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Meio ambiente, espaço e sociedade


O trabalho do arquiteto e urbanista nas condições históricas atuais
Manoel Lemes da Silva Neto

O objetivo é argumentar que o desenvolvimento e aperfeiçoamento da noção de meio


ambiente no ensino e na pesquisa e, especialmente, no exercício profissional da
arquitetura e do urbanismo, estão associados ao próprio papel social desempenhado
pelos que atuam nessas áreas de conhecimento. Tal como as técnicas e os processos
construtivos, o meio ambiente é elemento constitutivo do projeto e,
consequentemente, o equacionamento das questões ambientais permanece intrínseco
à ação projetual. Ainda que as variáveis interferentes na produção do edifício
e da cidade preencham uma lista sempre inconclusa, de certa maneira, se a prática
correspondesse à cultura arquitetônico-urbanística, grande parte dos problemas
ambientais, em especial os relacionados à produção de gigantescos maciços
urbanizados, simplesmente inexistiria. É muito provável que, se nos
restringíssemos à produção da arquitetura, ao invés de perseguir as relações
entre ela e as outras coisas, como adverte Venturi (1), a noção de meio ambiente,
assim como as problemáticas que a inter-relacionam com a arquitetura e o
urbanismo estariam satisfatoriamente correspondidas por estas disciplinas.
Apenas isso muito contribuiria para abrandar os problemas ambientais. Assim, e
limitada ao levantamento dessa hipótese amoldada para possibilitar a discussão
teórica sobre as relações homem-natureza, a intenção do presente artigo é
contribuir no esclarecimento das questões ambientais contemporâneas associadas
ao pensamento arquitetônico-urbanístico e à parcela de responsabilidade social
que lhe corresponde. Em face de dinâmicas naturais assustadoras a que atualmente
assistimos, provocadas ou não pela ação humana, as grandes metrópoles,
especialmente as que abrigam enormes contingentes de expropriados, é uma pálida
lembrança dos desafios que sondam a sobrevivência da humanidade. Daí a
oportunidade de trazer uma palavra a mais sobre um problema coletivamente
vivenciado e que, inédito, parece acometer de modo efetivo a todo o ecúmeno. O
papel do arquiteto e urbanista nas condições históricas atuais vai nessa direção.

Primeiramente, neste artigo, as relações ambiente-espaço-sociedade são


introduzidas como indissociáveis na teoria e na prática. Elas traduzem a
preocupação de buscar a formulação de um dos mais importantes desafios atualmente
colocados em jogo na formação e na atuação profissional de arquitetos e
urbanistas.

Também há necessidade de interpretar coerentemente a complexidade espacial dos


dias de hoje. Do ponto de vista analítico, o presente período histórico impõe
um conjunto de circunstâncias que alteram qualitativa e objetivamente o modo
como vemos e interpretamos o mundo (2). Para compreendê-las, tais circunstâncias
reivindicam do analista o desenvolvimento de abordagens complexas e que se tecem
no domínio das dimensões espaciais e das escalas territoriais. O segundo
argumento do artigo pretende apresentar um esboço de questões como essas por
meio de um panorama da urbanização brasileira e, em particular, no caso do estado
de São Paulo.

Por conclusão, entende-se que o projeto tenha que corresponder à variedade de


fatores que interferem na produção do espaço numa intensidade antes desconhecida.
Tradicionalmente condicionados pelo sítio e pela natureza ao derredor, o ensino
e a pesquisa do projeto arquitetônico-urbanístico sempre buscaram interconectar-
se com as múltiplas escalas do espaço construído. No entanto, o “meio técnico-
científico-informacional” (3) empresta às condições históricas atuais outra
espécie de aceleração, indo muito além da mera aceleração técnica da velocidade
dos deslocamentos das coisas e das pessoas. Tendendo a cobri-lo interna e
superficialmente, a aceleração contemporânea também invade os fluxos de
informação e multiplicam exponencialmente a rapidez com que evoluem,
transformam-se e avolumam-se os objetos técnicos no planeta, como também as
imagens das coisas além da condição material das mesmas. Sob tais condicionantes,
as sínteses recobertas no projeto extrapolam a forma, conduzindo-o, talvez, ao
campo da política para daí então ser capaz de repropor-se como espaço construído
e como intencionalidade.

Desafios na formação e na atuação profissional


A noção de meio ambiente, ou melhor, a hipótese de como o arquiteto e urbanista
pode colaborar na definição do conceito, é desenvolvida pela arquitetura e
urbanismo na medida em que a prática socialmente necessária que se espera dessa
área de conhecimento (4) é efetivamente realizada. Isto é, está desenvolvida
quando se cumpre satisfatoriamente o papel de agente que, entre outros,
responsabiliza-se pelas interações ambiente-espaço-sociedade.

No extremo, o arquiteto e o urbanista, assim como todos os que detêm certificados


de exercício profissional para construir e edificar espaços – e que lhes são
conferidos pelo Estado e pela sociedade – podem ser responsabilizados pelos
estragos provocados ao ambiente devido à selvageria e impunidade com que se
constroem edifícios e cidades, por exemplo, no Brasil. Não se trata de resgatar
a moral do demiurgo, mas tão somente lembrar que há uma função social que, se
espera, seja moralmente aceitável por todos. Profissionais, acadêmicos e
“usuários”.

A crise ambiental não teria o vulto que tem se interferíssemos no processo de


planejamento urbano e regional, na medida em que fizéssemos a arquitetura e
urbanismo, mas do ponto de vista da cultura arquitetônica. Tanto no entendimento
do projeto como respostas às interações do edifício com o ambiente, seja natural,
seja construído, quanto no entendimento das relações que se estabelecem e se
sintetizam no direito ao lugar, ao “morar”, que, por sua vez, está radicalmente
relacionada à noção de usufruir a natureza e as belezas do espírito (5).

Para lembrar que tais lições vêm de longa data, Vitruvius e Alberti insistiam
nessas interações necessárias. No século XX, o primeiro ponto da polêmica Carta
de Atenas fala exatamente da correta justaposição da cidade com a região,
tratando-a, aí, como equivalente à noção geográfica de região natural.

Os exemplos de harmonização entre o espaço construído e a natureza são


incontáveis, assim como o são aqueles que professam e perseguem ardorosamente
tal harmonia.

“Falar de sustentabilidade da arquitetura (...) significa entender a natureza,


respeitar a fauna e a flora. Situar corretamente edifícios e construções,
desfrutar a luz e o vento” (6). Mas a “arquitetura supérflua (...) entendida
como elaboração de projetos que sejam apenas parte do processo produtivo”,
prepondera em face da “arquitetura democrática (...) que lidaria com o essencial,
com o necessário e não com a superficialidade” (7).

Nos programas acadêmicos, assim como na prática profissional do arquiteto e


urbanista, a noção de meio ambiente é forjada no quotidiano, quando se concretiza
o “fazer” arquitetura e urbanismo, quando o ofício confunde-se com a função
social de construir o espaço do homem em todas as suas manifestações: das
afetivas e familiares, às culturais e econômicas. E mais. Em face da crise
ambiental contemporânea e do discurso da sustentabilidade, o papel do arquiteto
e urbanista dialoga, necessariamente, com uma espécie de crise civilizatória,
ou de transição a outros paradigmas em que a cidadania completa-se com a
realização de toda potencialidade humana.

Para ser “indivíduo de fato” é preciso, antes, ser cidadão (8).


Particularmente vinculada à produção e construção do espaço humano, é mais do
que desejável que a área da arquitetura e urbanismo envolva duramente a prática
concreta dos direitos e da política. Aliás, tal envolvimento não é novidade. A
diferença está na intensidade do envolvimento que se exige no período histórico
atual, que é redobrado. Como instituições ou conjunto de saberes, não é de hoje
que as escolas de arquitetura e urbanismo enfrentam questões ambientais
sincronizadas a outros tantos fenômenos. E o faz em sua particularidade
disciplinar: na síntese projetual praticada no espaço de ações indissociáveis a
objetos (9), nas formas.

A questão é que a fruição da ideia de meio ambiente tem que lidar com um projeto
de complexidades espaciais inéditas. Com uns parênteses. Complexidade não é
complicação (10). E uma “arquitetura da complexidade", "compromisso para com o
todo difícil”, requer a simplicidade e não a simplificação (11).

O papel do arquiteto e urbanista nas intermediações de categorias tais como


ambiente, espaço e sociedade – nas relações homem-natureza/meio ambiente-
sociedade – dá-se em meio a um cenário de enfrentamento de duplo desafio, de
aspectos interagentes, causa-efeito inseparável refletida em outra
indissociabilidade, a forma-conteúdo: compreender para agir; equacionar para
projetar; apreender a dinâmica da produção e organização do espaço na
contemporaneidade para, então, contribuir na produção material e imaterial do
espaço humano.

Como ponto de partida, uma reflexão vital para a humanidade.

Se a produção do espaço a serviço dos projetos hegemônicos da globalização é


tendência inegável, o trabalho parece descomunal porque o statu quo satisfaz
unicamente os interesses de parcela insignificante das pessoas. Objetos,
edifícios, cidades e regiões surgem destinados primordialmente ao funcionamento
da economia, a corresponder positivamente às expectativas das forças de mercado.
Mas a grandiosidade desse império não representa tudo, ao contrário do projeto
compromissado com o “todo difícil”. Dialeticamente ao mundo de alguns, há outro
lado da moeda também presentificado porque a globalização, como perversidade,
assim como está, pode conter as pré-condições da mudança (12) vindas da maioria.
A sociedade de consumo, especialmente as gigantescas massas demográficas
apartadas do convívio com o mercado global, vem despertando um patamar superior
de realização de direitos, ao invés de privilégios, e de cidadãos, não mais de
meros consumidores (13).

Daí a dificuldade da ação. O poder do número, tanto de coisas para alguns, como
de pessoas sem coisas, é assombroso e baralha o discernimento sobre qual é o
papel do arquiteto e urbanista nas condições históricas atuais. Mas só esse
esforço de buscar compreender processos e dinâmicas socioespaciais
contemporâneas abre oportunidades de construir um espaço para o homem, uma
“ecologia abrangente” capaz de alcançar os “problemas em suas raízes”.

Para Milton Santos, o problema é o modelo produtivo que, “por definição, é


desrespeitador dos valores desde os dons da natureza até a vida dos homens”
(14).

Circunstâncias atuais da complexidade espacial


Entre outros fatores, a geração de resíduos, a poluição e a degradação dos
recursos naturais explicam a problemática ambiental, mas nenhum é mais expressivo
que a variável demográfica. É a variável-chave do período industrial. As demais
são dependentes de um encadeamento de fenômenos que explicam a constituição do
modo de produção capitalista no século XIX, as fábricas, a cidade industrial e,
consequentemente, o comportamento demográfico urbano.

O ritmo da urbanização cresceu vertiginosamente quando se amplia a oferta de


alimentos, em especial grãos, decorrente do aumento das áreas irrigadas na Europa
ocidental. Isso foi uma proeza iniciada com a busca de produção de energia
autônoma em relação à força animal e à dos braços humanos. Primeiramente, a
energia hidráulica proporcionada pela roda d’água, invenção herdada da
engenharia romana (15), seguida pela máquina atmosférica de Newcomen (1712) e,
finalmente, pela máquina a vapor de James Watt (1784), que inaugurou também as
cidades industriais (16). “A máquina a vapor é a mãe das cidades industriais”
(17).

Os dois últimos séculos assistiram ao surgimento de uma conformação urbana, a


cidade industrial, notoriamente “devoradora de espaços” (18). Sem precedentes,
assistiu-se ao recrudescimento da relação homem/natureza que culmina na crise
ambiental contemporânea.

No entanto, a relação homem/natureza nunca foi pacífica. Preservar, conservar,


destruir ou sustentar são ações que traduzem, originariamente e até hoje, que
as ações antrópicas caracterizam-se por estabelecer relações potencialmente
destruidoras do meio ambiente. Afinal, destruição-construção expressa associação
inseparável que existe apenas se definida dialeticamente, assim como forma-
conteúdo.

De certo modo, a destruição provocada pelo alastramento civilizacional e, em


especial, nas sociedades urbanas, não passou despercebida pelos agentes
hegemônicos. Houve quem dissesse que o drama ambiental decorreria do
subdesenvolvimento. Nos anos 1960-1970, os defensores da tese do crescimento
econômico zero e o Clube de Roma apregoavam limites que interferiam politicamente
na autonomia e nos interesses dos países do Terceiro Mundo (19).
Mais remotamente, e no caso brasileiro, as chamadas Ordenações Filipinas trataram
da regulamentação normativa dos interesses da coroa portuguesa no país desde o
início do século XVII até praticamente a proclamação da república, em 1889 (20).
Em Portugal ou nas colônias, esse código legal disciplinava de tudo. Da
administração das cidades ao meio ambiente. O Título LXXV do Livro 5º previa
pena gravíssima a quem cortasse árvores ou frutos. Aqueles que infringissem a
norma com dano considerado mínimo estavam sujeitos ao açoite e ao degredo para
a África. O Brasil estaria a salvo da devastação que o acomete se as
regulamentações que já existiam desde o século XVI fossem cumpridas.
Portanto, não é de hoje que as preocupações ambientais estão colocadas em
discussão no âmbito político. As primeiras manifestações relacionadas à temática
surgem vinculadas com as sociedades protetoras dos animais, no século XIX (21).
Não por acaso, no mesmo momento, surgiram as “cidades industriais” e constituiu-
se o corpus disciplinar do urbanismo. E, desde então, o pensamento
arquitetônico-urbanístico vem perseguindo o equilíbrio sociedade-ambiente. Isso
para falar da história recente porque, de alguma forma, a adequação do edifício
ao meio estava contemplada, no mínimo, desde o século XV, como um dos seis
princípios da edificação propostos por Alberti: a região (regio).
Nesse campo, a sintonia entre uma coisa e outra é por excelência questão de
método. Trata-se de um princípio instaurador que, praticado, exaure o problema
que torna a cidade e o urbanismo tão estranhos à natureza. Daí a razão pela qual
a hipótese aqui defendida converge na direção da prática política da
disciplina pari passu à interpretação do fenômeno territorial.
O poder do número
A história do presente do urbanismo e da arquitetura, tal como a conhecemos e
praticamos, não vai além das cidades constituídas pelo processo de urbanização
decorrente da industrialização. São Paulo é exemplo vivo dos desafios que
atualmente devem ser enfrentados. Desconsiderando-se a sua região metropolitana
e as que lhe circundam, a São Paulo, com mais de 11 milhões de habitantes em
2010, foi, inteira, uma gigantesca fábrica que precisa ser desmontada e social
e ambientalmente harmonizada. Na época em que se estruturou como cidade
industrial – por volta dos anos 1920-1930 –, a área urbanizada já ultrapassava
o rio Tietê.
A Figura 1 demarca a expansão urbana a partir de 1881. O curso d´água ao norte
é o rio Tiete e, transversalmente, a oeste, o rio Pinheiros. Próximo ao Tietê,
às margens do Tamanduateí, a área em preto indica o centro histórico de São
Paulo. Em 1914, à esquerda e abaixo, surge a represa Guarapiranga; na de 1930,
a represa Billings.

Expansão da mancha urbana do município de São Paulo [GROSTEIN, M. D. A cidade


clandestina: os ritos e os mitos. Tese de Doutoramento. Faculdade]

Atualmente, a área urbanizada é praticamente contínua nos quatro eixos do entorno


de São Paulo, compreende um raio entre 100 e 120 quilômetros, podendo abranger
152 municípios que conformam a Macrometrópole paulista (Figura 1) (22).

Setores censitários urbanos da Macrometrópole paulista [Base cartográfica:


malha digital de setores censitários. Censo 2010, IBGE. Elaboração: Man]

Segundo dados da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP),


em 2008, o sistema Billings/Guarapiranga foi responsável por 20,3% do
abastecimento de água da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). O restante
veio de cinco outros reservatórios. O sistema Cantareira é responsável por 47%
da produção hídrica na RMSP; esse sistema capta água da bacia dos rios
Piracicaba, Capivari e Jundiaí que, ao norte, banha a Região Metropolitana de
Campinas.

O detalhe é que, em 1940, o grau de urbanização do município de São Paulo já era


elevadíssimo: 95%. Para efeito comparativo, o grau de urbanização no Brasil na
mesma década era de 31% e o da região Centro-oeste – onde está o Pantanal, bioma
extremamente sensível porque abriga a maior superfície inundável do mundo – era
de 23%. Em 2010, o grau de urbanização do município de São Paulo situava-se em
torno de 99%, mas 84% no Brasil e 89% no Centro-oeste. Face à extensão
territorial, essa região é pouco povoada. Representava, em 2010, 7,37% da
população total do país, e 7,761% da população urbana. Mas o que se está sendo
apontando não é o volume demográfico, mas o ritmo da urbanização.

Em termos demográficos, essas são as tendências mais visíveis da urbanização no


Brasil: 1) que as regiões densamente urbanizadas continuem assim, intensificando
a formação de imensas continuidades territoriais com cerca de 100 km de extensão;
e, outra; 2) que o ritmo de urbanização das menos povoadas mantenha-se em
crescimento relativamente mais acelerado. Veja-se o gráfico do grau de
urbanização (Figura 3).

Grau de urbanização – 1940/2010 (%) [Base cartográfica: malha digital de


setores censitários. Censo 2010, IBGE. Elaboração: Man]

Quanto à área urbanizada, não há informações precisas, mas é notável que em


muitos cantos do país os equipamentos, serviços e infraestruturas urbano-
regionais-metropolitanas não acompanham a demanda gerada pela expressão
demográfica da urbanização.

O drama é maior nos municípios com dinâmica econômica inexpressiva por diversos
fatores – entre eles, por estarem sob o efeito de legislação ambiental que lhes
impõem sérias restrições quanto à localização de atividades econômicas – mas que
estão localizados próximos aos grandes centros urbanos; ou, ainda, aos municípios
com monoculturas intensivas e agroindústrias que exigem a mão-de-obra sazonal.
Na maior parte das vezes o atendimento social em localidades com essas
características é extremamente precário. O ritmo de crescimento demográfico é
relativamente muito mais acelerado do que a contrapartida de recursos financeiros
necessários para fazer frente aos custos da urbanização. E a situação tende ao
agravamento porque o processo é cíclico. Entre outros fatores, decorre do mercado
imobiliário que, atribuindo baixo valor ao solo urbano, torna-o acessível às
populações de baixa renda. O destino dessas localidades é fatalmente o desempenho
da função de “cidades-dormitório”.
Em resumo, a lógica do processo é simples. Municípios que se encontram nessas
circunstâncias não conseguem gerar receitas em volume suficiente para exercerem
efetivamente a autonomia que lhes são próprias no pacto federativo. Por
consequência, tornam-se extremamente dependentes da conjuntura política
planificadora dos repasses orçamentários, e que, em regime de exceções, ignora
as desvantagens comparativas como merecedoras de alguma forma de compensação
econômico-financeira contínua. Nessa direção, a oferta de equipamentos, serviços
e infraestruturas não acompanha a demanda crescente e a perspectiva da maioria
é de colapso crônico.
Também há que se considerar que a corrupção e o desvio dos recursos públicos
estão entre os motivos que alimentam os desequilíbrios entre oferta e demanda
por atendimento social e desenvolvimento urbano.
Em 2010, o país tinha 5.565 municípios, dos quais 1.212 (21% do total) com menos
de 5 mil habitantes. Esses municípios abrigavam 2,2% da população brasileira.
Já os 36 municípios com mais de 500 mil habitantes, 29,3% (23). No estado de São
Paulo estão o maior e o menor municípios do país: São Paulo, com 11,2 milhões,
e Borá, com 805 habitantes. Esses desequilíbrios, entre o grande e o pequeno, o
máximo e o mínimo, expressam-se igualmente no rendimento familiar.

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A renda per capita dos 10%
mais ricos da população brasileira é 32 vezes maior que a dos 40% mais pobres
(24). Neste cenário, na região sudeste – que abriga as duas maiores regiões
metropolitanas do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro – em 60 anos (1950-2010),
o grau de urbanização cresceu 195% e a população urbana, 697%. No mesmo período,
o grau de urbanização da região Centro-oeste cresceu 342%. Já a população urbana,
3.143 (25).

Então, do ponto de vista instrumental, como é possível relacionar meio ambiente


e espaço construído? Qual o peso, por exemplo, da variável clima em face da
variável demográfica e da econômica? O que desencadeará as consequências mais
severas no prazo de sobrevivência das gerações do presente histórico? Uma, outra,
ou o efeito combinado de todas?
Não é o caso requentar polêmicas anteriores à proposição do triple bottom line,
como a do debate ambientalista dos anos 1960 em torno da poluição industrial e
do crescimento populacional (26), mas uma coisa é certa. Não há como refletir
propositivamente a sustentabilidade ambiental e, em especial, intervir no
equilíbrio dinâmico da ecologia urbana, relegando ao segundo plano um processo
determinante e que perdura há cinco mil anos como o é a urbanização.
A busca por uma interpretação das dimensões espaciais e das escalas territoriais
que explique “as coisas que estão diante de nós” (27) é pré-condição do
delineamento aceitável de relações teóricas e práticas entre espaço construído
e ambiente; desde que persistente, a busca de coerência para com a totalidade
projetual condiciona o projeto em quaisquer que sejam o caráter e a amplitude
das proposições arquitetônico-urbanísticas. Do período clássico até hoje.
Lançada, a flecha do tempo projeta o futuro das aglomerações humanas em uma
direção que, grosso modo, pode ser traduzida por intermédio do grau de
urbanização. Isto é, pela relação percentual dos habitantes urbanos em relação
à população total. Antes do início da segunda metade do período neolítico, há
quatro e meio ou cinco mil anos, o grau de urbanização era rigorosamente igual
a zero. As cidades históricas, sucessoras das aldeias do neolítico, surgem a
esse tempo e, desde então, a urbanização da sociedade tem evoluído a ponto de
expressar-se atualmente com graus praticamente iguais a 100% em muitas cidades.
Na análise de macrotendências das regiões brasileiras, as regiões norte e centro-
oeste caracterizam-se por apresentarem, grosso modo, biomas ainda preservados:
a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado. Eles correspondem, respectivamente, a 49%,
2% e 24% do território brasileiro (28). Em 2010, o grau de urbanização das
regiões norte e centro-oeste foi de 74% e 89% respectivamente. As mais
urbanizadas, o sudeste e o sul, 93% e 85% (29). Em 2010, o percentual da população
brasileira residente em área costeira era de 24% da população total. Na região
nordeste, a segunda mais povoada do país, com 35% da população total, a população
residente em área costeira chegou a 38% (30). Conflituosamente, essa mesma região
abriga a Caatinga, bioma de clima semiárido que há tempos vem justificando
enormes dificuldades de acesso a bens e serviços. Nela habitavam cerca de 16
milhões de pessoas (31) em condições muito severas de sobrevivência, fatores que
há mais de um século explicam porque, ainda hoje, a região nordeste ocasiona
importantes migrações (32).

O poder da técnica
Portanto, a complexidade espacial contemporânea pode ser traduzida pela
urbanização da sociedade levada a extremos e pelas repercussões do fenômeno, em
particular, no agravamento da questão ambiental.

Mas esse é um lado da moeda. Outro, é que a concentração demográfica encontra-


se associada à densidade técnica presente no território. O funcionamento
sistêmico das cidades provém dessa tecnicidade. Difusamente distribuída em quase
todas as localidades do planeta, tal densidade impõe compreender a organização
espacial pelo princípio de sua “unicidade técnica”, que é também política e
econômica (33).

Por consequência, assiste-se a um aumento exponencial de sinergias possíveis nos


lugares, especialmente nas grandes cidades, momento em que a produção e a
organização espacial superam em definitivo a experiência da lógica diacrônica
na sucessão dos eventos, da assimilação e da produção de fenômenos dispostos em
um tempo linear. Embora o “tempo como sucessão é abstrato e o tempo como
simultaneidade é o tempo concreto, já que é o tempo da vida de todos” (34) a
condição sincrônica relacionada à experiência empírica da simultaneidade de
eventos tornou-se virtude que se pode estender a todas pessoas. É, por isso, um
dos elementos fundamentais do qual decorre a aceleração contemporânea e o período
histórico atual. “O eixo das sucessões e o das coexistências”, compreendido como
prática vivenciada, altera, radicalmente, a compreensão dos fenômenos e o modo
como vemos e interpretamos o espaço-natureza: da sucessão de tempos – diacronia
– à coexistência dos eventos – sincronia (35). E daí a originalidade do fenômeno
urbano atual. Não há precedentes.
Conjuntamente à urbanização contemporânea, a percepção da sincronia dos
processos aumenta a complexidade da organização espacial. Com a simultaneidade
dos eventos, os lugares não podem ser compreendidos satisfatoriamente sem levar
em conta as inter-relações indissociáveis que mantêm com todas as outras
dimensões espaciais.
Esse fenômeno, condicionado ao tempo concreto de todos, sempre ocorreu. A
diferença é que a totalidade a ele intrínseca pode ser mais bem interpretada
graças ao “meio técnico-científico-informacional” (36). A 2ª Guerra Mundial e a
revolução informacional nos anos 1980 são os fatos que impulsionaram a
constituição desse meio; eles estabeleceram as pré-condições sob as quais
transcorreu o período técnico-científico-informacional, possibilitando, desse
modo, que se compreenda e se interprete empiricamente o mundo unificado na
globalização.
Os lugares, para explicá-los, não contêm senão parte dos nexos necessários para
tanto. Para não se afirmar que “sempre” e em “todos os lugares”, com
extraordinária frequência os lugares não se revelam apenas com as relações e
eventos locais analisados em si. Também será fundamental considerar as
complementaridades que eles estabelecem próxima e remotamente. Pelo mesmo
motivo, no atual período histórico, o processo espacial, como totalidade,
possibilita que a funcionalização do mundo torne-se empiricamente reconhecível
nos lugares (37).

O lugar – independentemente de como possa circunstanciar-se em setores urbanos,


cidades, regiões, subespaços ou ecossistemas - pode ser definido como espaço “de
um acontecer solidário” (38). Não com menor espanto surgem figuras e conceitos
para buscar uma explicação sobre a singularidade e o ineditismo da organização
espacial da atualidade, tais como “compressão espaço-temporal” (39) e a mítica
imagem do “aleph” (40).
Na qualidade de acontecer solidário, o lugar “se apresenta sob três formas no
território atual: um acontecer homólogo, um acontecer complementar e um acontecer
hierárquico” (41). Em termos práticos, a análise de um lugar deverá compreendê-
lo como amálgama do que se passa no interior desse lugar, das relações
horizontais que se estabelecem entre ele e o seu derredor, como também dos nexos
organizacionais que o colocam em contato com as verticalidades do mundo tornado
global. As particularidades locais apresentar-se-iam em resposta da à
indissociabilidade das dimensões intraurbana e rural (acontecer homólogo), das
dimensões urbano-regional-metropolitanas (acontecer complementar) e das
dimensões estadual-nacional-continental-mundial (acontecer hierárquico).
Para pensar o projeto homem-natureza
O projeto arquitetônico-urbanístico contribui no equacionamento dos problemas
ambientais, desde que decorrente de genuína criação ético-estética, a exemplo
do modernismo (42). Afinal, “(...) todas as coisas colaboram quando são o que
são” (43). Quanto aos elementos que atribuem ao ambiente e à síntese do projeto
um grau de complexidade historicamente inédito, influindo no modo pelo qual se
ensina e se pratica a arquitetura e urbanismo, não há como ignorar as
circunstâncias atuais do processo de produção material e imaterial do espaço,
notadamente do espaço construído nas cidades.

Possibilidades de coexistência organizacional concreta de diversos subespaços e


o surgimento de arranjos territoriais sem igual concretizam-se por intermédio
da intensificação da densidade técnica presente nos lugares. Por exemplo: regiões
pivotais, regiões associativas e regiões virtuais. Esses conceitos surgem como
resultado de programas comuns e acordos que buscam complementaridades e
sinergias, em especial as produtivas, dos quais derivam esquemas de integração
territorial e de contiguidade abstrata entre lugares distantes uns dos outros
(44).

No extremo oposto, a apropriação popular dos espaços e dos tempos da cidade. Em


São Paulo, no comércio de rua no bairro do Brás, a “Feirinha da Madrugada”
funcionava de segunda a sábado das 3h00 às 10h00 (Figura 4).

Feirinha da Madrugada, em São Paulo


Foto divulgação [navegandonaweb]
Essa territorialidade popular foi “proibida” em meados de 2011 e ocorreu,
simultaneamente, à inauguração de empreendimentos imobiliários de “shopping
populares” construídos nos lotes antigamente ocupados por galpões industriais
do bairro. Atualmente esse mercado está confinado nesses espaços, mas já dá
sinais de que começa a se extravasar para o comércio de rua, à revelia da pressão
policial. Dos tempos da “Feirinha” aos dias de hoje, esse comércio reúne gente
que vem de todo o Brasil e de países vizinhos. Ainda respeitando os mesmos
horários de funcionamento, as pessoas chegam por diversos meios de transporte:
trem, vans, automóveis, ônibus fretados e mesmo a pé. Comercializam de tudo
relacionado ao setor de vestuário e acessórios de moda com fabricantes
brasileiros, coreanos, chineses, libaneses, árabes, bolivianos, etc.

Nessas condições, o pensamento necessário para o projeto do espaço das relações


homem-natureza não pode abrir mão da abordagem multidimensional. Isto é, de que
o espaço é um continuum de totalizações em ato, ou, ainda, a totalidade em
movimento e em tempo concreto. Sem esse esforço, a cidade e os lugares ainda por
virem repousarão sob um substrato teórico-empírico remanescente do
industrialismo e dos significados que ele emprestou no campo do projeto do
edifício, da cidade e da paisagem.
No projeto, o aqui e o agora envolvem o daqui em diante. Ainda que o desenho
represente algo cujo tamanho corresponda ao do objeto ou da localidade, na escala
1:1 ou 1:500, todas as outras dimensões espaciais estarão representadas porque
esse objeto ou localidade estarão sempre em algum lugar. A escala da
representação bastaria em si se o objeto ou localidade não estivesse em lugar
algum, como em sonhos ou miragens. Isso, aliás, não é novidade.

O item 1 da versão de Le Corbusier da Carta de Atenas, cujo título é “A cidade


e sua região”, termina assim: “o plano da cidade é só um dos elementos do todo
constituído pelo plano regional”. Escrito em 1941 ou 1942, não poderia ser mais
clarividente. As interações das cidades do presente com as regiões são cada dia
mais vitais. A tendência de concentração da população em áreas urbanas não dá
mostras de reversibilidade. Ao contrário. Repita-se, no Brasil, o grau de
urbanização acelerou-se muito. Em 1940, atingia 31%; em 2000, 81%; em 2010,
84,4%. Igualmente relevante foi o aumento da população: de 41,2 milhões a 190,7
milhões, e a ocorrência de tal dinâmica configura a concentração populacional
em cidades cada vez maiores, aumentando o número de novas metrópoles.

Por isso, não há como dispensar o estudo das dimensões extra-urbanas. A


“metropolização e macrourbanização” – apontada por Milton Santos (45) como
tendência da urbanização brasileira – ou, ainda, a formação de extensas áreas
metropolitanas caracterizadas pela “urbanização dispersa” – estudada
recentemente no estado de São Paulo por Nestor Goulart Reis (46) – e a
“urbanização extensiva” (47) proposta por Monte-Mór impedem compreender o plano
da cidade e o da região apenas complementarmente, como idealizado na Carta de
Atenas.

E há outra evolução importante. Na Carta de Atenas, a aludida região


corresponderia à noção geográfica de região natural. Esta, como elemento
estrutural do planejamento da cidade, raramente coincidiria com a “unidade
administrativa”. Portanto, visando a constituição do plano urbano, o conceito
de região equivaleria, na época, ao de região natural.

Entretanto tal orientação permanece parcialmente válida devido a, pelo menos,


duas razões. Primeira: o entendimento do fenômeno regional há muito superou os
limites do conceito de região natural. Formulada basicamente pela geografia
francesa, essa noção compunha os cânones da ciência geográfica na época em que
o IV CIAM foi realizado. Hoje, esse conceito está mais voltado às questões de
método do que propriamente para eleger uma ou outra concepção hegemônica, como
era o caso. Segunda razão: a organização do Estado e do território atingiu um
grau de complexidade jamais visto.

Não é só. A região político-administrativa, particularmente a regionalização de


natureza metropolitana, é elemento singular na gestão territorial de uma
república federativa. É o caso do Brasil. A região é a unidade de planejamento
do território nas dimensões que extrapolam o planejamento municipal. Constitui-
se, inclusive, em instrumento da política urbana preconizado no Estatuto da
Cidade (Artigo 4º, I e II, Lei n.º 10.257/2001). Além disso, a política de
recursos hídricos vem implementando unidades de planejamento definidas por
critérios ambientais muito próximos da noção de região natural. A Unidade de
Gerenciamento de Recursos Hídricos (UGRHI) é um exemplo. Essa regionalização é
adotada pela Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos do estado de São Paulo
e a gestão dessas unidades mostra-se bastante influente nas ações governamentais.

Portanto, a noção restrita de região natural, tal como apropriada no discurso


da Carta de Atenas, está ultrapassada, ainda que, sob alguns pontos de vista, a
compreensão físico-territorial do sítio continue imprescindível. Mesmo assim, a
unidade administrativa pode ser um recorte territorial válido para o planejamento
das cidades.

O certo é que a região mudou em forma e conteúdo.

No Brasil, particularmente em estados altamente urbanizados como São Paulo, é


impossível prescindir da regionalização administrativa. Ela traduz a gestão
integrada dos municípios, estados e união – tanto do ponto de vista do projeto
quanto do político-administrativo. A manutenção das áreas de mananciais da Região
Metropolitana de São Paulo é um exemplo.

Segundo estimativa elaborada pelo autor, para o ano de 2000, concluiu-se que,
na faixa marginal de 30 metros das represas Billings e Guarapiranga, na RMSP,
moravam mais de 211 mil pessoas. Alargando para 500 metros, por volta de 500
mil; para a faixa de 1.000 metros, mais de 900 mil pessoas. Na mesma época – só
para dimensionar o vulto do problema – o município de Campinas tinha 968 mil
habitantes. Considerando apenas os municípios banhados pelas represas, há
Itapecerica da Serra, Embu-Guaçu, São Paulo, Diadema, São Bernardo do Campo,
Santo André e Ribeirão Pires. A resolução dos problemas de preservação dos
mananciais em São Paulo deve compreender, portanto, a compatibilização de
interesses e o consenso de, no mínimo, sete municípios e desses com o estado.
Porém, é preciso levar em a conta a bacia do Alto Tietê, com sua população de
17,5 milhões de pessoas. Tem mais. Nessa região, a disponibilidade de água é de
400 m3anuais por habitante. É inferior aos 1.500 m3, que correspondem à situação
crítica, e mais ainda que o ideal – 2.500 m3/ano por habitante, segundo a
Organização Mundial de Saúde (OMS). Em consequência, o sistema Cantareira captura
água da bacia dos rios Piracicaba/Capivari e Jundiaí. Em 2000, moravam, nessa
UGRHI mais 4,3 milhões de pessoas.

Em resumo. O equacionamento da questão dos recursos hídricos nessa porção


territorial do estado de São Paulo envolve, no mínimo, duas regiões
metropolitanas – São Paulo e Campinas – e a gigantesca comunidade de mais de 22
milhões de pessoas. Portanto, é impossível imaginar a dissociação do plano urbano
do plano regional. Ou seja, o raciocínio projetual também deve perseguir
a abordagem multiescalar. Mesmo sob a ótica puramente instrumental, não dá mais
para ignorar a imprescindibilidade do planejamento simultâneo das várias
dimensões do espaço construído. Do bairro à região, para não falar do país. Por
mais técnico que às vezes pareça ser o planejamento das situações que envolvem
ações integradas entre municípios, estados e união, ele está indissociavelmente
relacionado à gestão do território, que é política (48).
Conclusão. O equacionamento dos problemas se dá no plano político e na gestão
do território compreendido como totalidade.
O mundo tornado globalizado transformou os lugares em definitivo. Nos países
subdesenvolvidos, em decorrência de nova fase da divisão territorial do trabalho,
a globalização pôs em marcha outra urbanização.

Por desconcentrar a concentração urbana, ela desencadeia a formação de extensas


regiões de cidades, impondo autoritariamente outras racionalidades alheias às
necessidades e ao interesse comum das comunidades locais. Daí a importância de
se investigar de que maneira a formação e a atuação do arquiteto integra-se às
políticas públicas e à condução da gestão do território ‒ e, por consequência,
do ambiente.

Uma coisa é certa. A raiz criativa da cultura arquitetônica tem tudo para
colaborar nessa empreitada.

A propósito, ao comentar Venturi, Moneo escreve o seguinte: “O que Venturi propõe


com seu livro é encontrar e descobrir os mecanismos de que os arquitetos se
serviram para obter a complexidade, a ambiguidade e a tensão de que falam os
teóricos da poesia” (49). De fato, “ uma arquitetura da complexidade e
contradição tem uma especial obrigação para com o todo: sua verdade deve estar
na totalidade ou nas suas implicações. A arquitetura deve incorporar a difícil
unidade da inclusão, mais do que assumir a fácil unidade do exclusivo. Mais não
é menos!” (50)

Em síntese, as circunstâncias atuais da complexidade espacial impõem que o


raciocínio projetual tenha que revelar o trato com duas abordagens de natureza
espacial: a relacionada ao entendimento do espaço como categoria histórica que
encerra a totalidade em movimento – a abordagem multimensional e a que sincroniza
o funcionamento das unidades territoriais do ponto de vista técnico-operacional
e sistêmico a abordagem multiescalar. Desse modo, e em princípio, poderá ser
possível a criação do espaço construído obtido por meio do diálogo indissociável
da forma-conteúdo, do objeto-ação.

Parece não haver escapatória. Ou o ofício do arquiteto-urbanista vence o desafio


de lidar com a gestão territorial complexa - contribuindo, desse modo, para o
equacionamento das questões ambientais - ou será substituído pela administração
de negócios, pela propaganda e pelo marketing – público e privado - e, no fim,
vencido pela própria natureza: o meio ecológico, os homens e suas coisas.

Ao que tudo indica, não há sinais de regressão do processo de recrudescimento


das concentrações urbano-regionais-metropolitanas. Ao contrário. Ainda que as
estratégias publicizadas da descentralização do Estado fossem verdadeiras, o que
se constata efetivamente é uma excessiva centralização regulatória que põe em
marcha uma espécie de urbanização corporativa dos agentes hegemônicos e a
privatização da gestão territorial. Há quanto não se fala em desconcentração
espacial das regiões metropolitanas? No Brasil, há mais de 40 anos.
Contraditoriamente, desde o período da ditadura militar. Como nas regiões
híbridas identificadas por Sergio Boisier, os lugares tornam-se “quase-Estado”,
“quase-empresa” (51).

O exercício projetual deve, então, buscar redesenhar os lugares com estratégias


que possibilitem defendê-los dos interesses hegemônicos e que garantam o “direito
ao entorno” (52): “o simples direito do cidadão reconhecer-se abrigado no lugar
em que vive e poder interagir com os processos de reorganização espacial que
venham a afetar diretamente o seu modo de vida” (53).

“Aí está o grande tema para os próximos anos: começar a preencher o espantoso
abismo que se verifica em nosso crescimento, em nossa modernidade. O abismo
entre o progresso científico e tecnológico (que indiscutivelmente houve) e o
progresso ético, inexistente” (54).
Nesse contexto, o território não é mero suporte, mas instância ativa da
sociedade, “como a economia, a cultura e a política” (55).

Uma proposta de agenda


1. Na prática, o projeto de uma “arquitetura democrática” circunscreve a classe
de arquitetura que lida com o essencial e com o necessário (56). Ainda por fazer,
uma agenda possível inclui elementos tais como:

1.1. O fortalecimento da organização local;

1.2. A valorização do cotidiano, da sociodiversidade e da “cultura ordinária”


(57) do homem lento;

1.3. A gestão compartilhada;

1.4. A aplicação de metodologias negociadas que resultem projetos negociados;


e,

1.5. O direito do “homem comum” à moradia, ao território e “ao entorno”.

2. Por enquanto, no mundo contemporâneo, a ação do arquiteto e urbanista


prossegue englobando a função social de construir o espaço do homem em todas
as suas manifestações. No entanto,

2.1. Para resgatar o papel ativo que já desempenhou na formulação das


estratégias de combate à pobreza, às desigualdades sociais e na condução do
processo de planejamento urbano e regional – veja-se, por exemplo, a Carta dos
Andes (58);

2.2. Para reconstituir o “fazer” da arquitetura e urbanismo; e, desse modo,

2.3. Contribuir na harmonização das relações ambiente, espaço e sociedade, o


papel do arquiteto e urbanista não pode prescindir do seguinte:

2.3.1. Desenvolver a análise crítica e, ao mesmo tempo, propositiva;

2.3.2. Refletir a síntese da dinâmica territorial no projeto;

2.3.3. Exercer ação ativa na condução da política e da gestão territorial; e,

2.3.4. Servir de porta-voz da dimensão territorial do lugar e dos cidadãos.

3. Concluindo, há que se romper o bloqueio que impede o exercício livre do


pensamento utópico (59) e, com isso,

3.1. Compreender o ato de projetar como reflexão crítica e de indagação de


possíveis históricos;

3.2. Divulgar ações libertárias como elementos constitutivos da cultura


arquitetônica; e,

3.3. Construir uma política de arquitetura, ou, ainda, uma arquitetura


política.

4. Somente o rigor disciplinar no pensamento e na ação do projeto


arquitetônico-urbanístico pode contribuir para o desenvolvimento satisfatório
da noção de meio ambiente nos programas acadêmicos, assim como na prática
profissional.

4.1. Uma vez iniciado, esse esforço disciplinar poderá contribuir na


formulação de uma conceituação suficientemente abrangente de “ambiente” a
ponto de acolher o ponto de vista particular da arquitetura e do urbanismo e
de todos os demais pontos de vista e determinações disciplinares.

4.2. A interdisciplinaridade é uma qualidade do objeto e não dos indivíduos


que buscam compreendê-lo.

notas
1
VENTURI, R. Complexidade e contradição em arquitetura. São Paulo: Martins Fontes,
1995.

2
SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico
informacional. São Paulo: Hucitec, 1994. (Geografia: teoria e realidade).

3
Id. Ibid.

4
No Brasil, a arquitetura e o urbanismo são considerados, pelos órgãos federais de
ensino superior, como uma única área de conhecimento integrada à grande área das
ciências sociais aplicadas.

5
SAWAYA, S. B. Para ler as entrevistas. Cadernos de arquitetura FAUUSP. v.1. São
Paulo: Pini/FUPAM, 2001. p.14-52.
6
PIANO, R. A responsabilidade do arquiteto. São Paulo: BEI Comunicação, 2011, p. 37.
7
PRESTES, L. F. Entrevista com Nestor Goulart Reis Filho: resenha. Cadernos de
arquitetura FAUUSP. v.2. São Paulo: Pini/FUPAM, 2001. p. 66.

8
ALMEIDA, C. G. Um cronista da cidade: Curitiba no jornal sob o olhar de Jamil Snege
1997-2003. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras do Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, 2006, p. 99.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

9
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo:
Hucitec, 1996, p. 50-58.
10
GREGOTTI, V. Território da arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 184-188.
(Debates).
11
VENTURI, R. Complexidade e contradição em arquitetura. São Paulo: Martins Fontes,
1995, p. 121-147.
12
SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

13
SANTOS, M. O espaço do cidadão. 7 ed. São Paulo: EDUSP, 2007.
14
SANTOS, id. Ibid., apud SILVA NETO, 2004, p. 20.

SILVA NETO, M. L. da. Cidades inteiras de homens inteiros: o espaço urbano na obra
de Milton Santos. Acervo: revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1,
p. 11-22, jan./jun. 2004.
15
MUNFORD, L. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 2
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 283.
16
DICKINSON, H. W. A máquina a vapor em 1830. In: A invenção da máquina a
vapor (1958). São Paulo: FAUUSP, 1976. p. 106-116.
17
MARX, K. O processo de produção do capital. O capital: crítica da economia política
(1890). 7 ed. São Paulo: Difusão Editorial S.A., 1982. Livro 1º, v. 1-2., p. 431.
18
MUNFORD, L. Op. cit, il. nº 26.

19
LEIS, R. H. A modernidade insustentável: as críticas do ambientalismo à sociedade
contemporânea. Montevideo: Coscoroba, 2004, p. 55-56.
20
MARX, M. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1988. (Série espaço e desenho. Teses / Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo), p. 41.
21
A primeira “Sociedade Protetora dos Animais” surge na Inglaterra em 1824 (LEIS, op.
cit., 2004, p. 40).

22
SILVA-NETO, M. L. Subsídios para o desenho de estratégias desustentabilidade
aplicadas à Macrometrópole paulista: POSURB/PUC-Campinas, fev.2012. Mimeo.
(Relatório de pesquisa). p. 53-56.
23
Fonte dos dados primários: IBGE, SIDRA, Tabela 1290 - Número de municípios e
População nos Censos Demográficos por tamanho da população, 2010.

24
UNITED NATIONS. The inequality predicament: report on the world social situation
2005. New York: United Nations, 2005, p. 49.
25
Fonte dos dados primários: IBGE, SIDRA, Tabela 1288 - População nos Censos
Demográficos por situação do domicílio, 2010.

26
LEIS, op. cit., p. 54.

27
“O atual é tanto mais difícil de apreender, nas fases em que a história se acelera,
quanto nos arriscamos a confundir o real com aquilo que não o é mais. Felizmente,
conforme escreveu Stephan Hales (1727, p. 318) a propósito das incertezas de um
raciocínio sobre a natureza, ‘com um esforço encontramos as coisas que estão diante
de nós’. O que se acha diante de nós é o agora e o aqui, a atualidade em sua dupla
dimensão temporal e espacial” ( SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. 2 ed. São
Paulo: Hucitec, 1986, p. 10).

28
Fonte dos dados primários: IBGE, SIDRA, Tabela 3926 - Área dos biomas, 2012.

29
Fonte dos dados primários: IBGE, SIDRA, Tabela 1288 - População nos Censos
Demográficos por situação do domicílio, 2010.

30
Fonte: IBGE, SIDRA, Tabela 1121 - População residente total e em área costeira e
Proporção da população residente em área costeira, 2010.
31
HOGAN, D. J. Migration dynamics in Brazil's major biomes. In: XXV INTERNATIONAL
POPULATION CONFERENCE, Tours. 2005. Proceedings... Tours: International Union for
the Scientific Study of Population, 2005, p. 4. Disponível em:
<http://iussp2005.princeton.edu/download.aspx?submissionId=51543>. Acesso em: 6
jun. 2009.
32
“O maior problema ambiental é a desertificação, agravada pelo uso intensivo da
irrigação com tecnologia imprópria, pela contaminação de fontes de água disponíveis
e pelo desmatamento para obter-se lenha e carvão” (Id. Ibid., p. 10).

33
SANTOS, 1996, op. cit., p. 151-169. Id.,op.cit., 2000, p. 24-27.

34
Id., op. cit., 1996, p. 27.

35
Id. ibid., p. 126.

36
SANTOS, op. cit., 1994, p. 139.

37
Id. ibid., p. 131.

38
“A noção, aqui, de solidariedade, é aquela encontrada em Durkheim e não tem
conotação moral, chamando a atenção para a realização compulsória de tarefas
comuns, mesmo que o projeto não seja comum” (Id. ibid., p. 132).

DURKHEIM, É. The rules of sociological method (1895). Chicago: The University of


Chicago Press, Ill (1938), 1962.
O acontecer está empregado na acepção de “ser ou tornar-se realidade no tempo e no
espaço, seja como resultado de uma ação, ou constituindo o desenvolvimento de um
processo ou a modificação de um estado de coisas, ou envolvendo ou afetando (algo
ou alguém)” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

39
“(...) Pretendo indicar com essa expressão processos que revolucionam as qualidades
objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes
radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos”. HARVEY, D.
Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993p. 219.

40
“(...) O único lugar da terra onde se acham todos os lugares, um espaço ilimitado
de simultaneidade e paradoxo, impossível de descrever numa linguagem menos do que
extraordinária”. SOJA, E. W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na
teoria social crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1993, p. 8.
41
“O acontecer homólogo é aquele das áreas de produção agrícola ou urbana, que
modernizam mediante uma informação especializada, gerando contiguidades funcionais
que dão os contornos da área assim definida. O acontecer complementar é aquele das
relações entre cidade e campo e das relações entre cidades, consequência igualmente
de necessidades modernas da produção e do intercâmbio geograficamente próximo.
Finalmente, o acontecer hierárquico é um dos resultados da tendência à
racionalização das atividades e se faz sob um comando, uma organização, que tendem
a ser concentrados. (...) Em todos os casos, a informação joga um papel parecido
àquele que, no passado remoto, era reservado à energia” (SANTOS, 1996, ibid., p.
132).
42
KOPP, A. Quando o moderno não era apenas um estilo e sim uma causa. São Paulo:
Nobel/Edusp, 1990.
43
WOODBRIDGE, 1940, apud SANTOS, 1986, op. cit., p. 28.

WOODBRIDGE, F. J. E. An essay on nature. New York: Columbia University Press, 1940.


44
As regiões pivotais podem ser definidas como um território complexo organizado do
ponto de vista político-administrativo, tais como regiões ou municípios, e
preferencialmente detentoras de identidade cultural. Já o modelo associativo é
construído a partir do agrupamento autônomo de regiões pivotais contíguas. As
virtuais resultam de acordos de cooperação estratégica, tática ou por outras
modalidades de acordos contratuais entre regiões pivotais ou associativas
territorialmente não contiguas. BOISIER, S. Postmodernismo territorial y
globalizacion: regiones pivotales y regiones virtuales. [s.l.]: ILPES, 1993.
45
SANTOS, M. A urbanização brasileira. 5 ed. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2005. (Coleção Milton Santos ; 6).
46
REIS, N. G. Notas sobre a urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São
Paulo: Via das Artes, 2006.
47
MONTE-MÓR, R. L. Urbanização extensiva e a produção do espaço social contemporâneo.
In: REIS, N. G.; TANAKA, M. S. (Coord.). Brasil: estudos sobre dispersão urbana.
São Paulo: FAU-USP, 2007, p. 241-251.
48
O Brasil é uma república federativa cujo princípio que lhe garante a constituição é
o da integração dos entes públicos presentes no território.

49
MONEO, R. Inquietação teórica e estratégia projetual na obra de oito arquitetos
contemporâneos. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 54.
50
VENTURI, 1995, op. cit., apud id. ibid., p. 52.

51
BOISIER, S. El dificil arte de hacer region. Cusco: Centro de Estudios Regionales
Andinos Bartolomé de las Casas, 1992, p. 184.
52
SANTOS, 2007, op. cit. p. 63-65.

53
SILVA NETO, 2004, op. cit.,p. 20.

54
PIANO, 2011, op. cit., p. 42.

55
SOUZA, M. A. A. de. O retorno do território. Revista OSAL. Buenos Aires, ano VI, n.
16, p. 251-261., fev./abr. 2005, p. 252.
56
PRESTES, 2001, op. cit., p. 65.

57
CERTAU, 1998, apud RIBEIRO, 2005, p. 95.

CERTAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.


RIBEIRO, A. C. T.. Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente
necessário. In: SILVA, C. A. da et al. Formas em crise: utopias necessárias. Rio de
Janeiro: Arquimeds Edições, 2005. p. 93-111.
58
MELLO, L. de A. (Org.) A carta dos andes. São Paulo: Centro Interamericano de
Vivenda e Planejamento (CINVA), 1960.
59
SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na transição pós-moderna.
São Paulo: Cortez, 1997.

sobre o autor
Manoel Lemes da Silva Neto é arquiteto e urbanista, mestre e doutor em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade de São Paulo e especialista em Gestão do Desenvolvimento
Regional pelo Instituto Latino-americano e do Caribe de Planificação Econômica e
Social. É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo do Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologias da
PUC-Campinas.

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