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FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS Nº 441 Junho / 2017

análise de conjuntura
p. 3 Vera Martins da Silva faz uma análise da conjuntura econômica brasileira,
Nível de Atividade
com destaque para a evolução dos componentes da demanda agregada e
Vera Martins da Silva
para a desocupação no mercado de trabalho.

temas de economia
aplicada
Tendências Globais no Cenário Internacional
e o Futuro do Trabalho: o Impacto sobre o José Paulo Zeetano Chahad faz uma revisão bibliográfica a respeito do
Perfil dos Empregos p. 8 impacto sobre o mercado de trabalho decorrente das grandes tendências
José Paulo Zeetano Chahad globais nesse setor, tanto sob a ótica do perfil de emprego quanto das
habilidades do trabalhador.

‘Staple School’: Breve Apresentação Sobre a


Julio Lucchesi Moraes discute a Staple Theory, a teoria desenvolvimen-
Teoria Desenvolvimentista Canadense p. 18
tista canadense, e apresenta as principais premissas e tópicos analíticos
Julio Lucchesi Moraes
dessa escola.

Sinalização de Qualidade e Oligopólio: o Caso


Luiz Henrique Superti analisa a indústria automobilística brasileira e usa
do Chevrolet Meriva p. 21
um modelo de sinalização de qualidade para estudar a política de preços
Luiz Henrique Superti praticada pelas montadoras.

O Núcleo de Economia Financeira da USP apresenta a evolução dos valores


Relatório de Indicadores Financeiros p. 26
de quatro tipos de carteiras, do dividend yield, do short interest e do índice
Nefin-USP
de volatilidade futura esperada para o mercado acionário brasileiro.

economia & história


Sobre o Estudo dos Escravos Velhos no Brasil:
o Estoque de Escravos Idosos em Ribeirão
Luciana Suarez Lopes mostra alguns dados do estoque de escravos velhos
Preto, 1860-1888 p. 31
em Ribeirão Preto, obtidos de inventários, como composição por gênero,
Luciana Suarez Lopes
quantidade e percentual de idosos.

As ideias e opiniões expostas nos artigos são de responsabilidade


exclusiva dos autores, não refletindo a opinião da Fipe
Observatório do Emprego e do Trabalho
O Observatório do Emprego e do Trabalho oferece aos formuladores de políticas públicas um conjunto
de ferramentas inovadoras para aprimorar as possibilidades de análise e de compreensão da evolução do
mercado de trabalho.

O Observatório inova a análise do mercado de trabalho em dois aspectos importantes. Primeiro, utiliza
um conjunto de indicadores novos, especialmente criados pelos pesquisadores da FIPE, os quais junta-
mente com indicadores mais conhecidos e tradicionais permitirão um acompanhamento mais detalhado
do que ocorre no mercado de trabalho. Segundo, porque estes indicadores podem ser utilizados tanto
para analisar o mercado como um todo, quanto para analisar aspectos desagregados do mercado como,
por exemplo, uma ocupação ou um município. São indicadores poderosos, que oferecem uma visão de
curto prazo e também podem formar uma série histórica. O conjunto de indicadores pode ser usado para
acompanhar tanto as flutuações decorrentes das alterações conjunturais de curto prazo quanto as evolu-
ções estruturais de longo prazo. Mensalmente é divulgado um Boletim que apresenta um resumo do que
ocorreu no mercado de trabalho do Estado. As bases de dados que originam as informações divulgadas
pelo Observatório são: a) CAGED (MTE); b) RAIS (MTE); c) PNAD (IBGE).

O Observatório do Emprego e do Trabalho foi desenvolvido e é mantido em conjunto pela Secretaria do


Emprego e Relações do Trabalho do Governo do Estado de São Paulo (SERT) e pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas da USP (FIPE).

Para saber mais, acesse:

http://www.fipe.org.br/projetos/observatorio/

INFORMAÇÕES FIPE É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DE CONJUNTURA ECONÔMICA DA FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS – issn 1678-6335

Conselho Curador Diretoria Pós-Graduação Luiz Martins Lopes Preparação de


Juarez A. Baldini Rizzieri Diretor Presidente Márcio Issao Nakane José Paulo Z. Originais e Revisão
Chahad
(Presidente) Carlos Antonio Luque Alina Gasparello de http://www.fipe.
Secretaria Executiva Maria Cristina
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Produção Editorial
Simão Davi Silber Carmo
José Carlos de Souza Fabiana F. Rocha
Lenina Pomeranz Sandra Vilas Boas
Vera Lucia Fava Santos

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análise de conjuntura 3

Nível de Atividade: Recuperação Vacilante


Vera Martins da Silva (*)

Uma boa notícia sobre o desempe- trimestre de 2017 com o primeiro se comportaram ainda na com-
nho da economia brasileira, com trimestre de 2016, verifica-se que paração entre o último trimes-
resultado positivo do Produto In- ocorreu uma redução de 0,4% e tre de 2016 e o primeiro de 2017.
terno Bruto trimestral no primeiro que, considerando-se os proble- O Consumo das Famílias, prin-
trimestre de 2017 é o crescimento mas metodológicos envolvidos na cipal item do gasto agregado, e
de 1% sobre o último trimestre de estimação dos agregados, pode que representava 63% do total do
2016. Sem dúvida, um sinal positi- significar meramente uma estag- valor adicionado no início de 2017,
vo depois de sucessivos trimestres nação em relação a um período já manteve-se praticamente estável
de queda;1 é muito bem-vindo e muito fraco. E quando se destaca o (diminuição de 0,1%), enquanto
acompanhado por outros sinais comportamento do PIB dos quatro a Formação Bruta de Capital Fixo
de retomada, como o aumento das trimestres que se encerraram no apresentou queda de 1,6%. O que
vendas no varejo em abril, o au- primeiro trimestre de 2017 em salvou mesmo a economia foram
mento das atividades em vários relação ao mesmo período do ano as Exportações de Bens e Serviços,
ramos industriais e, especialmente, anterior, observa-se que houve com expansão de 4,8% e as Im-
o bom desempenho da agricultura. queda de 2,3%, ou seja, a economia portações, com aumento de 1,8%,
Espera-se que essa recuperação se brasileira tem apresentado um de- indicando que o setor externo é
espalhe pelo resto da economia e sempenho terrível. É claro que esse o único motor que está puxando
que permita a redução da taxa de desastre econômico pode estar a economia doméstica. E melhor
desocupação no mercado de tra- ficando para trás, mas ainda é cedo ainda, a expansão das Importações
balho. para festejar. é um bom indicativo dessa me-
lhoria. A questão é que boa parte
Porém, é necessário cautela na in- Para se ter ideia de como esta re- desse resultado é o crescimento
terpretação dos dados. Quando se cuperação é frágil, pode-se ver da produção da Agropecuária, que
compara o resultado do primeiro como os componentes da demanda teve um aumento de 13,4% em

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relação ao mesmo período do ano expressivas, com destaque para o e Esgoto, que tiveram suas tarifas
anterior, cujo péssimo desempenho setor de Transporte, Armazenagem recuperadas, todos os demais se-
havia sido originado por problemas e Correio (queda de 5,9%) e do Co- tores apresentaram queda de valor
climáticos. Agora que o clima vol- mércio (redução de 4,3%). adicionado produzido.
tou ao normal, a Agropecuária se
restabeleceu, mas neste momento Pela ótica da despesa, no acumula- E c omo a For m aç ão Br ut a de
de discussão sobre o problema do de quatro trimestres, todos os Capital Fixo está declinando ao
mundial das mudanças climáticas componentes da demanda interna longo deste duro passado recente,
fica claro como o país é dependente tiveram queda, e pelo oitavo tri- a Taxa de Investimento também
de questões ambientais para ter mestre consecutivo. A maior com-
tem caído: foi estimada em 16,8%
um desempenho econômico mini- ponente, o Consumo das Famílias,
no primeiro trimestre de 2016
mamente razoável. apresentou 3,3% de redução; o
e 15,4% no primeiro trimestre
Consumo do Governo ficou pratica-
de 2017. Já a Taxa de Poupança
Uma visão pessimista predomina mente estagnado (0,7%) e a Forma-
quando se analisa o desempenho ção Bruta de Capital Fixo teve uma aumentou nesse período, sendo
da economia pelo acumulado de diminuição espantosa de 6,7%, em 13,9% no primeiro trimestre de
quatro trimestres encerrado no boa parte uma contrapartida da 2016 e 15,7% em 2017, o que por
primeiro trimestre de 2017. A re- redução das atividades de Cons- um lado é um bom sinal, pois o país
dução de 2,3% do PIB nesse perío- trução Civil. No setor externo, as depende menos de poupança exter-
do de análise se deveu à queda de Exportações de Bens e Serviços na, porém, é ainda baixa.
2,4% da Indústria, que vem acu- ficaram estagnadas (0,4%) e as
mulando problemas há anos, com Importações foram reduzidas em É possível que o otimismo preva-
a diminuição de 2,3% em Serviços, 2,7%. Os Gráficos 1 e 2 permitem leça no final. Apesar de todas as
este conjunto enorme e diversi- uma visualização do desempenho informações negativas, especial-
ficado de ramos de atividade que do PIB Trimestral, deixando evi- mente quando se observam as in-
cresceram aceleradamente nos úl- dente como a análise pode variar formações em momentos pontuais,
timos anos e que foram os grandes conforme a base de comparação a trajetória de recuperação da eco-
responsáveis pelo aumento da pro- que se toma. No Gráfico 1, em que nomia, mesmo que lenta e incerta,
dução e empregos gerados durante se destaca a evolução dos diver- pode ser vislumbrada no Gráfico 3,
a fase de crescimento. A Agropecu- sos ramos produtivos em relação onde são apresentados os agrega-
ária, neste período ficou estagnada ao primeiro trimestre de 2016,
dos macro sob a ótica da despesa,
(0,3%). Entre os setores indus- observa-se a evolução excepcional
em variação acumulada em quatro
triais, destaque para o crescimento da Agropecuária, aliás até tida por
trimestres até o primeiro trimes-
positivo de Eletricidade, Gás, Água, muitos analistas como uma super-
tre de 2017, no sentido de se tentar
Esgoto e Limpeza Urbana (4,9%) safra. Na verdade, quando se ob-
verificar uma mudança de tendên-
enquanto os ramos de Construção serva o resultado pelo acumulado
Civil tiveram um resultado nega- em quatro trimestres, no Gráfico cia. Apesar de toda a negatividade
tivo (5,5%) e a Indústria de Trans- 2 o resultado é positivo, mas longe existente, parece haver um sentido
formação apresentou queda de 3%. de ser um espanto; trata-se apenas de retomada na Formação Bruta
Já entre os ramos do setor de Servi- de uma retomada depois de um de Capital, o que deve puxar a eco-
ços, com exceção de Atividade Imo- ano muito ruim. E assim, o sonho nomia para um caminho menos
biliária, que ficou estagnada, todos se desfaz e a realidade é que, com desastroso do que tem sido nos
os demais apresentaram reduções exceção de Eletricidade, Gás, Água últimos tempos.

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análise de conjuntura 5

Apesar de toda a ênfase da apro- de precariedade econômica pode do setor privado. O Gráfico 4 mos-
vação das reformas trabalhista e até duplicar, o que reduz a renda tra o número de pessoas desocupa-
previdenciária como salvadoras familiar e o consumo. Ou seja, a das, segundo a Pesquisa Nacional
da pátria, há que se ter em vista recessão tem sufocado a economia de Amostra de Domicílios Contínua
que estas mudanças institucionais e o bem-estar das famílias. Sair do IBGE. Verifica-se como os deso-
devem ter impactos no médio e no dessa situação não é trivial. Por cupados passaram de 7,6 milhões
longo prazos. Para já, uma melhor outro lado, a queda da inf lação no trimestre de janeiro/fevereiro/
alocação dos recursos públicos e deve deter a queda de renda das março de 2012 para 14,2 milhões
o destravamento das operações famílias e estimular o consumo no primeiro trimestre de 2017,
ligadas à infraestrutura parecem daqui para frente. Vai também sendo o momento mais dramático
ser mais indicados para amenizar nesse sentido a redução da taxa de o biênio 2015 e 2016, com o final
o drama do desemprego oficial, que juros e a melhoria nas condições das grandes obras ligadas à Copa
já atinge 14,2 milhões de pessoas, de crédito. No âmbito do Consumo do Mundo, a redução dos preços
ou seja, 13,7% da força de trabalho. das Famílias, um fator adicional a das commodities e a crise política.
Além da desocupação oficial, se seu estímulo tem sido a possibili- Vamos torcer para que o país reto-
também forem adicionados aqueles dade de usar os recursos de contas me um crescimento minimamente
que estão subempregados, o con- inativas do FGTS e os aumentos sa- razoável, mas tudo indica que é um
tingente de indivíduos em situação lariais reais em algumas categorias caminho tortuoso e incerto.

Gráfico 1 - Variação em Volume em Relação ao Mesmo Trimestre do Ano Anterior (%)

Fonte: Contas Trimestrais – IBGE.

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Gráfico 2 - Variação em Volume em Relação aos Quatros Trimestres Anteriores (%)

Fonte: Contas Trimestrais – IBGE.

Gráfico 3 - Evolução dos Componentes da Demanda Interna - Variação Acumulada em Quatro Trimestres (%)

Fonte: Contas Trimestrais – IBGE.

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Gráfico 4 - Pessoas de 14 Anos ou Mais de Idade, Desocupadas nas Semana de Referência

Fonte: PNADC, IBGE (1.000).

1 Este é o período da história econômica recente com o pior desempenho,


sendo o primeiro trimestre de 2017 o único resultado positivo depois de (*) Economista e doutora em Economia pela USP.
oito trimestres de queda do PIB trimestral. (E-mail: veramartins2702@gmail.com).

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8 temas de economia aplicada

Tendências Globais no Cenário Internacional e o Futuro do Tra-


balho: o Impacto sobre o Perfil dos Empregos
José Paulo Zeetano Chahad (*)

1 Introdução desenvolvimento; das alterações 2 A Natureza das Tendências e


do papel do Estado; da solução dos Transformações Globais Impac-
Enquanto o Brasil se digladia para problemas ambientais; da digitali- tando o Mundo do Trabalho
fazer uma reforma trabalhista e zação da produção e das mudanças
sindical, que permita avançar em demográficas, para ficarmos entre Transformações tecnológicas, mu-
relação à legislação arcaica (da aquelas mais mencionadas. danças na força de resolver proble-
década de 1940) e colocar o funcio-
mas delas decorrentes, novas for-
namento do mercado de trabalho Neste contexto, este artigo contem-
pla uma breve incursão em publica- mas de organização social, novos
brasileiro próximo da modernida-
de, o progresso da humanidade não ções recentes (listadas nas referên- padrões de produção, novas am-
para. Nesse sentido, a observação cias) abordando o impacto sobre o bições do homem para elevar seu
do mundo do trabalho no cenário mercado de trabalho decorrente padrão de vida e aumentar seu
internacional revela que qualquer das grandes tendências globais bem-estar acompanham o caminho
ganho nas relações de trabalho sobre o futuro desse mercado de da humanidade desde sempre. Hoje
proveniente dessas reformas será trabalho nas próximas décadas,
isto acontece num mundo altamen-
efêmero diante das prof undas seja sob a ótica do novo perfil de
te globalizado, com integração ver-
transformações nesse mercado emprego que deverá emergir a par-
tir de determinada tendência, seja tical e horizontal em praticamente
oriundas das tendências globais
decorrentes dos avanços tecnoló- em relação às habilidades (skills) todos os mercados e regiões do
gicos; das alterações no ambiente que este trabalhador deverá pos- mundo, e numa velocidade nunca
dos negócios; dos novos polos de suir.1 antes vista pela humanidade.

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temas de economia aplicada 9

Além disso, esta integração global mação que disso decorre, afetará a As estruturas consagradas de or-
acaba por potencializar não só o vida dos seus indivíduos enquanto ganização e realização dos negó-
alcance e a rapidez das mudanças, trabalhadores. Se não há precisão cios estão se tornando cada vez
quando promove uma pluralidade nas previsões, há uma clara in- mais flexíveis e mais dependentes
de novas tendências, tornando dicação de para onde caminha a da internet;
difícil fazer previsões sobre o real
humanidade.
impacto no mundo do trabalho e, As economias emergentes estão
quando são feitas, parecem indicar adquirindo cada vez mais força
A Figura 1 traz com detalhes as
vida curta para as transformações representativa na cadeia global de
tendências moldando o futuro de
deste. produção;
trabalho. A figura é abrangente,
Por exemplo, no início dos anos mostrando não somente os eixos
O desenvolvimento tecnológico,
2000 havia uma crença genera- estruturantes das tendências glo-
as inovações promovidas pela di-
lizada entre os analistas de que, bais como os pilares que a sus-
gitalização da produção e outros
em 20 anos, haveria uma redução tentam. Sua elaboração se funda-
avanços técnicos estão dissolvendo
das horas de trabalho e aumento menta em tendências locais (no
as fronteiras entre os setores eco-
do tempo destinado ao lazer. Hoje caso o Reino Unido) e mundiais
nômicos e alterando drasticamente
(2017) parece que tal predição que apontam para mudanças se-
os padrões tradicionais de exercí-
não se concretizou. A possibilidade guras no contexto da humanidade, cio do trabalho humano.
de se trabalhar num desktop, em e que fatalmente afetarão o perfil
qualquer lugar que permita acesso
dos novos empregos que deverão Esses eventos são relativamente
à internet, possibilita ao trabalha-
surgir, assim como as habilidades estáveis, pouco prováveis de serem
dor mover-se a qualquer hora do
que serão requeridas dos trabalha- afetados por aspectos cíclicos, ou
dia, em qualquer dia da semana,
dores. Neste caso, destacam-se as reversões reversíveis, indicando
tornando obscura a distinção entre
trabalho e lazer. seguintes: uma clara direção e um curso ro-
busto dos acontecimentos. Quando
De qualquer forma, esta dificulda- As mudanças demográficas, a in- colocados numa ótica de futuro,
de de prever não invalida o exer- tensidade e volatilidade dos pro- descrevem aspectos que consolida-
cício de saber como o mundo em cessos migratórios estão alterando rão um novo mundo dos negócios e
marcha, com a incessante transfor- o perfil da força de trabalho; resultados.

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10 temas de economia aplicada

Figura 1 – Tendências Globais que Moldam o Futuro dos Empregos e das Habilidades do Trabalhador

Fonte: UK Commission for Employment and Skills (2014, p. 16).

Essas tendências locais e globais 3 Impacto Sobre a Tipologia do cada grupo são autoexplicativos,
podem ser agrupadas quando ob- Emprego Decorrente de Cada razão pela qual serão realizados
servadas sob a ótica da sociedade Tendência Global aqui comentários gerais ao procu-
como um todo da seguinte forma: rar esclarecer melhor e/ou sinteti-
Abordam-se nesta seção os pos- zar seus conteúdos.
(i) Sociedade e Indivíduo; (ii) Tec-
síveis impactos sobre o emprego
nologia e Inovação; (iii) Economia e
(perfil e tipologia) decorrentes da
Negócios; (iv) Recursos e Meio Am- 3.1 Tendências Decorrentes
tendência que compõe o agrupa- das Mudanças na Socieda-
biente e (v) Legislação e Políticas
mento mencionado na Figura 1. É de e no Comportamento
Públicas. Estes agrupamentos, por preciso esclarecer que não existe dos Indivíduos
sua vez, se compõem de tendências qualquer hierarquia, predomínio
internas em cada um, num total ou maior importância na ordem Estas tendências aparecem em de-
dos 13 mais influentes e plausíveis com que cada agrupamento e suas talhe no Quadro 1. Sob a ótica de-
que impactam os empregos e as ha- tendências serão apresentados. mográfica o caminho da humani-
bilidades requeridas dos trabalha- Além disso, os quadros represen- dade no futuro próximo se marcará
dores nas três próximas décadas. tativos das tendências dentro de pela continuidade do envelhecimen-

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temas de economia aplicada 11

to populacional levando a uma par- Por um lado, haverá uma pressão O aumento da volatilidade dos mer-
ticipação maior e, por mais tempo, crescente para a incorporação da cados em geral (financeiro, bens
dos idosos no mercado de trabalho. mulher, assim como crescimen- e serviços, commodities, trabalho)
Por um lado, isto tenderá a mudar o trará muitas incertezas na renda
to dos fluxos migratórios, com o
perfil de consumo, com mais empre- familiar e individual, ao trazer
consequente conf lito de cultu-
gos na construção civil, nas vendas imprecisões para a segurança de
a varejo e na geração de energia. ras, raças, religiões e idiomas. Em renda e de vida para grande parte
Certamente, a sociedade deverá termos de emprego isto significa da população. Assim, para minimi-
cuidar mais e melhor de seus idosos maior demanda por aqueles de zar estas indecisões haverá eleva-
e, por esta razão, as áreas sociais, cunho social, assistencial. As em- ção de empregos temporários, de
assistenciais e cuidados para ter- presas deverão prover empregos curta duração e algumas formas
ceira idade demandarão crescente socialmente aceitáveis de infor-
de forma a acomodar as diferenças
volume de novos empregos. malidade da mão de obra. Haverá,
étnicas, assim como ocupações
ainda, deslocamento para produtos
Outra tendência de cunho social permitindo aos indivíduos conci- e serviços de baixa renda, elevando
será a crescente diversidade no in- liar os diferentes interesses entre o emprego nos setores que os ofe-
terior das sociedades mais abertas. profissão e vida privada. recem.

Quadro 1 – Tendências Globais Moldando o Futuro do Trabalho: Implicações para a Tipologia dos Empregos –
Escopo: Sociedade e Indivíduo

Fonte: Elaboração do autor, com base em: UKCES (2014, p. 17-21); OECD (2016); ROSSOTTO, KUEK e PARADI-GUILFORD (2012).

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12 temas de economia aplicada

Outra tendência que tem emergido equipes” para o “monitoramento si. O acesso à internet será mais
com força é a tomada de consciên- de resultados”. rápido, facilitando de forma cres-
cia da sociedade de que é preciso cente o acesso rápido à informação,
buscar caminhos para um novo à telecomunicação e à mídia. Um
3.2 Tendências Emergindo das resultado futuro disto é a criação e
equilíbrio entre a vida profissional I n o v a ç õ e s e Tr a n s f o r m a -
e a vida social dos indivíduos. Esta administração de grandes bancos
ções Tecnológicas em Curso de dados. Em termos de empre-
parece ser uma demanda irreversí-
go, haverá elevação de pessoal de
vel. Em termos práticos isto signifi- Aqui residem as chances de maio- média e alta qualificação e queda na
ca a busca de padrões de emprego res transformações no perfil dos demanda de pessoal menos qualifi-
mais flexíveis e amigáveis, o que só empregos e novos requisitos de cado. Haverá expansão da busca por
poderá ocorrer pelo aumento do habilidade dos trabalhadores. Exis- profissionais tais como técnicos em
diálogo entre empresas e trabalha- tem três tendências agrupadas no design, técnicos em plataformas e
dores. A consequência no mercado campo da tecnologia e inovação, programadores de websites e seus
de trabalho será uma ampliação de conforme vemos no Quadro 2: (i) aplicativos (apps).
empregos do tipo “tempo parcial”, digitalização da produção; (ii) de-
“f lextime”, “ job sharing”, “ home senvolvimento da tecnologia da As tecnologias convergentes tam-
working”. Outra consequência será informação (ICT- iniciais do título bém serão importantes na remo-
que, no âmbito das empresas, seus em inglês) e tecnologias convergen- delação do mercado de trabalho
departamentos de recursos huma- tes entre disciplinas e campos de
no futuro. A convergência entre
conhecimento.
nos e jurídicos deverão se adaptar nanotecnologia, tecnologia da in-
para viabilizar a ampliação dessas formação, biotecnologia e outras
A digitalização da produção re-
novas ocupações. presenta uma nova era na indus- ciências cognitivas causará sérias
trialização. Com ela são possíveis rupturas nos modelos tradicionais
As mudanças no ambiente de tra- sistemas de produção totalmente dos negócios, criando a necessida-
balho aparecem como outro fato automatizados. A técnica da im- de de novos profissionais. No caso
marcante do futuro imediato da so- pressão em 3D conduz a forma da área da saúde, o desenvolvi-
ciedade. Os padrões de emprego e mais complexa, mas permite que o mento da biociência, da tecnologia
trabalho estão e continuarão sendo processo produtivo seja bastante hospitalar e farmacêutica modi-
muito pressionados para o aumen- descentralizado. O impacto será ficará intensamente as carreiras
to da flexibilidade nas relações de de fortes aumentos da produtivi- de médicos, enfermeiros e outros
emprego, e para que se adequem à dade e redução dos empregos nas técnicos do setor.
volatilidade dos negócios. Em ter- atividades de rotina. Isto elevará a
mos da tipologia de empregos, des- demanda por trabalhadores de alta Em termos de emprego serão de-
pontará a maior maleabilidade de qualificação e polivalentes. mandados profissionais de alta
empresas, sindicatos e trabalhado- qualificação como cientistas espe-
O desenvolvimento da ICT, entre
res. Na prática, as atividades serão cializados e engenheiros da saúde.
outros aspectos, mostrar-se-á e fa-
na base de projetos, por onde tran- Outro tipo de trabalhador indis-
cilitará o manejo de grandes bancos
sitarão os trabalhadores. Outro de dados (big data). Levará ainda à pensável será aquele que possuir
aspecto será o emprego atuando na ampliação dos processos de minia- conhecimento e habilidade para
base de equipes polivalentes. Em turização, a nanotecnologia, com o atuar na intercessão das ciências e
termos de produtividade, haverá consequente crescimento de inú- que conseguir transformar ideias
paulatina mudança de uma cultura meros aparelhos pequenos, de alta de negócios em ações que resultem
baseada no “monitoramento por mobilidade, que se combinam entre em sucesso.

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temas de economia aplicada 13

Quadro 2 – Tendências Globais Moldando o Futuro do Trabalho: Implicações para a Tipologia dos Empregos –
Escopo: Tecnologia e Inovação

Fonte: Elaboração do autor, com base em: UKCES (2014, p. 22-24); OECD (2016); ROSSOTTO, KUEK e PARADI-GUILFORD (2012).

3.3 Tendências Globais Determinadas pelo Rit- campo dos negócios e na evolução da economia, seja
mo e pelas Mudanças nos Negócios e Novos pela mudança do eixo econômico ao contemplar os
Rumos Regionais da Economia Global emergentes e a Ásia, seja pela maior volatilidade de
praticamente todos os mercados mundiais. Não causa
A globalização e a internacionalização dos mercados surpresa que teremos implicações na tipologia dos
são acontecimentos irreversíveis. Um resultado disto empregos e nas habilidades requeridas dos trabalha-
é que este processo também apresenta tendências no dores (ver Quadro 3).

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14 temas de economia aplicada

Quadro 3 – Tendências Globais Moldando o Futuro do Trabalho: Implicações para a Tipologia dos Empregos –
Escopo: Negócios e Economia

Fonte: Elaboração do autor, com base em: UKCES (2014, p. 25-27); OECD (2016); ROSSOTTO, KUEK e PARADI-GUILFORD (2012).

Uma tendência clara neste contexto é de aumento na subutilização do desta tendência para os empregos
é a de fortes e constantes mudan- capital humano, com os trabalha- ao redor do mundo. É possível que,
ças nas perspectivas econômicas dores de alta qualificação dispu- nos países desenvolvidos, os tra-
locais, regionais e mundiais num tando o mercado de trabalho com balhadores de baixa qualificação
quadro de maior complexidade e aqueles menos qualificados, sendo
tenham que ser absorvidos pelo
grande volatilidade da economia o desemprego o destino final des-
setor ser viços, em decorrência
e do sistema financeiro. O setor tes. Sob a ótica das empresas, have-
empresarial precisará responder rá um movimento de transferência da queda nos empregos menos
a isto com a criação de cadeias de dos riscos para os trabalhadores qualificados na indústria, em fun-
valor mais resilientes administra- por meio do uso de contratos mais ção da realocação da produção às
das por políticas e estratégias de flexíveis. nações emergentes. Além disso,
gestão de risco. O panorama fu- haverá pressão para a elevação
turo será de baixo e instável nível Outra tendência marcante é a mu-
dos salários do pessoal qualificado
de crescimento econômico, com dança do eixo econômico para os
nos desenvolvidos, uma vez que
surgimento frequente de períodos emergentes, especialmente os da
Ásia, e a consequente queda de os trabalhadores dos emergentes
recessivos.
importância dos países desenvol- responderão com aumento de pro-
Em relação ao impacto sobre a ti- vidos, inclusive o G7. Ainda não dutividade ao se consolidar o cres-
pologia dos empregos a tendência há clareza sobre a exata dimensão cimento industrial.

junho de 2017
temas de economia aplicada 15

3.4 A importância dos recursos inegável que o crescimento econô- novos empregos, especialmente na
humanos e das questões am- mico global tem promovido uma construção civil. Por outro lado, as
bientais para os empregos no crescente demanda pelos recursos soluções técnicas locais elevarão
futuro naturais e matérias- primas, e uma a demanda por artesãos e comer-
exploração excessiva dos mesmos. ciantes pequenos. Outro impacto
O Quadro 4 mostra a tendência Nesse sentido, haverá crescente positivo sobre o emprego advirá
do futuro do trabalho originado pressão sobre o setor de energias do equacionamento do problema
pelas condições ambientais. De renováveis visando garantir a sus- hídrico, particularmente na indús-
fato, ainda que a humanidade tenha tentabilidade dos setores indus- tria e engenharia voltadas para
revelado preocupação com isto, é triais e de serviços. Assim, surgirão questões aquíferas.

Quadro 4 – Tendências Globais Moldando o Futuro do Trabalho: Implicações para a Tipologia dos Empregos –
Escopo: Recursos e Meio Ambiente

Fonte: Elaboração do autor, com base em: UKCES (2014, p. 28); OECD (2016); ROSSOTTO, KUEK e PARADI-GUILFORD (2012).

3.5 Tendências Baseadas na Legislação Traba- Nesta perspectiva, caminha-se para uma importância
lhista e Sindical e nas Políticas Públicas decrescente das políticas públicas diante das restri-
ções cada vez maiores impostas pela desarticulação
A realidade atual da humanidade indica uma situação das finanças públicas dos Estados. Esta é uma tendên-
de falência dos Estados nacionais diante da crescen-
cia que dificilmente se reverterá em futuro próximo.
te demanda por benefícios sociais, causando uma
Embora seja difícil precisar o impacto disto na tipolo-
pressão deficitária nos sistemas de Seguridade Social
gia de empregos, é possível apontar fatos que poderão
(Welfare State), tanto nos países desenvolvidos quanto
ocorrer. O Estado reduzirá sua importância na geração
nos emergentes. São claras as crescentes dificuldades
das nações de sustentar seus sistemas de aposentado- de empregos diretos de natureza pública. Ademais,
rias, a necessidade de educação básica, os sistemas de haverá também um impacto negativo no emprego do
saúde com um mínimo de qualidade, a oferta de bens setor privado na medida em que o Estado é, quase
públicos como segurança e justiça num contexto de sempre, o maior demandante de obras de infraestru-
baixo crescimento como tem ocorrido neste século. tura e outras oferecidas pelas empresas privadas.

junho de 2017
16 temas de economia aplicada

Quadro 5 – Tendências Globais Moldando o Futuro do Trabalho: Implicações para a Tipologia dos Empregos –
Escopo: Legislação e Políticas

Fonte: Elaboração do autor, com base em: UKCES (2014, p. 29); OECD (2016); ROSSOTTO, KUEK e PARADI-GUILFORD (2012).

4 Considerações Finais Por fim, outra evidência é que as http://blogs.worldbank.org/jobs/digitization-


Instituições deverão se preparar unlikely-destroy-jobs-may-increase-inequali-
ties>. Acesso em: 07 jun. 2017.
Este texto buscou apresentar ao para oferecer serviços e benefícios
AUTOR, D. H. Why are there still so many
leitor a importância das tendências a um trabalhador cada vez mais
jobs? The history and future of workplace
globais, agrupadas em variados exigente, pois tem emergido, com automation. Journal of Economic Perspec-
tópicos, sobre o futuro do trabalho, muito vigor, uma tomada de consci- tives, v. 29, n.3, p 3-30, 2015.
restrito este apenas ao emprego ência da sociedade de que é preciso FREY, C.; OSBORNE, M. The future of employ-
dos indivíduos, numa perspectiva buscar caminhos para um novo ment: how susceptible are jobs to comput-
equilíbrio entre a vida profissio- erization? University of Oxford, 2013.
para os próximos 20 anos. Não
houve qualquer preocupação em nal e a vida social dos indivíduos. GOOS, M.; KONNINGS, J.; RADEMAKERS, E.
Esta nova postura parece ser uma Future of work in the digital age: evidence
quantificar o volume de empregos from OECD countries. Ku Leuvan, Utrecht
a serem gerados nem com a emer- demanda irreversível. Em termos
University, Randstad, Yearly Report on
gência e desaparecimento de seto- práticos isto significa a busca de Flexible Labor and Employment, 2016.
res decorrentes destas tendências. padrões de emprego mais flexíveis
KEYNES, J.M. The economic possibilities for
e amigáveis, o que só poderá ocor- our grandchildren. In: KEYNES, J.M. Essays
Parece transparecer que, indepen- rer pelo aumento do diálogo entre in Persuasion. London: Macmillan, 1931.

dentemente do fato gerador que empresas e trabalhadores. OECD. Automation and independent work
in a digital economy. Policy Brief on The
influencie o futuro do trabalho, é Future of Work, Paris, may 2016.
uma polarização entre ocupações Referências
RIFKIN, J. The end of work: technology, jobs,
de baixa qualificação e aquelas de and your future. New York: Putnam, 1995.
alta qualificação, com o desapare-
ARNTZ, M.; GREGORY, T.; ZIERAHN, U. The ROSSOTTO, C. M.; KUEK, S.C; PARADI-GUIL-
cimento de ocupações de nível de risk of automation for jobs in OECD coun- FORD, C. New frontiers and opportunities
qualificação intermediário. Além tries: a comparative analysis. OCDE Social, in work - ICT is dramatically reshaping the
disso, haverá crescente necessi- Employment and Migration Working global job market. ICT Policy Notes, n. 3.
Papers, no. 189. OECD Publishing, Paris, Washington, The World Bank, june 2012.
dade de trabalhadores muito bem 2016. Disponível em: <http://dx.doi.
THE ECONOMIST. The future of jobs. 2014.
treinados, que se adaptem a uma org/10.1787/5jlz9h56dvq7-en>.
Disponível em: <http://www.econo-
realidade de mercado de trabalho ______. Digitization is unlikely to destroy jobs, but mist.com/news/briefing/21594264-
em constante transformação. may increase inequalities. 2016 Disponível em: < previous-technological-innovation-has-

junho de 2017
temas de economia aplicada 17

always-delivered-more-long-run-employment-not-less>. Acesso
em: 07 de jun. 2017.
UK Commission for Employment and Skills. The future of work: jobs
and skills in 2030. Evidence Report 84, London, February 2014.
VILORIO, Dennis. STEM 101: Intro to tomorrow’s jobs. 2014. Dis-
ponível em: <www.bls.gov/ooq>. Acesso em: 07 jun. 2017.

(*) Professor Titular da FEA/USP (aposentado) e Pesquisador Sênior


1 Neste presente texto nos concentraremos em apreciar os impactos da FIPE. O autor agradece à estagiária de pesquisa Thais Harumi
dessas tendências globais no perfil dos empregos (tipos de emprego Hanai Takeuchi, aluna do curso de Ciências Econômicas da FEA/USP,
que surgirão, setores onde surgirão etc.), ficando para uma próxima pelo competente apoio na pesquisa bibliográfica, organização e elabo-
edição do Boletim a apresentação dos impactos sobre as habilidades ração da figura e dos quadros contidos no texto. O autor agradece o
que serão requeridas dos trabalhadores. esforço e dedicação demonstrados por ela. (E-mail: jpchahad@usp.br).

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18 temas de economia aplicada

‘Staple School’: Breve Apresentação Sobre a Teoria Desenvolvi-


mentista Canadense
Julio Lucchesi Moraes (*)

No quarto artigo da série de re- Um primeiro aspecto problemático teria sido amplamente influen-
flexões sobre a Economia Política ao leitor brasileiro (ou mais ampla- ciada por cumulativos efeitos de
Canadense, nossas discussões se mente, ao leitor latino-americano) uma mentalidade econômica par-
concentrarão em esmiuçar a prin- decorre da inexistência de uma ticular (a “elite compradora” de
cipal contribuição teórica do país: tradução direta do termo Staple produtos acabados importados).
a chamada Staple Theory (ST), tra- em português. Ao longo da revisão Esse padrão, em grande medida,
bibliográfica foram encontradas traria um efeito retardante no
duzida de maneira tateante como
traduções como “recursos básicos” desenvolvimento industrial do
uma Teoria desenvolvimentista ca-
(Subtil, 2011), “produto principal” país. Riqueza e poder político
nadense. O objetivo desta curta
ou “produto primário de exporta- teriam se concentrado nas mãos
reflexão é apresentas as premis- ção” (Hirschman, 2008), “bem pri- de elites políticas e econômicas –
sas e a contextualização geral da mário”, commodity ou “commodity usualmente classes sobrepostas
ST. Apresentaremos os principais intensiva em recursos naturais” ou, – retroalimentando um padrão
tópicos analíticos dessa escola, por vezes, simplesmente “recursos
dependente de desenvolvimento.
estabelecendo um léxico inaugural naturais” (Cf. Reis, 2012). O termo
sobre o qual retornaremos com torna-se ainda mais problemático (iii) Dentro desse contexto, a Histó-
mais profundidade nos próximos quando vemo-lo sob a variante ria seria a disciplina elementar
“indústria” ou “indústrias” de Sta- para a compreensão da Economia
artigos da série.
ples. Numa análise sintética, How- Política canadense. Delinear-se-ia
lett e Ramesh (1992) nos auxiliam aí um paradigma interpretativo
1 ‘Staple School’: Contextualiza- na compreensão da ST, indicando único, não redutível ao nível das
ção Geral aquelas que seriam as quatro ca- abstrações teóricas frequentes
racterísticas principais da escola: tanto nas leituras à direita (libe-
Não há outra maneira de compre- rais), quanto à esquerda (ditas
(i) Como ponto de partida, destacam
ender o pensamento histórico e os autores que a ST interpreta a ‘socialistas’);
econômico canadense senão pela História Econômica como uma (iv) Por fim, se é sobre a História que
apresentação de seu paradigma sequência de descobertas de se encontra o cerne explicativo
norteador: a Staple Theory (ST). commodities de exportação, sobre da ST, teria uma contingência
A ST marcou o ambiente político, as quais a economia nacional pas- geográfica (as barreiras físicas e
acadêmico e econômico canadense saria a depender e a partir da qual topográficas da paisagem cana-
ao longo de praticamente todo o firmar-se-ia todo um ecossistema dense) que explicaria a gênese
século XX e sua validade, ainda nos político-econômico. e a dinâmica do estado numa
dias de hoje, segue sendo ampla- (ii) Como decorrência dessa estru- economia de mercado Staple-
mente debatida. turação, a vida política canadense -dependente.

junho de 2017
temas de economia aplicada 19

2 Uma Teoria Aberta: Escopo inter-regionais? Em outras pala- Como não poderia deixar de ser, as
Analítico da ‘Staple School’ vras: como endogeneizar ao nível respostas são amplamente varia-
intracolonial as interações centro- das. É compreensível, outrossim,
A caracterização proposta -periferia, metrópole-fronteira? a estranheza causada pelo fato de
por Howlett e Ramesh (idem) indi- Igualmente importante, que fontes que muitos desses temas parecem
ca tão somente um esquema criado mobilizar e como atingir a objeti- se adequar mais à uma análise de
para finalidades pedagógicas. De vidade científica na detecção de países latino-americanos do que a
fato, é fundamental ressaltar as padrões e causalidades de longa uma nação membra do G7, o grupo
variações internas ao longo da he- duração? de países mais desenvolvidos do
terogênea Escola das Staples. Após mundo. Voltaremos a enfrentar
praticamente um século de produ- Como compreender (e, novamen- esse ‘problema de identidade’ ca-
ção acadêmica no tema – sem men- te, quais fontes mobilizar e quais nadense em artigo futuro. Discu-
cionar um sem número de políticas métodos analíticos aplicar) a su- tiremos também quais aspectos
públicas amplamente influenciadas posta mentalidade das elites locais aproximam e afastam a ST de teo-
por essa tradição – é impossível “compradoras” ao longo da longa rias semelhantes, como o estrutu-
falar em uma ST canadense ho- duração histórica canadense? ralismo latino-americano ou a(s)
mogênea ou uma. Pelo contrário: teoria(s) da Dependência.
as obras de Clement (1985) e Neill Seriam as premissas da ST ainda
(1991) – para citar apenas dois dos aplicáveis na contemporaneidade De fato, exemplos de um descon-
muitos levantamentos bibliográ- e, se sim, seria o petróleo a nova forto intelectual gerado pela ST
ficos – apresentam algumas das Staple nacional? Em que medida a se fazem presentes também nas
variações temáticas produzidas. dinâmica dessa commodity se har- revisões bibliográficas por nós
Não teríamos condições de proble- monizaria com a dos outros produ- consultadas. Howlett e Ramesh
matizá-las todas, cabendo, por ora, tos básicos sobre os quais o Canadá (1992) veem a ST como uma teoria
a apresentação do que julgamos ser dependeu em seu passado? do desenvolvimento ‘novo mun-
as principais questões de pesquisa dista’ e passível de algum nível
enfrentadas por autores locais: Em que medida o desenvolvimento de reprodutibilidade a países com
da economia canadense encontrar- condições históricas e geográficas
Teria alguma das Staples cana- -se-ia ainda preso à chamada “ar- ‘semelhantes’ à do Canadá. Quais
denses (a pele, a madeira, a pesca, madilha das Staples”? Não teriam seriam, contudo, esses países – e,
o ouro, o papel/ celulose, o trigo os distintos ciclos de industrializa- ainda mais importante, quais se-
etc.) obtido primado explicativo ção e, mais recentemente, de ser- riam exatamente essas ditas con-
em detrimento das demais? Isto é: vicificação dado conta de superar dições ‘semelhantes’ – seguem uma
seria possível enxergar um impac- a condição primário-exportadora questão em aberto. Aproximações
to socioeconômico supostamente do país obsoletando, portanto, os da ST canadense com estudos con-
mais marcante ou duradouro como pilares básicos da ST? gêneres de países como a Austrália
decorrência do ciclo de exploração e a Nova Zelândia são relativamen-
de uma commodity específica em Finalmente, se entendermos a ST te usuais. Conexões que trabalham
relação às demais? como uma teoria de desenvolvi- com homologias mais amplas –
mento ou uma teoria do crescimen- buscando semelhanças com a co-
Como incorporar à modelagem to, em que medida não teríamos lonização europeia na África ou na
explicativa as relações de desigual- aí um modelo explicativo restrito América do Sul, contudo, parecem
dade (ou de efetiva exploração) exclusivamente ao caso canadense? ser mais problemáticas.

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20 temas de economia aplicada

Referências

CLEMENT, W. Factors of development: resources and staples. In: _____;


DRACHE, Daniel. The new practical guide to Canadian political
economy. Toronto: James Lorimer & Co., 1985. Cap. 1, p. 1-9.
HIRSCHMAN, Albert. Desenvolvimento por efeitos em cadeia: uma
abordagem generalizada. In: SORJ, Bernardo; CARDOSO, Fernando
Henrique; FONT, Maurício (Org.). Economia e movimentos sociais
na América Latina. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas
Sociais, 2008. p. 21-64.
HOWLETT, Michael; RAMESH, M. Staples political economy. In:
______. The political economy of Canada: an introduction. Toronto:
McClelland and Steward, 1992. Cap 4, p. 92-109.
NEILL, Robin. The staples thesis, 1920-40. In: ______. A History of
Canadian economic thought. Londres e Nova York: Routledge,
1991. Cap.8, p. 129-148.
REIS, Cristina Fróes de Borja. Recursos naturais e desenvolvimento
econômico: da especialização à diversificação produtiva e expor-
tadora nos SEANICs. Tese (doutorado) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Economia, Programa de Pós-Graduação (*) Graduado em Ciências Econômicas, Doutor em História Econômica
em Economia, 2012. 232p. pela Universidade de São Paulo e Pesquisador do Grupo de Pesquisas
em Economia Geopolítica da Universidade de Manitoba. É bolsista de
SUBTIL, Filipa. “Harold A. Innis. O Viés da Comunicação”, Comuni- pós-doutorado da Mitacs.
cação Pública, v. 8, n. 13, 2013, p. 125-130. (E-mail: julio.moraes@usp.br).

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temas de economia aplicada 21

Sinalização de Qualidade e Oligopólio: o Caso do Chevrolet Meriva


Luiz Henrique Superti (*)

1 Introdução seu ano de lançamento (Chevrolet consumidores atestem sua qualida-


3
Meriva), é compatível ao modelo de. Se os consumidores verificarem
Muitas vezes, os altos preços dos proposto. O modelo apresentado a boa qualidade do produto, a firma
automóveis brasileiros são asso- pelos autores, no entanto, supõe a ent ão aument a os preços. Este
ciados à elevada carga tributária, entrada de um monopolista em um pode ser um canal do aumento dos
falta de infraestrutura (o chamado mercado desconhecido. Estendere- preços verificados no Brasil.
“custo Brasil”), ou simplesmente mos o modelo para o caso de uma
devido à política de preços pratica- firma que queira entrar em um Tecnicamente, os resultados são
da pelas montadoras. Não é difícil oligopólio. estendidos da seguinte maneira:
encontrar reportagens apontando há uma firma querendo participar
1
essas teorias. Este estudo sugere 2 Modelo de um oligopólio que compete por
um canal em que esse aumento de quantidade (Cournot) atuante em
preços esteja operando. Como a De acordo com o modelo, um mo- um mercado, em que todas (inclu-
indústria automobilística se asse- nopolista, caso aufira lucros nesse sive a entrante) produzem um pro-
melha a um oligopólio, as empre- mercado, colocará o preço de sua duto, de certo grau homogêneo e
sas podem auferir lucros, e uma mercadoria de boa qualidade em de boa qualidade. No entanto, como
firma entrante deseja capturar um valor baixo no primeiro pe- nenhum consumidor consegue au-
parte desses lucros. Mas os consu- ríodo, para então subir ao valor ferir a qualidade do novo produto,
midores não conseguem verificar natural de monopólio nos períodos a firma entrante deve sinalizar que
a qualidade de um automóvel de posteriores. Isto ocorre como efei- seu produto é de boa qualidade.
uma montadora que acabou de to de uma sinalização. Os consumi- Isso será feito através da sinaliza-
entrar no mercado. A firma en- dores não conhecem a qualidade ção apresentada no modelo origi-
trante reduz o preço como forma verdadeira do produto. Para ter a nal, em que a firma reduz o preço
de “interessar” os consumidores e, qualidade de seu produto auferida, até o custo do produto de baixa
uma vez adquirindo uma clientela, o monopolista reduz o preço de seu qualidade. Claramente, o mercado
aumenta o preço para o patamar de produto e, uma vez capturando o do oligopólio será ameaçado e,
oligopólio. mercado, ele aumenta o seu preço. dessa forma, o oligopólio compete
com a firma entrante no primeiro
Com base em um modelo de sina- Tal processo pode ser estendido período, através de um modelo de
lização de qualidade através de para um oligopólio. A questão é Bertrand (competição por preços)
preços em Macho-Stadler e Pèrez- particularmente interessante na com produtos diferenciados, uma
2
-Castrillo (2001) será analisada indústria automobilística, prin- vez que a qualidade do produto da
a entrada do Honda Fit que, não cipalmente na abertura comer- nova firma é incerta. No segundo
tendo um modelo similar lançado cial brasileira pós década de 90. período, após a qualidade do pro-
anteriormente pela Honda e tendo Uma firma entrante pode reduzir o duto ser aprovada, a firma entrante
somente um concorrente direto em preço de seu automóvel para que os “participa” do oligopólio, o que faz

junho de 2017
22 temas de economia aplicada

4
os preços subirem até o patamar Todas as firmas então podem subir da Revista QuatroRodas, foram
estável do mercado. o preço (a entrante mais que as coletadas informações referen-
outras), de forma que o preço e tes ao Fit e ao Meriva, nos seguin-
Com este modelo, temos como quantidades produzidas cheguem tes períodos: Mês de lançamento
consequência que a nova firma a um novo equilíbrio, similar ao
do Honda Fit (mai/03); 6 meses
entra com o preço de seu produ- do oligopólio anteriormente, mas
após o lançamento (nov/03); 9
to reduzido (abaixo do preço de com preço menor, dado que há
mais uma firma participando. O meses depois (fev/04); 1 ano de-
oligopólio) para sinalizar a sua
desenvolvimento desse modelo pois (mai/04), e 14 meses (jul/04).
qualidade (assim como no modelo
encontra-se no apêndice. Dados dos veículos mais vendidos
monopolista); porém, as outras
firmas respondem a essa entrada no país foram incluídos (Palio e
alterando o preço de seus produ- Gol) para verificar se mudanças de
3 Análise Estatística
tos, mas ainda acima do preço da preço não foram decorrentes de
firma entrante. Após o item da Utilizando dados de preços e quan- “contágios” no setor. A Tabela 1 for-
firma “externa” ter sua qualidade tidades vendidas, disponibilizados nece os preços enquanto a Tabela 2
atestada, ela entra no oligopólio. pelas montadoras através do site informa as quantidades vendidas.

Tabela 1 - Preços Praticados por Montadoras – Veículos Selecionados

Preço – Em R$ (variação % em relação ao período anterior)


Variação
Automóvel Mai/03 Nov/03 Fev/04 Mai/04 Jul/04
Acumulada (%)
Fit LX 33.960 32.968 (-2,9) 34.980 (6,1) 37.410 (6,9) 38.160 (2,0) 12,37
Fit LXL 36.600 35.531 (-2,9) 37.650 (6,0) 40.690 (8,0) 41.505 (2,0) 13,40
Meriva 1.8* 35.776 37.926 (6,0) 37.569 (-1,0) 39.159 (4,2) 39.825 (1,7) 11,32

Palio EX 1.0 22.342 23.120 (3,5) 21.680 (-6,2) 22.890 (5,6) 23.720 (3,6) 6,17
Gol city 1.0 19.259 20.064 (4,2) 19.150 (-4,5) 20.629 (7,7) 21.039(2,0) 9,24
Gol plus 1.0 21.148 21.919 (3,6) 20.958 (-4,4) 22.125 (5,6) 22.568 (2,0) 6,71

Fonte: Elaboração própria a partir de dados obtidos pela revista Quatro Rodas.
Nota: *Média dos modelos vendidos a gasolina para 2003; modelos flex a partir de 2004.

Tabela 2 - Quantidades Vendidas – Veículos Selecionados

Quantidade (participação do mercado de monovolume – em %: Fit e Meriva)


Variação
Automóvel Mai/03 Nov/03 Fev/04 Mai/04 Jul/04
Acumulada (%)
Fit 1.238 (40,4) 2.277 (56,3) 2.237 (61,1) 2.498 (63,9) 2.845 (65,2) 129,8
Meriva 1.824 (59,6) 1.767 (43,7) 1.426 (38,9) 1.411 (36,1) 1.516 (34,8) -16,9
Palio 9.255 11.203 7.434 9.987 12.060 30,3
Gol 13.932 13.928 13.548 14.011 14.566 4,6

Fonte: Elaboração própria a partir de dados obtidos pela revista Quatro Rodas.

junho de 2017
temas de economia aplicada 23

Verifica-se pelas tabelas que ambos um preço maior, foi o que teve o dos automóveis brasileiros, este
os modelos do Honda Fit come- maior crescimento relativo nas patamar pode chegar a um nível
çaram a um preço próximo ao da vendas (Tabela 2). A estabilização elevado, praticamente gerado por
Chevrolet Meriva. Mas logo no se- do Fit também permitiu à Meriva um oligopólio-cartel, e não é di-
gundo período, a Meriva aumentou subir gradualmente o seu preço fícil algum veículo midiático al-
de preço (não reduzindo muito as (o que pode ter contribuído para cunhar esse nível de preços de
vendas), enquanto o Fit manteve a queda de suas vendas, mas isso “lucro-brasil”. Seguindo o modelo
o preço, provavelmente para con- pode ter ocorrido também à con- de sinalização da qualidade atra-
tinuar o processo de assimilação corrência, a mudanças nas prefe- vés de preços, pode-se dizer que
de qualidade pelos consumido- rências no consumidor etc); ambos uma empresa entra com um item
res. O aumento de suas vendas é tiveram variações finais parecidas relativamente mais barato apenas
considerável em novembro. Em no preço, e acima dos carros mais
para “sinalizar” sua qualidade,
fevereiro, mostra-se um aumento vendidos. Dessa maneira, não se
desconhecida pelo consumidor no
no seu preço (se aproximando do rejeita a suposição de que os au-
aumento anterior do concorrente primeiro momento, para então agir
mentos relativos ocorreram de
e dos carros populares), sem dimi- posteriormente como uma firma
forma deliberada, e não devido
nuir a quantidade vendida. Já a Me- monopolista/participante de um
a aumento de custos no setor, já
riva teve uma pequena queda nas oligopólio. A análise desenvolvida,
que os carros mais produzidos so-
vendas, mesmo com a ligeira queda tendo como exemplo a entrada do
frem, de maneira considerável, com
em sua cotação. Um ano após seu pressão nos custos. Tal fato pode Honda Fit no mercado brasileiro,
lançamento, o Honda Fit apresen- corroborar um dos resultados do dá base aos resultados que o mo-
ta outro aumento em seus preços modelo: quando um novo produto delo apresenta: o novo automóvel
(acima dos carros mais vendidos), de preço reduzido entra no merca- entra relativamente mais barato
com aumento das vendas; a Meriva do, há uma queda nos preços dos (carros parecidos têm seus preços
apresentou aumento também (mas produtos análogos (a firma entran- reduzidos ou mantidos em pata-
abaixo dos carros populares), sem te deve sinalizar a qualidade de seu mar baixo) e, após ter sua qualida-
queda expressiva em suas vendas. produto e as concorrentes devem de atestada, tem seu preço elevado
Poucos meses depois, em julho, há manter o preço baixo para que as (bem como os de seus concorrentes
um aumento sistemático – pelo vendas não caiam tanto) para que, similares), convergindo para os
menos nos carros avaliados – nos após a constatação da qualidade do preços que seriam praticados em
preços dos automóveis, mantendo novo artigo pelos consumidores, o um oligopólio. Vale lembrar, no
a situação de maio. Vale notar, no oligopólio possa subir o nível dos entanto, como qualquer outro mo-
entanto, que as vendas do Honda
preços, maximizando o lucro das delo, há certas condições difíceis de
Fit continuaram a subir.
firmas participantes. serem encontradas no mundo real,
Pode-se supor que, cerca de um e os resultados encontrados podem
ano depois, o Honda Fit foi assimi- 4 Conclusões ter sidos influenciados por outros
lado pelo mercado (superando até fatores, como alterações da renda
mesmo a Meriva), possibilitando Este est udo procurou mostrar ou preferências dos consumidores,
um aumento em seu preço acima como certos produtos, após sua modificações estruturais da firma,
dos carros mais vendidos no país, entrada no mercado a um preço mudanças macroeconômicas, in-
como pode ser verificado na última baixo, têm sucessivos aumentos flação, políticas governamentais,
coluna da Tabela 1. Mesmo com até um patamar estável. No caso entre outros.

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24 temas de economia aplicada

Apêndice: Modelo de sinalização para Oligopólio

Seja a demanda no período 2, dada por: P2(Q)= a-bQT (a,b >1);

P2: Preço de equilíbrio;

n: número (finito) de firmas no mercado;

qi: Quantidade produzida pela firma i;

QT =Σqi/n: Quantidade total produzida pelas firmas;

CMg=CMe=ci: Custo Marginal e médio de produção constante da firma i;

= Σci/ n = Custo médio de produção do mercado;

: custo de produção do produto de boa qualidade da firma entrante k ( ;

: custo de produção produto de qualidade ruim da firma entrante k ( ;

d: fator de desconto de receitas futuras.

Cada firma maximiza o seu lucro πi:

Resolvendo para cada firma, têm-se:

Verifica-se que: . Dessa forma, o lucro total das firmas, trazido a valor presente:

Mas sabemos que, do modelo de sinalização, a firma entrante deve indicar ao consumidor a qualidade de seu
produto impondo preço do primeiro período Assim:

junho de 2017
temas de economia aplicada 25

Supondo que o lucro total da firma entrante seja positivo (assim como o do oligopólio), resta saber qual o
preço que o oligopólio colocaria no primeiro período, dada a concorrência da firma entrante.

Bertrand

Sejam as demandas das firmas no primeiro período:

Como o preço da firma entrante está fixo, basta maximizar a função lucro do oligopólio:

Conclui-se: .

Isto é, o oligopólio pode reduzir o preço, mas acima do estabelecido pela firma entrante. O lucro pode existir
no primeiro período se:
→ .

Dessa maneira:

4 Dados disponíveis nas edições do acervo digital: http://qua-


1 Reportagem - http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1200992- trorodas.abril.com.br/acervodigital/home.aspx e na página:
tendenciasdebates-o-lucro-brasil-das-montadoras.shtml http://quatrorodas.abril.com.br/autoservico/top50/2013.
2 MACHO-STADLER, I.; PÈREZ-CASTRILLO, J.D. An introduction to the shtml.
economics of information. Incentives and contracts. 2nd edition. Oxford
University Press, 2001, páginas 212-213.
3 Segundo reportagem da Revista QuatroRodas, edição de maio de (*) Mestrando em Economia IPE/USP.
2003. (E-mail: luiz.superti@usp.br).

junho de 2017
26 temas de economia aplicada

Relatório de Indicadores Financeiros1


Núcleo de Economia Financeira da USP – nefin-FEA-USP (*)

Em 02/jan/2012 foram (teoricamente) investidos R$ em ações de empresas com alta razão “valor contábil-
100 em quatro carteiras long-short tradicionais da -valor de mercado” e vendida em ações de empresas
literatura de Economia Financeira. O Gráfico 1 apre- com baixa razão; (4) Carteira Momento: comprada em
senta a evolução dos valores das carteiras. (1) Carteira
ações de empresas vencedoras e vendida em ações de
de Mercado: comprada em ações e vendida na taxa de
juros livre de risco; (2) Carteira Tamanho: comprada empresas perdedoras. Para detalhes, visite o site do
em ações de empresas pequenas e vendida em ações NEFIN, seção “Fatores de Risco”: <http://nefin.com.br/
em empresas grandes; (3) Carteira Valor: comprada risk_factors.html>.

Gráfico 1 – Estratégias de Investimentos (Long - Short) (02/01/2012 - 09/06/2017)

Tabela 1

Tamanho Valor Momento Mercado

Semana 0,77% -0,62% 0,76% -1,02%


Mês Atual 0,85% -1,19% -1,04% -1,38%
Ano Atual 18,52% -1,18% 4,36% 0,55%
2010-2017 -46,16% -37,51% 289,72% -38,91%

junho de 2017
temas de economia aplicada 27

O Gráfico 2 apresenta a evolução histórica do dividend yield do mercado acionário brasileiro: razão entre o total
pago de dividendos nos últimos 12 meses pelas empresas e o valor total das empresas hoje. Essa é tradicio-
nalmente uma variável estacionária (reverte à média) e é positivamente correlacionada com o retorno futuro
esperado dos investidores. Ou seja, é alta em momentos ruins (de alto risco ou alta aversão ao risco), quando
os investidores exigem retorno esperado alto para investir no mercado, e baixa em momentos bons. A Tabela 2
apresenta o inverso do dividend yield, conhecido como Razão Preço-Dividendo, de algumas empresas. Ordenam-
-se os papéis da última semana de acordo com essa medida e reportam-se os papéis com as dez maiores e dez
menores Razões Preço-Dividendo.

Gráfico 2 – Dividend Yield da Bolsa (01/01/2009 - 09/06/2017)

Tabela 2

Dez Maiores Dez Menores

Papel Preço-Dividendo Papel Preço-Dividendo


1. DTEX3 934,66 ESTC3 10,17
2. WEGE3 280,85 BRSR6 14,92
3. ANIM3 268,51 ABCB4 16,02
4. RADL3 246,12 MPLU3 16,29
5. MGLU3 242,08 BBSE3 17,76
6. NATU3 223,42 CESP6 18,89
7. MYPK3 212,30 ITSA4 19,06
8. LAME4 200,87 DIRR3 19,30
9. CVCB3 193,99 POMO4 20,72
10. GGBR4 189,21 GRND3 20,80

junho de 2017
28 temas de economia aplicada

O Gráfico 3 apresenta a evolução histórica do short in- empresa. O short interest do mercado, apresentado no
terest do mercado acionário brasileiro e a taxa média gráfico, é a média (ponderada por valor) dos short in-
de aluguel de ações. O short interest de uma empresa terest individuais. A Tabela 3 reporta os cinco maiores
é dado pela razão entre a quantidade de ações em alu-
short interest individuais e taxas de aluguel da semana
guel e a quantidade de ações outstanding da empresa.
Mede assim o estoque de vendas a descoberto reali- passada, tanto em nível como primeira diferença (no
zadas com as ações da empresa, tendendo a ser maior caso deste último, são excluídos os papéis que tiveram
em momentos de expectativa de queda no valor da variação negativa).

Gráfico 3 – Mercado de Aluguel de Ações (01/01/2013 - 09/06/2017)

Tabela 3

Cinco Maiores da Semana

Short interest Taxa de Aluguel


1. USIM5 9,85% DASA3 42,00%
2. ELPL4 7,29% MGLU3 41,36%
3. GOAU4 6,47% BPHA3 38,70%
4. RAPT4 6,35% PSSA3 31,75%
5. CPLE6 6,33% PDGR3 30,58%

Variação no short interest Variação na taxa de aluguel

1. OGXP3 2,11% OGXP3 18,95%


2. BRAP4 0,77% BRIV4 5,40%
3. BEEF3 0,51% TCNO4 5,00%
4. QUAL3 0,51% GPIV33 3,95%
5. LIGT3 0,44% CPLE6 3,36%

junho de 2017
temas de economia aplicada 29

O IVol-BR é um índice de volatilidade futura esperada O Gráfico 4A apresenta ambas as séries. O Gráfico
para o mercado acionário brasileiro. É derivado do 4B apresenta a diferença entre o índices, apurando
comportamento dos preços de opções sobre o IBOVES- assim a evolução da incerteza especificamente local.
PA. Já o VIX® é o índice de volatilidade futura espera- Para detalhes, visite o site do NEFIN, seção “IVol-Br”:
da para o mercado americano calculado pela CBOE®. <http://nefin.com.br/volatility_index.html>.

Gráfico 4 – Volatilidade Forward-Looking (01/08/2011 - 31/05/2017)

junho de 2017
30 temas de economia aplicada

1 O NEFIN não se responsabiliza por qualquer dano ou perda oca-


sionados pela utilização das informações aqui contidas. Se desejar
reproduzir total ou parcialmente o conteúdo deste relatório, está au-
torizado desde que cite este documento como fonte. O Nefin agradece
à FIPE pelo apoio financeiro e material na elaboração deste relatório.
2 VIX® e CBOE® são marcas registradas da Chicago Board Options
Exchange. (*) <http://nefin.com.br/>.

junho de 2017
economia & história: relatos de pesquisa 31

eh

Sobre o Estudo dos Escravos Velhos no Brasil: o Estoque de Es-


cravos Idosos em Ribeirão Preto, 1860-1888
Luciana Suarez Lopes (*)

Em 16 de outubro de 1875, era ini- réis.” Na cópia da matrícula1 anexa- como apto para o trabalho, sua
ciado o processo de inventário de da ao processo, foram registradas baixa avaliação denota as limita-
Gabriel de Souza Diniz Junqueira, mais algumas informações. ções de sua condição.
falecido em 22 de maio de 1874
na localidade de Ribeirão Preto. A Eloy era natural do Rio de Janeiro, Como pode ser observado na Tabe-
inventariante era sua viúva, Maria não sabia quem eram seus pais, la 1, nos processos de inventário2
tendo sua filiação registrada como do período selecionado foram ar-
Claudia Nogueira, e constavam da
desconhecida. Considerado capaz rolados 749 cativos, dos quais 73
lista de herdeiros, além da viúva,
para o trabalho, sua ocupação era (9,7%) eram idosos. 3 Essa porcen-
mais dez filhos. Além de possuir
a de pajem. Encontrava-se inserido tagem é quase o dobro da encontra-
um dos maiores plantéis de es-
num plantel de 67 escravos, sendo da por Motta ao analisar as escritu-
cravos dentre os inventariados do
um dos seis escravos com mais de ras de compra e venda de escravos
período, Gabriel possuía um cativo cinquenta anos. Sem nenhum tipo no Oeste Paulista. Conforme Motta
com mais de oitenta anos, chamado de parentesco no plantel e, vale (2010, p. 57), tal resultado era
Eloy, que no momento das avalia- dizer, trabalhando, Eloy provavel- de certa forma esperado, já que
ções foi declarado como tendo 83 mente contava com o apoio de seus se imagina serem as transações
anos de idade. Com valor de apenas irmãos de cativeiro para suprir as envolvendo cativos idosos menos
100$000 rs, Eloy foi assim descrito: eventuais necessidades especiais comuns do que a existência desses
“Eloy, preto, solteiro, oitenta e três derivadas de sua já avançada idade. mesmos cativos no estoque de de-
anos de idade, avaliado em cem mil Ainda que tivesse sido classificado terminada fazenda ou localidade.

junho de 2017
32 economia & história: relatos de pesquisa

Tabela 1 – Estoque de Escravos Velhos – Ribeirão Preto, 1860-1888

Escravos Idosos Total de cativos


Períodos Razão de sexo Percentual de Idosos
Homens Mulheres Total Razão de sexo inventariados
1860-1869 10 5 15 200 119 105 12,6%
1870-1873 9 4 13 225 181 101 7,2%
1874-1880 12 3 15 400 194 106 7,7%
1881-1888 17 13 30 131 255 130 11,8%
1860-1888 48 25 73 192 749 112 9,7%

Fonte: Inventários post-mortem dos Primeiro e Segundo Ofícios de Ribeirão Preto e São Simão.

A maior parte desses cativos ido- cio do período estudado, a idade da lei e a liberdade mandatória
sos, 60,3%, era do sexo mascu- média dos cativos inventariados dos cativos com sessenta anos ou
lino e como consequência dessa na década de 1860 foi calculada mais possa ter incentivado alguns
característica temos razões de em 25,3 anos; já para os anos a não informarem corretamente a
sexo elevadas para esse conjunto, entre 1881 e 1888, esse mesmo idade dos seus escravos, buscan-
variando entre 131 e 400, muito indicador alcançou 32,6 anos. do manter em cativeiro homens e
acima daquela calculada para a mulheres que em teoria deveriam
totalidade dos escravos inven- Contudo, a idade média dos cati- ser libertados. Uma forte razão
tariados, que variou entre 101 vos idosos se comporta de forma para isso seria o desejo de prote-
e 130. Notamos ainda uma con- distinta. Em vez de aumentar, ela ger ou resguardar o patrimônio
centração maior de idosos no diminui entre a década de 1860 e familiar, dado que a liberdade dos
primeiro e último subperíodos, o período 1881-1888. Uma possí- eventuais cativos nessa condição
respectivamente 1860-1869 e vel explicação para esse fato pode representaria a perda de parte
1881-1888. Em parte, essa ocor- ser encontrada na lei dos Sexage- dos bens familiares, comprome-
rência pode ser atribuída à não nários, que em 1885 libertou os tendo a legítima dos herdeiros
homogeneidade da fonte, e sobre escravos com sessenta anos ou ou a capacidade do inventário em
a qual não temos controle. Contu- mais, ocasionando uma diminui- saldar dívidas previamente con-
do, um aumento na porcentagem ção na idade média dos escravos traídas.
de escravos idosos nos últimos velhos ainda em cativeiro ao final
períodos era esperado, já que, do período estudado. Um resul- Com relação ao preço, podemos
sendo limitada a reposição dessa tado interessante é o número de observar que o valor médio do
mão de obra via tráfico, a ten- escravos cuja idade não foi infor- escravo idoso inventariado no
dência seria o envelhecimento mada no momento do inventário. período 1860-1888 foi calculado
natural dos contingentes cativos A participação percentual dessas em 536$709 para os homens e
considerados. ocorrências aumentou ao longo 251$833 para as mulheres. Esses
do período, passando de 2,5% na valores se mostram significativa-
A hipótese do envelhecimento década de 1860 para 14,1% no pe- mente mais baixos do que aqueles
sistemático da população escrava ríodo 1881-1888. Novamente, po- encontrados por Motta (2010).
pode ser confirmada consideran- de-se buscar explicação para esse Nesse estudo, o autor calculou o
do-se as idades médias de todos comportamento na lei dos Sexa- valor médio dos escravos velhos
os escravos inventariados. No iní- genários. Talvez a promulgação transacionados no período 1861-

junho de 2017
economia & história: relatos de pesquisa 33

1887 em 851$818, e das escravas adultas jovens. (MOTTA, 2010, p. Podemos comparar essas baixas
velhas em 552$818. 69-70) avaliações presentes nos inven-
tários com os valores alcançados
Notamos ainda que há uma dife- Uma possível explicação para por escravos idosos transaciona-
rença substancial entre o preço essas disparidades reside no fato, dos em Casa Branca no mesmo
dos escravos idosos e o preço dos já esperado, de que os escravos período. Ao todo, foram locali-
escravos adultos jovens − aque- velhos em trânsito possivelmente zadas 29 transações envolvendo
les cuja idade encontra-se entre estivessem em melhores condi- escravos idosos em Casa Branca,
15 e 29 anos de idade. O preço ções de saúde e possuíssem maior 4
no período 1869-1887. Nesses
médio dos escravos idosos no aptidão para o trabalho do que registros, foi possível identificar
período 1860-1888 correspondeu os velhos nos campos, ou seja, no os preços individuais de dez cati-
a 41,1% do preço médio de um es- estoque, alcançando por essas vos. Esses valores variaram entre
cravo adulto jovem. Considerando razões preços mais elevados. Os 400$000 e 1:500$000, sendo sua
os preços médios de homens e escravos velhos não interessan- média calculada em 853$000 com
mulheres separadamente, ob- tes para o tráfico permaneceriam desvio padrão de 344$933. Tais
servamos que o preço médio de assim no estoque, analisado neste valores reforçam nossa hipótese
um escravo idoso correspondeu artigo considerando-se os inven- de que os escravos velhos em
a 43,6% do valor de um adulto tários. trânsito eram aqueles em me-
jovem, enquanto o valor de uma lhores condições físicas e com
escrava idosa correspondeu a E de fato, dentre os cativos arro-
maior aptidão para o trabalho,
28,5% do valor de uma escrava lados pelos processos consultados
alcançando dessa forma valores
adulta jovem. encontramos casos cuja avalia-
maiores.
ção atingiu valores muito baixos,
Ao calcular essas porcentagens, entre zero e cem mil réis. Para
Não obstante, uma ressalva deve
Motta (2010) chegou a resultados alguns desses casos, foram regis-
ser feita. Na maioria dos casos, as
distintos. Por exemplo, para o pe- tradas justificativas para o redu-
transações de compra e venda de
ríodo 1861-1869, o autor calculou zido valor, tais como “doentio” ou
cativos idosos envolviam também
que o preço dos escravos velhos “aleijado das pernas”. Na maior
outros escravos, via de regra não
correspondeu a 51,2% do preço parte desses casos, os velhos com
idosos, indicando não terem sido
dos jovens adultos, o que, por sua baixa avaliação na realidade são
os velhos o objeto principal da
vez, era “quase dez pontos porcen- velhas com baixa avaliação. Dos
transação. Nesse sentido, é bem
tuais superior ao calculado para onze casos cujos valores eram
ilustrativo o exemplo do escravo
as idosas”. Para o período 1870- iguais ou menores que 100$000
1880, “a média dos preços dos ho- réis, sete (63,6%) são mulheres e David, comprado por um morador
mens velhos atinge uma proporção quatro (36,4%) homens. Na maior de Casa Branca em 1885, e desta-
(41,9%) que é ligeiramente inferior parte dessas ocorrências (63,6%), cado por Motta (2010).
à proporção correlata calculada os escravos em questão não pos-
para o caso das mulheres (42,2%)”. Esse africano, com 62 anos, foi
suíam laços de parentesco com
Já para os anos finais da escravi- nenhum outro cativo do mesmo comprado por um morador de
dão, o preço dos idosos transacio- plantel. Dentre os escravos com Casa Branca em dezembro de 1885,
nados correspondeu a 78,9% do laços familiares no mesmo plan- juntamente com sua esposa, Maria
valor dos adultos jovens e o preço tel, foram encontrados dois ho- (27 anos), acompanhada por seis
das idosas 68,6% do valor das mens e duas mulheres. filhos ingênuos, além de João (35

junho de 2017
34 economia & história: relatos de pesquisa

anos), este último sem nenhum Dessa forma, apresentando os pri- de no fato, já esperado, de que os
laço de parentesco com os demais meiros resultados de uma pesquisa escravos velhos em trânsito possi-
[...] Ora, é difícil imaginarmos que o em andamento, o presente relato velmente estivessem em melhores
foco do interesse dos contratantes de pesquisa dedicou-se ao estudo condições de saúde, possuindo
fosse David, ainda mais em data na dos escravos idosos arrolados nos maior aptidão para o trabalho,
qual já vigia a Lei dos Sexagenários. processos de inventário post-mor- atingindo assim valores mais ele-
Afinal, a legislação em vigor proibia tem de Ribeirão Preto, no chamado vados. Os escravos velhos não inte-
“Oeste Novo Paulista”, comparan- ressantes para o tráfico permane-
a separação entre Maria e seus
do as características ora analisa- ceriam assim no estoque.
filhos ingênuos, e também vetava
das com aquelas identificadas por
a separação entre Maria e David.
Motta (2010) ao estudar, por meio A pesquisa continua. Nossos próxi-
(MOTTA, 2010, p. 65)
das escrituras de compra e venda mos passos são incorporar outras
de algumas localidades seleciona- fontes para melhor caracterizar
O escravo David não teve avaliação
das, o fluxo desse mesmo extrato esses escravos velhos, a fim de
individual na escritura de compra
populacional, ou seja, as transações compreender as condições que pos-
e venda, e por isso não entrou do sibilitaram sua chegada a tão avan-
envolvendo escravos velhos na se-
cálculo do preço médio do cativo çada idade no contexto escravista
gunda metade do Oitocentos.
idoso transacionado em Casa Bran- oitocentista brasileiro.
ca. Ademais, nota-se que apesar de Encontramos no estoque de es-
já ter 62 anos na data da escritura, cravos uma porcentagem de ve-
registrada em 5 de dezembro de Referência
lhos significativamente maior do
1885, e considerando ter sido a Lei que aquela encontrada por Motta
dos Sexagenários promulgada em (2010) ao analisar as transações MOTTA, José Flávio. O tráfico de escravos
28 de setembro de 1885, David, de compra e venda. Ademais, iden- velhos (província de São Paulo, 1861-
apesar de já ter direito à liber- 1887). História: Questões & Debates,
tificamos ser esses escravos velhos Curitiba, ano 27, n. 52, p. 41-73, jan./jun.
dade, continuou a constar do rol inventariados majoritariamente do 2010.
de cativos de seu proprietário. O sexo masculino, com idades médias
único indício dessa condição e que que diminuem com a aproximação
aparece registrado no documen- do final do período escravista,
to refere-se à seguinte observa- resultado que em parte pode ser
ção, também destacada por Motta atribuído aos efeitos da Lei dos Se-
(2010): “em tempo: o escravo David xagenários. Esses idosos estavam
é apenas vendido os seus serviços e ocupados em diversas atividades, 1 A Matrícula de Escravos foi regulamentada
não a sua pessoa, visto ser maior de sendo as mais comuns aquelas liga- pelo Decreto nº. 4.835, de 1º de dezembro
de 1871, tendo sido estabelecida pelo artigo
sessenta anos como consta da ma- das ao serviço da roça ou lavoura e oitavo da Lei nº 2.040 de 28 de setembro
trícula acima transcrita”. (MOTTA, as atividades domésticas. de 1871, mais conhecida como Lei do Ven-
2010, p. 42) Nos inventários não foi tre Livre. Caso o senhor não registrasse
adequadamente seus cativos, ficava sujeito
localizado nenhum escravo idoso Com relação ao preço, os preços a multas e outros tipos de restrição. Aos
com mais de sessenta anos nas médios dos escravos velhos no inventários com a presença de escravos
deveria ser anexada, obrigatoriamente, uma
mesmas condições de David, vale estoque foram significativamente cópia da matrícula dos cativos arrolados. A
dizer, inventariado ou avaliado mais baixos do que aqueles en- matrícula deveria conter informações tais
como nome e lugar de residência do senhor,
num período posterior à Lei dos contrados por Motta (2010). Uma número de ordem da matrícula; nome, sexo,
Sexagenários. possível explicação para isso resi- cor, idade, estado, filiação (se for conhecida),

junho de 2017
economia & história: relatos de pesquisa 35

aptidão para o trabalho e profissão do matriculado; além da data da 3 Como foi mencionado anteriormente, utilizamos aqui a definição
matrícula e possíveis averbações, se existentes. de escravo idoso e o recorte etário sugerido por José Flávio Motta
2 Na época da coleta de dados, esses processos ainda estavam sob no artigo “O tráfico de escravos velhos (Província de São Paulo, 1861-
custódia do Fórum de São Simão e do Arquivo do Fórum de Ribeirão 1887). (MOTTA, 2010)
Preto. Atualmente, a maior parte desses inventários encontra-se 4 Ao todo, foram localizadas 831 transações de cativos registradas em
em Jundiaí devido à reorganização do sistema de arquivos do Poder Casa Branca no período 1869-1887, das quais 29 (3,5%) referem-se
Judiciário. Configuram exceção os inventários do Primeiro Ofício de
a cativos idosos.
Ribeirão Preto, que ficaram sob responsabilidade do Arquivo Público
e Histórico da cidade. Dos processos coletados em São Simão apenas
parte correspondia ao município de Ribeirão Preto, freguesia de São
Simão até o início da década de 1870. A separação dos inventários
obedeceu a dois critérios, um geográfico e outro referente aos bens
imóveis possuídos pelo inventariado. Foram considerados como
ribeirão-pretanos, não importando seu lugar de arquivamento,
os processos cujos bens imóveis correspondiam à área geográfica
ribeirão-pretana definida pela lei que instituiu o município em 1871,
conservando os mesmos limites eclesiásticos previamente estabe-
lecidos. Foram considerados também como ribeirão-pretanos os
inventários de indivíduos moradores em São Simão e que possuíam
mais de 50,0% do valor de seus bens imóveis em terras da localidade
ribeirão-pretana. Para o período 1860-1888 foram localizados 238
inventários, com avaliação de 749 cativos, dos quais 73 possuíam 50
anos ou mais. Esses 73 cativos compõem a amostra analisada nesse (*) Professora Doutora do Departamento de Economia da FEA/USP.
relato de pesquisa. (E-mail: lslopes@usp.br).

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