. Meus pais viviam na
academia com os alunos mais velhos. Mas acabei ultrapassando as crianças
da minha idade. Treinava sempre, toda hora. Então, quando minha
impaciência venceu o cansaço dos meus pais, eles me deixaram ir pra
academia. Treinei ainda mais. Fazia balé porque amava, mas me esforçava
mais do que as outras alunas porque ver meus pais orgulhosos era meu
objetivo maior. Eu era a filha de Matt e Sabrina Ward, afinal. —
Finalmente, permiti que meus olhos encontrassem os de Theo. Ele me
observava com atenção, as sobrancelhas franzidas, o rosto sério. Meus
lábios se esticaram um pouco. — Era a bailarina prodígio deles. Aquilo
bastava pra mim.
Os olhos arderam, as lembranças que eu evitava começaram a ser
reproduzidas na minha cabeça. Minha garganta se fechou ao continuar.
— Raramente me importava se teria ou não o papel principal, mas me
esforcei para as audições, dois anos atrás. — Sorri, melancólica. — Era a
peça favorita do meu pai. Ele estava animado. Apesar de ser muito apegado
comigo, não me dava privilégios na academia por ser sua filha. Assim,
mesmo tendo treinado muito, não consegui o papel da Odette. Não me
importei, porque sabia que papai era justo, que, se não me deu o papel
principal, era porque não achava que eu estava pronta para ele. No último
mês antes da apresentação, decidi que usaria o estúdio privado dele pra
ensaios extras. Mesmo que não fosse a dançarina principal, queria dar o
meu melhor. — Dessa vez, um riso seco deixou minha garganta. — Mas
não foi uma boa ideia. Nas três primeiras semanas, dancei sozinha. Meu pai
raramente ia ao estúdio em meses de ensaio para apresentações importantes
assim, então não sabia que eu estava usando o lugar para praticar. Na última
semana de treino... bem, foi nela que meu mundo virou de cabeça para
baixo. Uma das músicas do primeiro ato da peça estava tocando alto quando
entrei, então pensei que papai tinha aberto o estúdio para outra aluna da
academia.
E tinha.
Ainda conseguia escutar a voz dela pedindo algo. Depois de avançar
alguns passos e ver pelo espelho, compreendi que aquilo não era uma noite
de ensaio. Não. Aquela era a noite em que dois amantes se encontravam.
Por alguns minutos, não era meu pai ali, com uma bailarina linda em seus
braços, o rosto cobrindo o dela, a beijando; era, sim, um estranho. Um
homem irreconhecível.
Os dois não me viram, não a princípio. Eu me escondi atrás de uma
das pilastras que havia na entrada. Porém, quando a música acabou, meu
soluço ficou mais alto e cortou a conversa do casal como uma faca afiada.
Me recordava claramente dos olhos de papai quando me viram no chão,
encolhida contra a madeira. Ele não falou por um tempo, como se estivesse
congelado, como se estivesse vendo seu pior pesadelo bem ali, diante dele.
O grande professor de dança Matt tentou se aproximar e conversar,
mas eu não suportei. Senti tanto nojo e repulsa que deixei o pouco da
refeição que ingerira durante aquele dia voltar pelo caminho do qual viera.
Depois de manchar o chão do estúdio e conseguir me levantar, saí correndo.
Não voltei para casa, avisando mamãe que passaria aquela noite no
apartamento de Jeremmy. Por algumas horas, fiquei vagando nas calçadas
do quarteirão do prédio onde meu irmão morava e, quando o cansaço
venceu a tristeza, simplesmente subi para o apartamento. Naquele dia, não
contei a Jemmy o que me fizera aparecer naquele estado deplorável, de
forma tão repentina.
— Mandei uma mensagem para o meu pai naquela noite avisando
que não contaria a ninguém — diminuí o tom de voz —, mas que não
precisava de uma explicação. Não havia justificativas. Apenas pedi que
resolvêssemos aquilo depois da apresentação.
— Então você se apresentou? — A pergunta saiu baixa.
Sorri para Theo.
— Queria ter escolhido ficar em casa naquele dia. — Contei a ele o que
acontecera durante aquela semana. Os ensaios a que me forçara participar
com as outras bailarinas, as tentativas do meu pai de se explicar e prometer
que só tinha acontecido aquela vez, que ele e Lyssa não estavam juntos e
que aquela noite fora um acidente. Apenas resumi para o italiano o restante:
a consciência do bailarino aposentado falando mais alto, ele confessando
tudo em uma reunião de família, implorando o perdão da minha mãe.
Jeremmy perdendo a cabeça, mamãe sem dizer uma palavra, se trancando
no quarto... E eu. Bem... — Fui para o anfiteatro. Consegui dançar as
primeiras músicas, mas, quando vi meu pai, acabei perdendo a linha. Mudei
os passos sem pensar, executei mal um deles e meu pé machucado torceu.
Eu caí do palco naquele dia. Quebrei a perna direita e o pulso.
Theo arfou, preocupado, correndo os olhos pretos pelas minhas pernas
esticadas na grama, as mãos que ainda seguravam o copo de plástico.
— Você... Quer dizer... Você está bem? — Cobriu a boca com uma das
mãos, ainda surpreso com o final daquela história.
Ri.
— Relaxa, Theo — respondi, elevando uns trinta graus as pernas,
balançando as sapatilhas pretas no ar para provar a ele que estava bem. —
Você me fez andar por toda Roma hoje, estou bem.
— Você... — Fechou os olhos por um segundo, nada divertido. — Você
nunca mais dançou?
Dei de ombros.
— Eu fiquei um bom tempo sem andar, mas o médico disse que eu
poderia voltar à rotina normal depois de alguns meses. Só que... —
Suspirei, virando garganta abaixo todo o conteúdo do copo em três goladas
só. — Acabei usando a perna como desculpa para nunca mais pisar naquela
academia. Durante um tempo, precisei fazer fisioterapia, pois meu joelho
doía muito. Mas quando melhorei... só não quis mais. Não tinha mais um
motivo para dançar.
Aquele sentimento de tristeza nos olhos de Theo me deixou inquieta. Por
isto evitava contar a história: as pessoas que já a conheciam tendiam a
lançar aquele mesmo olhar de pena quando me encontravam.
— Eu sinto muito, Tina.
— Huh. Eu também. — Sorri um pouco. — Mas acontece. Porque a vida
é uma merda às vezes.
O rapaz continuou me fitando daquele jeito que dizia que, se eu não
fizesse qualquer outra coisa para mudar de assunto, ele acabaria me
puxando para um abraço.
Pigarreei, cansada de falar ou pensar sobre aquilo.
— Agora você sabe — concluí, voltando a encarar o pôr do sol que
começava. — Mais alguma pergunta?
Theo começou, mas eu o interrompi baixinho:
— Que não seja sobre dança?
Ele suspirou.
— Como você e Gina se conheceram?
— Ela era vizinha da minha avó, brincávamos com minhas primas
sempre que eu ia ao Brasil. Os pais dela eram muito próximos da nossa
família, mas acabaram morrendo em um acidente de carro quando Gina
tinha doze anos. — Me inclinei para pegar a garrafa de vinho e enchi o
copo até a borda. — Como Gina não tinha nenhum familiar que se
importasse, meu pai acabou, com muito custo e barganha, conseguindo a
guarda legal dela.
Theo negou quando ofereci mais vinho a ele.
Continuei segurando a garrafa, deprimida pelo assunto, ciente de que
precisaria de mais.
— Ela dança também?
Soltei uma risada.
— Terrivelmente. — Sorri, sentindo raiva e saudade daquela ingrata
irresponsável. — Minha amiga acha balé chato. O sonho dela é ter a própria
confeitaria um dia.
— Não está mais preocupada com ela? — perguntou.
Suspirei.
— Um pouco — confessei. — Mas Gina sempre fugiu. Desde que se
mudou com a gente para Nova Iorque. Minha mãe costuma brincar que
nossa casa é o hotel onde a garota passa a noite, porque Gina nunca fica lá
realmente. Às vezes, penso que ela se sente culpada pela morte dos pais, e
também se vê como um peso por morar com a gente, mesmo não sendo
verdade. Então, ela trabalha em um restaurante chinês de segunda a sábado
e passa o domingo todo fora, como se não quisesse ser um fardo para a
minha mãe e o meu irmão, mesmo que a consideremos da família. —
Encarei Theo. — Bom, ela é bem grandinha para fazer o que bem entende.
Até mesmo me trocar por um Paolo idiota...
Theo me ofereceu um sorriso gentil.
— Você a ama muito.
— Da mesma forma que amo meu irmão de sangue — assenti. — Tudo
bem que, se você não tivesse aparecido, eu teria voltado para o hotel e
escrito todo um discurso para quando ela voltasse, mas não estou com tanta
raiva agora.
— Prego — disse o rapaz, assentindo.
Franzi a testa, rindo.
— Prego?
— De nada, bella. — Um repuxar maroto dos lábios. — Foi um prazer
atropelar você.
Não consegui segurar o sorriso largo em meu rosto.
— Sempre um perfeito cavalheiro, não é mesmo?
Ele deu de ombros.
Após de alguns minutos seguidos de silêncio, aproveitando os
segundos de claridade alaranjada do sol que nos restavam, Theo tirou de
dentro da sacola duas lanternas baratas, fincando-as no chão. Conversamos
sobre outras coisas cotidianas e situações frustrantes que ele já passara
como guia e, depois de me fazer rir alto contando um desses casos, o
italiano estudou meu rosto por um segundo. Daquele jeito que fizera
quando descobriu que a moeda que eu roubara da fonte era sua.
Isso me lembrava...
— Mio raggio di sole — tentei dizer corretamente, e Theo pareceu
despertar de seus pensamentos. — Vai me dizer o que significa agora?
Ele sorriu.
— Não acho que é a hora.
Revirei os olhos.
— É a hora perfeita.
— Hm... — Considerou por um segundo. — Eu sempre pedia isso à
fonte, não foi a primeira vez. É um desejo importante pra mim, não posso
dizer a você sem algo em troca.
Estreitei os olhos.
— O que você quer?
Theo sequer pensou na pergunta.
— Uma dança.

— Theo...
— Não precisa ser complicado, ou uma música clássica, só... uma dança.
Ri.
— Por que quer tanto me ver dançar?
— Porque não acredito que é uma bailarina.
— Era. — Bufei, soprando um cacho dos olhos. — Eu era uma bailarina.
— Não acredito.
— Não vou dançar pra você — falei simplesmente.
Ele deu de ombros.
— E eu não vou te contar o que pedi à fonte.
Comecei a rir, observando o rosto bronzeado e tão lindo.
Não sabia qual era a intenção de Theo com aquilo, mas apenas cogitar fez
meu coração bater mais rápido. Era de ansiedade? Me levantar e me
preparar para dançar para um rapaz que conhecera naquele dia? Meu
coração acelerou o ritmo porque queria aquilo? Ou seria medo de cair outra
vez?
Por favor... Era o que minha consciência e meu coração pediam em
uníssono. Por favor, tente só mais uma vez. Ninguém além de Theo vai ver.
Se você tropeçar e cair, ele com certeza vai estar pronto para te segurar.
Então, por favor... Só tente.
Inspirei profundamente, ciente de que poderia me arrepender disso
depois.
— Você escolhe a música — murmurei, me colocando em pé.
Um sorriso enorme e insinuativo iluminou o rosto de Theo.
— Dirty Dancing.
Gargalhei alto, lançando um olhar incrédulo para ele.
— O quê? — Cruzou os calcanhares, as pernas compridas esticadas na
grama escura. — Você disse que é seu filme favorito.
Não era uma má ideia.
E não seria balé.
Eu poderia deixar fluir... seguir os passos e meus sentimentos.
— Certo — resmunguei. — Coloca a música.
— Esse é o espírito! — Theo fez aquilo com a mão em forma de coxinha.
Sorri. — Qual o nome da música?
— Now I... have... the time of my life... — cantei exageradamente grave, o
fazendo rir.
Theo digitou e ergueu a tela. No entanto, antes de dar o play, disse,
sedutor:
— Dance pra mim, Baby.
THEO

Obviamente, Valentina era uma bailarina. Se ela não dissesse, eu


teria desconfiado até metade daquele dia. A garota tinha o porte de uma
dançarina clássica: no seu jeito de andar, na forma como falava, na maneira
como as mãos delicadas se moviam. Ouvir sua história fez algo dentro de
mim se quebrar, mas saber que ela deixaria as ações do pai destruírem um
sonho... Eu não conseguiria ficar ali parado, sem ao menos tentar mudar
essa história.
A forma como a voz de Tina falhou ao falar da dança no almoço, ou
minutos antes, dizendo o quanto se esforçou e era boa no que fazia... Não a
provoquei para vê-la dançar porque estava atraído por ela, fiz isso para
atiçar um pouco a chama que ainda existia dentro daquela jovem de sorriso
lindo e olhos brilhantes.
Valentina sentia falta daquilo.
— Volta no começo — Tina pediu, posicionando o pé direito à frente do
esquerdo.
Sorri quando a voz masculina começou a cantar outra vez e a jovem se
permitiu mover com a música, erguendo a mão no tempo certo,
naturalmente, como se o corpo dela e a melodia que ecoava naquele espaço
de vento e grama fossem um só. A guitarra e o baixo começaram. Tina não
parecia notar o quanto estava radiante quando deixou os pés a guiarem pela
grama, movendo-se com habilidade e segurança. Fluidamente. Três passos
para frente, dois para trás, movendo os quadris e sustentando meu olhar
como se eu estivesse dançando com ela.
Ela era linda.
Tão linda.
Diferente da dança original, Tina não tinha um companheiro para segurar
sua mão ao girá-la e segurá-la, mas a jovem não precisava de um parceiro.
Aquela dança era dela. Apenas dela.
E era perfeita.
Não só o lugar, a música, mas ela. Perfeita.

“With my body and soul


I want you more than you’ll ever know
So we’ll just let it go
Don’t be afraid to lose control...”

(Com meu corpo e alma


Quero você mais do que imagina
Então vamos apenas deixar levar
Não tenha medo de perder o controle...)
Não consegui desviar o olhar, os olhos fixos em cada movimento da
dançarina diante de mim. E quando ela sorriu, movendo os lábios como se
cantasse a letra da música para mim, senti meu corpo reagir, meu coração
bater um pouco mais acelerado.

“So I tell you something


This could be love, because
I’ve had the time of my life
No, I’ve never felt this way before
I swear, It’s the true
And I owe it all to you...”[17]

(Então vou te dizer uma coisa


Isso pode ser amor, porque
Eu tive o melhor momento da minha vida
Sim, eu juro, é a verdade
E eu devo tudo a você...)

Via o brilho nos olhos esverdeados, a liberdade que a jovem parecia


sentir ao girar as sapatilhas. O short curto e as pernas torneadas se
revelaram quando Tina deu outra pirueta, a saia do vestido se erguendo e
ondulando com leveza no ar. As mechas cacheadas acompanharam, já não
tão definidas, mas despenteadas de uma forma adorável e...
Indiscutivelmente sexy.
O sorriso nos lábios avermelhados me dizia que Valentina estava ciente
disso. Do que estava fazendo comigo naquele momento.
E eu não me importei em disfarçar.
Se soubesse pintar, registraria a imagem da jovem naquele vestido
perturbador, dançando para mim, com a noite que começava como fundo,
onde o único ponto de luz era ela. Apenas ela.
Não percebi que a música havia terminado até Tina se aproximar,
ofegante. Aquele sorriso era diferente de todos os que eu a vira oferecer
naquele dia. Era um sorriso de alegria sincera, de uma criança que acabou
de receber um presente de natal, uma jovem bailarina voltando a dançar.
Ela estendeu uma mão para mim.
Franzi a testa.
— O quê? — Fiquei de pé quando ela me puxou, deixando o celular na
grama, perto de uma das lanternas.
A jovem me guiou até a área mais plana do gramado.
— Dança comigo — pediu, rindo, feliz.
Valentina parecia genuinamente feliz naquele momento, aquele
sorriso lindo brincando nos lábios que sempre chamavam minha atenção.
Eu precisava reunir forças para manter o olhar longe.
O que Valentina estava fazendo comigo... Ela não fazia ideia.
Os dedos rodeados de argolas finas seguraram minhas mãos,
posicionando-as em sua cintura.
— Não sei dançar — murmurei, fitando o rosto inclinado para mim.
Perto demais.
— Eu te ensino. — A bailarina guiou uma de suas mãos até meu peito,
onde o coração batia desenfreado. A outra traçou o caminho para meu
pescoço, pousando os dedos finos na nuca. — Só não pisa no meu pé e
ficaremos bem.
Ri.
— Não prometo nada, bella — brinquei, trazendo o corpo dela para mais
perto.
— Um pé de cada vez — instruiu, observando meus pés acompanharem o
movimento dos dela. Tina recuou um passo, eu avancei. Eu recuei, ela
avançou. — É só deixar a música te guiar. Não tem erro.
Tentei segui-la.
Não era uma música lenta, mas a jovem me guiou num compasso mais
simples, que se encaixasse na melodia. Não parecia estar certo, mas Tina
sorria abertamente, então deduzi que estava fazendo um bom trabalho.
— Theo... — começou baixinho, e encarei o rosto dela. Havia um brilho
nos olhos verdes, um ar divertido pincelando seus lábios e bochechas. —
Você... é horrível.
Gargalhei.
— Que escolha interessante de palavra, mas eu discordo. — Ousei passar
a mão no braço da garota até encontrar a dela, girando o corpo de Valentina
como o ator fazia no filme. Um som delicioso deixou a garganta da jovem,
uma risada que preencheu todo o lugar. Quando o corpo de Tina voltou a
encontrar o meu, a prendi contra o peito, a mão firme em sua cintura. —
Viu só? Eu não sou tão ruim.
— Tudo bem, vamos diminuir o passo — disse, recuperando a
compostura. Mesmo ali, com a parca luz, conseguia ver suas bochechas
coradas. Tina fitou meu rosto, suavizando a expressão, ficando mais séria.
— Vamos só... ficar assim por um tempo.
Assenti, recostando a lateral do rosto dela no meu. Conseguia sentir o
aroma suave do shampoo das mechas douradas do seu cabelo.

“Oh since the day I saw you


I have been waiting for you
You Know I will adore you ‘til eternity
So won’t you be my baby?”[18]
(Desde o dia em que te vi
Eu estava esperando por você
Você sabe que vou adorar você até a eternidade
Então, você não quer ser o meu amor?)

— Por que parou de dançar? — repeti a pergunta, ciente da resposta que


a moça sempre tinha na ponta da língua.
— Meu pai...
— Sim, eu sei. Mas por quê? — Me afastei para ver o rosto dela. — Você
claramente ama isso, Valentina. Eu vi você dançando, vi o brilho nos seus
olhos. Você parecia... livre! — Tina mordeu o lábio inferior, como se
desistisse do que estava prestes a dizer. Insisti. — Sei que se lembra dele,
entendo que esteja magoada com seu pai, mas...por favor, por você... não
pare de dançar.
TINA

Soltei uma risada baixa ao escutar aquele pedido sincero de Theo,


ignorando sua mão apoiada no meu braço, que contornava seu ombro, o
polegar que subia e descia em minha pele como se não fosse nada demais.
Ele sequer parecia se dar conta do que aquele gesto causava em mim, do
arrepio gelado e delicioso que se alastrava daquele ponto por todo meu
corpo. Pensei em rebater, dizer que aquilo não aconteceria porque eu não
queria mais dançar. No entanto, depois daquela música, depois de me
permitir reviver aquela parte que me libertava...
Eu não me sentia daquela forma há muito... muito tempo.
E Theo percebeu.
— Encontre um novo motivo pra dançar — continuou, a voz algumas
oitavas mais baixa, quase sussurrada, como se vagalumes e grilos
estivessem ali e pudessem nos escutar. — Não quer passar o resto da vida
culpando seu pai, quer? Sei que o erro momentâneo dele custou o acerto de
uma vida inteira, mas não deixe que isso acabe com o que há de melhor em
você, bella. Com seu sonho.
Desviei o olhar para a pequena vila que brilhava lá embaixo, fingindo —
ou tentando — que Theo não estava tocando exatamente no ponto mais
frágil do meu coração.
— Não tenho o direito de me intrometer, sei que não, mas vou me
arriscar mesmo assim. — Senti os braços dele me puxarem em um abraço
mais apertado, a voz grave, rouca e melodiosa contra meu ouvido, dizendo
baixinho: — Tente encontrar um lugar em você para perdoar seu pai. Não
por ele, mas por você. Sei que é difícil, e você tem, sim, seus motivos, mas
guardar, cultivar e deixar esse sentimento crescer dentro de você só vai te
trazer coisas ruins. E a forma como fala dele... Bem, está claro que ainda
ama seu pai. Ele pode... acabar partindo um dia. Se isso acontecer e o
sentimento quebrado ainda estiver aí... você não vai se perdoar.
Por alguns segundos, tive a sensação de que Theo não estava apenas
falando de mim. Que aquela amargura em sua voz não era pela minha
situação apenas, mas... O italiano me contou sobre perder os pais, sobre
sofrer com isso, mas não detalhara de fato o que acontecera. Pela forma
como agia e falava, eu imaginava que ele tivera uma boa relação com eles,
mas agora, diante daquele discurso melancólico, me perguntei se não havia
mais.
Talvez algo que Theo guardasse também, selado no peito a sete chaves.
Mas não era a hora para insistir, eu sequer queria incomodá-lo
introduzindo o assunto.
— Não odeio ele — confessei baixinho, apoiando a cabeça no peito do
rapaz. — E sei que meu pai se arrepende todos os dias daquela noite. Mas
não tenho coragem ainda para perdoá-lo. Para... seguir em frente.
— O primeiro passo é sempre o mais difícil. Porém, depois de vencê-lo,
o próximo é suportável. E o seguinte se torna mais fácil. — O rapaz se
afastou um pouco para ver meu rosto. — Por que não começa visitando ele?
— Não quero dar falsas esperanças...
— Não dê. Seja firme e diga: “Só vim escutar o que você tem para dizer,
não significa que vou te perdoar” — imitou minha voz, finalmente me
arrancando uma risada depois de minutos de seriedade.
— Acho que se eu falar assim... com esse tom... estrago meu plano de
“ser firme”.
— Você entendeu meu ponto. — Theo sorriu, afastando um cacho
insistente do meu rosto. — Só quero que pare de pensar no castigo que está
dando para o seu pai e comece a pensar no que está fazendo com você
mesma ao continuar vivendo assim.
Pensei em retrucar, mas ele tinha razão.
Assenti.
— Você está certo, voz da minha consciência — brinquei, observando
aquele rosto já tão familiar. Tão lindo.
Um dia.
Só se passara um dia, mas, honestamente, parecia que eu conhecia Theo
há bem mais tempo.
A letra da música caminhou por minha mente, me lembrando que a magia
daquele dia estava quase acabando: como a Cinderela à meia-noite, eu teria
que voltar para o hotel em breve. Theo e eu não falamos sobre o que
aconteceria depois, não tivemos — ou talvez decidimos ser melhor assim
— uma oportunidade para discutir o assunto. Cada segundo daquele dia de
verão juntos era precioso e único.
O italiano me fitava como se também estivesse pensando o mesmo.
— Por que me ajudou essa manhã? — perguntei baixinho.
Não estranhei meu coração errar o compasso quando vislumbrei aquele
par de olhos negros brilhar como o céu acima de nós. As reações do meu
corpo começaram a acontecer bem antes de eu realmente me importar. O
coração fazia aquilo de acelerar quando Theo sorria para mim — como
agora —, ou quando falava meu nome, acentuando de propósito (ou não) o
sotaque ao dizê-lo, ou quando a mão dele acidentalmente (ou não) tocava a
minha...
Eu deveria me afastar e evitar que aquelas reações mexessem com algo
mais profundo em mim. Contudo, naquele segundo, numa colina em algum
lugar da Itália, sob um lençol de céu infinito e estrelas brilhantes, não
consegui me importar.
Só queria ele.
Ele.
Apenas ele.
— Eu te atropelei, era o mínimo que podia fazer — respondeu.
Aquela resposta não colava para mim. Não mais.
— O mínimo que poderia fazer era cuidar disso aqui. — Apontei o
curativo na testa, há tempo esquecido. — E você fez. E se desculpou. Era o
certo e o mínimo a se fazer. Não me enrole dessa vez, Theodoro — enfatizei
seu nome. — Por que largou um dia todo de trabalho para ser guia de
graça? Por que se deu ao trabalho de me ajudar e me fazer companhia hoje?
Theo não respondeu de imediato, apenas... me olhou. Analisou cada
ponto do meu rosto como se eu fosse uma das obras de arte que vimos
naquela tarde. E eu mentiria se dissesse que não gostava disso, da forma
hipnotizante que seus olhos pareciam ficar mais escuros ao me encarar, da
maneira linda como se encolhiam ao sorrir, das milhares de estrelas que
pareciam se perder ali dentro quando dizia meu nome.
— Por que eu não te ajudaria, bella? — disse mais baixo, correndo
aqueles olhos por cada parte do meu rosto. Decorando, guardando. — Você
apareceu de repente na minha frente, completamente radiante. Eu seria
muito estúpido se te perdesse de vista, raggio di sole.
Aquelas três palavras de novo.
Ditas para mim.
Nada de bambina, bella ou Tina. Mas raggio di sole.
Inclinei meu rosto na direção dele, sua boca perto demais da minha, o
hálito quente com aroma de vinho beijando minha pele.
— O que significa? — sussurrei, encarando seus lábios. Próximos
demais. Ainda assim, distantes. — Raggio di Sole. O que significa, Theo?
Ele levou uma mão até meu rosto, sorrindo daquele jeito maroto ao
afastar um cacho do olho. Se eu ousasse me inclinar um pouco, se ficasse
na ponta dos pés e me aproximasse só mais alguns centímetros, o beijaria
facilmente.
Eu queria que Theo me beijasse.
E podia ver em seus olhos que talvez ele quisesse também.
Mas o italiano manteve o sorriso nos lábios ao se inclinar devagar na
minha direção, dolorosamente devagar, para então...
Beijar minha testa.
— Não posso dizer ainda. — Quebrou o contato, se afastando de mim.
Pisquei, atordoada, me lembrando de como era ficar de pé por conta
própria.
Eu estava esperando um beijo. Céus, eu estava! Theo conseguia notar o
quanto me sentia idiota agora? E ele... queria? Parecia desejar o mesmo,
então por que...
Bufei.
— Vamos voltar. Está tarde. — Clareei a garganta, fechando as mãos em
punho ao lado do corpo para evitar tocar o rosto e conferir se estava tão
quente quanto eu imaginava.
O rapaz assentiu, recolhendo o que sobrara do queijo e vinho para a
sacola parda, desligando as lanternas e pegando o celular, interrompendo a
música que tocava. Ele aparentava estar completamente alheio ao meu
coração decepcionado, que desejou, ou ainda desejava, mais.
Theo desceu a colina tagarelando sobre uma lenda interessante que
ouvira um vez sobre a vila mais adiante, indiferente e nada afetado pelo
nosso pequeno momento de química ali em cima. Mas eu, embora escutasse
e resmungasse vez ou outra em concordância, não prestava atenção
realmente. Estava concentrada demais me questionando por que Theo não
me beijara depois daquela cantada idiota.
Na verdade, estava me repreendendo por me importar e querer tanto.
Olhei de relance para ele.
Seria mais fácil se o jovem não fosse tão lindo.
Italiano idiota.
TINA

Permaneci em silêncio todo o caminho de volta para a cidade,


escutando o vento forte e sentindo a lufada de ar gélido contra meus braços
e pernas. Abracei a cintura de Theo e escondi o rosto contra suas costas. Ele
não pareceu se importar, mas a proximidade me inquietou, mesmo sendo
proposital.
Passava das dez quando finalmente reconheci as ruas movimentadas de
Roma. Àquela hora da noite, não havia tanto burburinho agitado de turistas
e lojistas.
Tudo estava estranhamente quieto.
Quando reconheci, ao longe, a fachada do Palazzo Poli, senti uma
fincada incomum no peito, como se algum fio invisível me puxasse naquela
direção. Em menos de cinco minutos, eu estaria de volta ao hotel, e
inevitavelmente teria que me despedir dele.
Theo.
Não estava muito preparada para isso.
— Pode parar ali? — gritei contra o vento, sobre o ombro do rapaz.
— Na Fontana? — perguntou de volta, e eu assenti.
Quando Theo estacionou e descemos da scooter, senti aquele arrepio que
me perseguia desde que o dia começara. Me convenci de que aquela
sensação se devia à ambiciosa e majestosa fonte diante de nós.
Não havia tantas pessoas dessa vez. Ainda parecia estranho estar ali, sem
gente gritando, exclamando surpresa e tirando fotos, crianças correndo e
turistas me espremendo e empurrando.
Era como se a Fontana tivesse expulsado todos eles para reservar aquele
momento para mim.
Podia ser apenas fruto da minha imaginação, ou a magia que claramente
parecia brincar com o lugar, mas uma música melancólica e romântica
aparentava ecoar dentre as ruelas estreitas, dos prédios, como um vento
correndo. Só que aquele era especial, diferente e suave, como uma cantiga
para amantes.
Procurei ao redor enquanto me aproximava do monumento,
mas mesmo Theo não conseguira encontrar a fonte daquela canção. Me
convenci de que estava cansada demais para confiar nos meus ouvidos,
apenas... andei até a fonte que jorrava água cristalina, desejos e a promessa
de um final feliz.
Segurei o riso.
Era irônico pensar que experimentar um dia incrível por Roma foi meio
que culpa dela. Gina partira por causa de um desejo, eu roubara Trevi por
causa dos pedidos, retornara à fonte naquela manhã para devolver a moeda
e acabara conhecendo Theo no processo.
Quando contar a Giovanna sobre o que acontecera, ela vai dizer que foi o
destino. Um presente da Fonte. Mas, por mais fantástico que meu dia tenha
sido, eu não acreditava naquelas coisas. Fora uma coincidência
maravilhosa, apenas. Theo estava no lugar certo, na hora certa, só isso.
Durante o percurso da pequena vila afastada até ali eu cogitara
permanecer em Roma e conhecer o italiano melhor, mas aquilo só pioraria
as coisas. A agenda que ele me devolvera em certa hora da tarde me
garantia um tour bem programado por outras cidades incríveis da Itália.
Ficar e me apegar a alguém que em breve eu deixaria não era o sensato a
se fazer.
Seria melhor para nós dois dizer adeus o quanto antes.
Suspirei, me virando para Theo, que estava parado observando a fonte
também, perdido nos próprios pensamentos.
Era só um dia de verão que chegava ao fim.
— Isto é seu — murmurei, buscando a mão do rapaz para depositar nela a
moeda de cinco centavos lascada.
— Não, Tina. É sua...
Neguei com um aceno de cabeça.
— É sua. — Sorri, minhas mãos ainda segurando as dele. — Você precisa
dela pra seu pedido realizar. São três moedas pra isso funcionar, certo? —
Olhei para a cascata de água que caía. — Falta uma.
Theo balançou a cabeça, contrariado.
— Você não entende, bella. — Deu um passo à frente, os olhos escuros
demais, concentrados demais. — Ele já se realizou.
Aquele arrepio percorreu minha coluna outra vez, um lembrete de que
meu corpo sempre reagiria a Theo quando ele me tocasse ou me olhasse da
forma como fazia naquele segundo. Engoli em seco, descendo os olhos para
os lábios que o rapaz entreabriu. Perto. Muito perto.
Certo, talvez agora fosse a hora.
Esperei outra vez, como uma tola.
Senti o suspiro de Theo na minha pele quando a ponta de seu nariz tocou
o meu.
Só... mais... um... pouc...
— Tina? — O som estridente me despertou do transe. — Tina!!!
Fechei os olhos por um segundo, recuperando o ar, procurando a dona
daquela voz em seguida. Mal me virara quando um corpo colidiu com o
meu. Giovanna rodeou seus braços em meu pescoço, me apertando com
força.
— Ah... graças a Deus você está aqui! — disse, chorosa. — Pensei
que teria de esperar por horas até você voltar. Estava ficando preocupada!
Você não atendia!
— O quê? — A afastei o suficiente para ver seu rosto. Cachos
negros apontavam para todos os lados, a franja caindo sobre sua testa,
desgrenhada. — Gina, o que está fazendo aqui?
Minha amiga bufou depois de fungar, os olhos vermelhos e
inchados.
— Eu estou sem o cartão do quarto e decidi esperar um pouco pra
ver se você voltava e...
Hesitou.
— Gina, o que aconteceu? — Ergui as sobrancelhas, conhecendo
bem aquele olhar.
Suas bochechas coraram e ela mordeu o lábio inferior.
— Você estava certa, afinal. — Deu de ombros. — O Paolo é
mesmo um idiota.
Pisquei, esperando mais, nada surpresa com aquela constatação.
— Ele tentou algumas gracinhas. Percebi um pouco tarde as
intenções dele e precisei pegar o ônibus de volta pra cá. — Minha amiga
inspirou pesadamente. Parecia exausta. — Só que tive um problema com o
motorista italiano e... — A voz dela falhou. Gina forçou um sorriso. —
Bem, o importante é que consegui voltar viva. Perguntei pra recepcionista
do hotel onde você estava, e ela disse que não a via desde manhã, e...
Theo pigarreou atrás de mim.
— Ah! E aí? — Gina disse para ele depois de analisá-lo de forma
nada discreta, voltando para mim em português: — Miau, gatinho. Mi. Au.
Revirei os olhos.
— Gina — comecei, em inglês, para que o rapaz ao meu lado
entendesse também —, esse é o Theo, ele meio que me ajudou hoje. Theo,
essa é a famosa Gina.
— Falou de mim pra ele? – Minha amiga sorriu abertamente,
apertando minha bochecha. — Gracinha.
— É um prazer finalmente conhecê-la. — O jovem estendeu uma
mão em cumprimento.
— É americano também? — A brasileira devolveu o aperto. — Que
bom, porque vou te dizer uma coisa: italianos são uns babacas. Não se pode
confiar em um rostinho bonito. Aprendi da pior forma. — Gina fuzilou a
fonte e xingou da melhor forma que pôde em italiano, puxando a mão em
concha de debaixo do queixo numa expressão de desgosto e raiva que
aprendera com Joey em um episódio de Friends. Ela usava o gesto, porém,
num contexto completamente diferente: — Itália del cazzo![19]
Ela encarou Theo, que se esforçava para esconder a diversão.
— Verdade. — Foi o que ele disse.
Clareei a garganta e me intrometi entre os dois.
— Pode me dar um minuto com ele, Gina?
— Mas...
— Por favor — pedi, um pouco séria. Claro que eu lhe daria um
sermão ao voltar para o hotel, tivera o dia todo para preparar um, mas antes
precisava conversar a sós com Theo. Tirei da bolsa o cartão do nosso quarto
e estendi para minha amiga. — Pode ir na frente.
Gina estreitou os olhos castanhos por um momento, antes de
compreender as entrelinhas.
— Ah! — Soltou uma risadinha. — Claro, claro. — Virando-se para
o rapaz, disse: — Foi um prazer, Theo!
— Ciao, ragazza — respondeu, divertido.
Observamos ela se afastar para, enfim, podermos continuar do ponto
em que paramos.
— Quando começa a próxima aventura? — Theo se manifestou
primeiro, enfiando as mãos nos bolsos da calça jeans.
Era uma pergunta que eu não sabia responder. Antes de conhecê-lo,
planejei ir para Florença, Verona e até Veneza... Conhecer o máximo que
pudesse da Itália...
Mas agora...
— Não sei.
Ele assentiu, dando um passo à frente.
— Bem...Espero que se divirta. — Sorriu um pouco, me olhando
daquele jeito de novo. Aquele jeito que me fazia querer puxá-lo pela camisa
e beijá-lo.
Esperei que o rapaz dissesse alguma coisa, me pedisse para ficar um
pouco mais, que me convidasse para sair no dia seguinte ou qualquer outra
coisa que indicasse que queria, realmente, me ter por perto.
Mas ele não o fez.
— Acho que é isso. — Evitei soltar o suspiro resignado.
Me pede para ficar.
— É isso. — Ele se aproximou mais um pouco. Menos dez
centímetros.
— Obrigada por hoje. — Segurei a alça da bolsa com as duas mãos,
mantendo-as ocupadas, longe do italiano.
— Eu é que agradeço, bella. — O canto de seus lábios se repuxou
um pouquinho. — Me diverti muito.
Sorri para ele.
— Eu também.
Outro passo.
— Me promete uma coisa? — pediu baixinho, e eu concordei,
notando o brilho divertido em seus olhos. — Não saia por aí trombando em
italianos babacas, tudo bem? Não se pode confiar neles. — Completou num
sussurro: — Principalmente os de rostinhos bonitos.
Gargalhei, relaxando um pouco.
Por um breve momento.
— Gina é uma boa pessoa, juro — falei, lançando um olhar rápido
para onde, eu sabia, minha amiga esperava, nos observando de longe. Não
me obedeceu, no fim. Ficou para bisbilhotar, aquela safada. — Ela não
estava falando de você.
Fiz uma careta, sinalizando para que a jovem fosse embora logo.
Minha amiga sorriu, gesticulando com a mão cheia de pulseiras e anéis,
como se dissesse “vai logo”. Em outras palavras do dicionário Giovana
Albuquerque: “Manda ver, garota!”
Voltei a atenção para o italiano à minha frente.
— Eu sei. — Theo riu.
Depois coçou a nuca, sorrindo de maneira tímida.
— Eu realmente não curto despedidas — confessou.
— Eu também não. — Reprimi a vontade de agarrá-lo bem ali, em
frente à Fontana. Eu não seria a pessoa a ceder primeiro. Se ele não me
queria como eu o queria, então nenhum dos dois jamais saberia.
O rapaz assentiu.
— Então... Ciao, Valentina.
— Ciao, Theo — balbuciei.
Não vai.
Ele estava indo mesmo. Acenou uma última vez e começou a se
afastar de mim. Mais e mais. Diminuindo a cada passo.
Não vai.
Fechei os olhos, evitando a cena.
Eu podia ser forte, fazer o mesmo e voltar para o hotel, como se
mais um dia comum tivesse se passado. Sem olhar para trás e esperar que
mais alguma coisa pudesse acontecer.
Mas aquele não fora um dia comum.
Conhecer Theo não fora algo de um dia normal.
Mas, ah... droga! Eu não conseguiria ser forte dessa vez.
— Theo! — Corri. O tempo para alcançá-lo foi o suficiente para ele
se virar e se preparar para me segurar quando meu corpo colidiu contra seu
peito firme.
Fiquei na ponta dos pés e passei as mãos por seus ombros, o
abraçando apertado, enterrando o rosto em seu pescoço.
— Só mais um pouco — sussurrei sobre sua pele quente, sentindo as
mãos dele rodearem minha cintura, me mantendo presa a ele. — Vamos
ficar assim só mais um pouco.
— Também não quero me despedir — murmurou. — Mas vai ser
pior se não fizermos isso agora.
— Vai, não vai?
— Huh. — Pude sentir o sorriso em sua voz. — Posso querer mais
tempo.
— E mais — concordei.
Theo se inclinou para me observar, afastando as mechas douradas
dos meus olhos, que ardiam.
— E a culpa é sua — resmunguei.
Os lábios se esticaram mais, enfatizando o que eu acabara de dizer:
a culpa era dele e daquele sorriso que esquentava meu coração.
Mais alguns segundos e o italiano se decidiu:
— Se cuida, Valentina. — Theo correu uma de suas mãos à minha
nuca e levou meu rosto de encontro ao dele, depositando um beijo
carinhoso e demorado em minha testa.
Não consegui segurar a indignação dessa vez.
Estava estampada em cada ponto do meu rosto.
Theo olhou fundo nos meus olhos, mais sério do que nunca esteve, e
me beijou outra vez, dessa vez na bochecha, sem pressa alguma...
Pacientemente me tirando o pouco de razão que ainda restava.
Eu queria mais.
Queria ele.
E aquele idiota sabia, pois, para me provocar, continuou a tortura,
depositando os lábios úmidos e macios em cada centímetro de pele do meu
rosto: a ponta do nariz, o maxilar, o queixo... Subindo, brincando,
carimbando um beijo em cada lugar que ele sabia não ser o que eu tinha em
mente.
— Theo... — choraminguei, fechando os dedos em sua camisa, a
mão em seu peito.
Uma risada rouca e grave deixou sua garganta, e ele insistiu em me
provocar mais um pouco ao beijar o cantinho da minha boca, roçando
levemente a ponta fria do nariz em minha pele. O rapaz sabia que eu
segurava a respiração, esperando pelo beijo certo, aquele que eu poderia
retribuir no mesmo compasso. Sabia e, mesmo assim, não acabava com
minha agonia.
Fechei os olhos.
— Quer que eu te beije aqui? — perguntou sobre os meus lábios,
mas então retornou ao maxilar.
Theo não se importava se tínhamos plateia.
Sinceramente, eu também não.
— Você sabe que sim, droga! — murmurei, e outra gargalhada
baixinha ecoou pelo lugar.
Abri os olhos devagar quando a série de beijos parou. Estava
ofegante e ansiosa para que ele me tocasse outra vez. Porém, Theo me fitou
por alguns segundos e fixou os olhos pretos lindos em minha boca.
— Se eu fizer isso, já era, sabe disso.
Assenti.
— Não me importo. — Passei a mão em seu ombro, logo em sua
nuca, entrelaçando os dedos nas mechas lisas e macias. — Esperei por isso
o dia todo.
Sorriu.
— Eu também. — A mão em minha cintura me pressionou mais
contra ele. — Mas tento ser um cavalheiro, sabe.
— Cala a boca e me beija, Theo!
Ele se inclinou, os olhos incandescentes concentrados na minha
boca, a respiração curta e ansiosa como a minha a poucos centímetros,
tocando minha pele. E quando seus lábios roçaram os meus, quando fechei
os olhos outra vez, esperando o meu até que enfim chegar, quando
milissegundos separavam os lábios de Theo dos meus...
Eu acordei.
TINA

Uma lágrima solitária escorreu por minha bochecha quando meus olhos
se abriram de repente.
Me sentei na cama sobressaltada, ofegante.
Meu coração batia rápido e dolorosamente no peito, me lembrando e
afirmando que o que eu jamais pensara ser capaz de sentir tão intensamente,
em apenas um dia, fora na realidade...
Um sonho.
A fonte, a moeda, Theo...
Foram um sonho.
Pisquei várias vezes antes de fechar os olhos outra vez, com força, ainda
desacreditada de que tudo não passara de um filme do meu subconsciente.
Fechei os olhos de novo com a tola esperança de abri-los e encontrar...
O teto branco do hotel.
Um sonho.
Fora tudo um maldito sonho!
Encarei o cômodo que clarearia mais à medida que o dia finalmente
começasse, e a tela do celular brilhou quando pressionei o botão,
confirmando o que eu temia.
Cinco horas.
Eu normalmente levantava naquele horário, mas me recordava
claramente de desativar o despertador comum para as férias na Itália.
Passei as mãos nos cabelos desgrenhados, observando o pijama simples
que colocara para dormir na noite anterior, após o banho.
Uma vontade de gritar estava presa na garganta.
Ainda conseguia sentir as mãos dele em meu rosto, a sensação dos lábios
de Theo percorrendo uma trilha preguiçosa por meu maxilar e bochechas...
minha boca...
Faltou tão pouco...
Merda!
Praguejei, afundando o rosto no travesseiro.
Não costumava sonhar assim. Na verdade, normalmente esquecia a
maioria dos sonhos que rodavam na minha cabeça sempre que fechava os
olhos. Em geral, me lembrava dos que eu mais evitava recordar: uma
bailarina machucada caindo de novo e de novo num estúdio velho, cinzento
e igualmente quebrado.
Mas aquele...
Theo.
Ele fora tão real.
Cada segundo pareceu tão real.
Precisei de longos segundos para afastar aquele formigamento nos
lugares onde o italiano me tocara, varrer meus pensamentos para longe do
sorriso dele. Mesmo a risada do rapaz ficou nítida em minha mente, me
provocando sensações impossíveis para a Tina de semanas atrás.
Sonho.
Fora só um sonho.
Mordi o lábio, reprimindo a melancolia que queria dominar meu corpo
ainda dormente. Quando finalmente me permiti enxergar além das imagens
de um sono profundo, visualizei a silhueta da jovem estirada na cama do
outro lado. Giovana ainda usava as roupas da noite passada, os cachos
embaraçados misturados às tranças enfeitadas por anéis dourados. Um dos
pés com a meia; o outro, não.
Um misto de raiva e alívio percorreu meu corpo. Porém, movida pelo
sentimento pior, levantei agarrada ao travesseiro.
— Como. Você. Ousa. Me. Deixar. Por. Um. Cara! — grunhi à medida
que pontuava cada palavra com travesseiradas fortes, motivada pela
indignação da noite passada, pela frustração de Giovanna ter aparecido no
meu sonho e interrompido o que poderia ter sido um beijo apaixonado. —
Sua. Amiga. De. Merda!
— O que é, praga?! — resmungou a jovem, rouca, cobrindo o rosto com
o antebraço. Mal abria os olhos.
— Praga? — Bati nela com mais força, sentindo outras lágrimas
escorrerem. Não sabia por que sonhar com um cara legal e um dia incrível
me afetaram tanto, mas ali estava: Valentina Ferreira, chorando por um
romance iludido e inacabado. — Você ia me deixar aqui pra fugir com o
Paolo para Florença, sua...
Os olhos dela se abriram devagar.
— Sim, sim. — Bufou. — Eu estou lá, não vê? Se está tendo um sonho
ruim, não estraga o meu, poxa. Me acordou na hora que eu ia beijar o
Capitão América.
Um riso seco deixou minha garganta.
Com uma última travesseirada nela, soltei a fronha e me sentei à beira da
cama.
Estava... vazio.
Ter aquele sonho preenchera pedaços trincados do meu coração, fora
mágico, real, tão lindo... Acordar daquele jeito deixava tudo vazio outra
vez.
Theo me fizera rir inúmeras vezes, me levara para lugares incríveis, me
fizera dançar...
— Tina? — Gina tocou meu braço. — Você está chorando?
— Não. — Virei o rosto para que ela não visse mais.
— O que aconteceu?
Minha amiga se sentou, me puxando para um abraço na mesma hora em
que me desmontei de verdade.
Não era apenas por Theo que eu estava triste.
Era pelo que ele me havia feito sentir.
Era pelas feridas que deixei ele ver.
Pela Valentina que guardara rancor demais e deixara de sonhar por dois
anos.
— Oh, amiga... — Giovanna acariciou minha cabeça. — Não me assusta.
Você nunca chora assim, o que foi?
Sinto falta da dança, quis dizer. Sinto falta de como minha família era
antes, das brincadeiras bobas do meu pai, de ver ele e minha mãe
dançando pela casa. Sinto falta de sorrir por coisas idiotas porque elas
simplesmente me faziam bem.
Sinto falta da Valentina que costumava ser.
A Valentina do sonho.
— Eu só... tive um sonho. — Funguei.
Gina suspirou, me abraçando mais forte.
— Aqueles sonhos de novo? — perguntou baixinho.
Sim, minha amiga sabia dos sonhos frequentes que preenchiam minhas
noites. O pesadelo de paleta cinza. Aquele em que o estúdio estava
desmoronando e eu tentava dançar mesmo assim, com uma dor insuportável
na perna quebrada. No sonho, uma caixinha de música estragada tocava; a
bailarina nela era suja e triste.
Eu caía sempre que tentava uma pirueta e encarava as dezenas de
Valentinas nos espelhos ao redor, todos trincados. Quando ia ao chão,
começava a chorar. Então uma outra música iniciava, uma triste, mas
reconfortante, e uma luz aparecia. No entanto, sempre que a silhueta de
alguém começava a surgir naquela luz, eu acordava.
Só que, pela primeira vez, sonhara de verdade.
— Não foi um sonho ruim — murmurei, fitando minhas mãos
entrelaçadas sobre o colo, me lembrando de como a mão de Theo era maior
e cobria a minha. — Só... um sonho de um dia de verão.
Fechei os olhos por alguns segundos e inspirei.
— Me desculpa te acordar — falei, apoiando a cabeça no ombro de Gina.
— Foi apenas um reflexo do sonho. Você meio que me deixou sozinha aqui
em Roma pra ir namorar com o Paolo em Florença.
Giovanna soltou um som engraçado de descontentamento.
— Eu voltei, ok? Voltei assim que li aqueles três capítulos de livro que
você mandou — resmungou. — Podia mandar áudio, sabe que odeio ler
textão.
Ri, me afastando para observar o rosto dela.
— Então você voltou porque se sentiu culpada? Que gracinha...
Gina me mostrou a língua.
— Eu voltei porque você estava certa. Preciso começar a pensar nos
sentimentos das pessoas que deixo para trás. — Ela afastou um cacho loiro
do meu rosto. — Vivo fazendo isso com você e com o Jeremmy, não é
justo.
— Obrigada. — Sorri docemente. — É sempre uma delícia estar certa.
Ela me empurrou para fora da cama.
— São cinco horas da manhã — praguejou, voltando a deitar. —
Podemos, pelo menos, levantar às nove? Sua agenda diz que temos que
devolver o cartão do quarto na recepção até às dez.
— Você leu minha agenda?
— Claro! — Gina sorriu, os olhos fechados, o rosto apoiado sobre as
duas mãos unidas no travesseiro. — Vamos seguir seu itinerário de viagem.
É seu aniversário, afinal.
Meus lábios se esticaram também. Porém, quando retornei para a cama,
senti aquele vazio pesado outra vez.
Não consegui pregar os olhos, muito menos afastar Theo dos
pensamentos.
Um suspiro ecoou do outro lado.
— Quer me falar desse sonho? Talvez ajude.
Ergui os olhos para Gina, meu rosto recostado contra o travesseiro.
— Só fiquei com o que você disse na cabeça — murmurei. — Sobre a
moeda e a Fontana.
— Ah, sim, sua ladra. — Bocejou. — Vai devolver a moeda?
— Eu estava planejando fazer isso pela manhã e acabei... sonhando com
a Fontana e a moeda e...
— Um italiano gatinho? — Ergueu as sobrancelhas duas vezes.
Ri.
— Sim... um italiano gatinho. — Muito mais do que isso. Choraminguei.
— Mas foi diferente, Gina. Você sabe que eu não costumo sonhar colorido.
Foi um sonho digno dos filmes que a Lena gosta.
— Saudades daquela baixinha...
— Pois é, eu também. — Suspirei. — Talvez meu subconsciente tenha
reunido tudo e colocado no sonho.
— E o que aconteceu nele?
Contei para ela.
Tudo.
Cada mínimo detalhe.
Quando cheguei ao final, Gina parecia mais acordada do que nunca.
— Quer dizer que sonhou com o dono da moeda que você roubou? —
Existia um rosto no sorriso dela. — Você teve um dia romântico com o cara
da Fonte?
Revirei os olhos.
— Foi só um sonho — retruquei. — Theo pode nem ser mesmo o nome
dele. E eu posso muito bem tê-lo visto em algum lugar, meus
“divertidamentes” estavam sem um elenco bom e escolheram ele.
Aleatoriamente. Talvez ele nem seja italiano!
Pensar nisso embrulhou meu estômago, lembrar que Theo não era real
me deixou inquieta.
Giovanna riu.
— Amiga, mas... E se a Fontana quis te dar uma lição e fez você sonhar
com o dono da moeda. De verdade?
Então, Theo seria real...
Mas era impossível. E mágico.
— Certo. — Ri. — Como se a Fontana fosse se vingar de cada um que a
rouba.
— E por que não? — A brasileira já estava de pé, andando pelo quarto.
— Não só faria sentido como seria um ótimo castigo. Sonhar com o dono
da moeda que você furtou da fonte... Isso é genial! — Gina parou de
ziguezaguear para me encarar, animada. — A gente precisa voltar lá hoje!
— Arfou. — Agora! Tá mais vazio nesse horário. Quero roubar algumas
moedas...
— Gina! — Gargalhei.
— O quê? — perguntou, séria. — Não vamos roubar, só... pegar
emprestado! Seria, tipo, como alugar um filme. A gente vai lá, devolve a
moeda do Theo, pega mais uma e vê qual será o sonho da vez.
Balancei a cabeça.
— Você é maluca!
— Qual é! — Me sacudiu. — Não quer testar a teoria?
— E parar na cadeia? — Ri. — Não, obrigada. Theo disse que a gente
pode ir presa por isso e...
Ele não é real.
— Você gosta dele — minha amiga afirmou.
— Do cara dos meus sonhos... — zombei, fechando os olhos. — Sou
apaixonada.
— E se... o cara dos seus sonhos... — começou, pensativa — ...também
tiver sonhado com você?
A encarei.
Gina sorriu.
— Pra quem não acredita nessas coisas, você claramente está pensando
nisso.
— Eu não tinha pensado nisso. — E não acredito nessa fonte idiota.
— E se o Theo estiver acordado neste mesmo segundo, pensando na
bailarina do sonho?
— Cala a boca!
— Você precisa voltar à Fontana, Tina! — A garota riu, eufórica. —
Pensa só, você chega no lugar e o Theo também está lá, te esperando com
uma rosa na mão, dizendo todo romântico um “Buongiorno, amore mio”.
Revirei os olhos.
— Foi só um sonho — repeti.
— Foi mesmo?
— Foi.
— Foi mesmo? — insistiu, franzindo a testa, me cutucando na costela.
— Que droga, Giovanna! — A empurrei para longe. — Foi!
— Tem certeza?
— Sim... — Não.
Os lábios perfeitos da minha amiga se esticaram como os de um gato.
Ela recuou um passo e cruzou os braços, convencida.
— Vai se arrepender se deixarmos Roma e você não confirmar minha
teoria. Vai arruinar a sua viagem — disse, paciente. — Porque não vai
conseguir parar de se perguntar se o cara que viu nos seus sonhos foi
mesmo real.
A encarei por alguns segundos, o peito subindo e descendo com uma
emoção diferente de qualquer outra que sentira antes.
Esperança.
Esperança tola de que Giovanna e a senhora da loja de doces tivessem
razão e a Fontana di Trevi fosse mesmo um lugar mágico.
— Eu te odeio — resmunguei, me sentando no colchão com o coração
acelerado.
Gina sorriu, satisfeita.
— E eu te amo. — Segurou meu rosto com as duas mãos e beijou minha
testa. — Agora troca de roupa e vai lá pegar seu homem.
— Ele não...
— Para de pensar, Valentina! — minha amiga me repreendeu quando
hesitei. — Só pega a droga da moeda e vai logo pra fonte!
Assenti, voltando os olhos para a escrivaninha, onde havia colocado a
moeda antes de dormir.
Meu coração iniciou uma corrida mais rápida.
— Gina? — chamei depois de me abaixar no chão para verificar e
conferir na bolsa. A jovem inclinou parte do corpo para fora do banheiro
para me olhar. A encarei apreensiva. — Cadê a moeda?
THEO

Me sentei na cama num sobressalto.


Era ela de novo.
Valentina.
Então esse era o nome da pessoa que visitara meus sonhos nos últimos
meses.
Mas daquela vez... Aquele sonho...
Foi real.
Passei a mão pelo rosto, tentando não só pensar com mais clareza ao
colocar os pés descalços no chão, mas acalmar o coração que batia
ensandecidamente em meu peito.
Quando a enxerguei no dia anterior, na loja da nonna, pensara estar
apenas... vendo coisas. Ou a confundindo. Afinal, quando dormia, não via
um rosto definido em meus sonhos, somente os cachos dourados brilhando
ao sol, o vestido amarelo estampado por pequenas margaridas e um campo
vasto de girassóis atrás.
O rosto era uma visão embaçada, como se a luz do sol fosse forte demais
e nunca me deixasse ver realmente quem era a dona da risada melodiosa e
rouca que preenchia meus pensamentos.
Tão linda e encantadora.
Mas então a bailarina dos meus sonhos finalmente ganhara um rosto, uma
voz e um nome. O cenário fora outro; aquele sonho tivera um roteiro,
diálogos longos e assuntos sensíveis que eu sinceramente não contava a
ninguém, nem a nonna.
Céus, Valentina dançando ao pôr do sol para mim...
Mio raggio di sole.
Não conseguira dizer a ela o que significava.
Apoiei os cotovelos sobre o joelho e encarei meus livros sobre a
prateleira do outro lado do quarto: estudos sobre mitologias, Roma antiga,
história, arquitetura e fantasias. Livros que meu pai me comprara quando
ainda estava vivo, histórias que eu cansara de reler e decorar. Enquanto
pousava o olhar nas lombadas desgastadas, pensei nela. Na dançarina de
sorriso contido e olhos cor de verde-oliva brilhantes.
Ainda conseguia sentir o cheiro de flores e shampoo que o cabelo dela
exalava, do perfume doce e suave que ela tinha, da vibração que a risada de
Tina me causava. Da pele arrepiada sob meus dedos.
Do roçar dos lábios dela contra os meus...
Inspirei fundo.
Não, aquilo definitivamente não fora só um sonho.
Observei a roupa que eu usava. Acabara chegando tarde de uma entrega
na noite anterior e apenas me jogara na cama, exausto. Era a mesma camisa
branca que vestia no sonho.
Conferi os bolsos da calça, a respiração ofegante pela euforia do que
estava realmente acontecendo. Finalmente.
Parei quando meus dedos tocaram a circunferência fria.
Sorri.
— Eccoti qui...[20] — Tirei a moeda lascada do bolso e a ergui na altura
dos olhos.
Eu a tinha na carteira como um amuleto da sorte desde quando a
encontrara em minha primeira viagem a Nova Iorque. Fiquei horas me
perguntando quem havia perdido os cinco centavos e como conseguiram
danificá-los daquela forma. Guardei a moeda como uma lembrança e,
quando a jogara na fonte, no dia anterior, foi como um ponto final.
Prometi à Fontana que não retornaria para fazer pedidos, que aquela seria
a última moeda que jogaria para ela.
A moeda que Valentina furtara da fonte e acabara retornando para mim.
Fechei a mão em punho, mantendo o objeto ali enquanto disparava para
fora do quarto e atravessava a casa, não me incomodando com o estalo dos
pés descalços na madeira ao subir as escadas depressa.
Quando alcancei a porta no fim do corredor do segundo andar, bati várias
vezes contra ela, ciente de que poderia receber uma série de xingamentos da
senhora de idade que prezava pelo bom sono mais do que qualquer outra
coisa.
Não me importei. Precisava encontrar a garota dos meus sonhos.
— Dios Mio! — Nonna abriu a porta com uma careta, um dos olhos
abertos, a mão enrugada mantendo o xale vermelho sobre a camisola pálida.
Fios curtos de cabelo grisalho apontados para todas as direções. — O sol
nem acordou ainda, garoto.
Ergui a moeda.
— Ela roubou de mim — falei, rindo, ainda meio incrédulo. Eu
acreditava, sim, em todas as histórias que me contaram. Mas quando pedi
que a Fontana encontrasse o raggio di sole dos meus sonhos não pensara
que, de fato, isso poderia acontecer. Principalmente daquela forma. — Ela
roubou a moeda da fonte.
— Ela quem? — Minha avó tomou a moeda de mim, analisando-a com
cuidado.
— Valentina. — Sorri ao dizer seu nome. — Eu só preciso saber, nonna,
o que aquela fonte realmente faz. Se tudo isso foi apenas uma experiência
para mim ou se nós dois compartilhamos o sonho.
— Theo, meu querido... — Nonna soltou uma risada ao me devolver o
objeto prateado e velho. — Non capisco...[21] O que está tentando dizer?
Respirei fundo, me acalmando ao recomeçar, contando à senhora sobre os
últimos sonhos que se repetiam, sobre a Fontana e o que acontecera quando
apaguei na noite passada, sobre a bailarina que eu conhecera.
— A bambina de ontem? — Minha avó sorriu, acentuando as rugas nos
cantos dos olhos escuros. — Algo aconteceu com ela, então.
— O quê?
— Eu disse a ela que a Fontana era um lugar mágico, e a menina apenas
me deu aquele sorriso de quem não acreditava. Garota tola.
— Acha que Tina... — Engoli em seco, hesitante em abrir espaço para a
possibilidade de que tudo não passara de fruto da minha imaginação. —
Acha que ela também teve o sonho?
— Di sicuro![22] — Gargalhou, balançando a cabeça. — Algo parecido
aconteceu com seus pais quando se conheceram, não me admira estar se
repetindo com você. Talvez seja uma fortuna[23] passada para os filhos da
família Abertinalli. — Nonna ergueu os olhos pretos para mim. — Como é
a ragazza?[24]
— Incrível. — Pensei em como os lábios de Tina se esticavam ao sorrir,
em como seu rosto delicado se fechava numa careta quando via ou ouvia
algo de que não gostava. Seu corpo se movendo com fluidez enquanto
dançava para mim na colina. Sua voz linda choramingando meu nome para
que eu parasse de brincar e a beijasse logo... — Ela é incrível, nonna.
— Então o que está esperando, rapaz? Vá atrás dela! — Minha avó
revirou os olhos.
— Não sei por onde começar, na verdade...
— Ela está hospedada no hotel em frente à loja. — Arrastou os pés de
volta para a cama, gesticulando com as mãos. — Ande logo! Não acredito
que me acordou a essa hora, já sabia a resposta.
— Pode ser coisa da minha cabeça. — Cocei a nunca. — E se eu aparecer
lá e Tina não me reconhecer?
— Você sente que foi apenas um simples sonho, bambino mio?[25]
Pensei.
Eu senti Valentina. Mesmo quando acordei, a memória de seu suspiro em
minha boca era vívida e fresca.
Real.
— Não.
— Então não foi. — A idosa sorriu largamente. — Vá atrás dela. In boca
al lupo![26]
Valentina não estava no hotel.
Não eram nem sete horas da manhã quando deixei a recepção, a pergunta
passeando pela minha mente: onde ela poderia estar a essa hora? Mas
aquele questionamento se foi muito rápido, dando espaço para a esperança
de que Tina estava, naquele momento, me procurando também.
Sorri.
Observei a rua, praticamente deserta. A cidade despertaria em algumas
poucas horas.
Não seria difícil encontrá-la. Não se a bailarina estivesse no lugar onde
tudo começara.
Corri por poucos minutos até avistar a rua de pedras escondida entre os
prédios, o que havia atrás deles, os primeiros raios de sol beijando o grande
monumento como um cumprimento ao amanhecer.
O som da cascata logo chegou aos meus ouvidos à medida que eu
desacelerava e me aproximava de um dos pontos turísticos mais visitados
em Roma.
Fontana di Trevi.
Não havia o tumulto de turistas ali ou a música que nos envolvera
misteriosamente no sonho. Apenas estátuas barrocas, água cristalinas,
moedas...
E os cachos dourados da bailarina que preenchera meus sonhos de verão.
TINA

— Fonte idiota — murmurei outra vez, sentada em um dos banquinhos


pretos que rodeavam a Fontana.
Depois de obrigar Giovanna a me ajudar a revirar o quarto todo à procura
da moeda de cinco centavos lascada e não encontrá-la, decidi ir até a
responsável por tudo aquilo. Sozinha.
Não sabia exatamente o que conseguiria com essa atitude, mas ali estava
eu, praguejando contra a fonte dos desejos às seis da manhã, desejando que
uma das moedas arrancasse uma lasca de pedra para que aquela estúpida
Trevi pudesse sentir o que eu sentia naquele momento.
Real ou não, ainda sentia o fantasma do toque de Theo em minha pele,
enviando uma onda de arrepios que deixavam o coração para seguir por
meus braços e nuca.
Eu queria que aquele sonho tivesse sido real.
Observei o vestido amarelo com estampas de margaridas. Não me
lembrava de tê-lo colocado na mala, fora um presente de Helena no meu
último aniversário. Ela sabia que eu não gostava de roupas estampadas,
principalmente cores alegres como aquela, mas me enviara mesmo assim,
alegando que fora uma promoção do site que ela gostava e que tinha um
parecido.
Era engraçado o quanto eu me sentia apegada àquele vestido agora, e
como minha prima jogaria na minha cara que a roupa fora perfeita para um
dia mágico de verão.
Bufei, jogando uma moeda para a fonte, incrivelmente errando a mira: a
circunferência dourada caiu no chão de pedras e seguiu para algum canto
que não me importei em verificar.
Precisaria voltar para o hotel para arrumar minhas coisas em breve. Gina
garantira que o faria por mim, mas, a conhecendo bem, sabia que a
desorganizada da minha amiga estaria jogada no colchão ou desfrutando de
um longo banho quando eu voltasse, cantando desafinada. Planejava seguir
com o plano e aproveitar o resto dos outros quatorze dias que me restavam
na Itália, mas...
Que graça teria conhecer qualquer lugar sem as explicações detalhadas e
bem-humoradas de Theo? Passaria o resto da viagem distraída procurando o
rosto dele na multidão.
Fuzilei a estátua maior, a mesma que parecera me encarar no dia em que
furtara a fonte.
— Acha engraçado brincar com os outros, não é? — continuei
murmurando. O lugar estava vazio mesmo, minhas únicas companhias eram
os pombos que procuravam por qualquer petisco para o café da manhã. Que
ouvissem meu desabafo. — Ver os visitantes choramingando seus sonhos
impossíveis deve ser divertido, certo? Uns pedem mais alguns dias aqui,
outros, amor verdadeiro, e outros desejam....
Um raggio di sole.
— Você gosta de moedas? — Fiquei de pé, me aproximando ao jogar
mais uma, com força, com raiva.
Como eu era patética...
Imaginar que, de repente, a Fontana era mesmo mágica a ponto de me
fazer vivenciar uma experiência impossível como aquela...
Fechei os olhos, abraçando meu corpo depois de desperdiçar todas as
moedas na Trevi. Aquele sonho colorido passou por minha cabeça outra
vez: Theo me ajudando a levantar e me perguntando se estava tudo bem.
Se ele existia mesmo, quem era? Tinha um sorriso encantador e
brincalhão como no sonho? Ou fora tudo fruto do roteiro dos meus
“divertidamentes”? O rapaz tinha os olhos pretos demais, que brilhavam
como as estrelas em um céu escuro? A risada dele era rouca e calorosa? Se
eu o visse... falaria inglês tão bem quanto eu?
Ele sequer era italiano? Ou só cinquenta por cento?
Eu esbarrara com tanta gente desde que desembarcara em Roma, como o
encontraria? E, mesmo que o encontrasse, quais eram as chances de o
garoto saber quem eu era?
Nenhuma.
Porque tudo não passara de um sonho tolo.
Porque Trevi era apenas um monumento.
E magia... não existia.
— Fontana di Trevi. — Meu coração segurou as batidas ao ouvir a voz
rouca e única sobressair ao barulho da água. Um arrepio diferente percorreu
toda a extensão da minha coluna quando ele continuou: — A amostra da
água da virgem. A lenda foi escrita bem ali, mas acredito que a senhorita
não teve a chance de ler.
Meu peito subiu e desceu rapidamente ao virar a cabeça para encontrar o
rosto bronzeado e lindo encarando uma pequena moeda dourada em seus
dedos. Observei cada detalhe: as mechas do cabelo preto bagunçadas, como
se Theo não tivesse se importado em penteá-las antes de sair de casa; as
roupas que ele usara no sonho, agora um pouco amassadas; os olhos escuros
perfeitos, se erguendo para observar a fonte.
Era mesmo Theo.
O mesmo meio-sorriso...
O italiano continuou narrando sobre quando e como a fonte de Trevi fora
construída, quando fora inaugurada e por quem, mas eu estava surpresa
demais para esboçar qualquer reação além de puro e completo choque.
Além de encará-lo como se visse um fantasma.
Ele se lembrava de mim? Tivera o mesmo sonho? Ou detalhar
monumentos antigos era apenas características das pessoas ali?
Desci o olhar para a boca que se movia ao falar, enquanto meus
pensamentos corriam para a última cena do sonho, para os lábios úmidos e
macios de Theo depositando um beijo quente em meu queixo, bochechas,
pescoço...
Ele sorriu mais quando percebeu que o encarava, no que eu
provavelmente estava pensando.
— Não preste atenção em mim, bella. — O canto de sua boca se
repuxou para cima, ainda olhando fixamente para a fonte, a moeda que eu
deixei cair no chão entre seus dedos. O jovem apontou com ela. — Está
vendo aquele balaústre lá em cima? As quatro estátuas representam as
estações. No centro daquele arco, o cara amarrada ali... É o deus Oceano,
ele está conduzindo aquela concha que é um tipo de carruagem. Ao lado
tem aqueles caras em cima dos cavalos-marinhos. Sim, são cavalos-
marinhos. — Revirou os olhos. Eu estava dividida entre acompanhar sua
explicação ou olhar para o rosto concentrado à minha frente. — A história
diz que um cavalo é mais agitado e o outro é mais calmo para simbolizar o
mar que, às vezes, é igualmente agitado demais e, em outras ocasiões,
muito tranquilo. Ali — sinalizou —, aquelas duas ao lado do deus Oceano,
são a Abundância e a Salubridade. E no meio, complementando
dramaticamente, o chafariz, que representa o mar.
O rapaz se virou.
Finalmente me olhou nos olhos.
Se Theo não se lembrasse de mim, se não tivesse tido o mesmo
sonho... Não estaria me encarando daquela forma, com aquele brilho de
estrelas no olhar.
— Buongiorno, Valentina.
Meu coração acelerou o ritmo, e o ar que segurei até então deixou
meus lábios com um suspiro alto e aliviado.
Não me importei se alguém veria, sequer dei lugar à razão quando
corri até onde ele estava e o abracei, me pendurando em seu pescoço,
afundando meu rosto em sua pele quente.
Era ele, em carne e osso. Real. O mesmo sorriso, a mesma voz, o
mesmo perfume...
O mesmo Theo.
Fechei os olhos ao sentir suas mãos envolverem minha cintura sem
hesitar.
— Você sabe meu nome — murmurei de forma idiota, sem me
importar também. — Se lembra de mim.
— Claro que sei seu nome. — O rapaz riu baixinho.
Me afastei para encarar seu rosto.
— Isso significa que... o sonho... você...
— Também sonhei com você — disse carinhoso, afastando um
cacho do meu rosto, sempre usando aquela mecha como desculpa para me
tocar.
— Como? — Balancei a cabeça. — Foi tão real e...
Theo deu de ombros.
— A Fontana.
Neguei outra vez.
— É impossível! — exclamei.
— E ainda assim aconteceu.
— Eu bati a cabeça de novo? — resmunguei, levando a mão à testa,
onde antes havia um curativo.
Uma risada deliciosa deixou a boca de Theo.
— Não, Tina.
O abracei outra vez, afundando o rosto em seu pescoço.
— Não acredito que você está mesmo aqui... — Suspirei.
— Coincidência, destino, magia... seja o que for, bella — Theo
murmurou, uma das mãos afagando os cachos da minha cabeça com um
carinho de partir o coração. — Você também está aqui comigo. Fiz um
pedido à Fontana, e ela me trouxe você.
Se afastou, com aquele sorriso lindo que lhe alcançava os olhos.
— Eu não poderia estar mais feliz — finalizou, acariciando minha
bochecha com o polegar.
— Mio raggio di sole — balbuciei o pedido dele.
— Meu raio de sol. — Aproximou o rosto do meu e beijou minha testa,
sussurrando sobre minha pele: — O mais lindo deles.
Os sons da cascata, o farfalhar de asas dos pássaros e das nossas
respirações foram a única coisa que escutei por alguns segundos. A
Valentina de dias atrás não acreditaria naquela história, sequer teria tido o
trabalho de deixar o hotel para ir à fonte verificar...
Mas pela primeira vez...
Pela primeira vez em muito, muito tempo, senti meu coração bater com
mais vida no peito, como se ele abandonasse a caixinha de música
melancólica de sempre para dançar uma melodia nova, alegre, colorida.
A Fontana me dera aquele presente.
Theo me deu aquilo.
Toquei o rosto dele, guardando cada ponto único que gostaria de me
lembrar quando voltasse para casa.
— E se eu não viesse à fonte, Theo? — perguntei baixinho, como se tudo
o que compartilhávamos naquele momento fosse segredo. — E se, pra mim,
tivesse sido só um sonho?
Seus olhos pretos se tornaram meias-luas outra vez.
— Bom, realmente fiquei preocupado com essa possibilidade. — Ele riu,
coçando a nuca. — Fui até o hotel, fiquei com medo de que você me
achasse um maluco. No fim das contas, foi você quem me agarrou primeiro.
Gargalhei.
— Não consegui evitar.
— Eu sei. — Passou a mão nas mechas do cabelo escuro, colocando uma
expressão sedutora no rosto. — Sou irresistível.
Sorri.
— E muito modesto — debochei, lhe arrancando uma risada grave e
baixa.
Theo voltou a enlaçar minha cintura com ambas as mãos e colou meu
corpo ao seu, diminuindo o tom de voz, me olhando daquele jeito que
amolecia a estrutura das minhas pernas.
— Agora pode, por favor, parar de fazer perguntas? Ou quer que eu te
prove de outra forma que sou real?
O sorriso não deixaria meu rosto tão cedo.
— Estou tão feliz por você não ser um sonho — murmurei, contornando
minha mão em seu pescoço, sentindo a pele dele se arrepiar deliciosamente
sob a ponta dos meus dedos.
Theo deslizou o olhar para minha boca, os olhos pretos possivelmente se
tornando mais escuros e famintos.
— Estou tão feliz por ter te jogado da escada — sussurrou mais perto, a
ponta do nariz brincando com o meu.
Gargalhei baixinho, fechando os olhos à medida que sentia a respiração
dele tocar minha boca.
— Agora pode, por favor, parar de falar e me beijar logo? — pedi,
inebriada pela presença do italiano, o toque dos dedos dele em minhas
costas, na pele exposta.
Senti o roçar dos lábios de Theo nos meus, o sorriso que se formou ali.
— Como quiser, mademoiselle... — E sem esperar mais, ele me beijou.

Theo pressionou suavemente os lábios dele contra os meus, e aquele


beijo inocente e gentil foi o suficiente para me fazer derreter como gelato
no verão. Ele me beijou lentamente, a princípio, paciente, descobrindo
como minha boca se encaixava na sua. Então, depois que seu nome deixou
meus lábios e minhas mãos o puxaram para mim com mais urgência, o
italiano ousou intensificar o beijo.
Suspirei, me desmanchando como as garotas dos livros que um dia lera
quando adolescente. Já havia beijado antes, mas não assim, não um jovem
como Theo, que me olhava como se eu fosse a única, mesmo rodeados por
uma multidão de turistas. Não diante de uma fonte mágica, jamais com
tantos sentimentos transbordando em meu peito.
O beijo ficou exigente, indiferente à cidade que despertava e às pessoas
que começariam a surgir na rua de paralelepípedos. As mãos firmes me
mantinham colada a ele como se Theo tivesse medo de acordar outra vez.
Eu também compartilhava daquele sentimento.
Mas não era um sonho dessa vez.
Os lábios dele contra os meus eram reais. Theo ali, comigo, era real.
Muito real.
— Eu... — Me afastei apenas alguns poucos centímetros para recobrar o
ar. — Ainda tenho duas semanas aqui.
Eu não me importava com a agenda e o itinerário para conhecer as outras
cidades da Itália; os dias depois daquele. Não perderia Theo de vista de
novo. Lidaríamos com o depois mais tarde, quando o momento chegasse.
Quando eu tivesse que partir.
A Fontana nos apresentara por um motivo.
Então aproveitaríamos o agora.
Theo sorriu. E que os céus me ajudassem: eu adorava quando ele sorria
daquele jeito, quando direcionava aquele sorriso para mim. Não importava
quantas vezes o rapaz o fizesse, meu corpo sempre reagiria da mesma
forma.
— Posso te levar até Verona, se quiser — brincou, mordiscando meu
lábio inferior, depositando um beijo entre os intervalos. — Sei... algumas
coisas... — outro beijo — ... sobre Romeu e Julieta.
Ri.
— É mesmo? — Enrosquei meus dedos entre os fios macios de seu
cabelo, ficando na ponta dos pés, elevando meu rosto na altura do dele. —
Eu adoraria.
— Dizem que sou um ótimo guia — sussurrou sobre a minha boca, e eu
ri.
— Dizem mesmo.
Então o beijei outra vez.
Lenta e despreocupadamente.
Não me importei com o sol que nascia e as pessoas que chegariam. Não
contei os minutos que passavam também.
Concentrei minha atenção no italiano que me beijava.
Só ele e eu.
E a Fontana di Trevi.
“Você toca o meu amor como um violão espanhol
Puxando as cordas que ligam para o meu coração.
Pegue minha mão e deixe a música tocar...
Correndo por aí vamos nós
E vamos ficar presos, quem sabe.
Correndo por aí nós dançamos a noite toda.
Estamos presos...
Estou me apaixonando por você.”
Falling In Love (Us The Duo)
THEO

— Tem certeza que ela vai gostar de mim? — A garota de longos cabelos
escuros e olhos dourados ao meu lado cochichou quando paramos em frente
à pequena portinhola de madeira que separava a calçada de pedras do
jardim colorido de nonna.
Ri.
Tina revirou os olhos.
— Eu é que deveria estar preocupada com isso — reclamou a bailarina
para a amiga, se agarrando mais ao meu braço.
— Ela já te conhece — a lembrei. Contei sobre a senhora da loja de
doces, sobre ter reconhecido Valentina quando a vira no dia anterior, incerto
se me aproximava ou não. Obviamente, não contei a ela sobre os outros
sonhos que tivera com Tina antes de realmente conhecê-la, mas a jovem
pareceu surpresa e feliz por saber que, no fim das contas, a senhora gentil
que conhecera antes era a pessoa que a aguardava para um jantar naquela
noite.
Mesmo sabendo disso, ela permaneceu nervosa.
A amiga de Valentina verificou o bafo, então seguiu ajustando o busto de
um dos vestidos “mais comportados” que ela encontrara na mala. Finalizou
lambendo a ponta do dedo para ajustar as sobrancelhas.
— Pois é — resmungou a morena, os olhos castanhos se voltando a
amiga e eu. — Eu estou como a intrometida aqui! Ela pode não gostar de
mim. — Cobrindo parte da boca com uma das mãos, sussurrou: — Ouvi
dizer que italianos idosos são mal-humorados.
— Giovanna! — Valentina lançou a ela um olhar de repreensão.
Gargalhei.
— Non preoccuparti, Gina[27]. Nonna vai adorar você, tenho certeza. —
Avancei, abrindo passagem para as duas jovens. — Ela sabia que você viria,
então entre. Italianos não gostam de esperar.
— Ninguém gosta — Tina resmungou, passando a mão pelo vestido
turquesa simples, soltando o ar com força apenas para inspirar fundo outra
vez.
Mesmo que tentasse não demonstrar, eu sabia que ela estava tão nervosa
quanto a amiga.
Como se fosse possível, Valentina conseguiu ficar ainda mais linda
naquela noite. Eu certamente já sentia falta do vestido amarelo perturbador
e lindo, mas não gostara menos daquele mais justo, de estampa lisa, que a
jovem usava. Destacava os cachos dourados que emolduravam o rosto dela.
— Vamos — disse Tina, passando por mim junto de Giovanna.
Fomos recebidos pelo cheiro delicioso do tempero de nonna quando
entramos na casa. Gina soltou um choramingo de fome ao inspirar,
deixando a amiga para trás e seguindo o rastro que denunciava onde
aconteceria o jantar. Valentina entrelaçou nossas mãos ao me acompanhar
lado a lado pela sala.
Andamos até o quintal dos fundos, onde eu tinha ajudado nonna a
espalhar velas e luzes para iluminar melhor o local. A mesa de madeira
antiga estava disposta no centro da grama, e minha avó recolhera algumas
flores de seu estimado jardim para colocar no jarro no centro, entre os
diversos pratos típicos preparados.
Era engraçado ver as duas convidadas se preocupando tanto em
impressionar nonna quando, na verdade, quem me fizera rodar a cidade
toda atrás dos ingredientes certos fora a própria italiana.
Minha avó adorava companhia, e adorava ainda mais exibir os dotes
culinários dela. Não era de se gabar, não o tempo todo, mas amava receber
elogios. Principalmente de estrangeiros.
Quando os olhos pretos, tão comuns na família Abertinalli, encontraram
as duas jovens que me acompanhavam, um sorriso enorme emoldurou seu
rosto bronzeado e enrugado.
Nonna exclamou suas boas-vindas, estendendo os braços para a primeira
vítima de seu abraço de urso.
— Valentina! — A apertou, se afastando para depositar beijos estalados
em cada bochecha da dançarina. — Como é bom te ver outra vez, bambina!
Tina sorriu tímida.
— Digo o mesmo, senhora... er...
— Antonella — minha avó se apressou em dizer. — Mas me chame de
nonna.
— Nonna — repetiu, os lábios dela se esticando. — Antonella é um
nome lindo, nonna.
— Como o seu, minha querida. — Nonna desviou os olhos escuros para
Giovanna, que estava praticamente sem respirar ao lado de Tina.
Quando nos conhecemos de verdade no saguão do hotel, algumas horas
depois de reencontrar Valentina na Fontana, ela agiu exatamente como no
sonho. Praticamente repetindo as mesmas palavras — deixando de fora a
parte dos italianos idiotas.
Parecia ser uma garota confiante, mas, por algum motivo, estava
extremamente nervosa ao ver a senhora de idade se aproximar dela.
— Você deve ser a amiga — falou nonna, dando a mesma recepção à
Gina. — Como você é bela, menina.
— Ah! — Sorriu a jovem, sem graça. — O-obrigada, Sra. Antonella.
— Nonna — a corrigiu.
— Certo, nonna.
— Também é do Brasil, como Valentina? — perguntou, apontando para
as cadeiras ao redor da mesa, começando a andar, levando as duas garotas
junto.
— Isso — Gina respondeu, surpreendentemente tímida. Lancei um olhar
questionador para Valentina, que deu de ombros, como se também não
soubesse por que a amiga estava tão diferente. — Me mudei para os
Estados Unidos para morar com ela.
— E seus pais?
Gina congelou por alguns segundos, mas não foi preciso dizer nada;
minha avó era muito boa em ler entrelinhas.
— Também perdi pessoas que amava, querida. Tenho uma ideia de como
se sente. — A olhou com um meio-sorriso, gentil. —Venha! Sente-se ao
meu lado.
Afastei uma das cadeiras para Tina, que agradeceu ao se acomodar e
esperar que eu fizesse o mesmo.
— Então... — falou baixinho para mim enquanto nonna e Gina
engatavam em um tipo de conversa mais sentimental. — Essa é a casa em
que você cresceu?
— Huh — assenti, passando o braço por seus ombros descobertos. Me
deliciei ao sentir os pelos do braço dela se arrepiarem quando minha mão
quente tocou sua pele fria.
— É aconchegante. — Segurou minha mão, escorando a cabeça em meu
ombro. — É o tipo de casa que você olha e sabe que as pessoas que
moraram aqui foram felizes.
— Que... profundo — brinquei, mesmo concordando. Eu tinha muitas
lembranças boas daquele lugar.
— Me deixa. — Me cutucou com uma careta fofa.
— E a sua casa?
Suspirou, encarando o prato vazio diante dela.
— Minha casa agora é um apartamento no centro comercial da cidade —
falou, mais séria. — A casa em que eu morava... era um protótipo de
estúdio de dança. Havia um cômodo enorme com um piano de cauda que
meu pai comprou para a minha mãe de presente de cinco anos de
casamento. Existiam espelhos enfileirados por toda a parede e uma janela
enorme que dava vista para as outras casas. Eu gostava de me esconder lá às
vezes. Sempre. Era meu lugar favorito na casa.
— Sua mãe... — comecei, um pouco hesitante, não sabia até que ponto
poderia cavar; até onde Tina se sentia confortável conversando comigo.
Ela ergueu a cabeça para me olhar quando não completei a frase,
esperando.
— Sua mãe parou de dançar também?
— Hm... eu não a vejo dançar há muito tempo. — Ela encarou nossos
dedos entrelaçados. — Bem antes de meu pai sair de casa, na verdade. Ela
preferiu cuidar mais da casa do que deixar Jeremmy, Gina e eu com babás.
Foi uma escolha dela.
— O que ela faz hoje?
— Ela é professora de música no fundamental em uma escola do bairro
em que moramos. Sabe, ela até está namorando com meu ex-professor de
inglês do ensino médio.
Observei, divertido, a jovem fazer uma careta.
— Ainda bem que já me formei, porque, sinceramente, não suportaria
chegar em casa e ver ele sentado no sofá, corrigindo provas. — Tina riu. —
Mas o Rick é um cara legal. Meio caladão, mas paparica muito minha mãe,
então está tudo bem. Ela merece alguém que a faça feliz.
— E você? — brinquei, me inclinando para mais perto dela, ciente de que
tínhamos uma plateia.
— Eu mereço uma pessoa que me faça feliz também — cochichou de
volta, os olhos verdes brilhando para mim; estavam mais escuros naquela
noite. — Acha que encontro alguém?
Sorri, pronto para roubar um beijo dela quando um pigarreio me
interrompeu.
Olhamos para nonna, que nos encarava com as sobrancelhas grossas
erguidas. Gina sequer tentava disfarçar o sorrisinho.
— Vamos jantar — a senhora falou, controlando o sorriso.
Valentina aprumou as costas, se afastando de mim. Sua bochecha
salpicada por sardinhas tomou um tom delicioso de rosa, deixando-a ainda
mais bela.
— Isso — falou, envergonhada, seu peito subindo e descendo com
rapidez. — Vamos jantar.
A lua cheia brilhava acima de nós. A sobremesa tinha sido servida e,
depois de bons minutos escutando minha avó falar sobre a receita passada
de geração em geração na família Abertinalli para a curiosa Gina, observei
parte do rosto visível da bailarina que, em poucas horas, havia me
conquistado ainda mais.
Sua risada... era como acender uma vela em uma sala escura, extensa e há
muito trancada, aquele fiapo de luz iluminando todo o cômodo esquecido.
Não sabia que ele existia e que precisava de vida até Valentina aparecer.
Meu coração era aquecido a cada olhar trocado, a cada sorriso que ela me
direcionava, a cada palavra que saía de sua boca.
Enquanto ela escutava atentamente a história que nonna contava, afastei
um dos cachos que nunca parava quieto, sempre caindo sobre os olhos da
jovem. Cada ponto de seu rosto me parecia tão familiar, como se eu a
conhecesse há anos, e não apenas há um dia e alguns sonhos.
Me lembrei do sonho, do último que compartilhamos, de cada conversa.
Tina era tão apreciadora de histórias quanto eu. Sabia que, apesar de estar
relaxada e despreocupada com o que faríamos depois, no fundo, seu espírito
aventureiro queria descobrir mais da Itália.
E eu entendia. Claro que entendia.
Folheara a agenda com seu itinerário de viagem, tão organizado em
tópicos do que faria e o que visitaria na linda caligrafia arredondada de
Valentina.
Jamais deixaria que Tina desperdiçasse seus outros dias aqui. Sim, tinha
muito de Roma que eu ainda poderia mostrar a ela — e teria a satisfação de
fazê-lo — mas havia Gina, e as duas tinham planejado conhecer outras
cidades juntas.
Não queria ser um intruso nas férias das turistas, mesmo sabendo que era
praticamente impossível me afastar de Valentina naquele momento.
E ela iria embora em duas semanas, para o outro lado do mundo.
— O que foi? — sussurrou para mim, os olhos grandes e brilhantes como
o sol me olhando curiosos.
— Qual é o próximo destino? — perguntei, e senti os olhares das outras
duas na mesa.
O quintal ficou silencioso.
Tina hesitou, e vi em suas feições delicadas várias perguntas confusas e
complicadas rodeando sua mente. Sabíamos no que estávamos nos metendo
quando nos beijamos naquela fonte, mas encarar a realidade de que ela
partiria em breve me assustava.
— A-acho que... — Tina engoliu em seco, desviando o olhar para a
amiga do outro lado da mesa. — Talvez a gente poderia, er...
— Eu fico — Gina se pronunciou, calmamente.
— O quê?
— Tininha, vamos ser sinceras, ok? Você e o Theo estão apaixonados, a
história de vocês começou de forma tão mágica e preciosa... — Suspirou,
um sorriso largo se abrindo em sua boca. — Eu jamais atrapalharia as férias
românticas de vocês.
— Mas você nem escutou o que eu ia dizer! — Valentina riu, se
afastando de mim para se inclinar sobre o tampo de madeira da mesa. — O
que eu ia dizer é que podemos ficar por aqui mesmo, e conhecer com calma
cada canto de Roma. Ou talvez... — Me olhou com um sorriso tímido. —
Talvez Theo podia ir com a gente dar umas voltinhas por aí.
— Ficaria honrado. — Sorri para ela, ciente de outro detalhe importante.
— Mas não posso deixar nonna e a loja sozinhas.
Gina bateu palmas, empolgada.
— Pronto! — falou, incrivelmente decidida. — Vocês dois vão viver o
sonho de verão de vocês, tipo, uma viagem por Veneza, Verona, Milão e
etecetera... e eu fico aqui com a nonna!
Franzi a testa, e senti que a garota ao meu lado também.
— Gina, ficou doida?
— Não, amor da minha vida. — Sorriu a brasileira, soprando um dos
cachos negros do rosto enquanto minha avó assistia a tudo com muita
diversão nos olhos escuros. — Estou te dando um presente porquê...
Advinha só? Sou a melhor amiga do mundo! Vai passar os dias que restam
com o Theo, e eu darei tudo de mim para ajudar aqui. Não falo italiano, mas
posso ser útil em outras finalidades. E meu inglês pode ajudar com os
turistas. Se — ela olhou para minha avó, um pouco mais contida — a
senhora não se importar, é claro.
— Eu vou adorar sua companhia, bambina — respondeu a senhora
italiana.
— Giovana! — Tina choramingou. — É óbvio que não vou te trocar por
um cara. Não sou você!
Giovanna não se magoou, enquanto Tina me lançava um olhar culpado.
Dei de ombros.
— Sem ofensas — brinquei.
— Posso falar com você em particular? — Tina disse baixinho para a
amiga e se levantou.
Gina revirou os olhos, mas assentiu, e as duas foram para a entrada da
cozinha. Nonna e eu ainda conseguíamos vê-las, mas éramos incapazes de
ouvir a conversa das duas.
Me virei para nonna e dei de ombros outra vez. Com um sorriso de quem
não se divertia há anos, ela me imitou.
TINA

— Não vou ir sem você — comecei baixo, com o coração batendo


rápido.
O que estava acontecendo com a Gina, afinal? Ela era bem
hipócrita, e normalmente reclamaria se eu decidisse trocá-la por alguém,
porque eu era a amiga fiel ali. Não era como a Giovana, que me
abandonava a qualquer sinal de aventura e romance.
Ela estava bem estranha desde que chegamos. Sabia que, no fundo,
minha amiga se sentia como eu, que nonna lembrava minha avó e trazia a
lembrança da nossa infância, mas não tinha certeza se era por isso mesmo
que Gina parecia esquisita. Minha amiga nunca ficava tímida, mesmo com
pessoas mais velhas e desconhecidas por perto.
Ela riu.
— Amiga, me deixa, vai? — Colocou a mão cheia de anéis sobre meu
ombro e indicou Theo do lado de fora com a cabeça. — É a primeira vez
que te vejo tão caidinha por alguém, aproveita!
Massageei o ponto entre as duas sobrancelhas e falei calmamente:
— Esta viagem é nossa! Apesar de você não se importar muito com a
história dos quadros e monumentos, são as nossas férias. — A olhei séria.
— Se Theo quiser vir, tudo bem, vai ser divertido.
— Não vou ficar de vela... — Fez uma careta engraçada.
— E eu não vou viajar por aí sem você. Então vamos ficar em Roma.
Ponto.
— Não, Tina. — O sorriso em seu rosto desapareceu, mas ela ainda tinha
um olhar suave e carinhoso para mim. — Eu... não quero ir.
— Por quê?!
Ela olhou para a senhora do outro lado do quintal conversando à mesa
com o neto, um sorriso nos lábios enrugados.
— Você me conhece, não é? Sabe que nunca me senti completamente em
casa em lugar algum. Mesmo amando você, seu irmão, sua mãe e até o tio
Matt... Bem, não era minha casa. Não eram meus pais. — Gina me encarou,
e eu vi, pela primeira vez em muito mais tempo do que conseguia me
lembrar, seus olhos brilharem com a chegada de lágrimas. — Sei que não é
a melhor hora e lugar pra finalmente me abrir com você, mas eu preciso.
Estou guardando por tempo demais e finalmente tenho a chance de... apenas
ser eu. Sem medo de me tornar um peso.
Meu coração recém-remendado trincou.
— Gina, você não é...
— Não, Valentina, escuta. — Ela suspirou, parecendo realmente cansada.
Não da viagem, não do dia que tivemos, mas dela. Da culpa que insistia em
carregar. — Você é uma irmã pra mim. Eu te amo mais do que imagina, mas
não sou parte da sua família e não quero estragar mais sua viagem. É seu
aniversário.
— Você não está...
— E eu quero ficar. Eu... — Outro olhar para a mesa lá fora. — Preciso
ficar.
Meus ombros caíram.
— Por quê?
— Ela me lembra... casa. — Gina fez um gesto para nonna. — Não sei
como não chorei quando provei o risoto, sinceramente. Sinto falta dos meus
pais e do cheiro da comida da minha mãe, de correr no quintal da casa da
sua avó com você e suas primas, de ver nossos pais conversando na sala
enquanto a vó Maria gritava falando que, se a gente deixasse os vasos de
plantas dela quebrarem iríamos levar umas palmadas, mesmo que ela não
fosse capaz de levantar um dedo pra nos corrigir assim.
Notei minha garganta se fechar. Eu também sentia falta daquelas coisas.
— Mas isso não tem nada a ver com você ter que ficar aqui enquanto eu
me divirto por aí — insisti.
— Tem, sim. — Riu baixinho. — Eu quero ouvir histórias da nonna e
aprender a cozinhar as receitas da família dela, e quero sonhar que sou
assistente de uma loja de doces em Roma, e fingir por alguns dias que faço
parte de algo. Não porque estão com pena de mim, porque sentem que
precisam cuidar de mim, mas porque... precisam de mim. Se eu ficar e o
Theo for, ela vai precisar de alguém, e se ela precisar de mim, eu vou ser...
útil.
— Gina... — Senti meus olhos se encherem. — Que droga! Por que tem
que se abrir agora? Você nunca me contou essas coisas!
Deu de ombros, fungando, conseguindo conter as próprias lágrimas.
Era tão perigoso... Nós duas... Estávamos guardando lágrimas demais por
tempo demais. Se mesmo eu, que conseguia ser sensível às vezes, me sentia
sufocada, o que falar de Gina? Sabia que ela usava sarcasmo e sorrisos para
abafar a dor, mas... não imaginava que ela se sentisse tão...
Sozinha.
— É uma benção você ter encontrado o Theo, Tina. Alguma coisa vai
mudar a gente quando voltarmos pra casa. Eu vejo brilho em você de novo,
não só de alguém que está apaixonada por um italiano supergato, mas de
alguém que... sonha outra vez. Eu não te vejo assim desde aquele acidente
no anfiteatro.
— Isso não...
— Para de negar. Só para de ser tão incrédula. — Gina revirou os olhos
ao sorrir. — Foi esse meu desejo pra fonte.
— O quê? — Dessa vez, não consegui impedir a lágrima de correr por
minha bochecha.
— O primeiro desejo foi simplesmente pelo prazer de jogar a moeda na
fonte. No segundo, pedi uma aventura — confessou. — Mas o último... fiz
do fundo do meu coração. Não pedi um amor pra mim, ou pra você, desejei
que... um dia... fôssemos capazes de sonhar de novo, independentemente do
que aconteceu com a gente no passado, que pudéssemos simplesmente...
sonhar.
Sentindo meu coração se despedaçar ainda mais, a abracei. Vergonha me
embalava por ter pensado que o pedido especial de Gina tivesse sido um
romance como Paolo. Ela não era superficial. Deixava as pessoas pensarem
que sim, que ela não se importava, mas havia muito de Giovanna que
poucos conseguiriam cavar. Um mar profundo, misterioso e lindo.
— Me deixa ficar? — Ela se afastou para me olhar com carinho. Gina
tirara os piercings antes de deixarmos o hotel, mas não maneirara nas
sombras pretas e pesadas em suas pálpebras. Os cílios compridos
carregados de rímel acentuaram ainda mais o castanho cor-de-mel de seus
olhos grandes. — Eu quero ficar. Quero ficar e esquecer meus problemas
um pouco, talvez desabafá-los com uma estranha senhora italiana. Você vai
com o Theo, sei que vai ser incrível e tão, tão, tããão romântico...
Ri, fungando e chorando.
Prometi a mim mesma que, quando voltasse para casa com Gina, me
esforçaria mais para apaziguar, pelo menos um pouco, aquela culpa e a
carga que ela carregava. Minha amiga jamais seria um peso, meus pais
sempre adoraram a presença peculiar e brilhante dela. E Jeremmy? Nós
duas sabíamos o quanto meu irmão mais velho a amava.
Me preocupara tanto em odiar meu pai, em abraçar meus problemas, que
me esquecera das outras coisas importantes. Das pessoas que ainda estavam
ali e me faziam sorrir.
Não deixaria mais minha dor me cegar para as pequenas — e grandes —
alegrias que ainda me cercavam.
Gina era uma delas.
— Eu vou ficar feliz se você for, e vou ficar feliz se eu ficar — finalizou,
limpando meu rosto.
Mordi o lábio, controlando um longo discurso sentimental que ela odiaria
ouvir.
— Tem certeza?
— Claro! — Ela abriu um largo sorriso. — Você vai ver, quem sabe
nonna não me dá umas dicas preciosas, eu volto para Nova Iorque e abro
minha confeitaria especializada em sobremesas italianas? Já pensou? Gina’s
sapore. — Gesticulou com as mãos, sinalizando o letreiro.
Fiz uma careta, e ela riu.
— Certo, vamos pensar no nome do meu negócio depois. — Bufou.
Nos encaramos por alguns segundos.
— Tem certeza mesmo? Eu posso ficar, e a gente aprende a cozinhar
juntas.
Gina torceu o nariz.
— Você sabe dançar — falou, batendo a mão no peito em seguida. — Eu
sei cozinhar. Eu não danço, você não cozinha. Se tentarmos colidir uma no
universo artístico da outra, o mundo pode virar um caos.
Ri.
— Então eu apenas... fico em Roma com você.
— Estou mandando você ir aproveitar o melhor que a Itália pode te dar.
— E piscou, complementando: — Isso inclui um italiano gostosão.
Minha vez de revirar os olhos.
— Quer mesmo isso?
— Huh. Quero mesmo isso. — Me abraçou apertado uma última vez. —
Divirta-se e se apaixone ao máximo. Vou ficar bem aqui. Vai ser uma
viagem incrível, pra nós duas.
Meu instinto cantarolou para que eu insistisse, mas Gina não tinha
problemas em me dizer a verdade. Se ela não quisesse que eu fosse, diria.
Envolvi meus braços em sua cintura.
— Te odeio. — Bufei.
— Te amo — murmurou em resposta, se afastando com um sorriso largo
nos lábios carnudos. — Vou te esperar aqui. Só não vamos contar pra sua
mãe, a gente bola um esquema para não sermos descobertas. Sabe, ela pode
vir pra cá se descobrir que você vai sair Itália afora com um cara que
conheceu em um sonho.
Gargalhei.
— Verdade. — Minha mãe surtaria, de fato.
Respirei fundo, passando a mão no rosto e nos cabelos, clareando os
pensamentos, me recompondo daquele momento tão sensível e confidencial
que Gina e eu não trocávamos há tantos anos.
Sorri para ela, enganchando meu braço no da minha amiga, a
guiando de volta para a mesa.
— E então? — Nonna ergueu uma das sobrancelhas, esperando, mas com
um sorriso de quem já sabia a resposta.
Me virei para Theo, que também parecia ansioso para ouvir a decisão.
Imaginei uma viagem de dias com ele, os lugares que visitaríamos e as
coisas que faríamos. A encrenca na qual meteria meu coração caso ele
aceitasse.
Giovanna me pedira para não pensar muito enquanto estivesse em solo
italiano, que deixasse a agenda e a razão de lado até que voltássemos.
Era um salto no escuro. Não sabia o que estava adiante; tinha medo de
descobrir, mas o queria mesmo assim.
— Gina quer ficar e aprender a cozinhar com sua avó — falei, sentindo
um reboliço na boca do estômago, uma euforia perigosa.
Ele encarou meus olhos por um longo tempo, um olhar cheio de
significados. Theo estava pensando, provavelmente, nas mesmas coisas que
eu, no que viajar com ele por mais de uma semana implicaria. Fui capaz de
me apaixonar por aquele italiano em um único dia. O que não aconteceria
nos próximos? Não sabíamos o resultado dessa aventura; se nos
aproximássemos mais, seria ainda mais difícil voltar atrás.
Seria ainda mais difícil me despedir.
Eu via esses questionamentos no ônix brilhante em seus olhos, o mar
escuro de estrelas como a cortina do céu acima de nós. Via em seus olhos
tudo aquilo. Mesmo tão descontraído, sabia que Theo era alguém racional.
Uma parte minha vacilou, ciente de que ele poderia recusar, e seria sábio
de sua parte fazê-lo. Meu lado racional pedia que ele tomasse a decisão
certa por nós dois...
O lado aventureiro recém-descoberto queria explorar mais. Se arriscar.
Preguiçosamente, os cantos de seus lábios se ergueram e o olhar
pensativo suavizou, dando lugar ao sorriso que eu tanto adorava.
— Quando partimos?
As primeiras notas daquela caixinha de música quebrada — assim
como qualquer coisa naquele lugar — começaram a ecoar na sala de
espelhos outra vez.
Eu conhecia bem aquela música arranhada e distorcida. Era a única que
tocava em meus sonhos.
Sempre que começava, sempre que caía no sono e despertava naquele
sonho de paleta cinzas, ela tocava baixinho, chorando uma melodia triste
de uma canção desconhecida.
Eu jamais a escutara em qualquer outro lugar que não ali, nos meus
sonhos repetidos.
Sempre os mesmos desde que quebrara a perna naquela noite.
Encarei meu reflexo no espelho.
Usava o mesmo vestido de plumas que colocara para a apresentação
naquele dia, porém, no lugar das penas brancas, as pretas me rodeavam.
Vestia ainda um corpete da mesma cor, trabalhado em arabescos bordados
dramaticamente, como sombras.
E meu rosto...
O caminho das lágrimas já secas estava marcado pela maquiagem
escura.
A bailarina da caixinha de música... quebrada... era eu.
Quando tentei iniciar as posições básicas, meu corpo todo latejou de dor,
começando pela perna inútil, que irradiou toda agonia para o resto de
mim.
Um reflexo do que eram os dias desde aquele momento no anfiteatro.
Toda vez que eu pisava e sentia aquela dor insuportável, toda vez que
tentava dançar e falhava... eu lembrava.
Me lembrava da promessa que fizera sobre não querer mais tentar.
E sempre que insistia — que mentia — dizendo que não queria mais...
aquela dor aumentava. A sala de espelhos se tornava mais fria e mais
cinza.
Piorava a cada dia.
Não no sonho.
Aquele sonho era um reflexo da minha alma: quebrado e sujo, cada vez
mais. Sempre que dava espaço para os pensamentos ruins.
— Quem é você? — Uma bailarina de um dos reflexos perguntou
baixinho, sem vida alguma na voz rouca.
A encarei apenas. Não consegui responder.
— O que você quer fazer? — perguntou a outra.
— Qual é seu sonho? — a gêmea ao lado desta questionou também.
Encarei todas elas, os reflexos sujos e quebrados de Valentina.
Eu não sabia.
Não me importava em saber.
A música se tornou mais alta, distorcida. Feia.
— Quem é você?
— O que quer fazer?
— Qual é seu sonho?
De novo e de novo.
— Quem é você?
— O que quer fazer?
— Qual é o seu sonho?
— Não quero saber — respondi, ríspida.
— Está com raiva, vai mesmo deixar de viver seu sonho para alimentar
isso? — outra voz perguntou. Uma voz linda e diferente. Grave. Familiar.
Mas ainda assim... nova.
Era a primeira vez que a escutava. Aquele sonho repetido, como uma fita
estragada, era o mesmo de sempre. Primeiro, a música arranhada; depois,
a tentativa falha de dançar, de me mexer; logo, as bailarinas me enchendo
de perguntas que eu não queria responder, até acordar.
Mas era a primeira vez que aquela voz se intrometia.
Era tão linda.
Tão real.
Tão quente e viva.
— Está perdendo sua essência, Tina... — a voz murmurou, parecendo tão
perto, mas ainda assim... longe. — A que custo?
— Eu... não sei o que fazer — respondi baixinho.
— Comece... — Senti o beijo de uma brisa diferente me tocar. Não era
fria nem solitária como o uivo daquela sala de ensaio, mas um convite. —
Saindo daqui.
Meu coração acelerou.
Observei a bagunça daquele estúdio de dança, as cores apagadas, os
espelhos quebrados, os meus reflexos distorcidos neles.
— Não sei como.
— Sabe, sim.
Encarei minhas pernas, as ataduras nos joelhos e pés. Eu caíra tantas
vezes... Doía tanto tentar e falhar...
— Feche os olhos por um segundo... — pediu a voz, tão perto. Fiz o que
ela sugeriu, e tudo ficou preto e vazio. — Se liberte das coisas ruins que te
prendem aqui...
Soltei o ar devagar.
Ele finalizou mais próximo, sussurrando em meu ouvido:
— E recomece.
Quando voltei a abrir meus olhos, devagar, a música da caixinha de som
ficou mais clara e limpa, linda e suave; quando encarei meu reflexo outra
vez, um ponto de luz atrás de mim coloriu o cenário preto e branco.
Como se tivessem colocado uma porta ali.
Como se ela tivesse se abrido por conta própria, revelando uma saída
daquele sonho de paleta cinzas, um recomeço para a bailarina solitária,
um raio de sol da manhã.
Quando dei, enfim, o primeiro passo...
Acordei.
TINA

— Usem camisinha, ok?


Meus olhos se arregalaram e eu parei no meio da rua de paralelepípedos,
dando um tapa forte no ombro de minha amiga. Mesmo sendo cedo demais,
mesmo que apenas Gina e eu estivéssemos caminhando naquela rua tão
estreita na companhia de um ou outro pombo, senti meu rosto tonalizar na
cor do vestido que usava. Odiava o fato de aquilo acontecer facilmente, sem
qualquer chance de disfarçar.
Era uma herança da família da minha mãe: as sardas no nariz e nas
bochechas, os olhos esverdeados e a pigmentação rápida no rosto com
qualquer mínimo embaraço.
— Gina!
Minha amiga revirou os olhos castanhos.
— Não vem que não tem, Valentina! Vocês são dois jovens adultos, estão
partindo para uma viagem romântica pela Itália e vão ficar hospedados no
mesmo quarto de hotel, por mais de uma semana. — Minhas bochechas
foram de rosa-flamingo para vermelho escarlate. — Ninguém é tão forte
assim.
— Eu sou! — rebati, desviando o olhar. No fim da rua, vi Theo ajeitando
algo dentro do banco de sua vespa turquesa. — E o Theo é um cavalheiro.
Não vamos fazer nada.
— Tá bom — debochou a garota, cruzando os braços enquanto andava.
— E o milho é verde por dentro. Hormônios não são cavalheiros, meu
amor.
— Não vamos fazer nada — falei entredentes, nervosa pela linha que
meus pensamentos seguiam, por culpa da Gina.
— Me garante que vai comprar algumas e eu deixo você ir.
— Giovana! — Olhei apavorada para onde o italiano estava. Quando se
virou, ele nos viu e acenou de longe. Tentei sorrir, mas saiu estranho e sem
graça.
— Promete — Gina insistiu. — Mesmo que vocês se controlem. É
melhor prevenir, não acha? Vai que rola...
Soltei um suspiro e massageei a têmpora. Apesar de estar ansiosa para a
viagem, de viver aquela pequena aventura, sentia uma inquietação diferente
no estômago. Nunca fora o tipo de garota que corava por caras, também
nunca me importei em sair para namorar. Meu relacionamento era com a
dança até dois anos atrás, nada mais.
Mas aquilo...
Era novo.
Era... mágico.
E o sorriso de Theo... ele me provocava aquelas porções de clichês.
— Tudo bem — desisti, mesmo ciente de que não ultrapassaria aquele
limite. — Está feliz? Agora pare de falar sobre isso ou ele vai escutar.
— Não acredito em você. — Aquele sorriso presunçoso de Gina, que me
dava nos nervos, surgiu em sua boca perfeita, me fazendo cogitar quebrar a
mão por uma boa causa. — De qualquer forma, já avisei o Theo ontem.
Petrifiquei no lugar, agarrando as alças da mochila em meus ombros com
mais força. Giovana continuou andando tranquilamente até parar ao lado do
rapaz para cumprimentá-lo, nossa mala gigante de rodinhas que arrastamos
até ali ao lado dela. Inspirei, controlando a vontade súbita de me esconder
em algum lugar.
Não, eu não tinha medo de Theo tentar alguma coisa; fizera aulas de
autodefesa há alguns anos — sei que isso não era o suficiente —, mas sabia
me virar. Não que o jovem sorridente me esperando fosse mesmo fazer algo
para me chatear, mas... Pensar que as coisas poderiam realmente esquentar
entre nós dois me fez ficar, pela primeira vez desde que o conheci... tímida.
Puxei o ar e coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha, voltando a
caminhar e varrendo para longe aqueles pensamentos. Theo me levaria para
conhecer a Itália, era nisso que eu deveria me concentrar.
Minha semana seria incrível.

— Me ligue algumas vezes — nonna disse para o neto, que assentiu.


— Mas não sempre, os detalhes da viagem me contem quando voltarem.
Não percam tempo ligando para uma velha quando têm apenas alguns dias
juntos.
Gina, atrás da senhora de idade, moveu os lábios para mim: “Compre
camisinhas”.
Fechei a cara para ela.
Theo se inclinou e beijou a testa da avó.
— Voltaremos antes que percebam.
Nonna sorriu e tocou meu rosto com carinho.
— Não desperdice o presente da Fontana, ela não atenderia um pedido
simplesmente para cumprir com meta de trabalho. A fonte escolheu vocês
dois por algum motivo. Romântico ou não.
— Eu... me lembrarei disso. — Devolvi o sorriso.
Gina me abraçou apertado logo em seguida, me pegando de surpresa.
— Me ligue todas as noites.
— Tudo bem. — Retribuí o gesto.
— E, por favor, divirta-se.
— Com certeza. — Ri. Antes que minha amiga pudesse repetir a coisa
dos preservativos, dei a ela uma cotovelada, a cortando no meio da palavra
“compre”.
Me virei para o jovem, que já estava na Vespinha.
— Então... essa é a nossa deixa. — Theo estendeu o capacete para mim
com um meio-sorriso, já acomodado na moto.
Engoli em seco, nada acostumada com aquelas borboletas batendo asas
em meu estômago. Tentei afastá-las enquanto passava uma perna sobre o
banco da moto e, por fim, abraçava a cintura de Theo.
— Andiamo!
Inspirei o ar fresco que me abraçou quando tirei o capacete. Foram
quase quatro horas até ali, já que, vez ou outra, Theo parou para darmos um
tempo e lancharmos. Almoçamos em um pequeno restaurante numa cidade
pequena a caminho de Florença. A viagem foi incrível, mesmo assim. Toda
a visão da Toscana era de tirar o fôlego, e eu precisava economizar bateria
para tirar fotos quando chegássemos ao nosso destino. E ligar para minha
mãe e meu irmão.
E Gina também.
Não arrisquei contar para minha mãe que eu estava na Toscana com
um italiano que conhecera em um sonho. A ideia ainda era absurda até para
mim. Simplesmente avisara no grupo que tínhamos criado semanas antes
que estava tudo bem e que a vista era maravilhosa. Gina digitara uma
resposta concordando com tudo.
Meu acompanhante e eu conversamos sobre as coisas que víamos.
Theo me enchia de histórias, mas não falamos sobre nossas vidas, o que me
incomodou um pouco. Algo parecia errado, mas eu sempre ignorava e
fingia estar tudo bem.
Depois do nosso momento na Fontana no dia anterior, não nos
tocamos mais, a não ser pelo beijinho na bochecha que Theo me dera pela
manhã ou quando eu o abraçava ao ligar a Vespinha e arrancar com a moto;
mal nos encostávamos. Depois de tudo, eu me sentia uma... adolescente
tímida ao lado do garoto que gostava. Talvez o aviso de Gina tenha piorado
as coisas também.
Mas não era só isso.
O clima de viagem, verão e aventura pairava sobre nós com um
sorriso. Ficávamos bem até um fitar o outro, engolir em seco e as coisas se
tornarem estranhas novamente. Não era porque a magia do nosso encontro
no sonho tinha acabado — ao menos para mim. É que, quando sentia o
toque de Theo, quando o via sorrir e quando conversava com ele... essas
coisas antecipavam meu retorno para casa. Além disso, lembrava que as
coisas não eram um conto de fadas de Fonte do Amor mágica. Em um
filme, Theo me pediria para ficar e eu ficaria, sem pensar em nada além
dele, sem querer nada além dele. Em um filme, Theo poderia ir comigo,
ignorando todo o resto.
Mas aquilo não era um filme, me dera conta disso ao acordar naquela
manhã. Mesmo que a Fontana Di Trevi tenha realizado o desejo de Theo,
mesmo que funcionasse, aquilo... nossas vidas... era real. A realidade
bateria na porta em breve.
Eu tinha que voltar, não podia simplesmente virar as costas para a minha
mãe e meu irmão. Theo também. Ele não abandonaria a avó. Não deixaria
Roma por mim, e tudo bem, até porque não fazia nem dois dias que nos
conhecíamos, se contássemos com o sonho.
Então, se eu me permitisse ultrapassar a linha vermelha de novo, seria
pior. Pouco a pouco, meu coração cedia espaço para ele. Na noite anterior,
quando decidimos viajar juntos, pareceu maravilhoso — e era —, mas
agora, pensando naquelas coisas durante o caminho até Florença e
abraçando a cintura de Theo, entendi o perigo em que estava colocando
meu coração.
A primeira parte fora mágica; a segunda me assustava.
Observei o rosto do meu guia: ele parecia mais pensativo também. Só
falou sobre as coisas que víamos, sobre as histórias que ouvíamos, mas
nada além de fatos curiosos.
Havia uma sombra de seriedade em suas feições. Não mal-humorado,
apenas... pensativo.
E isso me incomodava.
Será que... o rapaz havia notado minha insegurança com aquela viagem?
Talvez fosse educado demais para me dizer, e pensar sobre isso fez com que
meu coração se apertasse um pouco mais.
Eu... não queria voltar. Mas também não sabia se estar ali era a coisa
certa.
Era confuso.
Abri a boca, pronta para dizer a ele qualquer coisa que estragasse aquele
clima estranho entre nós dois. Mas então, com os olhos escuros ainda
focados em algo mais à frente, Theo sorriu um pouco e apontou para um
corredor de prédios antigos. Edifícios com enormes portões e aldrabas que
me faziam arrepiar.
— Aquele é o lugar perfeito para uma bailarina. — Me olhou. — Vem,
você precisa tirar algumas fotos.
— Eu... — Inspirei. Deveríamos ter aquela conversa? Deveríamos...
sentar e conversar como pessoas adultas responsáveis e repensar aquela
viagem decidida por um impulso? Suspirei. — Certo.
O segui. Porque uma parte egoísta minha ainda ansiava pela aventura.

Inclinei bem o rosto para a aldraba assustadora diante de mim. Ela


devia ter mais ou menos quarenta centímetros, o anel para bater na porta era
pesado e rangia séculos de história. Theo me contara que algumas famílias
usavam aldrabas assustadoras para manter pessoas longe; outras abusavam
nas formas e no luxo para se gabar do poder e da riqueza apenas com o
enfeite na entrada.
Eu vira dezenas de portas enormes — uma até com mais de dez metros
de altura — adornadas com aldrabas como aquela que olhava agora: uma
besta assustadora e bem detalhada exibindo suas presas. A propriedade
fechada era enorme, com um muro gigante de pedra. Havia suportes bem
maiores que os antigos usavam para colocar as tochas. Claro que não
existiam tochas. Em algumas praças, eu notara luzes modernas em um
globo branco, mas a magia do antigo e medieval permanecia.
Tudo naquela cidade emanava filmes históricos e guerra. Por isso,
quando Theo me guiou pela praça principal, quase pude ouvir o som das
patas dos cavalos e das rodas de madeira de carruagens ecoando pelas ruas
de pedra.
Visitamos igrejas, museus e algumas lojinhas. Gina me enchera de
mensagens exigindo presentes. No entanto, ou eu comprava mimos para
minha amiga ou pagava o almoço. Eu escolheria com sabedoria alguma
lembrança para ela. Por ora, apenas chaveiros de cada lugar importante.
Gina adorava chaveiros.
O passeio fora tão incrível quanto o tour por Roma, mas ainda não
ganhava dele. Ainda não superava a tarde incrível que eu tivera com Theo.
Talvez por não ver tanto o sorriso lindo sempre presente no rosto do meu
acompanhante ou porque mal nos olhávamos ao conversar... Eu mantinha o
olhar longe sempre que podia.
Me odiava por hesitar àquela altura do campeonato, mas minha
mente não silenciava.
O céu não tinha escurecido quando decidimos procurar alguma
hospedaria mais em conta que aceitasse o cartão internacional de Jeremmy
para passar a noite. A viagem que meu irmão planejara incluía um quarto de
casal para que Gina e eu pudéssemos dividir a mesma cama, mas...
Minha amiga não estava ali.
Engoli em seco e não encarei Theo quando o gerente daquela minúscula
pousada de estrada nos guiou pelo corredor. O italiano que me
acompanhava insistira em pagar outro quarto, mas garanti que nada demais
aconteceria se dormíssemos no mesmo cômodo. Afinal, Theodoro evitara
me olhar durante todo aquele dia também, certo? Aquela chama mágica e
apaixonada de quando nos beijamos na fonte tinha apagado.
Eu não entendi muito bem o que o homem de meia-idade disse, mas,
pelo rosto corado de Theo, concluí que o atendente nos interpretou como
jovens recém-casados. Isso explicava o vinho, as taças e o queijo que ele
deixara cinco minutos atrás.
— Pelo menos, ganhamos vinho — tentei brincar. Até a cama parecia
menor.
— Não acho que seja uma boa ideia bebermos uma garrafa de vinho
sozinhos, em um quarto minúsculo… só... — engoliu em seco — ...você e
eu.
Ri.
— Não vamos fazer nada. — Me lembrei do aviso de Gina mais cedo,
antes de partir, e senti meu rosto esquentar também.
Procurei distrair a mente inspecionando o resto do quarto. O banheiro era
grande o suficiente para o vaso, a pia e o chuveiro, mas os movimentos ali
dentro eram limitados. Fui até a pequena sacada que havia no cômodo e me
apoiei na balaustrada, observando a rua não muito movimentada.
Não estávamos mais em Florença. Eu não sabia exatamente onde me
encontrava, mas era uma cidade reconfortante e pequena. Na rua, dois
garotos brincavam de bola; um pouco mais afastado, um senhor estava
sentado, tirando um cochilo em seu banquinho.
Senti quando Theo se aproximou. Por um momento, pensei que abraçaria
minha cintura e pude sentir o calor do corpo dele próximo ao meu. Ou eu
estava imaginando coisas ou Theo faria exatamente isso, mas pensou bem e
desistiu.
Eu queria que o rapaz tivesse prosseguido, me tocado, mas também fiquei
aliviada por ele não ter avançado aquela linha de intimidade.
A Valentina cautelosa e pensativa estava de volta.
O jovem se apoiou ao meu lado e suspirou.
Silêncio.
Normalmente, eu estava acostumada com ele, com a falta de
conversa, com a presença exclusiva dos meus pensamentos. Mas no sonho,
em nosso tour por Roma, Theo estava tão radiante: não parava de falar, e eu
adorara aquilo, aquele ar de verão preenchido pela voz grave e macia, pela
risada rouca e contagiante.
Odiava o silêncio naquele momento.
Talvez eu o tenha interpretado mal, talvez o italiano não fosse tão sincero
quanto parecia ser. Ou talvez ele notara o que se passava na minha cabeça.
Eu queria que ele tomasse a decisão, ele tivesse a iniciativa, desse o
primeiro passo.
Mas ele estava respeitando meu espaço.
O encarei, vendo o vento da noite balançar levemente as mechas negras
de seu cabelo, alguns fios caindo sobre sua testa bronzeada.
Inspirei fundo antes de me afastar da balaustrada.
— Vou descer... para o jantar — anunciei, esperando que ele dissesse que
me acompanharia.
Theo virou o rosto para mim e, por um momento, pensei mesmo que o
faria. Aqueles olhos pretos brilharam um pouco e, por fim, ele assentiu.
— Pode ir na frente, vou... tomar um banho. Estou exausto.
Meneei a cabeça e saí da sacada, pegando o celular sobre a mesinha de
canto onde minha mochila, com algumas roupas, estava apoiada.
Sem dizer mais nada, deixei o quarto.
Talvez ele só estivesse cansado mesmo, como disse. Quem sabe fossem
apenas paranoias das vozes da minha cabeça.
Desci as escadas até o pequeno restaurante do hotel. Uma mulher de
talvez uns quarenta anos estava assentada em um minipalco, com a luz
alaranjada acentuando sua pele. O cabelo preto como noite se encontrava
preso em uma trança, enfeitado por uma flor vermelha.
Seus dedos compridos eram ágeis ao dedilhar o violão cor de caramelo
em seu colo, e eu fiquei parada ali por um tempo, aproveitando aquele som
limpo e belo.
No entanto, quando a estranha começou outra música...
A melodia chorada fez meu coração parar de bater.
Aquela canção triste da caixinha em meus sonhos...
A música que me perseguia todas as vezes que fechava os olhos.
As notas preencheram o ambiente, e cada corda tocada era uma
névoa me rodeando, me prendendo, me hipnotizando e me
teletransportando para minhas lembranças antes felizes, agora acinzentadas.
Ela tocou perfeitamente. A mulher de olhos fechados e vestido vermelho
estava tão envolta na música quanto eu. As lembranças que aquela melodia
lhe desencadeavam pareciam belas; havia um pequeno sorriso em seus
lábios pintados.
Me lembrei da Valentina naquele quarto de espelhos, da garota
amarrando as sapatilhas nos pés machucados, se esforçando para ficar de pé
sem a ajuda das muletas. Eu enxergava, além da mulher e do violão, a
menina que trincara os dentes para não chorar de dor enquanto se
empenhava em completar os giros com o joelho e o pé em frangalhos.
Eu tentara dançar depois do acidente. Eu tentara por dias... mas...
Piorara a situação sendo teimosa: precisei de cirurgia, passei semanas
sem poder andar. Naquela época, vi meu pai uma última vez, depois do
divórcio. Ele aparecera na casa nova para me ver. Havia flores em suas
mãos, um brilho arrependido em seus olhos tristes e cansados, como se não
dormisse bem há dias também.
Eu o mandara para longe.
Não o vira desde então.
Uma criança risonha passou por mim, colidindo comigo, me tirando do
transe. Me trazendo de volta para a realidade de burburinhos, pratos e
talheres tilintando. Qualquer fome que eu sentia se foi naquele momento.
Procurei uma rota de fuga e, analisando bem cada ponto entre as
pessoas e mesas e garçons, avistei uma porta nos fundos.
Corri.
Eu precisava de ar.
TINA

Abracei os joelhos e encarei a vista noturna que aquele pequeno


campo aberto nos fundos do hotel me proporcionava. Havia diminutos
pontos de luz distantes, minúsculas silhuetas de prédios, um lençol de céu
escuro e estrelado acima.
A visão me fez lembrar de quando dançara para Theo no sonho. Depois
de dois anos. Dancei para alguém depois de um tempo significativo, sem
dor nos tornozelos, sem ferroadas constantes no joelho fraturado... Foi
perfeito. Dançar para Theo... foi perfeito.
Me lembrei da vista, do pôr-do-sol, do hálito quente do italiano em
minha pele, de suas mãos em minha cintura e da música que dançamos
juntos.
Eu gostaria que a Fontana pudesse me oferecer mais um sonho como
aquele. A Valentina do sonho era... a Valentina que eu gostaria de ter de
volta. Eu sorrira e dançara sem medo algum de cair.
Mas fora tudo um sonho.
— Estava procurando você. — Escutei a voz de Theo. Não demorou
muito e ele se sentou na grama ao meu lado.
Seu cabelo estava úmido e ele cheirava a sabonete e banho recém-
tomado; usava um moletom preto e uma calça do mesmo material, porém
cinza. O vento da noite beijando minha pele me fez desejar um banho
quente e moletons também. Os braços de Theo ao meu redor.
Forcei um sorriso para ele.
— Estava... pensando.
O Theo do sonho teria sorrido e perguntado sobre o que eu pensava;
aquele ao meu lado apenas assentiu.
Aquilo só piorou meu humor.
Recostei o queixo sobre os joelhos e fitei a grama escura.
— O que estamos fazendo? — murmurei baixo.
Esperei, mas não obtive resposta. Levantei o rosto para fitá-lo.
O olhar que encontrei me fez perder um pouco a linha. Aqueles olhos
estavam mais escuros do que nunca, a luz da lua e do restaurante pintavam
os pontos certos da lateral do rosto dele.
A intensidade naquele olhar me fez hesitar, engolir em seco.
Theo não se incomodou com meu desconcerto, apenas observou meu
rosto como se apreciasse uma obra complexa de Michelangelo. Contudo,
havia um brilho ali, como se, ainda que fosse complicada, o rapaz
admirasse a pintura.
Ele ergueu a mão e colocou um cacho loiro para trás, roçando levemente
as costas dos dedos em meu rosto. Porque a mecha que bloqueava a visão
do meu olho esquerdo o incomodava ou porque aquela era a única desculpa
que Theo conseguira encontrar para me tocar.
Aquele olhar me sugeria os dois.
— Não foi fácil... perder meus pais. Quando minha mãe se foi, consegui
aguentar, porque tinha meu pai comigo. Eu me concentrei em ajudá-lo com
alguns estudos, mas era só uma distração. Ele acabou sendo consumido pela
perda e esqueceu o que restava para ele cuidar e amar. Ficou doente e
obcecado pelo trabalho. — A voz de Theo falhou, mas me vi fisgada, com
os olhos fixos nele quando começou, do nada, a me contar a verdade sobre
si mesmo. — Parecia perdido em um mundo que o impedia de ver além da
morte da minha mãe, ele não... escutava. Me revoltei com isso, briguei com
ele e disse... disse coisas horríveis para o meu pai antes de ele partir para
uma inspeção em Nápoles. Fiquei com raiva quando saiu com uma mochila
nas costas, dizendo que tinha trabalho para fazer... Eu o odiei. Eu também a
tinha perdido, também sentia saudade. Também estava sofrendo. Mas ele se
esquecera do filho, da própria mãe, que sofrera igualmente com a perda da
nora.
Theo não continuou por alguns segundos, desviando o olhar para a
paisagem que nos cercava, piscando os olhos rapidamente para não
denunciar a tristeza em forma de lágrimas.
Meu coração bateu mais dolorido no peito.
— Ligaram para nonna algumas semanas depois avisando que Pietro
Abertinalli tinha sido encontrado morto em uma suíte de hotel barato à
beira do... — A voz do italiano falhou. — O encontraram dependurado lá.
Nenhuma carta, nenhum adeus, apenas uma garrafa de vinho e fotos da
minha mãe espalhadas pelo chão.
Cobri a boca em choque. Senti minha respiração parar por alguns
segundos.
— Eu sinto muito, Theo... — tentei, e era péssima com aquilo, mas falava
sério.
Não imaginava...
Ele procurou sorrir, mas falhou. Aquela dor em seus olhos partiu meu
coração.
“Tente encontrar um lugar em você para perdoar seu pai”, ele dissera
para mim naquele sonho. Senti que a frase não era sobre mim apenas, mas
não insistira. “Sei que é difícil, e você tem, sim, seus motivos, mas guardar,
cultivar e deixar esse sentimento crescer dentro de você só vai te trazer
coisas ruins. Ele pode... acabar partindo um dia. Se isso acontecer e o
sentimento quebrado ainda estiver aí... você não vai se perdoar.”
Theo falara dele. Ele se arrependia das coisas que dissera ao pai,
provavelmente se culpava pela morte do homem também.
Não consegui pensar em nada para dizer além de “sinto muito”.
— Foi quando perdi... qualquer brilho da vida. Fiquei péssimo por
semanas, meses... Por dias, não quis comer ou sair do quarto, mas... pensei
em nonna. A dor que ela deveria estar sentindo e a culpa que carregava.
Porque nos culpamos. — Uma lágrima solitária escorreu. — “Por que eu
disse aquelas coisas? Por que não tentei ajudá-lo? O que eu poderia ter feito
para evitar que meu pai...”
Segurei a mão de Theo e a apertei contra a minha.
— Não foi sua culpa.
— Talvez não, mas eu podia ter sido um filho melhor. — De novo, ele
tentou sorrir; de novo, falhou. — Mas enterrei esses questionamentos para
cuidar da nonna. Pra evitar que ela chegasse àquele nível também. Fiz de
tudo pra que ela sorrisse, mesmo nas circunstâncias em que estávamos.
Então a incentivei a voltar com os doces, cuidei das entregas e me distraí
com a administração da loja pra ela.
Eu não imaginava... que Theo, sempre sorrindo tanto, sempre tão... alegre
e gentil... carregava tanta dor e culpa no coração bondoso.
Quis abraçá-lo, quis dizer que ele ficaria bem, mas não consegui.
— Meus dias eram cinzas, Tina. — Me olhou finalmente. Havia tanta
tristeza ali. Tanta dor... — Literalmente cinzas. Eram... sem vida, apagados,
opacos. Automáticos. Eu sabia o que tinha que fazer e como fingir que
estava tudo bem. Vivi assim desde a morte do meu pai, mas era tudo sem
cor. Sem paixão. Sem... sonho. Alguns amigos me chamaram para uma
festa em um final de semana qualquer, e eu me forcei a ficar e mentir que
estava tudo bem até tarde. Porém, quando decidi voltar pra casa, fiquei
vagando pelas ruas. Até parar na fonte. Meus pais me contaram a história de
como se conheceram. Mamãe costumava se gabar que meu pai tinha ficado
meio bobo quando a viu parada na Fontana pela primeira vez. Em meio a
tanta gente, foi só ela que ele viu. Então fiquei lá, parado, jogando moedas,
pensando neles e em como queria sentir o sol de novo. Não o sol do dia, é
bem quente no verão... — Theo me ofereceu um sorriso mais convincente
dessa vez, mas aquele rastro de luz logo se apagou. — Mas o motivo para
eu realmente querer acordar pela manhã.
Meu coração estava batendo espremido no peito. Dolorido. Me sentia
culpada, até, por passar dois anos inteiros da minha vida agindo como se
papai tivesse morrido quando ele sempre aparecia com um buquê de
margaridas para mim. Sempre pedindo desculpas pelo que fizera.
Theo não podia mais abraçar o pai. Enquanto eu ignorava completamente
a existência do meu.
Mas ele... ele me traiu. Traiu minha mãe. Nossa família.
Doía ainda.
Não conseguia perdoar.
Não menosprezaria minha dor porque a de Theo era consideravelmente
maior.
Mesmo assim...
Pressionei os lábios, incapaz de falar qualquer coisa para consolar Theo.
Sabia que, se fosse o contrário, ele teria coisas lindas a dizer, conseguiria
me acalmar e me fazer sorrir, mas eu não sabia fazer isso.
Theo pareceu ler essa informação em meu rosto. Compreender.
Um fraco sorriso despontou de sua boca, como se dissesse
silenciosamente que estava tudo bem não saber o que dizer.
— Naquela festa, depois dela, na Fontana, pedi aquilo: un raggio di sole
— ele voltou a falar baixinho, os dedos de sua mão brincando
distraidamente com os anéis finos em meus dedos. — Não necessariamente
uma jovem bonita — brincou. — Mas foi o que aconteceu. Alguns meses
atrás, comecei a sonhar com uma dançarina.
Segurei o ar por alguns segundos, esperando aquela continuação.
Surpresa. Meses?
— Nos meus sonhos, você sempre aparecia sorrindo, os cabelos longos
caindo nas costas. Pensei ser miragem... — Ele riu baixo. — Depois de
novo. E de novo. Comecei a procurar seu rosto no meio da multidão quando
saía pra entrega. Sempre parava quando via cachos loiros ou um vestido
amarelo florido. Mas nunca era você.
— Aquele dia... na loja... — Me lembrava da surpresa no rosto dele,
como se me reconhecesse de algum lugar, como se visse um fantasma ou
algo do tipo.
— Achei que estava sonhando de novo. — Entrelaçou nossos dedos. —
Quando questionei minha avó sobre quem era, e ela explicou, pensei em ir
atrás de você e perguntar seu nome, mas não queria passar uma impressão
estranha. Muito menos revelar sobre os sonhos.
— Eu com certeza teria te achado um tarado.
Ele riu, riu de verdade, e foi um som lindo. Um dos mais bonitos que já
ouvi.
O aperto no meu coração afrouxou. Apenas um pouco.
— O que eu quero dizer, Tina... É que me via motivado para acordar
todas as manhãs desde que comecei a sonhar com você. Passava mais
tempo nas ruas, conversando com pessoas, ajudando elas e sempre
procurando você na multidão. Quando te derrubei da escada, quando
finalmente falou comigo, pensei estar sonhando, sim, mas foi bem mais
real. Você tinha voz, um nome e personalidade. Fiquei curioso sobre a
bailarina que coloria meus sonhos cinzas, quis... conhecê-la. Quando
acordei de novo, apenas soube que tinha sido diferente. Que algo tinha
acontecido.
Deitei a cabeça no ombro dele, observando a pele marrom-claro
bronzeada de sua mão cobrir quase completamente a minha.
— Eu não queria vir — confessei baixinho. — Quando minha mãe e meu
irmão disseram que me dariam uma viagem de aniversário, fiz pouco caso
— comecei, sentindo o peso daqueles anos, o que senti durante cada dia,
sair aos poucos. — Eu não queria sair de casa. Por meses, fiquei enfurnada
no meu quarto. Por meses, não queria fazer nada. Apenas... me revoltei. Me
fechei. Mas minha mãe fez aquele drama materno. — Sorri ao me lembrar
do rosto dela. — Eu aceitei, mas sem muita empolgação. Pensei em ir para
o Brasil, passar um tempo com minha prima, mas apenas me lembraria mais
da época em que as coisas eram perfeitas. Cogitei ir para Paris, já que Gina
é apaixonada por doces franceses... — Theo acariciou o dorso de minha
mão com o polegar, escutando atentamente. — Só que, um dia, uma
propaganda sobre Roma apareceu no canto da tela do meu notebook.
Mamãe viu e acabou se empolgando, então começamos a pesquisar sobre a
Itália e os pontos turísticos. Passei... a sonhar com isto: conhecer Roma e a
Fontana, a Casa de Julieta e a cidade do amor...
Senti meus lábios se esticarem.
— É maluco pensar que talvez... Talvez a Fontana tenha nos unido bem
antes — o rapaz murmurou, pensativo. — Como se ela soubesse que
precisávamos nos encontrar.
— Magia...
— Destino — Theo completou, e eu virei o rosto para encará-lo. O
italiano deu um sorrisinho. — Pra alguém que não acreditava na Fontana...
— Estamos finalmente nos dando bem — brinquei, mas... depois de
analisar bem o rosto dele e me lembrar do dia que tivemos, o sorriso
morreu. — Mas... Essa magia vai acabar.
— Está arrependida de vir?
Hesitei, me afastando um pouco.
— Não é isso... É que...
— Eu não me arrependo de nada — ele me interrompeu, com um sorriso
lindo brincando em seus lábios. — E acredito que a Fontana cruzou nossos
caminhos por um motivo, um motivo maior do que eu desejar você.
E o que seria? O que a Fonte do Amor queria ao me fazer encontrar Theo
daquela forma?
Quando minha mãe e meu irmão me disseram para escolher uma viagem
para fora do país, uma parte minha não quis ir; uma parte muito grande
minha ainda estava apagada, sem qualquer vontade de descontrair. De
sonhar com férias. Então, um dia, apenas conversando em uma
videochamada com minha prima, uma aba no canto da tela apareceu.
Aquelas propagandas da internet sempre surgiam, e me irritavam porque,
por mais que eu tentasse configurar, elas não desapareciam.
Naquele dia, a mensagem era sobre planos aéreos para... Roma.
E quando cliquei para fechar, a página se expandiu para a tela completa
do notebook. Então minha mãe entrou no quarto e me viu encarando o site
de turismos, me convenceu e, no dia seguinte, estava ajudando a planejar
meu aniversário em uma viagem pela Itália.
Se eu realmente abrisse o coração à magia daquele lugar, se eu realmente
permitisse que as palavras de nonna fossem reais, se acreditasse que não
havia limites ou fronteiras, que a Fontana realizava sonhos de todas as
pessoas do mundo...
Não. Não fazia sentido.
— Valentina, olhe para mim... — Theo ergueu meu queixo com o
indicador e o polegar. — Em meio a tantas pessoas espalhadas no mundo,
foi com você que sonhei. Em meio a tantas moedas jogadas na fonte, você
foi a pessoa que roubou a minha. Por algum motivo, estamos aqui. Você e
eu.
As pessoas dentro do restaurante, as músicas melancólicas tocadas pela
mulher, tudo deixou de existir por alguns segundos.
— Mal olhou para mim hoje — argumentei num murmúrio baixo,
lembrando que passara parte do dia me questionando se o italiano tinha se
arrependido também, já que mal nos tocamos ou nos olhamos.
Seus lábios se esticaram um pouco.
— Não tem como saber disso. Eu te olhei, sim. Não consigo tirar os olhos
de você desde o momento em que te atropelei naquele sonho, Valentina.
Eu realmente adorava meu nome em sua voz. Adorava como parecia
diferente e único dito por ele, como se fosse outro nome. Uma melodia
entoada em uma única palavra.
— Eu não vi — retruquei.
— Você passou boa parte do dia ocupada olhando a cidade. Eu passei boa
parte do dia ocupado admirando você.
Meu coração voltou a bater normalmente aos poucos. Eu só queria que as
coisas ficassem bem entre a gente. Theo fora a melhor coisa que me
acontecera em anos escuros, iluminando completamente meus sentimentos
nublados.
— Preciso entender o que é tudo isso que está acontecendo, Theo —
confessei, me afastando dele, voltando a abraçar os joelhos. — Preciso
entender o que sinto quando te vejo. Quando toco você, quando beijo
você... Não consigo pensar em nada. Absolutamente nada. Qualquer razão
vai embora. Preciso saber o que é esse sentimento. Preciso ter certeza dele.
Porque é esse sentimento que vai definir se haverá um futuro nós quando eu
partir.
— Você acha que não falar comigo vai resolver isso? — ele perguntou,
inclinando a cabeça para que seus olhos ficassem na mesma altura dos
meus.
— Não... — Fiz uma careta. — Não sei o que estou fazendo. Quero ser
aventureira e me deixar levar pela viagem, mas... preciso ser racional
também.
— Você devia ter deixado esse seu lado racional em casa — disse o
italiano, pensativo, me fazendo sorrir um pouco.
— Não é tão fácil, Theo... — falei baixinho.
Eu estava apavorada por dentro, com o que aconteceria no final
daquela viagem. Me deixara levar por um impulso de uma fonte do amor e
não queria perder os dias que ainda tinha com Theo, mas, mesmo assim... o
final daquele verão me assustava.
Theo me olhou por alguns segundos, como se lesse a minha mente. Então
ficou de pé, e depois de tirar a sujeira de grama da calça, ele estendeu uma
mão para mim. Um pedido silencioso para que eu me levantasse.
Aceitei, mas ele não me soltou quando fiquei de pé, frente a frente
com ele. Um sorriso doce surgiu em seu lindo rosto. O Theo do meu sonho
estava de volta, e aquele sentimento de não querer vê-lo sofrendo e se
culpando cresceu em meu coração.
— Não vamos fazer isso, ok? — pediu, colocando a mão livre em meu
ombro descoberto, o polegar criando círculos suaves em minha pele, com
carinho. — Sei no que está pensando desde que saímos, e esses
questionamentos me atingiram de manhã também. Não consegui dormir
direito e acordei cedo demais, pensando em você. Pensando que, em duas
semanas, você vai embora, que tem um oceano de distância que nos separa
e que não estamos em um livro onde tudo pode acontecer.
— Bom, coisas malucas aconteceram. Me parece um livro — brinquei,
ainda sentindo a preocupação pesar no peito.
Ele riu, e então, maravilhada e surpresa, fui puxada para um abraço
apertado com cheiro de vapor de banho. O italiano apoiou uma das mãos
em minha cabeça e a outra manteve meu corpo colado ao dele.
— Fomos sinceros um com o outro desde o primeiro momento, Tina
— disse, mais baixo e um pouco rouco. — Se algo está incomodando você,
não guarde.
— Eu… — Apoiei a cabeça em seu ombro e inspirei seu perfume
delicioso, agora tão familiar. Abracei sua cintura. — Estou gostando de
você, Theo. De verdade. O que vou fazer se meu coração tiver você todinho
dentro dele quando minha estadia aqui acabar? Esta viagem... Temos mais
doze dias juntos. Entende isso? Se eu já me sinto assim com um dia e um
sonho, o que vai acontecer em uma semana? Não... — Não queria falar. —
Não acha melhor voltarmos e acabarmos logo com isso?
Eu era a garota da lógica, a que saía de supermercado em supermercado
pesquisando os valores de uma manteiga só para ver qual lugar compensaria
mais. Eu era a garota que tinha uma agenda para cada área da vida, a que
fora ensinada a ter disciplina desde criança, a manter a compostura e não
sair por aí namorando um italiano por alguns dias só para sofrer depois.
Era tão confuso.
Porque, pela primeira vez depois de muito tempo, eu não queria ser
guiada pela estrada segura, sem riscos, mas pelo meu coração, que batia em
uma dança linda com o de Theo.
O rapaz me afastou devagar e levou uma mão até meu rosto. Seus olhos
pretos brilhavam como estrelas.
— É o que você quer? — perguntou baixinho.
— Eu...
— Porque se for, te levo de volta.
— Eu não...
— Mas se continuarmos, prometo que não vai se arrepender.
Bom. Apresentei os riscos, Theo estava bem ciente de todos eles.
— Está apostando seu coração contra mim, Sr. Abertinalli? — Sorri,
sentindo meu próprio coração acelerar pedindo para que eu ignorasse a
razão até aquela viagem terminar. Só por mais alguns dias.
— Estou. — Seus lábios se esticaram, dissipando qualquer rastro daquele
Theo de minutos atrás. Ele afastou uma mão para pegar algo no bolso da
calça escura, então ergueu a carteira. — Com gelatos como bônus.
Dei risada, sentindo a empolgação do sonho outra vez.
— Tem certeza?
— Absoluta, mia bella.
Inspirei fundo apenas para liberar o ar com força.
Pensando.
Sopesando.
Relutando.
Me decidindo, enfim.
— Então aposto o meu contra você também. — O abracei, trancando
minha razão em um quarto isolado. — Vamos perder juntos.
TINA

Theo engoliu em seco. Eu ri de sua expressão.


Apesar do nosso momento lá embaixo, de nossas declarações e do que
decidimos, não ultrapassamos o contato físico além do abraço. Não nos
beijamos desde a Fontana e... Bem, agora enfrentaríamos a cama de casal.
— Não vamos complicar as coisas — disse ele, mais para si do que para
mim. — Escolha um lado, Valentina.
Segurei o riso.
Poderia jurar que suor escorria de sua testa.
Ele estava nervoso.
— Aquele. — Apontei para o canto da parede. Escolhera o pijama mais
infantil que tinha na mala, uma calça de pano macio e uma camisa de
faculdade que roubara de Jeremmy.
— Tutto bene. Facciamolo.[28] Dormir! Isso. Quero dizer dormir.
Ri, saindo do lado dele para me jogar no colchão macio. Theo
permaneceu no lugar, encarando a cama como se fosse uma das aldrabas
que vimos pela manhã.
Dei tapinhas no colchão, no lençol ao meu lado.
— Vem, Theo.
— Huh. — Engoliu em seco de novo. — É só que... eu nunca dormi com
uma garota antes.
— Há uma primeira vez pra tudo.
— Você já?
— Dormi com uma garota? — brinquei, divertida com a expressão de
preocupação no rosto dele, as bochechas bronzeadas adquirindo um tom
escarlate a cada segundo, saindo do italiano sexy a um jovem fofo em
questão de segundos. — A Gina. Ela ronca bastante.
— Você ronca?
— Nunca me ouvi dormindo, então não sei dizer. — Dei de ombros. —
Você pode me contar pela manhã.
Theo foi relaxando um pouco ao sorrir.
— Espertinha. Você não me respondeu.
— Se já dormi com um cara antes?
— Sabe... Daquele jeito.
— Uma vez. Na festa de formatura. Foi horrível. — Bati no colchão de
novo, e dessa vez Theo se mexeu e deitou do meu lado. Ele apoiou o
cotovelo no travesseiro, sustentando a lateral do rosto na mão para me
olhar. Me virei também, nossos rostos a uma distância segura. —
Namoramos por uns cinco meses, mas acabou não dando certo. Ele era um
cara legal, mas quase não nos víamos e...
Parei de falar.
Droga.
O que aconteceria quando eu fosse embora? Quase não nos veríamos e...
Theo esticou o outro braço até meu rosto e deu um peteleco em minha
testa.
— Não pense nisso.
Ri um pouco.
— Desculpa. Vamos conversar sobre outra coisa.
— Desculpada. — Segurou minha mão sobre o colchão. — Sobre o que
quer conversar?
— Me conta sobre você.
— Já te contei sobre mim.
— Coisas aleatórias que não revelamos um para o outro ainda. — Seu
rosto estava iluminado pelo abajur atrás dele, uma parte nas sombras e a
outra pincelada pelo amarelado da pouca luz. As mechas do cabelo
pareciam bagunçadas como nunca, caindo em seus olhos. Ele era,
realmente, muito lindo. — Livros favoritos?
— A Saga dos Olimpianos, e você?
— Hm... Sempre gostei muito dos clássicos. Emma. Orgulho e
preconceito. Jane Eyre.
— Combina com você.
— Quando era mais nova, costumava vestir a roupa de balé da minha
mãe e fingia estar em um baile, brigando com o senhor Darcy.
Theo abriu um sorriso encantador.
— E quem geralmente ganhava a discussão? — Senti os dedos dele
contornarem suavemente meu rosto, sobrancelhas, bochecha, a ponta do
nariz...
Meus olhos pesaram.
— Eu, é claro. Ele estava apaixonado, então perdia a fala rapidinho.
Sorri quando uma risada baixa deixou a garganta do italiano.
— Cor favorita?
— Amarelo — ele respondeu.
— Eu também. — O encarei. — Por que é sua cor favorita?
— Me lembra verão, cachos dourados... você.
— Não é bom você ficar me cantando em uma cama, Theo — provoquei.
— Na nossa lua de mel...
Ele gargalhou.
— Ganhamos vinho. E um desconto pra recém-casados.
— Isso foi bem legal, na verdade. — Bocejei, fechando os olhos. — Uma
mania engraçada?
— Hm... Quando estou tranquilo e fico à toa nas ruas, com tédio — senti
os dedos dele afastarem alguns cachos do meu rosto — fico dublando os
turistas de longe.
Ri, encarando ele outra vez. Minhas pálpebras pesavam cada vez mais,
mas me mantive acordada para apreciar os olhos de Theo se encolherem
quando seus lábios se esticaram.
— Vamos fazer isso amanhã — cochichei.
— É? Tem que ser talentosa. Não é só falar, tem que ter um roteiro —
provocou, enrolando uma mecha dourada no dedo.
— Tenho certeza que vou me sair muito bem — murmurei.
— E você? Qual sua mania estranha?
— Eu? — Me aproximei dele e me aconcheguei em seu peito. — Eu saio
por aí roubando moedas de fontes do amor.
THEO

Valentina era uma belíssima obra de arte no meio de tantas


antiguidades e história. Ela acordara radiante naquela manhã, com um
sorriso encantador no rosto enquanto nos preparávamos para o próximo
destino. Estava mais tagarela do que antes, e eu sentia meu peito aquecer
quando, vez ou outra, escutava o som de sua risada.
Observei o vestido vermelho que ela usava contrastar com as cores dos
tijolos gastos das construções medievais, colunas e cafeterias que cercavam
a grande Piazza Maggiore. O sol da tarde iluminava aquele ponto da praça.
Ela.
Iluminava ela.
Os fios dourados apareciam presos em um rabo de cavalo
desarrumado. Andamos por quase toda a cidade, e eu sentia meu corpo
reclamar e pedir por um colchão macio, mas era contagiante ver a animação
de Tina em cada lugar por onde passávamos.
Ergui o celular, tirando mais uma foto dela, do sorriso completo em seu
rosto enquanto observava o pequeno grupo de músicos se apresentar no
centro da praça. Violino, violão, um homem barbudo e sorridente tocando o
que parecia uma viola da gamba e uma mulher com uma flauta.
Tina estava vislumbrada e, apesar de dizer para mim que não queria mais
dançar, notara seus pés inquietos e ansiosos acompanharem a música,
batendo o compasso, os quadris vez ou outra se movendo no ritmo.
Ela estava encantada pela música; eu estava encantado por ela.
Imaginava o que a traição do pai fizera com a jovem e compreendia: ele
fora seu maior incentivador, no fim das contas, mas eu queria que Tina
sonhasse com a dança por conta própria. Quando a vira dançar naquele dia,
no sonho, consegui ver a falta que aquilo fazia.
O quanto Valentina adorava e respirava música.
Ali, no meio da praça mais movimentada de Bolonha, tive certeza. Os
olhos dela brilhavam, e eu conseguia perceber que todo o seu corpo chorava
por um pouco de alivio, com falta daquilo também.
Do movimento. Da melodia. Da liberdade que a dança trazia a ela.
Me aproximei de um dos músicos com algumas moedas nas mãos quando
a flautista tirou o chapéu e o colocou no chão. Falei em italiano, e minha
acompanhante não percebeu, distraída com o cara barbudo e a viola de
gamba que ele apoiava no chão.
— Poderiam tocar algo para mim? — pedi, e apontei para Valentina. —
Ela é uma bailarina, seria... legal se vocês tocassem e ela dançasse.
Tina poderia recusar, mas não custava tentar. Eu sentia a mudança nela,
sentia a jovem se soltar um pouco desde que nos conhecemos. Eu insistiria
independentemente do custo.
Poderia funcionar.
A mulher de uns trinta anos sorriu abertamente ao ver a loira a alguns
metros. A jovem aguardava, ansiosa, a próxima música.
— Una ballerina?
Assenti, sorrindo.
A mulher assoviou para os companheiros e falou o nome da próxima
canção que tocariam, informando que dessa vez teriam uma participação
especial.
Voltei para o lado de Valentina.
— O que estavam conversando? — perguntou, e eu não respondi, tirando
a alça da bolsa dela de seu ombro. Tina me olhou curiosa. — O quê? Por
que está me olhando com essa cara?
— Você, raggio di sole, vai dançar.
Ela ficou tensa, o rosto empalidecendo.
— O quê? Não!
Os músicos se prepararam, posicionando seus instrumentos, todos
encarando Valentina, que também percebeu os olhares.
— Theo! — Virou o rosto para mim, apavorada.
Os turistas à nossa volta também nos observaram, compreendendo que
alguma coisa estava prestes a acontecer. Alguns poderiam achar que era
uma briga de casal, pela expressão no rosto da jovem dançarina.
Respirei fundo, mantendo o sorriso tranquilo ao ficar de frente para ela.
Segurei seu rosto com carinho, ambas as mãos tocando a pele morna e
macia.
— Esqueça seu pai por algumas horas, tudo bem? — pedi, baixo. — É só
você, eu e a música. Como fez no outro dia.
— No outro dia era um sonho! — Me lançou um olhar sofrido.
— Você quer mesmo esquecer a dança, Tina? — perguntei, acariciando
sua bochecha com o polegar. — Dança mesmo por causa dele? Ou porque é
seu sonho?
— Theo...
— Dance por você, bella. Dance para se sentir livre. Aqui, faça o que
quiser — insisti. — Feche os olhos por um segundo, se liberte das coisas
ruins que te impedem e... recomece.
Um brilho diferente perpassou os olhos esverdeados. Um brilho de
surpresa e reconhecimento.
Seja lá o que tenha se passado na cabeça dela quando falei aquilo, Tina
ainda permaneceu relutante.
— Faz tanto tempo, eu...
— Se cair, te ajudo a levantar. — Me inclinei, aproximando o rosto do
dela. Beijei sua testa com carinho, avançando um passo de cada vez, me
segurando desde a fonte e respeitando o espaço dela. — Per favore, bella.
— Eu... — Ela hesitou, lançando um olhar incerto para os
instrumentistas. Eles sorriram, esperando que a jovem fosse para o centro.
Tina inspirou fundo, talvez sendo encorajada pela flautista, que a chamou
com um sorriso gentil no rosto. Soltou o ar com força e estendeu o celular
para mim. — Tudo bem. Posso fazer isso.
Meus lábios se esticaram, fazendo o peito inchar com orgulho e um
sentimento ainda mais belo.
Ela começou a andar, e os músicos comemoraram.
— Abram espaço, senhoras e senhores — a mulher, provavelmente a
líder do grupo, disse em um inglês carregado de sotaque, mas também de
animação. As pessoas se afastaram, criando um grande círculo não só para
os responsáveis pela música, mas para a bailarina que já se posicionava no
centro.
Tina fechou os olhos por um segundo e respirou fundo, colocando um pé
na frente do outro, as sapatilhas pretas tocando o chão de pedra da rua de
paralelepípedos.
Algumas mãos se levantaram, segurando câmeras e celulares, prontos
para filmar, mas a bailarina os ignorou, focando os olhos verdes em mim.
Fiz um sinal positivo com a cabeça, como quem dizia “você consegue”, e
me preparei para vê-la dançar novamente. O coração batia tão rápido que
até parecia que eu dançaria com ela.
A flautista contou o tempo, e então eles começaram.
Era uma música pouco conhecida e local, animada até, mas que iniciara
lentamente, crescendo o ritmo aos poucos, preparando a melodia e espaço
para a dançarina se acostumar com o compasso da canção. Valentina não
teve dificuldade alguma em acompanhar e, quando todos os instrumentos
tocaram juntos, quando a líder deles incitou a plateia a bater palmas e a
alegria da música cresceu, Tina sorriu.
Sorriu de verdade.
Os pés começaram a se mover com mais velocidade, mas ainda fluindo
com uma naturalidade e um domínio impressionantes. Como se conhecesse
aquela música tão bem quanto sabia seu nome.
Ela estava radiante.
O som das cordas do violino se tornou mais alto, o peso dos instrumentos
se intensificou, envolvendo a bailarina como se a própria música fosse seu
parceiro de dança, girando-a na ponta dos pés com piruetas perfeitas.
Me vi hipnotizado, preso no sorriso, no corpo que se movia com tanta
facilidade no ar, no chão, nos fios curtos que deixavam o rabo de cavalo e
caíam em seu rosto, corado pelo movimento.
Hipnotizado por ela.
A música atiçou aquele lado apaixonado não só pela cultura, pela música
e por pessoas, mas pelo diferente. Pela magia que me envolvera naqueles
últimos dias.
Por ela.
Senti meu coração acompanhar os passos ágeis de Valentina, das batidas
das cordas, acelerando a cada segundo, e a cada segundo eu a queria mais.
Tina tinha razão: seria doloroso demais dizer adeus, mas eu não queria
perder o tempo que ainda tínhamos juntos.
Ela me despertara todas as manhãs, me fizera querer viver e sonhar todas
as noites, e estava colorindo meus dias a cada segundo que passava. Aquela
garota dissipava a escuridão do meu peito pesado e nublado pela culpa e dor
que sentia, como o sol fazia pela manhã, levando embora a madrugada
sombria.
A música acabou, uma segunda começou, e ela se deixou levar outra vez,
parecendo livre, feliz... sonhadora. Quando a terceira terminou e a multidão
explodiu outra vez em aplausos, Valentina finalmente parou no lugar e me
encarou, ofegante, sorrindo abertamente com os olhos brilhantes...
Engoli em seco.
Céus... Eu queria aquela garota.
Tanto que não sabia ao certo até que ponto conseguiria suportar me
manter distante.
Queria tê-la em meus braços de novo, queria saber se o gosto de
beijá-la seria de verão e sonho ou do gelato que ela tomara mais cedo.
Eu a queria.
Que merda eu estava fazendo?
As pessoas bateram palmas, pediram por mais, e ela estava pronta para
dar ao público o que eles queriam. No entanto, sem pensar mais, caminhei
decidido até a bailarina e segurei sua mão.
— Theo? — Me olhou confusa, mas me acompanhou enquanto saíamos
do mar de gente. Eu tinha um destino em mente e não estava sendo muito
racional quando acelerei o passo. — Theo? O que aconteceu?
Ficamos três dias juntos desde o sonho, e prometi que não avançaria o
sinal com Tina, que seria... o cavalheiro que ela merecia e sequer a tocaria,
mas... precisava saber como era beijá-la de novo. Tudo o que eu queria
naquele momento era senti-la mais uma vez.
Nos afastamos das pessoas, chegamos ao outro lado da praça e, quando
viramos a esquina da pequena e pouco movimentada ruela de pedras e casas
com flores nas janelas, parei. Tina também, ainda mais ofegante.
— O que foi? — Me olhou preocupada. — Aconteceu alguma coisa?
Assenti, me aproximando dela.
— Você aconteceu.
— Eu?
Fiz outro movimento com a cabeça e dei mais um passo. Valentina
engoliu em seco, como se lesse os sentimentos nos meus olhos.
— Você é incrível, Tina — falei, entorpecido com o cheiro dela, os
cachos dourados que emolduravam seu rosto lindo. — Se apenas pudesse
ver um pouco do que eu senti quando dançou...
Tina recuou alguns passos, os olhos fixos nos meus, colando as costas na
parede, me fazendo hesitar. Talvez eu a tivesse assustado, mas...
— Você me quer, Theo? — Segurou minha mão, me puxando para mais
perto dela.
— Sabe que sim, bella.
— Eu também quero você.
— Estamos em comum acordo, então — murmurei, rouco. — Não
consigo mais não beijar você.
— Ótimo. — Ela sorriu, descendo os olhos incandescentes para minha
boca. — Pare de não me beijar.
Então a beijei.
Colei os lábios de Tina nos meus e cobrei os últimos dias de atraso,
rodeando sua cintura, ignorando o lado racional que me segurara até ali.
Pessoas passaram por nós, mas não nos importamos. Talvez meia hora
tenha corrido, ou mais; não ligamos. Éramos apenas ela e eu, nos beijando
na pequena rua estreita em algum lugar de Bolonha.

— Obrigada. — Tina deitou a cabeça em meu ombro. Nós dois


estávamos sentados contra a parede no lado de fora na sacada do hotel,
encarando Piazza Maggiore e as luzes que enfeitavam a cidade como
estrelas.
— Por te beijar a tarde toda? — Sorri, rodeando seus ombros
descobertos, ajeitando a alça fina de seu vestido que escorregara, sentindo a
pele dela se arrepiar com o vento da noite e meu toque. — Não por isso,
bella. Sempre que quiser, é só pedir.
Ela soltou um riso baixo e sonolento.
— Por me fazer dançar hoje, Theo. Foi... incrível.
— Deveria dançar sempre. — Beijei o topo de sua testa, o cheiro de
creme que ela usava nos cachos dourados me embalando deliciosamente. —
Você é boa demais para ficar parada.
— Acho que... vou voltar pra academia de dança.
Um sorriso enorme tomou conta do meu rosto, me afastando para olhá-la.
— Eu ficaria absurdamente orgulhoso de você. Mais do que já estou.
— Mesmo?
Dei um beijo rápido em sua boca rosada.
— Di sicuro. Com toda certeza.
Os lábios dela se esticaram, e Valentina voltou a se aconchegar em mim,
abraçando minha cintura.
Não admitiria em voz alta, mas temia o momento em que Tina me
soltaria para valer. Aquela sensação maravilhosa de tê-la se aconchegando
em meu peito, como se eu fosse seu porto seguro, como se confiasse em
mim...
Não duraria para sempre.
— O que vai fazer quando eu for embora? — a bailarina perguntou num
sussurro, como se lesse minha mente.
O tom de voz dela me fez hesitar, mas me concentrei em manter o clima
na sacada agradável.
— Vou beber uma inteira dessa. — Ergui a garrafa de vinho barato que
compramos a caminho do hotel. — E vou berrar os refrãos melancólicos de
Ed Sheeran e James Arthur nas ruas lotadas de Roma.
Uma gargalhada deliciosa deixou sua garganta.
— Eu estou falando sério, Theo! — Cutucou minhas costelas. — O que
quer fazer da vida? Qual é o seu sonho?
A pergunta me atingiu com mais força do que Tina poderia imaginar, mas
fingi que não, suspirando e falando tranquilamente enquanto levava a mão
que estava em seu ombro para acariciar o cabelo sedoso dela.
— Não faço a mínima ideia.
— Huh? Você não tem um sonho?
— Eu te disse, meus dias eram sem graça até você começar a aparecer.
As coisas aconteciam no automático até eu te atropelar.
— Você é bom com história... podia, não sei, ensinar?
— Na verdade, acho que, desde que perdi meu pai, não parei pra pensar
no que faria no futuro. Meu plano era... ajudar a nonna e ficar na loja até
morrer.
— Bom, você me fez dançar hoje... Quero que comece a pensar nos seus
sonhos também.
— Sim, senhora. — Ri, um pouco incerto sobre aquela parte. Apenas
beijei o topo da cabeça de Tina outra vez, a abraçando mais forte. — Por
enquanto, estar aqui com você é o suficiente.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, então ergueu o rosto, antes
apoiado no meu peito, para me encarar. Havia um brilho divertido em seus
olhos esverdeados.
Um sorriso travesso em seus lábios.
— Ou você pode escrever um livro — provocou. — Já que vive dizendo
essas coisas bregas pra mim.
— Um livro? Gosto da ideia.
— Certo? — Passou a palma da mão no ar, sinalizando um letreiro. —
“Sonho de um dia de verão”, o que acha?
Ri.
— Gosto do trocadilho. — A beijei de novo.
— Eu olhava ela, e ela olhava eu... — Cantarolou em outra língua, em
português, como a vira falar com Gina algumas vezes, e eu franzi a testa.
Tina explicou: — É uma música. Sonho de uma noite de verão... Eu olhava
ela, e ela olhava eu, olhando o lado de lá... Cantei essa música pra uma
peça de Sonho de uma noite de verão na escola.
— Hm... Conte-me mais sobre essa Valentina. Ela cantava melhor?
Recebi um tapa no ombro.
— Eu não canto tão mal, ok? Minhas primas e eu tínhamos uma banda.
Gargalhei.
— Por favor, me diz que você não era a vocalista.
— Não. — Seus ombros caíram, desanimados. — Era minha prima,
Helena. Ela canta muito bem, eu era a coreógrafa.
— Que alívio! — brinquei, e Tina me olhou feio.
A bailarina suspirou, voltando a deitar a cabeça em meu peito, tracejando
um caminho lento com seus dedos em meu braço.
— Lena vai surtar quando eu contar sobre minhas férias na Itália. Ela,
sim, acreditaria em fontes mágicas e sonhos sem sentido.
— Tenho certeza que é uma pessoa incrível. — E que Tina sentia falta
dela, já que sempre falava de Helena. Sabia que a distância entre as duas a
machucava.
Valentina se mexeu, erguendo o celular.
— Quero tirar uma foto com você. Ah, quero que mande um áudio pra
ela, falando com voz de mafioso “questo edifício é mio”. — A jovem
engrossou a voz, rindo em seguida, me fazendo questionar se ela havia
tomado vinho de mais. — Ah, tem que falar “Com cinco colheres”
também.
Riu de novo.
— Consigliere?
— Nãooo! Com. Cinco. Colheres.
Fiz careta, e ela deu dois tapinhas em meu braço.
— É de Vincenzo. Ela vai entender.
TINA

Localizei Theo na multidão lá embaixo. A casa de Julieta era


realmente muito visitada, e não era lá uma área tão espaçosa para caber
tranquilamente aquele tanto de gente.
Mas avistei ele mesmo assim, e o sorriso em meu rosto foi inconsciente.
— Oh, onde está o meu Romeu? — Me apoiei na balaustrada pálida, me
inclinando para que o italiano me visse.
Funcionou, pois Theo seguiu o som da minha voz e seus olhos
encontraram os meus.
Nós não tentamos esconder mais: a forma como olhávamos um para o
outro, como queríamos um ao outro... Não escondemos. Depois daquele
beijo em algum beco em Bolonha, as coisas ficaram... diferentes. Intensas.
E eu jamais pensei que meu coração queimaria e desejaria tanto alguém.
Era perigoso... arriscado... Mas eu queria mesmo assim.
Fiz um sinal para que ele me esperasse onde estava e voltei para dentro
da casa lotada, desviando das pessoas para poder descer até o pátio de
pedras onde meu acompanhante aguardava.
Acordamos quatro horas da manhã para que pudéssemos chegar cedo e
aproveitarmos bem Verona. De todas as cidades que visitamos, aquela era a
que eu queria mais conhecer.
Sinceramente, não me interessava muito pela história de Romeu e Julieta
em si; achava que as pessoas romantizavam demais aqueles dois quando
toda a jornada não passava de caminhos trágicos. Mas estar ali fez parecer...
romântico, sim. Tudo aquilo.
As paredes da entrada repletas de post-its coloridos contendo nomes de
casais e pedidos silenciosos por um verdadeiro amor, iniciais de jovens
apaixonados ou dedicatórias aos amores que se foram.
“Lindo e trágico, como Romeu e Julieta”, Theo dissera.
E de fato era.
Procurei pelo rosto conhecido ao alcançar o pátio e olhei para a estátua de
Julieta onde avistara Theo pela última vez, mas ele não estava mais ali.
Odiava a muvuca de gente. Alguns eram grosseiros ao empurrar e pedir
licença, mas fora tranquilo mais cedo, quando Theo segurara minha mão e
me explicara toda a história do trágico casal, da jovem que diziam ter
morado ali, das tragédias da cidade... Mas sozinha, sem ele, me dava conta
de como ficava perdida.
— Me desculpe — pedi para uma mulher que trombou em mim,
ignorando que foi ela a me empurrar primeiro.
Recuei alguns passos e senti uma mão grande rodear a minha, me
puxando para fora do lugar.
Quando alcançamos a rua menos movimentada, escutei a risada deliciosa
preencher o local.
— Não posso te deixar sozinha por um minuto sequer, bambina. — Theo
rodeou minha cintura e depositou um beijo em minha boca, sorrindo.
— Onde você foi?
— Comprar nosso almoço. — Ergueu a sacola pálida de papel que
segurava. — Tem uma feira aqui perto que vende um gnocchi[29] incrível.
— Hm.... — Sorri, entrelaçando nossos dedos ao começar a andar pela
rua de paralelepípedos. — Podia ter me esperado, sabia? Eu estava
acabando.
Pedira a Theo que esperasse antes de deixarmos a casa de visitação
porque queria escrever uma carta para Julieta. Quando o italiano revelara
que realmente existia um clube que respondia às cartas, não quis perder a
chance de escrever uma também.
Mas Theo não podia ler.
Não ainda.
Se... funcionasse. Se as secretárias de Julieta realmente me
respondessem...
Bem, precisaria de um tempo para minha carta encontrar o destino dela.
Acabei perdendo Theo de vista antes que pudesse colocar o envelope na
caixinha vermelha.
— Você estava tão concentrada que não quis te atrapalhar — disse, e
então senti seus olhos observadores em mim, me estudando. — O que
escreveu?
— Perguntei quanto elas ganham, talvez compense vir trabalhar na casa
de Julieta. — Dei de ombros.
Theo riu.
— Não vai me contar, não é?
— Se elas responderem... então você vai saber. Um dia — prometi.
— Certo, senhorita misteriosa... — Levou minha mão entrelaçada à sua
até os lábios. — Vamos almoçar, então.

— O quê? Vocês ainda não dormiram juntos?!


Senti o rosto esquentar e fiquei agradecida por Theo estar no banho.
— Não. — Me virei no colchão, abraçando um dos vários travesseiros
disponibilizados no hotel. — E não comece com este assunto.
— Mas já faz seis dias! — Gina fez um som engraçado, surpresa. —
Vocês estão dormindo na mesma cama?
— Giovanna — grunhi, fechando os olhos.
— Só estou chocada, só isso. Ninguém consegue ser tão forte assim.
— Não pensamos só nisso, sabia? Não somos como você. Existem coisas
que importam mais.
— Mesmo? Tipo o quê?
— Não quero falar sobre isso. — Encarei meus pés descalços, as pernas
esticadas sobre o lençol branco.
— Certo, mas... — Ela soltou um suspiro desanimado. — Já entendi.
— O que você entendeu?
— As coisas esfriaram entre vocês, né? Não tem química...
Bufei.
Sim, ela era minha melhor amiga. Sim, conversávamos sobre aquele tipo
de assunto com naturalidade. Não, ela não entenderia o que eu estava
sentindo.
Giovanna tivera muitos namorados, não sofria muito com términos, não
compreenderia...
Mas eu precisava mesmo desabafar com alguém.
Observei a porta trancada do banheiro, o som da água caindo, então
troquei o inglês que usávamos pelo meu velho e enferrujado português para
evitar que Theo entendesse caso ouvisse.
— Eu...
Antes que pudesse anunciar minha sentença, Gina compreendeu meu
silêncio hesitante e soltou primeiro:
— Você está apaixonada por ele! — Arfou. — Ah, Tininha...
Choraminguei, abraçando o travesseiro.
— Como eu não me apaixonaria, Gina? Estou com ele vinte e quatro
horas por dia. Conversamos o tempo todo, ele me faz sorrir o tempo todo —
finalmente disse, com voz sofrida. — Theo me fez dançar numa praça
lotada, me fez ensinar ele a dançar quando voltamos para o hotel. Ele
sempre pergunta se estou bem e se interessa pelas coisas que digo. Ele é
romântico e...
— É um gato.
Ri, ainda com aquele aperto no peito.
— Ele é bem mais que isso, Gih... Ele faz meu coração bater rápido
demais e, quando me beija, parece que estou nas nuvens. — Inspirei fundo.
— Não é como se não quiséssemos avançar para o outro nível, é que... se
fizermos isso... não vai ter volta.
Minha amiga ficou em silêncio.
— Eu gosto dele de verdade. Não quero me arrepender de ter vindo, mas
foi burrice deixar meu coração tão vulnerável sabendo que vou sofrer no
final.
— Não antecipe nossa volta pra casa, Tina — ela disse, usando aquele
tom de voz sábio que, de vez em quando, dava as caras. — Você precisa se
arriscar. Grandes histórias de amor acontecem quando nos arriscamos.
Você e Theo ainda podem ter uma história bem linda juntos.
— Olha só quem está falando — resmunguei. — Quando voltarmos, vai
contar para o Jemmy que quase saiu em uma viagem com o Paolo?
Foi a vez dela de bufar.
— Seu irmão não tem nada a ver com o que fiz ou deixei de fazer em
Roma. Não temos nada.
— Porque você não quer. — Porque tem medo, foi o que eu realmente
quis dizer.
Eu não era burra; sabia da história que minha amiga e meu irmão
insistiam em esconder dos outros. Já o pegara cochichando com Gina de
madrugada diversas vezes, e ambos viviam brigando um com outro.
Jeremmy, sempre cuidadoso e protetor, ficava horas acordado andando de
um lado para o outro quando minha amiga não voltava para casa.
Quando ousara perguntar a ele o que havia entre os dois, o garoto
respondera um irritado “é complicado”.
Quando perguntara a Giovanna o que ela sentia por ele ao ver minha
amiga bêbada, ela choramingara a mesma coisa.
— Estávamos falando sobre você querer dar uma de boa moça e não
dormir com o Theo. Certo. Continuando...
Fiz uma careta, mesmo que ela não me visse.
— Decidimos que não iríamos ultrapassar essa linha. E temos feito isso
bem desde que a viagem começou. — Bom, quase. Ontem quase
ultrapassamos o limite, chegamos bem perto na verdade, mas Theo pulou da
cama antes que as coisas esquentassem. Decidimos descer e dar uma volta
para acalmar os hormônios. Deu certo. Por ora. — Faltam seis dias para
voltarmos para Roma. Só... quero aproveitar o tempo com Theo. Sem
avançar o sinal vermelho, porque isso só me faria gostar mais dele.
— Entendi... — O que ela realmente queria dizer era “Sabe que isso não
vai adiantar, né?”.
— Então vamos nos despedir e voltar a viver nossas vidas — murmurei
melancólica, tentando convencer a mim mesma de que era aquilo mesmo.
Gina ficou calada por um tempo, mas no fim disse:
— Amiga, você está ferrada.
— Eu... — Parei quando a porta do banheiro se abriu, revelando o vapor
que restara do banho e aquele cheiro delicioso de sabonete. Theo enxugava
os fios do cabelo molhado, a camisa de malha fina colada ao corpo... —
Preciso desligar — balbuciei, distraída.
— É a Gina? — ele perguntou, alheio à própria beleza.
— Huh... — assenti.
— Posso falar com ela?
Aquilo me trouxe de volta dos pensamentos inadequados e eu pisquei,
surpresa.
Sempre revezávamos de noite nas ligações. Primeiro ele falava com
nonna, depois eu conversava com Gina. Isso depois de relatar o dia para a
minha mãe, que nunca ficava satisfeita com as desculpas esfarrapadas de
não estar com minha amiga por perto.
Theo nunca pedira para conversar com Gina.
— Tina? — Tombou levemente a cabeça, me encarando. Esperando.
— Huh? — O celular. Ah! — Certo, claro. Aqui...
Entreguei o aparelho para ele, que agradeceu, apontando a porta que
levava para o corredor lá fora, indicando que aquela era uma conversa
particular.
Franzi a testa, ansiosa de repente.
Curiosa.
— Ciao, bambina! — começou bem-humorado, fechando a porta atrás de
si.
Contive a vontade de sair da cama e ir bisbilhotar, mas seria errado,
mesmo que a curiosidade me corroesse.
O que ele queria conversar com Gina que eu não poderia escutar?
Seriam conselhos amorosos também?
Não era muito inteligente pedir conselhos àquela garota inconsequente. E
Theo não precisava disso, ele sabia o que dizer na hora certa: coisas bregas
e românticas que faziam meu coração acelerar e meu corpo todo reagir...
Também sabia como beijar e, mesmo que dissesse que só tivera uma
namorada e não tinha tanta experiência no assunto, suas iniciativas, toques e
palavras murmuradas indicavam o contrário.
O que seria, então?
Me sentei na cama. Dois minutos depois, fiquei de pé. Mais cinco
minutos e eu já ziguezagueava pelo quarto, inquieta.
Antes que pudesse ceder ao desejo de escutar pela porta, ela se abriu, e
Theo apareceu sorrindo, agradecendo antes de finalizar a ligação.
Ele me devolveu o celular, rindo.
— Ela é engraçada.
— O que estavam conversando? — Estreitei os olhos, desconfiada.
Theo sequer hesitou, passando a toalha sobre o cabelo úmido uma última
vez antes de jogar o pano branco no cesto de roupa suja do hotel.
— Pedi um relatório da loja, algumas perguntas sobre a nonna. — Deu de
ombros, se aproximando de mim e enlaçando minha cintura, me puxando
para perto dele. — Minha avó costuma mentir sobre a saúde dela também,
então pedi a Gina que me contasse se algo estivesse acontecendo.
Acreditei naquela parte, mas sabia que não era tudo.
— Está escondendo o que de mim? — Fechei a cara. — Disse que não
teríamos segredos um com o outro.
Ele riu.
— Hm... se eu contar, perde a graça — completou, com um sorriso sem
vergonha: — E se eu revelar o que Gina me disse agora há pouco... —
Roubou um beijo, e outro. — Um de nós dois vai acabar dormindo no sofá.
Por puro embaraço.
Corei.
— Ela não te aconselhou a...
— Ah, Gina tem ideias criativas. — Theo me beijou de novo, rindo. —
Ela podia escrever um livro.
— Ou não... — Fiz careta.
A gargalhada do jovem reverberou pelo quarto, deliciosamente
aquecendo meu coração.
Estiquei os braços, contornando o pescoço de Theo, acariciando aquele
ponto sensível da nuca dele com a ponta dos dedos.
— Eu estava pensando — comecei, deixando a ligação dos dois de lado.
Talvez Gina tivesse contado a ele sobre meu aniversário em cinco dias. Ou
talvez repetido o que me dissera sobre não antecipar nossa volta para casa.
Perguntaria a ela depois. — Podemos ficar em Verona?
Theo franziu a testa.
— Não quer conhecer Veneza?
— Bom... sim. Mas estou cansada — confessei. — Tem sido incrível,
mas... Eu preciso dormir, Theo.
Ele riu.
— Podemos sair mais tarde amanhã, se quiser. — Tocou meu rosto,
afastando aquele cacho que ele confessara ser sua desculpa para acariciar
aquele ponto de pele em minha bochecha, seguindo vagarosamente para o
maxilar e o pescoço.
— Não... — Inspirei, realmente cansada do ritmo de viagem que
tínhamos adotado: saindo de madrugada, chegando em outra cidade pela
manhã, andando o dia todo, muita gente e muito calor.... Fora incrível, cada
lugar que paramos, mas... — Eu quero ficar aqui e aproveitar os últimos
dias com você. Sem correr para visitar todos os lugares em um único dia ou
andar por horas até as pernas reclamarem... Só... aproveitar Verona. Você e
eu. Acordar tarde e fazer hora na cama... Conversar até tarde da noite sem
me preocupar em levantar cedo... Sair para almoçar em algum lugar que
você quiser me levar, sem pressa.
Os olhos lindos e pretos como noite encolheram quando ele sorriu.
— Eu realmente gosto da ideia.
— É?
— Huh — assentiu. — É um plano perfeito.
Sorri.
— Então... Se vamos ficar, podíamos aproveitar a piscina do hotel... —
sugeri, com um leve tom de provocação na voz.
— Aqui tem piscina?
— Huh — confirmei.
— Mas não jantamos ainda e são nove e meia da...
— Esse é o horário perfeito! — Contornei seus ombros, prendendo meus
braços ao redor do pescoço dele. — Não vai ter quase ninguém lá.
Theo me observou por alguns segundos e me puxou para mais perto, um
sorriso maroto brincando nos lábios, que eu sabia bem demais: eram muito
macios.
— Quem diria! Valentina Ferreira vivendo a vida perigosamente...
Gargalhei.
— Eu só... — Dei de ombros. — Quero aproveitar bem o agora que a
gente tem. E tá bem quente hoje, você não acha?
— Muito. — Me beijou devagar, mordiscando meu lábio inferior. —
Muito quente.
— Não vai me contar o que a Gina disse na ligação? — Voltei a
perguntar, fechando os olhos, deixando que Theo me puxasse em direção à
saída do quarto. Ignorei que ambos estávamos de camisa e calça moletom,
de pijama, para descer até a área de lazer do hotel.
Aquele sorriso do rapaz foi diferente, insinuativo e... algo mais. Um tipo
de sorriso que eu desejava ser a única a receber.
— Ela me ensinou algumas cantadas que podem funcionar com você —
brincou, se afastando para entrelaçar nossos dedos. — Vou testar algumas
dicas agora.
Então abriu a porta, me puxando para fora do quarto.
THEO

Valentina me encarou boquiaberta no lugar onde estava, surpresa


quando, depois de nos questionarmos se de fato era mesmo uma boa ideia
pular na piscina, eu simplesmente tirei a camisa e a calça para me jogar na
água fria.
— Não pode amarelar agora, bella. — Sorri, passando as mãos no rosto
para afastar as mechas do cabelo dos olhos.
— E se a gente não puder usar a piscina a essa hora? — questionou,
incerta, olhando para a portinhola pela qual passamos alguns minutos antes.
— E se formos multados?
Ri.
— Tem medo de ser pega usando a piscina do hotel pelo qual pagou, mas
não tem medo de roubar uma moeda da Fontana di Trevi?
Ela fez careta, se aproximando da borda.
— Naquele dia, eu... não sei o que deu na minha cabeça.
— Ninguém vai te multar e, de qualquer forma, acredito que o lugar seja
livre pra qualquer um usar.
— Então por que está vazio? — cochichou, levando as mãos à barra da
camiseta cinza que usava.
Dei de ombros, me aproximando dela na água. Estávamos do lado mais
fundo, uns quatro a cinco metros de profundidade.
— Está com medo? — provoquei. Estiquei a mão. — Não se preocupe,
seguro você.
Outra careta, então Tina simplesmente puxou a camisa, revelando a peça
íntima de renda preta, simples, porém...
Engoli em seco.
— Eu sei nadar — ela retrucou, indiferente ao que fazia naquele
momento. A jovem removeu a calça de moletom rosa que usava, a pele
completamente exposta, a não ser pelo conjunto preto que contrastava com
o tom pálido, os cachos dourados que caíam em seus ombros.
Foi impossível não correr os olhos pelo corpo de Tina, impossível não
notar as curvas e como era... linda.
Me aproximei mais, notando maravilhado que, assim como os braços, a
barriga de Tina era enfeitada por pintinhas também. Espalhadas, como se
fossem pequenas estrelas perdidas. Não sardinhas, mas pintinhas solitárias e
castanhas distribuídas por suas pernas, coxas, barriga, ombros...
— Tão calado... — Ela sorriu, sentando na borda, colocando os pés na
água. Tina apoiou as mãos no granito que rodeava a piscina e me encarou
de um jeito novo. Um convite.
A alcancei devagar, observando cada detalhe dela que fez meu coração
iniciar uma batida desenfreada no peito. A bailarina impulsionou o corpo
para dentro da água quando minhas mãos tocaram sua cintura e a puxaram
para mim, as dela rodeando meus ombros para se apoiar.
Os olhos esverdeados não deixaram os meus enquanto a guiava para o
centro da piscina, a água ondulando e nos sustentando.
— Você é linda — murmurei, rouco.
Suas bochechas adquiram um delicioso tom de rosado. E não foi pelo que
eu disse, já que não tinha problemas em elogiá-la sempre que surgia a
oportunidade, mas pelo tom que usei na voz dessa vez.
Valentina contornou as pernas em meu quadril, os braços em meu ombro
ao me beijar lentamente e cochichar:
— Você também não é de se jogar fora.
Gargalhei, a abraçando mais forte.
— Pare de me provocar, Valentina — grunhi de frustração, arrancando-
lhe uma risada alta.
— Não estou fazendo nada — continuou rindo enquanto permitia que eu
depositasse um beijo em seu pescoço. — E estamos em um local público,
controle-se.
— Ninguém está vendo — retruquei sobre sua pele fria.
— Mesmo assim... — Suspirou, inclinando a cabeça para trás ao me dar
acesso a ela, ao pescoço pálido. Rocei levemente a ponta do nariz ali,
subindo vagarosamente e...
A encarei divertido quando Tina encolheu, passando a bochecha no
ombro como se tentasse se livrar do arrepio em seu pescoço no momento
em que a beijei naquele ponto sensível próximo à orelha.
— Não pode me beijar aqui... — Fez uma careta fofa.
— Não? — Ergui a sobrancelha.
— Não. — Mordeu o lábio, me olhando irritada, mas apertando suas
pernas ao meu redor. Ela se contorcia, quase — quase — como alguém que
se segurava para não pedir mais.
— Perché no?[30] — Contive o sorriso, tombando levemente a cabeça.
— Porque... — Ela corou. — Eu me arrepio toda. E... me faz querer...
coisas.
Dessa vez, meus lábios não me obedeceram, se curvando imediatamente
para cima.
— Gina tinha razão, então.
Tina fechou a cara, sendo impedida de se afastar quando apertei a pressão
dos meus braços ao redor dela dentro da água.
— Pensei que você fosse um santinho. — Bufou.
— Tenho meus momentos. — Dei de ombros.
— Você fazia essas coisas com sua ex?
— Pular com ela em uma piscina fechada para os VIPs sem permissão da
gerência? — Questionei calmamente, nos levando para o centro da piscina.
— Não, nunca.
Os olhos dela se arregalaram.
— Área VIP? — exclamou apavorada, já ameaçando nadar para fora o
mais rápido possível.
Gargalhei, mantendo-a presa ao meu corpo.
— Não vão te prender por isso, relaxa...
A voz dela ficou mais fina.
— E você não está brincando? — choramingou. — Não acredito que me
deixou entrar na piscina, Theo! Me deixa sair.
— Se alguém aparecer, eu explico.
— Me. Deixa. Sair!
Ri.
— Quando si è in ballo... bisogna ballare — recitei, aproximando o rosto
do dela, afundando-nos um pouco mais e sentindo a água agora morna tocar
meu queixo.
Tina não relutou para sair, mas fez careta quando falei.
Sorri ao traduzir.
— Quando se está numa dança, é para dançar — murmurei baixinho,
como se pessoas estivessem ali nos assistindo. — Ou, como outros dizem,
“quando se está na chuva, é para molhar”.
— Não me venha com ditados, Abertinalli! — Ela me olhou emburrada.
— Vamos sair daqui antes que...
— Já estamos aqui. Vamos aproveitar mais um pouco, Srta. Toda
Certinha — brinquei, depositando beijos molhados e frios em sua bochecha,
queixo, boca... — Eu pago se nos multarem.
— Theo... — choramingou.
— A ideia foi sua, sabia? — retruquei num sussurro, mordiscando o lábio
macio, provocando-a ainda mais.
— Eu não sabia que era uma área VIP!
— Então comece a ler as placas.
— Está em italiano! — chiou de forma engraçada.
Gargalhei.
— E em inglês na parte de baixo.
Ela bufou.
— Vamos sair.
— Vamos ficar, só mais um pouco. — Afastei a mecha teimosa do rosto
dela. — Vamos retornar para Roma em breve, você pode voltar a ser
cuidadosa lá.
Revirou os olhos.
— Gina também te ensinou como me tirar do sério?
— Huh — assenti. — E ela disse como era divertido. E ela está certa.
— Vou sair — anunciou, decidida.
Continuei segurando-a ali.
— Só mais trinta minutos.
— Dez.
— Vinte. — Franzi a testa. — Per favore, bella...
Tina relutou, mas usei minha carta especial. Outra valiosa lição de Gina:
Valentina não conseguia resistir quando eu falava em italiano com ela.
A expressão no rosto da bailarina me indicava aquilo mesmo.
— Huh?
— Droga, Theo! — praguejou. Depois de alguns segundos pensando,
bufou. — Tá! Só mais vinte minutos!
Sorri, pensando em outras inúmeras palavras do meu vocabulário que
poderia usar para persuadir a moça.
Fiz uma nota mental de que precisaria agradecer à Gina depois.

— Eu quis fazer nado sincronizado uma vez — Tina confessou depois de


alguns minutos (mal notando que o prazo prometido há muito já havia
passado). Ela deslizava os dedos frios, e agora enrugados pelo tempo na
água, em meu rosto, afastando a franja preta de um dos meus olhos,
mantendo a mão em minha nuca. — Mas a Tina de dez anos preferia os
tules e sapatilhas a roupas molhadas e toucas de silicone na cabeça.
Ri.
— Acha que um dia vou poder ver você se apresentando em um palco?
— perguntei, diminuindo o tom de voz. O lugar estava quieto e vazio, o eco
reproduzindo facilmente o som dos nossos movimentos.
Pela primeira vez desde que a conheci, a bailarina não hesitou ou mudou
sua expressão quando mencionei o balé.
— Hm... Não sei. Talvez. — Inspirou fundo e abriu um pequeno sorriso.
— Quero pensar no que vou fazer apenas quando o momento chegar.
— Você... vai falar com seu pai?
— Não quero — disse baixinho. — Mas vou... por mim. Quero
finalmente dar a ele a chance de explicar, mesmo não querendo realmente
ouvir. Acredito que esse seja meu primeiro passo de volta para a dança:
colocar um ponto final nisso. Na raiva que sinto por ele. Mas não significa
que eu...
— Perdoar não é esquecer — a interrompi tranquilamente. — Perdoar é
lembrar sem sentir dor.
— Acho que precisa ouvir seus próprios conselhos, Sr. Abertinalli. —
Tina voltou a acariciar meu rosto, vez ou outra enchendo a mão em concha
de água para jogar distraidamente em meu ombro.
— Eu perdoei meu pai. — Tinha me dado conta de que o que sentira fora
mais saudade do que raiva: saudade da minha mãe que partira nova demais
e saudade do meu pai, que ainda estava ali comigo, mas não parecia
enxergar isso.
A jovem em meus braços me lançou um olhar envolto por tristeza e
bondade.
— Você, Theo — murmurou. — Precisa perdoar você.
— Eu... — Desviei os olhos. — Estou trabalhando nisso.
Ela me estudou um pouco. Procurou saber se era apenas uma desculpa
para fugir do assunto, mas já parecia me conhecer bem o suficiente para
saber que eu dizia a verdade.
— Desde que comecei a sonhar com você... estou trabalhando nisso.
— Prego[31], então. — Sorriu com um ar mais descontraído, se inclinando
para segurar meu rosto com ambas as mãos e beijar minha testa por uns três
segundos. Por fim, me olhou com um brilho diferente na linda face e disse,
mais séria: — Você é a pessoa mais bondosa que já conheci, Theo. É
divertido, doce, e se preocupa tanto com a nonna... Não somos perfeitos,
sabe? Mas você se esforça e está no caminho certo. Só... continue.
Ignorei o aperto na garganta ao assentir.
— Eu sou péssima com discursos motivacionais, desculpa. — Tina
corou.
Senti os cantos da minha boca se esticarem antes de depositar um beijo
rápido na dela.
— É melhor do que imagina — sussurrei, selando nossos lábios por
breves segundos. — Mio raggio di sole.
Um suspiro doce escapou de Tina.
— Adoro quando me chama assim, sabia? — sussurrou sobre os meus
lábios. — É sexy.
— É? — Diminuí o tom de voz também, sentindo aquele aperto das
coxas de Valentina em meu quadril. A água, a essa altura, já estava morna e
deliciosa, como um véu que nos carregava e balançava distraidamente pelo
lugar. — Vou te chamar assim com mais frequência, então.
O ar parecia diferente também. Por um segundo mágico, não havia nada
além da jovem bailarina em meu colo.
— Sabe... — Tina inclinou a cabeça, soltando um suspiro que percorreu
as partes mais perigosas do meu corpo. — Sempre me fantasiei sendo
arrebatada em um beijo por um moreno misterioso em águas estrangeiras.
Uma gargalhada baixa escapou de minha garganta. Perguntei sobre sua
pele:
— Nunca realizou esse seu sonho malicioso?
— Nunquinha... — Fez biquinho.
Sorri preguiçosamente ao erguer o rosto para o dela. Então, aproximei
vagarosamente meus lábios dos de Tina:
— Bem, bella ragazza — murmurei, os olhos presos nos da jovem que
pareceu segurar a respiração. — Permita-me ser o primeiro.
E, simples assim, a temperatura da água pareceu subir rápido demais; o
corpo de Tina estava ainda mais firme e impossivelmente perto do meu, e a
bailarina não reclamou quando uma de minhas mãos encontrou caminho em
sua cintura, os dedos afundados na pele arrepiada. A outra mão permanecia
em suas costas, a mantendo ali, perto o suficiente, mas não próxima o
bastante.
Àquela altura, já havíamos alcançado a borda no outro lado da piscina.
Meus pés tocaram o chão, mas Valentina não tirou as pernas do meu
quadril. Muito pelo contrário: ela as contraiu, me puxando contra o seu
corpo, como se também quisesse dissipar qualquer espaço que ainda
houvesse entre nós.
Meu nome deixou seus lábios quando minha boca percorreu uma trilha
por seu queixo, pescoço e ombro... descendo mais.
— Theo... — sussurrou, entrelaçando uma das mãos às mechas úmidas
do meu cabelo. Quando a beijei outra vez, sobre o coração, Tina arqueou o
corpo com um pedido silencioso para que eu continuasse.
E eu continuei, perigosamente mais para baixo, para o ponto
sensível que ela queria que eu tocasse sobre a peça preta rendada e
encharcada.
Ela gemeu baixinho, quase choramingou para que eu não parasse, e foi o
som mais perturbador e lindo que eu já tinha ouvido...
Foi esse som que me incitou a carregá-la para fora da água e deitá-la na
pedra fria em volta da piscina, mas também foi ele que me alertou de que
não seria o certo, ainda que eu a levasse de volta para o quarto, ainda que
fizesse amor com ela pela primeira vez e não me arrependesse disso...
Não seria o certo.
Parei.
Apoiei a testa na sua, fechando os olhos por um momento para recuperar
o ar, tranquilizar o coração. Ou tentar, porque eu ainda a tinha nos braços.
— Temos que parar... — ela disse, igualmente ofegante, percebendo o
que corria em meus pensamentos.
Um som rouco e talvez frustrado deixou minha garganta.
— Odeio pensar nessas horas... — Sorri, finalmente a encarando. Afastei
as mechas loiras molhadas de seu rosto. — Eu quero.
— Eu também...
— Mas não vamos. — Uma palavra dela, e eu a levaria para o quarto.
Uma palavra dela, e eu deixaria Valentina fazer o que quisesse comigo.
A garota me encarou por alguns segundos em silêncio, seu peito subindo
e descendo, subindo e descendo, se acalmando devagar.
Então murmurou com um meio-sorriso:
— Ainda não.
Assenti, depositando um beijo demorado em sua testa.
— Vamos devagar — pediu Tina, me abraçando, deitando a cabeça em
meu ombro.
As palavras não ditas eram claras. Talvez eu normalmente não as tivesse
notado no tom hesitante de Valentina. Porém, depois da ligação com
Giovanna, entendia.
“Tina, apesar de parecer forte e decidida, tem medo de se arriscar”, a
amiga da bailarina me dissera mais cedo, mais séria do que eu jamais pensei
que ouviria. “Ela gosta de você, mas tem medo de, assim que deixar a Itália,
perceber que tudo foi apenas um romance de verão. Uma vela acesa que,
por alguns dias, queimou e queimou, mas vai se apagar de vez em algum
momento. Se você a quer de verdade, Theo... Bem, só seja paciente.
Conheça esse lado dela, aventureiro e romântico, a faça rir e se desafiar. O
melhor lado de Valentina você conhecerá agora. Então seja inteligente e
paciente e, quando tiverem que se decidir, decidir algo que mudará o
destino de vocês, estejam realmente prontos para ficarem juntos. Mesmo
longe.”
Acariciei os cabelos molhados, as costas que se arrepiaram ao vento
razoavelmente frio se comparado ao mormo da água.
— Huh — assenti. — Vamos devagar.
Depois de alguns minutos abraçados, levemente ondulando para o meio
da piscina outra vez, Tina se afastou de mim, desenroscando as pernas para
dar braçadas suaves para trás.
Um sorriso travesso enfeitou seus lábios.
— Acho que um de nós vai precisar dormir no chão hoje. Sabe, só por
garantia.
Ri.
— Você tem uma postura e uma coluna melhores que a minha. —
Dei de ombros, puxando a água para avançar sempre que Tina recuava,
como na dança que ela me ensinara. Três passos para frente, enquanto a
garota dava três passos para trás. — Você fica com o chão. É o justo.
A bailarina abriu a boca, fingindo ofensa.
— E eu aqui pensando que você era um perfeito cavalheiro...
— Você vai mesmo me deixar dormir no chão, raggio di sole? —
Franzi o cenho, com um biquinho que a fez rir.
Avancei, e ela recuou suave e melodicamente.
— Podemos montar uma barricada no meio do colchão — sugeriu
divertida, o rosado intenso, resultado de nosso pequeno momento, enfim
deixando suas bochechas. — Para nos protegermos um do outro.
— Sim. Seus beijos são muito perigosos.
Outra risada rouca e deliciosa, e Tina se afastou com mais braçadas. A
observei se mover no azul da piscina como um predador que estudava sua
presa. Ela percebeu, me provocando com seus sorrisos, esperando que eu
atacasse.
Mas não me movi.
Ela mergulhou, imergindo mais perto de mim, a respiração tocando a
minha. O que antes eram cachos loiros-claros agora pareciam mechas mais
escuras, escorridas e compridas. Pequenas gotas cristalinas enfeitavam os
cílios negros de seus olhos incríveis.
— Você também — disse baixinho, séria, desviando o olhar para minha
boca.
Franzi a testa, confuso.
— O quê?
— Você também é meu raio de sol, Theo. — Me encarou. — O mais
lindo deles.
Antes que pudesse puxá-la contra o meu corpo, Valentina recuou, com
um sorriso arrebatador nos lábios avermelhados. E antes que eu conseguisse
alcançá-la de novo, a jovem mergulhou, descendo até o mais profundo da
piscina, exibindo o corpo, que diminuía a cada braçada.
Meu sorriso morreu lentamente à medida que eu me dava conta da
realidade: em poucos dias, ela voaria para longe e não retornaria para meus
braços tão cedo.
TINA

Me encarei no espelho uma última vez, de repente nervosa demais. Meu


coração batia rápido e ansioso no peito.
Não havia motivo para ficar assim por um... encontro. Eu passara os
últimos dias com Theo; mais do que isso: compartilhamos a mesma cama
por uma semana inteira. Apesar de termos estabelecido um limite, nos
aproximamos muito... intimamente... fisicamente... Éramos amigos...
Muito mais do que isso.
Suspirei.
Não era só porque Theo declarara pela manhã que, naquela noite,
teríamos um encontro de verdade, diferente das pizzas e vinho que
dividíamos nas sacadas ou no chão do quarto dos hotéis em que ficávamos.
“Um encontro romântico, digno de Verona”, ele prometera. Não... Meu
estômago revirava com a expectativa da nossa despedida.
Nosso último encontro.
Partiríamos para Roma na manhã seguinte.
Aquela seria nossa última noite juntos. Theo e eu prometemos não pensar
muito no que aconteceria, no que faríamos. Um fio primitivo cantarolava
para mim desde que aquela viagem começara que era irresponsabilidade
nossa, que agir como se o futuro não carregasse consequências era burrice,
que beijar Theo e permitir que ele me tocasse achando que meu coração não
se envolveria... era tolice.
E era, porque naquele momento, trancada no banheiro do quarto de hotel,
encarando meu reflexo no espelho, eu sentia uma dor estranha intensificar a
cada minuto, ciente da minha partida.
Apostei meu coração com Theo e perdi.
O vazio que eu sentiria quando entrasse no avião... Não queria pensar
nisso. No que realmente éramos um para o outro.
A magia daquela viagem estava, enfim, acabando.
Passei as mãos no corpete do vestido vermelho que comprara em uma
lojinha próxima à Piazza delle Erbe. Apesar de ser simples, a peça sugara
toda minha economia para aquela viagem, mas eu decidira me dar aquele
presente quando colocara os olhos nela na vitrine.
Era meu aniversário, afinal.
O decote em coração superestimava meu busto, fazendo parecer mais
volumoso do que realmente era. O vestido estava perfeitamente ajustado,
como se o estilista tivesse pensado em mim ao desenhá-lo. A saia rodada e
lisa caía até os joelhos como um véu sedoso e leve, com a fenda revelando
um pouco mais da pele, minha perna e coxa facilmente expostas se eu
ousasse dançar com aquela roupa.
Não havia nada melhor do que minhas sapatilhas pretas; as comprara em
um evento de sapateado que acontecera em Nova Iorque simplesmente
porque gostara do design, então colocara os calçados como complemento
do look. Não faziam jus ao vestido vermelho, mas eram o melhor que eu
tinha para usar naquele momento.
Alguém bateu na porta, não a do banheiro onde eu estava, mas a outra, de
entrada para o quarto.
Tirei os pregadores que seguravam meus cachos.
— Theo! — gritei depois que a pessoa bateu outra vez. — Ainda não
estou pronta, atende aí... — Puxei de qualquer jeito a presilha, enrolando o
cacho, que desgrenhou no dedo.
De novo a batida insistente.
Soprei uma mecha do rosto, pedindo para que o italiano abrisse a porta
para quem quer que fosse. Me apressei com o batom vermelho,
impressionantemente me saindo bem em não borrar da primeira vez. Por
fim, peguei os brincos dourados e pequenos de argola.
Mais batidas.
Bufei, abrindo a porta, me deparando com o quarto vazio.
— Onde será que ele foi? — resmunguei, finalizando com o último
brinco enquanto caminhava até a pessoa impaciente do outro lado, no
corredor lá fora. — Só um minut...
Parei.
Apesar de esperar que meu corpo já tivesse se acostumado, não estava
pronta para o que encontrei parado diante de mim, segurando uma rosa
vermelha em uma das mãos.
Sabia que Theo pretendia manter o sorriso maroto no rosto lindo quando
abri a porta, mas aquela confiança foi abalada também quando os olhos
escuros correram pelo vestido vermelho.
Não consegui me gabar pela expressão no rosto do italiano, pois eu
mesma tinha dificuldades em desviar o olhar dele.
— Pensei que estivesse no quarto... — murmurei de forma patética,
engolindo em seco.
Não fazia ideia de quando Theo arranjara tempo para conseguir aquela
camisa social preta, muito menos o perfume que preenchia o corredor, mas
ali estava: os cabelos pretos como noite perfeitamente penteados para trás,
as mangas da camisa dobradas até o cotovelo, a pele ainda mais bronzeada
pelos últimos dias caminhando sob o sol de verão...
— Queria fazer uma surpresa — respondeu, finalmente subindo os olhos
do vestido para me encarar. Notei o pomo de adão se mover, vi Theo
engolir em seco não só uma, mas duas vezes. Ele murmurou, me olhando de
um jeito que fazia algo intenso dentro de mim arder ainda mais. — Sei
bella, bella, dovresti saperlo.
Meu coração e todas as borboletas dançantes em meu estômago se
agitaram. Mesmo assim, aceitei a rosa e falei:
— Pode estar me xingando e, ainda assim, achei romântico.
Ele gargalhou, acabando com a distância entre nós dois para enlaçar
minha cintura e me puxar de encontro ao seu corpo.
Theo inclinou o rosto para mais perto e disse em meu ouvido, baixo,
grave:
— Eu disse... que você é linda — sussurrou, fazendo aquele arrepio
familiar percorrer meu pescoço e se alastrar por todo o corpo. — Linda. —
Então se afastou para me encarar. — Deve saber disso.
Sorri, sentindo o calor subir para o meu rosto, meu coração acelerar.
Não consegui dizer nada além de um abobado:
— Oi. — Estava embriagada pela voz dele, pelo cheiro delicioso.
Aquele repuxar de lábios estava ali, cantando e me seduzindo, me
induzindo a beijá-lo.
— Oi. — Beijou o dorso de minha mão. — Está pronta?
— Huh... — assenti.
— Ótimo. — Entrelaçou nossas mãos. — Não vamos desperdiçar nosso
último dia em Verona.

Apesar do calor, o clima estava agradável e fresco para uma noite de


verão. Havia muitas pessoas na praça delle Erbe àquela hora, mas não me
importei muito com os turistas quando Theo e eu caminhamos pelas ruas de
pedra.
Pela primeira vez desde que o conhecera, me sentia uma adolescente
tímida, sem saber o que falar ou o que fazer com as mãos. Qualquer assunto
que vinha à minha cabeça parecia bobo demais se não fosse aquele que
evitamos a todo custo.
Se Theo se sentia da mesma forma, não deixava transparecer. O italiano
me guiou até o restaurante com aquele sorriso sutil nos lábios perfeitos, vez
ou outra apontando para alguma loja ou construção, comentando algo
interessante que descobrira enquanto estivemos ali nos últimos três dias.
— Mademoiselle — disse galante, puxando a cadeira para mim.
— Grazie[32]. — Sorri, me ajeitando no lugar, meus olhos percorrendo o
local em frente à Fonte de Madonna Verona. Do quarto onde estávamos
hospedados, conseguíamos vê-la da sacada, mas era ainda mais bela vista
tão de perto. Passara os últimos dias ali, com a sacada bem de frente à
praça. Mesmo assim, conseguia avistar algo novo para observar.
Como as paredes de algumas construções. No primeiro dia pensara que a
tinta estava manchada pelo tempo, pela chuva e pelo sol, que era embaçada
e sem graça. Mas depois conseguira ver as silhuetas pintadas em cada
prédio. Uma arte desgastada pelos anos, mas que ainda estava ali, contando
histórias.
— Está fazendo de novo. — Theo se inclinou sobre a mesa depois de
falar em italiano com o garçom, finalizando nossos pedidos. Não me
importava em escolher algo do cardápio, confiava no meu acompanhante.
Ele sempre me surpreendia.
Tirei os olhos da fonte para encará-lo.
— Fazendo o quê?
— Pensando demais.
Sorri.
— Eu sempre penso demais.
— E o que está passando nessa linda cabecinha agora? — quis saber,
segurando minha mão com as suas, os dedos dele brincando com o conjunto
de argolas finas que enfeitavam os meus.
— Acha que a Madonna ali é mágica também? — perguntei de
brincadeira, porque revelar meus verdadeiros questionamentos a ele só
estragaria o encontro.
Theo fitou a fonte, a estátua sobre ela.
— Hm... Sinceramente? — Me encarou, com diversão cintilando nos
olhos pretos. Estavam tão brilhantes naquela noite, como se algumas
estrelas tivessem decidido se esconder ali, nas íris surpreendentemente
escuras demais. — Acho que toda fonte é mágica.
Ri.
— É mesmo?
— Huh. — E parecia estar falando sério. — Acredito que quem faz a
magia acontecer somos nós; a fé que depositamos nas coisas que queremos.
O lugar, a fonte e as moedas... são apenas a porta de passagem que usamos
para desejar algo e confiar que vai acontecer.
Me inclinei sobre a mesa redonda, pequena até, observando as mãos de
Theo sobre as minhas.
— Essas falas bonitas te alcançam naturalmente ou você ensaia em frente
ao espelho depois do banho?
A risada rouca reverberou pelo lugar, chamando atenção das pessoas nas
outras mesas.
— Gosta de rebater minhas frases poéticas porque fica encantada por
mim.
— Claro. — Revirei os olhos, mesmo que fosse verdade.
— Sou um romântico — ele completou, dando de ombros. — Está no
meu sangue.
— Ah, sim... — Meus lábios insistiram em curvar.
— Você deveria tentar — falou, mais sério. — Fazer um pedido à
Fontana.
Ri.
— Minha cota de pedidos esgotou.
— Tecnicamente, você não fez pedido algum. — O italiano tombou
levemente a cabeça, divertido. — Eu fiz. A Fontana realizou o meu desejo.
De fato.
— Bom, ela é esperta, realizou meu desejo antes mesmo que eu pedisse.
— E o que você mais queria? — perguntou, curioso. Abri a boca para dar
uma resposta qualquer, mas Theo completou: — E não venha me dizer que
era um italiano irresistível como companhia.
Dei risada.
— Mas eu queria muito... — Fiz biquinho. — Olha como ela foi legal
comigo...
— Você queria voltar a dançar — falou por mim, mais sério, com
carinho. Ele sabia, então. — Eu vi, naquele dia na colina. — Me ofereceu
um pequeno erguer de lábios, orgulhoso. — Quando seus pés se moveram e
você dançou... parecia livre. Feliz. Aliviada.
Engoli em seco.
— Huh — assenti. — Se eu tivesse acreditado na fonte de início e feito
um pedido à ela, teria desejado dançar de novo. — Fitei o rosto lindo, as
mechas pretas do cabelo dele penteadas para trás, um fio rebelde tentando
escapar. Contive a vontade de me inclinar para bagunçar o cabelo do rapaz.
— Mas não foi a Fontana que me ajudou a realizar esse desejo. E você sabe.
— Eu não gosto de me gabar — brincou, mesmo que os olhos brilhassem
com algo a mais.
Antes que eu pudesse dizer o que queria, o que meu coração carregava
desde a noite na piscina, o garçom apareceu com nossos pratos,
interrompendo as batidas descontroladas em meu peito.
Quando Theo me segurara na água morna, rodeando os braços ao meu
redor, quando me olhara daquele jeito e me colara ao corpo dele... só havia
nós dois. Não conseguira pensar direito naquele dia, principalmente com
um Theo sem camisa diante de mim, em uma piscina. E quando ele me
beijou e me chamou de raggio di sole daquele jeito que me tirava o juízo...
quase deixara quatro palavras perigosas escaparem da minha boca.
Quatro palavras que poderiam selar um futuro completamente diferente
do que me imaginara viver quando voltasse para casa.
— O Sr. Han — Theo me serviu com uma taça de vinho —, aquele que
está hospedado no quarto da frente, disse que adorou este restaurante.
— Foi ele quem te emprestou essa camisa? — brinquei, e o rapaz deu de
ombros de novo.
— Eu encontrei com ele no mercado e o ajudei com uma compra, acabei
comentando que pretendia levar uma bela americana para jantar esta noite e
ele me sugeriu o restaurante. — Sorriu, erguendo a taça para mim. —
Somos bons amigos agora.
Ri.
— Bom... — Brindei. — Esse prato parece ótimo.
— Pastissada di Caval. — Apontou com o queixo, e meu rosto se fechou
em uma careta, o sangue em meu corpo esfriando.
Arrastei o prato para ele.
— Não vou comer, não, valeu.
Theo segurou o riso.
— Mas você nem provou!
— Eu me recuso a comer isso. — O olhei incrédula. — Com todo
respeito, não acredito que você gosta de carne de cavalo.
Ele riu alto dessa vez, devolvendo o prato para mim.
Era diferente do que eu vira na internet: ao invés de rodelas de carne,
pareciam...
Pequenos pasteis com molho e folhinhas verdes.
Cutuquei com o garfo.
— Acho melhor a gente se separar, não posso confiar em alguém que
come cavalo. — De novo, o olhei com uma careta sofrida. — Eu amo
cavalos!
Apesar do embrulho em meu estômago, consegui desfrutar daquele som
melodioso que era a risada de Theo.
Ele balançou a cabeça, fazendo aquele fio rebelde finalmente descer para
sua testa.
— É ravioli, bella. — Riu uma última vez antes de se concentrar no
próprio prato. — Apesar de ser um prato comum, não te traria aqui para
comer carne de cavalo.
Ainda desconfiada, virei um dos pasteizinhos no prato.
— Você gosta? De carne de cavalo?
— Comi uma vez quando era pequeno, mas não gosto. Mesmo que o
sabor não seja de todo ruim, também sou apreciador de cavalos. — Ele
hesitou um pouco antes de continuar, ponderando se me contava ou não.
Quando falou, entendi o porquê. — Meu pai costumava me levar na
fazenda de um amigo, o Sr. Rossetti. Ele tinha um estabulo grande até. Era
criador. Aprendi a montar e adorava passar a tarde lá, nas férias.
Não gostava de me intrometer, mas a pergunta deixou meus lábios antes
que me desse conta:
— Quando foi a última vez que foi lá?
— Vi o Sr. Rossetti no enterro do meu pai, um ano antes. Mas não vou à
fazenda há bem mais tempo. — Me ofereceu um sorriso triste. — Ele,
sempre que me vê, diz para eu dar uma passada lá, como nos velhos
tempos. Está na lista de coisas que quero fazer para superar a saudade que
tenho dos meus pais.
Peguei a mão dele sobre a mesa, a apertei de leve e abri a boca para tentar
dizer algo que o consolasse, mas fui incapaz de formular qualquer frase
bonita para confortá-lo.
— Eu...
— Não precisa dizer nada, bella. Consigo ver em seus olhos. — Seu
olhar suavizou, e eu consegui sentir que Theo entendia. Ele sabia que,
mesmo se eu não dissesse nada, ainda estava ali com ele, para ouvir. —
Apenas aproveite o jantar.
Indicou o prato.
Comprimi os lábios, ainda incerta.
— Tem certeza que não tem cavalo aqui?
Uma risada fraca e rouca, um meneio de cabeça.
— Prometo.
Soltei a mão dele e suspirei.
— Vou confiar em você, então.

Depois de um jantar delicioso e muita conversa, depois de passar as


últimas duas horas desfrutando um pouco mais da vista do Piazza
acompanhada das histórias maravilhosas de Theo, o italiano segurou minha
mão e me guiou pelas ruas de Verona. Àquela hora da noite, a cidade estava
mais quieta e vazia. Contornamos a grande arena e caminhamos
despreocupados pelas ruelas de paralelepípedo.
Quando o silêncio recaía por mais de alguns minutos, o assunto que eu
evitava tramava um jeito de deixar meus lábios. Assim que Theo deslizava
o polegar pelo dorso da minha mão, que ele não soltava, eu comprimia os
lábios para não deixar a temida frase de quatro palavras escapar.
E cada segundo que passava em meu relógio de pulso me lembrava de
que, em poucas horas, estaríamos retornando para Roma.
E então, logo em seguida, eu estaria embarcando para casa.
— Aqui — Theo disse depois de um momento quieto. Não sabia onde
estávamos, nem mesmo se era perto do hotel. Apenas deixei que ele me
guiasse pelas ruas e não questionei quando vimos a ponte e ultrapassamos
as duas estátuas que enfeitavam o começo dela. Quando alcançamos o poste
de luz no centro da ponte, o jovem parou, me virando de frente para ele e
sorrindo daquele jeito que me provocava coisas. — Aqui está perfeito.
— Vai finalmente me pedir em casamento? — brinquei, mesmo ansiosa e
curiosa.
Theo soltou uma risada deliciosa.
— Apenas feche os olhos, bella.
— Tão misterioso... — murmurei, obedecendo, tentando afastar as
borboletas agitadas em meu estômago.
Não demorou muito para eu sentir os dedos de Theo roçarem meu
pescoço, a respiração dele perto demais quando colocou o cordão ali. Era
frio e fino, delicado, eu sabia sem mesmo ver. Quando o rapaz sussurrou
para que eu abrisse os olhos, toquei o pingente e uma parte do meu coração
amolecido dançou mais rápido em meu peito.
Mordi o lábio, encarando a moeda fina, agora dourada, entre os dedos.
— Aproveitei quando nos dividimos ontem à tarde para encontrar
um joalheiro. Ele era um velho emburrado, mas fez um bom trabalho.
A moeda que Theo usara para fazer um pedido à Fontana.
A mesma moeda que eu furtara do monumento dias atrás.
Me esquecera dela até então, sequer me lembrava de que estava com o
italiano esse tempo todo.
Nossa moeda.
— Para que se lembre de mim quando retornar para a América — ele
disse, colocando as mãos nos bolsos da calça preta. — Feliz aniversário,
Tina.
Minha garganta se fechou.
As palavras se embolaram e pesaram em minha língua.
A frase de quatro palavras cantarolou em meu peito, mais forte dessa vez.
— Sei que evitamos tocar no assunto, mas não queria que, quando o
fizéssemos, fosse com Gina e nonna perto. — A expressão de Theo era
tranquila, mas sua voz deixava entrever levemente que aquela conversa era
difícil para ele também. — Então, aqui e agora é o momento perfeito.
Engoli em seco, voltando a encarar a moeda.
Assenti devagar.
— Aqui e agora — balbuciei.
O italiano deu um passo à frente, encurtando nossa distância mais alguns
centímetros.
Ergui o rosto para ele quando seu polegar e indicador seguraram meu
queixo com carinho.
Aquele repuxar de lábios clássico de Theo Abertinalli estava ali.
— Tenho algumas coisas para dizer, mas se quiser pensar um pouco antes
para ter certeza se quer mesmo ouvir...
Porque o que ele tinha para dizer... poderia ser arriscado também. Como
as quatro palavras que eu guardava no coração.
Minha voz saiu rouca e baixa demais.
— Pode falar.
Os olhos pretos como noite observaram meu rosto, cada detalhe dele,
como se Theo o guardasse e decorasse para o momento da minha partida.
— Sono innamorato di te — sussurrou, ficando mais sério, engolindo em
seco uma, duas vezes. — Você sabe o que isso significa, não sabe?
Não sabia, não tinha certeza, mas aquele brilho intenso nos olhos de
Theo... Céus. A luz do poste acima de nós pintava a lateral do rosto
bronzeado, intensificava a incandescência nas íris de estrelas perdidas. Tão
pretos, mas tão brilhantes.
Ele desceu o olhar para minha boca, o polegar suavemente acariciando
meu lábio inferior.
— Estou apaixonado por você, Valentina — traduziu, rouco. — Talvez
desde o momento em que te vi pela primeira vez em sonho ou quando te
encontrei na fonte. Talvez quando você sorriu para mim no Coliseu ou
quando dançou naquela colina. Eu sinceramente não ligo.
Meu peito subia e descia muito rápido, aquela frase linda ecoando mais
forte em minha consciência.
Estou apaixonado por você.
As quatro palavras perigosas.
Eu queria dizê-las também, mais agora que Theo as pronunciara
primeiro.
Abri a boca para falar, mas ele me interrompeu, quem sabe com medo de
que eu estragasse o momento com algo racional. Algo que a Tina de sempre
diria.
— Não estou pedindo que, de repente, se mude para Roma ou que
namore comigo e abandone sua casa para vivermos uma história de amor.
— Riu baixinho quando sorri. — Estou apenas declarando o que sinto por
você. Não quero que entre no avião sem que saiba disso.
— Theo...
— Talvez você corte nossa relação quando tivermos que nos despedir,
porque será mais fácil assim — me interrompeu outra vez, deixando as
palavras saírem como se as tivesse guardado por tempo demais. — Talvez
você diga que tudo isso foi apenas uma aventura de verão e que não quer...
tentar, o que quer que possamos fazer para dar certo, mas... dane-se. Estou
apaixonado por você. Da forma mais inconsequente e boba que possa
imaginar.
Um riso fraco deixou minha garganta e, antes que ele pudesse dizer
qualquer outra coisa, contornei a mão em seu pescoço e o puxei para um
beijo.
Aquele foi diferente de qualquer outro: foi puro, porém intenso. Havia
palavras não ditas naquele encontro de lábios, sentimentos secretos.
E um leve murmúrio da saudade que, em breve, sentiríamos um do outro.
Uma lágrima solitária correu por minha bochecha quando colei minha
testa à dele.
— Eu também estou apaixonada por você, Theo. Da forma mais
inconsequente e boba que você possa imaginar. — Sorri, me afastando o
suficiente para segurar o rosto dele com ambas as mãos.
— Mas? — Fez careta.
Neguei com um meneio de cabeça.
— Não tem mas — garanti. — É isso. Não tenho plano nenhum agora,
não sei o que vamos fazer, apenas... quero você.
O sorriso que ele me deu foi de tirar o fôlego. Alcançava os olhos e me
mostrava claramente como Theo ficou aliviado por ouvir aquilo.
— Eu só... — Inspirei. — Não posso ficar aqui. E nem você pode ir. Não
somos tão irresponsáveis.
Ele riu.
— Não somos. — Suspirou. — Mas não significa que não podemos
tentar.
Assenti.
— Só me promete... uma coisa.
Theo esperou.
Toquei o rosto dele com carinho.
— Encontre seu sonho. — Sorri. — Descubra o que você quer, Theo.
Enquanto isso... podemos enfrentar um dia de cada vez. Podemos... viver.
Quando você aprender a se perdoar, quando... quando descobrir o que quer
fazer, quando descobrir seu sonho... Então conseguiremos começar a pensar
numa forma de ficarmos juntos, se o destino quiser assim.
Os lábios dele se comprimiram numa linha fina. Ele estava tenso.
Pensativo.
Desanimado.
— Você me ajudou a reencontrar a mim mesma — continuei, ignorando o
casal que passou por nós, encarando, curioso. — Se eu puder, mesmo que
de longe, fazer o mesmo por você...
Ele assentiu.
— Tudo bem — murmurou por fim. Theo sabia o que eu queria dizer:
não vamos nos precipitar. Vamos cuidar de nós primeiro, e então pensamos
em... nós. Juntos.
Suas mãos rodearam minha cintura, me puxando de encontro ao seu
corpo. Envolvi seus ombros, o abraçando também, enterrando o rosto em
seu pescoço.
Fechei os olhos, inspirando o perfume delicioso dele.
— Vou sentir sua falta — falei baixinho.
— Eu também, raggio di sole. — Beijou meu ombro descoberto. — Eu
também.
— Ainda temos algumas horinhas. — Me afastei, oferecendo um sorriso
insinuativo para ele. — Temos que aproveitar cada segundo...
Theo umedeceu os lábios, me olhando de uma forma nada descente.
— Tem algo em mente?
Entrelacei nossos dedos.
— Podemos infringir a lei de novo — brinquei. — Que tal a piscina?
GIOVANNA

Jeremmy (07:59): Vocês estão bem?

Nonna reparou quando bloqueei a tela do celular e ignorei a mensagem


outra vez. A senhora de sessenta e sete anos era ainda mais esperta do que
já aparentava ser. E não se importava em fazer perguntas pessoais
comprometedoras e embaraçosas, mas dessa vez se manteve calada.
— Sabe, eu não sei o que me assusta mais — resmunguei, colocando o
celular no avental verde, me dirigindo para a entrada, para os vasos de
plantas que aguardavam para serem pendurados —: esperar a senhora
avaliar meus doces e me dar uma nota ou imaginar o que está pensando de
mim agora.
Ela riu, continuando a anotar algo em seu caderninho do financeiro da
loja. Eram folhas bagunçadas com rabiscos ilegíveis e, quando critiquei a
senhora italiana pela falta de organização, ela apenas grasniu que aquele era
o trabalho de Theo e que detestava números.
Uma semana havia se passado, pouco mais que isso, e eu me sentia
incrivelmente familiarizada com a rotina daquele lugar. Como se estivesse
ali há anos, e não há poucos dias.
Nonna não era de paparicar ninguém e não mudava o tom de voz para
tentar ser mais dócil quando me via incomodada com algo. Não forçava as
coisas para que eu me sentisse parte da vida dela, apenas... mandava,
resmungava e xingava em italiano quando se irritava.
Não tinha medo de me repreender, porque sabia que eu não era frágil.
Eu adorava aquilo.
Não ter que me justificar, tentar ser alguém que não era por medo de
decepcionar.
No meu primeiro dia com ela depois da partida de Tina, nonna me
observara por alguns segundos e segurara meu rosto daquele jeito que
apenas uma avó saberia fazer.
Ela analisara cada detalhe, com as sobrancelhas franzidas de forma
severa, e confesso que hesitara diante dos olhos pretos como obsidiana.
Esperei a crítica e a careta de desgosto, mas Antonella disse: “Coloque de
volta os piercings que escondeu na mala, garota”.
Todo peso deixou meus ombros naquele momento.
— Não é Valentina, com certeza — respondeu então, erguendo os olhos
para mim, uma das sobrancelhas escuras levantadas de forma presunçosa.
— Nem mesmo a mãe de sua amiga. Você não hesita em respondê-la,
mesmo que use uma expressão deprimente ao fazê-lo. — Ajeitou os óculos
de leitura e voltou às anotações. — Se não é algum ciarlatano[33] do banco,
com certeza está evitando o rapaz outra vez.
— Como sabe que é um rapaz? — Franzi a testa, com tédio. Fingindo.
— Você costuma deixar o celular nos lugares, a mensagem não
respondida aberta. — Deu de ombros. — Eu costumo ser curiosa.
Ri.
— É notável, verdade. — Me estiquei para pendurar o último vaso na
entrada.
Quando voltei, nonna resmungou:
— Não há muito o que fazer para se entreter na minha idade, bambina.
Tire-me do tédio e conte-me uma história interessante.
— Te contei muito.
— Mas não o que realmente interessa. — Sorriu, deixando o caderno de
lado e tirando os óculos para me encarar. — Conte-me sobre o rapaz que te
deixa inquieta assim.
Meus lábios se repuxaram inconscientemente, de forma automática. Não
do jeito que uma jovem sorri ao pensar na pessoa que ama, mas sim da
maneira que uma pessoa faz antes de começar a mentir.
— Infelizmente, a Fontana ainda não me presenteou com meu escolhido,
nonna.
— Bugiarda[34] — resmungou.
— Budiarda para a senhora também — retruquei, me dirigindo à última
fileira para organizar os biscoitos que ajudara a senhora a embalar na noite
anterior.
— É algum namorado que deixou na América? — ela tentou, se
aproximando como uma criança curiosa e insistente. — Ou talvez um amor
não correspondido?
— Precisa ser um amor?
— Pela sua cara, sei que é algo do tipo.
— Sabe o que mais me irrita em idosos? — murmurei, empilhando os
potes. — Eles sempre acham que sabem das coisas.
Nonna gargalhou alto.
— Mas sabemos — retrucou, divertida. — Se chama instinto de velho.
Se fosse a avó de Tina, teria puxado minha orelha e me repreendido pela
grosseria, pelo que acabara de dizer, mas nonna era diferente de qualquer
pessoa da idade dela que eu já conhecera. Apesar de vez ou outra reclamar
de dor nas costas ou assistir à novela das sete com um chá horrível, ela
gostava de conversar e se enturmar. Ela até me pedira para criar uma conta
nas redes sociais para ela, e eu passara boa parte do sábado a ensinando a
usar o aplicativo para benefício da loja. Não me surpreendera, tarde da
noite, já quase apagando no sofá, quando recebera uma notificação
avisando que Antonella Abertinalli começara a me seguir.
Ela pedira... não, pedira não, ordenara que eu fosse eu mesma com ela.
Dissera que detestava quando as pessoas a tratavam como uma idosa frágil,
pronta para quebrar.
— Me conte. Per favore. — Piscou os olhos grandes para mim, o canto
cheio de rugas, mas ainda assim adorável.
Se eu dissesse que tinha vontade de colocar ela em um potinho, receberia
um tapa na nuca.
— O que eu ganho se contar? — Cruzei os braços.
— O que você deseja, minha querida? — Se fingiu de velha doce.
— Hm... quero a receita secreta da senhora. — Sorri, vitoriosa. Desde
que provara aquela delícia crocante, insistia todos os dias para que nonna
me ensinasse, mas a senhora de idade garantira que era uma receita
ultrassecreta da tataravó, que jamais a revelaria. — Aqueles biscoitos que
fez pra mim na semana passada.
O sorriso gentil dela murchou imediatamente.
— Nem mesmo Theo sabe. — Bufou, se afastando com um resmungo. —
Esses jovens de hoje em dia...
Ri, voltando a me concentrar nas prateleiras.
— Me passe a receita, nonna — falei mais alto, de costas para ela. — E
eu revelo meus segredos mais obscuros.
— Terá aquela receita, bambina... — disse carinhosa, e eu me virei para
encará-la, esperançosa. O sorriso da senhora foi mais presunçoso e
venenoso quando ela completou: — Quando eu morrer.

O celular anunciou outra mensagem, e eu sabia de quem era sem


nem mesmo desbloquear o aparelho. Pelo horário, só podia ser Jeremmy.
Tinha acabado de encerrar uma ligação com minha amiga e Theo.
Deixara o telefone sobre a escrivaninha do quarto de visitas quando o
mesmo vibrou.
Nove horas em ponto. Só podia ser ele.
Não era raiva que me impedia de responder ao irmão de Valentina, nem
mesmo mágoa. Eu adorava Jeremmy e a tia, eles eram o pouco que me
restara do que algumas pessoas chamavam de família. Não, não era
ressentimento que me fazia ignorar as mensagens do rapaz, mas...
Culpa.
Tina não sabia, ninguém sabia, e tinha medo do que poderiam deduzir ou
esperar quando soubessem o que acontecera entre Jeremmy e eu um dia
antes de viajarmos. Do beijo apressado e intenso que trocamos em um surto
de emoção e raiva. Em um segundo, discutíamos; no outro, os lábios dele
estavam colados aos meus. No instante seguinte, eu me afastara ofegante e
despejara coisas horríveis sobre o rapaz.
Pedira para que ele me deixasse em paz, alegara que não o queria e que
só o via como o irmão mais velho de minha melhor amiga... Tinha
enfatizado todos os motivos que me faziam querê-lo longe e, por fim, o
deixara sozinho no quarto dizendo que passaria a noite fora.
Quando Jeremmy perguntara, rouco e chateado, se eu passaria a noite
com meu chefe outra vez, eu disse que sim.
Mesmo que cada palavra fosse uma mentira. Mesmo que quisesse
continuar o beijo.
Entrar no avião fora a desculpa perfeita para não encará-lo.
Sinceramente, me perguntava como raios eu olharia para Jemmy de novo
quando retornasse.
Ele não merecia o que eu fizera, não merecia escutar as coisas que disse,
e ainda assim...
Jeremmy (9:02): Sabe que não vou te deixar em paz até que atenda ao
maldito celular, não sabe?

Senti o coração apertar de novo, mais forte, mais dolorido.


Sim, eu sabia. E seria pior quando voltasse para casa.
Para a casa dele.
Depois que tia Sabrina e tio Matt se divorciaram, nos mudamos para uma
casa num bairro tranquilo em Boston. Jeremmy conseguira a residência para
a mãe e, apesar de Tina e a mulher de conservadíssimos quarenta anos
saberem se cuidar muito bem, o filho mais velho de vinte e oito anos da
senhora Ferreira decidiu se mudar para ficar com as duas.
Foi ainda mais difícil viver naquela casa com Jeremmy ali, a um cômodo
de distância.
Tia Sabrina não costumava me questionar quando eu saía e voltava tarde.
No fundo, ela sabia que eu só queria um tempo para mim; talvez entendesse
o quanto era difícil ficar lá, por mais que ela e Tina fizessem de tudo para
eu me sentir em casa...
Era demais. Elas se esforçavam demais.
Mas Jeremmy...
Urgh! Que homem insuportável!
Valentina era a versão melhorada do irmão. Sabia se divertir quando
incentivada, mas Jemmy? Aquele cara conseguia ser um tremendo pé no
saco na maior parte do tempo.
“É perigoso, não devia ir”; “Não pode tentar ser um pouco mais
responsável?”; “Caramba, Giovanna, pare de agir como uma maldita
criança!”; “Se pensasse nos outros, então seria mais fácil, droga!”
Quando éramos mais novos, eu fazia questão de infernizar a vida de
Jeremmy. Ele tinha uma coleção ridícula de prédios de lego caríssimos e,
quando encontrava uma pecinha fora do lugar, isso já virava motivo de uma
cara emburrada e resmungos por uma semana inteira. Talvez fossem as
camisas sociais perturbadoras e os óculos que geralmente enfeitavam o
rosto bonito dele, mas sempre sentia necessidade de tirá-lo da linha.
Eu não o culpava o Sr. Irritadinho quando aquelas frases previsíveis
deixavam sua linda — e macia — boquinha, porque eu sempre as incitava
antes que fossem pronunciadas.
Mas o que me irritava...
Jeremmy parecia ter a necessidade primitiva de cuidar. Sempre foi assim,
na escola, na rua, em casa ou em qualquer lugar. No entanto, depois que o
pai saíra de casa, bem, Jemmy tomou aquela responsabilidade para si. Fazia
de tudo para que nada faltasse na casa, ninguém machucasse sua família.
Ele normalmente me esperava acordado na sala, com a desculpa
esfarrapada de que tinha planilhas para revisar e clientes para responder;
sempre esbarrava comigo no corredor com um copo de água e remédio para
dor quando eu voltava de alguma festa e acordava de ressaca; fechava a
cara quando descobria que eu tinha um encontro e me enchia de perguntas
sobre o histórico criminal da pessoa, questionando se o mesmo já tivera
passagem pela polícia...
“E você sabe que não me preocupo com você só porque te considero da
família. Sabe que estar aqui e ser a melhor amiga da Tina é uma desculpa
idiota pra eu sempre estar por perto. Eu me irrito com você porque te amo,
Gina. Droga!”
Aquelas palavras rondavam minha cabeça como uma fita estragada. Me
atingiram com tanta força naquela noite, na véspera da viagem para a Itália,
que não tive uma boa reação.
O que eu fiz... O que eu disse para Jeremmy naquela ocasião...
Droga!
Eu não sabia como consertar aquilo. Não sabia se queria realmente
consertar. Eu deveria apenas deixar as coisas como estavam e afastar
Jeremmy de vez?
Não contara para ele ou Valentina que, às vezes, quando saía às
escondidas e me empoleirava no terraço como um gato, me perguntava se o
melhor não seria voltar para o Brasil. Ou senão... simplesmente sair da casa
deles para finalmente viver minha vida.
Era terrivelmente confuso.
Ficar e fingir estar tudo bem ou sair e parecer uma ingrata por tudo que
fizeram por mim naqueles anos?
— Eles chegaram! — A voz de nonna ecoou do corredor do lado de fora
do quarto, e eu ainda encarava o teto, esparramada na cama com o celular
nas mãos, contra o peito, sem saber como responder à mensagem de
Jeremmy.
— Estou indo! — gritei de volta.
Ficar com nonna nos últimos dias acendera algo há muito perdido dentro
de mim: a vontade de viver. Não sair para festas e me aventurar pelas ruas
despreocupadamente depois do trabalho, mas realmente começar a viver a
vida que eu queria e sonhava.
Decidir se me mudaria de casa ou se voltaria para o Brasil ainda era uma
questão que matutava na minha cabeça, algo que eu realmente não queria
pensar no momento, ainda em Roma. Contudo, desejava começar a sonhar
com algo novo e surpreendente quando entrasse no avião no dia seguinte.
Girei o corpo sobre o lençol e coloquei os pés descalços no chão.
Encarei a tela do celular, a mensagem nela.
Não era justo fingir que minhas atitudes não machucavam Tina, tia
Sabrina e Jeremmy, até mesmo o tio Matt, que mandava uma mensagem
para saber se estava tudo bem vez ou outra... Não era justo tomar uma
decisão na minha vida sem achar que não prejudicaria as pessoas ao meu
redor.
Mas também não suportaria continuar fingindo para eles que aquela Gina
era a pessoa que eu queria ser, que não desejava mais no fundo.
Nonna, em uma conversa noturna com os biscoitos incríveis e um chá
terrível, me disse que, se algo me incomodava tanto, eu deveria me abrir
para a família que ainda tinha.
E eles eram minha família, mesmo que, às vezes, não me sentisse parte
dela.
Antes de sair do quarto, digitei a mensagem, mas não para Jeremmy —
não, nosso assunto inacabado era conversa para outra hora —, mas no
grupo que tínhamos.
Gina (21:05): Quando voltar, quero uma reunião familiar. Tenho uma coisa
pra falar pra vocês.
Quando deixasse Roma, começaria a escalada para a vida que eu
desejava de verdade. Mas ainda estava em solo italiano e queria desfrutar
das minhas últimas horas sonhando com um futuro melhor, agindo como se
os questionamentos e as inseguranças não estivessem me esperando quando
desembarcasse.
Queria fingir mais um pouco.
Só mais um pouco.

— Para alguém que passou os últimos dias com o cara dos sonhos
em uma viagem pela Itália, você não parece muito feliz — cochichei para
Tina, que suspirava com pesar a cada cinco minutos.
Desviei o olhar para Theo no outro lado, ajudando a avó na cozinha,
distraído, escutando o que nonna lhe contava tão animadamente.
Os dois mal se tocaram desde que chegaram, mal conversaram, mas eu
não sabia se pelo cansaço da viagem ou porque algo não tinha saído como o
planejado.
— Brigaram? — Franzi a testa.
Como se saísse de um transe, minha amiga virou o rosto para mim e
piscou, me encarando como se tentasse lembrar o que eu tinha dito.
— Você e o Theo brigaram?
Ela negou e suspirou novamente.
— Acho que, se tivéssemos brigado, teria sido melhor — resmungou,
apoiando a cabeça em meu ombro, entrelaçando o braço ao meu. — Vamos
ficar em Roma para sempre?
Sorri.
— Não me provoque, sabe que vou dizer sim.
Valentina riu.
— Foi divertido, sabe. — Ela se afastou um pouco para me encarar. —
Ser um pouco Gina durante a viagem.
— É claro que foi, gracinha. — Revirei os olhos. — Deveria usar o modo
Gina sempre.
— Apenas nos fins de semana.
Meus lábios se curvaram para cima.
Apertei a mão dela.
— Talvez eu adote o modo Tina de vez em quando — provoquei. —
Sabe, vou me tornar uma mulher de negócios, acho que vou precisar de uma
agenda.
Uma risada rouca ecoou pela sala, atraindo o olhar de Theo para minha
amiga. Não me incomodei em disfarçar ao encarar a faísca que iluminou os
olhos dele.
Bobinho apaixonado.
Nonna me olhou rapidamente, como se também tivesse notado. A idosa
sorriu quando voltou a se concentrar na panela à sua frente.
— Vocês dois se decidiram? — perguntei para Tina, diminuindo o tom de
voz. — Sobre o que vão fazer?
A moça suspirou, brincando com os anéis em meus dedos, vez ou outra
tirando um deles para enfeitar a própria mão.
— Decidimos... tentar. O que quer que seja.
— Namoro à distância, huh? — Cutuquei as costelas dela, e minha amiga
fez uma careta.
— Vai ser uma merda.
— Vai, mas pode dar certo — a consolei. Sabia que aquela cabecinha
cacheada girava com diversos “e se”, pensando se era uma boa ideia, se ela
deveria terminar com Theo, se brigariam em algum momento e se
separariam do mesmo jeito. — Pode dar certo.
Ela assentiu.
Ficamos em silêncio por mais alguns minutos, inutilmente quietas na sala
enquanto Theo e nonna preparavam a mesa para o jantar. Os dois insistiram
em fazer a comida, até porque o italiano já deveria saber sobre a falta de
talento culinário de Tina. A senhora também alegou que sentira falta do
neto e tinham assuntos para colocar em dia.
Então, Valentina e eu esperamos na sala, onde podíamos ver os dois
trabalhando na cozinha, mas não escutar.
Tivemos privacidade para conversar também, e não me surpreendi
quando Tina revelou que estava, de fato, amarradinha por Theo. Usei
aqueles minutos de choramingo de amiga apaixonada para fugir das
próprias perguntas que a jovem provavelmente queria fazer.
— A mensagem no grupo... — ela murmurou, sem me olhar. — Você vai
embora, não é?
Meu coração se calou de repente, apenas para tomar fôlego para batidas
mais agitadas em meu peito.
Não respondi.
— Acha que sou idiota? — Tina riu com escárnio. — Depois da nossa
conversa dias atrás, comecei a ligar algumas coisas. Também escutei sua
briga com o Jeremmy. Vocês dois não são muito discretos, se quer mesmo
saber. Se sua mensagem não é um “vou me mudar”, então...
— Não quero que pensem que não sou grata a vocês — sussurrei, com
um nó na garganta.
Tina se afastou.
— Não pensamos que é ingrata, Gina. — Bufou. — Eu só... Só me diz o
que fizemos de errado? O que te leva a pensar que não é da família? Que é
um fardo?
— Eu... — Não sabia de fato. — Só me sinto assim. Consigo ver o
quanto se esforçam. Parece demais e até... sufocante.
Valentina tentou não se encolher, mas eu percebi.
Fechei os olhos.
— Não quis dizer... — Soltei o ar, tentando de novo ao encará-la. —
Quando você e o Jemmy faziam algo errado, seus pais os repreendiam, os
colocavam de castigo. Sempre que eu aprontava, sua mãe fazia aquela
careta de pena e só dizia: “Isso é errado, querida. Não pode”. Nunca me
colocava de castigo ou me dizia para tomar cuidado com os garotos da
escola... — Meus olhos arderam. — Sempre me senti a coleguinha que
visita a casa da amiga, que foi ali para passar uns dias de férias e não... para
morar lá. Sinceramente, acho que o único que me tratava como alguém de
casa de verdade era o Jeremmy. Ele sempre brigava comigo e me xingava,
sempre fechava a cara e me repreendia... Era chato, sim, mas... com ele, eu
sabia que era família.
Sabia que estava magoando Tina, mas ela precisava entender...
— Sempre que me via brincando com sua boneca favorita, você me
olhava com pena, Tina — confessei baixinho. A essa altura, os olhos da
minha amiga também brilhavam com a chegada do choro. Não me importei
se Theo e nonna assistiam. — Me dava seus brinquedos como se tivesse
pena de mim, e não porque eu era sua irmã... Não te culpo por agir assim,
mas eu sentia tanta falta de casa. Tudo que queria era normalidade, não
pessoas me lembrando o tempo todo de que eu era uma órfã sem lugar para
ir. As crianças da escola fofocavam, sabia? Eu era a garota negra e sem-teto
que os Ward adotaram por compaixão. Muitas riam quando você dizia que
era minha irmã.
— Gina...
— Não estou te culpando, Tininha. — Entrelacei minha mão à dela. —
Eu te amo muito, mais do que eu mesma me amo. Só estou... te contando a
verdade pela primeira vez. Não é fácil. E talvez eu nunca me sinta,
realmente, parte da família. É por isso que preciso ir.
A primeira lágrima escorreu na bochecha dela.
— Não por não amar vocês, mas... preciso de algo meu. Mesmo que seja
sozinha, quero ter meu próprio apê, pagar minhas próprias contas e sentir
que tenho algo.
— Vai... voltar para o Brasil? — Aquela pergunta pareceu machucá-la
ainda mais.
— Eu não sei — confessei.
— Não precisa voltar para o Brasil. Pode ficar ou... ou abrir sua
confeitaria em Boston, como sempre quis. Eu te aju... — Tina se calou.
Então, tirou as mãos da minha, abraçando o próprio corpo. — Não sei o que
quer de mim. Não sei como... ser uma amiga melhor, como não te ferir...
— Sei que sempre fez o melhor.
— Me sinto um lixo agora, então não tente reverter. — Bufou, limpando
a bochecha corada de sol. — Não sabia que se sentia assim ou que as
crianças te zoavam por ser adotada pelos meus pais... Eu... Eu tinha orgulho
de te chamar de irmã. Ainda tenho. — Ela soluçou. — Até sonhei no avião
que você estava casando com o Jeremmy...
Não consegui segurar o riso.
— Então não eram só sonhos cinzas, no fim das contas — debochei. —
Sonhou que eu tinha um filho dele também?
— Huh — resmungou. — E ele era lindo.
Rolei os olhos, mas com um sentimento estranho revirando meu
estômago.
— E ele? — Tina insistiu. — Você realmente não sente nada pelo meu
irmão?
Ah, certo... Ela ouvira a conversa. A briga.
— Eu...
— Você realmente quer ficar longe dele?
Não fui sincera quando briguei com o irmão de Tina naquele dia. Não
acreditava em nenhuma palavra que proferira para ele naquela noite.
Meus olhos correram para a cozinha, para os dois italianos que tentavam
fingir não notar que nós duas estávamos tendo uma conversa séria.
— Vamos discutir isso quando a gente voltar. — Apontei com o queixo.
— Vamos jantar.
Ameacei levantar, mas Valentina me puxou para um abraço apertado.
— Me desculpa — sussurrou em meu ouvido. — Me desculpa ter feito
você se sentir assim. Não te olhava com pena porque queria te diminuir,
mas porque eu não queria te ver sofrer. Porque sabia que sentia falta dos
seus pais. Só tentei... fazer você esquecer a dor. Aparentemente, não fiz um
bom trabalho...
— Me desculpa também. — Sorri, sentindo o gosto salgado das lágrimas
que escaparam. — Devia ter contado como realmente me sentia. Eu amo
vocês, de verdade. É só...
— Complicado. — Se afastou, limpando meu rosto. — Eu entendo.
Assenti.
Tina pressionou os lábios em uma linha fina, como se tentasse conter o
choro.
— Eles vão entender — garantiu. — Na reunião, quando contar pra eles...
Minha mãe e Jeremmy vão entender.
Eu esperava que sim. Tinha o pressentimento ruim de que, quando
confessasse aqueles sentimentos dos últimos dez anos, tia Sabrina se
sentiria culpada e magoada.
— Só... — Valentina continuou, tomando fôlego. — Só não vai para
muito longe. Por favor.
O tom em sua voz me acertou como um soco.
— Pode não se sentir parte da família, e compreendo que se sinta
desfalcada, mas preciso da minha melhor amiga. — Fungou. — Você pode
comprar um apartamento e começar a juntar para sua confeitaria, mas...
precisa mesmo voltar para o Brasil?
Ri.
— Pode assumir que sou o amor da sua vida e eu penso nisso.
— Preciso de mais algumas aulas sobre o modo Gina — disse
dramaticamente. — E de alguém pra me ensinar a cozinhar. — Tina arfou.
— E se nós duas morássemos juntas? Podemos alugar um apartamento no...
Ergui a sobrancelha para ela, e minha amiga bufou.
— Vou te deixar voar — prometeu. — Só... pense nisso. Pode voar para o
bairro vizinho.
Gargalhei.
Apontei para a cozinha outra vez.
— Conversamos sobre isso no avião. — Nonna terminava de colocar o
último prato na mesa pequena. — Vamos aproveitar nossos últimos dias
com eles. Você não tem muito tempo para namorar.
A bailarina fechou a cara, emburrada. Porém, antes de sair para a
cozinha, me abraçou uma última vez.
— Te odeio.
Sorri.
— E eu te amo.
TINA

A casa estava silenciosa quando atravessei o corredor descalça,


devagar e com cuidado para não denunciar minha fuga para o único quarto
que ficava no andar de baixo. O quarto que Gina e eu dividíamos era o
antigo cômodo do casal Abertinalli, mas, depois da morte do filho, nonna
achou melhor transformar em um quarto de hóspedes.
Eram quase duas horas da manhã quando conferi se minha amiga estava
mesmo apagada para levantar e sair de fininho.
Tentara fechar os olhos e dormir também, mas as vozes agitadas da
minha cabeça não permitiram. Muito menos o coração apertado que sabia
que, em poucas horas, estaríamos deixando a casa para ir ao aeroporto.
Para casa.
Soltei um suspiro aliviado quando girei a maçaneta e a porta se abriu.
Seria frustrante encontrá-la trancada. Mesmo ciente da hora, não me
importei se acordaria ou não o rapaz ali dentro.
Nosso “boa noite” fora nada mais do que um beijo rápido, e eu sabia que
Theo ficara tão desapontado quanto eu por ter plateia observando.
Gina não nos dava um minuto de descanso.
Quando fechei com cuidado a porta e me virei, encontrei a cabeça do
italiano levemente inclinada para o lado com diversão, os olhos brilhando
com algo mais, o rosto lindo iluminado pelo abajur azulado.
Theo abaixou o livro que estava lendo e sorriu.
— Aparentemente, só desejar que você apareça já é o suficiente — disse
baixo, mesmo que estivéssemos no primeiro andar e Gina e nonna no
segundo. — Não preciso mais de fonte mágica.
Não contive meus próprios lábios de se curvarem.
Atravessei o cômodo e subi na cama, engatinhando sobre o corpo de
Theo até que meu rosto estivesse perto o suficiente do dele. Fiquei ali,
deitada sobre ele.
O rapaz afastou o livro de lado e contornou os braços em minha cintura.
— Sabe, não é justo você deitar em cima de mim assim, agora —
comentou divertido, sem um pingo de vergonha. — Na nossa última noite
juntos.
— Só quero ficar com você. — Deitei a cabeça na curva de seu pescoço,
deliciada pelo o cheiro do garoto. — Se estiver pesado, vou embora.
Theo riu, me apertando mais contra seu corpo.
— Vai ficar quietinha aqui. — Beijou o topo da minha cabeça. — Até eu
ser obrigado a te soltar. Talvez não. Não vou te soltar.
Sorri contra sua pele.
Por alguns minutos, aquele foi o silêncio mais reconfortante que
experimentei na vida. Apenas o som das nossas respirações preenchiam o
lugar, e fiquei maravilhada ao sentir o peito de Theo subir e descer contra o
meu.
Mesmo que a respiração fosse lenta, o coração dele parecia acelerado.
Assim como o meu.
— Theo?
— Huh? — Ele começou a acariciar minhas costas.
— Vamos mesmo fazer isso? Ligar todos os dias e só mandar beijinhos.
Uma risada baixa deixou seus lábios.
— Você já está desistindo?
— Não. — Apoiei as duas mãos sobre o peito dele, descansando meu
queixo ali para observá-lo. — Só quero ouvir.
Theo me olhou com carinho, deixando as duas mãos em meu quadril,
perigosamente um pouco mais abaixo, tocando a tira de pele exposta ali.
— Tenho certeza que quero você.
Sorri.
— Então... posso te chamar de meu namorado quando voltar para casa?
— questionei, me sentindo uma garota boba e apaixonada, mas adorando a
sensação.
O sorriso dele foi grande e lindo, e cataloguei aquele detalhe em
pensamento como o mais belo de todos que Theo já me oferecera até ali.
— Pode começar a me chamar assim agora — sugeriu.
— É? — Os cantos dos meus lábios tremeram, mal contendo o sorriso. —
E como te chamo de namorado em italiano?
— Mio ragazzo — disse rouco, umedecendo os lábios inconscientemente
e levando os olhos pretos bonitos até minha boca.
Estiquei apenas um pouco o corpo sobre o dele e aproximei o rosto do
seu.
— Mio ragazzo — sussurrei, percebendo a expectativa do jovem em
meus lábios. Sorri, pousando-os sobre a ponta do nariz dele.
Theo bufou.
O beijei outra vez, de forma preguiçosa, dessa vez na bochecha. E então
dei outro em seu queixo... o seguinte no cantinho da boca.
— Valentina... — Um pedido.
Ri.
— O quê? — Me fingi de desentendida. — Quer que eu te beije aqui?
Ele grunhiu, apertando o abraço, prensando meu quadril contra o dele.
Devíamos parar.
Eu deveria subir e tentar dormir.
— Aqui, então? — Mesmo assim continuei provocando.
— Estou no meu limite, sabe — ele murmurou — e você está presa bem
aqui, na minha cama.
Ri alto quando ele girou o corpo, me colocando habilmente de costas no
colchão. Em segundos, Theo estava sobre mim.
— Shhh — sussurrou. — Ou vai acordar a nonna.
Continuei sorrindo.
— Conseguimos vencer duas semanas — falei baixinho, levando uma das
mãos até a mecha preta que caía sobre um dos olhos do rapaz. — Não
vamos fazer nada esta noite.
— Não vamos.
— Mas eu ainda quero ser sua primeira — falei, fazendo-o engolir em
seco.
O olhar dele me levou a fazer o mesmo.
— Você vai.
Meu coração acelerou o ritmo, minha garganta se fechou em um nó de
saudade que eu já começava a sentir.
— Mesmo?
Theo me beijou devagar.
— Mesmo — prometeu.
— Depois de um encontro romântico?
Ele sorriu.
— Ou depois de uma noite na piscina — provocou, afastando um cacho
do meu rosto. — Foi realmente difícil me segurar naquela noite, sabe disso,
não sabe?
— Você dormiu no chão naquele dia. — A risada me escapou.
Foi difícil para mim também, eu quase disse. Quando Theo me segurou
contra seu corpo dentro da água e eu senti a pele dele contra a minha...
Quando eu percorrera aquele abdômen esculpido por anjos tão bronzeado e
lindo com a mão...
Céus...
Eu merecia um prêmio por conseguir manter a linha.
O rapaz inclinou outra vez, prensando o corpo pesado e firme contra o
meu na cama, me tirando o ar de uma forma que eu jamais poderia explicar.
Ele me beijou devagar, sem pressa, me prendendo ali como se me
provocasse ao dizer sem palavras que, quando o sol nascesse, não me
deixaria partir.
Nos beijamos por minutos demorados e, quando nossas respirações
pesaram, ofegantes, Theo sabiamente se afastou para o canto e me puxou
para um abraço, colando minhas costas em seu peito.
Aquele silêncio reconfortante recaiu de novo, por mais tempo dessa vez.
Pensei que Theo já estivesse dormindo, e minha própria respiração
começou a desacelerar quando ele sussurrou contra meu ouvido:
— Vamos nos ver em breve. Vai passar rápido, e aí estarei te abraçando
assim de novo.
Fechei os olhos, pressionando minha mão contra a dele em minha
barriga.
— Não demore, então — pedi, sonolenta.
— Não vou.
Com isso, adormeci nos braços do meu namorado italiano, sonhando
colorido outra vez.
“Eu vou ficar do seu lado mesmo quando cairmos.
Eu serei a rocha que te sustenta e te levanta para ficar de pé.
Eu não vou te deixar ir.
Ninguém pode tomar o seu lugar.
Algumas brigas e noites solitárias
não são o suficiente para deixar tudo ir embora.
Eu não te deixarei cair.
Eu não te deixarei partir.
Não importa onde você esteja...
Não importa onde você esteja, eu estarei lá.”
No Matter Where You Are (Us The Duo)
TINA

Duas semanas depois...

Encarei a porta de madeira que eu evitara nos últimos dois anos.


Aparentemente, não estava diferente do que eu me lembrava: ainda tinha os
entalhes perfeitos na moldura do vidro, o que permitia ver tudo dentro do
cômodo. No entanto, a sensação de tocar aquela maçaneta fria era diferente.
Meu coração doía apertado com a lembrança que restava da última vez
que estivera naquele lugar.
Enchi o peito de ar e o soltei devagar, afastando a vontade de recuar e
voltar para casa. Eu não viajara por quase quatro horas para desistir no
final.
Prometera a mim mesma que seria forte e colocaria um fim naquilo.
Eu o faria, então.
Empurrei a porta com um rangido leve, tentando ignorar a pergunta que
me perturbava desde o momento em que colocara os pés ali.
Por que está vazio?
Era quarta-feira. Normalmente, meu pai ensaiava com os alunos no local
até umas seis da noite, e ainda eram duas horas.
O eco dos meus passos hesitantes se difundiu pelo estúdio, e deixei que
meus olhos fitassem por alguns segundos a bailarina que me encarava do
espelho.
O cenário dos meus sonhos cinzas.
— Pai? — chamei, depois de verificar que seu escritório estava vazio.
Então, me dirigi à pequena cozinha. — Pai?
Um ruído seco, mas alto, podia ser ouvido pelo lugar, e o eco do vazio se
fez presente. Quando me virei de novo para a área de dança, encontrei o
homem parado na porta por onde eu passara um ou dois minutos antes.
Pensei que estaria pronta para quando o visse outra vez. Passara os
últimos dois anos o evitando a todo custo. Se nos visitava em Boston, eu
não o recebia; me trancava no quarto até que papai partisse. Se me
encontrava no mesmo ambiente que ele, encarava os pés até que meu pai se
fosse.
Mas ali estava eu.
Prensei os lábios, fechando as mãos em punho com tanta força que meus
dedos reclamaram. Tentava, com muito empenho, afastar a onda de
lágrimas que ameaçara sair.
Sempre achara meu pai bonito e conservado demais para a idade. Era alto
e tinha um porte físico de um atleta, carregando no rosto um sorriso
simpático e carinhoso. O homem parado diante de mim, me olhando com
assombro e tanta dor, era uma casca dele.
Um fantasma do que um dia fora o bailarino Matt Ward.
As mechas castanhas do cabelo liso estavam enfeitados por mais fios
brancos do que eu me lembrava, e a barba por fazer deixava claro que ele
não se incomodara em tirá-la há semanas. Os olhos castanhos, sempre tão
cheios de vida e brilho, pareciam apagados, iluminados somente pela
surpresa de finalmente me ver ali.
Ele estava horrível.
Aparentava estar mais magro também, e eu me perguntei há quanto
tempo o Sr. Ward não dormia de verdade. A sombra debaixo dos olhos
indicava muito tempo.
Engoli em seco e, quando tentei falar, minha voz falhou.
Ele deu o primeiro passo, e o segundo. Quando atravessou o pequeno
salão e me alcançou, seus olhos estavam vermelhos; lágrimas já escorriam
ali.
No momento em que ergueu uma das mãos para tocar meu rosto, papai
hesitou.
— Minha garotinha... — disse rouco. — Veio mesmo ou estou sonhando
de novo?
— Sou eu, pai — respondi, desviando os olhos dos dele. — Eu... —
Inspirei. Empurrei aquela tristeza e a saudade para o fundo do peito, onde
eu as mantivera por tanto tempo. — Eu...
Ensaiara por três horas no carro o que diria a ele. Jeremmy, ainda
emburrado pela minha decisão, dera algumas ideias do que dizer ao nosso
pai enquanto dirigia até ali. Porém, quando escutei a voz... Quando os olhos
vermelhos e cheios de angústia me encararam...
Qualquer raiva e palavras feias que guardei para ele se dissiparam em
minha mente.
Soltei um riso seco e sem graça.
— Não sei o que dizer, sinceramente. — Diminuí a voz. — Não sei por
que vim aqui.
— Tina...
— Acho que já vou. Se cuida.
— Não! — Sua voz oscilou, aquele foi o som mais quebrado e
desesperado que já ouvi. Partiu meu coração. — Por favor, filha. Não... por
favor.
Não chore... Não...
— Escute o que tenho para dizer, por favor — implorou.
— Não quero desculpas — ralhei baixinho. — Não quero... — Ergui meu
olhar para o teto, piscando mais rápido para evitar a umidade que se
formava ali. — Chega de tentar se desculpar ou apagar o que fez! Você
tinha uma família linda para cuidar e jogou isso no lixo por um momento.
Um momento de dois ou três minutos que... que arruinou tudo. E pra quê?
Olha só para você e...
Me calei quando os braços dele envolveram meus ombros e me puxaram
para um abraço apertado.
Não consegui mais.
O choro que rasgou minha garganta saiu rouco e despedaçado, como uma
criança que acabara de cair e ralar o joelho. Chorei contra o peito do meu
pai. Apesar da bagunça, ele ainda tinha aquele cheiro de perfume caro.
Pensei em empurrá-lo para longe, mas não tive forças para me mover um
centímetro sequer.
Então apenas chorei.
Chorei como há muito tempo não me permitira chorar.
Soluçando como a Valentina de cinco anos ao cair no primeiro dia de aula
na escola de dança. Chorei como uma garotinha machucada e vazia.
E o som do meu choro foi ecoado pelo do professor de balé, que
continuava murmurando pedidos de desculpas enquanto soluçava,
acariciando meu cabelo como fazia para tentar me acalmar.
Aquilo só partiu mais um pedaço carente dentro de mim.
— N-não devia... — solucei, cortando cada palavra em sílabas
gaguejadas. — N-não d-devia t-ter... — Afundei mais o rosto em sua
camisa social, encharcando tudo. — P-por que f-fez isso? — Chorei mais,
minha cabeça doía. — Por q-que t-tro-cou a gente, pai?
Ele também soluçou, e não, eu ainda não estava disposta a perdoá-lo.
Sim, sabia que continuar punindo papai e o afastando só me chatearia mais,
mas não consegui controlar o aperto no coração ao ouvi-lo tentar falar,
superar o choro para que as palavras ecoassem.
“Sinto muito” eram as duas únicas coisas que eu conseguia compreender.
Me afastei, enfim, enxugando o rosto no suéter rosa, manchando-o de
rímel e lágrimas.
— Eu... Só queria pôr um ponto final — murmurei. — Parei de dançar
por sua causa, mas isso só me fez ficar ainda pior.
— Valentina...
Fechei os olhos.
— Não sei se consigo esquecer o que vi naquela noite, pai — confessei,
rouca. — Vocês só estavam se beijando, mas foi muito mais do que isso.
Me lembrar da dor nos olhos da mamãe quando você contou tudo... Sei que
fez isso com esperança de que ela te perdoasse, mas... Ela não o fez. Eu
também não consigo fazer isso.
— Não me tire da sua vida — pediu, o desespero embalando sua voz. —
Por favor, Tina, eu... Sei que não significa nada para vocês, mas... pago pelo
meu pecado todos os dias. Eu... Eu sei o que perdi e porque perdi e...
Entendo que jamais vou ter minha família de volta, que não confiam mais
em mim, mas eu imploro... Imploro para que não me tire da sua vida, filha.
Mordi o lábio, tentando inutilmente impedir as novas lágrimas.
— Por quê? — foi o que consegui dizer. — Por que fez aquilo?
Ousei encarar meu pai quando o silêncio fez parte da conversa.
— Por que, pai?
— Eu... — Fechou os olhos. — Sua mãe e eu estávamos brigando muito,
tentávamos esconder de vocês. Ela insistira para que eu me aposentasse,
para que ficasse mais em casa porque estava trabalhando muito e... e... Eu
não dei ouvidos. O estúdio, minha academia, ver o grupo finalmente se
apresentando naquele anfiteatro... Era um sonho. Um dos professores de
prestígio em uma escola de Paris me ligou avisando que estaria na
apresentação. Eu o conhecia, sabia que ele dava chances aos que geralmente
estavam mais escondidos. Dizia que, se a dedicação de quem estava em
segundo plano fosse genuína e tão cativante quanto a de quem estava no
centro, isso merecia ser recompensado. Então, não te dei o papel principal.
Insisti para que treinasse mais naquelas semanas porque sabia que, quando
aquele homem te visse dançando, não conseguiria deixar Nova Iorque sem
antes te oferecer uma bolsa em Paris.
Meu coração estava acelerado. Aquela foi uma explicação que silenciou
um pouco o aperto de pensar que meu pai escolhera Lyssa porque gostava
dela.
— Eu queria ver você voar longe, Tina. Não só você como todos os
outros, e acabei trabalhando demais, me concentrando demais. Discutir com
sua mãe se tornou rotina e, apesar de ela também desejar o melhor pra você,
queria que eu me esforçasse menos. Trabalhasse menos. Ficasse mais tempo
em casa. — Vergonha pintou as feições do meu pai, e ele parecia tão mais
velho e magro que senti uma fincada forte no peito. — Juro por tudo que é
sagrado que não pensava nas minhas alunas dessa forma, Tina. Eu... —
Engasgou com o choro, atropelou as palavras. — Naquela noite, Lyssa
insistiu para repassar os passos porque garantiu que não estava conseguindo
acompanhar. Ela de fato faltou em alguns ensaios por conta de problemas
em casa.
Eu me lembrava. Me lembrava de substitui-la em alguns ensaios também.
— Eu estava cansado e extremamente irritado depois de brigar com sua
mãe em uma ligação, dissemos coisas um para o outro que não queríamos
realmente. Quando me assustei, Lyssa me beijou. — Encolheu. — Meu
maior erro foi não impedir. Só me dei conta do que estava fazendo, do que
fiz, quando escutei seu choro. Quando vi você atrás daquela pilastra,
percebi o que tinha perdido.
Um erro momentâneo que arruinara um acerto de uma vida inteira. Cada
ação importa, cada segundo sem pensar na merda que vai fazer importa.
Um beijo. Os dois só trocaram um beijo, e ele custara uma família toda.
— Olhe onde estamos agora — debochei, e dizer aquilo, naquele tom, fez
um gosto amargo preencher minha boca. — Você vendeu a academia. —
Jeremmy me contara a caminho de Nova Iorque. Meu pai se encolheu com
cada palavra. — Perdeu seus alunos. Perdeu a mamãe, Jeremmy, Gina e
eu...
Ele sabia. Sabia de tudo isso. Eu via o quanto se arrependia.
Mesmo assim.
— Não valeu a pena, valeu? — O encarei uma última vez. — Sei que
não. Também sei que se arrepende.
Um fiapo de esperança pareceu brilhar em seus olhos.
Mas ainda doía. Eu ainda não conseguia.
— Mas nada que disser ou fizer vai mudar o que aconteceu. Porque,
mesmo que eu te perdoe... ainda vou lembrar.
— Filha, por favor...
— Só queria que soubesse disso — o interrompi, sentindo a garganta
fechar de novo. — Vou indo.
Passei por ele, e tudo que escutei foi o choro amargurado de um pai
solitário. Ele sabia o que fizera, e provavelmente aceitara o destino que
levara a própria família a seguir: longe dele.
Mas me lembrei da história de Theo, do que o pai fizera em meio à tanta
dor, e desesperança, e saudade. Quando soube que não teria mais a esposa
de volta. Theo se culpava pela decisão do pai de tirar a própria vida. Por um
segundo, me permitir divagar para um futuro em que meu próprio pai
chegava àquele ponto...
Um arrepio frio e sombrio percorreu meu corpo, alcançando meu
coração.
O erro foi dele. A escolha foi dele. Mas, se algo acontecesse com
meu pai, se eu o perdesse como Theo perdera o dele...
Eu não suportaria.
Parei, fechando os dedos com força ao redor do colar de moeda que
Theo me dera na ponte.
Perdoar não significava esquecer.
E eu jamais esqueceria, mas talvez... com o tempo, a dor seria
menor.
Me virei para o homem parado no centro do estúdio de dança.
Ele me encarou de volta, esperando mais uma acusação afiada e
verdadeira da filha que o evitara por mais de dois anos.
— Uma vez por mês.
Declarei, e o professor de balé franziu a testa, confuso.
— O quê?
— Vamos sair para tomar um café... — Respirei fundo. — Uma vez por
mês.
Poderia jurar que as pernas do homem tremeram com a falta de estrutura,
com a surpresa que lhe dera uma rasteira. Os olhos dele brilharam mais, e
lágrimas gordas correram por seu rosto.
— Obrigado — sussurrou, rouco.
Assenti, ainda estranhando a sensação em meu peito.
— Faça a barba — falei, séria. — Corte esse cabelo. E, pelo amor de
Deus, melhore essa postura.
Meu pai sorriu.
— Sim, querida.
— Te encontro no Café em uma hora — disse, já me virando outra vez
para sair.
Mas antes que eu pudesse atravessar a porta e seguir pelo corredor, a voz
hesitante e cansada do homem cortou o estúdio.
— Jeremmy... — Sua voz falhou. — E-ele está aqui?
Meu irmão se recusara a subir comigo; ficara no carro, esperando no fim
da rua, grunhindo que não queria correr o risco de encontrar com nosso pai.
Apesar de ser um jovem gentil e de sorriso cativante, o garoto não perdoava
tão facilmente. Principalmente... aquilo. Jemmy não perdoaria aquela
atitude tão cedo, se é que o faria algum dia.
Se sentia falta do nosso pai, não demonstrava, sempre cobrindo as feições
bonitas com uma seriedade assustadora.
O humor dele não estava melhor antes de eu pedir que Jeremmy me
trouxesse até ali: tivemos uma reunião familiar dois dias antes, e Gina
finalmente desabafara o que vinha guardando há anos.
Suspirei, lançando ao meu pai um olhar sobre o ombro.
— Vai ser mais complicado com ele, sabe disso — falei.
A dor no rosto do homem foi de dar pena. Contudo, ele estava ciente de
que só estava colhendo o que plantara.
— Nos vemos mais tarde, pai.
— Até mais, querida.

— Você está horrível — A voz familiar e reconfortante me recebeu assim


que passei pela cozinha. Jeremmy avisara que precisava resolver algumas
coisas do trabalho antes de voltar para casa, mas eu desconfiava que um
restaurante chinês seria o desvio de rota.
Giovanna e ele ainda tinham uma conversa inacabada, ao que tudo
parecia.
Sorri para a mulher, que me recebeu com uma colher estendida: o molho
caseiro que ela usava para jantares especiais.
Provei, deliciada com o sabor, como sempre. Então, contornei a cintura
fina dela e apoiei meu rosto em suas costas.
— Me sinto horrível — resmunguei, inspirando seu cheiro. Cheiro de lar.
— Minha cabeça está explodindo.
— Como foi com seu pai? — A mão dela acariciou a minha.
— Foi... melhor do que eu esperava.
— Como se sente?
— Mais leve — confessei.
Minha mãe suspirou e ficou em silêncio por alguns longos segundos.
Aquele era um assunto que eu evitei por muito tempo, e mentira para meu
pai mais cedo: dissera que mamãe não o havia perdoado. Esfregara aquelas
palavras na cara dele.
Mas ela tinha, sim.
Nos últimos dois anos, fora ela quem permitira as visitas dele para tentar
falar comigo, para tentar me ver. Fora a ex-bailarina que me pedira diversas
vezes que desse uma chance a ele.
Eu jamais conseguiria entender como minha mãe tinha sido forte o
bastante para perdoá-lo, mas, depois de uma tarde com papai, percebi que
talvez não fosse impossível.
— Você ainda o ama? — perguntei baixinho.
Silêncio foi sua única resposta.
Talvez ela não tivesse ouvido, talvez estivesse divagando, assim como eu.
Porém, depois de alguns segundos, minha mãe afastou meus braços de sua
cintura e se virou para me encarar.
Ela me observou com carinho, colocou alguns cachos do meu cabelo para
trás.
Então disse, finalmente:
— Sempre vou amar aquele cabeça-dura. — Sorriu, com aquele olhar
esverdeado exalando a sabedoria materna. — Ele foi meu primeiro amor,
meu melhor amigo, é o pai das pessoas mais preciosas do mundo e me
guiou para a vida que tenho hoje. Se me arrependo de tê-lo conhecido? No
dia em que ele me contou sobre aquela bailarina, posso ter pensado nisso.
Imaginei que seria melhor arrancar meu coração para apaziguar a dor, mas...
— Outro suspiro escapou. — Quando Jeremmy me ligou aquela noite do
hospital, lembrei que não era apenas uma esposa apaixonada de coração
partido: era uma mãe também. Quando vi você naquela cama, a perna
quebrada e um dos braços engessados ... Boa parte da dor que eu sentia se
dissipou e deu lugar a uma mãe preocupada e arrependida.
Franzi a testa.
— Arrependida?
— Ah, minha pequena fada... — Ela me puxou contra seu peito, me
abraçando forte. — Não deixo de pensar que, talvez... Se eu estivesse lá
naquele dia, na fileira, te vendo se apresentar... Talvez tivesse te dado forças
para terminar a última dança. Eu estava tão deprimida que preferi me
encolher debaixo das cobertas, que me esqueci que meus filhos também
estavam sofrendo.
— Mãe...
— Às vezes, penso que a culpa foi minha — me interrompeu, e havia
amargura em sua voz falha. — Brigava muito com seu pai, o cobrava muito
e...
— Não — a afastei com raiva. Não dela. — Jamais se culpe por isso. A
escolha de trair foi dele. Ele devia ter conversado com você sobre o que
estava incomodando, não procurado consolo na boca de outra.
Aquilo a fez se encolher, fazendo eu me arrepender do tom que usara na
voz.
— Mãe... — Fechei os olhos. — Nunca te culpei por não ter aparecido.
Sim, precisava de você lá, mas não, não foi culpa sua eu cair. Estávamos
todos quebrados no fim das contas, todos com dor demais. Não te culpo por
ter se fechado. Eu também me fechei. Mas estamos juntos agora, certo?
Uma lágrima escorreu pela bochecha sardenta dela quando minha mãe
piscou.
Ela assentiu.
— Vamos... tentar superar isso. — Sorri. — Juntas. Você está com o Rick
agora, e eu nunca vi um homem tão cachorrinho de alguém igual ele é com
você...
— Tina! — Ela corou.
— O quê? — Ri. — É verdade.
Ela sabia que era. Rick só faltava beijar o chão que minha mãe andava.
Não duvidava que o homem aparecesse com mais um buquê de rosas para
ela naquela noite, quando chegasse do trabalho. Apesar de saber que tanta
melosidade a frustrava, e de uma parte minha não enxergar realmente um
futuro para os dois, deixava de lado minhas impressões para torcer pela
felicidade dela.
— E você, huh? — Ergueu a sobrancelha, se afastando para voltar a
atenção ao molho.
— O que tem eu? — Lambisquei uma calabresa do prato de petiscos que
ela deixara sobre a bancada.
— Quando vai me apresentar o famoso cara da fonte?
Eu quase engasguei.
Meus olhos se arregalaram.
Sem me olhar, os lábios de Sabrina Ferreira se repuxaram com presunção.
— O quê? Acha mesmo que sou uma idiota? — continuou, depositando
com a colher um pouco de molho no canto da mão para provar. — Sei de
tudo que acontece com meus bebês.
Minha expressão se fechou.
— Quanto você pagou à Gina?
A mulher fingiu ofensa, mas o sorriso logo voltou ao rosto bonito.
— Duzentos.
— Duzentos? — Minha boca se escancarou. Aquela safada interesseira!
— Quer dizer que você sabia o tempo todo?
— O tempo todo, não. Porém, quando percebi que vocês nunca estavam
juntas nas ligações e sempre inventavam desculpas toscas sobre onde uma
ou a outra estava, tive uma conversinha séria com ela.
Me surpreendia mamãe não ter me ligado na mesma hora que soube.
Como se lesse meus pensamentos, ela me encarou enquanto limpava as
mãos em um pano de cozinha.
— Briguei com ela quando soube, mandei Gina buscar você ou insistir
para que voltasse, mas então ela me contou a história da fonte, e depois
disse que, em Bolonha, ele te fez dançar. — Um sorriso mais doce iluminou
o rosto da mulher. — Senti que você estava no caminho certo.
— Fez Gina te dar relatório todos os dias. — Bufei.
Minha mãe deu de ombros, a trança dourada caída sobre um deles.
— Ela me ligava assim que terminava de conversar com você —
assentiu. — As fotos que você mandava para Gina eram as únicas coisas
que me acalmavam.
Uma pausa.
Um sorriso maior.
— E o Theo é uma gracinha.
— Mãe! — Revirei os olhos. Minha vez de corar.
— O quê? — Riu. — Ele é! — Minha mãe se aproximou, parecendo,
pela primeira vez, a encarnação de uma mulher casamenteira dos livros de
Jane Austen e Julia Quinn. — Ele te chama por algum apelido fofo em
italiano?
— Não. — Menti.
Tentei fugir, mas ela me seguiu.
— Chama, sim! — Outra risada leve e alegre. — Mia ragazza? Mia
bella? Amore mio?
— Seu sotaque é horrível — falei, tentando afastar o rubor do meu
próprio rosto.
— Diz e eu te deixo em paz — insistiu.
— Não.
— Ah, vamos lá, Tina. Eu vivi pra te ver apaixonada.
— Mas eu não...
— Acha que não sei com quem fica conversando até tão tarde quando se
tranca no quarto? — Franziu a testa em desafio.
Não respondi.
Talvez eu tenha, sim, subestimado mamãe.
Aquela mulher astuta e brilhante.
— Me diz, ou na próxima ligação com seu namorado te faço passar
vergonha.
Estreitei os olhos.
— Que tipo de vergonha?
O sorriso dela foi venenosamente doce.
— Ah, minha filha, sou bem criativa quando quero.
Inspirei.
Pensei.
Não sabia se queria, realmente, pagar para ver o que ela era capaz de
fazer.
Por isso murmurei:
— Raggio di sole.
— O quê? Eu não ouvi.
— Ele me chama — repeti entredentes — de raggio di sole.
— Own... — Apertou minha bochecha, mas então ficou séria de repente.
— Isso não é nada pervertido, é?
Gargalhei, sem conseguir segurar.
— Não, mãe!
— Então o que é?
— Raio de sol. — Sorri.
A careta fofa e engraçada retornou, a mão em minha bochecha também.
— Own...
Senti meus olhos rolarem outra vez.
— Vou tomar um banho antes do jantar — avisei, me afastando dela.
— Não demore.
Subi as escadas, sentindo meu peito, ficar mais leve, apesar de todo o
corpo reclamar de cansaço. Mesmo não prometendo muito além de um café
por mês com meu pai, eu contara a ele parte da viagem pela Itália naquela
tarde. Não revelara que pretendia retomar as aulas de balé, mas fora
consideravelmente bom para um primeiro reencontro.
O segundo passo seria menos difícil, Theo me dissera.
E aquele momento com a minha mãe...
Há tempos não dividíamos algo assim, risadas e provocações bobas entre
mãe e filha.
Eu também me fechara para ela nos últimos anos. Me isolara de todo
mundo.
Parei no alto das escadas, a observei cantarolar da cozinha.
Não pensei muito ao correr degraus abaixo e colidir com seu corpo outra
vez, a abraçando forte.
— Tenho orgulho de ser sua filha — declarei, beijando a bochecha
daquela mulher.
Ela mordeu o lábio, os olhos verdes brilhando.
— Tenho orgulho de ser sua mãe, querida.
Sorri para ela e observei seu rosto uma última vez antes de subir.
O retrato perfeito do rosto que eu teria daqui a alguns anos.
— Te amo, mãe.
Senti o beijo quente em minha testa.
— Também te amo, filha.
JEREMMY

Aquela fora uma tarde odiosa.


Apesar de estar realmente feliz por ver Tina finalmente seguir em frente e
superar seus traumas, eu não estava aberto para fazer a mesma coisa.
Não em relação ao homem que ela insistia em chamar de pai.
Eu ainda me lembrava claramente do som que deixara os lábios da minha
mãe quando ele contou o que fez. Foi o pior som que já escutei em toda a
minha vida. Isso e o som do baque seco de Valentina caindo do palco.
Se a orquestra não estivesse ali e a plateia não tivesse exclamado tanto
choque e surpresa, poderia jurar que consegui ouvir o som do osso em sua
perna se partindo. De seu coração também.
A dor que aquele idiota infligira nelas... O que deixara de lado para beijar
uma aluna...
Eu o odiava, sim.
Mas era mais do que isso.
Matt Ward morreu para mim na noite em que o vira segurar Tina nos
braços, suas alunas olhando a tragédia do palco.
Ele trocou nossa mãe, sua esposa, por um momento com uma delas. O
homem fez aquilo. O choro de Valentina a caminho do hospital enquanto
Gina dirigia, o rosto de minha irmã enterrado em meu peito. Eu não pude
fazer nada para impedir sua queda.
Ou quando minha caçula tentou dançar depois de tirar o gesso, o soluço
quebrado que deixara a garganta dela ao cair de novo e de novo.
O rosto pálido da minha mãe, mais magro depois de algumas semanas
deprimida e sem ânimo algum para fazer qualquer coisa além de respirar.
Ele fez aquilo.
E uma parte minha, do filho que, apesar de nunca ter cogitado seguir os
passos do pai, o admirara com tanto amor e orgulho, se sentia ferida, sim.
Mas não era isso que assumia as rédeas da minha raiva quando escutava o
nome dele ou quando o encontrava em casa, pedindo um minuto para falar
comigo ou Valentina... Não, o ódio em meu peito era pelas pessoas mais
importantes na minha vida que sofreram com sua partida.
Eu as protegeria até o fim, e fazer qualquer coisa para colocar um sorriso
no rosto delas era o que me mantinha ciente do que o bailarino, agora
aposentado, fizera.
Admirava a força de vontade de Valentina ao tentar. Minha mãe também
já o havia perdoado de alguma maneira, mas eu não me incomodava em
sequer cogitar pensar em Matt de outra forma. Com outro sentimento.
Apoiei a cabeça no banco do carro e observei o movimento do outro lado
da rua, deixando de lado aqueles pensamentos para criar coragem e
finalmente sair do veículo. Havia um assunto mais importante me
desconcentrando nas últimas semanas. Meses. Talvez anos.
A fachada iluminada por um letreiro em vermelho-alaranjado, o
neon pintando os detalhes dos desenhos do dragão ao redor das letras me
desafiava a sair. Balões de papel-seda enfeitavam a entrada, e o
recepcionista sorriu para o casal que passou pela porta.
Sexta era um dos dias mais movimentados.
Não demorou para que eu a visualizasse lá dentro, com aquele vestido
qipao[35] tradicional que lhe cabia tão bem quanto em qualquer outra
garçonete naquele restaurante.
Vermelho ficava incrível nela.
As mechas escuras sempre trançadas estavam presas em um coque
lateral, um pingente de flor e correntes finas e douradas despontavam do
palito que enfeitava seu cabelo.
Uma parte minha se maravilhava com o contorno das curvas da garota,
com o modo como ela ficava perfeita naquele uniforme; outra, uma parte
feia da qual não me orgulhava muito, odiava saber que Gina trabalhava
naquele restaurante, que o chefe dela a via daquele jeito todo dia.
— Olhar de longe também custa caro. — Fechei os olhos e inspirei
fundo. O canalha sorriu assim que virei o rosto para ele.
Recostado contra o muro, os braços cruzados sobre a roupa preta de
chefe, o homem sorriu daquele jeito que me fez querer quebrar seus dentes
no primeiro dia de Giovanna naquele restaurante, quando deixara Gina
antes de seguir para o trabalho.
— O quê? — ralhei.
— Tsc... — Ele observou a própria mão, tirando uma sujeira das unhas
que provavelmente não existia. — Está ocupando a vaga de um possível
cliente.
— Estou esperando ela acabar. Vim buscá-la.
— E ela sabe? — O homem franziu a testa. — Bem, sendo assim, peço
que entre e aproveite o prato do dia. Por sua conta.
— Não gosto de comida chinesa, valeu.
— Não servimos apenas comida chinesa. — Se desencostou da parede e
se aproximou, colocando as mãos nos bolsos da calça preta. O idiota se
aproveitava da vantagem de eu ainda estar dentro do carro, porque nós dois
sabíamos que o cara era bons centímetros mais baixo do que eu. — Entre,
eu insisto. Gina vai adorar descobrir que você a estava esperando esse
tempo todo do lado de fora.
Mentira, e ele sabia.
— Por que está aqui e não cuspindo ordens para seus funcionários,
Wang? — Voltei a encarar a fachada do restaurante, a jovem sorridente lá
dentro.
Jason se inclinou, apoiando os antebraços na janela do carro.
— Eu disse: você está ocupando uma vaga preciosa. — Sorriu, e eu
precisei apertar o volante com mais força para evitar que, acidentalmente,
acertasse aquela fileira de dentes brancos. Ele ficou pensativo. — E se o
prefeito decidir jantar em um lugar diferente e não parar aqui porque todas
as vagas estavam ocupadas?
— Por favor... — Massageei a têmpora. — Vá a merda.
Wang riu, divertido.
— Já fui. Sempre. Três vezes por dia — disse, se afastando, e então
conferiu o relógio preto em seu pulso. — Vou dar à Gina vinte minutos de
descanso, vocês não podem passar disso.
Ergui a sobrancelha para ele e, apesar de não deixar escapar qualquer
comentário sobre, Jason sabia o que eu pensava naquele momento: para
alguém que já dormiu com ela, Wang estava cooperando bastante.
Aquele despontar de lábios afiados voltou a enfeitar o rosto dele.
— Não confunda as coisas, amigo. Sei muito bem separar meus
sentimentos do trabalho — murmurou com diversão. — E isso foi há um
ano, não precisa feder ciúmes.
Grunhi.
— Mas, se quiser, te conto sobre as coisas que sei que ela mais gosta pra
você não errar na primeira vez... — Piscou um olho, alargando o sorriso
quando abri a porta do carro.
Jason Wang atravessou a rua tranquilamente, erguendo o braço tatuado no
ar, acenando uma última vez antes de entrar em seu restaurante.

Esperei por aquela reação quando vi o chefe de Gina — maldito seja,


sussurrou bem perto do ouvido dela — avisar a ela que eu estava esperando
do lado de fora. Assim que os olhos dourados encontraram os meus, a
expressão no rosto dela se fechou.
Meu plano não era interrompê-la, muito menos revelar que estava ali.
Ficaria até que o expediente dela acabasse, mas Jason sentia prazer em me
aborrecer. Mesmo que Gina não tenha contado a ele sobre o que aconteceu
entre nós, o homem era esperto o suficiente para deduzir que algo tinha
ocorrido.
— Eu disse que não era pra vir me buscar — Giovanna grunhiu assim
que me alcançou no outro lado da rua, me puxando pelo braço para o beco
mais próximo ao notar o olhar dos colegas de trabalho nela. Em nós. —
Nunca. Que droga, Jeremmy!
— Bom, o que você queria que eu fizesse? Esperasse até você decidir
quando seria uma boa hora de conversar comigo? Me olhar nos malditos
olhos? — A encarei e, de fato, aquela era a primeira vez, desde aquela noite
maravilhosa e fatídica, antes de ela voar para a Itália, que a jovem me
encarava. — Já faz mais de um mês, Gina!
Ela continuou bufando, irritada demais para reparar o quão perto
estávamos um do outro naquele momento.
— Vá embora — murmurou, ajeitando o pingente de cabelo que
compunha seu uniforme, alisando o vestido em seguida, como se sentisse
que algo estava fora do lugar. — Vamos fechar tarde hoje. O Jay disse que
me leva em casa, então não se preocupe.
Um riso seco e desacreditado deixou minha garganta.
— Cupom de desconto e biscoitos da sorte não são as únicas coisas que
ele te dá como chefe, não é? — Odiei o tom áspero em minha voz, odiei a
acusação nele. Nós dois sabíamos o quanto Gina detestava quando eu
jogava isso na sua cara, que ela conseguira o emprego depois de uma noite
com ele.
Sabia que ela não dormira com Jason por isso, que ambos se conheceram
em um evento de culinária e acabaram... se divertindo. A oferta de um
trabalho surgira meses depois.
Mesmo assim...
Odiava não ser eu a levá-la para casa.
— Me desculpe — falei por fim, depois de notar a mágoa nos olhos dela.
— Não foi isso que eu quis...
— Foi exatamente o que quis dizer — me interrompeu, seca. — E quer
saber? Não é da sua conta se passo a noite com meu chefe ou não.
Um soco no estômago. Um machucado na ferida já aberta.
— Nós precisamos conversar — tentei de novo. — Está fugindo de mim
desde que voltou de viagem.
— Porque eu não quero falar com você — retrucou, áspera. Depois de
olhar uma vez para o restaurante, ela inspirou fundo, como se chegasse à
conclusão de algo que estava decidindo a um tempo. — Me esquece,
Jemmy. Esquece o que aconteceu naquele dia. — Me encarou, os ombros
para trás, cabeça erguida, mas os olhos... A cor de mel deles era condensada
à incerteza. — Na reunião familiar... fui sincera. Quero começar minha
vida, sozinha. Vocês disseram que me apoiariam, você concordou...
— Sobre você mudar para um apartamento, sobre abrir sua confeitaria,
não... — Acabar as coisas entre nós.
— Não vai funcionar — disse, dessa vez voltando o olhar para as mãos
juntas frente ao corpo. Para que eu não visse a dúvida ali. — Você e eu.
— Porque não gosta de mim. — Minha voz saiu rouca, estranha. —
Porque sou o irmão bobo e nerd da sua melhor amiga.
Ela trincou o maxilar, os lábios pintados de vermelho-escuro se
comprimiram em uma linha fina.
— Porque tem medo que eu te deixe um dia, como meu pai fez com
minha mãe. — Minha voz oscilou, mas eu disse mesmo assim.
Os olhos da jovem se voltaram imediatamente para mim.
— Eu nunca pensei isso! — se defendeu. E como percebia que aquela era
uma dúvida que me cercava, sim, Giovanna insistiu. — Eu nunca te
comparei com ele!
— Então diga: por que dificulta tanto as coisas entre nós? — Dei um
passo, ousei tocar seu rosto com carinho. Gina seguiu aquele toque,
inclinando levemente a cabeça. — Eu te deixaria em paz se não percebesse
que você também parece querer o mesmo. Você retribuiu o beijo naquela
noite, Giovanna. Gemeu meu nome, se é que preciso te dar detalhes do que
aconteceu... Você também me quer.
Ela estremeceu sob meus dedos, tentou não fechar os olhos com a carícia
em sua pele.
— Só estou tentando ser sensata, pra variar — sussurrou. — Não sou
mulher para um cara como você.
Ri.
— É a mulher perfeita para mim. Não inverta os papéis. — Aproximei
meus lábios dos dela, a ponta do meu nariz brincando com o de Gina. — Eu
sou o certinho.
— Então deveria pensar melhor sobre isso.
— Já pensei — murmurei, inebriado com o perfume dela, com aquele
vestido lindo que, se eu pudesse, rasgaria. — Penso nisso há dez anos.
Os olhos dela se abriram, surpresos.
Sua expressão adorável de choque me deu uma nova onda de coragem
para continuar.
— Sempre foi a melhor amiga da minha irmã por quem eu tinha uma
queda, Giovanna — falei, percorrendo o polegar na pele marrom macia e
deliciosa. — Quando se mudou pra cá, se tornou a pessoa que eu deveria
proteger. E agora...
— Agora...? — Correu os olhos lindos para a minha boca.
Sorri.
— Agora, antes... É a pessoa por quem me apaixonei. Sabe disso. Não sei
o que te impede, porque claramente quer isso, mas... eu estive aqui por você
nos últimos anos. Não vou a lugar algum amanhã, ou depois.
Gina levou uma das mãos ao meu peito, a conduziu até o pescoço e, por
um momento, finalmente pareceu ceder. Pareceu querer dizer sim.
Mas quando uma moto de corrida passou por nós, nos assustando, a
jovem despertou dos próprios pensamentos.
Se afastou de mim.
— Preciso voltar ao trabalho.
— Gina...
— Pode voltar pra casa. — Passou a mão pelo vestido, tentando se
recompor.
— Mas...
— Fim de conversa. — Inspirou, por fim, e me olhou séria. — Não
complique as coisas, ok? Se gosta de mim... Se... me ama, então apenas me
deixe em paz.
Abri a boca para insistir, retrucar, mas ela me interrompeu antes que eu
dissesse qualquer coisa:
— É o que eu quero. Por favor.
Algo murchou em meu peito, aquela esperança tola de que finalmente
encontrássemos nosso caminho.
— Vou primeiro — murmurou.
Então foi.
GIOVANNA

Passei pela porta de vidro com o coração agitado e dolorido no peito. Por
que, exatamente, tinha tanto medo de tentar, eu não sabia, mas estava ciente
da expectativa que tia Sabrina e Valentina — até mesmo tio Matt —
colocariam em mim. Jeremmy e Gina? Quem diria, huh?
E se eu o decepcionasse? E se, quando começássemos a namorar, Jemmy
percebesse que não era tudo isso? Brigávamos o tempo todo! Como
poderia funcionar? E se fosse estranho e...
Não. Não seria estranho de forma alguma, beijar Jeremmy naquela noite
não fora nada estranho. Parecera tão certo...
Mas não.
Preferia manter aquele limite e ainda ter meu amigo do que começar algo,
acabar terminando e ter, enfim, um motivo para me sentir fora da família
Ferreira.
Mãos fortes seguraram meus ombros e me viraram em direção à
vidraçaria outra vez, para a calçada, para o carro preto estacionado lá fora.
Então, o cheiro apimentado e delicioso de Jay me atingiu como um soco.
Ele chegou mais perto, por trás, nada incomodado com quem assistia. O
pessoal do Wang’s poderia não comentar sobre, mas mantinham o que
sabiam para si. Eu sentia.
— Ele vai te esquecer — sussurrou em meu ouvido. Aquela afirmação
provocou algo em meu estômago. — Daqui há um tempo... vai esbarrar
com uma mulher de sorriso cativante. Talvez se encontrem em um café ou
trabalhem juntos. Vão conversar, trocar números. Um encontro vai se tornar
dois, e o segundo se tornará o terceiro. Quando se assustar, o Sr.
Emburradinho vai chegar de mãos dadas em um encontro de família, e você
vai estar lá para assistir...
Engoli em seco, meu coração acelerando dolorosamente.
O filme se tornou nítido em minha cabeça, tão real que não consegui
mandar meu chefe cuidar da própria vida.
— Porque você ama ele, mas não dá o braço a torcer, vai assistir a tudo,
convencendo a si mesma de que não se importa se ele está com alguém que
não você. Mas, por dentro, vai desejar afogar a Srta. Sorriso Cativante em
algum lugar. — Senti o sorriso de Jay na minha pele. — Então, amor, por
que não se poupa da história triste e vai logo atrás dele?
Estávamos na recepção. Jason me empurrou sutilmente de volta para a
saída enquanto falava.
Meus olhos ainda fitavam o carro lá fora. O vidro escuro não me deixava
saber se Jeremmy ainda estava observando a cena ou não. Talvez Jason
soubesse que sim, o rapaz assistia a tudo, fervilhando daquele ciúme que eu
compartilhava no momento, pela garota de sorriso encantador, ruiva e
peituda, que imaginava em uma reunião de família do futuro.
— Pensei que me quisesse, Jay — murmurei, não me importando se
Kade, o amigo de Jason e sócio do lugar, que substituíra o rapaz da
recepção naquela noite, ouvia. O olhar entediado dele me mostrava que o
jovem de óculos e lábios bonitos já conhecia a peça, já estava acostumado
com as cantadas idiotas do chefe Wang.
— Ah, eu quero — murmurou. — Mas não sou idiota de tentar algo com
você de novo.
Ri, mesmo sentindo o estômago revirar.
— Só me aproximo de corações disponíveis, amor. — Tirou as mãos de
mim, se afastando. Só um pouco. — Deus me livre estar no meio de um
triângulo amoroso.
Virei o rosto para ele.
O safado sorria, sem vergonha alguma.
— Ainda estou em horário de trabalho. Pensei que fosse rígido quanto a
isso.
Jason se inclinou para perto do amigo e, como se lessem a mente um do
outro, Kade estendeu a ele o jarro de vidro.
O chefe mal olhou para o biscoito da sorte em sua mão, apenas fechou o
punho e quebrou a massa seca. Ele tinha aquela mania de pegar um dos
biscoitos aleatórios e usar a frase neles para completar algum discurso
motivacional para os funcionários do restaurante. Às vezes, a frase
coincidentemente complementava sua fala; outras tantas as palavras do
papelzinho não tinham nada a ver, nos arrancando risadas bobas e alegres.
Apesar de ser um cretino idiota quando se tratava de manter um
relacionamento duradouro, Jason Wang sabia ser um homem decente, até
muito carinhoso, de sorriso galante e um coração bondoso. Quando
aprendesse a ouvir os próprios conselhos seria, então, um cara quase
perfeito.
Ao finalizar a leitura do que tinha em sua mão, abriu aquele sorriso
largo e lindo e virou a tirinha para mim.
“Às vezes, você precisa de um tempo para pensar; outras vezes você só
precisa fechar os olhos por um segundo e agir.”
Não evitei meu próprio sorriso. Tomei o papel de sua mão.
— Você tem mais cinco minutos pra ir lá fora, dizer que ama o cara, dar
uns beijos nele e voltar para o trabalho — declarou, cruzando os braços.
Mordi o lábio.
Li o papel de novo.
Encarei Jason.
Por fim, o menos interessado em fazer parte do assunto. Mesmo assim,
aparentemente o mais sensato.
— O que acha, Kade?
O rapaz conferiu o relógio no pulso inexpressivamente.
— Quatro minutos agora — disse, e então ergueu a sobrancelha. O que
você está esperando? Era o que ele parecia dizer.
Meu sorriso ficou mais largo, meu coração bateu com mais urgência.
Fechar os olhos por um segundo e agir.
Abri a porta de vidro e disparei para o outro lado da rua. Corri até o
Sedan preto.
A janela escura desceu quando me aproximei, ofegante.
— Veio repetir que o “Jay” vai te levar para casa? — A expressão no
rosto de Jeremmy confirmava que ele assistiu à cena, e a dor nos olhos dele
me assentia que fora difícil de ver.
Sabia que Jason se aproximara de mim com aquele propósito.
Mas não importava mais.
— Saia do carro — pedi.
O rapaz deu uma risada seca.
— Já estava de saída, eu só...
— Saia do maldito carro, Jeremmy — o interrompi, puxando a maçaneta,
xingando ao perceber que estava trancado.
Quando o encarei, ele destrancou, ainda emburrado.
Emburrado de uma forma que me fez querer beijá-lo ainda mais.
Depois de relutar um pouco, o jovem saiu, visivelmente confuso e
cansado. Não esperei nem mais um segundo antes de contornar os ombros
dele e o puxar para um beijo.

Jason só me dera cinco minutos. Quatro, com a demora de Jeremmy em


atender meu pedido. Apesar de ser uma pessoa bem flexível para algumas
coisas, trabalho não era uma delas. Meu chefe era insuportável em relação
aos horários.
— Eu ainda te acho insuportavelmente careta — sussurrei sobre os lábios
de Jemmy.
A respiração dele se misturava à minha, quente, rápida, ansiosa por mais.
— Mudou de ideia? — perguntou, ainda surpreso.
— Pensei em você com uma ruiva gostosona e não gostei da ideia. — Fiz
careta.
Jeremmy riu, enlaçando seus braços em minha cintura.
— Não gosto de ruivas. — Mordiscou meu lábio inferior. — Adoro
morenas.
— Me desculpa dizer aquelas coisas... — Naquela noite, no meu quarto,
depois que ele disse o que sentia por mim tão apaixonadamente. — Eu... eu
menti.
— Eu sei disso. — Me beijou com carinho. — Soube na hora em que
proferiu aquelas coisas.
— Eu também te amo. — Soltei as palavras que eu oprimira por tanto
tempo em meu coração. — Eu te amo mais do que consigo demonstrar.
Ele fez uma careta.
— De fato, não tem feito um bom trabalho.
— Vou te mostrar então, todos os dias. — Fechei os olhos, apoiei minha
testa na sua. Meu coração... parecia mais leve agora.
— Farei o mesmo — prometeu.
— Ainda te acho um idiota nerd e careta — murmurei, ficando na ponta
dos pés, o provocando.
A risada de Jeremmy ecoou pela rua.
— Certinho demais... — Ele imitou minha voz. — Tão irritante e
certinho....
Gargalhei.
Mas um pensamento me veio, e antes que ele pudesse me beijar de novo,
perguntei baixinho.
— E se não funcionar? E se você me achar tão insuportável e quiser
fugir?
— Gina — sorriu de um jeito novo, um jeito que não sorrira antes. Havia
divertimento ali, mas algo mais intenso e provocativo. Aquele Jeremmy eu
não conhecia —, convivi com você nos últimos dez anos, sei de cada mania
irritante e até tenho uma pasta de áudios dedicada aos seus roteiros quando
fala durante o sono. Tenho certeza que vou dar conta do recado.
Sorri.
— Mesmo? Olha, olha, hein...
— Mesmo. — Me beijou. Uma, duas vezes. — Vamos fazer funcionar,
mesmo que eu ainda te ache insuportavelmente impulsiva e mandona.
Dei risada.
— Que bom que sabe. Os riscos foram apresentados.
— E eu assumo todos eles. — Me fitou, os olhos castanhos brilhando de
maneira incandescente e voraz.
— Não podemos contar para sua mãe e sua irmã sobre isso.
Ele fechou a cara, e eu não admitiria o quanto o jovem ficava sexy com
aquela expressão, principalmente quando uma das mechas loira-escura do
cabelo sempre perfeitamente penteado para trás encontrava caminho em sua
testa.
— Por que não?
— Porque não vão nos deixar em paz — insisti: — Por favor. Só nos
primeiros meses.
— Meses?!
— Por favor... — Juntei as mãos em frente o corpo. — Uh?
Massageou a têmpora.
— Tudo bem.
Sorri, passando a mão em sua nuca para puxá-lo para um último beijo.
— Te vejo mais tarde.
Aquela carranca piorou.
— Vou esperar aqui.
— Jason e eu não temos nada há um ano! Não vai...
— Se acha que vou ir embora e esperar que outro homem te leve em
casa, está enganada.
Bufei.
— Ciumento.
— Com o cara que já te levou pra cama algumas vezes? — Riu com
escárnio. — Sou mesmo.
Ele tinha um ponto.
— Então entre pra jantar, não deve ter comido nada desde que chegou da
viagem com a Tina. — Eu também queria saber como fora a tarde com tio
Matt, apesar de duvidar que Jeremmy tenha decido do carro para vê-lo.
Sabia que o rapaz guardava algumas coisas que queria desabafar em voz
alta. — Por favor.
— Comer do prato que o cara que dormiu com você fez... — Outra
risada.
— Qual é, Jeremmy! — Segurei o riso, pegando a mão dele.
Como se invocado para testar a paciência do jovem, Jason me esperava
na entrada, apontando o relógio em seu pulso. Indicando que o tempo tinha
acabado.
— Ele não está cozinhando esta noite. Fica circulando no restaurante,
conversando com os clientes.
— Ótimo. — Mesmo emburrado, aceitou ser levado por mim.
Resmungando.
— Daqui duas horas, vamos embora. — Sorri de forma provocativa para
Jeremmy enquanto atravessávamos a rua. — Se você se comportar
direitinho... bem, tem algumas coisas que sempre quis fazer com você.
— Coisas? — Franziu a testa.
— Ah, sim... — Mordi o lábio, desci o olhar para sua boca. — Coisas...
criativas.
Quando adentramos o restaurante, Jeremmy sorriu para Jason, dando
tapinhas amigáveis no ombro do chefe.
— Uma mesa para mim, amigo. E a melhor receita da casa. — Então
piscou. — Por minha conta.
Gargalhei.
Apesar do bom humor, da promessa silenciosa que fiz para Jemmy,
Jason, sempre deliciado com a ideia de aborrecer um cara mais alto do que
ele, falou, divertido:
— Vai querer aquelas dicas também?
O sorriso de Jeremmy morreu imediatamente.
O meu se abriu em meu rosto porque, apesar da provocação, da expressão
emburrada dele, sabia que finalmente... finalmente as coisas poderiam dar
certo.
Acontecer.
TINA

Já passava das nove da noite quando o rosto do meu namorado surgiu na


tela. Apesar da distância, apesar dos últimos dias sem nos falarmos por uma
videochamada, Theo me ofereceu um sorriso sonolento quando me viu.
Meu coração doeu de saudade e, de novo, odiei a frieza e a rigidez da
tela.
O oceano que nos separava.
— Te acordei... — sussurrei, levando o fio para mais perto da boca, o
microfone a milímetros dos meus lábios. — Cheguei do ensaio agora,
desculpa.
Tínhamos combinado às cinco, mas acabara me atrapalhando em um dos
passos e, como aluna nova, queria impressionar a professora. Ela odiava
que inventássemos desculpas, que choramingássemos.
Senti falta de meu pai quando a conhecera.
Theo, de olhos fechados, apenas resmungou um “não tem problema”.
— Como foi a primeira semana na academia? — Ele aparecia deitado, as
mechas desgrenhadas do cabelo me indicavam que o rapaz estava, talvez,
no quinto sonho quando liguei. A cabeça se apoiava no antebraço, e o
italiano se esforçava para se manter acordado.
Contei a ele sobre os alunos, sobre o lugar, sobre a música que eu
decidira ensaiar por conta própria. Também contei a Theo sobre Gina ter se
mudado para um apartamento no centro da cidade, mais perto do
restaurante do Wang’s. Disse que agora só nos veríamos nos fins de semana.
Também relatei que Jeremmy mal ficava em casa. Estava trabalhando
muito, dizia meu irmão, mas eu desconfiava que talvez tinha finalmente
feito as pazes com minha amiga. Por fim, falei sobre minha mãe, que vinha
considerando as melhores formas de terminar com Rick.
Apesar de ter escutado tudo, Theo pareceu mais acordado quando contei
aquela última parte.
— Ela não gosta dele? — perguntou rouco, afastando as mechas escuras
dos olhos, mais como se passasse a mão no rosto para se acordar. — Pensei
que os dois se dessem bem...
Fazia alguns meses desde que voltara de Roma e enfim apresentara meu
namorado à minha mãe e Jeremmy. Impressionantemente, meu irmão se
dava muito bem com o italiano; os dois conversavam sobre tudo e já eram
muito amigos. Não muito surpreendente, minha mãe era apaixonada por
Theo; até enviara para ele, no mês anterior, um moletom e um perfume
como presente de aniversário para o “meu futuro genro”. Rick, em uma das
ligações que fizemos depois do jantar, também trocara algumas palavras
com Theo, perguntando sobre alguns pontos da Itália que ele tinha vontade
de conhecer um dia.
Theo disse para mim que o homem era realmente tudo o que eu alegara
(educado, sorridente e muito gentil) e que estava feliz por “Sabrina” —
como minha mãe pedia que meu namorado a chamasse — ter conhecido
alguém que cuidasse tanto dela.
Mas era essa a questão.
— Ele é... demais. — Fiz uma careta, mantendo a voz baixa para não
acordar minha mãe no quarto do outro lado do corredor. — Gentil demais.
Romântico demais. Preocupado demais.
O rapaz do outro lado da tela emitiu um estalo com a língua.
— Poxa, Rick. Ele vai ficar arrasado.
Assenti, também sentindo pena do cara.
— Minha mãe não me disse que ia terminar com ele, mas eu a conheço o
suficiente para saber que não quer mais. Só que ela é educada e bondosa
demais para terminar com alguém, então está deixando pistas, para ver se o
Rick percebe. — O que eu duvidava, porque o professor era tão apaixonado
por ela que nada que minha mãe fizesse ou dissesse parecia ofendê-lo. Não
que ela tenha tido a intenção de machucá-lo, mas, por exemplo: a ex-
bailarina inventara desculpas bem toscas nas últimas semanas para não ver
o namorado. Quando ela disse que estava com diarreia para fugir do
encontro, Rick chegou aqui com várias sacolas de folhas e chás que
resolveriam o problema. Minha mãe se obrigou a tomar e ficou com prisão
de ventre por quase três dias inteiros. Em outra ocasião ela disse que
finalmente pegara catapora, mas Rick alegou que já tivera a doença quando
criança e que isso não seria problema. Mamãe obrigou Gina e eu a
pintarmos várias pintinhas pelo corpo dela, e a tinta só saiu dois dias depois.
Entre outras coisas que até funcionaram em duas ou três noites, mas não
colaram nas outras. — Talvez ele nunca perceba que são desculpas para
afastá-lo, mas eu notei. Não ousei perguntar ainda, mas tenho certeza de
que ela termina com ele no fim de semana, ou se muda de país.
Theo riu, voltando a ficar sonolento, mas se recusando a desligar.
— Talvez ela devesse só... escrever um e-mail?
— Ela não é tão covarde — retruquei, bocejando. — Mas e você? Como
andam as coisas por aí?
— Nonna decidiu tirar a semana de folga depois que vendemos todo o
estoque para um empresário coreano que nos visitou na segunda — disse
com orgulho. — Ele se apaixonou pelos doces dela, disse que tinha dois
filhos que certamente adorariam também.
Sorri abertamente, cruzando os braços sobre a escrivaninha onde o
notebook estava, apoiando meu queixo entre eles.
— Ela merece uma folga — falei, imaginando o rosto de nonna quando o
homem decidiu comprar tudo na loja. — Você também.
Theo suspirou, visivelmente cansado.
— Eu tenho me distraído com o financeiro. Sempre gostei de números,
então não me importo em ajudar como puder.
— Mas ainda faz as entregas...
— Nonna e eu decidimos contratar uma jovem do bairro que já
trabalhava com isso. Ela tem uma cesta enorme na traseira da moto e
consegue carregar bastante pedidos ali. Camila até o enfeitou com flores
para todos saberem de que loja era.
— Hm... Camila tem quantos anos?
Um sorriso provocador despontou dos lábios do rapaz, mesmo quando
fechou os olhos e se aconchegou mais contra os travesseiros. Deviam ser
quatro horas da manhã em Roma, e ele levantaria cedo...
Uma pontada de culpa apareceu em meu peito. Cogitei sugerir a Theo
que desligássemos e nos falássemos no outro dia, no horário certo dessa
vez.
— Ah, Camila tem vinte anos e um sorriso adorável...
— É mesmo? E Camila conversa muito com você? — perguntei,
franzindo a testa para a tela.
— Ah, sim. Estudamos juntos. — Theo me fitou por alguns segundos. —
Somos muito amigos.
Inspirei, me perguntando se aquilo era um teste.
— E essa Camila é bonita?
— Huh. Começamos a receber mais clientes depois que ela foi
contratada.
— Hm... — Aprumei as costas, reta, cruzando os braços sobre o peito. —
E essa Camila... sabe que você tem uma namorada?
Outra risada rouca do outro lado do mundo.
— Falamos sobre você o tempo todo. — Então completou, divertido: —
Inclusive, disse o quanto você é bonita demais para um zé ruela como eu. A
namorada dela disse o mesmo.
Corei.
— Bom — pigarreei. — Que bom que elas sabem.
Theo gargalhou baixinho, então se ajeitou no travesseiro outra vez ao me
observar. A mão que antes sustentava sua cabeça agora segurava o celular, e
a outra fez menção de tocar a tela, como se o italiano tentasse contornar
meu rosto com a ponta dos dedos.
— Estou com saudade — murmurou.
Suspirei.
— Eu também.
— Sem planos, huh? — perguntou, sem esperar a resposta. Já
conversamos sobre aquilo antes. Eu não podia ir vê-lo por enquanto nem
Theo podia vir me visitar. Um suspiro resignado deixou os lábios dele,
então meu namorado disse com carinho: — Você deveria ir dormir. Deve
estar cansada.
Mordi o lábio, querendo poder dizer alguma coisa para afastar a tensão
que pareceu tomar não só meu corpo, mas o dele também.
— Desculpa ter ligado tão tarde hoje — balbuciei.
Theo me ofereceu um curto sorriso, um que, para uma pessoa de fora,
seria doce e compreensivo. Para mim, no entanto, era forçado e hesitante.
Não era a primeira vez que o deixara esperando ou que enviava uma
mensagem pedindo desculpas porque estava ocupada demais para ligar.
Eram raros nossos horários coincidirem, ainda estávamos tentando nos
adaptar.
— Você estava dançando, era por uma boa causa. — Pensei se ele deveria
estar tentando se convencer disso.
— Você... está bem? — perguntei, hesitante.
— Claro que estou.
— Não estou perguntando fisicamente. — Mas seu coração, seu sonho.
Theo sabia, então respondeu depois de bocejar:
— Decidi que não quero ser guia nos fins de semana, isso me faz lembrar
do meu pai e a única vez que superei isso foi com você. Descobri que
realmente sou bom em administrar a loja e gosto disso. — Deu de ombros.
— Por ora, acho que é o suficiente, certo? Por enquanto, meu sonho maior e
mais ambicioso é ganhar na loteria para poder ir te visitar no meu jatinho
quando quiser.
Isso me fez rir, e a sinceridade nas palavras me permitiu relaxar um
pouco.
Conversamos por mais alguns minutos até que nem mesmo eu
conseguisse manter os olhos abertos. Então Theo disse que precisaria visitar
alguns fornecedores pela manhã e que queria tirar mais uma hora de cochilo
antes de levantar. Sabia que meu namorado ficaria acordado até o sol nascer
se eu não estivesse mais conseguindo dizer qualquer coisa coerente.
Eu me apaixonei mais por ele. Por Theo querer me poupar de ser a pessoa
que encerraria a conversa.
Já me sentia culpada o suficiente por tê-lo feito esperar.
— Vou te ligar mais cedo amanhã — prometi.
Um último sorriso sonolento. Theo pareceu querer dizer mais, mas
apenas assentiu e falou:
— Estarei esperando.
Queridas secretárias de Julieta,
Este é um teste para vocês. Para mim.
Gostaria que encontrassem uma pessoa. Se o encontrarem, se esta
carta encontrar o caminho de volta até ele, então acho que poderei,
finalmente, acreditar que estamos destinados a ficar juntos.
Esse desafio começa daqui a um ano.
Acham que podem fazer isso por mim? Não? É pedir demais, certo?
Afinal, vocês tem coisas melhores para fazer. Mas aqui vai minha história.
Por favor, se decidam no final.
Theo e eu nos encontramos de uma forma bem peculiar. Ainda tenho
dificuldades em compreender como tudo aconteceu. Mas começa com uma
bailarina quebrada e um príncipe gentil.
Igualmente machucado.
Talvez até mais.
Estava tudo cinzento quando o encontrei, e acho que estava tudo
cinzento para ele também. Mas, depois de jogar uma moeda na Fontana di
Trevi, algo aconteceu.
Sim. Eu.
Não vou dar os créditos à Fontana, não ainda.
Eu roubei a moeda da fonte, desacreditada de que algo poderia
realmente ocorrer. Duvidei dela. Do destino e da magia. Do meu coração.
Então sonhei com ele.
E ele comigo.
Tivemos um dia de verão surpreendente, e o que antes era um céu
nublado e cinza, agora é uma vastidão azul e ensolarada.
Estou apaixonada por ele.
Mas não podemos ficar juntos.
Volto para casa em alguns dias, do outro lado do oceano, longe
demais daqui...
Ainda temos questões que devemos resolver, sozinhos. Ainda
precisamos descobrir quem somos, sozinhos. Ainda precisamos descobrir
com o que sonhar, sozinhos.
Antes que eu decida amá-lo, preciso descobrir como fazer isso por mim
primeiro. Quero amá-lo inteiramente e, se ainda estiver quebrada, não sei
se posso fazer isso.
Quero que ele faça o mesmo.
Acham que um ano é o suficiente para nos ajustarmos?
Pelo menos... o suficiente para que consigamos descobrir um pouco de
quem somos?
Se estão lendo esta carta entre outras tantas milhares, considerarei uma
bênção, um sinal de que talvez, quem quer que esteja guiando meu caminho
do céu, queira que eu encontre Theo novamente.
Se esta carta chegar até ele um dia, superando o tempo e o caminho de
Verona até Roma, chuva e sol, vou entender que os céus estão a nosso
favor.
Que devemos ser.
Ele e eu.
Acham que podem me ajudar?
Daqui a um ano. Em Roma. Numa loja cheia de flores e doces...
Podem encontrar meu Theo?
Quero que ele saiba que, durante um ano, vou me dedicar em me fazer
feliz, em me conhecer e me amar. E, depois desse tempo, estarei esperando.
Eu ainda devo a ele uma dança.
De todo o coração, espero que possam ler esta carta.
De todo o coração, espero que ela chegue até você, Theo.
Verdadeiramente sua,
Bella.
TINA

Um ano e três meses depois...

— Anda logo! — Puxei Gina pelo corredor, com a mesma empolgação


de uma criança na véspera do Natal.
— Tô indo — murmurou, permitindo que eu a arrastasse.
O cheiro de tinta fresca estava presente. A reforma terminara três dias
antes e, mesmo que nossos passos e vozes ecoassem pelo vazio, estar
finalmente ali era um sonho realizado.
Abri a porta de madeira simples e branca e deixei que minha amiga
entrasse primeiro.
— Os espelhos vão chegar neste fim de semana, os corrimãos também —
falei ofegante, animada. Apontei: — Ali vai ficar o piano, e no outro lado
alguns banquinhos. Ah! Vamos dividir o espaço em uma pequena cozinha
ali, meu escritório do lado.
Mordi o lábio, me controlando para não falar mais. Tagarelei o caminho
todo do apartamento de Gina até ali, ignorando a cara emburrada dela por
eu tê-la arrastado de casa tão cedo, reclamando que teria de ir trabalhar em
algumas horas e queria dormir mais um pouco.
Mas eu garanti que era urgente.
E era.
A brasileira deixou a carranca de lado para abrir um sorriso largo. Depois
de observar todo o espaço, os feixes de luz que transpassavam as grandes
janelas de vidro, ela me encarou.
— Minha menina está finalmente crescendo... — Apertou minha
bochecha.
Mostrei a língua.
— Sou grandinha há muito tempo — retruquei, sem conseguir parar de
sorrir.
Era meu.
Meu estúdio.
— O que achou? — perguntei animada.
— É lindo, Tina! — Me abraçou forte. — Estou tão orgulhosa de você,
amiga!
Ri.
— Não vejo a hora de treinar aqui. De dar aulas e ver pequenas
pessoinhas dançando... — Suspirei.
Giovanna mordeu o lábio inferior, piscando mais vezes e até fungando.
Entrelacei meu braço ao dela.
— Você está chorando?
— Não... — Ela estava. — Ah, merda. Eu tô. É que... — Inspirou fundo e
gesticulou com braço e mão livre para o lugar. — Pensei que nunca mais ia
te ver dançar... E agora? Agora você tem seu próprio estúdio e vai ensinar?
Me sinto uma mãe babona e orgulhosa.
Ouvir aquilo fez meu coração bater mais rápido, mais alegre e ansioso.
Eu também me sentia uma mãe babona e orgulhosa, e era por isso que
trouxera Gina até ali. Não para me gabar da minha conquista, mas para
presenteá-la, para que começasse a dela.
— Vem. — Segurei sua mão e a guiei para a porta, seguindo corredor
afora, descendo as escadas. — O primeiro andar agora.
Gina franziu a testa.
— Pensei que o primeiro andar estivesse alugado.
— Está. — Meus lábios se esticaram mais. — Quer dizer... Ainda não,
não tenho certeza se a pessoa vai mesmo querer ficar com o lugar.
Ela só resmungou em assentimento, então tirei do bolso a chave com
pingente de sol e abri a porta dos fundos. Quando acendi a luz, minha
amiga cobriu os olhos para evitar a claridade repentina.
O espaço era tão amplo quanto o estúdio no segundo andar, mas a
reforma feita ali nos últimos meses era para outro propósito. Estava vazio
por enquanto, as paredes pintadas de branco porque ainda decidiríamos o
que colocar ali.
Gina esperou com a testa franzida.
Apontei para o fundo.
— Pensei em colocar o forno maior ali, a estufa de aquecimento do outro
lado, no centro uma bancada de mármore de fora a fora... — comecei, e
pude jurar que a respiração de Gina se calou por alguns segundos.
Entendendo, então, o que estava acontecendo.
— Tina...
— Podemos dividir o espaço em cômodos, ou deixar um vidro dividindo,
apenas — continuei, sentindo meus olhos arderem um pouco. — Eu
pesquisei, mas não faço ideia de qual seria a melhor opção. Por isso não
pedi que mexessem aqui ainda, só pintassem e melhorassem o espaço. O
antigo dono do prédio fez uma bagunça...
— Valentina...
— Eu pintaria tudo de rosa, vi umas coisas legais na internet. — Ri,
pensando na careta que Gina faria quando visse minha pasta de ideias. —
Mas te conheço bem, sei que odiaria minhas sugestões, então você pode
pintar e fazer tudo como achar melhor.
— Valentina! — Segurou meus ombros, me virando para ela, para que
encarasse seus olhos claros se arregalando, surpresos, emocionados,
incertos.
Ela recusaria, eu sabia.
— Podemos colocar algumas mesinhas lá fora também. — Ignorei
aqueles olhos lindos e úmidos e apontei para a abertura maior, coberta por
um portão. Era uma garagem enorme, que transformaríamos em uma
confeitaria incrível. — As pessoas podem se sentar ao ar fresco para
desfrutar dos doces ou do que você quiser vender aqui. Algumas
sobremesas brasileiras que faz, tenho certeza que vai ser suces...
— Não posso aceitar! — me interrompeu, sacudindo meus ombros. —
Não vou aceitar.
Me afastei dela, puxando a barra do moletom, ajeitando o cabelo e
falando docemente:
— Você vai, sim.
Ela fechou a cara.
— Não.
— Sim, amor. — Pisquei um olho. — Você vai. Porque... — Tirei do
bolso do agasalho o papel que guardara aquele tempo todo. A única forma
de fazer Giovanna aceitar minha oferta. Ideia de Jeremmy, na verdade. Ele
era o maior investidor de tudo aquilo, mas confessar isso só faria Gina
recuar mais. Entreguei o rascunho de contrato para ela. — Vou alugar o
lugar pra você. Não estou te dando, estou alugando.
Ela riu com escárnio.
— Por esse valor? — debochou, virando a folha para mim. — Está me
cobrando o almoço, Tina. Não vou aceitar.
— O quê? — Franzi a testa, fingindo-me de desentendida. — Não é isso
que cobram por aí?
— Nem aqui nem em lugar nenhum!
Suspirei.
— Podemos rever o documento se quiser — falei calmamente. —
Acrescentar mais algumas despesas... Bolinhos de graça.
Dessa vez, ela riu de verdade, emocionada.
— Amiga...
— Por favor. — Segurei suas mãos. — Eu também quero ver você
realizando seu sonho, e não foi fácil conseguir um prédio em conta com
dois andares e um terraço. — Gina ergueu uma sobrancelha. — Sério, o
terraço é incrível!
— Jeremmy faz parte disso?
— Não... — Sorri.
— Bugiarda.[36]
Gargalhei.
— Certo. Tem dedo dele nisso, mas não só dele. Da mamãe, e até mesmo
do meu pai. — garanti. — Eu disse que queria abrir um estúdio para mim
perto de casa e eles me apoiaram, então sugeriram encontrarmos um lugar
em que eu pudesse fazer a confeitaria. Foi um plano de quatro.
Giovanna inspirou fundo, observou o espaço de novo, os olhos brilhando
como nunca.
— Você teria que alugar algum lugar mesmo... — insisti. — Ou até
mesmo pedir dinheiro emprestado pra começar a investir. Pequenos
negócios começam assim. Então... você vai alugar o espaço de mim. E
pensa só, quando os pais dos meus futuros alunos vierem deixar seus filhos,
não vão conseguir sair do prédio sem antes passar aqui. Crianças adoram
doces.
— Todo mundo adora doces... — resmungou baixinho, cedendo.
— Podemos fazer o acordo que você quiser, só aceite. Vou adorar
trabalhar com você bem pertinho de mim.
— Quer me manter presa neste país — acusou, mas eu sabia que não
falava sério. Ela descartara a possibilidade de voltar para o Brasil no
momento em que eu descobrira sobre o namoro dela com Jeremmy.
Os dois não foram muito discretos, sinceramente.
— Eu realmente não quero abrir mão da minha irmã. Sim. Eu amo você e
quero vê-la voar alto, mas pode voar até aqui, certo?
Riu.
— Eu te odeio. — Me apertou em um abraço. — Garota irritante.
Sorri.
— Eu também te odeio. — Devolvi o gesto. — Tanto que não consigo
parar de te amar.
— Até que a morte nos separe, então — debochou, se afastando com um
largo sorriso. — Vou ligar para o Jay. Não vejo a hora de pedir demissão.
— Ah, ele vai ficar de coração partido.
Gina imitou meu beicinho.
— Tenho certeza que ele vai achar alguém para me substituir.

Depois de alguns minutos em silêncio apoiadas contra o parapeito do


terraço, observando o céu azul e as nuvens gordinhas que o enfeitavam,
senti o olhar de Gina me avaliar com cuidado.
Se eu movesse um músculo sequer, ela saberia que estava escondendo
algo, mas só aquele pensamento me levou a pressionar os lábios, evitar que
um suspiro pesaroso escapasse.
— Nenhuma notícia do Theo?
Ela percebeu.
Suspirei, por fim. Me inclinei mais sobre o parapeito e apoiei meu queixo
sobre os braços cruzados.
— Não.
— Qual foi a última vez que se falaram?
— Duas semanas, acho. Ou mais. Parei de conferir o celular há um
tempo. — E eu me orgulhava por isso. Nossa última conversa não fora das
melhores e, quando encerrei a ligação com raiva, percebi: em todo aquele
tempo, Theo e eu nunca tínhamos realmente brigado. Discordado de algo,
sim. Nos desentendido por coisas idiotas também. Mas jamais brigado. Um
sempre cedia e se desculpava antes que a ligação ou a chamada de vídeo
encerrasse.
Depois de voltar para as aulas, quando comecei a participar de testes e
apresentações, meus horários ficaram mais curtos, eu chegava tarde em
casa. Nós dois estávamos ocupados, eu ensaiando e ele trabalhando. Então,
quando conversávamos, estávamos cansados demais. Seis horas de
diferença era, sim, muita coisa. Meu namorado perdera a conta de quantas
vezes eu dormira no meio de uma conversa, e sabia que Theo não se
importava, que compreendia. Mas um ano e mais alguns meses com aqueles
pequenos detalhes nos mantendo ainda mais longe...
Bem, a magia do nosso relacionamento se tornara uma fagulha nos
últimos meses, e aquela fagulha parecera se apagar na última ligação.
Eu dissera coisas que não queria, porque estava sob muita pressão na
academia e, no final daquele mês, finalmente me apresentaria de novo...
Estivera tão irritada naquela noite por Theo me acusar de não me importar
mais, de não ligar em tirar um tempo para ele, de passar dias e até uma
semana inteira sem dar notícias, que explodira. O chamara de egoísta e
outras coisas da qual não me orgulhava...
No dia seguinte à briga, Theo apenas enviou uma mensagem curta
dizendo que deveríamos dar um tempo para pensar no que realmente
queríamos, no que ambos estavam fazendo de errado. Disse que me daria
aquele espaço para que eu decidisse, me acalmasse. Então, depois da
apresentação, nos falaríamos de novo.
Não era um “estou terminando com você”, mas às vezes o silêncio
sugeria que sim.
Resmunguei, fechando os olhos.
— Nunca pensei que um dia brigaria com ele.
— Se não brigassem... seriam o casal à distância mais esquisito do
mundo. — Gina acariciou minhas costas, suspirando. — Talvez vocês dois
precisem de tempo.
Ele disse aquilo. E eu odiava aquela palavra.
— Mais? — Senti minha garganta se fechar. — Não nos vemos há mais
de um ano, Gina! Estamos longe há mais de quinhentos e cinquenta e oito
dias!
— Nossa, você contou? — Fez careta, e eu bufei.
— Eu também sinto saudade, como ele pode dizer que não?
— Você é a pior pessoa para responder mensagens, Tina, não acha que
ele tem um ponto? Vocês estão longe, tudo o que o Theo tem é um celular
pra te ver, e quando está disponível pra você... bem, você não está pra ele.
— Eu estava ensaiando! — retruquei, mas não tão convencida dos meus
argumentos assim.
— No lugar dele, como você se sentiria?
Fechei a cara.
— Desde quando virou a sábia conselheira dos desastres amorosos?
— Desde quando comecei a namorar seu irmão. — Deu de ombros, e só
dizer aquilo trouxe brilho aos olhos dela.
— Bom, fique longe dele por um ano e me diz se seus conselhos
funcionam. — Me empertiguei. — Vou me apresentar em algumas semanas,
preciso... me concentrar na peça. Então, se o Theo quiser, a gente resolve.
Gina revirou os olhos.
— Não mandou nenhuma mensagem pra ele?
— Não.
Silêncio.
Olhos cor de mel me encararam, acusadores.
— Não me faça parecer a vilã. Theo sequer me deixou contar sobre o
estúdio. Pensei em dar aulas particulares e sair da academia justamente para
ter mais tempo com ele, mas aparentemente não me importo o suficiente.
— Deveria ter contado mesmo assim.
— Eu... — Sei disso.
— Vai querer deixar as coisas desse jeito? Esfriar de vez?
— Eu...
— Você ama ele que eu sei. Mesmo que não tenham dito isso um para o
outro ainda, sei que se sentem assim. Então precisa falar pra ele, precisa
dizer o que acha que Theo deve fazer para melhorar, mas olhar para dentro
de si e analisar o que precisa ser melhorado em você também para que as
coisas funcionem.
A fitei, piscando devagar.
— Vai ficar reproduzindo os discursos do meu irmão agora?
— Uai, quem disse que não são palavras minhas?
— Você disse “olhar para dentro de si” e “analisar”. — Ergui uma
sobrancelha.
Gina assentiu.
— Acho uma graça quando ele me vem com essas falas sensíveis. —
Sorriu, levantando uma mão cheia de anéis, com um mais brilhante no
anelar ao meu ombro. — Mas a mensagem é a que vale. Jeremmy e eu
brigamos muito no começo, mas aquele careta sempre dizia isso pra mim.
Ele assumia os erros dele primeiro, e então me pedia para fazer o mesmo,
como dois adultos. As coisas se resolvem mais rápido quando estamos
dispostos a reconhecer nossas falhas.
— Você está do lado do Theo, não é? — Meus ombros caíram quando ela
assentiu. Gina ficaria do meu lado se achasse que eu não estava errada.
— Mas só porque você ouviu meus áudios e não respondeu. Fico bolada
quando me deixam no vácuo.
Ri.
— Desculpa. Eu... prefiro conversar pessoalmente, sabe disso.
— É o mundo em que vivemos, se acostume. E responda quando
visualizar, droga.
Sorri, meneando com a cabeça.
— Vou tentar.
— Vai falar com seu namorado? — insistiu.
Pensei. Eu mentiria se dissesse que minha raiva era maior do que a
saudade que eu sentia dele.
Talvez fosse ela quem induzira as brigas, a saudade que apertava cada dia
mais. O desespero de ansiar abraçar e beijar o outro de novo. Não queria
mais conversar com um computador, não aguentava mais ver os dedos de
Theo tocarem a tela, e não minha pele...
Passei as mãos no rosto, tentando clarear a mente. O coração.
— Depois da apresentação — prometi a mim mesma. — Vou ligar pra ele
e falar o que sinto de verdade.
— Não vai enrolar?
— Não. Assim que a apresentação acabar, vou falar com Theo.
— Ótimo! — Um sorriso enorme alargou o rosto da minha futura
cunhada. Ela ergueu a mão com a aliança de noivado outra vez. — Porque
eu vou me casar, meu amor, e não quero minha madrinha chorando pelos
cantos.
Ri.
— Não vou.
— Se o Theo terminar com você, peço ao Jay pra te apresentar uns
amigos na festa.
Meus olhos rolaram de novo, mas o coração se apertou com a
possibilidade de não existir mais um “Theo e eu”.
Depois da apresentação, repeti.
Vou ver ele de novo depois da apresentação.
TINA

Puxei o ar devagar, concentrando em minha respiração ao erguer o braço


lentamente para, então, voltá-lo à posição inicial. Com uma das pernas
esticadas sobre a barra, inclinei até que meus dedos tocassem facilmente a
ponta da sapatilha preta.
Eu deveria estar em casa descansando, mas deitar na cama e encarar
o teto só me deixava ainda mais inquieta para a apresentação daquela noite.
Já repassara os passos mais importantes e difíceis com minha professora na
noite anterior, dançara até que os calos nos meus pés fossem um incômodo,
até que meu corpo implorasse por um banho quente e descanso.
Mesmo com o corpo dolorido, a temperatura baixa daquele dia
contribuindo para as dores musculares, levantei cedo e saí para o estúdio.
Não, eu não estava preocupada com o que aconteceria naquela noite.
Apresentaríamos uma peça original, uma ideia que eu rascunhara para
minha professora três meses antes. Seu estúdio era pequeno se comparado
ao do meu pai, o número de dançarinos não alcançava nem metade do que
Matt Ward tinha em suas aulas, mas isso não era um empecilho para
Katherine. Ela se dedicava e exigia o melhor de seus bailarinos, nos fizera
treinar e melhorar como se aquela noite fosse uma grande apresentação.
Não haveria professores de Paris. Não seríamos avaliados para uma
bolsa em uma escola de dança de prestígio no outro lado do oceano, mas
dançaríamos como se fosse.
Aconteceria em um teatro local, foi uma bênção conseguirmos uma
vaga naquele mês para — como dizia Katherine — provarmos nosso valor.
Mostrar ao público como éramos bons.
A Valentina de alguns anos atrás poderia ter desejado outras coisas,
como estudar fora e conquistar prêmios grandes, mas aquela me olhando no
espelho agora queria... mais. Fazer mais. Não por mim, mas por outras
pessoas também.
Estava grata por ter a chance de dançar naquela noite. Minha
professora garantira que, se eu quisesse, ela conseguiria uma audição para
mim em Nova Iorque, que eu poderia voar longe.
Mas eu não queria.
Queria dançar sem compromisso, sem cobranças, dançar como
dançara na Piazza Maggiore para me sentir bem. E queria fazer outras
pessoas sorrirem também.
Por isso pensara em abrir meu próprio estúdio. Ensinar o ballet
clássico, sim, mas, quem sabe, outras modalidades, uma dança livre para
aqueles que desejam voar com a música. Adoraria ver o sorriso das crianças
quando as ensinasse do básico ao avançado, amaria vê-las se tornar alguém
de quem se orgulham.
Katherine me incentivara com aquele sonho, até garantira que, se eu
precisasse de uma professora para ensinar pela manhã, ela estaria à
disposição.
Eu faria aquilo.
Não era pela peça linda que apresentaríamos naquela noite que meu
coração batia inquieto. Ansioso. Era pela pessoa que me inspirara a estar
ali.
Theo me prometera, antes de brigarmos, que me assistiria pelo site
da academia. Quando contei a ele sobre minha primeira apresentação em
três anos, ele abrira aquele sorriso largo e perfeito, orgulhoso.
A peça era para ele. Quando sugeri a história para Katherine, foi
pensando nele.
E ela aceitara a sugestão, adaptara para o ballet. Escolhera as
músicas.
E eu já não tinha tanta certeza se Theo veria.
Desci a perna da barra e me encarei no espelho. Sabíamos que seria
difícil depois de alguns meses, estávamos cientes de que nosso tempo
juntos cobraria a distância. Mais de um ano. Três meses depois disso.
Talvez eu devesse pausar o plano do estúdio por um tempo para ir
ver Theo? Usar o dinheiro que investiria nos equipamentos para ir a Roma?
Eu guardei o pagamento das aulas particulares que dera durante o último
ano. Talvez... se nos víssemos, se pudéssemos passar uma semana juntos,
como quando nos conhecemos...
Talvez ficássemos bem de novo.
Aquelas perguntas rondaram minha cabeça durante a última semana.
Mais uma sem um sinal de vida dele. Digitara um pedido de desculpas
inúmeras vezes, mas o ponto final e “enviar” eram substituídos por um
“deletar”: eu acabava apagando tudo e desistindo.
Não conversamos sobre o plano. Não pensamos em um desde que
eu deixara Roma. Eu não me mudaria para a Itália, não com minha família
aqui, não com Gina e Jeremmy prestes a casar, não deixaria minha mãe. Ou
até meu pai, as coisas estavam caminhando, finalmente, para o lugar certo.
E Theo?
Ele não deixaria a loja e nonna sozinhas. Não com a avó já beirando
os setenta anos de idade. Mesmo que Antonella tivesse a saúde de um touro,
ele não arriscaria. Sequer cogitaria deixá-la.
Eu pensara em sugerir que os dois viessem, falar que minha mãe
adorava nonna e ficaria mais do que feliz em tê-la em nossa casa. Que
estaríamos de portas abertas para os dois. Mas desisti da ideia quando a
última discussão começara.
A voz que eu evitava há um tempo sussurrava constantemente em
meu ouvido que o certo seria terminar logo. Antes que aquele carinho que
sentíamos um pelo outro morresse também. Continuar em um
relacionamento à distância não faria bem para nenhum de nós.
Suspirei, alongando o pescoço e girando os ombros tensos.
Me aqueceria antes de ir para o teatro. Então, quando a noite de
dança acabasse, ligaria para meu namorado e decidiria como
continuaríamos ou terminaríamos as coisas.

Love Story, de Indila, era a música tema da nossa apresentação. A


orquestra convidada estendera a versão original, adicionando ainda mais
drama à história daquela bailarina triste. A cantora em breve daria letra à
canção, que contava a história de um homem que sonhava com sua amada,
que a esperava.
Nossa releitura narrava a história de dois personagens solitários, que
perderam muito e pararam de sonhar. Depois de um tempo tentando
acompanhar o compasso sozinhos, eles se encontravam. Um ajudava o
outro a levantar até que conseguissem, por fim, dançar perfeitamente, no
tempo certo, sincronizando os passos um do outro à música. Juntos.
Luca, o dançarino principal e meu parceiro naquela apresentação, já
estava posicionado do outro lado da fonte. Quando a grande lua desceu
sobre ela, as cortinas se abriram, e o espetáculo começou.
Primeiro, o escuro.
Depois, a melodia.
Então, meus primeiros passos.
Aquele era o último ato daquele repertório[37]. A história dos personagens
foi apresentada, e meu coração batia de acordo com as notas de cada
música, feliz por estar ali. Mais vivo do que nunca.
Apesar de me sentir ansiosa e triste por ter brigado com Theo, queria
sorrir por estar finalmente no palco, com as sapatilhas nos pés, o vestido
com camadas de tule roçando minhas pernas à medida que me movia. O
peso da maquiagem era bem-vindo.
Sabia que, em algum lugar da plateia, Gina e Jeremmy assistiam, minha
mãe ao lado deles, com sua câmera antiga na mão, um lenço cheio de
lágrimas orgulhosas na outra.
Se eu procurasse, sabia que encontraria meu pai também. O ex-bailarino
estava em alguma fileira distante, assistindo à filha dançar.
Pensar na última vez que estivera em um palco não doía mais. Meus pés
não vacilaram quando girei uma, duas, três vezes. Havia leveza em casa
gesto meu, em cada batida do coração.
Eu estava onde deveria estar.
O refrão chegou, o último capítulo daquela história de amor tinha um
final feliz. Luca segurou minha mão, me guiou pelo palco com os outros
dançarinos ao redor, iluminando o cenário escuro como estrelas e sonhos.
O rapaz me segurou como se eu não pesasse nada, me tirou do chão, me
girou... Meus passos eram uma resposta aos seus, as mãos dele me
esperavam quando voltava para perto. Uma valsa. Um casal apaixonado que
sonhava outra vez. Com um movimento, ele puxou o tecido preto que se
prendia no corpete em minhas costas, revelando o tule embaixo, os
bordados e o brilho cuidadosamente colocados. Treinamos aquela parte
milhares de vezes para que o público não notasse o truque por trás da
mágica do vestido mudando de cor. Não era nada mais que a primeira
camada da saia, preta no forro para criar aquela ilusão. Escondidos pelo
círculo de dançarinos, ele fez o mesmo, puxando rapidamente a camisa fina
e frágil, revelando outra mais brilhante embaixo.
O preto triste deu lugar ao amarelo. Como luz, enfeitados por pequenas
estrelas, a mudança dissipou a tristeza que envolvera os dois bailarinos
solitários no começo.
Quando meu olhar finalmente se voltou para a plateia, encontraram olhos
escuros como a noite me observando atentamente.
Sérios.
Concentrados em cada passo meu.
Ele.
Luca segurou minha mão e me tirou do lugar — se não o tivesse feito, eu
teria permanecido ali, com o coração batendo rápido demais —, me guiou
nos passos finais, me guiou pelo palco enorme, entre os dançarinos de
branco.
Quando voltei o olhar para onde o tinha visto, Theo não estava mais lá.
THEO

Observei o céu mudar de cor. Não havia muito o que pudesse fazer
naquele momento além de notar o cinzento — aparentemente tão comum
nos últimos dias — se alterar e escurecer.
A noite ainda era linda, pelo menos.
— Vamos fechar a loja mais cedo. — Nonna adentrou o estabelecimento,
já retirando seu avental. — Já dispensei Camila.
Franzi a testa, conferi as horas no relógio em meu pulso.
Seis e quinze. Geralmente fechávamos às oito nas sextas.
— Aconteceu alguma coisa?
Minha avó parou diante do balcão onde eu estava e, com as mãos
enrugadas na cintura, observou o lugar: as prateleiras quase vazias pela falta
de estoque. A idosa alegara estar cansada demais para fazer mais doces
aquela semana. Assim, as flores e plantas continuavam dependuradas por
toda parte; os biscoitos empilhados atrás de mim, provavelmente.
Então, depois de inspirar fundo, minha avó disse:
— Me cansei deste lugar.
Ri de sua expressão decidida, como se dissesse que se cansara da parede
bege de sua sala e quisesse pintar de outra cor.
— E o que quer fazer a respeito, senhora? — Ergui uma sobrancelha,
ainda riscando desenhos aleatórios na última página da agenda que
usávamos para anotar os pedidos fiados de alguns conhecidos.
— Quero vender esta espelunca.
Parei com a caneta.
— O quê?
Como se não tivesse dito nada demais, como se não tivesse declarado que
queria abrir mão de um sonho, do lugar que cuidava com tanto carinho há
mais de vinte anos, se voltou para a porta de vidro e virou a plaquinha,
alertando para os que estivessem lá fora que estávamos fechados.
— Tem vinte e seis e já está com problemas em me ouvir, garoto? —
resmungou, erguendo o cabo de vassoura improvisado que usava para
pendurar os vasos e começando a remover os que aguaria mais tarde. —
Quero vender este lugar.
— Mas... — Pela primeira vez, eu não tinha o que dizer. Se fosse
qualquer outro Abertinalli falando, levaria a declaração como uma piada,
mas nonna não costumava brincar. Não daquele jeito. Não em relação à sua
loja.
Finalmente, a senhora voltou os olhos escuros para mim.
— Uma moça gentil vai vir olhar a casa às sete. Pode ir ao mercado
buscar alguns legumes? Quero preparar um jantar especial.
— Nonna, non capisco[38]. — Dei a volta no balcão para segurar seus
ombros e mantê-la quieta enquanto falava comigo. — Como assim, vender
a loja e olhar a casa?
— Exatamente o que pensa que significa.
— De repente? — Meu coração bateu acelerado no peito. — Você está
morrendo?
Uma risada alegre e rouca reverberou pelo lugar e, com carinho materno,
ela estendeu a mão bronzeada e enrugada pelo tempo e pelo sol até meu
rosto.
— Vai demorar muito até que eu te deixe, mio nipote[39].
— Então... cosa sta succedendo?[40] — perguntei, preocupado.
Talvez ela estivesse doente? Apesar de não achar que pudesse ser o caso,
minha avó cuidava muito bem da saúde, mas talvez... eu tenha deixado algo
passar. Estava distraído demais nas últimas semanas e acabara não
reparando em nonna, se algo estava acontecendo com ela.
— Nonna? — insisti quando a resposta não veio.
Ela suspirou, afastando minhas mãos de seus ombros para segurá-las
entre as suas, as apertando levemente.
— Você é tudo que me resta agora, Theo. Antes, quando ainda era um
garotinho, cuidava de sua avó da forma como podia e, desde que seus pais
se foram, se esforça para continuar me dando uma vida confortável e feliz.
— Aquele sorriso no rosto da senhora, minha segunda mãe, fez minha
garganta se fechar, uma fincada familiar alfinetar o coração. — Não me
perdoaria se continuasse vivendo os anos restantes sem me preocupar em
fazer o mesmo por você. Não me perdoaria se, um dia, te visse sofrer igual
ao seu pai.
De novo, sem uma resposta pronta para dar a ela.
— Sei o quanto se esforça por mim, chegou a hora de eu fazer o mesmo
pelo meu filho.
— Não vou permitir que venda a loja. — Minha voz saiu estranha. Grave
demais. Emotiva demais. — Não vou permitir que venda a casa que o
nonno construiu com tanta dificuldade pra você.
— Seu avô não está aqui para me ver cometer tal crime, e os anos que
vivemos nesta casa estão guardados em meu coração. O que foi, já passou.
Agora só nos resta o hoje, esperar pelo amanhã. — E com um erguer de
lábios divertido e presunçoso demais para alguém da sua idade, nonna
completou: — Em outro lugar.
— No! — exclamei no mesmo segundo.
— Sim. — Voltou aos seus afazeres. — Acha que não sei onde seu
coração está? Que não vejo nos seus olhos quando espera uma ligação de
Valentina o que realmente quer? Decifrar o amor no rosto dos jovens
sempre foi uma tarefa fácil; não importa quantos anos passem, quão velha
eu fique, sei reconhecer um coração apaixonado.
Revirei os olhos, mesmo com o peito queimando em expectativa tola,
apertado com uma saudade irrefreável.
A simples menção ao nome dela fazia meu corpo reagir daquela forma.
Independentemente se tínhamos discutido ou não.
— Não vou permitir que deixe tudo por minha causa, nonna. Muito
menos pedir que se mude para o outro lado do oceano. — Mas eu queria,
queria do fundo do coração. Porém, não a forçaria àquilo. Nunca.
Roma era sua casa. Sua história.
— Não estou pedindo sua opinião — retrucou. — Se vou morrer um dia,
acho que é bom começar a viver algumas aventuras logo. De qualquer
forma, vejo em seus olhos que não há nada que te prenda aqui além desta
velha egoísta.
Ri, passando as mãos nas mechas do cabelo, tentando inutilmente
silenciar a confusão em minha mente.
— Mas é seu sonho... A loja. Esses doces... As pessoas que conhece aqui
— tentei outra vez. Por ela.
— Meu sonho é viver da melhor maneira que posso. Sorrir todos os dias,
mesmo com as lutas. — Deixou sobre o balcão sua planta favorita, uma
cheia de folhas espalhadas para todas as direções, com verdes de vários tons
a iluminando, um broto tímido de uma flor branca crescendo no centro. —
Esse é meu sonho, Theo. Viver cada dia como se fosse o último, esperar que
o amanhã me traga coisas melhores e ser feliz.
Minha garganta se fechou. Raramente perdia a fala, mesmo com nonna,
mas não consegui fingir humor dessa vez, fingir para ela.
Pigarreei.
— Tem certeza?
— Assoluta[41]. — Tocou meu rosto outra vez. — Adoro Valentina e
sinto saudade de minha pequena Gina, tenho certeza que a bambina me
receberá de braços abertos e que serei útil em sua confeitaria. Não ficarei
atoa na América, tenho certeza disso.
Aquele fiapo de sombra e incerteza se dissipou ao ver a sinceridade
nos olhos pretos da senhora. Escuros, porém brilhantes.
Inspirei o ar doce da loja. Pensei. Batidas rápidas ecoavam no meu
coração.
— Vamos para Boston, então? — questionei, esperando ver
hesitação nos olhos de nonna. Mas isso não aconteceu.
O sorriso largo e enrugado não deixou espaço para dúvidas.
— Andiamo![42]
A última vez que estivera em um teatro como aquele foi aos dezesseis
anos, quando estávamos visitando Nova Iorque e minha mãe decidira sair
do hotel para fazer “algo diferente”. Me lembrava de ser um tipo de
concurso, adolescentes de uma escola de dança local se apresentavam. Me
arrependia por não ter prestado a devida atenção ao que acontecia no palco
naquele dia, nas apresentações. Caso contrário, teria uma história para
contar à Tina.
E ali estava. O lugar era bem maior do que o anfiteatro que eu visitara
com minha mãe anos atrás. Havia poucos assentos disponíveis quando as
luzes se apagaram e a melodia — que me lembrava circo e contos de fadas
— começou a tocar.
Nonna mal piscava para o palco, passara a tarde falando o quanto estava
animada para assistir à apresentação de Valentina. Tudo o que a idosa vira
da bailarina no último ano foram alguns vídeos de ensaios que minha
namorada vez ou outra compartilhava comigo.
A senhora de sessenta e oito anos olhou para o palco enorme com a
emoção de uma criança.
Aquela expressão maravilhada no rosto dela ao ver a orquestra e as
pessoas ao redor fez aquele receio de trazê-la até Boston sumir. Ela parecia
feliz, mesmo tendo se despedido de sua antiga casa e sua loja semanas atrás.
Pensei em perguntar se minha avó estava bem, mas as cortinas se
abriram, e qualquer preocupação deixou de existir quando vi a fonte no
centro.
A bailarina solitária, encolhida contra as pedras.
A primeira música era triste. Os dois bailarinos principais contaram suas
histórias em uníssono. Ambos sozinhos e apagados no cenário noturno,
rodeando aquela fonte na esperança de que algo acontecesse. A lua enorme
sobre ela era a única fonte de luz.
Sempre que a bailarina de vestido simples e preto contornava a fonte,
triste e quebrada, o rapaz fazia o mesmo, e eles se desencontravam. Caíam
quando tentavam dançar.
Sinceramente, não sabia o que sentir.
Meu coração batia agitado por vê-la ali, a apenas metros de distância de
mim. Mais perto do que estivera nos últimos meses. Mais de um ano sem
tocá-la, sem sentir o perfume doce e delicioso que impregnava sua pele
macia.
Como eu sentira falta dela...
Brigamos na última ligação, semanas antes, mais do que isso. Pensei em
deixá-la em paz por um tempo, para que nós dois esfriássemos a cabeça,
pelo menos até que aquela noite acabasse e pudéssemos finalmente pensar
num plano. Sabia o quanto aquela apresentação seria especial para
Valentina, o quanto ela se dedicara para estar ali, no palco. Então, silenciei e
dei aquele espaço a ela.
Foi a coisa mais difícil e burra que fiz.
Mas aquela carta chegou. Nonna decidira por mim o que fazer. E agora,
finalmente, a via dançar outra vez.
A última música começou, seguindo a regra de melodia melancólica e
nostálgica, como se todos os atos anteriores fossem apenas o prólogo para
aquele momento.
Outros bailarinos atuavam no palco. Ao contrário dos dois principais, de
preto, usavam fantasias brancas lindas, pintando o cenário e iluminando o
escuro como estrelas.
Era incrível.
O rapaz encontrou a bailarina triste primeiro, a segurou antes que ela
caísse, por trás de Tina, erguendo um dos braços dela com suavidade no ar;
então o outro, como se a ensinasse a dançar. Os passos da jovem era um
reflexo dos do rapaz atrás dela, ambos se movendo como se fossem um só,
um vento suave ao redor daquela fonte.
O sorriso que Valentina deu a ele quando o bailarino a virou para que o
encarasse fez meu estômago se contorcer, não inteiramente de ciúmes — eu
até fizera algumas aulas, seria o parceiro dela em outras danças; não no
palco, mas em encontros que ela jamais esqueceria. Não, meu peito se
agitou ao confirmar que aquela dança, toda aquela peça, era uma releitura
da nossa história.
Os passos em falso que demos antes de nos encontrarmos, as danças
solitárias que fazíamos antes de nos esbarrarmos, os tombos que levamos e
as lágrimas que deixamos cair antes que os nossos caminhos se cruzassem...
Nonna segurou minha mão e a apertou de leve, como se também
reconhecesse aquela história.
Segurei a respiração quando Tina correu até o rapaz e as mãos dele
rodearam sua cintura, a ergueram até a lua grande e brilhante. Quando o
dançarino a desceu, a dúzia de bailarinos os cobriu, transformando o palco
em um semicírculo de estrelas e sonhos.
Em um segundo, os dois bailarinos de fantasias pretas estavam
escondidos pelo círculo branco de luar; no outro, os dançarinos se
dispersavam e revelavam uma luz amarela.
Uno raggio di sole.
A lua subiu no estante em que o clímax da música avançava. Um sol
brilhante desceu.
O vestido preto de Tina, magicamente, revelou camadas amarelas na saia;
o corpete brilhava como se ela fosse o próprio sol. A camisa do rapaz
também era outra, como se o tecido preto fosse fino e fácil demais de tirar
naquele meio tempo escondidos.
Os olhos dela fitaram a plateia.
Surpresa pareceu iluminar seu rosto perfeito.
Mas antes que pudesse confirmar o que viu, o parceiro a puxou do lugar e
a guiou pelo palco na última valsa.
A frase cantada me disse que aquele era o fim da história.
Um final feliz.
Conferi o bolso da calça, o papel dobrado e amarelado nele.
Sorri.
Me levantei.
E então saí.
TINA

As cortinas se fecharam.
A plateia ainda aplaudia do outro lado.
E meu coração não desacelerou o ritmo quando soltei a mão de Luca e
corri para fora do palco.
— Valentina!
Ignorei o chamado da professora, provavelmente querendo me elogiar ou
criticar por algum passo em falso no palco.
Talvez aquele antes que eu visse — ou sonhasse — com os olhos de Theo
me olhando da plateia.
— Preciso ir! — gritei apressada, desviando da equipe que começava a
guardar tudo ou apertar as mãos uns dos outros para se parabenizarem pelo
bom trabalho naquela noite.
Escutei um resmungo atrás de mim, mas segui em frente.
Ainda estava com o vestido da peça, as saias oscilando enquanto descia
apressada os degraus dos bastidores e corria em direção à plateia.
Recebi alguns elogios e sorrisos amigáveis ao me misturar à multidão que
se dispersava para a saída, mas continuei, empurrando alguns e pedindo
desculpa em seguida, procurando por ele.
Tinha que ser ele. Eu não poderia ter inventado, como uma miragem.
Não. Tinha que ser ele.
— Desculpa! — Me virei para passar, esticando a mão entre o casal para
sinalizar que estava ali. — Com licença... Me desculpe.
— Tina! — Escutei o grito eufórico da minha amiga, e logo braços finos
me puxaram para um abraço apertado. — Você estava incrível, mulher!
Tem noção que voou naquele palco?! — Se afastou, as mãos em meu
ombro. — Ele te carregou no ar, foi tão maravilhoso!
Meu irmão revirou os olhos atrás dela, um buquê de rosas em suas mãos.
— Obrigada por virem. — Deixei minha busca de lado por um minuto,
apenas o suficiente para fitar o rosto cheio de orgulho de Jeremmy. Jamais
me esqueceria de como ele me carregara no colo da última vez, como se
preocupara e me incentivara. Como cuidara de mim. Eu o amava mais do
que ele poderia imaginar, e vê-lo ali, sorrindo daquele jeito, fez meus olhos
arderem.
Depois de mais um abraço em Gina, me afastei para aceitar as flores do
meu irmão.
— Você está linda, pirralha.
— Eu sei. — Pisquei um olho para ele, que riu. Cheirei as rosas, e uma
lágrima caiu sobre uma delas. — Obrigada, Jemmy.
Ele me abraçou, com cuidado para não amassar o buquê. Antes que
declarações sentimentais e embaraçosas pudessem sair da boca dele, um
flash atingiu meus olhos, e então o sorriso enorme da minha mãe iluminou
meu campo de vista.
Ela entregou a câmera a Jeremmy, me apertando em seus braços com
força o suficiente para me tirar o ar.
— Foi a peça mais linda que já vi em toda minha vida — fungou, se
afastando, espremendo minhas bochechas contra suas mãos frias. — Meu
bebê estava tão lindo no palco! Ah, minha filha, que orgulho eu tenho de
você!
— Que orgulho nós dois temos. — A voz grave sobressaiu aos
murmúrios das pessoas que passavam por nós. Estávamos no meio do
corredor, a poucos metros da porta lateral direita que levava à saída.
Senti meu irmão ficar tenso quando meu pai se aproximou. Minha mãe
apenas abriu espaço para ele e apertou levemente a mão do ex-marido em
cumprimento.
Sorri ao abraçá-lo.
— Estou feliz que veio — falei baixo em seu ouvido.
— Não perderia por nada, querida. — Me soltou, o mesmo sorriso
orgulhoso que vira no rosto de Jeremmy enfeitava o seu. Apesar de ainda o
achar magro demais e ver mais mechas grisalhas enfeitarem seus cabelos
castanhos, o ex-bailarino tinha uma aparência consideravelmente melhor.
Mais saudável. Jemmy odiava quando comentávamos sobre nosso pai, mas
era simplesmente impossível não notar a grande semelhança física entre ele
e o homem. A não ser pelo cabelo mais claro e alourado de meu irmão, os
olhos castanhos, cabelos lisos e pele mais bronzeada eram os mesmos. —
Postura impecável, passos precisos e... — Segurou minha mão livre para me
girar no lugar. — Você está perfeita.
— Obrigada, pai.
Não éramos mais a mesma coisa; eu ainda mantinha um pé atrás, mas
estávamos bem. As coisas entre nós dois melhoravam, e aquela dor
insuportável que eu sentia já não me feria tanto.
Apesar de amar minha família e querer aproveitar o resto da noite com
eles, precisava fazer uma coisa antes.
Encontrar alguém antes.
— Tem uma pizzaria incrível a três quadras daqui — Giovanna declarou
depois de cumprimentar meu pai com um abraço. — Deveríamos ir pra
comemorar o grande retorno da Tina. O que acham?
— Estou faminta! — Minha mãe sorriu, guardando a câmera na bolsa.
— Vamos, então. — Jeremmy puxou a noiva de perto do pai, como se
não suportasse que ela sequer falasse com ele. — Antes que fique tarde.
— Eu... vou indo. — Meu pai recuou o primeiro passo. Aquele silêncio
constrangedor. O único som foram as pessoas saindo, murmurando sobre o
espetáculo, sugerindo um lanche em algum lugar.
Parei de bisbilhotar entre as cabeças para procurar Theo quando notei o
tom de voz do ex-bailarino.
Gina derreteu aquele gelo habilmente, acertando o cotovelo na lateral do
corpo de Jeremmy para se afastar.
— Você vem com a gente, tio Matt — ela falou, já empurrando quem
podia para a saída. — Não vai embora sem um lanchinho. Vamos.
Ele me olhou, como se pedisse permissão.
Dei o melhor sorriso que consegui.
— Vão na frente. — Apontei para o corredor adiante. — Peço à minha
professora para me dar uma carona e me deixar lá. Preciso me trocar.
— Eu posso te esperar se quiser... — Jeremmy tentou, implorando por
uma saída, por uma desculpa para ficar longe do pai.
— Não! — O empurrei para a noiva dele. — Eu alcanço vocês depois.
A tola esperança de que Theo, por algum milagre, tivesse voado de Roma
até ali para me ver dançar se desmanchou como um frágil castelo de cartas.
Ele não estava em lugar algum, vê-lo na plateia foi fruto de minha
imaginação, a saudade falara mais alto.
Quando Gina percebeu meu olhar, aquela coisa que só nós duas
compartilhávamos, entendendo que eu precisava de alguns minutos sozinha,
exclamou mais ordens para que todos se apressassem para conseguirem a
melhor mesa.

Esperei que saíssem para permitir que meu sorriso, enfim, se partisse e
desaparecesse.
Ele não estava ali.
Por que estaria? E se estivesse, por que não me procurar para
conversarmos?
Monica, a dançarina mais nova da turma, me esperava com minha
mochila quando apareci nos bastidores. Como os vestiários ainda estavam
ocupados e alguns bailarinos aproveitavam os últimos minutos com suas
fantasias para fotos, decidi esperar para me trocar e partir para a pizzaria.
Peguei meu celular e segui para o lugar mais silencioso que encontrei: o
palco.
Me sentei na beirada, deixei meus pés oscilarem no ar. Pensei que,
quando estivesse em um palco outra vez, quando olhasse a plateia e o chão,
temeria cair novamente. Mas dançar naquela noite fora libertador.
Não tinha mais medo de cair.
Tinha medo de perder a pessoa que me ajudara a levantar.
Eu percebi, talvez tarde demais, que Theo tinha razão. Gina também.
Errara em pensar que ficar sem ligar ou falar com meu namorado porque
estava ocupada ensaiando era uma desculpa justificável. E então me dei
conta de como estava repetindo cegamente os passos do meu pai. De como
estava tão focada em dançar de novo e me apresentar que esquecera das
pessoas de fora.
Não foi intencional. Eu jamais quis magoar Theo ou deixá-lo em segundo
plano... Mas foi o que fiz, não é? Mesmo que nós dois tivéssemos
prometido um para o outro correr atrás da nossa “felicidade solo” primeiro
antes de termos um plano, eu não deveria ter mergulhado tão
profundamente no meu objetivo a ponto de fazê-lo esperar por uma ligação
todas as noites.
Prometer acertar é simples e até sincero na teoria, mas tão difícil de se
executar na prática...
E eu falhara com Theo.
Eu esquecera, naquele último ano, da pessoa que me ajudara a levantar e
dançar outra vez, do italiano de sorriso gentil e coração solitário.
Mas lembrei naquela noite, quando sorri no palco, dancei sem cair e, por
fim, pensei ter visto seu rosto lindo na plateia.
A dança daquela noite não foi apenas para mim, mas em homenagem a
ele. Aquela apresentação não faria sentido se continuássemos brigados.
Digitei o número.
Esperei que ele atendesse.
Fora de serviço.
Mordi o lábio, tentando outra vez. Nada.
Mantive o aparelho contra o ouvido. Encarei as sapatilhas em meus pés
com um pesar sufocante no peito.
— Não pode me atender ou não quer me atender? — perguntei para o
nada.
— Não quero.
Ergui o rosto. Meu coração bateu dolorosamente mais rápido.
No final do corredor central, ali estava. Theo. Ele estava ali. Caminhando
lentamente em direção ao palco. Em minha direção.
O cabelo parecia mais curto do que me lembrava, as laterais mais
aparadas, as mechas escuras penteadas para trás, mas não perfeitamente.
Alguns fios escapavam, provocando aquelas reações em meu estômago:
saudade, desejo, amor...
A camisa social preta, as mangas compridas dobradas até altura do
cotovelo, me lembravam uma noite de verão em uma ponte em Verona. O
colar que ele me dera estava cuidadosamente guardado na mochila ao meu
lado.
Ele estava ali mesmo, me olhando de um jeito que, se eu não estivesse
sentada, teria amolecido minhas pernas já cansadas da semana de treino
intenso.
— Theo... — Minha voz falhou. A visão embaçou com a chegada de
lágrimas que eu não impedi.
Ele não disse nada, apenas caminhou sem pressa pelo corredor,
avançando devagar até o palco. Até mim.
Mordi o lábio, sentindo o gosto salgado e úmido de lágrimas na língua.
Os últimos meses vieram como um peso em meu coração: as noites de
conversa; os e-mails que enviávamos em forma de cartas; as risadas que
compartilhamos em ligações...
Nossa última briga...
Theo parou a uns cinco metros, as mãos no bolso da calça jeans clara.
Observou meu rosto, o vestido, as sapatilhas em meus pés. Sério demais.
Ele esperou.
Esperou que eu falasse algo.
— Me desculpa. — Deixei as palavras que ensaiara por semanas
correrem pela minha garganta, segurando o corpo ali para que não saltasse e
corresse até o italiano. Me envolvi num autoabraço como se aquele gesto
fosse o suficiente para me conter. — Eu... fui uma idiota.
Céus, eu sentia tanta falta dele!
— Conversar com você por telefone ficou cada vez mais difícil... E eu sei
que não é uma boa desculpa, mas estava cansada disso. Das ligações, das
videochamadas... — Minha voz tremeu. — Eu queria ver você, mas não por
uma tela. Queria escutar sua voz... mas não... não por um áudio. Dançar foi
a única forma que encontrei de silenciar a vontade de pegar o primeiro
avião para Roma. Eu... Dancei até cansar para me esquecer que não beijaria
e abraçaria você quando chegasse em casa. Não percebi que isso só estava
me distanciando mais de você. Sei que não é o suficiente. — Solucei. — Sei
que te magoei... Eu... sinto muito. Sinto tanto, Theo...
Engoli em seco.
Nada. Ele não disse absolutamente nada.
Meu estômago retorceu, dessa vez com ansiedade e hesitação.
— Eu... — Não enxuguei as lágrimas que caíam copiosamente em meu
rosto. — Fala alguma coisa, por favor...
Theo deu o primeiro passo, correndo lentamente aqueles olhos lindos por
mim outra vez. Outro passo e mais um, até ficar bem perto, até precisar
inclinar a cabeça para me olhar, para me encarar.
O rapaz esticou os braços na minha direção.
Outro soluço escapou da minha garganta.
— Tem certeza que consegue me segurar? — perguntei baixinho,
soltando um riso sem graça e rouco.
Nenhuma resposta, apenas os braços ainda erguidos na minha direção,
como se dissesse com aquele leve esticar de sobrancelhas: eu nunca te
deixaria cair.
Com o coração acelerado, larguei o celular ao lado da mochila e me
preparei para pular. Me preparei para finalmente sentir as mãos do meu
namorado me segurarem outra vez.
Ele esperou.
Empurrei meu corpo para fora do palco.
Theo me segurou, embolando os tules da saia, mas os braços alcançaram
meu quadril. Quando o senti me apertar contra seu corpo, envolvi as pernas
ao seu redor e o abracei.
O choro completo e quebrado que eu segurava até então escapou. Alto e
soluçado.
— Senti sua falta... — Afundei o rosto em seu pescoço, aquele perfume
me embalando, aquietando a bagunça em meu coração.
Ele não disse nada até então, mas aquilo era o bastante. Aquele abraço
era o suficiente para eu saber que ficaríamos bem.
Horas pareciam ter se passado, os braços fortes me prendendo era tudo
que eu queria e precisava no momento, mas apenas alguns segundos de
silêncio e choro depois e Theo se pronunciou.
— Eu também senti sua falta — murmurou, finalmente, aquela voz grave
e macia que eu adorava tanto me embalando como uma canção. — Mais do
que imagina.
— Me desculpa ter brigado com você. — Apertei os braços em seus
ombros. Eu não o soltaria. Nunca mais. — Fui uma boba apaixonada com
saudades do namorado, não soube reagir bem.
Uma risada baixa deixou sua garganta.
— Me desculpe também. — Se inclinou para conseguir acesso ao meu
rosto. Minha pele fria e encharcada de lágrimas salgadas. Theo me encheu
de beijos, mas não onde precisávamos mais. — Somos dois bobos
apaixonados com saudade um do outro, no fim das contas.
Mantive os braços ao seu redor, e ele não reclamou quando o apertei mais
forte.
— Você veio... — sussurrei. — Não acredito que veio.
— Só se estiver sonhando outra vez, bella. — Riu. — Mas acredito que
sou bem real.
— A apresentação... — Me afastei o suficiente para encará-lo nos olhos,
não me importava se estava ou não um desastre de maquiagem borrada. —
Era pra você.
Ah... Aquele sorriso. Céus, eu não poderia mais viver sem aquele erguer
genuíno de lábios. Era perfeito, largo e tão lindo.
— Eu sei. — Manteve um dos braços firmes em minha lombar para
erguer a mão livre até meu rosto. Não havia cacho algum para ele afastar;
mesmo assim, Theo tocou a lateral da minha face com carinho. — Você
estava linda. Mesmo agora, com a maquiagem borrada... — Riu, passando o
polegar por minha bochecha, brilho dourado agora enfeitando sua pele
bronzeada. — Está linda.
Sorri.
— Grazie, grazie[43].
— E aquele cara... — Segurei a respiração. Bom, ele vira, afinal. O casal
dançando no palco. Theo assumiu uma expressão convencida nas feições
lindas. — Eu sou bem mais atraente do que ele, certo?
Gargalhei.
— Huh. — Funguei ao assentir, me acalmando do choro aos poucos. —
Um bilhão de vezes mais atraente.
— Ótimo. Contanto que saiba disso. — Ele se inclinou e me beijou. Me
beijou com a mesma intensidade e urgência da primeira vez, na Fontana.
Doce, porém profundo.
Suspirei, me desmanchando nos braços dele, agradecida por minha
família não estar ali para testemunhar a cena. Aquela faísca não estava
apagada. Não, longe disso. Parecia mais forte do que nunca, começando em
um ponto abaixo do umbigo, incendiando o resto do meu corpo até queimar
o coração.
Cedo demais, Theo se afastou e, para meu desapontamento, me colocou
no chão. Antes que eu pudesse protestar, levou uma das mãos ao bolso.
— Recebi uma coisa... — Ergueu o papel pálido e levemente amassado.
O desdobrou, revelando que aquele desgaste nas pontas e as dobras se
deviam ao número de vezes que Theo o lera, o guardara e o desdobrara de
novo e de novo.
Meu coração frágil segurou as batidas por alguns segundos.
Uma noite cheia de surpresas.
Aquela, em especial, significava ainda mais.
A carta que eu escrevera em Verona, na casa de Julieta.
Theo a lera.
— Eu a recebi uma semana depois da nossa briga. — Soltou uma risada
rouca. — Coincidentemente.
Tomei o papel de sua mão, reli as palavras ali.
“Antes que eu decida amá-lo, preciso descobrir como fazer isso por mim
primeiro. Quero amá-lo inteiramente e, se ainda estiver quebrada, não sei
se posso fazer isso.
Quero que ele faça o mesmo.”
Uma gota solitária encontrou caminho no papel e eu sorri, sentindo a mão
do meu namorado no rosto, o indicador evitando que outras lágrimas
cristalinas manchassem a carta.
“Se estão lendo esta carta entre outras tantas milhares, considerarei uma
bênção, um sinal de que, talvez, quem quer que esteja guiando meu
caminho do céu, queira que eu encontre Theo novamente.
Se esta carta chegar até ele um dia, superando o tempo e o caminho de
Verona até Roma, chuva e sol, vou entender que os céus estão a nosso
favor.
Que devemos ser.
Ele e eu.
Acham que podem me ajudar?
Daqui a um ano. Em Roma. Numa loja cheia de flores e doces...
Podem encontrar meu Theo?
Quero que ele saiba que, durante um ano, vou me dedicar em me fazer
feliz, em me conhecer e me amar. E, depois desse tempo, estarei
esperando.”
— Acho que não precisamos de mais sinais, certo? — falou quando ergui
meus olhos de encontro aos dele. — Estamos destinados...
Passei a mão com a carta por seu ombro e, apoiando-a em sua nuca,
trouxe seu rosto para perto do meu.
O beijei.
Devagar dessa vez.
Quando nos separamos, me preparei para dizer as palavras mais mágicas
do que qualquer fonte.
Porém, Theo as disse primeiro, em sua língua nativa:
— Ti amo — sussurrou sobre meus lábios, a respiração quente e ofegante
se misturando à minha. — Te amo, Tina, da forma mais inconsequente e
boba que você possa imaginar. E eu não vou a lugar algum. Me pediu para
te encontrar quando descobrisse meu sonho, e eu estou trabalhando nisso,
todos os dias, mas nonna me disse o suficiente: ser feliz e viver cada dia da
melhor forma possível. Esse é meu sonho. Não me arrepender do hoje e
esperar um amanhã melhor. E você, Valentina Ferreira. Você é meu sonho.
— E você o meu. — Sorri, o beijando uma vez, duas... três... Prometi que
o ajudaria, e talvez tenha falhado nos últimos meses, me concentrando
apenas em mim, no balé, mas ele estava ali agora. Eu faria o melhor para
manter o sorriso lindo nos lábios daquele rapaz. Para fazê-lo rir e esquecer
as coisas ruins que o afligiam. — Não quero ficar longe de você de novo.
— Não vai.
— Então...
— Eu vou ficar. — Os lábios dele esticaram.
— E a nonna? — Meus olhos se arregalaram. — Você...
— Ela está com a Gina agora. — Deu de ombros. — Está mais animada
do que eu pra começar a morar em Boston.
Balancei a cabeça, confusa.
Eu não tinha visto nonna. Ela assistira à apresentação também?
— Encontrei com Gina e sua família na saída, ela chorou quando viu
minha avó. — Riu, divertido. — Pensei que seria melhor conversar com
você depois que todo mundo tivesse ido, então sua amiga sugeriu levar
minha avó com ela, só para nonna reclamar do gosto da pizza de vocês.
Ri.
De fato, a pizza italiana era de outro mundo. Mas eu adorava o sabor da
boa massa americana também.
— Então vocês vão ficar? — Perguntaria sobre a casa, a Vespinha e a loja
deles depois. Tínhamos muito o que conversar ainda.
— Huh. — Ele abraçou minha cintura. — Vou ficar aqui. Com você.
Talvez fosse a magia da apresentação, Theo ali e a carta... mas minhas
emoções estavam à flor da pele, eu não conseguia parar de chorar. Era como
uma torneira estragada desde que voltara de Roma.
— Eu também te amo — finalmente disse. Ele precisava escutar, mesmo
que já parecesse saber. — Eu te amo, Theo.
Ele apoiou sua testa na minha e fechou os olhos por alguns segundos.
Não sabia se alguém bisbilhotava atrás das cortinas vermelhas, não me
importava se até mesmo minha professora estivesse assistindo. Tudo estava
quieto, no lugar certo.
Abracei a cintura de Theo, descansei minha cabeça em seu peito.
Feliz. Feliz de verdade.
— Qual é o plano? — perguntei baixinho.
— Vamos viver o hoje intensamente. — Beijou o topo da minha cabeça,
os braços em meu ombro. — E esperar que o amanhã nos surpreenda.
TINA

Estreitei os olhos, cobrindo o rosto contra o sol com a mão para


poder ver melhor o que os estaladores da placa estavam fazendo. Passara o
último mês rabiscando e riscando minha agenda com ideias de nomes para
o estúdio. Porém, em uma noite, sentada na sala do nosso novo apartamento
com Theo, meu namorado sorriu para mim e eu soube.
— Estúdio de dança Raio de Sol... — Senti as mãos dele rodearem
minha cintura por trás antes de ouvir sua voz contra meu ouvido. Não
precisava me virar para saber que Theo tinha um sorriso nos lábios. —
Prego.[44]
Dei risada, apoiando minhas mãos sobre as suas em minha barriga,
minha cabeça em seu peito.
— Sua ideia mesmo, realmente.
Um dos rapazes lá em cima gritou alguma coisa, e Theo respondeu
por mim:
— Um pouco mais pra direita, amigo!
— E então? — perguntei, virando um pouco a cabeça para tentar ver seu
rosto. — O que acha?
A fachada do prédio fora pintada de amarelo. No chão do primeiro andar,
Gina e eu concordamos em deixar o lugar o mais alegre possível. Então, do
solo, começavam os ramos verdes, dando vida a girassóis de todo tamanho,
apontando para a placa da escrita “SOL” que acabava de ser colocada. Na
confeitaria de Giovanna, uma placa de LED lateral chamava a atenção de
quem passava na rua.
“Doce Sonho” já era um sucesso para os moradores do bairro, que
sempre corriam ali no horário de almoço para adoçar um pouco o dia. Gina
mal deixou que nonna pedisse: na semana seguinte à chegada dos dois
italianos, minha amiga encomendara um avental personalizado para sua
“mestre do sabor divino”.
Theo me dissera o que a avó fizera, o que deixara para trás, e me
confessara estar com receio de que nonna acabasse se entediando por aqui.
Depois de observar a senhora lá dentro, auxiliando Tina no creme especial
que as duas tentavam desenvolver na última semana, porém, percebi algo:
ao que tudo indicava, ela estava feliz, e tratava Gina e eu (especialmente
Gina) como se fôssemos suas netas de sangue.
Minha mãe não pensara duas vezes antes de adotar a senhora e arrumar
meu antigo quarto para ela. As duas se davam muito bem, e uma parte
minha percebeu que ter nonna ali apaziguara um pouco a saudade que a ex-
bailarina tinha de casa.
Da falecida mãe.
O italiano atrás de mim se inclinou e depositou um beijo em meu
pescoço.
— Está perfeito.
Me virei para ele, abraçando sua cintura.
— Está pronto pra ser meu sócio?
Sorriu, correndo os olhos pretos para meus lábios.
— Se usar aquele uniforme todos os dias, bella, estarei pronto pra fazer o
que você quiser. — Me beijou, me arrancando uma risada.
Ele tinha um fraco por meias-calças e collants, e eu até encomendara um
dois dias antes especialmente para meu namorado. Ele estava merecendo, já
que, nas últimas semanas, tinha me ajudado muito com os preparativos para
a inauguração do estúdio.
— Vou pensar no seu caso. — Um último beijo antes de me afastar ao
ouvir Gina dar um gritinho animado lá dentro.
A brasileira tinha um sorriso enorme nos lábios e ergueu a mão para a
senhora, que imediatamente retribuiu o high five. Elas tinham finalmente
conseguido o ponto certo do creme.
Antes que as duas nos chamassem para provar, me voltei para Theo e tirei
do bolso da calça de treino o papel com o esboço de algumas ideias que
tivera numa noite, conversando com nonna.
A senhora de idade passara parte daquele dia reclamando do quanto
odiava ficar em casa, destinada a viver seus anos de “velha” (palavras dela)
como uma idosa frágil e entediada. Sempre admirara a força de vontade de
nonna e a saúde física que eu queria ter quando tivesse sua idade. Foi
pensando nisso que as ideias do meu novo plano para o estúdio “Raio de
Sol” começaram a nascer.
Entreguei o esboço para Theo, que franziu a testa ao ler.
— Acha que é uma ideia ruim?
Primeiro, ele ficou sério, concentrado nos rabiscos bagunçados no papel.
Então, o rapaz correu os olhos para a avó lá dentro.
Fiquei apreensiva.
— Lena me indicou um drama sul-coreano[45] e acabei viajando um pouco
na ideia, mas pensei... por que não? Será que a nonna não gostaria de
começar a aprender algo diferente? É tarde demais pra ela aprender a
dançar? — Fechei as mãos na barra da camisa, um pouco nervosa. — E se o
estúdio não fosse apenas um lugar pra crianças, se o principal foco fossem
as pessoas que desejam recomeçar? Talvez duas turmas: posso ensinar os
pequenos de noite, quando voltarem da escola, e ficar com a turma de
idosos de manhã. — O olhar de Theo me avaliando não ajudou muito. —
Ficaria feliz se pudesse ajudá-los a enxergar que, só porque estão mais
velhos, não significa que não possam viver experiências novas e...
Fui calada com um beijo, as duas mãos de Theo segurando as laterais do
meu rosto.
— Se fizer isso, talvez eu te ame ainda mais.
— Mesmo? — Suspirei aliviada. — Acha que é uma boa ideia?
Assentiu, com um sorriso orgulhoso.
— Tenho certeza que não vai ajudar apenas idosos, mas qualquer um que
entrar por aquela porta.
Meus lábios se esticaram.
Por fim, escutamos a voz de nonna nos chamar para provar o novo creme
especial da “Doce Sonho”.
Theo apontou com o queixo para a avó lá dentro.
— Por que não pergunta a ela?
Inspirei fundo e segui para dentro do estabelecimento. Depois de
provarmos o doce — maravilhados com o que as mãos de Gina e da
senhora italiana podiam fazer juntas —, tentei pensar numa forma de
abordar a ideia com nonna.
Palavras pausadas e gaguejadas foram tudo o que saíram, porque uma
parte minha achava um pouco difícil e impossível. E se não aparecesse
ninguém? E se as pessoas rissem da ideia? E se as famílias dos idosos em
questão não concordassem, como os filhos do senhor Shim no drama que
assistira? Eu estava pronta mesmo para começar algo assim?
— Nonna... — Theo a chamou, apoiando os antebraços na bancada com
um sorriso divertido nos lábios. — Cosa ne pensi di imparare a ballare?[46]
Ele vinha me ensinando italiano desde que começamos a namorar. Então,
o que ouvi e achava compreender me deixou congelada no lugar, segurando
o ar em expectativa.
Os olhos de nonna se voltaram para mim.
— Eu adoraria... se tivesse a professora certa. — Piscou um olho para
mim.
Senti um salto alegre no coração, o início lindo e brilhante de mais um
sonho.
­— Mesmo? — perguntei.
— Ora, bambina! Ainda estou nova demais — rebateu, alegre. — Por
que perderia a chance?
O sorriso começou a crescer em meu rosto, Theo contornou minha
cintura outra vez e depositou um beijo encorajador em minha bochecha.
— É melhor se preparar então, raggio di sole. — Sorriu. — Tem um
novo caminho incrível pela frente.
GINA

Encarei o reflexo da jovem de sorriso brilhante.


Ali estava algo que, sinceramente, jamais pensaria presenciar na vida:
aquela pessoa impulsiva e revoltada em um lindo e impecável vestido de
noiva.
Adorava o tom marrom de minha pele em contraste com aquele branco
brilhante, e meus ombros de fora permitiam um destaque maior ao busto de
pedrinhas, que cintilavam no corpete justo como estrelas. Aquele vestido
fazia maravilhas por minhas curvas, e eu não me importei em me achar
maravilhosa naquele dia.
Era o meu dia.
Não havia tranças e apliques dessa vez, apenas cachos pequenos e
volumosos, suavemente iluminados por um castanho mais claro que o
escuro das mechas naturais. Não haveria véu; em compensação, a lateral do
cabelo fora dividida em três tranças firmes que encontravam caminho para a
presilha prateada de ramos.
Pisquei rapidamente, evitando a emoção de me ver de noiva, sorrindo ao
virar o corpo para conferir se estava tudo certo atrás, mesmo que já o
tivesse feito diversas vezes.
A porta do pequeno quartinho da antiga igreja se abriu.
Cachos dourados e longos enfeitaram o vão da porta de madeira escura
quando a cabeça de minha amiga — e agora, oficialmente, minha cunhada
— despontou para dentro do cômodo. Ela já me vira antes, pronta, mas
sempre que corria os olhos verdes pelo vestido justo de sereia que me
ajudara a escolher meses antes segurava o choro.
— Só vim ver se precisa de alguma coisa — falou, fechando a porta atrás
de si.
Ela também estava linda. As mechas douradas de seu cabelo cresceram
nos últimos meses, dois anos e meio desde Roma, e agora batiam no meio
de suas costas em cachos encorpados e quase domados. O vestido preto que
eu definira para as madrinhas acentuara o tom pálido da pele de Tina, as
sardinhas e pintinhas espalhadas pelas bochechas, ombros e braços. Uma
gargantilha dourada de folhas enfeitava seu pescoço, e a maquiagem, eu
sabia, fora retocada mais de uma vez só na última hora.
Tina sorriu ao se aproximar, e então enganchou o braço no meu e nos
virou para o espelho. Duas jovens de físicos tão opostos que, de alguma
forma, eram claramente família. Não só pela cerimônia que ocorreria em
breve, mas pela história que compartilhávamos.
— Você fica bem de preto — ronronei, a provocando de uma forma que
deixava pessoas que não nos conheciam desconfortáveis.
Minha amiga devolveu o sorriso sedutor.
— Você está uma beldade de branco — disse com uma piscadela, mas
cortou a brincadeira ao falar, divertida: — Vai fazer meu irmão chorar
quando entrar naquela igreja.
Ri, passando as mãos pelo vestido.
— Se ele não chorar quando me ver, darei meia-volta e cancelarei este
casamento.
A bailarina gargalhou.
— Ele vai, te prometo. — Valentina esticou a mão para afastar alguns
cachos crespos do meu rosto. — Theo precisou bloquear a porta umas dez
vezes para impedir que seu noivo viesse te bisbilhotar.
Não confessaria à Tina que eu mesma me segurara diversas vezes para
evitar fazer o mesmo.
Meus lábios se esticaram para cima, meu coração bateu mais rápido com
uma saudade descabida e ridícula.
Jeremmy e eu queríamos deixar nossa cerimônia de casamento mais
interessante, então não dormimos juntos por um mês inteiro e apostamos
não nos ver naquela última semana também.
Me surpreendia ter conseguido ser tão forte nos últimos dias. Jemmy
também: as mensagens que meu noivo me mandou durante o trabalho no
mês que passamos “afastados” sugeriam que ele estava à beira de um surto
de saudade — e desejo acumulado — feroz.
Idem.
— Eu vou me casar. — Fiz careta ao dizer, mas meu coração saltou
alegre no peito de novo. — No final da tarde vou ser... uma Sra. Ward.
Tina gargalhou.
— Giovanna Albuquerque Ward... — Ela saboreou as palavras. — Que
sexy!
Sorri para nós duas no espelho.
— Seu irmão diz odiar seu pai — comentei, entrelaçando minha mão à de
minha amiga. — Mas insiste em usar o sobrenome do tio Matt.
— Eles estão encontrando o caminho de volta, acho.
— Aos poucos — assenti. Tina já tinha encontrado, eu sabia. O caminho
para o perdão, o caminho até o pai que a amava mais do que a ele mesmo. E
apesar de nunca ter realmente me intrometido naquele assunto, sentia meu
coração bater mais leve e aliviado ao ver que, aos poucos, a ferida daquele
passado de dor já cicatrizava em minha amiga. Em meu futuro marido
também.
Como se tivéssemos invocado alguém, uma batida ecoou na porta atrás
de nós. Quando Tina a abriu, sorriu para o casal do outro lado.
Tia Sabrina deixou um soluço agudo escapar ao me ver.
Tio Matt pigarreou, tentando disfarçar a própria emoção.
Sorri largamente para os dois. Então, com a garganta falhando um pouco,
falei para Tina:
— Pode me dar um minuto com eles?

Os pais de Jeremmy esperaram ansiosos quando arrastei a cadeira e


me sentei diante deles no pequeno sofá. Tia Sabrina tentava conter as
lágrimas silenciosas no rosto, evitando a destruição de sua maquiagem. Ela
poderia muito bem enganar os convidados alegando ser a irmã mais velha
de Tina. A mulher ostentava seus quarenta e poucos anos de cuidado com o
corpo e a pele naquele lindo vestido de chiffon. O verde-musgo do tecido
destacava os olhos dela, e eu apostaria meu maravilhoso — e caríssimo —
bolo de casamento com sorvete que o Tio Matt tivera de se esforçar
diversas vezes para não encará-la demais.
Ele ainda a amava, no fim das contas.
O ex-dançarino tinha o sorriso gentil, há muito apagado do rosto bonito,
de volta aos lábios. Depois que começou a ser incluído novamente nas
reuniões de família no último ano, começara a se alimentar melhor, a
dormir melhor, havia cor no rosto dele outra vez. Meu futuro sogro poderia
muito bem ser o reflexo de como Jeremmy seria daqui a uns dez anos, mas
dizer aquilo em voz alta só traria aborrecimento ao meu noivo.
Sorri para os dois.
Meus pais adotivos.
Meus sogros.
Minha família.
— Eu nunca agradeci de verdade o que vocês fizeram por mim —
comecei, me amaldiçoando por não manter o tom firme na voz, por querer
chorar tão depressa. Os olhos do casal brilharam imediatamente, uma
promessa de que logo viria choro, e eu não conseguiria me controlar dessa
vez. — Nunca... expressei minha gratidão por terem me acolhido... quando
ninguém no mundo me quis.
— Gina... — Tia Sabrina se inclinou para segurar minha mão.
— Obrigada — falei, apertando levemente os dedos frios e finos contra
os meus. Estiquei a outra mão para o tio Matt, que se esforçava para ser
forte, e não o pai chorão que era. Isso só me fez sorrir mais. — Obrigada
por me abraçarem quando perdi meus pais. Obrigada por... me oferecerem
um lar quando já não havia mais nenhum. Obrigada por me amarem quando
nem mesmo eu consegui fazer isso. Apesar de tudo, de toda a dificuldade
que enfrentei nos últimos anos desde a morte deles... — Minha garganta se
fechou, a voz falhou, rouca. — Sei que jamais teria sobrevivido sem vocês.
Só... queria que soubessem disso. Por muito tempo, me senti deslocada, mas
vocês se esforçaram para me dar o melhor. Para que a dor fosse suportável.
É uma honra, oficialmente, ser parte da família de vocês.
Tia Sabrina soluçou, logo ficando de pé e me obrigando a fazer o mesmo
para poder me abraçar.
O perfume dela era doce e suave. Lembrava casa. Lar.
— Quando Jeremmy disse que vocês iam se casar, pensei que estava
vivendo um sonho. — Ela se afastou um pouco para me encarar, e foi
impossível impedir a primeira lágrima de descer. — Sei que não somos
perfeitos e que nossas tentativas de te fazer se sentir em casa fracassaram na
maioria das vezes, mas sempre te considerei minha menina preciosa, Gina.
E agora... agora finalmente posso te chamar de filha. Com todo orgulho que
uma mãe poderia sentir.
Sabia que teria de consertar a maquiagem depois, mas dane-se.
— Eu te amo tanto, tia Sabrina — sussurrei ao abraçá-la outra vez.
— Sogrinha — corrigiu, com uma risada chorosa. — Quero que me
chame de sogrinha. E ai de você se não me obedecer.
Gargalhei, e um pigarreio grave e masculino me impediu de retrucá-la.
Tio Matt se colocou de pé também, respeitando aquele pequeno espaço
entre nós, mas com os olhos vermelhos de lágrimas.
Mantive um dos braços na cintura da minha sogra ao encará-lo.
— Estou me sentindo velho — falou, com graça, e eu sorri. — Sabia que
a entregaria para alguém um dia, que precisaria alertar seu escolhido, mas
jamais imaginei que este dia chegaria e a pessoa do outro lado do tapete
vermelho fosse meu filho. Não vou precisar assustá-lo no fim das contas.
Eu sabia; sabia que não poder falar com o filho naquele dia o estava
dilacerando por dentro, sentia no tom em sua voz. Jeremmy passara a
aceitar as visitas do pai, mas raramente direcionava uma palavra ao ex-
bailarino. Isso quebrava o homem mais do que ele deixava transparecer.
A Jeremmy também. Aquele teimoso orgulhoso não admitiria, mas não se
permitir compartilhar aquele dia com o pai o feria igualmente.
Me afastei de tia Sabrina e me voltei para o ex-marido dela.
Segurei as mãos dele.
— Quero que me leve até o altar.
Os olhos castanhos se arregalaram. Ao meu lado, senti o sorriso nos
lábios da mãe de Jeremmy.
Tio Matt pressionou os lábios numa linha fina, negando com a cabeça,
lágrimas silenciosas descendo em suas bochechas proeminentes.
— Jeremmy me mataria se me visse guiando você até o...
Bufei, revirando os olhos.
— Que ele lide comigo primeiro. É o meu casamento também. — Soprei
a franja cacheada com desdém. — Ele precisa entender que quem manda
sou eu.
O homem soltou uma risada rouca.
Diminuí meu sorriso e o encarei com seriedade. Sinceridade.
Inicialmente, pedira a nonna que me levasse, e ela ficou tão feliz no dia
que chorou de emoção. Mas, na noite passada, quando contei a ela o que
vinha me afligindo, a senhora italiana apertou minha mão e sugeriu com
carinho aquela ideia: peça ao seu sogro que te leve ao altar, o garoto não
teria alternativa a não ser se ver frente a frente com o pai.
Sabia que Jeremmy ficaria furioso, tio Matt também, mas insisti mesmo
assim.
— Você era o melhor amigo dele. — Tio Matt sabia de quem eu estava
falando. — Eu... queria que meu pai estivesse aqui... — Soltei uma risada
melancólica. — Céus... Ele teria infernizado Jeremmy até o último segundo.
Mas ele não está. Foi você quem fez o impossível para me trazer para cá,
para cuidar de mim depois daquele acidente. Mesmo depois... — hesitei,
mas me lembrei de que tia Sabrina já havia superado o fato. — Mesmo
depois que você saiu de casa, me ligava perguntando como eu estava, se
precisava de alguma coisa. Você sempre compra uma caixa de doces
quando me visita na confeitaria, sempre me incentivou a engordar todos
naquela casa com as minhas receitas...
Tanto ele quanto a ex-esposa riram.
Uma parte minha se perguntava — e desejava que — se, mesmo depois
de tudo, eles ainda tinham uma chance de recomeçar. Os dois ainda eram
amigos, ainda se amavam.
Apertei as mãos do meu sogro.
— Você assumiu o papel de pai quando me tirou das mãos daquela
assistente social, tantos anos atrás. — Senti outra gota salgada descer em
meu rosto. — Por favor, tio Matt, assuma o papel do meu pai e me leve até
seu filho hoje.
O homem não conseguiu falar, não com tanto choro no caminho. Por
isso, apenas me olhou como se enxergasse o falecido amigo ali, ao meu
lado.
Tia Sabrina apoiou uma mão no ombro do ex-marido e sorriu com
carinho ao observá-lo.
— Ele vai — respondeu a mulher, com os olhos brilhando com a mesma
emoção do pai de Jeremmy.
Tio Matt assentiu, apertando minha mão de volta.
— Será uma honra, querida.
Sorri.
— Ótimo. — Funguei, me afastando, ajeitando o vestido. — Agora
chamem a Sol, porque eu tenho certeza que a maquiagem borrou.
Eles riram.
— Vamos avisá-la. — Sabia que seria difícil encontrá-la. Helen tinha se
empoleirado em algum lugar com Jay depois que eu os apresentara.
Observei meus sogros uma última vez antes de eles partirem.
— Amo vocês — falei.
Os dois me encararam com um largo e lindo sorriso.
— Nós também te amamos, filha.
JEREMMY
— Podíamos simplesmente... pular essa parte? — grunhi irritado,
desistindo da gravata cinza. Tina se adiantou para me salvar com um riso
divertido. — Por que não começamos ainda?
— O Pastor Willer não chegou — respondeu minha irmã enquanto dava
um nó perfeito na gravata engomada e estranha. — Ele disse que teve um...
contratempo, mas fontes seguras afirmaram que ele foi ouvido em uma das
cabines do banheiro masculino tendo uma bela diarreia.
Aquilo me fez rir um pouco.
— O que a Sol estava fazendo no banheiro masculino? — Porque fofoca
era o sobrenome daquela pirralha.
— Ela disse ter se confundido — Tina me lançou aquele olhar que dizia
que fora uma mentira esfarrapada de nossa prima —, mas o Jason estava
perto demais para ser só uma coincidência. Faltava batom na boca dela. No
entanto, o ex-chefe da Gina tinha os dele exageradamente pintados de
vermelho.
Não haveria prova mais concreta: Sol adorava usar um vermelho-sangue
na boca. Principalmente em eventos em que poderia se divertir com alguém.
Uma parte minha estava aliviado por Jason ter encontrado uma distração da
minha noiva, e outra queria alertar minha prima a manter distância.
Mas Helen era muito parecida com Giovanna nesse aspecto. Ambas
odiavam quando alguém, principalmente homens, diziam a elas o que fazer.
Eram espíritos livres, era o que as duas recitavam.
Contanto que o chefe Wang mantivesse os olhos e os comentários
odiosos longe de mim e de minha noiva, Sol poderia se divertir com quem
achasse melhor.
Mesmo assim...
— Você não gosta dele — Tina comentou, distraída com a gravata —,
mas o Jay é bem legal, sabia? E muito engraçado. Ele pode parecer um
cafajeste, mas tem um bom coração.
— Como seu namorado — provoquei, e minha irmã respondeu apertando
o nó em meu pescoço com mais força. — Ai!
— Theo não tem cara de cafajeste.
Ri com escárnio e recebi mais um aperto.
— A Lena não vem mesmo? — Mudei de assunto, mesmo sabendo a
resposta. Se Lena estivesse ali, já teria arrombado a porta para me atacar
com um abraço choroso. Ela sempre foi minha prima favorita. Ao contrário
de Helen, que vivia implicando, Helena era divertida, uma ótima pessoa
para se ter por perto. A garota também me ligou naquela semana pedindo
desculpas por não vir, mas afirmou que me mandaria um presente depois.
Tina suspirou, provavelmente também chateada por não ver a prima.
— Ela está muito ocupada com os preparativos da viagem. — Minha
irmã finalmente se afastou, satisfeita com a gravata, mas a ajeitando uma
última vez. — Vai estudar na Coreia do Sul, esqueceu?
— Me surpreende ela fazer isso primeiro que a Sol... — Me virei para o
espelho, me perguntando quando Valentina ficara tão mais baixa e pequena
perto de mim. — Lena sempre foi a mais medrosa da família.
— Ela está com medo. — Tina riu, cruzando os braços. — Aposto meu
estúdio que vai começar a chorar e pedir pra deixarem ela sair do avião
quando o dia chegar.
— Bom — sorri, puxando minha irmã para perto, um braço em seu
ombro —, peça a alguém para gravar a cerimônia, ou aquela baixinha não
irá nos perdoar.
Valentina riu, passando uma mão em minha cintura, o outro braço me
contornando até que me fechasse em um abraço de lado.
Ela me encarou no espelho por alguns segundos.
— Meu irmão... — Seus lábios se esticaram. — E minha melhor amiga...
Meu coração voltou a bater de forma desesperada no peito. Tentava não
pensar demais em Gina na última hora porque poderia perder o controle e
avançar corredor afora atrás dela. Minha noiva queria que aquela noite
fosse especial, eu queria que nossa primeira noite de casados fosse especial,
então me lembrava do nosso pequeno acordo antes de fazer uma besteira.
— Ela está linda, sabe — Tina provocou. — Disse que, se você não
chorar, ela dá meia-volta e te deixa sozinho no altar.
Gargalhei baixinho, meu estômago se contorcendo ansioso ao imaginá-la
no vestido branco, me perguntando como ele seria. Como Gina estaria.
— Sei que você provavelmente já sabe, mas... como o pai dela não está
aqui e você claramente não aceitaria ouvir isso do nosso pai... — Hesitei
quando minha irmã voltou a falar mais séria. — Eu aceito fazer o papel.
Fiz menção de revirar os olhos, mas esperei que ela dissesse:
— Faça de tudo para não a magoar. — A voz de Tina vacilou, e ela
piscou para não deixar a primeira lágrima cair. — Cuide dela como a rainha
que é. Prometa... Prometa que vão sempre conversar um com o outro
quando as coisas parecerem erradas... E a ame intensamente. Até que a
morte os separe.
— Ela é meu mundo, Tina.
A jovem assentiu, o rosto apoiado ao meu peito.
Minha irmã me apertou um pouco no abraço.
— Gina respondeu a mesma coisa em relação a você. — Ela piscou, com
um sorriso insinuativo. — Então se façam felizes e me deem logo muitos
sobrinhos pra mimar.
Gargalhei.
— O que ela disse sobre isso? — Arqueei a sobrancelha, zombeteiro,
mas com certa expectativa na resposta sobre um assunto que ainda não
tivera coragem de debater com Gina. Não sabia se um dia ela ia querer
filhos.
Eu certamente queria.
E Tina sabia, pois sorriu travessa e ficou na ponta dos pés para beijar meu
rosto.
— Preciso ir — falou, se afastando. — Sou a madrinha, afinal.
— Não vai me responder?
— E perder a chance de te deixar curioso? — Riu, abrindo a porta. —
Claro que não.
Então saiu, me deixando sozinho com meus pensamentos e sentimentos
outra vez.
As cabeças de todos na igreja se voltaram para trás quando a marcha
nupcial começou, e eu me perguntei se seria possível ficar ainda mais
nervoso e emocionado quando as portas duplas de madeira se abriram.
Passara meses ensaiando quando e como pediria Giovanna em
casamento, e quando aquela noite especial chegou, me vi apreensivo,
porque uma parte minha sabia que Gina não gostava de se ver presa a
ninguém, que ela era aventureira e queria viver a vida unicamente. Então,
hesitei naquele dia; não porque não a queria, mas porque temia o “não”.
No entanto, ela estreitou os olhos no jantar e sorriu daquele jeito
malicioso que eu adorava, estendeu a mão para mim e apenas disse “se o
anel combinar, eu aceito”. Me lembro de tentar fingir não saber do que ela
estava falando, mas estava claro que o suor em minhas mãos e a inquietude
não se deviam ao fato de a sobremesa atrasar. Gina soube antes que eu
fizesse o pedido. Quando gaguejei como um adolescente nervoso, ela
apenas sorriu mais carinhosa e disse: “Eu amo você, e se você me ama ao
ponto de querer passar o resto da vida comigo... Então simplesmente quero
também. Hoje, amanhã e para sempre”. Um pedido de casamento nada
convencional porque, no fim das contas, Gina tateara o bolso do meu
casaco e tirara a aliança de lá. Mesmo fingindo não ser nada demais, as
lágrimas rolaram no rosto lindo da jovem quando deslizei o anel em seu
dedo.
E agora seria real.
Eu seria dela.
E ela seria minha.
Engoli em seco quando as portas a revelaram e, por segundos longos e
mágicos, o mundo ao redor pareceu silenciar.
Ela estava linda.
Céus... Tão perfeita.
E aquele vestido... Aquele vestido me fazia pensar em muitas coisas
criativas para nossa noite de núpcias. Me perguntei se seria um simples
zíper atrás, já que Gina odiava botões e roupas complicadas. Se fosse, eu o
abriria lentamente enquanto beijava aqueles ombros descobertos, aquela
tatuagem de ramos e borboleta sobre a pele em seu braço... Se a conhecia
bem, minha noiva investira mais na peça íntima que usava por baixo do que
no vestido de noiva em si.
Subi o olhar para o dela e encontrei meus sentimentos refletidos ali:
Desejo, orgulho, amor. Tanto amor.
Ah, e a promessa de anos e mais anos de provocações e brigas que
silenciaríamos com beijos.
Meus olhos arderam, e os lábios se esticaram quando ela sorriu primeiro,
como se conseguisse ler, mesmo do outro lado da igreja, o que se passava
em minha mente.
Minha esposa.
No fim daquela cerimônia eu teria o prazer e honra de sussurrar ao
ouvido de Gina que ela era minha esposa.
E foi só nela que consegui prestar atenção, cada detalhe dela, e não me
importei com o resto até que minha noiva estivesse a poucos metros de
mim, até que poucos segundos nos separassem. Ensaiamos aquela parte, e
eu segui o roteiro e desci os degraus para buscá-la.
Então fui obrigado a voltar para o mundo em que Giovanna e eu não
estávamos sozinhos, fui obrigado a encarar a pessoa que a guiava pelo
tapete vermelho.
E qualquer emoção e lágrimas que eu estivesse orgulhosamente prestes a
mostrar aos convidados na igreja secaram em meus olhos e em meu coração
quando meu pai me olhou.
Parei.

GINA
Gelo cobriu qualquer amor, carinho e desejo dos olhos do meu noivo
quando ele encarou o pai ao meu lado. Fúria genuína embalava Jeremmy
quando o rapaz viu meu braço entrelaçado ao de tio Matt. Apesar da mágoa
que me fitou quando os olhos do jovem se voltaram para os meus, não
hesitei, sequer uma vez.
Não nos casaríamos sem que ele enfrentasse aquilo, e eu simplesmente
não me importava se teria que colocá-los frente a frente para se abraçarem
diante de dezenas de pessoas.
Eu tinha uma lista generosa das qualidades que me encantavam em
Jeremmy; sabia dos defeitos dele também, todos que aprendera a amar nos
últimos anos, mas não aceitaria aquilo. Não quando Tina, e até tia Sabrina,
conseguiram perdoar Matt. No entanto, não era sobre perdoar o pai, mas
sobre nunca falar daquele assunto, jamais se abrir realmente para as coisas
que o machucavam tanto.
E aquilo o feria mais do que qualquer outra coisa.
Se lidar com meu futuro marido emburrado durante a festa era o preço a
pagar, tudo bem. Não ligava, mas Jeremmy abraçaria o pai naquele fim de
tarde. Era a tradição. Não sabia como os casamentos ali aconteciam, mas,
em todos os casamentos dos quais participara no Brasil, vira o pai da noiva
abraçar o noivo ao deixá-la diante do altar.
Tio Matt hesitou ao ver a raiva no rosto do filho, como se sentisse um
intruso no casamento, mas eu cutuquei suas costelas com o cotovelo, o
forçando a continuar.
Jeremmy se obrigou a cumprir com os passos que faltavam até o ponto
marcado pela cerimonialista.
Por alguns segundos, parados no tapete vermelho, pai e filhos se
encararam.
As pessoas que nos assistiam pareciam segurar o ar, ao lado do altar. Tina
estava de olhos arregalados, a testa franzida diante do que eu pedira ao pai
dela para fazer.
Sorri docemente para tio Matt e o abracei.
— Obrigada por tudo — falei antes de beijar a bochecha dele.
Caminhei para o lado de Jeremmy e falei baixo, para que apenas os dois
ouvissem.
— Não vou me casar com você até que fale com o seu pai. — Jemmy
voltou o rosto para mim, os olhos arregalados e aflitos. Dei de ombros. —
Não consegui pensar em outra coisa. — Inspirei pacientemente, o buquê de
lírios nas mãos. — Não estou com pressa.
O peito de Jeremmy subiu e desceu rapidamente, e as mãos se fecharam
com tanta força ao lado do corpo atlético que os nós dos dedos
embranqueceram.
Tio Matt trocou o peso dos pés, nervoso.
— Eu... — começou mesmo assim, rouco. — Sinto muito.
— Sente muito... — Riu Jemmy baixinho, com escárnio. Desprezo.
Os olhos do homem diante do meu noivo brilharam com lágrimas e
remorso. Os dois tinham quase a mesma altura. Pouco mais de um metro os
separava, e eu sabia que todos ali presentes seguravam o ar nos pulmões
para ouvir o que acontecia no coração da igreja. A conversa baixa e
murmurada dos dois homens era um eco pelo templo.
— Sim, Jeremmy. Eu sinto muito. — Um passo e outro. Por fim, Matt
Ward encarou aquele momento como uma oportunidade única de se
humilhar pela última vez diante do filho que se dedicara a odiá-lo nos
últimos anos. O perdão de Jeremmy era mais importante do que o orgulho.
— Perdi o valor para você, seu carinho e amor, mas ainda é meu filho. E
Gina é importante para mim também. Não vou parar de me desculpar com
você, mas... Quero que saiba que o amo, tenho orgulho do homem que se
tornou, e agora... tenho a honra de vê-lo se casar. — O volume da voz grave
diminuiu, lágrimas escorreram pelo rosto bronzeado. — Sei que odeia me
ver aqui. Que odeia, talvez, o fato de eu ainda respirar, mas meu sentimento
em relação a você não mudou. Tenho orgulho do homem que se tornou e
sei, tenho certeza: será o marido incrível para Gina que jamais fui para sua
mãe. Só... vim desejar a vocês dois felicidades. E dizer que te amo.
As narinas de Jeremmy dilataram de raiva, inspirando e expirando rápido
demais, como se quisesse quebrar algo no pai. Mas depois que os ombros
largos de tio Matt encolheram, desistindo, depois que o ex-bailarino se
virou para fazer o caminho de volta pelo tapete vermelho, talvez o trajeto de
volta para o apartamento solitário dele em Nova Iorque, toda aquela raiva
nos olhos de meu noivo se diluíram em lágrimas que se acumularam nos
olhos castanhos e lindos.
Jeremmy observou as costas do pai como se visse, pela primeira vez em
muito tempo, as memórias boas que vivera com ele, as lembranças boas que
aquele erro no estúdio de dança apagaram da mente do rapaz.
Toquei levemente meus dedos nos do meu noivo, um pedido
silencioso para que se abrisse. Tentasse. Não deixasse o pai ir embora.
A primeira lágrima caiu.
Jemmy fechou os olhos com força e xingou, se esquecendo de que
estávamos dentro de uma igreja.
E o aperto sufocante do meu coração se afrouxou quando aquele idiota
teimoso finalmente cedeu lugar ao filho que existia dentro dele e se
apressou até o pai.
Os convidados também pareceram voltar a respirar, torcendo por isso,
para que Jeremmy parasse o pai e abraçasse o homem no meio da igreja.
Permiti que um sorriso largo e salgado de lágrimas se abrisse em meu
rosto. Com uma olhada rápida para trás, onde as madrinhas estavam, notei o
choro silencioso no rosto de Tina, até mesmo no rosto lindo da prima da
minha amiga. Um olhar para o primeiro banco e vi tia Sabrina enxugar as
bochechas.
Não me importava se era um contratempo na cerimônia: Jeremmy
finalmente abraçara o pai depois de quase cinco anos sem dirigir qualquer
palavra ao homem. Não entendi o que meu noivo falou para o sujeito diante
dele naqueles segundos, quase um minuto, que seguiram. Porém, depois de
apontar para a mãe, para o lugar vazio ao lado dela, Jeremmy acompanhou
tio Matt pelo corredor, ambos com os olhos vermelhos de choro. Meu sogro
me abraçou uma última vez antes de seguir caminho para o lugar destinado
aos pais do noivo, e então senti a mão morna de Jemmy segurar a minha ao
me guiar pelos poucos degraus até o púlpito onde o pastor Willer nos
esperava, com um sorriso emocionado no rosto enrugado e velho.
Só quando paramos um de frente para o outro Jeremmy me encarou,
sério, enquanto o reverendo começava o discurso de “Familiares e amigos...
Estamos reunidos aqui hoje...”. Meu noivo me fitou com aqueles olhos
lindos e semicerrados e sussurrou, quase sem emitir som algum:
— Coisinha esperta e intrometida.
Sorri.
— De nada. — Pisquei um olho para ele.
Jeremmy apenas me encarou, como se dissesse que resolveria o que fazer
comigo quando estivéssemos sozinhos.
Meus lábios se esticaram mais, e eu não desviei o olhar do dele nem
mesmo quando começamos as declarações, as promessas, as trocas de
aliança.
Na alegria e na tristeza.
Na saúde e na doença.
Até que a morte nos separe.
— Pode beijar a noiva.
THEO

Estava distraído observando os noivos dançarem no centro do salão


quando duas mãos deslizaram por meu abdômen. Senti o perfume dela
antes de perceber o corpo de Tina se colar às minhas costas. Boa parte dos
convidados deixara a festa quando o relógio apontou para as dez da noite.
Músicas mais antigas e românticas começaram a ecoar pelo espaço, e os
casais restantes se dirigiram para a pista de dança, para a luz azul e roxa e
verde. Eu puxaria Valentina para aquele lugar se a tivesse visto quando a
primeira música para uma dança lenta começou, mas não a localizara nos
primeiros minutos. Então desistira de procurar, desejando o conforto de um
colchão macio e uma boa noite de sono. Eu estava exausto.
Acabei me escorando contra a parede nos fundos e, quando consegui
visualizar minha namorada do outro lado, dançando com nonna, que a fazia
gargalhar alto, me permiti observar de longe as duas pessoas que eu mais
amava.
Nonna mal parecia cansada: conversara com todas as pessoas da festa e
se gabara dos doces para qualquer um que elogiasse primeiro. Não a via
feliz daquele jeito há muito tempo, e a forma como tratava Gina... Era óbvio
que nonna via a bambina como uma filha. A adotara, no momento em que a
conhecera.
E Valentina... Fiquei observando de longe os cabelos dourados caírem por
suas costas, longos agora, como nos sonhos de verão que eu tivera anos
antes. O vestido preto se ajustava ao busto e cintura dela. As alças finas
deixavam os ombros livres de qualquer tecido, e o decote abria caminho
para a gargantilha e o colar que eu dera a ela na ponte em Verona.
Linda.
Vestida de noite, mas iluminada como uma manhã ensolarada.
Enquanto a via rir e dançar, meu coração se alegrava, respirava
tranquilamente, porque ela me causava aquilo.
Senti a ponta do nariz gelado da garota tocar a lateral do meu rosto, as
mãos da bailarina ainda em minha cintura, me abraçando por trás.
— Eu te devo uma dança — sussurrou contra meu ouvido, beijando
minha nuca em seguida.
Sorri, me virando para encará-la.
Os lábios dela se esticaram.
— Vem.
Valentina não me guiou para a pista onde os outros casais estavam, mas
para o lado de fora, onde a música era mais abafada e o céu escuro e
estrelado era visível. Quando alcançamos o pátio que levava para a piscina,
ela parou, colocando o corpo diante do meu, rodeando os braços em meu
pescoço. De salto, ela facilmente conseguia me abraçar daquela forma, o
rosto próximo o bastante do meu.
Contornei sua cintura com uma das mãos, a trazendo para mais perto. A
outra mão percorreu seu braço exposto apoiado em mim. A beijei ali, na
altura do cotovelo, e então subi para o braço e parei os lábios sobre o ombro
de Tina, deliciado com sua pele se arrepiando, comigo ou com o frio da
noite.
Convenientemente, como se soubessem lá dentro que estávamos
dançando do lado de fora, Dream A Little Dream Of Me[47] começou a ecoar
das caixas de som. Distante, mas alto o suficiente para embalar Valentina e
eu, nos oferecer uma melodia.
— Está tão calado hoje... — Tina murmurou, me estudando enquanto os
dedos brincavam com as mechas do meu cabelo. — No que está pensando?
Sorri, beijando seus lábios lentamente antes de apoiar a testa na sua,
aninhando-a nos braços com a esperança de dissipar um pouco frio em sua
pele.
— Descobri um novo sonho.
Minha namorada inclinou o rosto para trás para me observar com a testa
franzida, os olhos verdes curiosos.
— É mesmo?

“Stars shining bright above you


Night breezes seem to whisper I love You
Birds singing in the sycamore tree
Dream a little dream of me”

(Estrelas brilhando forte acima de você


Brisas da noite parecem sussurrar eu te amo
Pássaros cantando na figueira
Sonhe um pequeno sonho de mim)

— Huh. — Girei lentamente nossos corpos, uma dança lenta e


descomplicada. — Enquanto entrava com você na igreja hoje, com o braço
entrelaçado ao meu... — A fitei sério, contemplativo. — Me peguei
sonhando com o dia em que a veria entrar de branco na igreja, com o nosso
casamento.
O peito de Tina começou a subir e descer com mais velocidade. Ela não
disse nada. Apenas me observou e esperou.
Eu continuei.
— Me vi sonhando com o momento em que te carregaria no colo quando
subíssemos as escadas para o quarto da nossa casa nova. Uma casa com
lareira, uma cozinha espaçosa, um jardim pra nonna cuidar, um quintal
enorme e uma rede em algum lugar. — Um pequeno sorriso despontou
daqueles lábios lindos e macios. — Talvez um gatinho com um sininho que
o denunciasse quando passasse pela porta... — Minha voz embargou um
pouco, mas me obriguei a continuar falando, dançando... Sonhando. —
Enquanto te observava dançar, me peguei sonhando com uma pequena
garotinha na sala, na ponta dos pés, me mostrando os novos passos que
você ensinou a ela... — Os olhos de Tina se iluminaram com o que eu podia
jurar serem lágrimas. — Um irmão mais velho que implicasse com ela, mas
a protegesse de todo e qualquer perigo... Viajei pra um futuro em que você e
eu estaríamos em uma plateia, sentados e de mãos dadas, esperando as
cortinas se abrirem, esperando nossos filhos começarem a apresentação da
escola. Pensei nas lembranças boas que tenho dos meus pais e que, de todo
coração, queria vivê-las um dia. Com você.
Enxuguei a lágrima solitária que escorreu no rosto de Valentina e
continuei mais baixo, sentindo minhas próprias lágrimas encontrarem
caminho em minha pele.
— Me senti sozinho por tanto tempo que esqueci dessas coisas. Esqueci
como era ter barulho e gente na véspera de Natal. Como eu adorava noites
de jogos em família e as discussões idiotas sobre coisas banais... — Ri,
sentindo meu coração bater mais rápido. — E hoje, quando te vi dançando
com nonna, me senti tão feliz em ver o quanto vocês duas dão certo...
Fiquei tão feliz em abraçar Jeremmy e Gina com a familiaridade de irmãos.
Quando fiquei alguns minutos discutindo futebol com seu irmão, então
debati política com seu pai... Adoro quando sua mãe aparece no
apartamento pra levar aquelas vitaminas pra mim, amo ver ela e nonna
cozinhando... E você. Ah, Valentina... — Beijei sua testa, deixando ali o
rastro das minhas lágrimas. — Coloco um sorriso enorme no rosto quando
acordo de manhã e te vejo revirada na cama.
Ela riu, limpando o próprio choro.
Tina sempre caía no sono aninhada a mim, mas, de alguma forma,
acordava do outro lado do colchão, de cabeça para baixo, ou com o corpo
atravessado na cama: as pernas em cima de mim, cachos dourados por todos
os lados....
— Não via esse tipo de futuro antes, mas agora... — Sorri abertamente,
sincero. Feliz. — Agora sonho com o dia em que vou te chamar de esposa.
Com o dia em que descobriremos que seremos pais. Com uma família
maior e mais bagunçada... Adoro te ajudar com o estúdio, amo te ver
dançando e ensinando e fazer parte disso... Ter vocês... Você. Tem me
curado a cada dia.

“Sweet dreams, I’m dreamin’ (‘Til sunbeams find you)


Keep dreamin’ (Gotta keep dreaming)
Leave the worries behind you
But in your dreams whatever they be
You’ve gotta make me a promise
Promise to me
You’ll dream a little dream of me”

(Doces sonhos até os raios solares encontrá-lo


Continue sonhando, precisa continuar sonhando
Deixe as preocupações para trás
Mas em seus sonhos, o que quer que sejam,
Você precisa me prometer
Me prometa
Você vai sonhar um pequeno sonho de mim)

Valentina mordeu o lábio, tentando — e fracassando — conter o choro.


Ela apenas abraçou meu pescoço com força, chorando baixinho, o rosto
afundado em meu ombro.
Deslizei a mão em suas costas nuas, a parte que o vestido não cobria e os
cachos não tampavam. Acariciei sua pele em movimentos repetitivos e
lentos.
— Está me pedindo em casamento, é isso? — perguntou contra minha
camisa.
Sorri, me afastando o suficiente para encará-la.
— Talvez. Mas não assim. Não aqui. — Afastei um cacho de seu rosto,
limpei aquele rastro de choro e maquiagem. — Mas sim.
— Bom... — Fungou, mas aquele atrevimento estava ali. — Vou esperar
o pedido oficial, então. — Seus lábios se esticaram quando ela se inclinou
para me beijar. Tina sussurrou: — Mas já te adianto o sim.
Gargalhei baixinho sobre sua boca.
— Ótimo. Me dê algumas semanas pra conseguir a aliança — brinquei.
— Posso adiantar seu pagamento, se quiser...
— Gosta de ser minha chefe, não é? — Segurei firme em sua cintura e
nos girei no lugar, o corpo dela contra o meu quando lhe arranquei uma
risada alta e melodiosa.
— Adoro mandar em você. — Beijou minha bochecha. —
Principalmente de noite...
A coloquei no chão. Encarei aquele rosto, aqueles olhos que prometiam...
algumas coisas para quando retornássemos ao nosso apartamento.
— Vamos nos despedir do pessoal — falei apressado, e Tina gargalhou,
entrelaçando o braço ao meu quando começamos a caminhar de volta para o
salão.
Estávamos a dois metros da porta dupla de vidro quando minha namorada
disse:
— Quando você disse gato com sininho... Quis dizer cachorro, certo? —
Franziu o nariz em uma careta engraçada.
Ri.
— Claro, claro...
— Ótimo. — Sorriu. — Então estou pronta pra começar a viver esse
sonho com você. Sem muito planejamento... Podemos começar amanhã...
— Ou na próxima semana...
— Ou hoje mesmo... — Ela me lançou uma piscadela.
— Vai ser emocionante — prometi.
Ela apertou minha mão com carinho.
— Mal posso esperar.
TINA

Inspirei fundo, e então conferi o uniforme e o cabelo em meu reflexo


outra vez. Atrás de mim, através de toda a extensão da comprida parede de
espelhos, os raios de sol ultrapassavam as grandes janelas de vidro e
pintavam o piso de madeira com um alegre bom dia. Tudo estava em
ordem, e eu chegara ali duas horas antes, para garantir que tudo estivesse
limpo e perfeito para aquele dia.
Apesar de, exteriormente, demonstrar a calmaria profissional que a dona
do estúdio deveria ter, por dentro, meu coração batia acelerado no peito.
Mal conseguira pregar os olhos à noite, Theo levantara de madrugada
para preparar um chá de camomila para mim na esperança que me
aquietasse. Que parasse de revirar na cama. Então, deixou que eu apoiasse a
cabeça em seu colo e me fez um delicioso cafuné para que o efeito do chá
surtisse mais rapidamente. Porém, meu noivo acabara apagando primeiro,
com os dedos entrelaçados em minha nuca, o carinho em minha cabeça
interrompido.
Aquele não seria mais um dia de aula qualquer, mas uma oportunidade de
mostrar para aquela cidade que os alunos da academia Raio de Sol eram
especiais e talentosos.
— Aqui! — Gina passou pela porta do estúdio correndo com mais uma
bandeja na mão. Dessa vez com cookies frescos de aroma delicioso. —
Acabei de tirar do forno.
A ajudei a organizar os biscoitos no cesto da pequena cozinha
rapidamente enquanto ela comentava com um enorme sorriso.
— Acho que vi eles saindo do carro no fim da rua — falou alegre,
enfiando um dos biscoitos na boca. — Um deles tinha aquelas cases que
parecem de equipamentos de filmagem. Espero que seja, é o cara mais gato
que já vi na vida.
Franzi a testa para a aliança na mão dela.
Minha amiga riu.
— O quê? Casei e fiquei cega? — Bufou, abocanhando mais um pedaço
de cookie ao se afastar e observar suas obras de arte na pequena mesa. Ela
insistira em doar aquele café da manhã para recebermos bem os nossos
convidados. Me perguntei se Gina sabia que eram de uma revista local, e
não a embaixada do presidente. — Sabe que eu adoro meu marido, mas o
Jeremmy jamais faria aquele corte de cabelo e encheria os braços de
tatuagens.
— Não precisa enfatizar que achou o cara gato — retruquei, lançando um
rápido olhar a porta. Mas ninguém estava no corredor lá fora.
Gina ficou pensativa.
— Será que se, eu pedir com jeitinho, seu irmão faz uma tatuagem?
A ideia me fez rir um pouco.
— Se ele disser sim, então vou saber que o mundo realmente está no fim.
— E cortar o cabelo? — Suspirou. — Se Jeremmy cortasse o cabelo
daquele jeito ia ficar parecendo um ator de Hollywood... Talvez eu dê uma
de Dalila e faça eu mesma quando ele estiver dormindo.
Revirei os olhos, sentindo aquele nervosismo voltar com força total
quando notei, pelo olhar periférico, o movimento do outro lado, no
corredor.
Empurrei Gina.
— Não deixe a nonna sozinha lá embaixo — grunhi enquanto saíamos da
cozinha. — Não quero você aqui durante a entrevista. Não estamos
gravando comercial pra TV.
— Mas vão participar de um documentário para a Depois das Seis! —
disse num cochicho, os olhos acompanhando o jovem do outro lado do
vidro. — Eu não saio de casa sem acessar o site deles. E sempre escuto o
podcast a caminho daqui...
— Tchau, Giovanna.
— O quê? Deixa eu dizer oi pra ele pelo menos.
— Diz quando estiver lá fora, agora anda. — A empurrei mais uma vez.
— Antes que eu ligue agora mesmo para Jeremmy e conte que você está
secando o jornalista.
Minha amiga resmungou algo como “chata e sortuda”, saindo emburrada
do estúdio, mas sorrindo ao trombar com o jornalista da Depois das Seis no
corredor. Ela disse alguma coisa para ele, e o rapaz respondeu com o
mesmo humor, me levando a deduzir que não era nada tímido. E não
mesmo, não com aquela aparência de modelo de capa de revista.
Ele se despediu de Gina com um sorriso amigável, e eu notei minha
amiga erguer dois joinhas para mim antes de desaparecer. Então, me
apressei em abrir a porta para o rapaz que carregava os equipamentos para
aquela manhã.
Os olhos azuis cor de gelo encararam os meus.
O jornalista agradeceu educado enquanto deixava a case preta e grande
num canto, enfim se virando completamente para mim, com um largo
sorriso impossivelmente lindo. Não, eu não estava atraída por ele, mas,
como Gina alegara, não ficara cega só porque estava noiva.
O jovem-adulto diante de mim era lindo de partir o coração.
O cabelo loiro-palha curto me fez, internamente, concordar com
Giovanna e me perguntar se deveria sugerir a Theo aquele tipo de corte. As
laterais eram bem aparadas, as mechas lisas e repicadas mais cheias em
cima, de um jeito que o fazia parecer realmente um ator ou talvez um
jogador de futebol famoso. Tinha o corpo atlético de um, e era alto. A
jaqueta jeans e o coturno lhe davam aquele ar despreocupado, mas não
eram as roupas ou a beleza incomum que lhe pintavam aquele ar perigoso e
perturbadoramente atraente.
Eram as tatuagens.
Havia uma trilha de chamas que pintavam sua pele bronzeada como
nanquim preto em seu braço esquerdo. Os arabescos começavam nos dedos
e seguiam caminho até que um bico de um pássaro cruel despontava de seu
pescoço. Era como se ele quisesse, de alguma forma, cobrir todo aquele
caminho de pele não por estilo, mas para esconder o que havia por baixo.
Como chamas consumindo madeira e qualquer outra coisa em seu caminho.
Se não fosse o sorriso gentil, ele certamente teria me intimidado um
pouco.
O repórter não se incomodou em me estudar também, mas eu não tinha
nenhuma tatuagem misteriosa ou olhar intrigante.
Pigarreei, mais apreensiva do que estava antes.
— Desculpa. — Corei pateticamente. — Não esperava que você fosse
tão...
O jornalista franziu a testa divertido.
— Tão...? Lindo pra profissão?
Ri, relaxando apenas um pouco.
— Jovem. Conversamos ao telefone, e a voz... me fez pensar em alguém
mais velho. Não sei, você não parece um jornalista.
— Costumo ouvir isso com frequência... — Pensou um pouco. — Devo
ficar ofendido?
— Com certeza — assenti, o fazendo sorrir mais.
Ele estendeu a mão tatuada para mim, ignorando quando meus olhos
correram pelos desenhos outra vez, como se soubesse que era o principal
objeto de atenção sempre que se apresentava a alguém.
— Você é exatamente como imaginei — disse, bem-humorado. Apesar de
ser atraente e ter aquela voz que facilmente poderia provocar e flertar, seu
tom era nada além de amigável. Gostei disso. — É um prazer finalmente te
conhecer, Valentina Ward.
Devolvi o sorriso travesso, aceitando o aperto de mão.
— Igualmente, Adam Fayes.
Franzi a testa para o corredor atrás dele.
— Pensei que tivesse dito que Megan viria com você — comentei, um
pouco desapontada. Conversara com Megan em uma das ligações, fora ela
quem entrara em contato comigo em nome da revista na primeira vez. Era
espirituosa e muito divertida, uma pessoa que facilmente poderia chamar de
amiga. — Ela não pôde te acompanhar?
Adam revirou os olhos, se voltando para o equipamento no chão.
— Ela teve um contratempo... — Uma pausa. Um olhar divertido para
mim. — No primeiro andar.
— Ah! — Dei risada. — Minha amiga é a dona. Ela preparou um café da
manhã para vocês, Megan não precisava parar lá embaixo.
Adam riu, começando a montar o suporte para a câmera.
— Aquela garota é um poço sem fundo — brincou. — Meg vai se
esbaldar e, quando subir, vai olhar pra mesa de café como se estivesse em
um jejum de vinte e quatro horas.
Sim, eu realmente gostava dela.
— Vamos esperar ela, então — falei, divertida.
— Quando os alunos chegam? — Adam quis saber, distraído com o que
fazia.
— Às nove. — Conferi o relógio em meu pulso. — Temos tempo. Vocês
podem se preparar com calma.
— Certo... — O jovem ficou de pé, enfim ajeitando a câmera preta
profissional sobre o suporte prateado. — Vamos fazer algumas perguntas
pra você, se não se incomodar. Queríamos saber um pouco sobre a sua
trajetória e como a ideia de ensinar balé a idosos surgiu. Então vamos
conversar um pouco com seus alunos, ouvir a história de cada um. Acha
que podem dançar algo pra revista?
Meu sorriso foi inconsciente. Sempre acontecia quando pensava neles
dançando e se divertindo. Nonna até obrigara Tina a maquiá-la um pouco
naquela manhã.
— Eles ensaiaram a semana toda apenas para se exibirem pra vocês —
respondi, com o orgulho de uma mãe. — Até duas ou três músicas se vocês
pedirem.
Adam também sorriu, e eu percebi no rosto bonito o quanto ele parecia
gostar do que fazia, que estar ali e realizar aquele tipo de matéria era o que
ele amava fazer.
Antes que o rapaz dissesse mais alguma coisa, escutamos o eco de passos
corridos pelas escadas. Então ouvimos uma derrapada, e logo uma cabeleira
curta e platinada surgiu no corredor.
Megan correu com um pedaço de “Doce Sonho” na boca, o bolinho com
o creme especial já na metade. Os cabelos eram pouca coisa mais
compridos do que os de Adam, e os olhos eram coloridos, cada um de uma
cor. Visualizei a jovem ao lado do jornalista; os dois eram a verdadeira
representação da beleza injusta e acumulada.
Ela abriu a porta, ofegante. O bolinho agora em sua mão.
Megan me estudou rapidamente. Um largo sorriso brincou nos lábios
bem desenhados e volumosos dela.
— Então... — Se aproximou, ignorando as formalidades ao se colocar do
meu lado e passar um braço por meu ombro. — Vamos começar?
Jason Wang (Jay) e Kade — Sorry, I’m An Anti-Romantic (Foi publicado
no Wattpad em 2021, mas retirado para revisão. Será publicado em 2023).

Helena e Sol (Helen) — Oppa, Foi Mal (Publicado em 2022 na Amazon


Kindle, disponível no Kindle Unlimited e em breve publicado na versão
física).

Adam Fayes — Uma Troca Para o Amor (publicado em 2021, disponível


no Kindle Unlimited e em breve republicado em versão física).

Megan — Terceira Vez Destino, Quarta Vez Amor (será publicado em


2023).
Valentina retornará ao Nicahverso.
Valentina e Theo surgiram de repente em uma tarde qualquer e, naquela
época, quatro anos atrás, eu jamais sonhara realmente com uma publicação
como esta. Jamais sonhara realmente em publicar um livro de verdade. O
que era um pequeno conto se tornou uma história completa, com mais
personagens e sonhos. E agora aqui estamos, você e eu, com essa
preciosidade em mãos.
O meu mais adocicado e meloso muito obrigado às minhas gêmeas: Ana
Wang e Anna Roux (sim, vocês leram corretamente). Essas duas deixaram
de ser apenas leitoras há muito tempo e se tornaram uma parte preciosa do
meu universo no último ano. Minhas companheiras de surtos literários.
Minhas noras de personagens fictícios que entram facilmente nas ondas
malucas de minhas ideias. Minhas amigas de qualquer hora. Obrigada por
me colocarem de pé sempre que tombo, obrigada pelos áudios estranhos,
risadas escandalosas e o meu querido “@park.bookss”. Os vídeos e edits
que vocês fazem para o fã-clube sempre melhoram meu dia e me dão forças
para continuar escrevendo. Vocês são tudo. Safafas maravilhosas.
Às minhas queridas e pacientes betas (Ana L. Farias, Ana Wang, Anna
Roux, Allana, Lyn Wong, Liz e Karla Esperando o Cara Certo — o
Ryu/Guinho tá vindo amiga), saibam que vocês são as melhores betas que
uma escritora poderia ter. Jamais terminaria este livro sem os textões e
áudios de vocês. Cada observação me ajudou a finalizar essa história com o
coração mais leve. Obrigada. Espero que o capítulo do casamento tenha
superado as expectativas (foi uma exigência de todas elas).
À minha maravilhosa e perfeita revisora Patrini. Encontrar você foi uma
sorte do destino, espero de coração que você continue revisando com
carinho e profissionalismo todas as histórias que já tenho prontas e que
ainda vão surgir. Sério. Você é demais. Obrigada pela paciência e pelos
comentários que tornam esse processo (normalmente tão arrastado e
cansativo) divertido e leve.
“Tia Sabrina”, minha mãe, a mulher do sorriso mais encantador de
todo o mundo. A senhora é sempre a primeira pessoa a me incentivar a
sonhar e sempre a última a me dizer para desistir. Obrigada por segurar
minha mão quando ninguém mais o faz, obrigada por iluminar meus dias
como o sol faz pela manhã. Espero que encontre seu sonho e o realize.
Espero que viva um dia de cada vez e permita que coisas lindas lhe
aconteçam durante os capítulos de sua história. Te amo. Hoje. Amanhã. E
sempre.
E por último, porém, não menos importante: aos sonhadores. Você e
eu. Algumas pedras nos fazem tropeçar no caminho de nossa jornada,
algumas tempestades nos molham e nos atrasam, alguns desvios de rotas
nos levam a lugares que não desejaríamos estar. Porém, meu maior desejo é
que nenhum imprevisto doloroso nos impeça de viver uma vida de sonhos.
Por favor, não desistam de vocês. Por favor, não desistam de sonhar. Um
dia, se não desistirem, vão olhar para trás e perceber, com um grande e
lindo sorriso no rosto, que todo esforço valeu a pena. Vai parecer difícil de
vez em quando: o passado pode querer bater a porta, coisas ruins podem
acontecer inesperadamente, mas respire fundo e tente se libertar da dor. A
fonte mágica capaz de realizar nossos sonhos está em nossos corações.
Feche os olhos por um segundo...
Se liberte das coisas ruins que te prendem...
Solte o ar devagar.
E recomece.
Com dedicação, perseverança e fé, seu sonho irá se realizar.
Apenas acredite.
Espero que Sonho de um dia de verão tenha aquecido seu coração
de uma maneira especial. Juro juradinho, de dedo mindinho, que nossa
próxima aventura será acompanhada de um charmoso jornalista e uma
adorável estudante de arte. SDV precisava ser lançado antes para que vocês
alegremente reconheçam a presença de Tina, Gina e nossa amada nonna
quando o próximo livro chegar. Vocês sabem, adoro um crossover.
Inclusive, leitores que me acompanharam em SIAA (Sorry, I’m An
Anti-Romantic) no Wattpad: espero que tenham gostado da pequena e nada
sutil visita que o nosso querido chefe Wang fez em SDV. Eu, sinceramente,
adorei a intrusão. Espero conseguir trazer o nosso favoritado de volta.
É isso, chingus.
Vejo vocês em breve.
Beijos no coração e abraços quentinhos.
Sua e para sempre,
Nicah.
N. S. Park, mais conhecida por seus leitores como Nicole da Silva Park, é
amante de bons romances e livros de fantasia, dorameira, ilustradora e fã de
desenhos animados. Passa a maior parte do tempo lendo, escrevendo e
desenhando sobre os livros que lê e escreve.
É mineira, mas pode ser encontrada em Terrasen, Velaris, século
XIX, Nárnia ou em outros variados mundos fantásticos nas horas vagas.
Tem como inspirações os romances quentinhos de Carina Rissi, guerras e
problemáticas dos universos de Sarah J. Mass e lágrimas e dor dos dramas
sul-coreanos.
Tem vinte anos e mais algumas primaveras que decidiu não contar,
trabalha duro ilustrando para pagar suas faturas e os sushis de cada mês,
mas escreve para aliviar as vozes bagunçadas de sua cabeça. Seu sonho é
fazer — seja desenhando ou escrevendo — o maior número de pessoas
possíveis sorrir, amar e acreditar que começos, meios e finais felizes
existem.

Instagram da autora: @escreve.park


Instagram da Ilustradora: @_bluebble

LEIA TAMBÉM:
Uma Troca Para o Amor (Disponível no Kindle Unlimited)
Oppa, Foi Mal (Disponível no Kindle Unlimited)

[1]
Cheguei!
[2]
Como está esta manhã?
[3]
Biscoito com amêndoas secas. São geralmente consumidos pelos italianos no café da manhã.
[4]
Obrigada!
[5]
Oi/Tchau.
[6]
Entendeu?
[7]
Olá, Sr. Donalli. Como está a família?
[8]
Está bem, rapaz. Quem é a bela jovem?
[9]
Namorada?
[10]
Não, acabei de conhecê-la.
[11]
Certo. Sr. Donalli, pode me dar um daqueles, por favor?
[12]
Tchau, Donalli.
[13]
Tchau, Abertinalli. Menina.
[14]
Este é o Coliseu Romano.
[15]
Pois bem.
[16]
Isso é verdade.
[17]
(I’ve Had) The Time Of My Life — Bill Medley
[18]
Be My Baby — The Ronettes
[19]
Maldita Itália ou Itália de merda!
[20]
Aí está você...
[21]
Não estou entendendo...
[22]
Com certeza! ou Sem dúvidas!
[23]
Sorte; benção.
[24]
Menina; garota.
[25]
Meu filho.
[26]
Boa sorte!
[27]
Não se preocupe.
[28]
Tudo bem. Vamos fazer isso.
[29]
Conhecido aqui no Brasil como nhoque. Um prato feito à base de massa de batata com molho de
tomate.
[30]
Por que não? (A pronúncia é bem parecida. Per-qué nô?)
[31]
De nada.
[32]
Obrigada.
[33]
Charlatão.
[34]
Mentirosa.
[35]
Vestimenta tradicional da China.
[36]
Mentirosa.
[37]
Ballet de repertório: Tipo de balé que conta uma história e é dividido em atos.
[38]
Não estou entendendo.
[39]
Meu neto.
[40]
O que está acontecendo?
[41]
Absoluta .
[42]
Vamos!
[43]
Obrigada, obrigada.
[44]
De nada.
[45]
Navillera.
[46]
O que acha de aprender a dançar?
[47]
Versão de Louis Armstrong e Ella Fitzgerald.

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