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Literatura Portuguesa

Prof.a Carla Cristiane Mello

Indaial – 2020
2a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2020

Elaboração:
Prof.a Carla Cristiane Mello

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

M527l

Mello, Carla Cristiane

Literatura portuguesa. / Carla Cristiane Mello. – Indaial:


UNIASSELVI, 2020.

193 p.; il.

ISBN 978-65-5663-004-5
ISBN Digital 978-65-5663-005-2

1. Literatura portuguesa - História e crítica. - Brasil. Centro


Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 869.09

Impresso por:
Apresentação
Olá, acadêmico do Curso de Letras! Apresentamos a você o livro
didático da disciplina de Literatura Portuguesa e com isso queremos estudar
o vasto conhecimento e acervo disponível a respeito desses campos literários,
formados ao longo de séculos de histórias e memórias do povo português e
suas colonizações.

É importante frisar que neste material temos apenas algumas nuances


de determinadas épocas, pois, dado o pouco espaço, precisamos elaborar uma
espécie de fio condutor a partir do qual selecionamos alguns dos principais
representantes. Mas isso deve servir para que você, acadêmico, siga na busca
e nas leituras, faça seus próprios roteiros de aprendizagem e seja o maior
interessado nesta troca de saberes que ora compartilhamos.

Na primeira unidade, vamos focar nos primórdios da formação


literária de Portugal, associando o contexto histórico em que o país vivia que,
por sua vez, foi influenciado pela Idade Média em toda a Europa num período
em que a escrita era restrita. Desse modo, a oralidade exercia um papel
extremamente relevante no que diz respeito à propagação das memórias do
povo, assim, as cantigas de amor e de amigo, além das cantigas de escárnio
e de maldizer compõem o chamado Trovadorismo galaico-português como
representação da lírica desse período.

Além disso, (re)conhecemos o gênero em prosa denominado novelas


de cavalaria; podemos compreender como o teatro de Gil Vicente se valia do
cotidiano social para reproduzir diversos estereótipos e encontramos o grande
épico e lírico Camões com uma pequena parte de sua imensa produção literária,
que deve ser lida por toda e qualquer pessoa que ame literatura!

Na segunda unidade, iremos conhecer, em parte, como se deu o


processo de formação identitária portuguesa a partir do período chamado
Romantismo. Para compreender isso, faz-se mister analisarmos os contextos
históricos pelos quais tanto Portugal quanto a Europa passavam também.
Trazemos dois principais representantes do romantismo português, a saber,
Almeida Garret e Alexandre Herculano. Em seguida, a escola realista e a
conhecida Geração de 70, além da figura ilustre de Eça de Queirós. Ainda,
daremos uma breve observada no Simbolismo e no Decadentismo trazendo
alguns poetas, como Césario Verde, Antônio Nobre e Camilo Pessanha.

Na terceira unidade, tratamos sobre a Literatura Portuguesa a partir


do século XX e suas transformações, que despontam a partir do Modernismo
e trazem representantes como Fernando Pessoa, Florbela Espanca, além do
período pré e pós-1974, momento histórico de extrema importância para o

III
país. É nessa unidade, também, que você poderá apreciar um pouco das
literaturas africanas de língua portuguesa, embora já na primeira unidade
tenhamos inserido uma Leitura Complementar para que você possa se
familiarizar com esse rico campo literário.

Em meio a tudo isso, sempre procuramos trazer reflexões e sugestões


de exercícios para se pensar a docência em sala de aula, pois o objetivo de sua
formação é tornar-se ou aprimorar-se como professor de Língua e Literatura
Portuguesa. Desse modo, também trazemos sugestões de documentários, filmes
e instigamos você a ler os textos na íntegra, pois a maioria deles, pelo menos
os mais antigos, já se encontram disponíveis para serem acessados através do
domínio público. Dê asas à sua imaginação e crie um caminho de aprendizado
que possa trazer satisfação. Quanto a nós, esperamos sinceramente que possamos
ser um pequeno farol a iluminar esse caminho! Deleite-se!

Prof.a Carla Mello

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.

Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.

Bons estudos!

IV
UNI

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos


materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais
os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais
que possuem o código QR Code, que é um código
que permite que você acesse um conteúdo interativo
relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos
e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar
mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

V
VI
LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela


um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro


que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá
contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares,
entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

VII
VIII
Sumário
UNIDADE 1 – A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO...... 1

TÓPICO 1 – O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS..................................................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................................3
2 NO PRINCÍPIO ERA MÚSICA E POESIA.........................................................................................3
3 CANTIGAS DE AMOR E CANTIGAS DE AMIGO........................................................................7
4 CANTIGAS DE ESCÁRNIO E CANTIGAS DE MALDIZER......................................................11
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................16
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................17

TÓPICO 2 – DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES..............19


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................19
2 ENTRE REINOS E CASTELOS, O AMOR ......................................................................................19
3 AS NOVELAS DE CAVALARIA.........................................................................................................21
4 O TEATRO DE GIL VICENTE............................................................................................................28
5 CAMÕES – O CLÁSSICO ÉPICO E LÍRICO...................................................................................33
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................41
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................43

TÓPICO 3 – NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS............................45


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................45
2 ENTRE SERMÕES E POEMAS LITERÁRIOS................................................................................45
3 OS SERMÕES DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA.............................................................................46
4 BOCAGE, O POETA ÁRCADE...........................................................................................................51
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................56
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................61
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................62

UNIDADE 2 – A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS...................63

TÓPICO 1 – O ROMANTISMO EM PORTUGAL.............................................................................65


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................65
2 UM POUCO DE HISTÓRIA E ROMANCES HISTÓRICOS.......................................................66
3 ALMEIDA GARRET.............................................................................................................................72
4 ALEXANDRE HERCULANO..............................................................................................................75
5 O ULTRARROMANTISMO PORTUGUÊS.....................................................................................77
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................83
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................88
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................89

TÓPICO 2 – O REALISMO EM PORTUGAL.....................................................................................91


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................91
2 O REAL OU REALISTA NOS ROMANCES....................................................................................91

IX
3 A GERAÇÃO DE 1870...........................................................................................................................93
4 EÇA DE QUEIRÓS................................................................................................................................97
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................106
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................107

TÓPICO 3 – O SIMBOLISMO EM PORTUGAL..............................................................................109


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................109
2 A SIMBÓLICA DECADÊNCIA DOS SENTIMENTOS..............................................................109
3 O FIM DO SÉCULO – DECADENTISMO.....................................................................................111
4 ANTÓNIO NOBRE, CESÁRIO VERDE E CAMILO PESSANHA............................................112
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................122
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................123

UNIDADE 3 – A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS


TRANSFORMAÇÕES.................................................................................................125

TÓPICO 1 – MODERNISMO EM PORTUGAL...............................................................................127


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................127
2 FERNANDO PESSOA E A MULTIPLICIDADE DE EUS............................................................136
3 FLORBELA ESPANCA........................................................................................................................143
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................146
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................147

TÓPICO 2 – LITERATURA CONTEMPORÂNEA...........................................................................149


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................149
2 LITERATURA PRÉ-1974.....................................................................................................................150
3 LITERATURA PÓS-1974....................................................................................................................153
4 JOSÉ SARAMAGO.............................................................................................................................156
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................161
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................162

TÓPICO 3 – LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA.........................165


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................165
2 O CONTEXTO HISTÓRICO.............................................................................................................167
3 LITERATURAS DE ANGOLA E MOÇAMBIQUE.......................................................................169
4 LITERATURAS DE CABO VERDE, GUINÉ BISSAU E SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE...............175
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................181
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................186
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................187

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................191

X
UNIDADE 1

A LITERATURA PORTUGUESA DO
PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender o processo de formação da literatura portuguesa e suas


influências nos países colonizados;

• relacionar os períodos sociohistóricos com os momentos mais marcantes


das artes literárias em Portugal;

• estudar e conhecer a prosa e a poesia dos Períodos Medieval e Clássico


em Portugal;

• identificar semelhanças com a atualidade nos tópicos estudados para


trabalhar em sala de aula.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará algumas autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS

TÓPICO 2 – DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA


NOVOS ARES

TÓPICO 3 – NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO


PORTUGUÊS

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS

1 INTRODUÇÃO
Iremos agora fazer uma regressão até meados do século XII e conhecer
o Período Medieval na Europa, mais especificamente em Portugal, onde iremos
conhecer algumas cantigas do momento que oficializa o início da história da
literatura portuguesa, ou seja, o Trovadorismo. Assim, caro acadêmico, permita-
se adentrar num universo com cavaleiros e damas em castelos medievais para dar
um cenário estético condizente ao período em questão. Aproveite esta viagem ao
tempo passado!

2 NO PRINCÍPIO ERA MÚSICA E POESIA


As literaturas de língua portuguesa são compostas atualmente por uma
gama de autores e obras distribuídos em diferentes países que foram colonizados
por Portugal. Além do Brasil, os países africanos: Angola, Moçambique, Guiné
Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que têm oficialmente a língua
portuguesa como marca expressiva desse processo colonial, são influenciados
pelas transformações e trazem heranças socioculturais daquele. Portanto,
para compreendermos tais literaturas, devemos ter em vista esses detalhes e
conhecermos seus processos históricos.

No que concerne à constituição de um campo literário português,


remetemos ao período do século XII, época em que a sociedade europeia vivia
a conhecida Idade Média ou Período Medieval, que dura até meados do século
XV. Neste tempo, difundiu-se popularmente o chamado Trovadorismo e suas
cantigas, conforme veremos neste tópico. Importante lembrar que estamos
falando da Europa porque basicamente (embora atualmente novas perspectivas
provem o contrário) todo o pensamento ocidental foi calcado a partir desses
países, e Portugal faz parte desse continente, logo, o que acontecia num lugar
reverberava em todo o resto, assim como ainda ocorre hoje. É importante não
perder esse detalhe de vista, pois para compreendermos os processos histórico-
culturais de um país, devemos ter foco em todo o contexto do qual ele faz parte.

3
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

NOTA

Usamos a noção de “campo” baseado em Pierre Bordieu (2001), a partir do qual


se pensa nas objetividades e subjetividades postas em relação dentro de uma sociedade,
ou seja, há um jogo de forças que estipula e movimenta esse campo definindo o que
pertence ou não a ele e quais agentes o compõem.

Num determinado período da Idade Média, a estrutura social e política


vigente era o chamado Feudalismo, que tinha uma base piramidal em que no
topo se encontrava a aristocracia sob o comando do Rei; em seguida, vinha o
clero, ou seja, a Igreja, que exercia forte influência sobre toda a sociedade; e, na
base, encontravam-se os servos ou vassalos, ou seja, o povo camponês em geral.
A mobilidade social era inexistente e o povo deveria servir à nobreza pagando,
inclusive, altos impostos sobre as propriedades que ocupavam e que eram, em
última instância, de seus senhores, e em troca recebiam proteção deles.

Vale salientar que, num primeiro momento, a escrita era restrita aos
cléricos e à Igreja, haja vista que a reprodução de manuscritos antes da invenção
da imprensa era trabalhosa e tornava-se demasiado expansiva, além do que não
havia muito interesse em sua difusão para além dos religiosos e da burguesia,
como fica evidente posteriormente. Assim, a oralidade cumpre um papel de
propagadora das memórias e histórias dessa época, principalmente através do
suporte musical, conforme nos apontam Lopes e Saraiva (1969, p. 36):

Mas a escrita constituía então um meio acessório da transmissão da


cultura; temos de contar com a transmissão oral, através dos jograis-
recitadores, cantores e músicos ambulantes que divulgam nas feiras,
castelos e cidades um repertório musical e literário estimulado
diretamente pelos ouvintes. […] As duas literaturas – a oral e a
escrita – apresentam características muito diferentes. Ao passo que
os livros produzidos ou reproduzidos nos conventos, destinando-se
sobretudo à preparação dos clérigos e ao serviço religioso, consistiam
principalmente em tratados e obras de devoção escritos em latim, o
repertório dos jograis, pelo contrário, dirigido a um público iletrado
de vilões, burgueses ou nobres, servia-se das línguas locais, inspirava-
se na vida e interesses desse público e consistia sobretudo em poemas
e narrativas versificadas.

Sabemos que a matéria bruta que constitui a arte literária é a linguagem,


portanto, vale a pena observarmos alguns pontos, também cruciais na hora de
compreender como se dão as transformações estéticas dessas formas artísticas.
Por exemplo, na citação supracitada percebe-se que há divisão entre a língua
oficial da época, o latim, e as línguas locais ou ditas vulgares, a depender do
público ouvinte/leitor. Nesse sentido, percebe-se que ainda hoje alguns estudos

4
TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS

linguísticos apontam o campo literário dito formal como de referência para


exemplificar uma língua com norma padrão de escrita, isso tudo é fruto de imensas
discussões, principalmente no que concerne ao ensino da língua portuguesa em
sala de aula.

Todavia, cabe a você, futuro docente dessa área, explorar tais diferenciações
para que seu público-alvo possa ter maiores probabilidades de compreensão
acerca das oralidades e escritas de nossa(s) língua(s), buscando direcionar para
novas concepções que ultrapassem as noções de “certo” e “errado” sem deixar
de considerar, também, as diferenças entre oralidade e escrita e os contextos das
interações sociolinguísticas.

Por exemplo, se tomarmos os conteúdos das cantigas daquele período,


veremos que sua escrita está em galego-português, uma linguagem corrente da
época, a exemplo da “Cantiga da Ribeirinha”, uma das mais antigas que se tem
registro em nossa língua. Perceba que para reconhecermos tal “língua” é preciso
fazer uma livre tradução, conforme vemos a seguir.

CANTIGA DA RIBEIRINHA

Paio Soares de Taveirós

No mundo non me sei parelha,


mentre me for' como me vai,
ca ja moiro por vós - e ai!
mia senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia me levantei,
que vos enton non vi fea!

E, mia senhor, des aquel di', ai!


me foi a mi muin mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d'haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d'alfaia
Nunca de vós ouve nem ei
valía d'ũa correa.

Tradução

No mundo ninguém se assemelha a mim


enquanto a vida continuar como vai,
porque morro por vós, e ai!
minha senhora alva de pele rosadas,

5
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

quereis que vos retrate


quando eu vos vi sem manto.
Maldito dia que me levantei
E não vos vi feia

E minha senhora, desde aquele dia, ai!


tudo me foi muito mal
e vós, filha de Don Paio
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós guarvaia
pois eu, minha senhora, como presente
Nunca de vós recebera algo
Mesmo que de ínfimo valor.

Obs.: a guarvaia era um manto luxuoso, provavelmente de cor vermelha,


usado pela nobreza.

FONTE: <http://belalinguaportuguesa.blogspot.com/2011/11/cantiga-da-ribeirinha.html>.
Acesso em: 14 ago. 2019.

Para compreendermos um campo literário, então, precisamos ver que a


história influencia direta e indiretamente nas escolhas daquilo que pode ou não
fazer parte da literatura, uma das formas de arte que parece, ainda, ser reservada
a poucos. Entretanto, se expandirmos nossa noção de literatura para além da
escrita, podemos aprender e depreender muitos conhecimentos através dos
tempos. Além disso, as noções de estética podem variar de perspectiva a depender
do contexto e dos artistas, também podendo ser fruto de inúmeras discussões nas
mais diferentes áreas. É, todavia, por proximidades de características estéticas
que acabamos por dividir os períodos literários, por exemplo.

No que concerne aos estudos literários de língua portuguesa, foco de


nosso olhar aqui, devemos também ter em vista a própria história constitutiva de
Portugal como um país que, através das guerras recorrentes na Antiguidade, teve
contato com outros povos e, consequentemente, assimilou outras línguas além do
fato de derivar do latim. Devemos considerar, de igual modo, seu posicionamento
geográfico e suas funções históricas dentro de determinados contextos, pois tudo
isso refletirá inclusive nas literaturas brasileiras e africanas de língua portuguesa.
Estas últimas que ainda são um universo a se descobrir, já que somente a partir
da obrigatoriedade dos estudos das culturas africanas e afro-brasileiras em sala
de aula (Leis n° 10.639/2003 e n° 11.645/2008) é que veio à tona a riqueza cultural
desses países.

6
TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS

TUROS
ESTUDOS FU

Embora as literaturas africanas de língua portuguesa sejam abordadas na


Unidade 3, trazemos ao final desta unidade uma Leitura Complementar para que você possa
se familiarizar com esse campo, que é um universo para além do eurocentrismo tradicional.

Voltando aos primórdios da formação literária portuguesa, então,


conforme pontuam Lopes e Saraiva (1969), os mais antigos textos literários
ficaram conhecidos como os versos dos Cancioneiros, a partir do século XII, no
entanto, é pressuposto que tais obras escritas sejam apenas registros tardios das
memórias orais que foram propagadas durante aquele período. São conhecidas
três principais coletâneas de Cancioneiros: o mais antigo, Cancioneiro da Ajuda;
de fins do século XIII; os outros dois, Cancioneiro da Biblioteca e Cancioneiro da
Vaticana, são provavelmente do século XIV (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 42).

A seguir, veremos os gêneros encontrados neste material, ou seja, as


Cantigas de Amor e as Cantigas de Amigo, além das Cantigas de Escárnio e as Cantigas
de Maldizer.

3 CANTIGAS DE AMOR E CANTIGAS DE AMIGO


As Cantigas de Amor se diferenciam das Cantigas de Amigo pela identificação
do “eu lírico” do poeta, que pode aparecer explicitada ou subentendida. Nas
Cantigas de Amor, percebe-se o masculino manifestando seus sentimentos,
enquanto que nas Cantigas de Amigo é o feminino – embora fosse escrito por
homens – que expressa suas emoções e sentimentos através da lírica trovadoresca.
A palavra lírica provém de lira, ou seja, um instrumento musical, portanto, uma
poesia lírica geralmente era cantada, mas podemos pensar que também pode se
relacionar com a musicalidade das palavras, além de expressar, obviamente, as
emoções e sentimentos do autor em questão.

Leia a seguir uma Cantiga de Amigo escrita pelo rei D. Dinis, que ficou
conhecido como Rei-Trovador, já que tem um vasto número de cantigas por ele
elaboradas, além de que durante seu reinado esse gênero se propagou fortemente:

7
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Ai flores, ai flores do verde pino

Dom Dinis

Cancioneiro da Biblioteca Nacional 568, Cancioneiro da Vaticana 171

Ai flores, ai flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?
Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos comigo!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi ha jurado!
Ai Deus, e u é?
-Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?

FONTE: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_
action=&co_obra=86555&co_midia=2>. Acesso em: 14 ago. 2019.

Além do eu lírico feminino, observa-se que as Cantigas de Amigo possuem


uma estrutura “paralelística” simples, o que designa que “A unidade rítmica não
é a estrofe, mas o par de estrofes, ou mais, precisamente, o par de dísticos, dentro
do qual ambos os dísticos querem dizer o mesmo, diferindo só, ou quase só, nas
palavras da rima” (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 45), como vimos anteriormente
em “verde pino/verde ramo” e “meu amigo/meu amado”. Também há um verso
que se repete, “Ai Deus, e u é”, conhecido como refrão, que você provavelmente
conhece das suas músicas favoritas, pois este é constituído por versos de fácil
memorização e repetição.

8
TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS

O “amigo” na cantiga é o namorado ou amante que geralmente se


encontra longe, desse modo, a voz feminina reclama às suas ouvintes a ausência
do ser amado, essas últimas podem ser as mães ou as amigas da protagonista.
Os ambientes deste gênero poético-musical, ainda segundo os autores, estão na
população rural, onde se veem paisagens da natureza; no lar doméstico, em que a
protagonista aparece cumprindo afazeres “femininos” da casa; ou o ambiente da
corte, onde vemos o “amor cortês” do ponto de vista da mulher.

Já as Cantigas de Amor expressavam, segundo presumiam seus produtores,


um modelo a ser seguido, pois eram de origem provençal ambientadas nos
palácios, festas e cortes citadinas. Nesse tipo de canção, o homem expressa o “amor
cortês” através da vassalagem amorosa à uma mulher idealizada, sem defeitos e
santificada. Há semelhanças dessa vassalagem ao papel do cavaleiro referente ao
seu senhor feudal, desse modo “O trovador imaginava a dama como um susserano
a quem ‘servia’ numa atitude submissa de vassalo, confiando o seu destino ao ‘bon
sen’ [bom senso] da ‘senhor’ [senhora] ” (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 57).

NOTA

O termo “provençal” surgiu para se referir à região de Provença, localizada no


sul da França.

Acompanhe, a seguir, uma famosa Cantiga de Amor escrita por D. Afonso


Sanches, em que podemos observar o português arcaico, mas já mais fácil de
“tradução” para a contemporaneidade.

Afonso Sanches

Tam grave dia que vos conhoci,


por quanto mal me vem per vós, senhor!
Ca me vem coita, nunca vi maior,
sem outro bem, por vós, senhor, des i;
por este mal que mi a mim por vós vem,
come se fosse bem, quer-me por en
gram mal, a quem[-no] nunca mereci.

Ca tem, senhor, porque vos eu serv'i


[e] sempre digo que sôde'la milhor
do mund'e trobo polo voss'amor,
que me fazedes gram bem; e assi

9
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

veed'ora, mia senhor do bom sem,


este bem [a]tal, se compr'[a] mim rem,
senom se valedes vós mais per i.

Mais eu, senhor, em mal dia naci:


del, que nom tem, nem é conhecedor
do vosso bem, a que nom fez valor,
Deus de lho dar, que lhi fezo bem i;
pero, senhor, assi me venha bem,
deste gram bem, que el por bem nom tem,
mui pouco del seria grand'a mi.

Pois, mia senhor, razom é, quand'alguém


serv'e nom pede, [que] já-quê lhi dem
- eu servi sempr'e nunca vos pedi.

FONTE: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=386&pv=sim>. Acesso em: 14 ago. 2019.

No tocante à estrutura, as cantigas de amigo e de amor são relativamente


semelhantes, embora estas últimas fossem consideradas mais “bem produzidas”
por pontuar maiores complexidades nas rimas, isso se expressa, certamente, pelas
diferenças sociolinguísticas de seus produtores/consumidores, ou seja, enquanto
as cantigas de amigo traziam uma linguagem mais simples, as cantigas de amor,
desenvolvidas nos espaços da realeza, procuravam trazer uma linguagem mais
“elaborada”. O eu lírico destas era masculino, obviamente porque os homens
eram os que tinham esse poder de escrever e partilhar das artes; os espaços que
circulavam eram os palácios e as cortes; e seu principal incentivo ao “amor cortês”,
que era o ideal de amor influenciado pela religião, mas também contraditório,
segundo bem pontua Ferraz (2008, p. 25):

O amor cortesão apresenta um paradoxo: mantém certa aproximação


com a moral cristã, no sentido de que transforma a mulher amada
em um ser angelical, inacessível, e o amor é transformado em uma
religião. No entanto, trata-se de um amor adúltero, o que de certa
forma anula a moral cristã nesse aspecto. A chamada erótica cortesã é
vista como uma técnica sutil de não amar, uma maneira de não realizar
o amor, uma vez que o homem tem medo da mulher diante do qual
ele teme sua própria sexualidade. O amor cortês revela uma mulher
completamente superior e inacessível e mostra as relações entre o
feminino e o masculino, mas o homem é na verdade o dono desse
jogo. O ideal é uma coisa, o real é outra. O público a quem se dirigiam
poetas e romancistas era constituído de machos celibatários dos quais
a cavalaria estava cheia. Alimentando-lhes o ardor, a literatura cortesã
torna-se instrumento pedagógico.

10
TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS

Esse tipo de amor era conhecido como o “fino amor” ou “um extremo
refinamento da cortesia”, diz ainda a autora. Baseado no platonismo, ou seja, um
ideal de amor que ama mais o sentimento do que a sua concretização, ou seja,
através do sofrimento o cavalheiro cultua a mulher amada, que tem poder de
decidir se esse vive ou morre.

Esse tipo de amor pode ser visto também em alguns romances


ultrarromânticos, como nas primeiras fases do Romantismo português em
autores como Camilo Castelo Branco, conforme você verá quando estudar esse
período, e também não é exagero afirmar que ainda hoje permeia um vasto
imaginário sociocultural que reproduz sua lógica de amor romântico e sofredor,
principalmente através de algumas músicas. Vale lembrar, ainda, que as mulheres
cumpriam papel de coadjuvantes nesse período, pois sequer podiam escolher
seus maridos, quiçá opinar em quaisquer circunstâncias, mesmo que no âmbito
familiar restrito, por isso pode-se perceber porque esse tipo de amor poderia ser
fatalmente adúltero.

No próximo tópico, apresentamos as cantigas de escárnio e de maldizer,


que complementam as poéticas musicadas durante o período Medieval, cujas
“trovas” podem mesmo trazer semelhanças de alguns gêneros poético-musicais
contemporâneos.

4 CANTIGAS DE ESCÁRNIO E CANTIGAS DE MALDIZER


Diferentemente das Cantigas de Amor e de Amigo, as Cantigas de Escárnio
e as Cantigas de Maldizer são sátiras indiretas, no caso da primeira, e diretas,
no caso da segunda, e expressam críticas a alguém, usando-se da ironia, de
xingamentos etc. com intenção difamatória, entretanto, tanto num quanto noutro
tipo de canção podemos encontrar tais características. Porém, é nas cantigas de
maldizer que as pessoas são nomeadas, passando a receber uma maledicência ou
praga em seu nome.

Tais canções se tornam importantes na medida em que expressam críticas


de cunho político-social relacionadas à vida na corte, e mesmo diretamente a
pessoas, inclusive membros políticos desses espaços, o que pode configurar-se
como importante material para se perceber aquele período a partir de um viés mais
etnográfico, por assim dizer, já que os poetas circulavam em diferentes espaços
sociais e tinham o aval da arte para expressar seus pontos de vista, conforme
pontuam Lopes e Saraiva (1969, p. 65): “Como repertório pícaro ou pitoresco de
costumes, testemunho voluntário ou involuntário de uma mentalidade, a sátira
trovadoresca completa os livros das linhagens”, estes que eram os livros da nobreza
da época, mas sem deixar de expressar as críticas referente aos costumes.

11
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

NOTA

Etnográfico se relaciona à etnografia, ou seja, a ciência que descreve os


costumes dos povos relativos à língua, raça, religião etc.

FONTE: <https://dicionario.priberam.org/etnografia>. Acesso em: 10 ago. 2019.

Vejamos uma cantiga de escárnio a seguir, de autoria de João Garcia


de Guilhade, em que a protagonista não é nomeada, entretanto, satirizada
indiretamente por ser “feia”.

João Garcia de Guilhade

Ai dona fea, fostes-vos queixar


que vos nunca louv'en[o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei todavia;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi perdom,


pois havedes [a]tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero já loar todavia;
e vedes qual será a loaçom:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei


em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já um bom cantar farei
em que vos loarei todavia;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!

FONTE: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=386&pv=sim>. Acesso em: 14 ago. 2019.

Já as Cantigas de Maldizer, como dito, expressam diretamente nomes de


pessoas envolvidas. Geralmente, a temática é o adultério ou o amor por interesse.
Há emprego direto de palavrões e as críticas não são poupadas ao se referir a
tal pessoa. Vejamos um exemplo típico desse tipo de canção a seguir, escrito por
Afonso Eanes de Coton, onde apresenta os desejos sexuais da protagonista.

12
TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS

CANTIGA DE MALDIZER

Maria Mateu, daqui vou desertar.


De cona não achar o mal me vem.
Aquela que a tem não ma quer dar
e alguém que ma daria não a tem.
Maria Mateu, Maria Mateu,
tão desejosa sois de cona como eu!

Quantas conas foi Deus desperdiçar


quando aqui abundou quem as não quer!
E a outros, fê-las muito desejar:
a mim e a ti, ainda que mulher.
Maria Mateu, Maria Mateu
tão desejosa sois de cona como eu!

FONTE: <https://www.escritas.org/pt/t/3999/cantiga-de-maldizer>. Acesso em: 14 ago. 2019.

As cantigas de escárnio e maldizer trazem frutíferas reflexões a respeito da


sociedade portuguesa da época, em que se buscava manter as convenções sociais
e cristãs a todo custo, mesmo que à base de uma vida dupla, ou seja, aquela
encenada socialmente, e a outra, vivida secretamente onde se podia expressar os
reais desejos dos sujeitos sem serem julgados.

Devemos perceber que a história de uma sociedade é sempre uma


multiplicidade de histórias individuais que se mesclam com a coletividade para,
então, comporem um mosaico de memórias. Entretanto, uma das desvantagens
de se buscar a homogeneização é trazer apenas um ponto de vista para a luz
excetuando-se todos os outros que diferem daquela história que se quer contar,
ou seja, sempre há histórias por detrás dessa história.

Não nos esqueçamos disso para lembrarmos que, embora as cantigas


registradas pela via escrita sejam material histórico importantíssimo, haja o
fato de estarmos estudando-as, muitas outras histórias e contextos passaram
despercebidos a fim de manter uma coerência que é, ao fim e ao cabo, ditada
pelos detentores do poder. Por isso mesmo, diversos reis, entre eles D. Dinis,
foram os maiores trovadores dessa época portuguesa.

O Trovadorismo entra em declínio, tanto em Portugal quanto na Europa,


principalmente com a ascensão da burguesia e as transformações histórico-sociais
decorrentes da época que influenciaram nas artes, pois como já se dissemos
anteriormente, a arte faz parte da história e vice-versa. Na verdade, a estrutura social
sofrendo modificações reflete-se nas formas de se fazer arte, isso é fato até os dias de
hoje, basta pararmos para analisar como se dão tais fazeres em nosso cotidiano.

13
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

DICAS

O documentário Palavra Encantada, de


Helena Solberg (2014) traz um rico material de
reflexão de artistas e especialistas das áreas da
literatura e da música para pensarmos a relação
entre as duas artes, que ocorre desde os primórdios.
É interessante, principalmente, para trabalharmos
em sala de aula. Vale a pena adquirir o material ou
assistir online, disponibilizado em: https://www.
youtube.com/watch?v=gqoW5iDNAZw. FONTE: <http://twixar.me/GvRT>.
Acesso em: 24 jan. 2020.

A fim de exemplificarmos um gênero poético-musical contemporâneo que


dialoga com as cantigas, trazemos um exemplo de nosso aclamado cantor Chico
Buarque. “Olho nos olhos” traz um eu lírico feminino lamentando a separação
do amado.

Olhos nos olhos

Quando você me deixou, meu bem


Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem
demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem por que
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz.

FONTE: <https://www.letras.mus.br/chico-buarque/65962/>. Acesso em: 10 ago. 2019.

14
TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS

A seguir, vemos uma cantiga contemporânea da extinta banda “Legião


Urbana”, que pode ser comparada às cantigas de escárnio, por tratar de críticas
ao cenário político da época.

QUE PAÍS É ESSE (LEGIÃO URBANA)

Nas favelas, no Senado


Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
[REFRÃO]
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

No Amazonas, no Araguaia-ia-ia
Na baixada fluminense
Mato Grosso, Minas Gerais
E no nordeste tudo em paz

Na morte eu descanso
Mas o sangue anda solto
Manchando os papéis, documentos fiéis
Ao descanso do patrão

Terceiro mundo se for piada no exterior


Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão

FONTE: <https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/46973/>. Acesso em: 10 ago. 2019.

Trouxemos essas músicas para que possam lhe instigar a procurar mais!
Certamente entre os gêneros poéticos-musicais contemporâneos que você ouve é
possível encontrar outras semelhanças com as cantigas de amor e de amigo, ou
ainda as cantigas de escárnio e maldizer. Esse tipo de exercício é muito profícuo
em sala de aula com estudantes de todas as idades, pois a música é uma grande
catalisadora de gerações, podendo facilitar a compreensão dos interlocutores
para as tipologias “de antigamente”, como as aqui apresentadas.

15
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A noção de campo literário está relacionada diretamente às linguagens


e estéticas, portanto, o campo literário português pode ser amplamente
compreendido até a atualidade.

• Durante o Período Medieval, as artes trovadorescas eram propagadas oralmente


principalmente através da música.

• As cantigas de amigo e de amor expressavam os sentimentos e as emoções do


eu lírico feminino e masculino, respectivamente.

• As cantigas de escárnio e maldizer traziam sátiras diretas ou indiretas acerca


de personalidades e dos costumes da época medieval.

• Portugal colonizou diferentes países cujas influências podem ser observadas


para além da língua, mas também nos modos de fazer literários de tais lugares,
inclusive no Brasil.

• A literatura traz riquíssimo material para compreendermos os processos sócio-


históricos de uma sociedade em determinados contextos.

• As características das cantigas desse período podem ser comparadas às músicas


contemporâneas.

16
AUTOATIVIDADE

1 A respeito do Trovadorismo em Portugal, podemos dizer que:

I- Foi a primeira escola literária do país, e a relação com a oralidade e a música


são explicitadas em suas cantigas.
II- Tem quatro gêneros poéticos-musicais: as Cantigas de Amigo e as Cantigas
de Amor, para expressar os sentimentos do eu lírico feminino e masculino,
respectivamente; e as Cantigas de Escárnio e Cantigas de Maldizer, para
expressar críticas satíricas indiretas ou diretamente.
III- A linguagem poética é semelhante ao português moderno.
IV- Apresentam a noção de amor baseada nos princípios cristãos da Igreja
Católica.

Estão CORRETAS as seguintes afirmativas:


a) ( ) I, apenas.
b) ( ) II, apenas.
c) ( ) I e II.
d) ( ) II e III.
e) ( ) II, III e IV.

2 Leia atentamente a cantiga a seguir:

Ondas do mar de Vigo,


se vistes meu amigo!
e ai Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,


se vistes meu amado!
e ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,


o por que eu sospiro!
e ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,


por que ei gram cuidado!
e ai Deus, se verrá cedo!

(Martim Codax)

(In: NUNES, José Joaquim. Cantigas […]. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1973. v. 2, p. 441).

Aponte em que tipo de cantiga ela se classifica e justifique sua resposta.

17
3 (Ufam - adaptada) Leia o poema a seguir, de autoria de D. Dinis, rei de
Portugal, antes de responder à questão:

“En gran coita, senhor,


que pior que mort’é,
vivo, per boa fé,
e polo voss’amor
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
Vi polo meu gran mal,
e melhor me será
de morrer por vós já
e, pois me Deus non val,
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
Polo meu gran mal vi,
e mais me val morrer
ca tal coita sofrer,
pois por meu mal assi
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
Vi por gran mal de mi,
pois tam coitad’and’eu.”

A respeito do poema acima fazem-se as seguintes afirmativas:

I- É uma cantiga de escárnio, pois o poeta ridiculariza a mulher amada.


II- É uma cantiga de amigo, pois o eu lírico é feminino.
III- Possui versos paralelísticos, como em “Vi polo meu gran mal” e “Polo meu
gran mal vi”.
IV- É uma cantiga de amor, pois o eu lírico, além de ser masculino, sofre
intensamente um amor impossível.
V- É uma cantiga de maldizer, pois o poeta não se conforma com o fato de não
conquistar a mulher que ama.

Estão CORRETAS:

FONTE: <http://idaam.com.br/downloads/nave/provas_ufam/prova_psc2004_etapa1.pdf>.
Acesso em: 27 jan. 2020.

a) ( ) Apenas III e IV.


b) ( ) Apenas II e III.
c) ( ) Apenas II e V.
d) ( ) Apenas I e V.
e) ( ) Todas as alternativas estão corretas.

18
UNIDADE 1
TÓPICO 2

DA POESIA À PROSA MEDIEVAL


RUMANDO PARA NOVOS ARES

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, vamos conhecer um pouco da prosa medieval, que também
circulava oralmente originada das “canções de gesta” (poemas cantados
que apresentavam as aventuras de guerreiros) até que, assim como a poesia
trovadoresca, tardiamente foram coletadas e escritas. Importa observarmos que
tanto a poesia quanto a prosa, e nesse sentido não somente de períodos remotos
mas as de nossos dias, trazem importantes registros de suas épocas que podem
nos auxiliar na compreensão daquelas.

Em seguida, conheceremos um pouco do período pós-medieval e a


importância do teatro de costumes português. Aqui o movimento Humanista
assumirá um viés significativo para o período de transição sociohistórica tanto
desse país quanto da Europa de um modo geral.

Por último, e de suma importância, daremos nesse tópico especial


destaque ao poeta clássico Luiz de Camões e sua obra lírica e prosa poética,
essenciais a todo e qualquer estudante que seja amante das Letras e obras
mundialmente reconhecidas como de especial relevância para a compreensão
de determinados períodos.

2 ENTRE REINOS E CASTELOS, O AMOR


Conhecer o momento histórico e suas implicâncias na sociedade são
cruciais para que possamos apreender certos detalhes que reverberam até os dias
atuais. Por exemplo, nesta unidade estamos falando inicialmente sobre o Período
Medieval, certo? Logo, isso nos remete às épocas em que os cenários eram mais
rurais que urbanos, ou ao menos não tão urbanos como no sentido que conhecemos
as cidades de agora. Estamos entre os períodos feudais, transitando para o período
renascentista e isso já nos faz lembrar que, embora as cronologias históricas sejam
divididas em datas, elas não são estanques, ou seja, há resquícios de características
de uma e outra em diferentes estágios, como assinala Moisés (2008):

19
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Assim sendo, compreende-se que este panorama histórico da


atividade literária de Portugal esteja dividido nos seus fundamentais
momentos evolutivos. No tocante às datas empregadas para os
delimitar, constituem somente pontos de referência, pois nunca se
sabe com precisão quando começa ou termina um processo histórico:
funcionam, na verdade, como indício de que alguma coisa de novo
está acontecendo, sem caracterizar a morte definitiva do padrão velho
até aí em voga (MOISÉS, 2008, p. 21).

Com tudo isso, queremos já adentrar ao universo das novelas de cavalaria


que, certamente, você estudante já conhece: quem nunca assistiu a algum filme
que mostrasse tais cenários épicos com os lendários cavaleiros e suas armaduras,
além das belas donzelas sempre aguardando serem salvas, ou dos reis e rainhas e
do povo como coadjuvante da história?

Mas antes de olharmos para isso, foquemos no gênero literário que


trataremos aqui: a novela. Você certamente já assistiu a uma ou ouviu falar
de alguma telenovela brasileira.? Pois antes da televisão, nas artes literárias
encontramos o gênero literário “novela” que, embora não seja muito comentado,
situa-se entre o conto – que é um gênero narrativo menor – e o romance – que
é um gênero narrativo maior. Ora, a novela consegue trazer um pouco mais de
desenvolvimento ao enredo da história que um conto, mas certamente não deve
se estender tanto na narrativa quanto um romance.

Como classificar os gêneros literários, então? Vai depender do bom senso


e da observação da estrutura narrativa, embora possamos encontrar estudiosos
que classifiquem uma mesma obra de formas diferentes. O importante a perceber
aqui é que a novela é o principal exemplo em prosa desse período justamente
porque o romance, como você irá estudar adiante, é um gênero literário que
nasce com a ascensão da burguesia na Europa e se difunde com a consolidação
da imprensa.

Veremos a seguir, então, como as novelas de cavalaria se difundiram


em Portugal, que é nosso ponto central nestes estudos, mas lembrando que
tais histórias não se limitam somente a esse país, haja vista que podem ser
divididas em três grandes ciclos que abarcam toda a Europa Ocidental: o ciclo
carolíngio; o ciclo clássico; e o ciclo bretão, que é onde se encontram as novelas
aqui tratadas. Ressalte-se ainda que as novelas de cavalaria trazem as biografias
dos guerreiros lendários que lutavam por um ideal, seja por Deus; por uma
causa, geralmente religiosa ou de honra (ética e moral); ou por sua amada, uma
mulher também divinizada.

20
TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

3 AS NOVELAS DE CAVALARIA
As novelas de cavalaria são os registros em prosa do Período Medieval,
isso quer dizer que, diferentemente da poesia lírica estudada no Tópico 1, o
enredo é maior e há mais personagens envolvidos na história. As mais conhecidas
histórias de cavalaria, e que você já deve ter ouvido falar, são as lendas do Rei
Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda.

Essas narrativas traziam um ideal de cavaleiro que a Igreja pretendia


reproduzir, ou seja, o herói fiel, dedicado, cortês e, obviamente, cristão. Por isso,
também, muitas novelas de cavalaria giravam em torno da Demanda do Graal,
relacionado-se diretamente aos mistérios a respeito da vida de Jesus Cristo. Além
disso, essas narrativas são classificadas dentro do que ficou conhecido como o
ciclo Bretão supracitado, onde percebe-se que:

O ciclo Bretão, já denominado anteriormente matéria da Bretanha,


é repleto de imaginação mística, devoção amorosa, ardente lirismo,
sonhos, imaginação, sentimentalismo e exaltação religiosa. A temática
central é o amor, a prostração e a fascinação passional, a divinização
da mulher, tudo isso misturado ao espírito bélico. Tem origem nas
populações célticas da Grã Bretanha que se fixaram no norte da França
(FERRAZ, 2008, p. 37-38).

Há algumas semelhanças entre o protagonista rei Arthur e Jesus


Cristo, pois ambos possuíam 12 seguidores, os discípulos deste e os cavaleiros
daquele. O rei Arthur reunia-se com os seus numa távola redonda, onde não
havia hierarquia de lugares, ou seja, representava a igualdade entre todos. Essa
mesma távola poderia aludir à mesa na qual Jesus reuniu os discípulos e fez a
Santa Ceia. O rei Arthur foi traído pelo seu primeiro cavaleiro, Lancelot, que
teve um caso de amor com Guinevere, a esposa daquele. Jesus foi traído por seu
discípulo Judas. Ambos os personagens trazem os ideais de bondade e santidade,
denotando assim a relação religiosa desse ideal de cavaleiro propagado nesse
período (FERRAZ, 2008, p. 38).

Ora, as novelas de cavalaria trazem o ideal do “amor cortesão” de forma


mais elaborada do que apontado na lírica trovadoresca, pois através da prosa
se consegue criar cenários e façanhas dignos das buscas heroicas as quais tais
guerreiros pretendiam. Todavia, devemos ver que durante essa época as grandes
conquistas eram travadas, e por consequência, idealizadas e romantizadas,
refletindo-se nas literaturas visto que essas, a partir do momento em que a escrita
passa a ser o registro “da verdade”, irão figurar entre as memórias desses povos.

Além disso, as conhecidas Cruzadas, ocorridas entre os século XI e XIII,


foram pontos marcantes nesse processo de expansão da religião católica. Por
isso é tão importante criar um imaginário em que o cavaleiro herói é aquele de
determinadas formas, detentor de grandes qualidades que, no caso à época,
transitava pelo ideal cristão, embora também já se insinuando para o Humanismo,
que vem a seguir e que veremos no próximo tópico.

21
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Em Portugal, por volta do século XIV, surge a mais antiga e conhecida


novela de cavalaria chamada “Amadis de Gaula”, cercada de mistérios acerca de
sua autoria, se seria portuguesa ou espanhola, por isso alguns estudiosos afirmam
se tratar de um material da Península Ibérica a fim de resolver a questão. O breve
resumo dessa história quem nos dá é Lopes e Saraiva:

Amadis é o fruto dos amores clandestinos de Elisena e do rei Perion,


que o abandonam às águas do mar. Salvo por uma família que lhe não
sabe a origem, vem a ser escolhido para pajem da infanta Oriana, a
quem a rainha apresenta com estas palavras: ‘– Amiga, este é o donzel
que vos servirá’. O donzel guarda tais palavras no seu coração, e
desde então a sua vida desdobra-se num longo serviço inteiramente
cansagrado à amada. Durante muito tempo, a timidez inibiu-o de se
declarar. Depois, o amor entre os dois foi um segredo cuidadosamente
guardado. Ninguém sabia que era por Oriana que Amadis se arriscava
a combates nunca vistos com gigantes ou monstros. O cavaleiro
invencível quase deixa cair a espada das mãos ao ver, da arena de
combate, a senhora na assistência, e quando, por um mal-entendido,
ela o acusa injustamente de infidelidade, resolve deixar o mundo e
fazer-se ermitão. O longo serviço de Amadis teve no entanto um
merecido prêmio porque, quando uma aventura propícia deixa os
dois namorados a sós na floresta, escreve o autor, ‘naquela erva e em
cima daquele manto, mais por graça e comedimento de Oriana que
por desenvoltura e ousadia de Amadis, foi feita dona a mais formosa
donzela do mundo’ (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 95).

NOTA

DICASA - Essa região geográfica, embora seja fruto de disputas sociopolíticas,


encontra-se abarcada, principalmente, pelos países da Espanha e Portugal.

Todavia, diferentemente do que ocorre em outras novelas de cavalaria,


a exemplo das sagas do rei Arthur e seus cavaleiros, em que ocorrem amores
adúlteros, Amadis e Oriana, personagens da novela portuguesa, consumam um
amor entre duas pessoas solteiras que eram. Outra diferença é que também ocorre
a consumação carnal ou sexual dos personagens, diferente do que se exigia das
outras novelas de cavalaria, em que o personagem principal deveria ser casto
e sofreria todo tipo de provação para manter sua virgindade, pois conforme se
dizia daquelas:

A obra tem uma intenção religiosa e representa, relativamente à moral


cortês que inspira os cantares de amor, uma completa inversão de
valores. Ao passo que na lírica cortês, como em todo o romance cortês
anterior a esta fase, se exalta o amor como caminho para a felicidade e a
perfeição moral, na Demanda todo o amor é considerado pecaminoso,
e a virgindade recomendada como o estado mais perfeito (LOPES;
SARAIVA, 1969, p. 93).

22
TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

Para se familiarizer com as características da história de Amadis e Oriana,


acompanhe, a seguir, um capítulo dessa novela e, se possível, leia a história
completa disponível no endereço da fonte citada, já que se trata de uma obra
pública, assim como todas as obras tratadas nesta unidade. Essa foi considerada a
novela de cavalaria mais importante de toda a Península Ibérica e seu protagonista,
Amadis, é frequentemente citado por Dom Quixote, protagonista do romance
espanhol de Miguel Cervantes, Dom Quixote de la Mancha, que se trata de uma
novela de cavalaria que faz uma sátira do próprio gênero. Contudo, leia agora o
“Amadis” português:

CAPÍTULO XX

[Capítulo traduzido por Augusto Cézar Filho]

Como Arcalaus levou novas à corte do rei Lisuarte como Amadis era morto e os grandes
prantos que em toda a corte por ele se fizeram, em especial Oriana.
Tanto andou Arcalaus, depois que se partiu de Amadis, onde o deixou
encantado, em seu cavalo e armado com suas armas, que aos dez dias chegou a
casa do rei Lisuarte, uma manhã quando o sol saía; e nesta sazão o rei Lisuarte
cavalgava com mui grande companhia; e andava entre o seu palácio e a
floresta, e viu como vinha Arcalaus contra ele; e quando conheceram o cavalo
e as armas, todos cuidaram que Amadis era. E o rei foi-se a ele mui alegre, mas
sendo mais perto, viram que não era o que pensavam, que ele trazia o rosto e
as mãos desarmadas, e foram maravilhados. Arcalaus foi ante el rei e disse-lhe:
– Senhor, eu venho a vós porque fiz tal preito de aparecer aqui a contar como
matei numa batalha um cavaleiro; e por certo, eu venho com vergonha, porque
antes dos outros que de mim queria ser louvado; mas não posso al fazer, que
tal foi o acordo entre ele e mim: que o vencedor cortasse a cabeça ao outro e se
apresentasse ante vós hoje neste dia; e muito me pesou, que me disse que era
cavaleiro da Rainha. E eu lhe disse que, se me matasse, que matava Arcalaus,
que assim é o meu nome. E ele disse que se chamava Amadis de Gaula; assim
ele desta guisa recebeu a morte, e eu fiquei com a honra e prez da batalha.
– Ai Santa Maria val! – disse o Rei – morto é o melhor cavaleiro e mais esforçado
do mundo. Ai Deus, senhor! E por que vos prougue de fazer tão bom começo
e em tal cavaleiro?
E começou a chorar mui esquivo [horrível] pranto, e todos os outros que ali
estavam. Arcalaus voltou por donde viera, e maldiziam-no os que o viam,
rogando e fazendo petição a Deus que lhe desse cedo má morte; e eles
mesmos lha dariam, se não fosse porque, segundo a sua razão [segundo as
suas palavras], não havia causa nenhuma para isso. O Rei foi-se para o seu
palácio mui pensativo e triste à maravilha. E as novas soaram por todas as
partes, até chegarem a casa da Rainha; e as donas que ouviram ser Amadis
morto, começaram a chorar, que de todas era mui amado e querido. Oriana,
que na sua câmara estava, pediu à Donzela de Dinamarca que fosse saber que
cousa era aquele pranto que se fazia. A donzela saiu e, quando o soube, voltou,
ferindo com as suas mãos o rosto e, chorando mui feramente, olhava para

23
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Oriana; e disse-lhe:
– Ai, senhora, que coita e que grande dor!
Oriana estremeceu toda e disse:
– Ai, Santa Maria, é morto Amadis?
A donzela disse:
– Ai, cativa, que morto é!
E fraquejando a Oriana o coração, caiu em terra como morta. A donzela, que
assim a viu, deixou de chorar e foi-se a Mabília, que fazia grande dó, arrancando
os seus cabelos, e disse-lhe:
– Senhora Mabília, acorrei a minha senhora, que morre.
Ela voltou a cabeça e viu Oriana jazer no estrado como se morta fosse; e ainda
que a sua coita fosse mui grande, que mais não podia ser, quis remediar o que
convinha e mandou a donzela fechar a porta da câmara, para que ninguém
assim a visse, e foi tomar Oriana nos braços e fez-lhe deitar água fria pelo
rosto, com que logo acordou um pouco; e como falar não pôde, disse chorando:
– Ai, amigas! Por Deus, não estorveis a minha morte, se o meu Descanso
desejais, e não me façais tão desleal que só uma hora viva sem aquele que,
não com a minha morte, mas com a minha má vontade, não poderia viver
sequer uma hora.
Outrossim disse:
– Ai, flor e espelho de toda a cavalaria, que tão grave e estranha é para mim
a vossa morte! Que por ela não somente eu padecerei, mas todo o mundo,
ao perder aquele grande chefe e capitão, assim nas armas como em todas as
outras virtudes, e em quem os que vivem exemplo podiam tomar! Mas se
algum consolo ao meu triste coração consolo dá, não é senão que, não podendo
ele sofrer tão cruel ferida, despedindo-se de mim vá para o vosso; que, ainda
que na terra fria seja a sua morada, onde desfeitos e consumidos serão aquele
grande acendimento de amor que, sendo nesta vida separados, com tanto
alento sustinham, muito maior na outra, sendo juntos, se possível fosse ser-
lhes outorgado, sustentarão.
Então esmoreceu de tal guisa que de todo em todo cuidaram que morta
fosse; e aqueles seus mui formosos cabelos tinha revoltos e estendidos por
terra, e as mãos tinha sobre o coração, onde a raivosa morte lhe sobrevinha,
padecendo em maior grau aquela cruel tristeza do que os prazeres e deleites
até ali em seus amores havido haviam, assim como em semelhantes cousas
desta qualidade continuamente acontece. Mabília, que verdadeiramente
cuidou que morta era, disse:
– Ai, Deus Senhor! Não te praza de eu mais viver, pois as duas cousas que
neste mundo mais amava estão mortas.
A donzela disse-lhe:
– Por Deus, senhora, não falte em tal hora vossa discrição, e acorrei ao que
remédio tem.

24
TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

Mabilia, ganhando esforço, levantou-se e, tomando Oriana, puseram-na no


seu leito. Oriana suspirou então, e mexia os braços por uma e outra parte,
como se a alma se lhe arrancasse. Quando isto viu Mabília, tomou um pouco
de água e tornou a deitar-lha pelo rosto e pelos peitos; e fez-lhe abrir os olhos
e acordar um pouco mais, e disse-lhe:
– Ai, senhora! Que que pouco siso esse, que assim vos deixais morrer com
novas tão levianas como aquele cavaleiro trouxe, não sabendo ser verdade; o
qual, ou por ter pedido aquelas armas e cavalo a vosso amigo, ou quiçá por
lhos haver roubado, os poderia alcançar, que não por aquela via que ele disse;
que não o fez Deus tão sem ventura a vosso amigo para assim tão cedo do
mundo o tirar; o que vós fareis, se de vossa coita tão grande algo se sabe, será
perder-vos para sempre.
Oriana se esforçou um pouco mais, e tinha os olhos postos na janela onde
falara com Amadis, no tempo que ali primeiro chegou, e disse com voz mui
fraca, como aquela que as forças havia perdidas:
– Ai, janela, que coita é para mim aquela formosa fala que em ti foi feita; eu
sei bem que não durarás tanto que em ti outros dois falem tão verdadeira e
desenganada fala!
Outrossim disse:
– Ai, meu amigo, flor de todos os cavaleiros, quantos perderam socorro e
defesa com a vossa morte, e que coita e dor a todos eles será, mas a mim muito
maior e mais amarga, como aquela que, muito mais que sua, vossa era! Que
assim como em vós era todo meu gozo e minha alegria, assim vós faltando,
é tornado no contrário de graves e incomportáveis tormentos; o meu ânimo
assaz será fatigado, até que a morte, que eu tanto desejo, me venha, a qual,
sendo causa que a minha alma com a vossa se junte, de mui maior descanso
que a atribulada vida me será ocasião.
Mabília, com semblante sanhudo, disse:
– Como, senhora! Pensais vós que, se eu estas novas acreditasse, que teria
esforço para consolar alguém? Não é assim pequeno nem leviano o amor que
a meu primo tenho; antes, assim Deus me salve, se com razão o pudesse crer,
nem a vós nem a quantos neste mundo bem o querem daria vantagem naquilo
que por sua morte se devia mostrar e fazer; assim que o fazeis não vos tem
prol, e poderia muito dano trazer, pois que com isso mui asinha se poderia
descobrir o que tão encoberto temos.
Oriana, ouvindo isto, disse-lhe:
– Disso já pouco cuidado tenho, que agora, tarde ou cedo, não pode tardar de
ser a todos manifesto, ainda que eu pugne por o encobrir; que quem viver não
deseja, nenhum perigo pode temer, mesmo se viesse.
Nisto que ouvis estiveram todo aquele dia, dizendo a Donzela de Dinamarca a
todos como Oriana não se ousava afastar de Mabília, para que se não matasse,
tão grande coita era a sua; mas vinda a noite, com mais fadiga a passaram, que
Oriana esmorecia muitas vezes, tanto que nunca à alva pensaram que chegasse,
tanto era o pensamento e a coita que no coração tinha. Pois no outro dia, na hora
em que iam pôr os mantéis ao Rei [Pôr a mesa para o almoço da manhã], entrou

25
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Brandoívas pela porta do palácio, levando Grindalaia pela mão, como aquela a
quem afeição tinha, que muito prazer aos que o conheciam deu, porque grande
espaço de tempo havia passado que dele nenhumas novas soubessem; e ambos
ajoelharam ante el Rei. El Rei, que o muito prezava, disse assim:
– Brandoívas, sede mui bem vindo; como tardastes tanto, que muito vos temos
desejado?
A esta razão que el Rei lhe dizia, respondeu e disse:
– Senhor, fui metido em tão grande prisão que dela não poderia sair de
nenhuma guisa, senão pelo mui bom cavaleiro Amadis de Gaula, que, pela
sua cortesia, me tirou a mim e a esta dona e a outros muitos, fazendo tanto em
armas qual nenhum outro fazer pudera; e tê-lo-ia morto pelo maior engano
que se nunca viu o traidor Arcalaus; mas foi socorrido por duas donzelas que
não o deveriam amar pouco.
El Rei, quando isto ouviu, levantou-se logo da mesa e disse:
– Amigo, pela fé que a Deus deveis e a mim, dizei-me se é vivo Amadis.
– Por essa fé, senhor, que dizeis, digo que é verdade, que o deixei vivo e são
ainda não há dez dias; mas porque o perguntais?
– Porque nos veio dizer ontem à noite Arcalaus que o matara – disse el Rei.
E contou-lho em qual guisa ele lho havia contado.
– Ai, Santa Maria! – disse Brandoívas –, que traidor malvado! Pois pior se lhe
fez o preito do que ele cuidava.
Então contou a el Rei quanto lhes acontecera com Arcalaus, que nada faltou,
como já o ouvistes antes disto. El Rei e todos os de sua casa quando o ouviram,
ficaram tão alegres que mais não podiam ficar. E mandou que levassem
Grindalaia à Rainha e que lhe contasse as novas do seu cavaleiro, a qual,
tanto por ela como por todas as outras, foi com muito amor e grande alegria
recebida, pelas boas novas que lhes disse.
A Donzela de Dinamarca, que as ouviu, foi o mais asinha que pôde dizê-las
à sua senhora, que de morta a viva a tornaram; e mandou-lhe que fosse à
Rainha e que lhes enviasse a dona, porque Mabília lhe queria falar; e logo o
fez, que Grindalaia foi à câmara de Oriana e disse-lhes todas as boas novas
que trazia. Elas lhe fizeram muita honra, e não quiseram que em outra parte
comesse senão à sua mesa, para poder saber mais por extenso aquilo que tão
grande alegria aos seus corações, que tão tristes haviam estado, lhes dava; mas
quando Grindalaia lhes contava por onde Amadis havia entrado na prisão, e
como matara os carcereiros e a tirara a ela donde tão coitada estava, e a batalha
que com Arcalaus tivera, e tudo o resto que se tinha passado, grande piedade
fazia ter as suas amigos. Assim como ouvis estavam no seu comer, tornada a
sua grande tristeza em muita alegria. Grindalaia despediu-se delas e voltou
para onde a Rainha estava, e encontrou ali o rei Arbão de Norgales, que a
muito amava, e que a andava buscando, sabendo que ali era vinda. O prazer
que ambos tiveram não se vos poderia contar. Ali foi acordado entre eles que
ela ficasse com a Rainha, pois que não encontraria em nenhuma parte outra
casa que tão honrada fosse. E Arbão de Norgales disse à Rainha como aquela

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TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

dona era filha do rei Adroid de Serelois, e que, como todo o mal que recebera
havia sido ele a causa dele, que lhe pedia por mercê que a tomasse consigo,
pois ela queria ser sua.
Quando a Rainha isto ouviu, muito lhe prougue de em sua companhia a
receber, assim pelas boas novas que de Amadis de Gaula trouxera, como por
ser pessoa de tão alto lugar. E tomando-a pela mão, como a filha de quem era,
fê-la sentar ante si, pedindo-lhe perdão se a não tinha honrado devidamente,
que a causa disso fora não a conhecer. Também soube a Rainha como esta
Grindalaia tinha uma irmã mui formosa donzela, que Aldeva se chamava, que
em casa do duque de Bristoia se havia criado, e mandou a Rainha que logo lha
trouxessem, para que em sua casa vivesse, porque a desejava muito ver. Esta
Aldeva foi a amiga de D. Galaor, aquela por quem ele recebeu muitos nojos do
anão de quem já ouvistes falar.
Assim como ouvis estava el Rei Lisuarte e toda a sua corte muito alegres e com
desejo de ver Amadis, que tão grande sobressalto lhes tinham dado aquelas
más novas que lhes dele haviam dito; dos quais deixará a história de falar, e
contará de D. Galaor, que há muito que dele não se contou nem se fez memória.
(continua)

FONTE: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:yBbjw-z63F4J:https://
rl.art.br/arquivos/6615680.pdf+&cd=6&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 10 ago. 2019.

Vale destacar que a linguagem encontrada nessa obra se assemelha


muito ao português moderno. Entre os principais temas dessa novela vemos a
fidelidade de Amadis à Oriana, o conflito entre o platonismo (o amor idealizado)
e o desejo físico, pois ambos mantém relações sexuais, explicitando esse desejo
carnal tão condenado pela Igreja, inclusive o enredo aponta tal desejo por parte
da mulher, como se vê em Oriana, haja vista que é ela quem toma a iniciativa de
ir até Amadis, ou seja, aqui o papel da mulher se torna ativo, diferentemente do
que era retratado nas cantigas estudadas no tópico anterior.

Mas o sentimentalismo e lirismo continuam marcantes, assim como nas


cantigas. Os protagonistas sofrem e adoecem de amor, e querem morrer quando
estão longe um do outro, como se vê no capítulo citado anteriormente em que
Oriana, ao saber da possível morte do amado, perde as forças de viver e quer se
deixar morrer.

Para finalizar esse tópico, salienta-se o fato de que as novelas de cavalaria


influenciaram e ainda influenciam diferentes artistas, inclusive encontramos
seus traços nos romances românticos português e brasileiro (FERRAZ, 2008, p.
52). Além disso, as literaturas infantis são recheadas de histórias com castelos,
reis, rainhas, príncipes e princesas que trazem os motes dessas novelas para
expressar a honra do protagonista cavaleiro, salvador da donzela, e aventureiro
que desbrava mundos.

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UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

DICAS

Embora certamente você já tenha assistido


a algum filme sobre esse período medieval, em que
os cavaleiros honrados realizam suas sagas, deixamos
aqui algumas sugestões para ver ou rever, como As
brumas de Avalon; Lancelot, o primeiro cavaleiro;
Excalibur; Tristão e Isolda, e ainda o filme sobre
as Cruzadas de nome homônimo em português,
dirigido por Ridley Scott (2005). Além dos filmes, a
maioria dessas obras estão escritas em livros, e vale a
pena conferir a leitura. FONTE: <http://twixar.me/m4RT>.
Acesso em: 1 fev. 2020.

4 O TEATRO DE GIL VICENTE


A partir de agora, estamos entre o final do século XIII e início do XIV,
período em que surge o Humanismo, um movimento intelectual, filosófico
e artístico que representava a transição do pensamento e da cultura medieval
europeia que vai culminar no Renascimento. O Humanismo tinha como fonte a
volta às origens do cristianismo, haja vista a corrupção que se alastrava na Igreja,
e uma revalorização do clássico, remetendo-se às fontes greco-romanas de artes
e concepções em geral.

Como resultado dessas releituras, surgem conceitos racionalistas, e os


humanistas trazem para o centro de tudo a figura humana, diferente da concepção
adotada por toda Idade Média que era Deus como o centro de tudo. Desse modo,
passa-se de uma visão teocêntrica para uma visão antropocêntrica da história. Os
italianos Francesco Petrarca e Dante Aliguieri foram os principais expoentes da
escola humanista.

Em Portugal, o grande representante desse movimento foi Gil Vicente,


fundador do teatro diferente dos teatros litúrgicos-religiosos que existiam até então.
Foi nesse período também que Portugal experimentou sua expansão marítima
tornando-se um grande e rico império, a universidade de Coimbra ganhou prestígio
e a cidade de Lisboa passou a figurar como de grande importância.

Façamos um parêntesis antes de falarmos do teatro português, pois


temos nessa mesma época as crônicas historiográficas como importante material
histórico e literário que ajudaram a organizar e preservar a história do país. Dentre
os principais cronistas, destaca-se Fernão Lopes, que é considerado o primeiro
historiador oficial de Portugal (LOPES; SARAIVA, 1969). Além de observar os

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TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

costumes da corte, o cronista também tinha contato com o povo fazendo questão
de registrar a história deste, pois “O seu interesse vai antes para a gente que se
move e faz mover as coisas” (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 126).

Voltando à figura selecionada para tratar desse período humanista,


vemos nas obras de Gil Vicente personagens da mitologia greco-romana e,
embora fosse cristão, tinha fortes críticas ao teocentrismo dogmático, além de
combater a intolerância religiosa, defendendo os judeus. Quanto à estrutura
de suas peças, encontram-se as peças de enredo, que apresentam início, meio e
fim, com clímax e desfecho; e as peças de ação fragmentada, onde não se vê o
enredo, mas sim quadros fragmentados de ações, ou seja, as cenas não possuem
necessariamente uma ordem.

É interessante notar que o teatro vicentino abarca “personagens típicas”,


donde caracteriza tanto a nobreza e o clero quanto personagens populares;
além de trazer também, “personagens alegóricas”, que representam ideias ou
instituições. Ressalta-se a importância de conhecer as obras desse autor pelo fato
de que a crítica a respeito das artes cênicas em Portugal a coloquem como de
pouca fecundidade, no entanto, segundo Lopes e Saraiva:

Graças a certos elementos ideológicos e estéticos, o teatro vicentino


também ajuda a criar, entre nós, uma inovadora atmosfera
humanista e renascentista, que as condições históricas já referidas
mal deixaram sobreviver à carreira do dramaturgo. Por outro lado, a
despreconceituosa diversidade das suas fontes, estruturas e tonalidades
comunica esse tão saboroso teatro uma vivacidade que, por vezes, o
torna extraordinariamente moderno (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 183).

Os principais estilos de suas obras são os Autos, nos quais ocorrem


diálogos simples e a vida de igual modo; e as Farsas, aquelas encenações satíricas
de gosto popular. Suas principais obras são “O auto da barca do inferno” e a
“Farsa de Inês Pereira”, embora sua vasta produção concentre mais de 44 peças
de teatro. Recomendamos que você leia essas duas obras na íntegra para melhor
compreender as características trabalhadas pelo autor, mas trazemos aqui um
breve resumo dessas.

O Auto da Barca do Inferno é uma obra alegórica, ou seja, representa uma


ideia moralizante. As personagens entram na barca com os objetos de suas
culpas, materializando seus apegos às coisas terrenas. Essas personagens refletem
estereótipos da sociedade portuguesa medieval e já estão com seus destinos
traçados, ou seja, os bons irão para o céu e os maus irão para o inferno. Há aqui
forte influência da religiosidade do autor, embora ele também fosse um ácido
crítico da corrupção na Igreja e a favor da reforma desta.

Já em A farsa de Inês Pereira, encontramos a história de uma moça


provinciana rica que se casa por capricho com um escudeiro. Porém, essa união é
de insucesso, logo, após sua viuvez ela escolhe novo marido, um rico e tolo que a
deixa fazer o que bem quiser.

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UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Como as peças citadas são demasiado longas, trazemos aqui a leitura


na íntegra da peça, também alegórica, chamada Todo Mundo e Ninguém, cuja
finalidade é refletir sobre a moral das pessoas não somente da época, mas quem
sabe de momentos atuais, por que não?

Todo o Mundo e Ninguém

Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome


é "Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste
mundo. Em torno desta conversa, dois demônios (Belzebu e Dinato) tecem
comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas
ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens.
Representada pela primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior,
chamada Auto da Lusitânia (no século XVI, chama-se auto ao drama ou comédia
teatral), a obra é de autoria do criador do teatro português, Gil Vicente.
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa
que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama
Ninguém e diz:
Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém ando
porfiando por quão bom é porfiar.
[Porfiando: insistindo, teimando.]
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
[O verbo haver nestes versos tem o sentido de ter].
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo e meu tempo todo inteiro sempre
é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo.
[E sempre nisto me fundo: e sempre me baseio neste princípio, nesta idéia].
Ninguém: Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência: Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que ninguém busca consciência e todo o mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude: escreve logo aí, a fundo, que busca honra
todo o mundo
e ninguém busca virtude.
[Adição: acrescentamento].
Acude: ocorre.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?
[A palavra mor, muito pouco empregada atualmente, é uma forma abreviada
de maior. Poderíamos dizer, pois: buscas outro maior bem...]
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.

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TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

Dinato: Que tens sabido?


Belzebu: Que quer em extremo grado todo o mundo ser louvado, e ninguém
ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
[Ma: me+a. Contração dos pronomes pessoais oblíquos, objeto indireto e
direto, respectivamente].
Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida: Todo o mundo busca a vida e ninguém conhece a
morte.
[Garrida: engraçada].
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso, sem mo ninguém estorvar.
[Mo: me+o. Contração do pronome objeto indireto me com o pronome
demonstrativo objeto direto o. Entenda-se no texto: sem ninguém estorvar isto
a mim]. [Estorvar: atrapalhar].
Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo para isso.
[Ponho: entenda-se: proponho].
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve que todo o mundo quer paraíso e ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar, e mentir nasceu comigo.
[Folgo: tenho prazer, gusto].
Ninguém: Eu sempre verdade digo sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que todo o mundo é mentiroso, E ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear.
[Lisonjear: elogiar].
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro: Todo o mundo é
lisonjeiro, e ninguém desenganado.
[mui: forma reduzida de muito]

FONTE: <https://www.portaldafamilia.org/artigos/artigo098.shtml>. Acesso em: 19 ago. 2019.

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UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Ainda, conforme pontuam Lopes e Saraiva (1969, p. 206) sobre a


importância deste autor:

De facto, Gil Vicente não é um realista, se entendermos por tal aquele


que considera a realidade observável como um todo independente e
encerrado em si mesmo, com o seu dinamismo próprio; esta realidade
observável constitui para ele somente uma das faces do mundo. Gil
Vicente não procura apenas no homem e nos grupos humanos a
mola que desencadeia os conflitos e as contradições. As suas peças
alegóricas são corporizações de uma visão religiosa, em que a realidade
observável entra como um elemento.

O autor influenciou toda uma época em que o gênero teatral começou


a ganhar adeptos durante esse período na Europa, sendo até hoje uma grande
referência nas artes cênicas portuguesas. Seus textos são riquíssimos em termos
de personagens e enredos que trazem as críticas ao clero, à nobreza e aos
estereótipos populares de mulheres adúlteras, maridos traídos, frades devassos,
velhos ridículos, caipiras e suas formas típicas de falar, ou seja, o dramaturgo
baseava-se na vida cotidiana para trazer reflexões comuns aos ideais humanistas
e mesmo uma autocrítica da sociedade portuguesa e suas vidas ordinárias,
independentemente da posição social que ocupavam. Não deixe de conferir seus
textos para comparar com cenários da atualidade!

Nesse sentido, uma bela forma de intertextualidade pode ser encontrada


no livro chamado O auto do busão do inferno, de Álvaro Cardoso Gomes (2007).
O mote do livro é sobre Lola e o estudante Tato. Quando a professora Lola pede
que a turma faça um trabalho sobre O auto da barca do inferno, o aluno rebelde
não dá a mínima, no entanto, no decorrer da trama ele começa a despertar seu
interesse. Excertos da peça e detalhes sobre Gil Vicente são trazidos à tona. Esse
tipo de texto é de grande valia quando utilizado em sala de aula para apresentar
adaptações atualizadas a respeito das obras clássicas. Além disso, pode servir
para instigar trabalhos pedagógicos como, por exemplo, propor uma releitura
de uma das peças vicentinas. É possível inserir tecnologias e estereótipos sociais
atualizados em praticamente todas as suas escritas. Experimente!

DICAS

Assista ao documentário “Grandes livros” sobre o “Auto da Barca do Inferno”,


clássico de Gil Vicente. Nesse material, além de conhecer os personagens e suas
características, vários especialistas trazem um pouco sobre a vida desse grande autor
português. Disponível em: https://vimeo.com/51449281.

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TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

5 CAMÕES – O CLÁSSICO ÉPICO E LÍRICO


Certamente você já ouviu falar de Camões e seus inúmeros poemas, ou
ainda de seu clássico Os Lusíadas. Na verdade, é recomendável que você procure
ler a obra, pois se trata de um grande autor que influenciou e ainda influencia
artistas literários, por isso esse tópico será maior que os outros e, mesmo assim,
não será suficiente para tratar da enorme complexidade de um dos maiores poetas
de todos os tempos de nossa língua portuguesa.

No que tange ao momento histórico que Camões viveu, encontramo-nos


agora no período em que o movimento cultural Renascentista está em pleno vigor
na Europa. E o movimento artístico desta época é chamado de Classicismo, pois
em fusão com as ideias humanistas apontadas no tópico anterior, a partir do final
do século XV esse movimento toma forma consistente e se propaga pela Europa.
Historicamente, ocorre a decadência do Feudalismo e a ascensão da chamada
burguesia, uma nova classe social. Além disso, o modelo econômico feudal é
substituído pelo capitalismo mercantil.

O poder político também é substituído pela monarquia absoluta, onde


em Portugal temos D. João II. A Igreja entra em crise, com o surgimento das
Reformas Protestantes, ou seja, de um modo geral, um novo tipo de sociedade
estava se projetando, embora seja importante lembrar que os modelos antigos e
novos coexistiram por determinados períodos.

É nessa época, também, que a imprensa se populariza, fazendo com que


várias obras gregas e latinas fossem traduzidas e difundidas de maneira impressa.
É sobretudo em Platão e Aristóteles que os artistas renascentistas irão buscar
modelos de artes e ideais estéticos, desse modo, “Os escritores e pensadores
do Renascimento estudaram e imitaram os clássicos da antiguidade, voltando
à prática de formas e gêneros literários antigos, como a epopeia, a ode, a elegia, a
tragédia, a comédia etc” (FERRAZ, 2008, p. 72-73).

Em relação às poesias líricas, um novo tipo de verso entra em vigor


para se contrapor às redondilhas medievais ou medida velha, que tinham 5 ou
7 sílabas. A medida nova ficou conhecida como decassílabo e é muito usada até
os dias atuais. Os principais poemas que se difundiram nessa época foram os
sonetos, dos quais Camões escreveu centenas, embora tenha escrito também
outros estilos de poemas.

Os sonetos possuem uma sonoridade especial, sendo geralmente composta


por 14 versos divididos em dois quartetos, de quatro versos, e dois tercetos, de
três versos cada. Seus versos devem possuir o mesmo número de silábas poéticas,
ou seja, métricas. Essas sílabas poéticas são diferentes das sílabas comuns das
palavras pois suas sílabas vão até a última sílaba tônica do verso, e são o que dão
musicalidade aos poemas.

33
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Os sonetos expressam o amor já tratado desde o princípio pelas cantigas


trovadorescas, ou seja, tem-se o amor como um ideal que engrandece e apura o
amante, mais platônico que real, regado de sofrimentos e não consumado.

Acompanhe, a seguir, um soneto em que Camões expressa esse amor tão


idealizado a tal ponto que o amante se transforma na amada, baseado no poeta
italiano Petrarca, o grande responsável pela difusão do gênero soneto à época.

Transforma-se o amador na cousa amada

Luís de Camões

Transforma-se o amador na cousa amada,


Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,


Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,


Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;


[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.

FONTE: <https://www.escritas.org/pt/t/2051/transforma-se-o-amador-na-cousa-amada>.
Acesso em: 10 ago. 2019.

Tal soneto é apontado como a expressão máxima do platonismo no poeta,


pois a obsessão pelo ser amado é tanto e tão desejado que aquele que ama perde-
se em si mesmo transformando-se nesse ideal de amorosidade. Ainda hoje,
inúmeros artistas, e mesmo nós mesmos, ainda mantemos nossas contradições e
desconcertos a respeito das emoções humanas, principalmente o amor, que pode
tanto nos humanizar quanto nos tornar nossas próprias sombras, não acha caro
estudante? Ou seja, tratar do amor ainda é, e talvez sempre será, um tema infinito
e diverso, fruto da beleza dessa heterogeneidade que é amar.

34
TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

Toda a lírica camoniana é perpassada por figuras de linguagem como


antíteses, metáforas, oxímoros, hipérboles, paradoxos, além de outras que você
pode pesquisar mais para descobrir suas funções em obras literárias. Registra-se
o fato de que as figuras de linguagem (ou figuras de estilo, ou ainda figuras de
retórica) são recursos discursivos utilizados na literatura como estratégias que
tragam aos textos maior maleabilidade quanto à linguagem padrão.

A reflexão do poeta sobre o homem e a natureza trazem um tom pessimista


a respeito do mundo, ou o “desconcerto do mundo”: “O desconcerto do mundo
reside na própria relação que ele [o poeta] se encontra e que, ao mesmo tempo
lhe é opaco” (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 347). A seguir, vemos um soneto que
explicita essas contradições existenciais em Camões, e adiante ainda, um dos
sonetos mais famosos que certamente já serviram a muitas declarações amorosas
nos mais diferentes tempos e espaços.

Quando os olhos emprego no passado

Camões

Quando os olhos emprego no passado,


de quanto passei me acho arrependido;
vejo que tudo foi tempo perdido,
que tudo emprego foi mal empregado.

Sempre no mais danoso mais cuidado;


tudo o que mais cumpria mal cumprido;
de desenganos menos advertido
fui, quando de esperanças mais frustrado.

Os castelos que erguia o pensamento,


no ponto que mais alto os erguia,
por este chão os via em um momento.

Que erradas contas faz a fantasia!


Pois tudo pára em morte, tudo em vento,
triste o que espera, triste o que confia!

FONTE: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/camoes144.html>. Acesso em: 10 ago. 2019.

35
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Amor é um fogo que arde sem se ver

Camões

Amor é fogo que arde sem se ver,


É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer:


É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

FONTE: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/camoes78.html#amor%C3%A9fogo>. Acesso em:


10 ago. 2019.

A principal figura de linguagem desse poema são as antíteses, que


expressam sentimentos de oposição. Essa é uma das, senão a principal, figuras
de linguagens utilizada pelo poeta, haja vista que traz as contradições da alma e
do espírito humano e seus eternos desvarios. Esse tema também, a contradição
de “ser” humano, também rende belos feitos artísticos, desde poemas a grandes
romances, filmes e músicas.

Poderíamos citar, ainda, inúmeros outros poemas do autor, mas além de


todas as poesias clássicas de Camões, temos sua obra fulcral chamada Os Lusíadas.
Você, acadêmico, deve ler esse poema épico na íntegra, pois se trata de uma
epopeia clássica portuguesa. Epopeia é um poema que retrata de forma narrativa
os feitos heroicos de um protagonista e relata fatos históricos dos indivíduos ou
mesmo de nações. No caso de Os Lusíadas, temos a história de Portugal como foco
central dessa exaltação, e segundo Ferraz (2008, p. 96):

A epopeia narra a história de Vasco da Gama e dos heróis portugueses


que navegaram em torno do Cabo da Boa Esperança e abriram uma
nova rota para a Índia. É uma epopeia humanista, mesmo nas suas
contradições, na associação da mitologia pagã à visão cristã, nos
sentimentos opostos sobre a Guerra e o Império, no gosto do repouso
e no desejo de aventura, na apreciação do prazer e nas exigências de
uma visão heroica.

36
TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

Sua estrutura externa é composta por dez partes, chamadas de cantos,


compondo um total de 1.102 estrofes. Sua estrutura interna é composta por quatro
partes, os conteúdos da obra, a saber: a proposição, ou seja, introdução da obra com
apresentação do assunto e dos heróis; a invocação, onde aparecem seres mitológicos
para inspirarem o poeta em sua escrita; a dedicatória, que é feita ao rei D. Sebastião,
que patrocinou a obra; e a narração em si, onde se desenvolve toda a história e os
feitos da viagem. Nessa obra, o herói é coletivo, ou seja, os lusíadas ou portugueses.
A ideia é engrandecer esse povo como se seu destino fosse se tornar mais glorioso
do que as civilizações anteriores, como as gregas e romanas.

Vejamos adiante um resumo dos principais temas a respeito da história de


Portugal elencados na obra.

O Concílio dos Deuses: os deuses do Olimpo são convocados para decidirem


se os portugueses devem ou não alcançar seu destino. Aqui aparecem os deuses
Júpiter, Baco, Vênus, Marte, Mercúrio e Apolo. As profecias são de que o povo
luso terá grandes feitos, embora tenha que passar por diversas provações.

Ilha de Moçambique: quando chegam na ilha, os portugueses são recebidos


pelos muçulmanos, que tramam destruir a frota embora estejam prometendo
mantimentos e um piloto para leva-los à desejada Índia. Aqui as artimanhas do
deus Baco ficam evidentes para tentar atrapalhar a viagem dos portugueses,
no entanto, ocorre a intervenção da deusa Vênus, que os protege nesse e em
outros momentos porque para ela esse povo lembra seus súditos romanos.

Mombaça: aqui também há intenção de uma cilada contra os portugueses,


mas novamente Vênus intervém e o deus Júpiter envia Mercúrio para alertar
Vasco da Gama a ir para outro lugar chamado Melinde.

Melinde: como previsto, o rei desse lugar acolhe bem o povo lusitano e pede
a Vasco da Gama que lhe conte toda a história de Portugal, que é narrada
em diferentes Cantos dando destaques à Batalha de Ouriques, à dinastia de
Borgonha, à história trágica de Inês de Castro e D. Pedro culminando na morte
da amada deste, além de outros momentos.

A expansão portuguesa: aqui, narram-se os episódios de organização dos


portugueses para irem desvendar o além-mar.

O velho do Restelo: é um personagem que aparece entre a multidão para


contestar a viagem, dizendo que seria “suicídio” submeter-se a tamanha
façanha e que os homens deveriam permanecer em Portugal para lutar as
guerras contra possíveis invasores.

A tempestade: Baco entra em acordo com Netuno para invocar uma grande
tempestade que ataca a frota portuguesa quase fazendo-a naufragar.

37
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

A Ilha dos Amores: uma ilha mítica onde toda a frota pode viver os prazeres
carnais.

A máquina do mundo: um espetáculo das esferas celestes e mais profecias


sobre o povo português.

Epílogo: aqui, o poeta encerra a história lamentando as injustiças do reino


para consigo, exalta a figura de D. Sebastião e lhe dá conselhos.

FONTE: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/camoes78.html#amor%C3%A9fogo>. Acesso em:


10 ago. 2019.

Em suma, a era clássica tanto em Portugal como na Europa em geral,


trouxe os sincretismos das culturas antigas, gregas e romanas, para reforçar a
consolidação dos povos europeus como “grandes conquistadores”, isso serviu
para, via de regra, justificar essas conquistas e elaborar uma ficção histórica em
que as colonizações estavam predestinadas e os heróis europeus venciam todas as
batalhas. Confira a seguir algumas partes do Canto IX, em que aparece o conluio
dos muçulmados para emboscar a frota portuguesa, entretanto um daqueles,
Monçaide, já convertido ao cristianismo, avisa o capitão Vasco da Gama sobre os
planos de seus conterrâneos.

Canto IX

Camões

Tiveram longamente na cidade,


Sem vender-se, a fazenda os dous feitores,
Que os Infiéis, por manha e falsidade,
Fazem que não lha comprem mercadores;
Que todo seu propósito e vontade
Era deter ali os descobridores
Da Índia tanto tempo que viessem
De Meca as naus, que as suas desfizessem.
Lá no seio Eritreu, onde fundada
Arsínoe foi do Egípcio Ptolomeu
(Do nome da irmã sua assi chamada,
Que despois em Suez se converteu),
Não longe o porto jaz da nomeada
Cidade Meca, que se engrandeceu
Com a superstição falsa e profana
Da religiosa água Maumetana.
Gidá se chama o porto aonde o trato
De todo o Roxo Mar mais florecia,
De que tinha proveito grande e grato

38
TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES

O Soldão que esse Reino possuía.


Daqui aos Malabares, por contrato
Dos Infiéis, fermosa companhia
De grandes naus, pelo Índico Oceano,
Especiaria vem buscar cada ano.
Por estas naus os Mouros esperavam,
Que, como fossem grandes e possantes,
Aquelas que o comércio lhe tomavam,
Com flamas abrasassem crepitantes.
Neste socorro tanto confiavam
Que já não querem mais dos navegantes
Senão que tanto tempo ali tardassem
Que da famosa Meca as naus chegassem.
Mas o Governador dos Céus e gentes,
Que, pera quanto tem determinado,
De longe os meios dá convenientes
Por onde vem a efeito o fim fadado,
Influiu piadosos acidentes
De afeição em Monçaide, que guardado
Estava pera dar ao Gama aviso
E merecer por isso o Paraíso.
Este, de quem se os Mouros não guardavam
Por ser Mouro como eles (antes era
Participante em quanto maquinavam),
A tenção lhe descobre torpe e fera.
Muitas vezes as naus que longe estavam
Visita, e com piedade considera
O dano sem razão que se lhe ordena
Pela maligna gente Sarracena.
Informa o cauto Gama das armadas
Que de Arábica Meca vem cad'ano,
Que agora são dos seus tão desejadas,
Pera ser instrumento deste dano;
Diz-lhe que vêm de gente carregadas
E dos trovões horrendos de Vulcano,
E que pode ser delas oprimido,
Segundo estava mal apercebido. [...]

FONTE: <https://oslusiadas.org/ix/>. Acesso em: 10 ago. 2019.

A era clássica renascentista trouxe o antropocentrismo para o centro da


razão, ou seja, o homem e suas façanhas são tomados enquanto prioridade. No caso
de Os Lusíadas, é uma obra que assume simbolicamente o papel de uma nação que
busca sua independência, mostrando que um pequeno país pode se tornar grande
ao ser provado em meio a tantos sofrimentos, mas que ao final vence e garante sua
identidade heroica, que será eternizada através da literatura camoniana.

39
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

DICAS

Convidamos você, acadêmico, a ler o artigo de Gilberto Mendonça Telles a


respeito da influência de Camões na poesia brasileira: O mito camoniano: a influência
Camões na cultura brasileira, disponível em http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/3035.
Uma pesquisa feita por mais de dez anos fizeram o professor afirmar que é inegável a
grande repercurssão desse poeta em diversas fases literárias em terras tropicais do Brasil. É
interessante notar o quanto essas intersecções nos trazem a diversidade e universalidade
da literatura, o que nos inspira a continuar descobrindo e redescobrindo os artistas,
independentemente da época em que escreveram. Diz o autor: “Verifica-se assim que o
processo da influência camoniana vai do nome do poeta, citado no texto dos poemas, aos
versos e nomes postos em epígrafe e adquirem um sentido maior de intertextualização
quando lhe retomam os temas e as formas expressivas” (TELLES, 1980, p. 45).

DICAS

Além de ler o livro, que já se encontra


em domínio público, você também pode ouvir
em audiolivro Os Lusíadas, de Camões, no
seguinte endereço: https://www.youtube.com/
watch?v=OtU0jqEnLtU.

Ainda sobre poeta e sua obra, sugerimos o


documentário Quem és tu Luís Vaz de Camões?
Disponível em: https://www.youtube.com/watch FONTE: <http://twixar.me/WlRT>.
?v=5CqmXUURDP0. Acesso em: 27 jan. 2020.

40
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• O material em prosa do Período Medieval na Europa foram as famosas novelas de


Cavalaria, cujo mote era trazer o ideal do cavaleiro cortês, casto, honrado e cristão.

• As mais conhecidas novelas de cavalaria giram em torno do Rei Arthur e os


Cavaleiros da Távola Redonda.

• A principal novela de cavalaria de Portugal foi Amadis de Gaula, cuja autoria é


incerta, mas foi considerada a principal obra do período na Península Ibérica.

• Os personagens de Amadis de Gaula diferem em partes dos personagens castos


e virgens das novelas da Demanda do Graal, pois consumam o ato carnal,
inexistente no ideário de amor cortês. Além disso, a personagem feminina de
Oriana assume posição ativa na narrativa.

• Com o declínio do período Medieval, surge na Europa o movimento Humanista,


cujo principal representante em Portugal é Gil Vicente.

• Diferentemente da Idade Média, que tinha o teocentrismo, ou seja, Deus como


base de tudo, o Humanismo traz o antropocentrismo, ou seja, o homem como
base do mundo.

• As obras de Gil Vicente são retratos da vida cotidiana da sociedade portuguesa,


buscando apontar um viés moralizante e religioso em suas farsas e autos,
principalmente.

• As obras mais conhecidas do dramaturgo português são A farsa de Inês Pereira


e o Auto da barca do Inferno.

• A era clássica traz um dos maiores expoentes da literatura portuguesa de todos


os tempos, a saber, Luiz Vaz de Camões.

• As poesias líricas de Camões inspiram-se nos ideais da escola classicista, cujos


motes retomam os antigos clássicos e adotam o soneto como “nova medida” de
versos.

• Sua vasta obra lírica traz reflexões do poeta sobre o amor cortês, mas também
as contradições vividas pelo homem, culminando no pessimismo em diversos
momentos.

41
• A epopeia clássica de Portugal foi publicada por Camões em 1572 e se chama
Os Lusíadas.

• Os Lusíadas trata dos feitos heroicos e da história ficcional de Portugal com


traços clássicos, a exemplo dos sincretismos da arte grega.

• A obra é estruturada com dez Cantos que narram os feitos de Vasco da Gama
e sua ida às Índias.

• O declínio da era clássica deixa o povo português um desejo de ter uma


identidade heroica e respeitada.

42
AUTOATIVIDADE

1 Destaque as principais características encontradas nas novelas de cavalaria


e algumas nuanças diferentes percebidas em Amadis de Gaula.

2 Em relação a Gil Vicente, podemos afirmar que:

a) ( ) É o principal representante do Humanismo em Portugal.


b) ( ) Compôs o Auto da Compadecida, que foi retratado em filme.
c) ( ) Escrevia textos a favor da Igreja Católica.
d) ( ) Foi o precursor do teatro litúrgico.
e) ( ) Sempre trazia em seus textos a linguagem culta.

3 (Unicamp-SP) Leia com atenção os poemas transcritos a seguir:

FONTE: <https://faciletrando.wordpress.com/2016/02/12/classicismo/>. Acesso em: 1 fev. 2020.

Cantiga, partindo-se

“Senhora, partem tão tristes


meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,


tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.”
(João Roiz de Castelo Branco, Cancioneiro Geral de 1516).

Soneto

“Aquela triste e leda madrugada,


cheia toda de mágoa e de piedade.
Enquanto houver no mundo saudade,
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada


saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de uma outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.

43
Ela só viu as lágrimas em fio,
que duns e doutros olhos derivadas,
se acrescentaram em grande e largo rio;

Ela viu as palavras magoadas.


que puderam tornar o fogo frio
e dar descanso às almas condenadas.”
(Luís de Camões)

Ambos os poemas desenvolvem o tema da dor da separação, mas tratam-no


de forma diferente. Exponha em que consiste esse tratamento diferenciado do
tema, em cada poema.

44
UNIDADE 1
TÓPICO 3

NUANCES DO BARROCO E DO
ARCADISMO PORTUGUÊS

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, vemos que ocorrem mudanças sociais e históricas em
Portugal, inclusive, o Brasil já passou a fazer parte do então território português.
Desse modo, muitas transformações ocorreram e se refletiram nas artes da época.

Você já ouviu falar de Padre Vieira? Ou do poeta Bocage? Vamos então


conhecer um pouco mais sobre eles nas linhas que seguem. Além disso, busque
ler os sermões e os poemas desses dois representantes, pois encontram-se
disponíveis em domínio público. Boa leitura!

2 ENTRE SERMÕES E POEMAS LITERÁRIOS


Em 1580, com a morte de Camões ocorre também o fim da autonomia
política de Portugal, passando esse país a ser anexado ao domínio espanhol com
o rei Felipe II, que durou até meados de 1668. Foi um período de muita agitação e
o Brasil já figurava, desde 1500, como uma das colônias portuguesas.

O movimento artístico que predominou nessa época foi chamado de


Barroco, cujas principais referências podem ser vistas nas artes plásticas e na
arquitetura, a exemplo das igrejas que podem até hoje serem visitadas aqui no
Brasil, por exemplo. O Barroco se desenvolve a partir do século XVI e segue até
o século XVIII, inspirado na procura da fusão dos elementos da arte gótica e
renascentista.

Além disso, entre as principais características subjetivas desse movimento


há um predomínio do emocional sobre o racional; há grande liberdade para o
artista, ou seja, não são colocadas regras para elaborar sua obra de arte; há uma
busca do realismo de inspiração popular; pairam contrastes entre luz e sombra;
ocorre uma relação entre as artes, principalmente na arquitetura e escultura. Na
linguagem, há duas características que podem ser vistas nas obras do Padre Vieira,
referência que traremos aqui para o período, a saber: “cultismo” e “conceptismo”.

O Cultismo traz uma linguagem mais rebuscada, culta, descritiva, servindo-


se de três artificios, conforme aponta Ferraz (2008, p. 157): “jogo de palavras
(ludismo verbal), jogo de imagens e jogo de construções para esconder, […] uma
temática estéril e banal”. Mesmo que nosso principal representante criticasse

45
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

esse tipo de estratégia linguística, o usava com frequência. O Conceptismo, por


sua vez, é um jogo de ideias ou conceitos e segue uma lógica racionalista com
retórica aprimorada (FERRAZ, 2008, p. 157). Aqui, as figuras de linguagem são
mais elaboradas para dar mais densidade ao conteúdo das obras.

Quanto aos sermões, sabemos que estão diretamente ligados a um


posicionamento moral e religioso, nesse caso, principalmente pelo fato de a Igreja
se reaproximar do povo e se utilizar das artes barrocas para tal intento.

Em seguida, trazemos o polêmico poeta Bocage para tratarmos


rapidamente sobre o Arcadismo português, embora não seja consenso entre
alguns teóricos colocá-lo em tal escola literária. Mas importa destacar aqui
que, assim como toda essa unidade, trazemos de forma resumida alguns dos
principais nomes da literatura portuguesa a fim de darmos luz a um período
que, entretanto, corresponde a mais de cinco séculos da história de Portugal e da
Europa, de modo geral.

Por consequência, é importante que você estudante procure se


aprofundar mais tanto nas compreensões desses momentos históricos e sociais
quanto nas leituras das obras desses artistas aqui mencionados, além de buscar
conhecer outros e diferentes autores nas mais variadas vertentes de poesias e
prosas literárias.

3 OS SERMÕES DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA


Conhecido como um dos maiores oradores portugueses e expoentes
figuras do século XVII, temos o Padre Antônio Vieira, que possui uma história e
um papel peculiar dentro do contexto literário tanto português quanto brasileiro,
haja vista que esse lisboeta passou grande parte de sua vida religiosa no Brasil,
vindo pra cá inicialmente através da Companhia de Jesus, instituição que deveria
catequizar os povos indígenas daqui. Mas sua relação com os nativos foi de
grande afeto e respeito, embora estivesse trabalhando pela coroa portuguesa.
Além de religioso e orador, foi um exímio escritor, diplomata e embaixador da
corte portuguesa em diferentes momentos da sua vida.

Suas obras, principalmente os famosos sermões, que exerciam funções


éticas e educativas a partir das concepções religiosas, trazem uma linguagem
considerada impecável e até hoje são estudados com afinco tanto pelos literatos
quanto pelos linguistas da língua portuguesa. Conforme apontam Lopes e Saraiva
(1969, p. 515),

O legado literário de Vieira é enorme, pois compreende cerca de


duzentos sermões, mais de meio milhar de cartas, numerosos
relatórios, representações, pareceres e outros documentos de natureza
política e diplomática, além de opúsculos religiosos ou de exegese
profética, e de defesa perante a Inquisição.

46
TÓPICO 3 | NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS

Em sua estadia no Brasil, Padre Vieira defendia veementemente a liberdade


e autonomia dos povos indígenas, ou seja, era contra a escravização destes. Além
disso, defendia também os judeus, numa época em que a Igreja Católica tentava
reconquistar seu prestígio e condenava todas as outras manifestações religiosas
que não fossem as suas. Devido a esses posicionamentos considerados polêmicos,
o padre chegou mesmo a ser perseguido e condenado pela Inquisição, ficando
preso durante dois anos, tendo depois desse tempo sua pena anulada.

Seus principais sermões são: Sermão da Sexagésima; Sermão de Santo Antônio


aos Peixes e o Sermão do bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda e
podem ser encontrados facilmente para leitura, pois já se encontram em domínio
público. Veja a seguir a primeira parte do Sermão da Sexagésima, onde o padre se
utiliza da Parábola do Semeador, encontrada no Evangelho de São Mateus, para
fazer um sermão metacrítico ao próprio papel da Igreja e de seus pregadores,
tema recorrente de suas análises.

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA

Pe. Antônio Vieira

PARTE I

E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão
desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o
Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão
longe.
Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a
semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só
faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da
messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo,
aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o
que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear,
porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho
há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a
semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem
sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas
tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura;
aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-
lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-
eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do
Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos,
os homens que professam pregar e: propagar a Fé, é bem que saiam, mas
não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro
triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que
propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: «Uma vez que iam,

47
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

não tornavam». As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito,


como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar, não
tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim
arguis com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse
semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem
contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem
os caminhos que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas
contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a
semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte do trigo caiu entre
espinhos, e afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae
spinae suffocaverunt illud. «Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras
por falta de humidade»:
Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. «Outra
parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves»: Aliud
cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede
como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas
as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas
racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas
vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há
mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma.
A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a
sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que
onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no,
os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no:
Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa).
Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta
maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e pregai
a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As
árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos
de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?!
Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos
iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas,
haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas:
haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam
de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os
pregadores evangélicos vão pregar ar a toda a criatura, que se armem contra
eles todas as criaturas?! Grande desgraça!
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que
se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que
aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve
aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado:
Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt
illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est.
Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de
doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram
na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a

48
TÓPICO 3 | NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS

outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados,


porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença,
onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou
somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o
Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados,
sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum
est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o
digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim,
mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados;
comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas
por amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o
semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos?
Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só
porque tinha lá ido?
Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos
com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto
tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes,
temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de
Deus, «quando iam não tornavam»: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede
agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que «aqueles
animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco»: Ibant et revertebantur
in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à
semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam?
Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é
tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho.
Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda;
continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta
e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais:
nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por
um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo
me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda
que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande
exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira
parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que
se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os
espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram
os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel
da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão
também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para
os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem,
outras secam, outras murcham, outras levam o vento; aquelas poucas que se
pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas
são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo.

49
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem
em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui
porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas
para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de
grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-
de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.

FONTE: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_
action&co_obra=1745>. Acesso em: 10 ago. 2019.

As composições dos sermões são, geralmente, elaboradas através de uma


introdução, em seguida, ocorre uma análise de um trecho ou texto completo da
Bíblia, depois segue-se uma comparação prática e uma conclusão. O sermão
acima é composto de dez partes e fala sobre a arte de pregar. Seu nome está
relacionado ao sexagésimo dia antes da Páscoa.

Ainda neste sermão, Padre Vieira traz um pouco da sua experiência como
pregador no Maranhão, Brasil, e menciona as dificuldades relacionadas ao ofício,
principalmente fala daqueles que se utilizam da palavra sagrada para benefício
próprio. Desse modo, sua autocrítica não deixa de fazer jus ao próprio papel da
Igreja em manipular a fé do povo cristão, logo, é por essas e outras posturas que
foi considerado, muitas vezes, um grande subversivo para a época.

NOTA

Uma pesquisa interessante a respeito dos sermões do Padre Vieira foi realizada
pela pesquisadora Maria Salete, na dissertação chamada “Escravidão nos sermões do Padre
Vieira: uma análise argumentativa”, disponível em http://www.bu.ufsc.br/teses/PLLG0227-D.
pdf. A autora trata do tema da escravidão de negros e ameríndios e a defesa que o padre fazia
a respeito destes, apontando as limitações e mesmo contradições dos posicionamentos
religiosos e políticos nos quais o padre se inseria entre Brasil e Portugal. Esse é um material
que pode nos proporcionar olhares mais aprofundados a respeito desse grande escritor
português e sua história.

50
TÓPICO 3 | NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS

DICAS

O direitor Júlio Bressane faz uma


homenagem ao Padre Antônio Vieira no filme Sermões,
de 1989, em que reproduz uma história que conta a
vida e a obra dessa grande personalidade portuguesa.
Vale a pena conferir, pois além de trazer trechos das
obras do padre, o filme ainda apresenta uma fotografia
barroca. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=OhRjq6MQd_I.

Você também pode fazer um tour virtual


pela famosa Igreja de São Francisco, em Salvador-BA,
no seguinte endereço: http://www.onzeonze.com.br/
blog360/toursaofrancisco/index.html. Aqui é possível FONTE: <http://twixar.me/2lRT>.
perceber diversas nuances da arquitetura barroca em Acesso em: 27 jan. 2020.
todo seu esplendor.

4 BOCAGE, O POETA ÁRCADE


Uma das grandes figuras literárias do século XVIII, representando a escola
literária do Arcadismo, é o poeta Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage,
ou apenas Bocage, que apresenta uma identidade polêmica e conhecida como
boêmio, erótico e satírico.

Muitos teóricos classificam o arcadismo como um movimento neoclássico


ou pré-romântico, mas vale ressaltar que tais classificações podem não
corresponder a todas as obras dos artistas aqui estudados, pois devem apenas
servir como parâmetros para compreendermos alguns detalhes de suas épocas.

Destarte, essa escola propagou-se pela Europa ao longo daquele século


tendo seu nome referenciando à Árcádia, uma região bucólica do Peloponeso,
na Grécia, sendo esse nome, por sua vez, remetido ao semideus Arcas, filho do
grande deus do Olimpo Zeus, e da mortal Calisto. Essa região era considerada
pelos poetas desse período a fonte de inspiração poética, cujos destaques se
dão para a exaltação da natureza e seus contextos, sendo por isso chamado de
bucolismo, além de referenciar os clássicos.

Sua linguagem é vista como racional, objetiva, clássica e sem rebuscamento.


Uma das principais diferenças dessas para o Barroco estudado anteriormente
é que os poetas desse período evitam utilizar das figuras de linguagem, tão
veementementes utilizadas pelos barrocos.

O poeta Bocage era um grande mestre na arte do soneto, tão bem difundida
pelo clássico Camões, aliás do qual era admirador, como podemos ver em um de
seus poemas, a seguir.

51
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

DICAS

Além disso, vale a pena conferir o artigo de Silva, Landin e Dias (2011), A poesia
lírica de Bocage, disponível em https://periodicos.unifap.br/index.php/letras/article/view/212,
que trata sobre os poemas líricos do poeta, já que este geralmente só é mencionado como
“o satírico” ou “o erótico”. Sua vasta poesia reverbera os temas de amor e morte, tão ricos à
literatura universal de todas as épocas.

A Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios

Bocage

Camões, grande Camões, quão semelhante


Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante


Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Lubíbrio, como tu, da sorte dura,


Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...


Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.

FONTE: <http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v103.txt>. Acesso em: 10 ago. 2019.

Entre suas obras mais polêmicas, encontram-se os sonetos eróticos.


Afirma-se que muitos de seus textos não eram necessariamente de sua autoria,
mas de outras pessoas que pediam para o poeta publicá-las, entretanto, esses
detalhes são contraditórios e carecem de informações para termos precisão dos
fatos. Leia a seguir dois poemas desse importante autor desse período.

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TÓPICO 3 | NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS

SONETO DO PRAZER EPHEMERO


Bocage

Dizem que o rei cruel do Averno immundo


Tem entre as pernas caralhaz lanceta,
Para metter do cu na aberta greta
A quem não foder bem ca neste mundo:

Tremei, humanos, deste mal profundo,


Deixae essas lições, sabida peta,
Foda-se a salvo, coma-se a punheta:
Este prazer da vida mais jucundo.

Si pois guardar devemos castidade,


Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Sinão para foder com liberdade?

Fodam-se, pois, casadas e solteiras,


E seja isto ja; que é curta a edade,
E as horas do prazer voam ligeiras! (7)

(7) "As horas do prazer voam ligeiras." foi motte dado, a que este soneto serviu de glosa, bem
como o que adeante se transcreve sob número XXX. [nota da fonte]

Oh retrato da Morte, oh Noite amiga


Bocage

Oh retrato da Morte, oh Noite amiga,


Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,


Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.

E vós, oh cortesãos da escuridade,


Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;


Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
FONTE: <https://www.escritas.org/pt/t/2502/o-retrato-da-morte-o-noite-amiga>. Acesso
em: 10 ago. 2019.

53
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Quanto aos seus poemas eróticos, devemos perceber que esse gênero
sempre causou polêmicas ao longo dos tempos, a depender do nível de
conservadorismo do momento, todavia, mesmo o livro de Salomão, no Velho
Testamento, denominado Cântico dos cânticos, traz nuances desse tipo de poesia.

Deve-se ressaltar que esse gênero, mais do que as polêmicas e curiosidades


que suscitam, servem também para demonstrar em que nível de censura tal época
opera, pois falar sobre sexualidades e desejos carnais ainda hoje pode ser visto
como tabu. Além disso, conforme vimos ao longo das características de todas
as épocas aqui resumidas, sempre houve uma maior propensão a se valorizar
o amor romântico, cortês e idealizado a ter que considerar o amor carnal e os
desejos sexuais dos protagonistas, seja na lírica ou na prosa.

Isso pode ser compreendido, em parte, pelo controle que a Igreja


exerceu ao longo dos séculos sobre a população, e demonstra como a lógica
cristã ocidental separa a alma do corpo, sendo este último apenas considerado
como irrelevante ou como suporte para presenciar e elevar as dores da alma, a
exemplo dos famosos autossuplícios praticados pelos religiosos. Nesse ínterim,
os desejos carnais e sexuais são reprimidos e tidos como vergonhosos, feios e de
menor importância.

Diante disso, você poderia fazer um levantamento a respeito das polêmicas


sobre erotismo nas literaturas contemporâneas para discutir com seus colegas,
pois esse tema certamente pode suscitar interesse e diferentes pontos de vista
a respeito de nossas liberdades individuais e coletivas, pois até que ponto, por
exemplo, o Estado pode intervir sobre nossos corpos e desejos?

A literatura ao longo dos séculos trata, sobretudo, sobre as diferentes


formas de manifestar as inquietações da alma humana, tão frágil quanto sedenta
que é de sentir e presenciar os prazeres que saciam seu desejo e propensão ao
infinito, ao eterno e incomensurável sentimento de incompletude inerentes ao
homem desde que tomou consciência de sua mortalidade.

DICAS

Para conhecer mais a respeito da vida e


obra do poeta Bocage, assista ao programa português
A alma e a gente, o episódio chamado Bocage, poeta
do povo, disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=TyN0ZdAk3mM. Além de aprender sobre o
poeta, você poderá entrar em contato com a variante
portuguesa de Portugal que, embora pareça estranha
e de difícil compreensão num primeiro momento,
servem para mostrar as riquíssimas nuances de nossa FONTE: <http://twixar.me/mbRT>.
língua portuguesa. Acesso em: 27 jan. 2020.

54
TÓPICO 3 | NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS

Caro acadêmico, após conhecer as primeiras manifestações literárias


portuguesas, que tal fazer comparações com a literatura brasileira e mesmo a
respeito de nossos tempos atuais? A literatura é uma arte que dialoga em inúmeros
contextos e também por isso nunca perde sua capacidade de reinventar-se.

Quem nunca procurou um poema para tentar através dele expressar seus
sentimentos de amor e paixão? Ou ainda, quem nunca se imaginou em cenários
medievais vivendo aventuras tais quais a dos heróis das épocas aqui descritas?
Nós estamos sempre em busca de emoções e a linguagem é uma das mais potentes
possibilidades de tentar reconciliar nosso corpo e nossa alma. Talvez por isso
mesmo jamais percamos o desejo de lermos, quem sabe até escrevermos, textos
em prosa ou poesia para transcender a realidade vigente.

Além disso, é importante, e instigante, pensar em correlacionar as obras


e autores estudados com atividades possíveis em sala de aula. Nos dias atuais,
temos diversas possibilidades de recursos tecnológicos a nosso favor, por isso é
importante pesquisar e ir em busca de fontes confiáveis para trazer os melhores
conteúdos aos nossos interlocutores. Sem esquecer-se, é claro, de valorizar os
talentos possíveis que podem estar adormecidos, seja em você ou em seus futuros
alunos. Desperte o gosto pela literatura que há em você, ou se ele já existe, ouse
voar mais alto e reinventar os clássicos a partir do seu ponto de vista!

55
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

LEITURA COMPLEMENTAR

Leia a seguir alguns excertos do artigo de Maria Nazareth Soares Fonseca


e Terezinha Taborda Moreira sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
para que você conheça e procure se informar mais a respeito das artes e da história
desses países cuja língua oficial nos une. Também vale a pena conferir o texto na
íntegra, para isso acesse o link da referência ao final dessa leitura.

PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS


DE LÍNGUA PORTUGUESA

Maria Nazareth Soares Fonseca


Terezinha Taborda Moreira

O aparecimento das literaturas de língua portuguesa na África resultou,


por um lado, de um longo processo histórico de quase quinhentos anos de
assimilação de parte a parte e, por outro, de um processo de conscientização
que se iniciou nos anos 40 e 50 do século XIX, relacionado com o grau de
desenvolvimento cultural nas ex-colônias e com o surgimento de um jornalismo
por vezes ativo e polêmico que, destoando do cenário geral, se pautava numa
crítica severa à máquina colonial. Parte das manifestações literárias desse período
pode ser rastreada em algumas publicações, como nos volumes do Almanach de
lembranças e nos vários números do Almanach de lembranças luso-brasileiro,
livrinhos “cheios de informações úteis” que continham, também, “bons versos e
prosas, firmados por autores conceituados” (MOSER, 1993, p. 17). Gerald Moser
pesquisou esses livrinhos, na biblioteca da Pennsylvania State University, EUA,
e publicou, em 1993, o Almanach de lembranças (1854-1932). Em sua publicação,
o estudioso ressalta características do material pesquisado, que constava de uma
produção literária que se inspirava em modelos europeus, mas também continha
preciosas amostras dos costumes tradicionais de vários países africanos de língua
portuguesa. Como bem acentua Moser (1993, p. 27), “os livrinhos do velho
Almanach de lembranças lusobrasileiro contêm, sob capa modesta, um arquivo
único [...] como referência à vida literária da África de expressão portuguesa, de
1854 para diante”.

Em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe,


o escritor africano vivia, até a data da independência, no meio de duas realidades
às quais não podia ficar alheio: a sociedade colonial e a sociedade africana. A
escrita literária expressava a tensão existente entre esses dois mundos e revelava
que o escritor, porque iria sempre utilizar uma língua européia, era um “homem-
de-dois-mundos”, e a sua escrita, de forma mais intensa ou não, registrava
a tensão nascida da utilização da língua portuguesa em realidades bastante
complexas. Ao produzir literatura, os escritores forçosamente transitavam pelos
dois espaços, pois assumiam as heranças oriundas de movimentos e correntes
literárias da Europa e das Américas e as manifestações advindas do contato com

56
TÓPICO 3 | NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS

as línguas locais. Esse embate que se realizou no campo da linguagem literária foi
o impulso gerador de projetos literários característicos dos cinco países africanos
que assumiram o português como língua oficial.

Manuel Ferreira (1989b) discute a emergência da literatura (sobretudo


da poesia) nos espaços africanos colonizados pelos portugueses, propondo a
observação de quateo momentos. No primeiro, destaca o teórico que o escritor
está em estado quase absoluto de alienação. Os seus textos poderiam ter sido
produzidos em qualquer outra parte do mundo: é o momento da alienação cultural.
Ao segundo momento corresponde a fase em que o escritor manifesta a percepção
da realidade. O seu discurso revela influência do meio, bem como os primeiros
sinais de sentimento nacional: a dor de ser negro, o negrismo e o indigenismo. O
terceiro momento é aquele em que o escritor adquire a consciência de colonizado.
A prática literária enraíza-se no meio sociocultural e geográfico: é o momento
da desalienação e do discurso da revolta. O quarto momento corresponde à
fase histórica da independência nacional, quando se dá a reconstituição da
individualidade plena do escritor africano: é o momento da produção do texto
em liberdade, da criatividade e do aparecimento de outros temas, como o do
mestiço, o da identificação com África, o do orgulho conquistado.

Segundo Manuel Ferreira (1989b), o entendimento da literatura africana


passa pela compreensão da perspectiva dinâmica que orienta a produção literária,
que faz com que esses momentos não sejam rígidos nem inflexíveis e permite que
um escritor, muitas vezes, atravesse dois ou três deles: no espaço ontológico e de
criatividade poética do escritor movem-se valores do colonizador que são dados
adquiridos, funcionam valores culturais de origem e há sempre a consciência de
valores que se perderam e que é necessário ressuscitar.

Numa perspectiva mais historicista, Patrick Chabal (1994) refere-se


ao relacionamento do escritor africano com a oralidade e propõe quatro fases
abrangentes das literaturas africanas de língua portuguesa. A primeira é
denominada assimilação, e nela se incluem os escritores africanos que produzem
textos literários imitando, sobretudo, modelos de escrita europeus. A segunda
fase é a da resistência. Nessa fase o escritor africano assume a responsabilidade
de construtor, arauto e defensor da cultura africana. É a fase do rompimento com
os moldes europeus e da conscientização definitiva do valor do homem africano.
Essa fase coincide com a conscientização da africanidade, sob a influência da
negritude de Aimé Césaire, Léon Damas e Léopold Senghor. A terceira fase das
literaturas africanas de língua portuguesa coincide com o tempo da afirmação do
escritor africano como tal e, segundo o teórico, verifica-se depois da independência.
Nela o escritor procura marcar o seu lugar na sociedade e definir a sua posição
nas sociedades pós-coloniais em que vive. A quarta fase, da atualidade, é a da
consolidação do trabalho que se fez em termos literários, momento em que os
escritores procuram traçar os novos rumos para o futuro da literatura dentro das
coordenadas de cada país, ao mesmo tempo em que se esforçam por garantir, para
essas literaturas nacionais, o lugar que lhes compete no corpus literário universal.

57
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

Se quisermos ter uma visão de conjunto das literaturas africanas de língua


portuguesa, torna-se necessário considerar essas fases da produção do texto
mas também os grandes momentos de ruptura com os códigos estabelecidos.
A crítica e os historiadores concordam que os fundamentos desses momentos
caracterizam-se pelo surgimento de movimentos literários significativos ou de
obras importantes para o desenvolvimento das literaturas, entre os quais podem
ser citados:

a) em Cabo Verde, a publicação da revista Claridade (1936-1960);


b) em São Tomé e Príncipe, a publicação do livro de poemas Ilha de nome santo
(1942), de Francisco José Tenreiro;
c) em Angola, o movimento “Vamos descobrir Angola” (1948) e a publicação da
revista Mensagem (1951-1952);
d) em Moçambique, a publicação da revista Msaho (1952);
e) na Guiné-Bissau, a publicação da antologia Mantenhas para quem luta! (1977),
pelo Conselho Nacional de Cultura.

A esses momentos é importante acrescentar outros que abarquem,


também, a narrativa e a produção mais recente dos diferentes países, em prosa e
poesia. […]

Para isso, considera-se que o estudo da produção poética dos escritores


africanos pode ser feito mediante uma abordagem diacrônica das literaturas a que
pertencem, o qual observe: as dificuldades do sujeito poético de se encontrar com
seu universo africano; o fato de que grande parte da produção literária reflete a
busca da identidade cultural e a tomada progressiva de uma consciência nacional;
o fato de que é sempre possível detectar, nos autores, o momento poético da luta,
que se configura num discurso de resistência e de reivindicação por mudanças;
as mudanças que encaminham para um processo de releitura constante que liga o
presente e o passado na construção de uma África que se renova continuamente.
[…]

Cabo Verde

O impacto do colonialismo não foi tão drástico, impulsivo e dramático em


Cabo Verde como o foi nas outras regiões africanas que passaram pelo processo
de colonização portuguesa. Essa situação acabou por criar algumas condições
necessárias para o aparecimento da literatura cabo-verdiana. Amílcar Cabral
(1976, p. 25) informa-nos que “desde muito cedo a terra, bem como os centros de
controle e administração, passaram para as mãos de uma burguesia nascida em
Cabo Verde, formada, majoritariamente, por mestiços”. Em seus apontamentos
sobre a literatura cabo-verdiana, Cabral (1976) afirma que a poesia que se escrevia
em Cabo Verde caracterizava-se por um desprendimento quase total do ambiente,
sublimando-se numa expressão poética que nada tinha em comum com a terra
e o povo do arquipélago. Para Cabral, possuidores de uma cultura clássica,
adquirida principalmente no Seminário de S. Nicolau, os poetas da geração

58
TÓPICO 3 | NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS

em referência esqueceram-se da terra e do povo. De olhos fixos nos clássicos


europeus, os escritores produziam uma poesia em que o amor, o sofrimento
pessoal, a exaltação patriótica e o saudosismo eram traços comuns. […]

São Tomé e Príncipe

A literatura de São Tomé e Príncipe é ainda pouco representativa no


contexto das literaturas africanas de língua portuguesa. No entanto, São Tomé
e Príncipe tem sua presença assegurada na história da literatura africana com
escritores como Francisco da Costa Alegre e Francisco José Tenreiro.

Francisco José Tenreiro, nascido em São Tomé, em 1921, autor de Ilha de


nome santo (1942), é considerado um dos marcos da poesia santomense e das
literaturas africanas de língua portuguesa. Muitos críticos apontam Tenreiro como
o primeiro poeta a imprimir a negritude na poesia africana de língua portuguesa,
inspirando-se nos poetas Americanos Langston Hughes e Counteen Cullen e em
Nicolas Guillén. Na obra de Tenreiro, o ideário da negritude motiva uma produção
poética mais voltada para as realidades da vida do homem africano, esteja ele no
continente ou perambulando pela Europa com o “coração em África”. […]

Angola

Como acontece com os outros países, a literatura de Angola também reflete


a influência de antecedentes e precursores de caráter social, cultural e estético.
Além disso, um fator de grande influência é a tradição da oralidade na África, que
marca, inclusive, uma identidade cultural expressa na literatura. Alguns nomes
de escritores, ainda no século XIX, estão relacionados com algumas obras que
delineiam as primeiras manifestações significativas do cenário literário angolano.

Nesse sentido, devem ser destacados, em primeiro lugar, José da Silva


Maia Ferreira (Luanda, Angola, 1827 – Rio de Janeiro, Brasil, 1881) e seu livro
“Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas” (1849), considerado
por alguns teóricos como a primeira obra da literatura angolana. Há, no entanto,
divergências a esse respeito. […]

Moçambique

O processo de formação da literatura de Moçambique não difere muito


dos demais países africanos de língua portuguesa, tendo assistido à construção,
nas zonas urbanas da Beira e Lourenço Marques (agora, Maputo), de uma elite
de alguns negros, mestiços e brancos que se apoderou, aos poucos, dos canais e
centros de administração e poder.

Suporte inicial foram os jornais, que, como em Angola, desempenharam


um papel importante na divulgação das idéias contrárias ao colonialismo. O jornal
O Africano foi fundado pelos irmãos José e João Albasini em 1909, com edição
em português e ronga. Em 1918 os irmãos Albasini fundaram O Brado Africano,

59
UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO

órgão oficial do Grêmio Africano Associação Africana. Em 1932 o jornal, tendo


sido impedido de funcionar, foi substituído pelo Clamor Africano, que teve 12
números e foi criado por José Albasini. A partir de 1933, O Brado Africano voltou
a circular, mas a partir de 1958, até a sua suspensão, em 1974, seu funcionamento
esteve subordinado a muitas influências oficializantes. […]

Guiné-Bissau

Para Moema Augel (2005), a literatura da Guiné-Bissau reflete os


caminhos da emancipação, bem como o estado emocional dos guineenses ante
o que se considera traição dos ideais revolucionários por parte dos dirigentes.
A produção literária contemporânea faz eco, na sua variedade, aos anseios e às
preocupações da elite intelectual urbana, inconformada com a situação política e
social do país no momento presente. Dada a quase inexistência de fontes escritas
de informação, travar conhecimento com as obras que se produzem na Guiné-
Bissau desde a independência é uma das melhores maneiras de compreender e
apreender essa literatura.

Com três romances, Eterna paixão (1994), A última tragédia (1995) e Mistida
(1997), Abdulai Sila é considerado o fundador da ficção guineense. Sua escrita
não se restringe à simples constatação do desastre em que resultou a libertação
do jugo colonialista nem se detém apenas na retratação das mazelas do povo
guineense, mas procura e denuncia, direta ou indiretamente, os responsáveis
pelos problemas. […]

FONTE: <https://www4.pucminas.br/imagedb/mestrado_doutorado/publicacoes/PUA_ARQ_
ARQUI20121019162329.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2019.

60
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Com a morte de Camões, a era clássica portuguesa entra em declínio dando


lugar ao barroco.

• Um dos principais representantes do barroco português é o Padre Antônio Vieira.

• Padre Vieira viveu entre Portugal e Brasil, sendo conhecido pelos famosos
sermões que pregava e por defender questões polêmicas, como os judeus e a
liberdade dos indígenas no Brasil.

• Um dos principais representantes do Arcadismo literário português é Bocage.

• O poeta é famoso por seus poemas eróticos e satíricos, donde faz ácidas críticas
à nobreza portuguesa.

• As literaturas eróticas são fonte de polêmicas e tabus a depender da época e


dos contextos de censura.

• É possível correlacionar a literatura do passado ao contexto presente, e isso


traz inúmeras possibilidades de interação em sala de aula. Para tanto, basta
que o docente procure usar, além de sua criatividade, os recursos tecnológicos
a seu favor.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

61
AUTOATIVIDADE

1 A respeito do movimento barroco, apresente o principal representante em


Portugal e justifique sua resposta.

2 Aponte as principais características dos Sermões durante o período Barroco.

3 (MACKENZIE) Sobre Bocage, é INCORRETO afirmar que:

FONTE: <https://vestibular1.com.br/simulados/simulados-por-exercicios/exercicio-de-
literatura/literatura-portuguesa-arcadismo-pre-romantismo/>. Acesso em: 1 fev. 2020.

a) ( ) Em sua obra lírica, o Arcadismo interessou apenas como postura,


aparência, pois, no fundo, o poeta foi um pré-romântico.
b) ( ) Houve, notada inclusive por ele mesmo em um famoso soneto, uma
série de semelhanças entre sua vida e a de Camões.
c) ( ) Como abriu mão totalmente dos valores neoclássicos, desprezou o
apuro formal, o bucolismo e a postura pastoril.
d) ( ) O subjetivismo, a confidência de sua vida interior, a confissão foram
elementos frequentes em sua obra lírica.
e) ( ) Como poeta satírico, ironizou contemporâneos seus, o clero e a nobreza
decadente.

62
UNIDADE 2

A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO
ROMANCE PORTUGUÊS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender as estéticas dos romantismos, do decadentismo e do


simbolismo em Portugal;

• relacionar os contextos históricos e sociais do país em sintonia com outros,


e com o Brasil;

• estudar e conhecer a prosa e a poesia do primeiro, segundo e terceiro


romantismo, além de conhecer o decadentismo/simbolismo;

• identificar semelhanças e diferenças entre as manifestações estéticas


literárias de fins do século XVIII e XIX.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará algumas autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – O ROMANTISMO EM PORTUGAL

TÓPICO 2 – O REALISMO EM PORTUGAL

TÓPICO 3 – O SIMBOLISMO EM PORTUGAL

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

63
64
UNIDADE 2
TÓPICO 1

O ROMANTISMO EM PORTUGAL

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico! Iniciamos agora um novo período de estudos sobre a
literatura em Portugal, bem como seu reflexo em outros países como o Brasil,
pois como já dito, fomos uma colônia portuguesa até 1822 e, por consequência,
trazemos diversas influências desse país europeu que nos une pela língua,
também, a outros países africanos, de igual modo colonizados por aquele.

O período aqui retratado é o Romantismo que, costuma-se dizer, iniciou


na Europa com as mudanças advindas das transformações sociais a partir
do declínio do Feudalismo até as Revoluções Francesa e Industrial, o que
possibilitou que a estrutura da sociedade se reconfigurasse profundamente.
Assim, foram surgindo centros urbanos com grande contingente da população
rural que migrava em busca de emprego, pois sua mão de obra acabou sendo
substituída por máquinas no campo.

Fortalece-se, também, a conhecida classe burguesa, intermédio entre as


classes nobres e aristocratas em decadência que passam a exercer papéis de suma
importância na economia e política nos últimos anos. Essas áreas começavam a se
solidificar, pois mudavam-se os paradigmas estruturais da sociedade, que ia de
um capitalismo mercantil para o capitalismo industrial. A respeito da burguesia
Álvaro Machado nos informa:

[...] pode dizer-se, generalizando, que a burguesia é a grande classe


social que se afirma plenamente desde o princípio do século XIX na
Europa. Uma classe social que, sendo formada por diversos estratos
políticos, econômicos e sociais, assimilou todos os outros com o
objetivo de conquistar a hegemonia da produção. Esta burguesia
do século XIX, sobretudo a que gerou e por sua vez foi gerada pela
Revolução Francesa, renova-se incessantemente, atingindo assim uma
consciência de classe superior em que predomina o culto da técnica. A
renovação processa-se lenta, mas seguramente, assimilando o próprio
processo revolucionário (MACHADO, 1986, p. 22).

Essa demarcação a respeito da burguesia é importante, pois a partir


dela giram diversos acontecimentos tanto na época como atualmente, dadas as
devidas contextualizações. Também, a imprensa ganha vigor em toda a Europa
no século XIX e assume papel de grande destaque, fazendo circular folhetins e
possibilitando a difusão dos romances através destes ou da publicação de livros.

65
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Inúmeras vezes, os folhetins traziam semanalmente a publicação de capítulos de


livros, que somente a posteriori passavam a ser impressos e vendidos em volume
único. Por um viés comparativo, se pensarmos em nossas telenovelas atuais,
em que diariamente vai se desenrolando uma história, os folhetins literários
cumpriam esse ofício, todavia, era um processo muito mais lento que hoje em dia.

Alguns teóricos pontuam que o livro Os sofrimentos do jovem Werther, de


Goethe, é o marco dessa nova fase literária. Atestam, ainda, que o surgimento
do Romantismo se deu quase que simultaneamente na Alemanha e Inglaterra
em fins do século XVIII, perdurando por quase todo o século XIX (LOPES;
SARAIVA, 1969, p. 679). Vejamos, então, como isso tudo se refletiu em Portugal
e suas colônias.

FIGURA 1 – CAPA DE UMA VERSÃO DO LIVRO OS SOFRIMENTOS DO JOVEM WERTHER

FONTE: <https://www.emartinsfontes.com.br/sofrimentos-do-jovem-werther-os-p20510/>.
Acesso em: 5 out. 2019.

2 UM POUCO DE HISTÓRIA E ROMANCES HISTÓRICOS


Em Portugal, é consenso dizer que o romantismo corresponderia ao
período em que Almeida Garret lança o poema Camões, em 1825, e perdura
até o evento conhecido como “Questão Coimbrã”, ocorrida em 1865, conforme
veremos. Costuma-se ressaltar que o movimento romântico teve três fases
distintas: a primeira fase, mais voltada ao ideário nacionalista; a segunda fase,
também conhecida como ultrarromantismo, era focada mais no individualismo
e subjetivismo sentimental exacerbados, ou o “mal do século”; e a terceira
fase, a dos realistas, que se opunham aos ultrarromânticos, buscava recuperar
algumas características da primeira fase e rebater o classicismo que vigorou nas
artes até então.

A seguir, leia o excerto da abertura do livro de Garret que trata da vida


e obra de Camões, considerado a obra inaugural desse movimento em Portugal.

66
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

CANTO PRIMEIRO

Esta é a ditosa pátria minha amada,


À qual se o céu me dá que eu sem perigo
Torne com esta empresa já acabada.
Acabe-se esta luz ali comigo.
Lusíadas

Saudade! gosto amargo de infelizes,


Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
– Mas dor que tem prazeres – Saudade!
Misterioso númen, que aviventas
Corações que estalaram, e gotejam
Não já sangue de vida, mas delgado
Soro de estanques lágrimas – Saudade!
Mavioso nome que tão meigo soas
Nos lusitanos lábios, não sabido
Das orgulhosas bocas dos Sicambros
Destas alheias terras – Oh Saudade!
Mágico númen que transportas a alma
Do amigo ausente ao solitário amigo,
Do vago amante à amada
inconsolável,
E até ao triste ao infeliz proscrito
– Dos entes o misérrimo na terra –
Ao regaço da pátria em sonhos levas,
– Sonhos que são mais doces do que amargo,
Cruel é o despertar! – Celeste númen,
Se já teus dons cantei e os teus rigores
Em sentidas endechas, se piedoso
Em teus altares húmidos de pranto
Depus o coração que inda arquejava
Quando o arranquei do peito malsofrido
À foz do Tejo – ao Tejo, ó deusa, ao Tejo
Me leva o pensamento que esvoaça
Tímido e acovardado entre os olmedos
Que as pobres águas deste Sena regam,
Do outrora ovante Sena. Vem, no carro
Que pardas rolas gemedoras tiram,
A alma buscar-me que por ti suspira.

FONTE: <https://www.livros-digitais.com/almeida-garret/camoes/1>. Acesso em: 5 out. 2019.

67
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Nestes versos, vemos que o poeta traz a saudade como pano de fundo
para entrelaçar sua relação com o país, já que se encontra em exílio. Aliás, o tema
de saudosismo e nostalgia são constantes nas literaturas portuguesas, além de
sempre trazer Camões como o principal norteador dessa saga lusitana inacabada,
ou seja, a saudade de um tempo em que sua nação era feliz, podemos pressupor.

Uma das principais diferenças que se pontuam a partir do Romantismo


é que a prosa começa a ganhar destaque, visto que anteriormente era a poesia
que predominava, seja pela oralidade ou mesmo escrita. Além disso, os escritores
tendem a vender suas obras, pois não havia mais os mecenatos, ou seja, não eram
mais patrocinados pelas elites como em outros tempos. Outra característica do
gênero romance é que se forma um leitor isolado, individual, diferentemente
dos leitores/ouvintes do Trovadorismo e mesmo das Novelas de Cavalaria. Por
isso, não é de se admirar as imagens de mulheres burguesas que passam os dias
sentadas no sofá ou na varanda lendo romances e vivendo sinestesicamente
aventuras através da ficção, denotando dessa forma uma caricaturização dos
romances românticos.

Não em vão, a prosa do romance traz fortes ligações, ainda, àquele típico
amor cortês, onde “morre-se” literalmente de amor pelo ser amado. Todavia,
geralmente a relação entre amante e amado pode ser consumada, embora resulte
sempre em um desfecho trágico, como veremos. A imagem da mulher continua
sendo platonicamente endeusada e por isso mesmo inatingível. O subjetivismo e
o lirismo ganham ares idealistas que podem ser refletidos tanto no amor quanto
numa imagem patriótica. A estética pelo noturno ao invés do diurno valorizado
no classicismo toma ares lúgubres, principalmente na segunda geração romântica.

Geralmente, uma “escola” literária surge quando a escola em voga começa


a dar sinais de desgaste. Logo, a “nova” procura opor-se ou “consertar” algumas
características da antiga para lhe aprimorar o senso estético. Isso não significa,
obviamente, que uma seja melhor nem pior que a outra, ou ainda que uma ignore
completamente ou deixe de utilizar das características da outra, mas significa
que os gostos estéticos vão se alternando, ou seja, por vezes pretende-se inovar
trazendo aquilo que se chama vanguarda, por outros momentos revisita-se o
passado para buscar aquela vaga noção de uma “origem”.

A escola romântica pretendia quebrar alguns paradigmas propagados pela


escola clássica, como a rigidez dos versos, as regras e separações dos gêneros, o
objetivismo, entre outras questões. Por isso, há misturas que fogem às definições,
por exemplo, inserir características de crônicas ou diários nos romances, como
o fez Garret, entre outros. Além disso, a “cor local” era forte tendência nos
romances, já defendido por Victor Hugo, e significa que as características de
determinada região ou país, em determinada época eram retratadas nas obras,
seja nas personagens, nos dialetos ou nas descrições espaço-temporais a fim de
dar um caráter mais realístico ao conteúdo.

68
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

A busca e problematização de uma identidade de nação é fortemente


demarcada nos períodos românticos, principalmente no primeiro e terceiro
momentos, haja vista que é nessa fase que os ideais filosóficos e políticos que
constituem o que seria um “estado-nação” historicamente localizado tomam forma.
Há, assim, uma influência de ideologia liberal que visa questionar o comando das
nações, ou seja, o absolutismo monárquico e mesmo as colonizações na América
são postos em xeque. Segundo assinala Emanuel Guerreiro (2015, p. 72) a respeito
do romantismo português: “Trata-se de ler Portugal através da literatura, que
traduz a essência do povo, a expressão da nação. Com Garrett, Portugal é valor a
interrogar; com Herculano, é valor a recuperar, através de textos narrativos que
abordam as origens, a primavera fecunda da pátria lusitana”.

Nessa época, também havia uma disputa imperial entre Inglaterra e


França, e a primeira possuía acordos econômicos e políticos com Portugal. Assim,
em 1808, quando as tropas francesas de Napoleão Bonaparte ameaçam invadir
o território português, os ingleses sugerem que a família real portuguesa viaje
para sua maior colônia, no caso o Brasil, a fim de assegurar sua independência.
Esse fato trouxe diversas consequências históricas tanto para Portugal quanto
para o Brasil, inclusive na exigência e pressão da Inglaterra, já em 1810, pelo fim
da escravização africana, porém, esse fato só viria a ser oficializado em 1888 pela
princesa Isabel, não isento de contradições até os dias atuais.

FIGURA 2 – A CHEGADA DA FAMÍLIA REAL AO BRASIL, DE CÂNDIDO PORTINARI

FONTE: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1977/a-chegada-da-familia-real-portuguesa-
a-bahia-painel>. Acesso em: 5 out. 2019.

Além disso, a Independência do Brasil, em 1822, também está atrelada


a esses fatores sociais, históricos e políticos desse momento. Por consequência,
o romantismo brasileiro traz relações de ideais nacionalistas e valorização –
mesmo com polêmicas – da visão dos indígenas nativos, a exemplo do escritor
José de Alencar.

Mas voltando à história portuguesa, em 1821, a família real de D. João VI foi


obrigada a retornar, após treze anos em terras brasileiras, para Portugal devido aos
conflitos econômicos e políticos que culminaram na chamada “Revolução Liberal
do Porto”. Essa revolução foi inspirada em outros movimentos semelhantes
que ocorriam na Europa, a exemplo da Espanha. Inclusive, a Constituição

69
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Portuguesa cunhada nessa época se inspirou na carta magna espanhola. Em meio


a contradições e desacertos, haja vista que tal revolução exigia, por um lado, a
retomada da soberania portuguesa sobre suas colônias, principalmente o Brasil,
as diferentes classes sociais portuguesas mais abastadas, que haviam perdido
privilégios com o cenário predominante, apoiaram o movimento.

Para Lopes e Saraiva (1969, p. 690) o romantismo português era


ideologicamente antifeudal, todavia, complementam que: “Diz-se liberal, mas
antidemocrático. Isto significa que, em geral, se opõe ao sufrágio universal e
favorece o regime censitário apropriado ao domínio político da nova burguesia
rural”. Em outras palavras, pressupõe-se que defendiam que os privilégios dessas
classes mais altas fossem restituídos, mas sem prejuízo na estrutura social, ou
seja, mantendo-se as distâncias socioeconômicas em relação ao povo em geral.

Alguns artistas também estiveram envolvidos em questões políticas


daquele período, a exemplo dos escritores destacados nesse tópico. Desse modo,
uma particularidade do gênero romance é presenciada nos dois autores que
selecionamos para compor o rol dos principais propagadores em Portugal do
conhecido “romance histórico”.

Em sua tese de doutorado a respeito do anacronismo do romance


histórico português oitocentista, Ana Maria dos Santos Marques (2012) articula
e discute a concepção de romance histórico e suas contradições, além de associá-
lo ao contexto português. Segundo pontua, o binômio História e Veracidade, fio
condutor desse gênero, está relacionado também à ideia de nação que se pretendia
firmar à época, logo,

No período romântico, esta abordagem da História sofre uma alteração


que o próprio romance histórico ajuda a divulgar: o passado é tornado
presente, pois este é visto como atravessado pelas forças do passado.
Entende-se, então, uma continuidade entre os dois tempos. Enquanto
para o historiador clássico a lição que o passado transmite é política ou
moral e eterna, para o historiador e o romancista românticos a lição do
passado é inscrita na própria textura do presente. É a nação que aparece
como a força principal da História e o nacionalismo desempenha um
papel muito importante na historiografia e no romance do período
romântico (MARQUES, 2012, p. 93).

Há, certamente, muito a ser dito a respeito das relações entre história e
literatura, união que é o cerne do romance histórico. Conforme o levantamento
feito pela autora, já Aristóteles definia tal concepção, e além dele diversos outros
teóricos das mais diferentes áreas. Inclusive, no trabalho supracitado, os próprios
escritores trazem suas opiniões a respeito do tema, haja vista que quando optam
por escrever um romance histórico, eles dialogam com seu público afirmando
que “encontrou um manuscrito verídico a respeito de determinado fato histórico”
ou que teve acesso a um “relato de uma testemunha que esteve presente em tal
situação” e, a partir dali, ou ao redor dessa trama, faz o entrelaçamento entre o
passado e o presente de um país (MARQUES, 2012).

70
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

O romance histórico traz em seu âmago a celeuma que gira em torno


da literatura ao longo dos séculos: o que seria real e o que seria ficção dentro de
uma obra? Quais os limites entre a realidade plausível e a ficção convincente?
Poderíamos dizer que o gênero romance histórico faz uma intertextualidade com
os filmes contemporâneos que trazem fatos históricos para o presente e sempre
apontam as palavras “baseado em fatos reais”, no início ou término da película,
para atrair a atenção do público. É claro, todavia, que tais detalhes podem não
dar conta do imenso acervo de escritores e obras, passadas e presentes, que tratam
de fatos históricos, mas é importante pontuar que em diversos desses artefatos
artísticos, sejam audiovisuais ou escritos, têm-se a possibilidade de dar visibilidade
aos fatos narrados, independentemente de quão “verossímil” seja a obra.

O precursor do romance histórico na Europa foi o inglês Walter Scott,


referência para os escritores portugueses Alexandre Herculano e Almeida Garret.
Aliás, é a partir dele que se estabelecem alguns elementos para conduzir a
narrativa de ficção histórica, a saber: é preciso ter uma distância temporal de, no
mínimo, 60 anos entre o fato narrado e o escrito, por isso, uma das características
prevalentes nos romances históricos desta época é retornar ao período da Idade
Média; há uma clara mistura entre elementos históricos incontestáveis e elementos
ficcionalizados; os personagens dos romances históricos portugueses, segundo
Marques (2012), possuem comportamento e seguem a psicologia romântica de
fatalidade. Ainda, a autora pontua que o povo aparece nesses romances como um
personagem que representa o “espírito de uma época” e desempenha um papel
crucial no desenvolvimento da narrativa.

Conforme a autora argumenta, a linguagem utilizada pelos romances


históricos procura demarcar a linguagem corrente daquele período e daqueles
personagens buscando, assim, dar verossimilhança entre narrativa e realidade.
Além disso, o narrador faz comentários e busca dialogar com o leitor, afirmando
através dessa proximidade o seu caráter de narrador onisciente, ou seja, aquele
que tudo sabe e tudo manipula dentro de um texto, antevendo e fazendo análises
psicológicas aguçadas a respeito de personagens e fatos ocorridos, dando ao
escritor o papel de “guia espiritual” conforme destaca Stélio Furlan (2009, p. 19),
“Outros preferem também atribuir ao escritor uma função de guia espiritual. Em
1836, Alexandre Herculano, cuja produção textual afi­rma constantemente que a
norma estética é parte integrante da ética, escreve que a mais nobre missão do
poeta é ser útil ao Cristianismo e à Liberdade”.

Destarte, o caráter didático expressado pelos autores é marcante no que


diz respeito a esse gênero, haja vista que caberia ao escritor o papel de transmitir
a verdade e formar seu público de modo exemplar para resgatar e preservar a
história de seu país.

Todavia, tais características geram os dois anacronismos necessários ao


gênero romance histórico já apontados por Scott e descritos por Marques, a saber,
o anacronismo da linguagem, pois é praticamente impossível não fazer a mistura
entre as linguagens do passado e do presente do autor nas obras; e o anacronismo

71
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

diegético, pois a cultura e a psicologia afetam diretamente os personagens, mesmo


aqueles históricos trazidos à cena dos romances desse período, além do que o
próprio autor traz seu viés cultural e psicológico para construi-los, conforme diz:

Este [o anacronismo diegético] tem duas vertentes, a cultural e a


psicológica, e afeta a representação das personagens tanto históricas
como inventadas, as suas condutas, atitudes e reflexões, a repercussão
na sua vida privada dos acontecimentos históricos, a sua maneira de
interpretá-los, em suma, a forma como as personagens se movimentam
e se relacionam com o contexto espaciotemporal. Assim, podemos
falar de anacronismo quando existem incongruências entre o mundo
construído pelo autor e os seus habitantes (MARQUES, 2012, p. 108).

A partir dessas breves explanações, passemos agora a conhecer um pouco


sobre os dois principais autores portugueses desse primeiro momento romântico
da história de Portugal, a saber, Almeida Garret e Alexandre Herculano que, ao
lado de Antônio Feliciano de Castilho assumem papel de maior importância na
história do romantismo português.

3 ALMEIDA GARRET
João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett nasceu na cidade do
Porto em 4 de fevereiro de 1799 e faleceu em Lisboa em 9 de dezembro de 1854.
Foi um dos mais importantes romancistas de sua época em Portugal. Tinha uma
vida política muito ativa, o que lhe rendia alguns contratempos, como prisões e
exílios, dado seu caráter contestador e liberal. Participou, inclusive, da Revolução
Liberal do Porto mencionada anteriormente. Também foi deputado duas vezes,
além de atuar como jornalista e, como ministro, fundou o Teatro Nacional e o
Conservatório.

Almeida Garret lança seu primeiro livro Camões quando estava exilado na
França. A respeito dessa obra, Lopes e Saraiva pontuam:

Em Camões, tema que nessa época inspira também um quadro de


Siqueira e uma composição musical de Domingos Bomtempo, viu
Garret a história de um desterrado, como ele próprio e tantos outros
liberais seus companheiros, que no regresso assiste às desgraças da
pátria e morre com ela, incompreendido e perseguido pela sociedade
(LOPES; SARAIVA, 1969, p. 706).

Ou seja, Garret aparece como um escritor politizado que lamenta o


estado de atraso político de seu país, buscando na figura de Camões algum tipo
de consolo conterrâneo para amenizar as dores do artista. Destaca-se ainda a
intersecção que Garret fazia entre a literatura culta e a literatura popular. Além
de textos em prosa e poesia, o autor também se aventurou na dramaturgia.

72
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

Suas principais obras são destacadas a seguir com um breve resumo. É


recomendável que você, acadêmico de Letras, leia na íntegra o romance O arco
de Sant´Ana desse escritor para observar as características do romance histórico
português citados neste tópico.

Frei Luís de Sousa é uma peça de teatro elaborada em três atos retratando
a vida de Manuel de Sousa Coutinho e sua esposa D. Madalena de Vilhena,
que imaginava ter perdido seu primeiro esposo na Batalha de Álcacer Quibir,
a mesma famosa batalha histórica em que o rei português D. Sebastião viria
a “desaparecer”, o que gerou toda uma lendária ideologia conhecida como
“sebastianismo”. Manuel e Madalena se casam, no entanto, o marido D. João de
Portugal retorna à cidade, invalidando esse casamento conforme os preceitos
sociais da época, que já tinha D. Maria de Noronha como fruto, o que viria
confirmá-la como uma filha ilegítima e fruto de vergonha social. A peça traz em si
uma característica cara ao romantismo que é a liberdade de amar, pois mesmo que
fosse vista coma ilegítima a união entre Manuel e Madalena, ambos optam por
entrar na vida religiosa a fim de preservarem seu amor. Há também sinais claros
de nacionalismo e patriotismo à terra lusitana, mais uma característica inerente
ao romantismo. A filha do casal é retratada como a personificação da beleza e
pureza vistas nas mulheres dos romances da época. Além disso, o desfecho é
trágico tal qual se reivindica no romance, pois tanto se caracteriza uma “morte
social” do casal através do término da relação conjugal, pois ambos resolvem se
dedicar à vida religiosa e a morte física da filha de ambos, de tuberculose.

E
IMPORTANT

Para saber mais sobre o “mito sebastianista” nessa obra de Garret, acesse o
endereço: http://www.citi.pt/cultura/historia/personalidades/d_sebastiao/garrett.html.

Viagens na minha terra é um romance que retrata a viagem do autor-


narrador de Lisboa a Santarém. Traz as aventuras românticas de Carlos e
sua dúvida entre escolher o amor de Joaninha ou Georgina, que podem ser
metaforicamente vistas como o velho e o novo Portugal, respectivamente. O pano
de fundo da obra é a Revolução Liberal apontando reflexões profundas a respeito
do país e da identidade lusitana, em busca de autoconhecimento e tentativa de
resolução de conflitos entre continuar na monarquia ou adotar ideais liberais e
modernistas. Há uma mistura de gêneros literários, entre novela e romance, além
da linguagem anacrônica. Ainda, destaca-se que “enquanto escritor romântico
Garrett procura retratar o ser humano dentro de um ambiente peculiar: daí o seu
constante interesse pelo pitoresco, pelos tipos humanos que compõem o tecido
social, em suma, pela “cor local” (FURLAN, 2009, p. 40).

73
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

O Arco de Sant’Ana é um romance declaradamente histórico pelo próprio


autor. A obra se diz realística posto que é baseada num manuscrito histórico
encontrado como prova de sua veracidade. Todavia, a trama serve de pano
de fundo para criticar a Igreja representada pelo bispo, que manda sequestrar
a donzela Aninhas, pois aquele além de representante eclesiástico também
era senhor feudal e fazia tudo conforme lhe convinha. O personagem Vasco,
enamorado de Aninhas, pede apoio do rei D. Pedro para resgatar sua amada e
incita o povo a juntos lutarem contra o absolutismo encarnado na figura do bispo,
que é açoitado pelo rei – esse fato baseado num acontecimento histórico.

Todavia, segundo Marques, Almeida Garret viria a ser aquele autor que
escancara ao público os anacronismos inerentes ao gênero de romance histórico,

Ora, o autor de O Arco de Sant’Ana parodia o romance histórico do seu


tempo, subvertendo as técnicas e os recursos narrativos mais em voga
nesse género e nessa época. E, normalmente, põe a ridículo aquilo que
quer criticar, provocando o riso castigador que evoca na Advertência
do segundo volume [do Arco de Sant’Ana] (MARQUES, 2012, p. 152).

Garret se utiliza das características anacrônicas do romance histórico para


buscar interferir no presente e não reconstituir um passado fiel, conforme pontua
a autora, diferentemente do seu contemporâneo e amigo, Alexandre Herculano,
conforme veremos a seguir. Em Garret, confundir os acontecimentos do passado
com o presente podem ser vistos, inclusive, como uma forma didática da repetição
histórica que teima em acontecer.

Desse modo, o escritor se configura como um dos nomes de suma


importância para a literatura portuguesa de sua época, pois, assim como
Camões, também queria crer que sua nação poderia ser grandiosa, nem que
para isso fosse necessário tocar nas mazelas mais doloridas da sociedade e
buscar uma transformação na qual ele acreditava ser a melhor para o período,
ou seja, a abertura para uma revolução liberal, que se mostrava mesmo em suas
contradições como uma escolha mais acertada a ter que continuar sob o domínio
do absolutismo monárquico e eclesiástico de então.

74
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

DICAS

• Para relembrarmos as relações entre poesia e música, tão destacadas na primeira


unidade, ouça a música Este inferno de amar, poema de Almeida Garret interpretado
pela cantora portuguesa Rita Ruivo, disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=WYVEBGHLOtQ.
• Também sugerimos a leitura do livro de Helena Barbas, intitulado Almeida Garrett,
o trovador moderno (1994) para complementar os conhecimentos a respeito desse
renomado escritor. Na obra, a autora faz o entrelaçamento de três obras distintas
de Garrett para relacionar com o período medieval e suas concepções de ideal
nacionalista a partir de então. O livro encontra-se disponível em https://run.unl.pt/
handle/10362/11873.

4 ALEXANDRE HERCULANO
Alexandre Herculano de Carvalho de Araújo nasceu em Lisboa em 28
de março de 1810 e faleceu em Santarém em 18 de setembro de 1877. Além de
escritor era historiador, jornalista e, assim como Almeida Garret, participou da
Revolução Liberal e atuou eventualmente em carreira política. Foi considerado o
introdutor do romance histórico em Portugal.

Herculano, ao mesmo tempo em que era seguidor do gênero romance


histórico, como historiador que também era não deixava de fazer autocríticas a
respeito da história e sua transmissão. Seu jornal intitulado O Panorama acaba
por elencar diversas dessas colocações e das ideias gerais do autor. Para ele, era
preciso corrigir erros históricos de Portugal para diferenciar o que seria lenda
daquilo que seria a história em si, papel que conseguiu cumprir através de seus
vastos estudos historiográficos.

Um dos fiéis seguidores do precursor do gênero, Walter Scott, Herculano


se ocupou por muito tempo para fazer as distinções entre verdades e inverdades
a respeito da história de seu país. Como romancista histórico, preocupava-se em
seguir à risca a metodologia do gênero, buscando retratar com a maior fidelidade
possível os acontecimentos, todavia, o autor confessa que a fusão entre realidade
e ficção na escrita literária é inevitável, conforme registra Marques:

Esta é, pois, a forma de compor um romance histórico: baseando-se em


sucessos do passado, e apesar de ter sempre em vista a credibilidade da
narrativa, o romancista vai efabulando consoante a necessidade para
compor a história, chegando mesmo a admitir desassombradamente
que inventa quando não tem o total conhecimento dos factos
(MARQUES, 2012, p. 142).

75
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Para Herculano, fazia-se mister pontuar detalhes dos fatos históricos em


suas obras para que se consolidasse no público uma forma mais autêntica de olhar
para o passado, mas o fazia buscando sempre embasar-se em seus conhecimentos
enquanto historiador a fim de dar maior credibilidade aos temas. Diferentemente
de Garret, que não gostava de se encaixar em algum gênero literário específico,
Herculano se autointitulava um romântico, além de que também buscava levar ao
máximo de provas e justificativas em suas narrativas para comprovar seus romances
históricos, segundo cita Marques a respeito e com as próprias palavras daquele:

Argumentando que «o noveleiro pode ser mais verídico do que o


historiador» porque é capaz de «recompor» a «história íntima dos
homens que já não são», Herculano defende que romancistas como
Scott, Hugo ou Vigny contam mais verdades que boa meia dúzia de
bons historiadores. Porque estes recolhem e apuram monumentos e
documentos, que muitas vezes foram levantados ou exarados com o
intuito de mentir à posteridade, enquanto a história da alma do homem,
deduzida logicamente da soma das duas acções incontestáveis, não
pode falhar, salvo se a natureza pudesse mentir e contradizer-se, como
mentem e se contradizem os monumentos (HERCULANO, 1987 apud
MARQUES, 2012, p. 145).

Destacam-se a seguir duas de suas obras literárias, embora o autor tenha


escrito diversos manuscritos em seu já mencionado jornal O Panorama com suas
ideias progressistas e liberais. Além disso, sua obra historiográfica A história
de Portugal elaborada em quatro volumes representa o primeiro material com
rigor científico, que busca retratar a história do país a partir de uma exaustiva
investigação documental feita a fim de separar as lendas e mitos daquilo que é
histórico a respeito do país.

Eurico, o presbítero narra a história de Eurico e Hermengarda ocorrida na


Península Ibérica no século XVIII. Ele é de origem humilde e ela, da aristocracia,
o que impossibilita a união dos dois, mesmo havendo amor. Desse modo, o
protagonista retira-se para a vida religiosa até que uma obrigação por defender
sua pátria o coloca em campo de batalha transformando-se no “Cavaleiro Negro”,
cujas ações são temidas pelos inimigos na Guerra. Mesmo ocorrendo a declaração
de amor da donzela ao protagonista, esse é impedido pelos deveres religiosos
de ficar com ela, o que a faz enlouquecer ao mesmo tempo em que ele segue
para uma missão suicida em nova luta contra os árabes. Ainda, conforme pontua
Furlan (2009, p. 25):

Nesse sentido, pode-se afirmar que no plano geral de “Eurico, o


presbítero” ganham destaque os trágicos conflitos entre o coração e a
consciência moral, a intensidade do drama passional e de consciência
dos amantes, enfim, a lógica de uma ordem social que se sobrepõe
e sufoca a paixão dos enamorados. O que nos leva a concluir que
“Eurico, o presbítero” corrobora a tese de Anatol Rosenfeld e J.
Guinsburg (2005, p. 272), a quem deixaremos as últimas palavras
desta primeira travessia pela constelação romântica à portuguesa, sob
o domínio do noturno: “E o conceito de noite se funde e confunde
com o conceito de amor, e a ideia de amor, com a de morte. É a grande
trindade romântica – Noite, Amor e Morte”.

76
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

O romance O bobo é destrinchado por Marques (2012) para caracterizar


as já explicitadas relações históricas e do gênero romance histórico. D. Bibas é
um bobo da corte que tem, pelo seu trabalho, o direito de circular por diferentes
espaços os quais somente a realeza andava. É numa dessas caminhadas que ele
descobre uma passagem secreta do castelo, que mais tarde servirá para enviar
informações a D. Afonso Henriques, filho de D. Teresa de Leão que, por sua vez,
é amante do Conde Fernão Peres de Trava. Esse detalhe é crucial para a vitória
daquele contra o exército desse último na histórica batalha de São Mamede, e
surge a partir de um ideal de vingança do bobo da corte, que era constantemente
açoitado e ridicularizado pelo Conde. Desse modo, um personagem marginal
assume protagonismo, configurando outra característica encontrada no romance
histórico (MARQUES, 2012).

Alexandre Herculano, em sua idade madura, sendo um notável escritor


e historiador de sua época, aos poucos vai se retirando da vida política agitada
e foca em alinhar seu “verdadeiro poder espiritual nacional” com sua atitude
coerente e combativa, indo para longe dos desastres políticos e econômicos
que ocorriam em Portugal, o que contribuiu para que se tornasse prestigiado e
respeitado por seus contemporâneos (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 732).

DICAS

Para conhecer um pouco mais sobre o conceito de história em Alexandre


Herculano, recomenda-se a leitura da pesquisa de mestrado realizada por Leonardo de
Atayde Pereira (2009) intitulada O sentido de História para Alexandre Herculano: uma
interpretação romântica (1830-1853). Principalmente a partir da obra “Eurico, o presbítero”,
o autor traz reflexões a respeito desse importante escritor e seu papel para a história de
Portugal e do romantismo lusitano. O texto encontra-se disponível em: https://teses.usp.br/
teses/disponiveis/8/8138/tde-10022010-154126/en.php.

5 O ULTRARROMANTISMO PORTUGUÊS
O segundo período do romantismo em Portugal é conhecido como
ultrarromantismo e traz a figura do escritor Camilo Castelo Branco como um de
seus principais expoentes, ao lado de Antônio Feliciano de Castilho, de quem se
falará no próximo tópico. A respeito da vida do escritor, Lopes e Saraiva (1969,
p. 816) afirmam: “A acidentada vida passional de Camilo Castelo Branco foi a
mais importante fonte da própria novela camiliana, a tal ponto que um dos seus
biógrafos, Alberto Pimentel, pôde escrever “O romance do romancista” por uma
simples montagem de textos da sua autoria”.

77
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

E
IMPORTANT

Para saber mais sobre a biografia do escritor Camilo Castelo Branco, acesse o
endereço: https://pt.wikipedia.org/wiki/Camilo_Castelo_Branco.

O ultrarromantismo levou as características românticas ao extremo,


colocando os artistas num excesso de sentimentalismo, individualismo e mesmo
depressão, o que culminaria no conhecido “Mal do Século” que afetou diferentes
escritores, inclusive no Brasil, cujo final seria o suicídio, ou conforme pontou
Guerreiro (2015, p. 79), em face dos sentimentos de frustração e inadaptação,
das emoções desordenadas e dos desconfortos psicológicos é que esse “mal” se
consolidaria.

Conforme aponta o verbete disponível em E-dicionário de termos


literários, de Carlos Ceia (2009), a respeito desse período ultrarromântico:

Fase final do Romantismo português que recuperou os excessos


macabros e de uma sensibilidade doentia que tinham caracterizado o
Pré-Romantismo (v.) europeu. Este movimento decorrera numa época
em que Portugal, devido à censura e também às condições políticas
e sociais, em parte devido ao esforço de recuperação do cataclismo
que fora o terramoto de 1755, não estava realmente permeável às
novas correntes artísticas. A geração liberal trouxe da Europa um
Romantismo amadurecido, de pendor sobretudo historicista, mas
o entusiasmo pelas novas formas de expressão em breve levou ao
exagero, cujo ponto culminante se pode encontrar na poesia de Soares
de Passos (CEIA, 2017, s.p.).

Consoante assinala Guerreiro (2015, p. 74) sobre esse momento, a renúncia


aos ideais liberais no país e a neutralização dos mais radicais contra o sistema
absolutista leva a literatura da época ao comodismo e torna-se “literatura oficial”
após a morte de Almeida Garrett e do exílio voluntário de Herculano da vida
artística lusitana. Desse modo, passa-se a produzir literatura para os principais
consumidores da época, ou seja, a burguesia ascendente com um ideal distante
dos interesses políticos, históricos e sociais, focando-se mais no individual.

O pensamento do “eu” subjetivo levou, nessa fase romântica, ao


pessimismo, à dor existencial, ao sofrimento e isolamento, tanto de personagens
quanto dos próprios escritores dessa época, haja vista que diversos cometeram
suicídio. As características do noturno romântico, em oposição ao diurno clássico,
foram levadas ao nível mórbido como no poema O noivado do sepulcro, de Soares
de Passos, retratado a seguir.

78
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

O noivado do sepulcro

Vai alta a lua! na mansão da morte


Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe


Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste


Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto


Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,


Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,


"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda,


"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?
"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,


A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

79
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

"Talvez que rindo dos protestos nossos,


"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda,


Responde um eco suspirando além...
- "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,


Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:


"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo


"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?


- "Oh vejo sim... recordação fatal!
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,


"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,


E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,


Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

80
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

Porém mais tarde, quando foi volvido


Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

Soares de Passos, In 'Antologia Poética'

FONTE: <http://www.citador.pt/poemas/o-noivado-do-sepulcro-soares-de-passos>. Acesso


em: 5 out. 2019.

Percebe-se que os amantes seguem juntos para a morte e o amor, desse


modo, é eterno. A valorização da morte e do fúnebre é característica marcante
desses romancistas e poetas ultrarromânticos. Inclusive, aqui no Brasil temos
Álvares de Azevedo como seguidor fiel desse extremismo que através da fuga do
real, das inquietações humanas e das desilusões amorosas, podem culminar na
morte como a melhor solução vista pelos sujeitos líricos. Não é em vão, pois, que
o romantismo – mesmo em seu marco inicial como o já citado livro de Goethe, O
sofrimento do jovem Werther flerta com a morte e o suicídio.

Vale também destacar um breve resumo a respeito do romance Amor


de Perdição, de Camilo Castelo Branco para demonstrar o quanto os excessos
do romantismo corroboram essa morte trágica de seus protagonistas. Ou seja,
morre-se literalmente de amor! A única saída é a morte para um amor que não
pode ser consumado, ou se consumado for, não pode ser vivido. Talvez, também,
seja por essas e outras situações que até hoje existam denotações pejorativas a
respeito dos termos “romantismo” e “romântico”, a depender dos contextos,
mas que ainda alimentam ideais de relacionamentos amorosos que se formaram
estruturalmente a partir da constituição da burguesia e seus conceitos de família,
o papel da mulher e do homem, o conceito de propriedade e as esperadas reações
em torno dessas acepções.

Amor de perdição, publicado em 1862, é considerada a principal obra de


Castelo Branco. A história retrata o amor proibido entre Simão Botelho e Teresa de
Albuquerque, vivido através de cartas. Suas famílias são rivais, tal qual “Romeu
e Julieta” de Shakespeare, o que impede que o amor de ambos se concretize. Ao
descobrir o amor dos adolescentes, a família de Teresa quer obrigá-la a se casar
com um primo, ao que ela resiste e assim é enviada ao convento. Simão acaba por
se envolver numa briga com esse primo e mata-o, o que lhe rende uma condenação
de pena de morte proferida pelo pai da moça, mas que acaba convertida em exílio.
Ao ser enviado para Goa, do navio o protagonista vê sua amada na janela do
convento, essa que, já tuberculosa, morre com a partida do amado. Esse acaba por
vir a falecer no navio dias depois, saudoso do seu amor impossível, configurando
dessa forma o ápice do romance romântico, vorazmente criticado pelos próximos
escritores de uma nova vertente do romance que ficou conhecida como Realismo.

81
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

DICAS

Inúmeras adaptações do romance foram feitas para a televisão. Dentre elas,


você pode conferir uma versão documentária que mescla a biografia pessoal de Camilo
Castelo Branco com o seu famoso romance, Amor de perdição. Disponível no seguinte
endereço: https://vimeo.com/11695854.

Uma leitura complementar sugerida é a pesquisa de mestrado de Maria Eduarda


Borges dos Santos (1987) a respeito do dialogismo intratextual e intertextual nas obras do
autor, chamada Do diálogo ao dialogismo na obra de Camilo Castelo Branco. Tal pesquisa
permite observar, para além do caráter ultrarromântico de suas obras, outras características
que o autor utilizava em seus textos, a saber, o satírico e cômico. O texto encontra-se
disponível em: https://repositorio.ipcb.pt/handle/10400.11/345.

82
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

LEITURA COMPLEMENTAR

Leia a seguir excertos do artigo de suma importância para compreender


as diferenças entre Classicismo e Romantismo, escritos por Anatol Rosenfeld e
J. Guinsburg. Na fonte do texto encontra-se o endereço para acesso do material
na íntegra, que recomendamos que você estudante leia, a fim de ampliar seus
conhecimentos a respeito desses dois importantíssimos movimentos literários.

ROMANTISMO E CLASSICISMO

Anatol Rosenfeld
J. Guinsburg

O Romantismo é, antes de tudo, um movimento de oposição violenta ao


Classicismo e à época da Ilustração, ou seja, àquele período do século XVIII que
é tido, em geral, como o da preponderância de um forte racionalismo. Embora
o mesmo contexto temporal apresente outros aspectos não menos marcantes,
está mais ou menos estabelecido o consenso e que se trata de um século cuja
característica maior é a da “Iluminação”, do “Iluminismo”, como dizem alguns,
ou ainda das “Luzes”, por causa do vulto que nele tornam as ideias racionalistas.
Enfocadas e defendidas por uma plêiade de pensadores brilhantes, como Voltaire,
Diderot, os Enciclopedistas, Rousseau, traduzem, na sua luta "esclarecedora”
contra o “obscurantismo”, a “ignorância", o “atraso”, a “irracionalidade”, não
só o engenho e o espírito lúcidos de seus paladinos, como as aspirações de uma
classe e mesmo de uma sociedade emergente, constituindo-se num dos principais
fermentos, no plano ideológico, para a eclosão da Revolução Francesa.

O movimento romântico, entretanto, recusa a cosmovisão racionalista


e a estética neoclássica a ela ligada. Para precisarmos as linhas do choque que
assim se produziu, convém dizer algo sobre o conceito de Classicismo. O termo
vem de classis, “frota”, em latim, e refere-se aos classicis, aos ricos que pagavam
impostos pela frota. Um escritor “classicus" é, pois, um homem que escreve
para esta categoria mais afortunada e mais elevada na sociedade. Tal foi o
sentido inicial, como aparece em Áulio Gélio, fonte da primeira menção que se
tem da palavra: ela significa aí um autor de obras para as camadas superiores.
Depois o vocábulo sofreu várias transformações, passando a designar um valor
estético, ético, mas principalmente didático: um escrito "clássico" veio a ser uma
composição literária reconhecida como digna de ser estudada nas “classes" das
escolas. […] Um terceiro significado que se impôs, ligado ainda ao segundo, diz
respeito ao período em que a literatura, as artes, a cultura de uma nação ou de
uma “civilização” alcançam um grande florescimento ou então o seu apogeu. [...]

Por fim, temos o nexo que nos incumbe definir mais de perto, ou seja, o
conceito estilístico do que vem a ser “clássico" ou “classicismo”. Sob este ângulo,
a referência é a princípios e obras que correspondem a certos preceitos modelares,
os quais, por seu turno, derivam de certa fase da arte grega e a tornam como

83
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

padrão. Essa codificação ocorreu principalmente no Renascimento. Foi então


que a redescoberta da antiguidade Greco-Latina ou, como passou a chamar-se,
“Clássica”, a revalorização de suas produções intelectuais e artísticas, conjugando-
se com um extraordinário surto da criatividade italiana e até europeia, puseram
novamente na ordem do dia o pensamento e os problemas estéticos. […]

Na medida em que, a certa altura da história cultural de determinados


países, sobretudo na França, tal concepção tornou-se dominante e mesmo
normativa, em função de um surto criativo que produziu trabalhos notáveis em
vários campos da arte, ela deu origem ao período “clássico” do “classicismo”
europeu, tendo a sua influência e o poder de suas regras se espalhando no mundo
ocidental, inclusive sob a forma de um “neoclassicismo” que prevaleceu durante
o século XVIII e fez par com o racionalismo ilustrado. Nestas condições, se se levar
em conta que até o Barroco nutriu pelo menos intenções classicizantes, só com o
Romantismo se estruturou um movimento que se atreveu a reptar abertamente
em seus fundamentos a perspectiva instaurada pela Renascença. Tudo o mais foi
moldado e remoldado segundo a visão clássica.

[…] De acordo com Croce, em sua Iniciação à Estética, o Classicismo


se distingue fundamentalmente por elementos como o equilíbrio, a ordem, a
harmonia, a objetividade, a ponderação, a proporção, a serenidade, a disciplina,
o desenho sapiente, o caráter Apolíneo, secular, lúcido e luminoso. E o domínio
do diurno. Avesso ao elemento noturno, o Classicismo quer ser transparente e
claro, racional e com tudo isso se exprime, evidentemente, uma fé profunda na
harmonia universal. A natureza é concebida essencialmente em termos de razão,
regida por leis, e a obra de arte reflete tal harmonia. A obra de arte é imitação
da natureza e, imitando-a, imita seu concerto harmônico, sua racionalidade
profunda, as leis do universo.

Outro aspecto relevante é o disciplinamento a impulsos subjetivos. O


escritor clássico domina os ímpetos da interioridade e não lhes dá pleno curso
expressivo. De certo modo, pode-se considerar que ele se define precisamente por
esta contenção. […] Há evidentemente, nesse domínio, certa autolimitação. O
autor desaparece por trás da obra, não quer manifestar-se. Ou melhor, seu desejo
manifesto é o de ser objetivo. A obra é o que vale como tal e não pelo que ela diz
de seu criador. Ela é uma comporta fechada e não aberta. […]

Ao mesmo tempo, vigora no Classicismo uma rígida separação das artes:


elas não se confundem, cada uma obedece a seus próprios ditames. De igual
modo, dentro da literatura, cada gênero tem suas leis específicas. A poesia lírica
não deve valer-se do padrão épico e este não se confunde com a poesia dramática.
A cada gênero correspondem preceitos especiais e a confusão entre os vários
tipos de composição é tida como um grave defeito [...]. Na literatura, esquiva-se
de descer a distinções psicológicas, muito minuciosas. Em todas as suas formas
de expressão, tenta fixar o universalmente humano. Trata-se de um princípio
fundamental do Classicismo, já estabelecido nitidamente na dramaturgia por
Aristóteles, mas com validade para todas as outras artes.

84
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

Numa ordem similar de diferenciação, os clássicos separam igualmente


os estilos. Há um estilo alto, de que faz parte, na dramaturgia, por exemplo, a
tragédia. [...] Os mesmos preceitos estilísticos, racionalizados e canonizados
imperam nas demais formas da produção artística, uma vez que o efeito visado é
sobretudo o da clareza e regularidade.

[…] Na verdade, segundo a visão classicista, a obra será tanto mais


realizada quanto maior o seu poder de veicular, através da bela e suave revelação
da forma, ensinamentos e verdades que elevem o conhecimento e contribuam
para o aperfeiçoamento do gênero humano. […]

Estabelecido em termos gerais o modelo clássico, pode-se vislumbrar


melhor contra que tipo de arte o Romantismo dirige suas armas. Tentemos agora
discernir alguns dos elementos que irão caracterizar a nova corrente. A palavra
designativa surge em meados do século XVII, sobretudo na França e na Inglaterra,
sendo-lhe dado inicialmente um sentido pejorativo pois, em meio a um mundo
clássico, destina-se a qualificar um gênero de relato ficcional meio disparatado,
absurdo, cheio de lances heroicos e fantásticos, onde há muitas peripécias de
amor e aventura, que ainda hoje certamente chamaríamos de “romance”.

Numa época em que a atmosfera cultural, no que ela tem de melhor,


é marcada pelos “espíritos bem pensantes”, não é de surpreender que haja
pouquíssima compreensão e mesmo condescendência para com tipos de arte
considerados inferiores e vulgares. É com escárnio que se vê o romance cujo
barroquismo, na sua mescla folhetinesca do pícaro e popular com o sentimental
e lendário, já encerra numerosos elementos romantizantes. Mas, pouco a pouco,
aplicado sobretudo a personagens, o termo começa a impor-se e a perder sua
conotação negativa. Uma lenta transformação do gosto deixa de favorecer as
figuras bem proporcionadas e as vistas bucólicas, para destacar, por exemplo,
as solitárias, selvagens e melancólicas paisagens inglesas que recebem o nome
de “românticas”, como que se contrapondo à paisagística serena e composta, de
linha “clássica” francesa.

Entre os antecedentes do movimento romântico, também é digna de


nota a onda de sentimentalismo burguês que se espraia pelo século XVIII. Um
tom intensamente emotivo, que extravasa em especial dos romances ingleses de
Richardson, Sterne, Goldsmith, invade a literatura europeia. O jovem Goethe, tal
como ele próprio se descreve mais tarde em Dichtung und Wahrheit (“Poesia e
Verdade”), chora sobre estes romances. […] Aliás a tragédia burguesa, um gênero
de peça que começa então a ser cultivado, é também extremamente sentimental
[...]. Não menos lamentos terá provocado o romance de Goethe, Os Sofrimentos do
Jovem Werther, uma das mais lídimas expressões dessa corrente sentimentalista.

Outro fator que também pesa nas origens do Romantismo é um surto de


pietismo que, na Alemanha, de então, se coloca contra a ortodoxia protestante
oficial, extremamente racional. De forte teor místico, recusa os padrões objetivos
da religião, pregando a experiência fervorosa. Importa-lhe sobretudo a vivência

85
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

religiosa que se processa na intimidade subjetiva do indivíduo e que o conduz,


pelo exercício intenso e sincero da emoção e do sentimento devotos, ao êxtase e à
contemplação beatíficas. […] Ora, além de cruzar-se no tempo com um movimento
dessa natureza, o Romantismo privilegia, ainda que por via antes artística e
secular, tendências e buscas similares cujo foco e âmbito preferenciais também
se situam no interior do sujeito, de seu ego e mundo psíquico, e que também
desembocam, com grande frequência, em aspirações e indagações religiosas.

Mais ainda, não há de ser mero acaso ou coincidência que um dos


principais precursores da corrente romântica tenha sido Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), calvinista convertido ao catolicismo e depois reconvertido ao credo
protestante. O que distingue Rousseau e o transforma em fonte inspiradora
da escola romântica é o seu profundo pessimismo no tocante à sociedade
e à civilização. Ele não acredita nem em uma nem em outra, estabelecendo o
postulado de uma natureza humana primitiva, que vai sendo corrompida pela
cultura. […] Tal concepção rousseauniana irá gerar, como se sabe, o interesse
romântico pelo exotismo e pelo indianismo. Pois, estando no encalço do homem
em estado "natural", o Romantismo se põe a procurá-lo na América e em outras
regiões que se distinguiam ainda pela presença do assim chamado “selvagem”
ou “indígena" pela diferença acentuada de seu modo de “bárbaro” e “bizarro”
em relação aos padrões europeus e acidentais. […]

A esta altura, é possível assinalar, em oposição ao estilo clássico, alguns


componentes fundamentais da criação romântica. Se não prevalecia a serenidade,
a ordem, o equilíbrio, a harmonia, a objetividade, a ponderação, a disciplina, agora
predomina, segundo Croce, a efusão violenta de efeitos e paixões, as dissonâncias,
a desarmonia em vez da harmonia. O subjetivismo radical derrama-se incontido,
como já se viu na autoexpressão do artista. O ímpeto irracional, o gênio original
e a exaltação dionisíaca sobrepõem-se à contenção, à disciplina apolínea da
época anterior. Prepondera o elemento noturno, algo de selvagem e também
de patológico, uma inclinação profunda para o mórbido, a ponto de Goethe ter
defendido o Classicismo como aquilo que é sadio e ter visto no Romantismo a
encarnação do doentio.

A atração, entretanto, pelo que se coloca fora do “justo meio” não é apenas
um traço estilístico na literatura e nas artes. Vai muito além, invadindo todos
os terrenos. Dá-se realmente uma revolução no sentimento de vida e na própria
cosmovisão. [...] Os românticos têm um senso de história apurado. E parece
bastante evidente que devam tê-lo num grau bem maior do que a Ilustração,
porque os racionalistas buscam em geral na história o que há de comum em todos
os seus eventos. […]

E esse individualismo que vai assim surgindo e que é muito importante,


porque leva, de um lado, a uma psicologização de tudo e, de outro, a uma
caracterização cada vez mais pormenorizada, deixando de sublinhar o típico
na arte para salientar o elemento particularizante, isto é, o que qualifica o ser
dentro do contexto social e nacional – esse individualismo constitui por certo

86
TÓPICO 1 | O ROMANTISMO EM PORTUGAL

uma tremenda mudança de enfoque, aproximando de certo modo o Romantismo


da perspectiva realista, porque o romântico já se coloca numa óptica que divisa
o indivíduo dentro de seu habitar sócio-histórico. […] O grande sonho dos
românticos é a inocência, a segunda inocência que englobe ao mesmo tempo todo
o caminho percorrido através da cultura, isto é, uma inocência que não seria mais
primitiva, a do jardim do Éden, mas uma inocência sábia. É a famosa criança
irônica de Novalis, um dos grandes símbolos do movimento romântico.

FONTE: <http://miniweb.com.br/literatura/artigos/Rom_Class.pdf.>. Acesso em: 5 out. 2019.

87
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• O romantismo foi um movimento estético e literário que surgiu em fins do


século XVIII simultaneamente na Alemanha e Inglaterra, e perdurou por
praticamente todo o século XIX tanto na Europa quanto nas colônias europeias,
a exemplo do Brasil.

• O romantismo buscava combater a objetividade, o rigor estilístico, a ordem


e a hierarquização de gêneros do classicismo e nasce concomitantemente ao
fortalecimento da classe burguesa.

• Costuma-se dizer que o romantismo se divide em três fases distintas: no


primeiro momento, um foco mais histórico e nacionalista; no segundo
momento, o exagero de sentimentos e flerte com a morte; no terceiro momento,
um foco mais realista.

• Um acontecimento histórico marcante desse período é o retorno da família real


de D. João VI do Brasil para Portugal depois da “Revolução Liberal do Porto”.

• O romance histórico tem papel importante para a constituição e crítica


identitária em Portugal e é representado pelos escritores Almeida Garret e
Alexandre Herculano.

• Tanto Almeida Garret quanto Alexandre Herculano participaram ativamente


da “Revolução Liberal do Porto” e em momentos distintos da vida política em
Portugal, além de momentos de exílio devido às suas posturas progressistas.

• O romance histórico possui dois anacronismos: de linguagem e diegético.

• O ultrarromantismo evocava o “Mal do século”, no qual o pessimismo e a fuga


da realidade podiam culminar na morte, tanto de personagens quanto dos
próprios escritores.

88
AUTOATIVIDADE

1 O romantismo foi um movimento literário importante que surgiu com


a ascensão da burguesia e acompanhado das transformações sociais e
políticas dos séculos XVIII para XIX. Seu objetivo era se opor à estética
clássica e seu objetivismo e rigores técnicos, dentre outras características. A
seguir, verifique as afirmações que tratam desse momento em Portugal:

I- A primeira fase do Romantismo é marcada por um forte teor nacionalista,


trazendo como destaque o romance histórico.
II- O Romantismo português defendia uma revalorização das características
Clássicas através da imitação de autores daquele período.
III- Os principais representantes do romance histórico em Portugal são
Alexandre Herculano e Almeida Garret.
IV- Almeida Garret e Alexandre Herculano defendiam o retorno à monarquia
absolutista portuguesa, com ideias conservadoras.
V- Exemplos de romances desse período foram O arco de Sant’Ana de
Almeida Garret, e O bobo, de Alexandre Herculano.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) I e V.
b) ( ) I e II.
c) ( ) III e IV.
d) ( ) II e IV.
e) ( ) I, III e V.

2 (Fuvest, 2013) Os momentos históricos em que se desenvolvem os enredos


de Viagens na minha terra, Memórias de um sargento de milícias e Memórias
póstumas de Brás Cubas (quanto a este último, em particular no que se refere à
primeira juventude do narrador) são todos determinados de modo decisivo
por um antecedente histórico comum – menos ou mais imediato, conforme
o caso. Trata-se da:

FONTE: <http://ppv.usp.br/question/preview2.
php?id=91&showembed=false&randomqid=729>. Acesso em: 5 out. 2019.

a) ( ) Invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas.


b) ( ) Turbulência social causada pelas revoltas regenciais.
c) ( ) Volta de D. Pedro I a Portugal.
d) ( ) Proclamação da Independência do Brasil.
e) ( ) Antecipação da maioridade de D. Pedro II.

89
3 O romance histórico foi considerado de suma importância para uma
constituição identitária de Portugal em fins do século dezoito e durante o
século XIX. A esse respeito, as seguintes afirmativas estão corretas:

I- Almeida Garret e Alexandre Herculano são os principais representantes


do gênero, sendo que este último também era historiador e responsável
pelo jornal O Panorama.
II- Possui como características o anacronismo na linguagem e no
comportamento dos personagens, conhecido como anacronismo diegético.
III- Traz a poesia como principal referência e a prosa ocupa lugar secundário
em sua difusão.
IV- Relaciona na ficção um manuscrito ou testemunho de alguém que
presenciou uma situação real para confirmar a veracidade da história.
V- Nunca menciona nomes reais em suas obras.

Estão CORRETAS as afirmações:


a) ( ) I e II.
b) ( ) III.
c) ( ) III, IV e V.
d) ( ) I, II e IV.
e) ( ) V.

4 O Ultrarromantismo é como ficou conhecido o segundo momento do


Romantismo Literário. Em Portugal, seu principal representante é Camilo
Castelo Branco. A respeito de sua principal obra, Amor de Perdição, e das
características desse período, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O Ultrarromantismo é o romantismo levado ao seu extremo, em que


os personagens tragicamente tendem a morrer de amor, como Simão
Botelho e Teresa de Albuquerque, em Amor de Perdição.
b) ( ) Em Amor de Perdição, Teresa e Simão são irmãos que, não sabendo de suas
origens, se apaixonam loucamente. Desse modo, o ultrarromantismo é
caracterizado como um movimento que exagera nas ficções, nas polêmicas
da vida real, como o incesto.
c) ( ) Teresa de Albuquerque escolhe se tornar freira, pois não quer se casar
com Simão. Isso deixa claro como o ultrarromantismo traz a mulher
como emancipada em suas escolhas.
d) ( ) Simão Botelho acaba assassinando sua amada, o que traz uma
característica crucial do ultrarromantismo e seu tom fatídico.
e) ( ) Teresa e Simão se amam e, após a viagem deste, combinam de se
encontrar em terras estrangeiras. Assim, o desejo do que está por vir é
uma característica predominante no ultrarromantismo.

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UNIDADE 2 TÓPICO 2

O REALISMO EM PORTUGAL

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, vamos conhecer o movimento artístico surgido em finais
do século XIX a partir da França e que rapidamente se expandiu para o resto do
mundo, a saber, o Realismo. Importa-nos compreender o realismo na literatura
e para tal trazemos um recorte sobre o cenário em Portugal, além da figura mais
célebre do período, Eça de Queiroz.

É importante que você, acadêmico, leia as obras desse renomado autor


para que consiga compreender melhor esse momento. Indicamos que seja lido
na íntegra O crime do Padre Amaro e/ou O primo Basílio, romances basilares desse
escritor português, a fim de perceber as características aqui apontadas sobre esse
movimento literário.

2 O REAL OU REALISTA NOS ROMANCES


FIGURA 3 – PINTURA ROMÂNTICA, O BEIJO, DE FRANCESCO HAYEZ

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Realismo>. Acesso em: 5 out. 2019.

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UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

FIGURA 4 – PINTURA REALISTA, CASA, DE JOŽEF PETKOVŠEK

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Realismo>. Acesso em: 5 out. 2019.

O Realismo surge como um movimento estético que visa rejeitar


o tradicionalismo, o subjetivismo lírico e o idealismo predominantes,
principalmente, no segundo período do romantismo. O termo surge primeiro
nas artes plásticas e logo se difunde por todas as formas artísticas. Seu objetivo
era retratar o comum e o ordinário, diferentemente dos heróis românticos e suas
sagazes aventuras, por isso, o objetivismo era uma das principais marcas dessa
escrita, com descrições detalhadas de ambientes e das características psicológicas
dos personagens. Em função disso, também, a poesia foi preterida, dando-se mais
ênfase à prosa. Conforme pontua Furlan:

Enquanto os ultrarromânticos deixaram-se levar na correnteza de suas


emoções desembocando nos excessos do sentimentalismo e no culto ao
individualismo e do passado medieval, os escritores realistas preferiram
descrever o presente, a realidade social tal qual a viam, descrita nos seus
pormenores. O desejo de observar e analisar os levou a retratarem a vida
contemporânea, o seu próprio tempo (FURLAN, 2009, p. 70).

As características desse terceiro momento do romantismo evidenciam


que ele está mais focado num romantismo filosófico e racional, trazendo ideais
mais humanistas e universalistas – diferente do individualismo e egocentrismo do
segundo período. Os escritores aqui estão mais preocupados com as questões sociais
sob a influência dos acontecimentos de sua época, e em busca da modernização
de Portugal, pois “A renovação literária correu paralela à construção da estrada de
ferro que ligou Portugal à Europa, por volta de 1864, tornando-se um emblema de
fluxo de ideias e mercadorias” (FURLAN, 2009, p. 70).

Após as Revoluções Francesa e Industrial, as novas configurações


de sociedade trouxeram novidades reflexivas e teóricas para se pensar as
problemáticas vigentes nas então cidades industrializadas. Nesse encalço da
reestruturação social dividida por classes, com o predomínio de um sistema
capitalista cada vez mais consolidado e regendo as vidas dos trabalhadores,
pensadores da época formularam teorias sociais para ponderar sobre a sociedade
e suas celeumas.

92
TÓPICO 2 | O REALISMO EM PORTUGAL

Questões econômicas e políticas vieram à tona em toda a Europa, e entre


os principais pensadores, o alemão Karl Marx e sua crítica ao capital, trouxeram
enorme influência para as artes realistas, principalmente com o foco no realismo
social, que apresentava as mazelas decorrentes das injustiças sociais perfiladas nos
ambientes urbanos. Também outras teorias científicas, como o determinismo, o
evolucionismo e o positivismo estavam em voga e contribuem significativamente
com os movimentos artísticos da época.

Além disso, como o próprio nome sugere, o realismo preocupava-se em


retratar o “real”, mesmo que em suas cores menos celebradas, a exemplo da pobreza,
seja ela social ou aquela do espírito humano com todas suas sórdidas ações e faltas
éticas e morais. Por isso, temas como a hipocrisia da sociedade, a falta de ética e o
adultério do homem são recorrentes nos romances desse período. Não há mais a
fuga do real através de um romantismo exacerbado, mas sim a fixação nesse real que
também pode dilacerar as almas de suas virtudes mais elevadas.

Passemos a conhecer, então, como se deu essa revolução estética na


literatura portuguesa a partir dos seus principais expoentes, que ficaram
conhecidos como a Geração de 1870.

3 A GERAÇÃO DE 1870
FIGURA 5 – A GERAÇÃO DE 70 DE PORTUGAL

FONTE: <http://webfoliopedrom.blogspot.com/2011/05/geracao-de-70-e-questao-coimbra_29.html>.
Acesso em: 5 out. 2019.

Basicamente, a geração de 1870 foi a responsável pela difusão das


transformações do período romântico ao período realista em Portugal. O grupo
constituído por Eça de Queirós, Antero de Quental, Augusto Soromenho, Ramalho
Ortigão, Oliveira Martins, entre outros artistas e intelectuais que traziam de
Coimbra para Lisboa as inovações na escrita literária buscavam defender com
afinco as premissas do Realismo.

93
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Diante disso, houve uma batalha que começou com farpas literárias entre
Antero de Quental e Antônio Feliciano de Castilho trocadas via jornais através de
críticas diretas onde o último defendia o tradicional e as ideias monárquicas e o
primeiro defendia ideias progressistas e a modernização do país. Isso tudo resultou
naquela que ficou conhecida como a “Questão Coimbrã”, detalhada a seguir:

Tudo começou com uma referência pouco elogiosa do poeta Antonio


Feliciano de Castilho, protetor dos ultrarromânticos, à nova literatura
portuguesa representada pela publicação de Odes Modernas (1865),
de Antero de Quental. Castilho aproveitou o posfácio ao Poema da
Mocidade, de Pinheiro Chagas, seu protegido, para atacar a poesia
revolucionária de Antero de Quental. Como réplica, Antero de
Quental respondeu-lhe numa carta aberta intitulada Bom-Senso e
Bom-Gosto. Nela a­firmou que a grande falta cometida pela “escola
de Coimbra” foi o desejo de inovar, e criticou a atividade literária
de Castilho, para Quental esvaziada de conteúdo ideológico, repleta
de “frases e sentimentos postiços de acadêmico”. O texto de Antero
provocou a publicação de diversos folhetins e artigos trocados entre
as duas facções, detonando a Questão Coimbrã. Por exemplo, Camilo
Castelo Branco foi em defesa de Castilho, lançando o texto intitulado
Vaidades Irritadas e Irritantes (1866), enquanto que Teófilo Braga, com
o folhetim intitulado Teocracias Literárias (1866), e Luciano Cordeiro,
com o artigo A arte realista (1867), tomaram partido a favor de Antero
de Quental. Consta que a acirrada polêmica terminou com um duelo
à espada, na cidade portuguesa do Porto, entre Antero de Quental e
Ramalho Ortigão, partidário de Castilho (FURLAN, 2009, p. 70-71).

O grupo de Quental e Eça de Queiroz realizou cinco conferências


denominadas Conferências Democráticas do Casino, assim chamadas porque
os escritores alugaram uma sala de casino lisbonense para suas reuniões. A
primeira conferência foi chamada O espírito das conferências, proferida por Antero
de Quental e cujo teor pode ser considerado o fio condutor desse manifesto de
geração. A segunda palestra também foi proferida por Quental e chamou-se
Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos e, assim como
o próprio nome diz, tratou-se de aludir às questões políticas, históricas e sociais
da decadência da Península Ibérica e suas implicâncias na história de Portugal.

A terceira conferência foi intitulada A Literatura Portuguesa, proferida pelo


professor Augusto Soromenho e teve a intenção de apontar as falhas da literatura
nacional a partir de diversos escritores, excetuando-se Camões e Gil Vicente. A
quarta conferência proferida por Eça de Queirós chamou-se A Literatura Nova ou
o Realismo como Nova Expressão de Arte. Essa foi considerada uma das principais
conferências haja vista que o escritor defende a literatura como uma forma de
revolução a partir dos ideais que ocorriam na época, seja nas ciências, na política
ou na arte. Assim diz:

Que é, pois, o realismo? É uma base filosófica para todas as concepções


do espírito – uma lei, uma carta de guia, um roteiro do pensamento
humano, na eterna região do belo, do bom e do justo. Assim
considerado, o realismo deixa de ser, como alguns podiam falsamente
supor, um simples modo de expor – minudente, trivial, fotográfico. Isso
não é realismo: é o seu falseamento. É o dar-nos a forma pela essência,

94
TÓPICO 2 | O REALISMO EM PORTUGAL

o processo pela doutrina. O realismo é bem outra coisa: é a negação da


arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas.
É a abolição da retórica considerada como arte de promover a comoção
usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão
dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado,
o realismo é uma reacção contra o romantismo: o romantismo era a
apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do carácter. É a crítica
do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos
conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para
condenar o que houver de mau na nossa sociedade <http://www.citi.
pt/cultura/literatura/romance/eca_queiroz/conferencias_casino.html>.
Acesso em: 5 out. 2019)

A quinta conferência, intitulada A Questão do Ensino, foi ministrada por


Adolfo Coelho buscando retratar as deficiências no ensino escolar português,
considerado pelos artistas como um cenário desolador e de atraso para o país.
Outras conferências não ocorreram, pois, o governo, por decreto, mandou
encerrar as conferências por tratar de temas proibidos como democracia,
socialismo e república, configurando-se assim como um claro exemplo de
censura às artes e aos artistas daquela época. Leia a seguir o manifesto elaborado
pelos participantes dessas conferências e seus objetivos a partir das discussões
feitas nas conferências do Casino.

Tal manifesto, assim como a citação de Queiroz anteriormente, expressa


resumidamente a ideologia e os objetivos da escola Realista em Portugal, o que
trouxe repercussões em diferentes países, a exemplo do Brasil e os artistas aqui
atuantes nessa mesma época, como Machado de Assis.

NTE
INTERESSA

Manifesto da Geração de 1870

Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação


política, e todos pressentem que se agita, mais forte que nunca, a questão de saber como
deve regenerar-se a organização social.
Sob cada um dos partidos que lutam na Europa, como em cada um dos grupos
que constituem a sociedade de hoje, há uma ideia e um interesse que são a causa e o
porquê dos movimentos.
Pareceu que cumpria, enquanto os povos lutam nas revoluções, e antes que nós
mesmos tomemos nelas o nosso lugar, estudar serenamente a significação dessas ideias e
a legitimidade desses interesses; investigar como a sociedade é, e como ela deve ser; como
as Nações têm sido, e como as pode fazer hoje a liberdade; e, por serem elas as formadoras
do homem, estudar todas as ideias e todas as correntes do século.
Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações
intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve
também ser o assunto das nossas constantes meditações.

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UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Abrir uma tribuna, onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam
este momento do século, preocupando-se sobretudo com a transformação social, moral e
política dos povos.
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos
elementos vitais de que vive a humanidade civilizada.
Procurar adquirir consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa.
Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna.
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da
sociedade portuguesa;
Tal é o fim das Conferências Democráticas.
Têm elas uma imensa vantagem, que nos cumpre especialmente notar: preocupar
a opinião com o estudo das ideias que devem presidir a uma revolução, de modo que para
ela a consciência pública se prepare e ilumine, é dar não só uma segura base à constituição
futura, mas também, em todas as ocasiões, uma sólida garantia à ordem.
Posto isto, pedimos o concurso de todos os partidos, de todas as escolas, de todas
aquelas pessoas que, ainda que não partilhem as nossas opiniões, não recusam a sua atenção
aos que pretendem ter uma acção – embora mínima – nos destinos do seu país, expondo
pública mas serenamente as suas convicções e o resultado dos seus estudos e trabalhos.

Lisboa, 16 de maio de 1871 – Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Soromenho,


Augusto Fuschini, Eça de Queiroz, Germano Vieira de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime
Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Saragga, Téofilo Braga.

FONTE: <http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/eca_queiroz/manifesto.html>. Acesso


em: 5 out. 2019.

Para Álvaro Machado, as aspirações da “Geração de 70 tem a ver


essencialmente com todo o grande drama do homem moderno, que é o drama
da obsessão revolucionária e das suas relações com o tempo” (MACHADO,
1986, p. 6). Desse modo, o autor defende que esses artistas foram os responsáveis
por uma revolução cultural em Portugal que trouxe à tona a reflexão da cultura
portuguesa desde suas origens, contribuiu para preparar inicialmente as
transformações estruturais políticas e sociais da década de 1910, a conhecida
revolução Republicana, além de influenciar indiretamente os intelectuais da
posterior Geração Orpheu, de Fernando Pessoa.

Todavia, conforme prossegue Machado (1986), na segunda fase da


Geração de 70, o ideal revolucionário dá lugar ao pessimismo e suicídio de Antero
de Quental. Já Eça procura se retirar da cena política e passa a imprimir mais
acentuadamente seu caráter irônico aos textos literários, sem deixar, no entanto,
de haver certo conformismo com o cenário político em voga. Contudo, esses
autores foram os responsáveis pela quebra de paradigmas na história artístico-
literária de Portugal, cujos frutos puderam ser colhidos, como se disse, em outros
artistas que se firmaram depois.

A seguir, leia um poema de Antero de Quental, figura ilustre e rebelde


desse período marcante no país, em que se pode ver sua desilusão a respeito do
cenário e da vida que vivia.

96
TÓPICO 2 | O REALISMO EM PORTUGAL

AD AMICOS

Antero de Quental

Em vão lutamos. Como névoa baça,


A incerteza das coisas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas próprias redes se embaraça.

O pensamento, que mil planos traça,


É vapor que se esvai e se dissolve;
E a vontade ambiciosa, que resolve,
Como onda entre rochedos se espedaça.

Filhos do Amor, nossa alma é como um hino


À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor dum pressentir divino;

Mas num deserto só, árido e fundo,


Ecoam nossas vozes, que o destino
Paira mudo e impassível sobre o Mundo.

FONTE: <https://poesia-portuguesa.com/antero-quental/ad-amicos/>. Acesso em: 5 out. 2019.

4 EÇA DE QUEIRÓS
A essa altura, embora saibamos que o leitor atento já tenha se apercebido,
torna-se importante ressaltar que os artistas e intelectuais aqui retratados
faziam parte da burguesia, ou quando não, eram muito próximos a ela e tinham
acesso aos estudos e ao universo artístico e literário de sua época. Isso se torna
importante de ser dito porque, embora diversas vezes esses artistas tragam em
suas obras um viés mais vanguardista consoante aos ideais de sua época, o dito
“lugar de privilégio” que ocupam não se afeta. O que fazem, e isso é sim de suma
importância, é trazer os temas dito marginais para a luz dos espaços elitistas e
seletivos que o são, ainda hoje, as artes em geral, embora já ocorram atualmente
mudanças significativas nesse sentido.

Por isso, e também pelo fato de serem os artistas pessoas que vivem
no mundo “real”, que as contradições quase sempre são a regra, a exemplo do
renomado Eça de Queiroz. O autor, após ausentar-se do cenário político busca
pela via da escrita irônica emitir suas opiniões e demarcar seu discurso que,
inicialmente, condizia com as utopias em voga a respeito de uma revolução
social, a fim de reparar as injustiças sociais.

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UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

É importante destacar tais características, embora elas não invalidem


a extrema valia de suas obras e seus frutos. De igual modo, outros artistas e
intelectuais que possam ter se aproximado de pensamentos políticos mais
conservadores, como o fascismo ou outros, não devem ser ignorados quanto aos
seus feitos. Resumindo, a vida e a obra de um artista tornam-se importante à
medida que ambos fazem parte de uma época e de uma determinada ideologia,
não existindo neutralidade dentro daquilo a que se propõem.

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 na cidade


de Póvoa de Varzim e faleceu em Neuilly-sur-Seine, na França, em 16 de agosto de
1900. Um dos mais renomados escritores portugueses, ficou conhecido pelos seus
romances realistas, dentre os principais encontram-se Os maias, O primo Basílio e
O crime do Padre Amaro. Além disso, foi também diplomata português e jornalista.

Em sua vasta obra, que concentra personagens importantes para a história


da literatura portuguesa, buscou sempre retratar, através do realismo descritivo,
críticas sociais de sua própria classe. A seguir, vejamos um de seus contos, e logo
adiante, um breve resumo de suas principais obras supracitadas. No conto O
tesouro, Eça retrata a ganância humana pelo vil metal, ou seja, o dinheiro e as
consequências que o homem pode assumir, a fim de tê-lo para si.

O TESOURO

Eça de Queiroz

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o


Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam
eles as tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo
as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde
desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer
devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia,
através do pátio, fendendo a neve, iam dormir á estrebaria, para aproveitar o
calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da
manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.

Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três
na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre
os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de Abril – os irmãos
de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova
de rocha, um velho cofre de ferio. Como se o resguardasse uma torre segura,
conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal
decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro,
até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

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TÓPICO 2 | O REALISMO EM PORTUGAL

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do


que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram
a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda,
tremiam… E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a
flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam
nos cintos as cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o
mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que
o tesouro, ou viesse de Deus ou do Demónio, pertencia aos três, e entre eles se
repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam
carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem
convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por
isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila
vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsilha, a comprar três alforges de
couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho.
Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era
para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro
nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.

— Bem tramado! — gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de


longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de
sangue até a fivela do cinturão.

Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre


os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

— Manos! O cofre tem três chaves… Eu quero fechar a minha fechadura e


levar a minha chave!

— Também eu quero a minha, mil raios! — rugiu logo Rostabal.

Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que
o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua
fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua,
meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a
sua cantiga costumada e dolente:

Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto…

II
Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham
desbastado a cutiladas) um fio de água brotando entre rochas: caía sobre uma
vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se
escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho
pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com

99
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas retouçavam a boa


erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Pela ramaria andava um melro
a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal,
olhando o Sol, bocejava com fome.

Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou
a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não
quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois
que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto
o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que
a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas
tavernas.

— Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado


este ouro, não dividia conosco, Rostabal!

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

— Não, mil raios! Guanes é sôfrego… Quando o ano passado se te lembras,


ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três
para eu comprar um gibão novo!

— Vês tu? — gritou Rui, resplandecendo.

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma


ideia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas
silvavam.

— E para quê — prosseguia Rui. — Para que lhe serve todo o ouro que nos
leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme,
todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até as outras neves,
Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos,
para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres,
e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos
de Medranhos…

— Pois que morra, e morra hoje! — bradou Rostabal.

— Queres?

Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos,


por onde Guanes partira cantando:

100
TÓPICO 2 | O REALISMO EM PORTUGAL

— Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser
tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas
costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem
pudor, Guanes te tratava de «cerdo» e de «torpe», por não saberes a letra nem
os números.

— Malvado!

— Vem!

Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado que dominava o atalho,


estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala,
tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos
— e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba,
calculava as horas pelo Sol, que já se inclinava para as serras. Um bando
de corvos passou sobre eles, grasnando E Rostabal, que lhes seguira o roo,
recomeçou a bocejar, com tome, pensando nos empadões e no vinho que o
outro trazia nos alforges.

Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:

Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto…

Rui murmurou: — Na ilharga! Mal que passe! — O chouto da égua bateu o


cascalho uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa
espada — e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes,
quando ao rumor, bruscamente ele se virara na sela. Com um surdo arranco,
tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua
— Rostabal caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a
espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.

— A chave! — gritou Rui.

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda


— Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a
espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor
do sangue que lhe espirrara para a boca: Rui, atrás, puxava desesperadamente
os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando
a longa dentuça amarela. não queria deixar o seu amo assim estirado,
abandonado, ao comprido das sebes.

101
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada — e foi correndo
sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou
na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a
relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de
mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforges novos que


Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois
gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha.
Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolegava, com
as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse urna estaca num
canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.

Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos
cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob
a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo — e
um sangue mais grosso forrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.

III
Agora eram dele, só dele, as três chaves do cofre! E Rui, alargando os braços,
respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos
alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos
e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos
silvados, só restassem, sob as neves de dezembro alguns ossos sem nome, ele
seria u magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido
mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos… Mortos como?
Como devem morrer os de Medranhos — a pelejar contra o Turco!

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir


sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi
examinar a capacidade dos alforges — e encontrando as duas garrafas de
vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só
comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!

Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas a ave
loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo
— nem esquecera azeitonas. Mas porque trouxera ele, para três convivas, só
duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A
tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na
vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o
focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria
custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos
lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão
prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia — destapou outra. Mas,

102
TÓPICO 2 | O REALISMO EM PORTUGAL

como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro,
requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava
em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de
neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

De repente, tomado de urna ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já


entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do
cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro… Mas oscilou, largando
os dobrões, que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito.
Que é, D. Rui? Raios de Deus! Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera
dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos,
e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor
horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais
forte, que alastrava, o roía! Gritou:

— Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro


galgava — sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal;
e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos,
procurava o fio de água que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água
mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima
da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para
lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu com uma baba densa a escorrer-lhe nas
barbas: e de repente; esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se
compreendesse enfim a traição, todo o horror:

— É veneno!

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho,
mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás
da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao
vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.

Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além nos silvados, já
tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando, lavava o outro
morto. Meio enterrado na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma
estrelinha tremeluzia no céu.

O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.

FONTE: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_
action=&co_obra=2198&co_midia=2>. Acesso em: 5 out. 2019.

103
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Em O crime do Padre Amaro, publicado em 1875, Eça tece suas críticas


às morais e à corrupção das instituições religiosas através dos personagens
que, hipocritamente, fazem parte do clero da cidade provinciana de Leiria. O
protagonista, Amaro, torna-se padre não por sua vontade própria, o que fica
claro ao longo do romance, e ao chegar à cidade é colocado sob a supervisão do
Cônego Dias, amante de D. Joaneira. Por consequência, envolve-se com Amélia,
filha daquela, o que culmina numa gravidez indesejada. A partir disso, Amélia
é rechaçada pelo padre e enviada para um local onde não se tenham suspeitas
de sua gravidez e do envolvimento pecaminoso. Ao passo que a protagonista e
a criança morrem devido à complicações do parto, o padre continua sua vida
como se nada tivesse acontecido, o que denota o quanto a instituição da Igreja ao
longo dos séculos vai se consolidando a partir de histórias ocultadas e vis que em
nada afetam sua estrutura, mas podem afetar, por outro lado os sujeitos que se
envolvem com esse poder estruturado.

O primo Basílio, lançado em 1878, retrata as características da sociedade


burguesa de Portugal a partir de Luisa, de seu marido Jorge e do desenrolar
da trama do adultério com o primo dela, Basílio, rapaz fanfarrão que aspira
fazer parte dessa classe abastada, embora totalmente fútil. As características
psicológicas dos personagens são tecidas de forma sagaz e irônica por Eça e dá-
se destaque à figura da empregada Juliana, que após descobrir sobre o adultério
passa a exercer sua vingança sobre a protagonista exigindo que ela faça os
serviços domésticos e lhe dê dinheiro. As descrições dos espaços e ambientes
são fiéis aos preceitos realistas.

Na obra Os Maias, publicado em 1888, narra-se a história de três gerações


de uma família cujo desfecho acaba na relação incestuosa entre os irmãos Carlos
Eduardo e Maria Eduarda. Eça de Queiroz esmiúça os personagens e os cenários
tecendo uma crítica à sociedade portuguesa oitocentista. Aqui no Brasil, em 2001,
o romance foi adaptado para a televisão em formato de minissérie composta por
42 episódios, com a direção de Luiz Fernando Carvalho.

Ora, a vasta obra e número de personagens de Eça de Queirós são dignas


de muitas notas e estudos mais acurados, inclusive é importante observar como
o autor retrata as personagens femininas, a exemplo de Luisa e Amélia e seus
papéis dentro de uma sociedade burguesa decadente, mas que quer preservar
sua imagem ideal a todo custo.

104
TÓPICO 2 | O REALISMO EM PORTUGAL

DICAS

Para saber mais sobre a obra acesse: http://www.citi.pt/cultura/literatura/


romance/eca_queiroz/maias_resumo.html.

Um resumo das principais personagens está disponível em: http://www.citi.pt/


cultura/literatura/romance/eca_queiroz/index.html.

Boa leitura!

DICAS

Tanto O crime do Padre Amaro quanto O primo Basílio tiveram adaptações


para o cinema, seja no Brasil ou em Portugal. Recomendamos que, além de ler os livros, você
assista a essas obras, a fim de se familiarizar com a ácida crítica social de Eça de Queiroz.

Recomendamos também a leitura da tese de Sandra Cristina Fernandes Morais,


intitulada A Visão da Mulher na Obra Romanesca de Eça de Queirós e de Machado de Assis,
pesquisa de grande importância ao trazer dois grandes escritores e o viés feminino para a
discussão. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10400.6/4188>. Acesso em: 1 fev. 2020.

105
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• O Realismo foi o terceiro momento do Romantismo que surge face aos exageros
sentimentalistas e mórbidos do Ultrarromantismo.

• Consoante às teorias sociais da época, o Realismo buscava retratar o comum


e ordinário, seja através de seus personagens, do momento presente e dos
acontecimentos de sua época.

• Em Portugal, a conhecida Geração de 70 torna-se a precursora de uma revolução


cultural a partir de seus ideais realistas.

• A Questão Coimbrã foi um embate entre artistas Ultrarromânticos e Realistas,


aqueles defensores do tradicionalismo e ideais conservadores, estes, defensores
da modernidade e ideais progressistas.

• Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins e Eça de Queirós são


representantes desse período.

• Eça de Queirós é tido como um dos maiores escritores de todos os tempos de


Portugal, por trazer em sua escrita a ironia e críticas sociais contundentes.

• As principais obras de Eça de Queirós são Os Maias, O primo Basílio e O crime


do Padre Amaro, embora haja vasta produção do escritor em diferentes gêneros
literários.

106
AUTOATIVIDADE

1 O Realismo foi a terceira fase do movimento romântico que buscava:

a) ( ) Trazer os ideais monárquicos como norteador da nova literatura.


b) ( ) Retratar os dramas cotidianos da sociedade a partir de descrições
objetivas e mais próximas possível do real.
c) ( ) Focar nos personagens cujas histórias retratavam a saga do herói.
d) ( ) Dar prioridade aos pensamentos individualistas e egocêntricos do autor
por meio do anacronismo da linguagem.
e) ( ) Estabelecer regras para a escrita realista a partir da métrica poética
clássica.

2 Em relação à Geração de 1870, assinale as alternativas CORRETAS:

I- É formada por escritores que criticavam o ultrarromantismo, e pretendia


fazer uma revolução na escrita literária do país influenciada por
pensamentos científico-sociais da época.
II- São seus representantes Antero de Quental, Alexandre Herculano,
Fernando Pessoa e Eça de Queiroz.
III- A Questão Coimbrã correspondeu ao duelo entre dois grupos ditos
conservadores e progressistas tanto nas ideias artísticas quanto políticas
de sua época.
IV- Reflexões sobre as consequências históricas e sociais eram caras aos
escritores dessa geração, influenciados pelo Realismo Social.
V- Eça de Queiroz vigora como um de seus principais representantes em
Portugal, dada sua vasta obra e ao fato de, diferentemente de Antero de
Quental, não ter se suicidado, mas se afastado da política de forma gradual.

a) ( ) I, II e III.
b) ( ) II, III e IV.
c) ( ) III, IV e V.
d) ( ) I, III, IV e V.
e) ( ) I, III e V.

3 (VUNESP) Para responder à questão, leia o trecho seguinte, extraído de O


Primo Basílio, de Eça de Queirós.

“Bom Deus, Luiza começava a estar menos comovida ao pé do seu amante, do que
ao pé do seu marido! Um beijo de Jorge perturbava-a mais, e viviam juntos havia
três anos! Nunca se secara ao pé de Jorge, nunca! E secava-se positivamente ao pé
de Basílio! Basílio, no fim, o que se tornara para ela? Era como um marido pouco
amado, que ia amar fora de casa! Mas então valia a pena?
Onde estava o defeito? No amor mesmo talvez! Porque enfim, ela e Basílio
estavam nas condições melhores para obterem uma felicidade excepcional:
eram novos, cercava-os o mistério, excitava-os a dificuldade... Por que era então

107
que quase bocejavam? É que o amor é essencialmente perecível, e na hora em
que nasce começa a morrer. Só os começos são bons. Há então um delírio, um
entusiasmo, um bocadinho do céu. Mas depois! ... Seria, pois, necessário estar
sempre a começar, para poder sempre sentir? E, pela lógica tortuosa dos amores
ilegítimos, o seu primeiro amante fazia-a vagamente pensar no segundo!”

No trecho, o amor é visto, predominantemente, como um sentimento:

a) ( ) Eterno, pois Luiza não deixa de amar seu marido, Jorge, apesar da
distância que os separa.
b) ( ) Passageiro e frágil, pois, para Luzia, só os começos são bons.
c) ( ) Intenso, pois Luiza se mostra profundamente dividida entre o amor de
Basílio e Jorge.
d) ( ) Terno e carinhoso, como se pode notar na boa lembrança que Luiza tem
do beijo de Jorge.
e) ( ) Sofrido, pois Luiza e Jorge sofrem por se amar demais e por não poderem
ficar juntos.

FONTE: <https://www.passeiweb.com/preparacao/banco_de_questoes/portugues/o_
primo_basilio>. Acesso em: 5 out. 2019.

108
UNIDADE 2 TÓPICO 3

O SIMBOLISMO EM PORTUGAL

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, descobriremos como o movimento simbolista ocorreu em
terras lusitanas, além de conhecer alguns poetas desse período. A partir disso,
você estudante poderá fazer comparações desse movimento ocorrido aqui no
Brasil. Procure saber mais sobre o tema, além de buscar ler o poeta Cruz e Sousa.

Você sabia que o simbolismo buscava aproximação com a música? Isso


nos faz relembrar do princípio da literatura portuguesa em que as cantigas
cumpriam o papel de protagonistas. A música, além de seus arranjos sonoros,
traz em seus conteúdos diversos temas que refletem suas épocas e pode ser um
grande instrumento para ser utilizado em sala de aula. Ouse em sua metodologia,
ou ao menos ouça uma música que goste para acompanhar a leitura!

2 A SIMBÓLICA DECADÊNCIA DOS SENTIMENTOS


Conforme vimos pontuando, as transições dos movimentos literários não
são estanques, muito menos deixam de beber das fontes anteriores. Nesse sentido,
o movimento Simbolista – seja na Europa, principalmente na França, onde surgiu,
ou em Portugal ou no Brasil –, vai recuperar características do ultrarromantismo
para incorporar às novas roupagens literárias.

Costuma-se demarcar que o Simbolismo surgiu em 1857 com o livro de


Charles Baudelaire, intitulado As flores do mal. Além dele, outro francês, Stéphane
Mallarme é um dos principais representantes e inspiradores do movimento.

No Brasil, o expoente máximo do Simbolismo, embora não tenha sido


valorizado enquanto era vivo, foi o poeta desterrense Cruz e Sousa, que em junho
de 2019 foi homenageado através da pintura de um enorme mural ao lado do museu
que leva seu nome na capital catarinense. O poeta era conhecido pela alcunha de
“Cisne Negro” e um dos seus poemas mais famosos é Violões que choram.

109
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

DICAS

Cruz e Sousa nasceu na cidade do Desterro, atual Florianópolis, capital do


estado de Santa Catarina.

FIGURA 6 – MURAL DE CRUZ E SOUSA EM FLORIANÓPOLIS

FONTE: <https://www.nsctotal.com.br/noticias/painel-em-florianopolis-homenageia-poeta-
cruz-e-sousa-e-chama-atencao-para-seu-legado>. Acesso em: 5 out. 2019.

De um caráter mais subjetivo, e já não querendo se envolver com questões


sociais como o Realismo pregava, o ceticismo presente nesse movimento culmina
na busca mais espiritual dos poetas. Ou seja, parece que ao invés de propagar
a temida adoração pela “morte” do ultrarromantismo, o simbolismo trouxe
para o mundo das ideias as aspirações, inquietações e contradições da alma
humana, essa já dominada por um espírito enfraquecido haja vista que os ideais
revolucionários de outrora resultaram em grandes derrotas para a História e para
as sociedades. Conforme declara Furlan (2009, p. 114) a respeito:

Contra a busca da fotografia do real na arte, os simbolistas pregam o


amor do vago e do indireto, do impreciso, do difuso, do invisível, do
impalpável. Longe do cienti­ficismo predominante na Geração de 70,
celebra-se o Místico (termo que em grego significa Mistério), princípio
e ­fim da poesia simbolista. Noutras palavras, contra a ideia de arte
como imitação da realidade (ou do visível), toda ideia de descrição do
real é abolida em favor da sugestão.

Ora, o próprio termo Simbolismo já parece aludir às intenções que os


poetas desse movimento pretendiam: apregoar símbolos abstratos para transmitir
sentimentos e emoções. O eu lírico traz um tom pessimista, e a aproximação
com a música se torna – mais uma vez – um objetivo a ser alcançado. Não em
vão, aliterações (repetições de vogais), assonâncias (repetição de consoantes) e
ecos são recursos utilizados nos poemas desse período. Ressalta-se ainda que a
poesia é eleita a fonte maior de propagação desse movimento, ao contrário do
romantismo, que elegeu a prosa como sua musa-mor.

110
TÓPICO 3 | O SIMBOLISMO EM PORTUGAL

A valorização de uma linguagem mais rebuscada também é característica


do movimento, pois ao tentar reproduzir os sentimentos mais elevados ou
espiritualizados da fusão entre o homem e a natureza, há que se lapidar a palavra
para que exprima simbolicamente esses desejos e aspirações.

Outra característica importante é a sinestesia, a mistura dos cinco sentidos,


ou seja, degustar um cheiro ou tocar com os olhos podem evocar emoções místicas
no poeta e no ouvinte/leitor. A busca interior, o trabalho com o inconsciente e
a intuição permeiam o movimento do início ao fim, pois já não há nada a ser
transformado “lá fora”.

Em Portugal, diz-se que a inauguração do movimento simbolista se


deu através do poeta Eugênio de Castro, em 1890, e sua obra Oaristos. Nos
primeiros versos de seu poema chamado Um sonho, podemos verificar a busca da
musicalidade nas assonâncias e aliterações: “Na messe, que enlourece, estremece
a quermesse.../ O sol, o celestial girassol, esmorece.../ E as cantilenas de serenos
sons amenos/ Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...” (CASTRO, 2008, apud
FURLAN, 2009, p. 108).

A crise da monarquia portuguesa, fruto de críticas desde o primeiro


romantismo, torna-se gritante em fins do século XIX, o que causou um
sentimento de decadência na sociedade lusitana, pois a sensação de derrota foi
expandida ainda mais com o conhecido “Ultimato” inglês, ocorrido em 1870,
que exigia que Portugal se retirasse da região do Congo, em África. Tal ato foi
considerado uma profunda humilhação infligida pelo antigo aliado do povo
luso. É nesse cenário catastrófico que o decadentismo literário se apresentou,
conforme veremos a seguir.

3 O FIM DO SÉCULO – DECADENTISMO


Esse tópico visa retratar o simbolismo em Portugal, todavia passamos a
falar do decadentismo cujos principais representantes traremos a seguir. Mas,
então, o que os movimentos simbolista e decadentista têm em comum? Conforme
pontua Guy Michaud (1966, p. 234 apud JUNQUEIRA, 2003, p. 25):

Decadência e simbolismo não são duas escolas, como se quer


geralmente fazer crer, mas duas fases sucessivas dum mesmo
movimento, duas etapas da revolução poética... a decadência ou, como
se costuma dizer, o "decadentismo" aparece-nos como o momento do
lirismo, a expansão de uma sensibilidade inquieta, em estado de crise,
sendo o simbolismo o momento intelectual, a fase de reflexão sobre
esse lirismo [...] A nova "escola" dará à sensibilidade de cadente e à
sociedade mais do que uma doutrina literária: uma metafísica, uma
concepção de mundo. Só então, pelo simbolismo triunfante, abrir-se-
ão para a poesia novas perspectivas.

111
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Desse modo, não será de admirar que alguns teóricos pontuem uma
separação entre os dois momentos, todavia, aqui assumimos a interrelação entre
movimento literário simbolista e a estética filosófica decadentista, conforme
destaca também Elzenga (2009, p. 15) que “O Simbolismo queria transformar a
visão do Decadentismo em estética e assim, decifrando o mistério da existência,
descobrir com intuição, associação e analogia o esotérico e o inefável”. Assim
sendo, simbolismo e decadentismo já anunciam o Modernismo donde, inclusive,
o poeta Camilo Pessanha participa através da Geração Orpheu, iniciada em 1915,
e que você conhecerá um pouco melhor na próxima unidade.

DICAS

Como leitura complementar para entender as conexões entre Simbolismo e


Decadentismo, indicamos o trabalho de mestrado de J. G. Elzenga (2009) a respeito da obra
de Camilo Pessanha, intitulado Clepsidra, de Camilo Pessanha (1867-1926) e o movimento
do Decadentismo e Simbolismo em Portugal: https://dspace.library.uu.nl/handle/1874/36479.

Vejamos, então, três poetas que flertaram com o movimento simbolista ou


decadentista vigente no entardecer do século XIX em Portugal.

4 ANTÓNIO NOBRE, CESÁRIO VERDE E CAMILO PESSANHA


Conforme pontua Álvaro Cardoso Gomes (1994), Antônio Nobre foi o
poeta decadentista que mais próximo esteve da estética simbolista. Sua única
obra, intitulada Só traz a temática da doença que o levou à morte, ou seja, a
tuberculose. Nasceu na cidade do Porto em 16 de agosto de 1867 e faleceu em
Foz do Douro em 18 de março de 1900. Foi na Universidade de Coimbra que teve
acesso aos simbolistas franceses.

Uma das características marcantes de sua poesia é a heteronímia, ou seja, a


evocação de “outro eu” na poesia, que será amplamente difundido por Fernando
Pessoa posteriormente (GOMES, 1994). Seu tom irônico a respeito de sua doença
e – possível morte pode ser vista no poema Na balada do caixão, transcrito a seguir.

112
TÓPICO 3 | O SIMBOLISMO EM PORTUGAL

BALADA DO CAIXÃO

O meu vizinho é carpinteiro, Algibebe


de Dona Morte, Ponteia e cose, o dia
inteiro, Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de veludo, Flandres
gentil, pinho do Norte ... Ora eu que
trago um sobretudo Que já me vai a
aborrecer, Fui-me lá, ontem: (era
Entrudo, Havia imenso que fazer...)
– Olá, bom homem! quero um fato,
Tem que me sirva? – Vamos ver ...
Olhou, mexeu na casa toda.
– Eis aqui um e bem barato.
– Está na moda? — Está na moda.
(Gostei e nem quis apreçá-lo: Muito
justinho, pouca roda ...)
– Quando posso mandar buscá-lo?
– Ao pôr do Sol. Vou dá-lo a ferro:
(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)
Ó meus Amigos! salvo erro, Juro-o
pela alma, pelo Céu: Nenhum de vós,
ao meu enterro, Irá mais dândi, olhai!
do que eu!

Paris, I89I

FONTE: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_
action=&co_obra=38090&co_midia=2>. Acesso em: 1 fev. 2020.

O dandismo evocado no poema é também uma das características do


movimento simbolista e, posteriormente, aprimorada no modernismo. Dândi é
aquele homem preocupado com a estética e aparência física, desse modo, podemos
perceber que mesmo na hora derradeira de sua aparição na terra, o poeta almeja
apresentar-se da melhor forma possível, por isso vai escolher o caixão que melhor
combine com o perfil de sua morte.

DICAS

Para saber mais sobre a vida e obra do poeta António Nobre, acesse o endereço
a seguir: https://www.ebiografia.com/antonio_nobre/.

113
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Outro grande poeta desse período é Cesário Verde. Nascido em Lisboa


em 25 de fevereiro de 1855, faleceu na mesma cidade a 19 de julho de 1886, com a
mesma doença de Nobre, a cruel tuberculose. Sua obra publicada em 1887 chama-
se O livro de Cesário Verde. O poeta já antecipa uma crítica aos ideais modernistas,
trazendo reflexões sobre o campo e a cidade; a figura da mulher é amplamente
retratada, em suas multifacetas. Prevalece a cidade como representante da
decadência versus o modernismo explorada em diversos poemas do autor,
conforme veremos em Sentimento de um ocidental a seguir.

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

A Guerra Junqueiro

I
AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,


Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;

114
TÓPICO 3 | O SIMBOLISMO EM PORTUGAL

Um trôpego arlequim braceja numas andas;


Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!

II
NOITE FECHADA

Toca-se às grades, nas cadeias. Som


Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções retas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

115
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Inflama-se um palácio em face de um casebre.


Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III
AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos


Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confeções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos revérberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,

116
TÓPICO 3 | O SIMBOLISMO EM PORTUGAL

Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!


Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
«Dó da miséria!... Compaixão de mim!...»
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!

IV
HORAS MORTAS

O teto fundo de oxigénio, de ar,


Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes

117
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

E pelas vastidões aquáticas seguir!


Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

Em Portugal a Camões, publicação extraordinária


do Jornal de Viagens do Porto, no dia 10 de Junho de1880

FONTE: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_
action=&co_obra=40113&co_midia=2>. Acesso em: 5 out. 2019.

Podemos dizer, talvez, que é nesse poema que Cesário Verde expressa as
desilusões e decadências pressentidas e presenciadas por seus contemporâneos
lusitanos. Com o intuito de homenagear Camões, vê-se que o poeta traz as crises
existenciais entrelaçando passado e presente ao apresentar uma cidade e um sujeito
“ocidental” que se encontra no limiar da dor e do sofrimento humano. O poema é
dividido em quatro partes, em que podemos ver as dicotomias, como o rico x pobre;
a felicidade x infelicidade; o campo x cidade; o tempo prodigioso de Camões x o
tempo de seu presente decadente, entre outras dualidades. Sua obra é de grande
valia para compreender as celeumas e aflições de espírito dos poetas decadentistas.

O último poeta aqui brevemente apresentado é Camilo Pessanha. O poeta


nasceu em Coimbra em 7 de setembro de 1867 e falece em Macau, na China,
em 1 de março de 1926. Sua obra encontra-se no livro Clepsidra, de 1920, sendo
permeada por um pessimismo e melancolias marcantes de sua época. Evoca a
sonoridade musical e joga com as palavras rebuscadas ao modo simbolista de se
fazer poesia. A seguir, seu poema Roteiro da vida traz as reflexões sobre a trama
passageira e aventurosa do ser e suas aflições.

118
TÓPICO 3 | O SIMBOLISMO EM PORTUGAL

ROTEIRO DA VIDA

Camilo Pessanha

I
Enfim, levantou ferro.
Com os lenços adeus, vai partir o navio.
Longe das pedras más do meu desterro,
Ondas do azul oceano, submergi-o.
Que eu, desde a partida,
Não sei onde vou.
Roteiro da vida,
Quem é que o traçou?
Nalguma rocha ignota
Se vai despedaçar, com violento fragor...
Mareante, deixa as cartas da derrota.
Maquinista, dá mais força no vapor.

Nem sei de onde venho,


Que azar me fadou!?...
Das mágoas que tenho,
Os ais por que os dou...
Ou siga, maldito,
Com a bandeira amarela...
Pomares, chalés, mercados, cidades...
A olhar da amurada,
Que triste que estou!
Miragens do nada,
Dizei-me quem sou...

II
Nesgas agudas do areal
E gaivotas que voais em redor do navio,
Tornais o meu cérebro mole,
Esmeralda viva do Canal
E desertos inundados de sol!
Meu pobre cérebro inconsequente e doentio!
No qual uma rede se desenha,
Complicada, de sofrimentos irregulares...
Águas que filtrais na areia!
Antes que o crepúsculo venha,
O crepúsculo e as larvas tumulares,
A impureza inútil dissolvei-a.
Que o sol, sem mancha, o cristal sereno
Volatilize, ao seu doce calor,
A fria e exangue liquescência...

119
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS

Um hálito! Não embaciará de veneno,


Indecisa, incolor,
Da areia o brilho e a viva transparência.
Recortes vivos das areias,
Tomai meu corpo e abride-lhe as veias...
O meu sangue entornai-o,
Difundi-o, sob o rútilo sol,
Na areia branca como em um lençol,
Ao sol triunfante sob o qual desmaio!

III
Cristalizações salinas,
Mirrai na areia o plasma vivaz.
Não se desenvolvam as ptomaínas...
Que adocicado! Que obsessão de cheiro!
Putrescina: Flor de lilás.
Cadaverina: Branca flor do espinheiro!
Só o meu crânio, fique,
Rolando, insepulto, no areal,
Ao abandono e ao acaso do simum...
Que o sol e o sal o purifique.

FONTE: Pessanha (1989, p. 15-17).

DICAS

Para conhecer melhor o autor, veja sua biografia disponível em: https://www.
ebiografia.com/camilo_pessanha/.

Ao encerramos esta unidade, vale pensar quanto a literatura, seja em


prosa ou poesia, evoca e transcende realidades, ficções e espíritos de sua época.
O decadentismo e o simbolismo cumpriram um papel de transição entre o
romantismo e o modernismo nas artes, mas sem deixar de, embora não fosse a
intenção de seus autores, pontuar desilusões sobre o seu tempo.

120
TÓPICO 3 | O SIMBOLISMO EM PORTUGAL

Mesmo que se pretenda mais afastado da realidade em curso, o poder


transmutador que a literatura traz parece nos fazer voltar o olhar para além de
nós mesmos, a todo o universo que nos compõe, ao modo do que os simbolistas
pretendiam unir. Quem sabe a busca mística desse período almejasse nada mais
que aquilo que, ao fim e ao cabo, nós devemos perceber que é ser parte de um
todo, transcendendo e nos fundindo com o sobrenatural e o infinito simbolizado
e eternizado na palavra.

DICAS

Para compreender melhor o Simbolismo e Decadentismo nas artes em geral,


principalmente nas artes plásticas, sugerimos a visita ao site do Itaú Cultural, onde um
acervo de obras e reflexões ajudam a complementar esse período nas artes em geral: http://
enciclopedia.itaucultural.org.br/termo4624/decadentismo.

121
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• O decadentismo e o simbolismo podem ser entendidos como dois processos de


um mesmo período, em que os sentimentos de desilusão e pessimismo estavam
em voga na Europa em geral, e em Portugal em particular.

• O simbolismo buscava rejeitar a objetividade e a realidade propagadas pelo


realismo, preocupando-se mais em retratar o subjetivismo, retomando algumas
características do segundo período romântico.

• A crise política e monárquica em Portugal e o Ultimato inglês são momentos


históricos que colaboraram para o espírito decadente e desiludido no povo luso.

• Os principais representantes do decadentismo/simbolismo português são


Antônio Nobre, Cesário Verde e Camilo Pessanha.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

122
AUTOATIVIDADE

1 Assinale a alternativa que traz as principais características estéticas do


Simbolismo:

a) ( ) Subjetivismo, misticismo, sinestesia, musicalidade.


b) ( ) Objetivismo, religiosidade, métrica, linguagem popular.
c) ( ) Subjetivismo, sarcasmo, linguagem popular, falta de métrica.
d) ( ) Objetivismo, catolicismo, versos alexandrinos, linguagem Latina.
e) ( ) Objetivismo e subjetivismo, linguagem coloquial e culta, versos livres.

2 (UFAM/2014 - adaptada) Leia o início do poema Num bairro moderno, do


poeta português Cesário Verde:

Dez horas da manhã; os transparentes


Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estacam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo de uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

Sobre o texto e suas relações com o período simbolista em Portugal, leia as


seguintes afirmativas:

I- O poema não se filia ao Parnasianismo, que em Portugal foi uma vertente


lírica pouco praticada.
II- O poeta age como um repórter da cidade, sensível às suas pulsões, e,
como tal, não se coloca fora do assunto.
III- O texto se vincula ao Romantismo, haja vista os recursos da prosa de que
se utiliza, como a dissertação e as descrições.

123
IV- O poeta trabalha o poema em busca da beleza em si, por isso se observa no
texto a obsessão pela forma característicos do período ultrarromântico.
V- A ideia central – descrever um bairro rico – está revestida de uma
linguagem que tende para o lirismo exacerbado.

Assinale a alternativa CORRETA:

FONTE: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:ikRox1O9mTQJ:https:
//enem.estuda.com/questoes/%3Fid%3D387440+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso
em: 2 fev. 2020.

a) ( ) Somente as afirmativas III e IV estão corretas.


b) ( ) Somente as afirmativas III e V estão corretas.
c) ( ) Somente as afirmativas I e IV estão corretas.
d ( ) Somente as afirmativas II e V estão corretas.
e) ( ) Somente as afirmativas I e II estão corretas.

3 Assinale a alternativa INCORRETA:

a) ( ) O simbolismo foi um movimento literário surgido a partir da França


com o livro As flores do mal, de Baudelaire.
b) ( ) O decadentismo e o simbolismo podem ser considerados um mesmo
movimento estético caracterizado pelo pessimismo e busca de evasão
do real.
c) ( ) O Simbolismo foi o auge do movimento romântico na sua primeira fase
na Europa.
d) ( ) Em Portugal, a obra Oaristos, de Eugênio de Castro inaugura o
movimento simbolista.
e) ( ) A sinestesia, que é a mistura entre os cinco sentidos, é um recurso
amplamente utilizado na poesia simbolista.

124
UNIDADE 3

A LITERATURA PORTUGUESA A
PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS
TRANSFORMAÇÕES
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender as estéticas literárias modernistas e contemporâneas em


Portugal;
• relacionar os contextos históricos e sociais do país, principalmente o
Ultimato, e suas consequências;
• estudar e conhecer escritores do Modernismo e da Contemporaneidade
Portuguesa, além de um panorama geral das literaturas africanas de
língua portuguesa;
• identificar semelhanças e diferenças entre as diferentes manifestações
estéticas estudadas nas três unidades;
• conhecer um pouco do contexto pós-colonial e as literaturas resultantes
dessa reflexão;
• analisar possibilidades de trabalhar o texto literário em sala de aula.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade,
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – MODERNISMO EM PORTUGAL

TÓPICO 2 – LITERATURA CONTEMPORÂNEA

TÓPICO 3 – LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

125
126
UNIDADE 3
TÓPICO 1

MODERNISMO EM PORTUGAL

1 INTRODUÇÃO
Estimado acadêmico! Adentramos agora à última unidade da disciplina
de Literatura Portuguesa, na qual trataremos de temas mais contemporâneos,
o que pode facilitar nossa compreensão. Ressaltamos, todavia, que cabe a você
entrelaçar os recortes aqui expostos com os seus conhecimentos de mundo e
leituras dos escritores citados, bem como de outros que, por conta da limitação
de espaço, não tratamos neste livro didático.

Desde o princípio, frisamos que as relações entre literatura, história e


política andam lado a lado e, muitas vezes, possibilitam-nos enxergar as facetas
históricas de um país. Estamos, agora, referindo-nos ao início do século XX, em
que o Republicanismo passa a compor a identidade política e social aos quais
Portugal já vinha galgando, não sem frutos de contradições e polêmicas, desde
a “Revolução Liberal do Porto”. Segundo aponta Cabral (2014), as relações
entre as tendências culturais portuguesas e seu quadro político-social estiveram
interligadas desde a “Geração de 1870”, que conhecemos na Unidade 2. Para ele:

Na medida em que a cultura possa ser relacionada com os problemas


mais amplos da mudança social, é lícito dizer que as tendências
literárias modernas seguiram de perto a institucionalização do
liberalismo político e o começo da modernização social e econômica.
Contudo, foi apenas na década seguinte, como reação aos problemas
políticos e sociais levantados pelas deficiências de funcionamento
do sistema liberal e pela progressão da economia de mercado, que o
movimento republicano surgiu, contribuindo para estabelecer, desde
o início, um forte elo entre a luta contra o regime monárquico e a
ascensão do nacionalismo moderno (CABRAL, 2014, s.p.).

Ora, perdurou no país uma oscilação entre monarquias absolutistas e


liberais, esta última com aspirações republicanas, que só se tornaram concretas
em 1910. Nesse ínterim, a Europa já estava num processo de modernização,
que se iniciou com as Revoluções Industrial e Francesa já mencionadas na
Unidade 2, quando as grandes metrópoles acompanhavam as novas formas de
interação social, com a inclusão de novas tecnologias no cotidiano, o que alterava
profundamente as relações humanas.

127
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

DICAS

Para saber as diferenças entre Monarquia e República, acesse o material


disponível em https://www.politize.com.br/monarquia-e-republica-qual-a-diferenca/.

Entretanto, Portugal não acompanhava essa modernização, estando


ainda focado politicamente na monarquia absolutista e na colonização dos países
africanos, o que causou o advento do “Ultimato” inglês, e que será ainda mote
dos modernistas.

Destaca-se, por outro lado, o modernismo enquanto um movimento


estético-cultural que chegou ao país nesse período entreguerras e revelou
importantes nomes da literatura portuguesa, como Fernando Pessoa e Florbela
Espanca, entre outros, embora algumas características ditas modernas já fossem
vistas nos decadentistas/simbolistas, portanto, o modernismo que traremos aqui
é fruto do amadurecimento de ideias que já vinham gestadas por poetas como
Cesário Verde e Antônio Nobre, por exemplo.

ATENCAO

Sobre o Ultimato inglês: “Na ocasião da Conferência de Berlim, Portugal


apresentou, através do Mapa Rosa, o projeto de união territorial entre duas de suas colônias,
Angola e Moçambique, incorporando a faixa central entre elas. Essa faixa corresponde à
região da Bacia do Congo (região onde estão o Zimbábue, a Zâmbia e Malawi), o que
aumentaria a sua influência territorial” (OLIVEIRA; GOMES, 2013, p. 25). Todavia, conforme as
autoras destacam, a Inglaterra, detentora da região sul de África, argumentava que para dar
continuidade e modernizar a colonização no continente africano, era preciso “tecnologias
e investimentos”, o que dava desvantagens a Portugal. Esse processo durou de 1875, na
Conferência de Berlim, até 1890, período do Ultimato para que Portugal retirasse suas tropas
da região citada.

128
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

Ainda, a identidade de nação portuguesa – que sempre permeou os


movimentos literários — continuou sendo colocada em xeque já que, ao que
parece, a modernidade e suas inovações mostraram as fragilidades desse Portugal
que se pretendia grande, mas que dentro de um contexto maior, comparado a
outros países colonizadores, tinha suas debilidades e costumes ultrapassados,
pois ainda estava carente de um processo de industrialização e baseando-se na
exploração de suas colônias africanas, já que o Brasil, a maior colônia portuguesa,
havia declarado Independência. Como explicitam Oliveira e Gomes (2013, p. 23):

A industrialização da cada nação significava sua modernização, o que se


tornava visível através do crescimento das infraestruturas econômicas
e sociais, da expansão urbana e dos mercados consumidores. Isso
tudo dependia de investimentos em máquinas e matérias-primas,
dependia, portanto, também do ajuste do colonialismo praticado na
África a essas novas demandas, pois era nesses territórios coloniais que
estava a possibilidade de acumulação das riquezas de que a Europa se
serviria para continuar a investir na sua modernização.

Ou seja, o “Ultimato” inglês tinha também como foco uma nova


demanda de públicos consumidores nas antigas colônias a partir da transição
do capitalismo agrário para o capitalismo mercantil e industrial, e porque a
escravização já estava dando mais custos que lucros às formas de governo até
então estabelecidas. Obviamente que estamos tratando de temas mais profundos
que devem ser, inclusive, pesquisados por você estudante, a fim de compreender
melhor como se deram essas transições sociais, históricas e políticas que são de
extrema importância para se compreender o passado e presente de cada país.

O movimento modernista visava a total ruptura com o passado,


questionando-o e problematizando as transformações históricas sem, no entanto,
deixar de flertar com o advento da modernidade e toda a fascinação dela
proveniente. Como vimos discutindo, um movimento estético busca sempre essa
“quebra” com o movimento anterior, o que se mostrou já evidente no Romantismo,
mas agora era uma recusa total ao “tradicional” e ao “ultrapassado” em busca do
“novo”, rompendo com as heranças classicistas que sempre estiveram, direta ou
indiretamente, no horizonte dos movimentos anteriores.

Nesse sentido, algumas vanguardas foram importantes para a consolidação


do modernismo, entre elas o Futurismo em Portugal ganhou adeptos como o
próprio Fernando Pessoa e o artista plástico Guilherme de Santa-Rita, que
autointitulou-se o introdutor do movimento em terra lusitana.

129
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

NOTA

Vanguardas são movimentos artístico-culturais que buscam quebrar


paradigmas do seu tempo. O termo passou a ser empregado nas artes a partir do início do
século XX, concomitantemente ao Modernismo. As principais vanguardas que influenciaram
diretamente aquele movimento foram Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo,
além do Futurismo aqui mencionado.

O Futurismo foi oficialmente lançado pelo artista italiano Filippo Marinetti


em 1909, através do Manifesto Futurista, que exaltava as evoluções tecnológicas,
principalmente as máquinas, a guerra e a indústria bélica, além de ser claramente
misógino e antifeminista. Marinetti aderiu, posteriormente, à ideologia fascista na
Itália, mas não sem antes influenciar uma vasta gama de artistas em todos os campos
através da estética futurista, que via no progresso e na máquina o total poderio que
o homem poderia impor ao se aliar à tecnologia. Vejamos seu conteúdo na íntegra
para melhor compreendermos suas dimensões estéticas e ideológicas.

MANIFESTO FUTURISTA
(Publicado em 20 de fevereiro de 1909, no “Le Figaro”)

1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.


2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.
3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono.
Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, o passo de
corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.
4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza
nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com o seu cofre
enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo…
um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito
que a Vitória de Samotrácia.
5. Nós queremos glorificar o homem que segura o volante, cuja haste ideal
atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da sua
órbita.
6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, esforço e liberdade, para
aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um
carácter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida
como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a
prostrar-se diante do homem.

130
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

8. Nós estamos no promontório extremo dos séculos! Por que haveríamos de


olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível?
O Tempo e o Espaço morreram ontem. Já estamos vivendo no absoluto,
pois já criamos a eterna velocidade omnipotente.
9. Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo –, o militarismo, o
patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais
se morre e o desprezo pela mulher.
10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda a
natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda a vileza oportunista
e utilitária.
11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela
sublevação; cantaremos as marés multicores e polifónicas das revoluções nas
capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor nocturno dos arsenais e dos
estaleiros incendiados por violentas lutas eléctricas; as estações esganadas,
devoradoras de serpentes que fumam; as fábricas penduradas nas nuvens
pelos fios contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes a ginastas
gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol com um luzir de facas; os
piróscafos aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de largo
peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes cavalos de aço enleados
de carros; e o voo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma
bandeira, e parece aplaudir como uma multidão entusiasta.

FONTE: <https://memoriavirtual.net/2005/02/21/futurismo-manifesto-futurista-2/>. Acesso


em: 10 nov. 2019.

Apesar da polêmica sobre o envolvimento com o fascismo, tanto os


artistas portugueses como o brasileiro Mário de Andrade, que aderiram aos
ideais futuristas, optaram por se afastar do caráter político deste, diferentemente
de Marinetti, e focaram mais no teor estético a que o movimento dava prioridade,
a saber “a experimentação estética com inovação e ousadia; o futurismo como
recusa do passado e a exaltação do maquinismo no conteúdo e na forma poética”
(OLIVEIRA; GOMES, 2013, p. 35-36). Ou seja, trazer para o campo das artes
as influências e pontos de vista estéticos a partir das modernidades como, por
exemplo, a velocidade de um carro e suas possibilidades transgressoras na poesia.

NOTA

Resumidamente, o fascismo é uma ideologia política autoritária que se embasa


a partir do nacionalismo exacerbado a fim de justificar a superioridade e domínio de
determinada nação e tudo que a envolve sobre outras. Para saber mais, acesse o endereço:
https://www.politize.com.br/fascismo/.

131
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Dito isso, vale observarmos que um importante meio de difusão das estéticas
modernistas nesse período em Portugal foram as revistas. Desse modo, as duas
gerações modernistas ficaram conhecidas como “Geração de Orpheu” e “Geração
Presença”, nomes das revistas publicadas entre os períodos de 1915 até 1940.

A Revista Orpheu teve duas publicações lançadas em 1915 e 1916,


tornando-se o marco do modernismo em Portugal. Seus principais representantes
foram Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Mário de Sá Carneiro, o brasileiro
Ronald de Carvalho, entre outros. A revista cumpriu o papel de rompimento com
o tradicionalismo trazendo em sua estética versos livres e temas progressistas.
Embora tenha durado pouco, serviu para incentivar outras publicações do gênero,
como a Revista Portugal Futurista, que teve apenas uma publicação.

Fernando Pessoa, com seu heterônimo Álvaro de Campos, e Almada


Negreiros fizeram os poemas com o tema do Ultimatum a fim de tecerem críticas
tanto internas quanto externas ao contexto da crise em Portugal. Para o eu lírico
do primeiro, era necessário expulsar os estrangeiros a fim de se criar um país
moderno e autêntico; para o último, uma crítica ao próprio povo português e
uma tentativa de “guerrear” para se tornar mais forte e recuperar sua dignidade.
Embora os dois textos tratem da mesma temática, Negreiros se distancia de Pessoa
e se aproxima dos elogios à guerra e ao domínio dos mais fortes defendidos por
Marinetti (OLIVEIRA; GOMES, 2013, p. 41).

DICAS

As duas edições da Revista Orpheu estão disponíveis em: https://modernismo.


pt/index.php/orpheu. Vale a pena fazer o download do material e conferir os textos a fim de
compreender o cenário da primeira geração modernista portuguesa. Além disso, o referido
sítio possui acervo de outras revistas literárias do movimento modernista português, além
dos espólios de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros.

FONTE: <https://modernismo.pt/index.php/orpheu>. Acesso em: 11 mar. 2010.

132
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

A Revista Presença foi lançada em 1927 e teve 54 edições. Esse material


serviu para consolidar os ideais modernistas na estética artístico-literária em
Portugal. Seus fundadores foram Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões
e José Régio, este último tido como o principal teórico dessa segunda geração
modernista que visava se afastar dos ideais políticos e ideológicos da primeira
geração, focando na “arte pela arte”. Em seu manifesto “Literatura Viva” lançado
na primeira edição da revista vemos que:

[...] a ideia de Literatura Viva era responsável por estabelecer


uma conduta individual do artista baseada em preceitos como:
originalidade, intimidade, profundidade, verdade. Mas tal conduta
não deveria ser posta a serviço da política ou do que pudesse servir à
sociedade. Para José Régio, a arte deve servir somente à arte e, desse
modo, já cumpre a sua função. A individualidade do artista, contudo,
o colocaria acima dos grupos e partidos e daria a ele (artista) uma
superioridade diante dos demais indivíduos e da sociedade em geral,
tornando a arte inacessível e impermeável aos processos históricos e
sociais (OLIVEIRA; GOMES, 2013, p. 52).

Vale ressaltar que durante os treze anos de existência da Revista Presença,


por onde passaram diversos artistas, viu-se insurgir em Portugal – assim como
ocorrera na Itália – uma ditadura fascista que perdurou por 41 anos e deixou
profundas marcas no país e em suas colônias africanas, que lutaram por suas
independências a partir da década de 1960. Além disso, o modernismo vivenciou
a experiência da Primeira Guerra Mundial e as dimensões histórica, política e
social desse evento para a humanidade.

Antônio de Oliveira Salazar tornou-se, em 1930, chefe do Estado português


e instaurou o “Estado Novo” em 1933, que durou até 1974. Os pilares desse novo
governo eram “Deus, Pátria e Família”. Ele ainda “[...] criou a União Nacional, que
pretendia ser uma espécie de partido único e, de fato, mesmo sem uma proibição
formal dos partidos, a censura progressiva em relação aos discursos de oposição
ao governo era muito grande” (OLIVEIRA; GOMES, 2013, p. 47-48).

Durante seu governo, houve uma forte articulação propagandística e


censuras a qualquer oposição, que poderia logo ser acusada de antinacionalista ou
mesmo socialista. Vale a pena pesquisar mais sobre esse período para compreender,
inclusive, como uma ditadura perdurou por tantos anos em Portugal.

Diante dos cenários do “papel da arte” em geral, e “da literatura” em


particular, as divergências não são de agora em que se vê um determinado
movimento inclinado mais para as relações entre literatura e sociedade
objetivamente, e outro movimento mais inclinado para as relações mais subjetivas
e individuais do artista, como já vimos no Realismo e Ultrarromantismo, por
exemplo. Quando as teorias sociais, tanto na área da ciência política quanto das
ciências biológicas e seus determinismos, começaram a ter adeptos e defensores
nas práticas, alguns artistas começaram a querer se afastar desse viés ideológico

133
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

da arte, pois parecia que a arte deveria ter uma “utilidade”, uma “função a
cumprir” sendo sempre submissa a outros campos. Por essas e outras questões,
José Régio tentava defender com afinco o distanciamento entre arte e política,
como se vê em seu famoso poema Cântico Negro.

CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" – dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!

134
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,


E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

FONTE: <http://www.releituras.com/jregio_cantico.asp>. Acesso em: 10 nov. 2019.

Porém, um artista sempre irá refletir direta ou indiretamente as


características de sua época, pois não existe discurso que não seja ideológico,
logo, as celeumas entre polarizações nos campos de arte e política ocorrem desde
o princípio. E é nessa esteira que, em 1921, surge a Revista Seara Nova visando
trazer um debate mais politizado para a situação vigente em Portugal, conforme
pontua Carvalho (2015, p. 102):

Os objetivos que se propõem atingir passam, fundamentalmente, pela


reflexão e denúncia dos «males» que afetam a República, ao mesmo
tempo que surge a imperiosa necessidade de criar uma verdadeira
consciência nacional e uma elite que terá por missão formar uma
opinião pública «esclarecida, susceptível de devolver à governação
republicana o espírito do 5 de Outubro e inflectir a sua prática no
sentido de um socialismo democrático livremente consentido.

Em suma, é em meio a um cenário opressor que Portugal, após sucessivas


crises políticas e identitárias, se vê em pleno século XX envolvido num regime
autoritário que se vestiu com ares de salvação aos problemas políticos anteriores.
Mas não por acaso, é nesse período que um dos seus principais escritores viveu, a
saber, Fernando Pessoa e suas personas, conforme veremos a seguir.

135
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

2 FERNANDO PESSOA E A MULTIPLICIDADE DE EUS


Em primeiro lugar, salientamos que falar de Fernando Pessoa e toda sua
criatividade e obra já daria um livro todo, mas infelizmente não podemos tratar
somente desse ícone da literatura portuguesa, logo traremos um breve resumo
e alguns de seus poemas. Incentivamos que você, acadêmico, procure e leia as
obras desse autor a fim de apreciar seu talento e conhecer melhor as múltiplas
personas por ele criadas.

Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa no dia 13 de junho


de 1888, sob o signo de Gêmeos, considerado na astrologia o representante da
comunicação. Em sua vida teve contato com o misticismo donde, inclusive,
criou mapas astrais para seus heterônimos, que desde a infância lhe visitavam.
Todavia, os mais conhecidos são Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis
e Bernardo Soares.

Primeiro, falemos um pouco do poeta por ele mesmo, também conhecido


por ortônimo, que publicou em vida alguns poemas em inglês e o livro Mensagem,
composto por 44 poemas em que ressalta a história de Portugal em busca de sua
identidade passada, ou seja, os tempos áureos de descobertas ultramar ao estilo
camoniano, sem deixar de homenagear Camões. Nesse livro, um de seus principais
poemas é Mar português, cujos versos evocam as conquistas e sofrimentos que
valeram a pena, pois toda glória deve ter um bocado de desafio.

MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

FONTE: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_
action=&co_obra=15726>. Acesso em: 10 nov. 2019.

136
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

Fernando Pessoa foi um dos fundadores da Revista Orpheu, além disso,


contribuiu para outras revistas, como A Águia, e exerceu forte influência e
apoiou os colegas da Revista Presença, que pretendia levar adiante o projeto
modernista começado pela geração de Orpheu. Aliás, foram os representantes de
Presença que publicaram a primeira biografia de Pessoa, bem como sua primeira
Antologia Poética (OLIVEIRA; GOMES, 2013). Vejamos, então, as facetas de seus
heterônimos, ou o “outro em si”, os quais Pessoa criou biografias completas que
compõem o rol da criatividade subjetiva desse artista. O poeta assim explica a
origem e forma de conviver com seus outros “eus”:

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo


fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não
sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não
existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos).
Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro
de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história,
várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as
coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real.
Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-
me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com
que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
(PESSOA, 2015, p. 4).

FIGURA 1 - RETRATO DE FERNANDO PESSOA FEITO POR ALMADA NEGREIROS (1964)

FONTE: <https://www.comunidadeculturaearte.com/fernando-pessoa-o-rosto-do-modernismo-
portugues/>. Acesso em: 10 nov. 2019.

Alberto Caeiro é considerado o mais sábio de seus heterônimos e mestre


de Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Buscava se expressar através da poesia
simples e com objetividade, se opondo aos misticismos e mesmo à metafísica,
como expressa em alguns poemas. Seus versos são livres e os temas geralmente
relacionados à natureza e a vida comum. Sua obra é O guardador de rebanhos, onde
se vê sua relação bucólica com a natureza e negação das subjetividades, vivendo
uma vida simples no campo. Segundo Pessoa, Caeiro nasceu em Lisboa em abril
de 1889 e faleceu de tuberculose em 1915. A seguir, o poema homônimo do livro.

137
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

GUARDADOR DE REBANHOS

Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor


Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,


Sei a verdade e sou feliz.

FONTE: <http://www.fpessoa.com.ar/poesias.asp?Poesia=181&Voltar=livros.asp%3FLivro=o_
guardador_de_rebanhos%26Voltar=heteronimos.asp?Heteronimo=alberto_caeiro>. Acesso
em: 10 nov. 2019.

Álvaro de Campos nasceu em 1890 e era engenheiro naval. Foi considerado


o poeta modernista, pois embora fosse discípulo declarado de Caeiro e de sua
objetividade, seus poemas trazem o sensacionismo pessoano de forma eloquente
e sagaz. Vivia inconformado com o seu tempo, embora grande admirador da
modernidade e das máquinas. São seus os inesquecíveis versos de Ultimatum,
Opiário, Ode triunfal e o transcendente Tabacaria: “Não sou nada/ Nunca serei
nada/ Não posso querer ser nada/ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos
do mundo”.

NOTA

Fernando Pessoa estipulou três fases distintas de suas poéticas, a saber: o


Pauísmo, o Interseccionismo e o Sensacionismo. Para saber mais, leia: http://multipessoa.
net/labirinto/poetica/4.

138
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

Ricardo Reis nasceu na cidade do Porto em 19 de setembro de 1887. É


médico e também discípulo de Caeiro. Defensor da monarquia, viveu alguns
anos no Brasil. Dada sua educação jesuítica, tem proximidade com o classicismo,
sendo um conservador de princípios e de moral, pode ser visto como neoclássico
na poesia. Era também adepto do “estoicismo”, filosofia que resumidamente
significa aceitar as coisas como elas são sem exacerbar as emoções, como podemos
ver em seus poemas.

CADA COISA A SEU TEMPO TEM SEU TEMPO

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.


Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,


O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra


Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas, sejam


Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do Sol) —

Pouco a pouco o passado recordemos


E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida


Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,


Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

139
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Nesse desassossego que o descanso


Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

FONTE: <http://www.fpessoa.com.ar/heteronimos.asp?Heteronimo=ricardo_reis>. Acesso


em: 10 nov. 2019.

Bernardo Soares é autor do Livro do Desassossego, que contém fragmentos


sobre a vida e suas nuances. Fernando Pessoa o considerou um semi-heterônimo
por terem algumas particularidades similares: “É um semi-heterónimo porque,
não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples
mutilação dela” (PESSOA, 2015, p. 7). Seu livro conta com prefácio do próprio Pessoa
e cada fragmento pode evocar inúmeras concepções filosóficas e metafísicas.
Vejamos o fragmento que fala sobre a estética e indiferença.

ESTÉTICA DA INDIFERENÇA

Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida


indiferença que ela, no que coisa, lhe causa.

Saber, com um imediato instinto, abstrair de cada objecto ou


acontecimento o que ele pode ter de sonhável, deixando morto no Mundo
Exterior tudo quanto ele tem de real – eis o que o sábio deve procurar realizar
em si próprio.

Nunca sentir sinceramente os seus próprios sentimentos, e elevar o


seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas próprias
ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem
passa por quem não lhe interessa.

O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio, tendo-


se, alma e corpo, por a casa e a quinta onde o Destino quis que passássemos a
nossa vida.

Tratar os seus próprios sonhos e íntimos desejos altivamente, en grand


seigneur [...], pondo uma íntima delicadeza em não reparar neles. Ter o pudor
de si próprio; perceber que na nossa presença não estamos sós, que somos
testemunhas de nós mesmos, e que por isso importa agir perante nós mesmos
como perante um estranho, com uma estudada e serena linha exterior,
indiferente porque fidalga, e fria porque indiferente.

140
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

Para não descermos aos nossos próprios olhos, basta que nos habituemos
a não ter nem ambições, nem paixões, nem desejos, nem esperanças, nem
impulsos, nem desassossego. Para conseguir isto lembremo-nos sempre
que estamos sempre em presença nossa, que nunca estamos sós, para que
possamos estar à vontade. E assim dominaremos o ter paixões e ambições,
porque paixões e ambições são desescuidarmo-nos; não teremos desejos nem
esperanças, porque desejos e esperanças são gestos baixos e deselegantes; nem
teremos impulsos e desassossegos porque a precipitação é uma indelicadeza
para com os olhos dos outros, e a impaciência é sempre uma grosseria.

O aristocrata é aquele que nunca esquece que nunca está só; por isso
as praxes e os protocolos são apanágio das aristocracias. Interiorizemos o
aristocrata. Arranquemo-lo aos salões e aos jardins passando-o para a nossa
alma e para a nossa consciência de existirmos. Estejamos sempre diante de nós
em protocolos e praxes, em gestos estudados e para-(os)-outros.

Cada um de nós é uma sociedade inteira, um bairro todo do Mistério,


convém que ao menos tornemos elegante e distinta a vida desse bairro, que nas
festas das nossas sensações haja requinte e recato, e porque sóbria, cortesia nos
banquetes dos nossos pensamentos. Em torno a nós poderão as outras almas
erguerem-se os seus bairros sujos e pobres; marquemos nitidamente onde o
nosso acaba e começa, e que desde a frontaria dos prédios até às alcovas das
nossas timidezes, tudo seja fidalgo e sereno, esculpido numa sobriedade ou
surdina de exibição.

Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar.


Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de ser sonho de amor, pálido
e trémulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate.
Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da
alma a sós consigo própria; fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar-
se nem em dizer-se. Ao ódio adormecê-lo como a uma serpente prisioneira, e
dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar
da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.

FONTE: <http://multipessoa.net/labirinto/bernardo-soares/28>. Acesso em: 10 nov. 2019.

Fernando Pessoa foi único em sua multiplicidade. Além de toda sua obra,
que ficou inédita por um tempo, também foi ensaísta e tradutor. Tal qual a sua
audácia de ser muitos e tornar-se uno ao mesmo tempo, fechemos esse tópico com
as próprias palavras poéticas dessa “Pessoa” singular, plural e simbolicamente
“fingida” que foi e continua sendo uma incógnita literária:

141
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

FONTE: <http://multipessoa.net/labirinto/fernando-pessoa/1>. Acesso em: 15 nov. 2019.

Lembrando, assim, que, conforme afirma Furlan (2008), “fingidor” vem


do latim “fingere” que significa “modelar”, “dar forma”. Quem melhor que um
poeta para “fingir” a dor das palavras até modelá-las ao suprassumo dos ideais
estéticos e líricos? Desse modo, a vasta obra desse autor continua a ser mistério a
ser desvendado por quem assim o queira.

Que tal agora você, acadêmico, fazer um levantamento dos vários textos
de Fernando Pessoa e seus heterônimos e escolher qual é o seu favorito? Comente
com seus colegas e leia poesia!

DICAS

O célebre Fernando Pessoa possui diversos estudos a seu respeito, pois como
você percebeu, a complexidade de sua obra é fruto de inúmeros questionamentos, seja
sobre o poeta ou seja sobre seus outros “eus”. Além das bibliografias virtuais citadas neste
tópico, que trazem poemas e biografias, indicamos a pesquisa de mestrado de Hélio Valdeci
Rodrigues (2009), O desejo de inconsciência em poemas de Fernando Pessoa – ortônimo
e heterônimos Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, disponível em: https://www.teses.usp.
br/teses/disponiveis/8/8150/tde-23112009-115536/pt-br.php. Além disso, sua obra completa
já se encontra em domínio público para deleite de todos nós. Visite também os endereços
virtuais “Casa Fernando Pessoa”: https://www.casafernandopessoa.pt/ e “MultiPessoa”:
http://multipessoa.net/labirinto, no qual se pode fazer um tour virtual sobre sua vida e obra.

142
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

3 FLORBELA ESPANCA
Embora a visibilidade feminina tenha sido pequena dentro da literatura,
mesmo na modernidade, não podemos deixar de trazer aqui uma das maiores
expoentes da poesia portuguesa, a saber, Florbela Espanca. Nascida em 8 de
dezembro de 1894 no Alentejo, faleceu aos 36 anos de idade, sob circunstâncias
suspeitas de suicídio. Em sua obra constam seis livros de poemas, sendo que
quatro foram publicados postumamente, um diário e dois livros de contos
também póstumos (OLIVEIRA; GOMES, 2013, p. 85).

Em seu livro “Trocando olhares” encontramos traços das cantigas de


amor e cantigas de amigo do Trovadorismo, mas fazendo inversão do eu lírico, o
que significa que nas cantigas de amor ela própria enquanto “eu lírico” feminino
é quem faz a corte do seu amado (OLIVEIRA; GOMES, 2013, p. 90), o que era uma
subversão para a época. As rimas dos poemas também são ao estilo dos versos
paralelísticos e redondilhas maiores, conforme as cantigas trovadorescas.

Seus temas revelam a subjetividade lírica que, por vezes, trazem o amor
da mulher e tudo o que isso expunha a respeito da sociedade, embora a autora
não fosse uma ativista política pela causa feminina. Vejamos seu poema Mulher:

A MULHER
(I)

Um ente de paixão e sacrifício,


De sofrimento cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!
Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta: sê em Vénus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão-de pisar-te!
Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;
E gritam então vis: “Olhem, vejam
É aquela a infame!” e apedrejam
a pobrezita, a triste, a desgraçada!

(II)

Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!


Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosas duma imagem

143
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Adorada que amaram doidamente!


Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!

FONTE: <https://blogdospoetas.com.br/poemas/a-mulher/>. Acesso em: 10 nov. 2019.

Em seu Livro de Mágoas, Florbela assume também o soneto como forma


poética, e parece que a poeta busca encontrar-se a si mesma a fim de fundir-se em
si ou no outro através dos seus versos sem, no entanto, encontrar respostas aos
seus questionamentos.

EU (Livro de mágoas)

Eu sou a que no mundo anda perdida,


Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!
.. Sou aquela que passa e ninguém vê
... Sou a que chamam triste sem o ser
... Sou a que chora sem saber por que
... Sou talvez a visão que alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

FONTE: <http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/florbela3.pdf>.
Acesso em: 10 nov. 2019.

Em seus livros Sóror Saudade e Charneca em flor, percebe-se a maturidade


poética de Florbela, conforme apontam estudiosos. No primeiro, ela assume a
intertextualidade com o poeta Américo Durão, que a chamava de “irmã” e cria a
personagem “Sóror Saudade”.

144
TÓPICO 1 | MODERNISMO EM PORTUGAL

Já no segundo livro, o eu lírico não é mais uma irmã e sim uma mulher que
traz nas palavras o erotismo e o fogo da paixão para se revelar e se questionar.
Perceba a diferença entre o poema Eu deste livro com o publicado em seu primeiro
trabalho.

EU (Charneca em flor)

Até agora eu não me conhecia, julgava que era


Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era
Eu não o sabia mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim...
E não me via!
Andava a procurar-me – pobre louca!
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma,
E a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!

FONTE: <http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/florbela2.pdf>.
Acesso em: 20 nov. 2019.

Agora é sua vez! Descubra quais são as nuances desse processo de


amadurecimento de Florbela através da leitura de seus poemas, disponíveis para
download, e interaja com seus colegas. Perceba a diferença entre ler um poema
em silêncio e, em seguida, lê-lo em voz alta. O que você sente? É importante
praticar esse exercício da escuta, inclusive, para melhorar o processo de leitura.
Mãos à obra, ou melhor, olhos nas obras dos poetas aqui mencionados!

DICAS

Indicamos o artigo de Maria Lúcia dal Farra intitulado A condição feminina na


obra de Florbela Espanca, a fim de compreender o papel dessa mulher poeta do século XX
a partir das reflexões sobre ser mulher sob o ponto de vista da pesquisadora. Disponível em:
http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/epa/article/view/5474/5924.

Visite também o endereço virtual que contém detalhes sobre a vida e obra de Florbela
Espanca: http://purl.pt/272/2/index.html.

145
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• O Modernismo chegou a Portugal juntamente com a transição para a República,


todavia o país estava defasado no que diz respeito à modernização comparado
ao restante da Europa.

• O Modernismo teve duas gerações, consolidadas através da publicação de


revistas, a saber, Geração Orpheu (1915) e Geração Presença (1927).

• Fernando Pessoa foi um dos precursores do Modernismo, bem como um dos


fundadores da Revista Orpheu, que teve duas edições apenas.

• Fernando Pessoa publicou, em vida, poemas em inglês e o livro Mensagem,


além de exercer as funções de ensaísta e tradutor.

• Durante o período de 1933 a 1974, Portugal viveu sob a ditadura salazarista,


cujas consequências marcam a história do país e dos países por ele colonizados.

• Os quatro principais heterônimos de Fernando Pessoa são: Alberto Caeiro,


Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares.

• Florbela Espanca foi uma poeta do Modernismo que, mesmo sendo mulher,
desafiou os paradigmas da época pela magnitude de sua obra poética e o papel
relegado à mulher em seu tempo.

146
AUTOATIVIDADE

1 Modernismo e modernidade possuem características que ora se opõem, ora


se complementam. Assinale a alternativas que explicitam esses momentos
em Portugal:

I- O modernismo foi um movimento literário que surgiu concomitantemente


à República em Portugal, em 1910.
II- A Modernidade está relacionada ao advento das Revoluções Francesa e
Industrial e ao uso de tecnologias e máquinas.
III- O modernismo chegou em Portugal numa época em que o país ainda não
poderia ser considerado, de fato, moderno devido às suas características
políticas e econômicas.
IV- O modernismo foi influenciado por algumas vanguardas, entre elas o
Trovadorismo.
V- A primeira geração modernista em Portugal ficou conhecida como
Geração Orpheu, mesmo nome da revista que teve dois volumes e contou
com Fernando Pessoa como um de seus fundadores.

Assinale as opções CORRETAS:


a) ( ) I, II e V.
b) ( ) II, III e IV.
c) ( ) I, II, III e V.
d) ( ) II e IV.
e) ( ) I, III e V.

2 Fernando Pessoa foi um poeta de múltiplas facetas. Destacam-se seus


heterônimos com as seguintes características:

a) ( ) Alberto Caeiro, comunista; Álvaro de Campos, simbolista; e Ricardo


Reis, neoclássico.
b) ( ) Ricardo Reis, o mais conservador; Alberto Caeiro, o mais subjetivo e
Álvaro de Campos, o liberal.
c) ( ) Álvaro de Campos era engenheiro; Alberto Caeiro vivia no campo
e pregava a objetividade; Ricardo Reis era médico e defensor da
monarquia.
d) ( ) Bernardo Soares, um objetivista; Ricardo Reis, um subjetivista e Álvaro
de Campos, prosador.
e) ( ) Nenhuma das alternativas anteriores.

147
3 (UEL, 2009, adaptada) Leia o poema a seguir, de Florbela Espanca:

AMAR!

Eu quero amar, amar perdidamente!


Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi para cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder...pra me encontrar...
(ESPANCA, F. Sonetos. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 80.)

Sobre o poema, é CORRETO afirmar:

FONTE: <http://www.cops.uel.br/vestibular/2009/provas/P16.pdf >. Acesso em: 11 mar. 2020.

a) ( ) É uma elegia à juventude.


b) ( ) Está construído em versos de oito e dez sílabas.
c) ( ) Faz uso constante do hipérbato.
d) ( ) Trata do amor eterno.
e) ( ) O eu lírico desmistifica o amor.

148
UNIDADE 3
TÓPICO 2

LITERATURA CONTEMPORÂNEA

1 INTRODUÇÃO
Prezado acadêmico! Desde a primeira unidade deste Livro Didático
alguns séculos já se passaram. Iniciamos esta jornada para desvendar uma das
possíveis nuances da história literária de língua portuguesa focando a partir de
Portugal, contudo, trazendo alguns aspectos que reverberaram tanto no Brasil
quanto em países africanos de língua portuguesa.

Após o Modernismo, alguns teóricos classificam o momento como Pós-


moderno ou Pós-colonial. Todavia, em que momento preciso isso se coloca é
relativo de cada teórico e de cada vertente literária que a conceba. Vemos, por
exemplo, que a Literatura que aqui colocamos como “Pré-1974” ainda carrega
características neorrealistas, movimento antagônico ao Modernismo que vigorou
em Portugal, mas já se inclina para um Pós-modernismo questionando valores
que àquele eram caros, como o conceito de nação, por exemplo.

A vertente literária neorrealista surge da necessidade de alguns artistas


mais engajados para combater a estética da “arte pela arte” apregoada pela Geração
de Presença, pois lembremos que aquele foi um período de ditadura fascista em
Portugal. O objetivo do Neorrealismo, então, era denunciar as mazelas sociais e
políticas vivenciadas durante essa época. Uma das obras mais conhecidas desse
movimento é “Gaibéus”, de Alves Redol.

O neorrealismo estava mais interessado em focar no sujeito coletivo para


apresentar uma problematização da sociedade e das relações estabelecidas entre
o homem e a política, buscando, assim, conscientizar os sujeitos historicamente
localizados. Conforme pontuam Oliveira e Gomes (2013, p. 116) sobre a obra de Redol:

Gaibéus trata de uma temática social e regionalista, focalizando


o cotidiano de ceifeiros, trabalhadores “boias-frias” da região do
Ribatejo, que partem em busca de trabalho em lavouras de arroz, o
que lhes permite apenas uma sobrevivência miserável, aquartelados
em galpões sem condições mínimas de higiene e alimentação, bebendo
água com os animais e privados de qualquer assistência em caso de
doença ou morte. Em muitos pontos da obra a desumanização dos
trabalhadores é destacada e, também, a sua resignação como sujeito
coletivo (classe) contrastando com as falas do ceifeiro rebelde,
personagem que caracteriza o início possível da desalienação.

149
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

O objetivo da arte neorrealista era trazer à luz da consciência da


população a exploração econômica, política e social em que vivia. Diferentemente
do Realismo do século XIX, que embora tivesse um viés de denúncia, era mais
descritivo daquilo que seria o “real”, neste aqui focava-se mais nas categorias
marxistas trazidas para o campo das artes com a finalidade de denunciar e
desalienar o povo através das artes, por isso o conceito de classe social é bastante
explorado nesse tipo de obra.

Trazemos esse breve recorte do movimento para contrastar com outra


vertente literária que se desenvolveu mais focada no “existencialismo”, cujas
características principais, embora contenham uma crítica social, estão mais voltadas
ao indivíduo e às consequências de seu existir imbricado em todas as instâncias do
ser humano. Num viés existencialista, questiona-se o ser e o coletivo, os papéis
levados ao limite extremo onde se pergunta: “sou livre ou sou fruto da alienação”?
“Até que ponto as instituições sociais me afetam, me limitam ou me definem”?
O que vale pensarmos, aqui, é que influências filosóficas como o existencialismo
permitiram aos sujeitos lidarem com suas angústias modernas e pós-modernas
transcendidas em formas de arte, ou da linguagem literária, como se queira.

2 LITERATURA PRÉ-1974
A literatura contemporânea pode ser dividida em pré-1974 e pós-1974,
sendo que 1974 foi o ano em que ocorreu a “Revolução dos Cravos”, em 25 de
abril, e que demarcou o fim da ditadura salazarista em Portugal.

Uma parcela de militares descontentes com o salazarismo e contrária às


guerras em países africanos, que durou de 1961 a 1974, começou a se organizar
para dar fim aos quarenta e um anos da ditadura fascista no país. Aliás, já antes
dessa data alguns rebeldes haviam tentado fazer tal revolução, porém sem êxito.
Aqueles que conseguiram ficaram conhecidos como “Capitães de abril” e em 17
horas depuseram Marcelo Caetano, sucessor de Salazar que, no entanto, mantinha
firme e forte as políticas ideológicas daquele após sua morte, em 1970.

A Revolução dos Cravos ficou assim conhecida porque mulheres


vendedoras de cravos começaram a distribui-los nas ruas aos soldados rebeldes
como forma de agradecimento, quando da ocasião em que o povo foi às ruas
comemorar a queda do regime de então.

150
TÓPICO 2 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA

FIGURA 2 – CARTAZ – A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

FONTE: Oliveira e Gomes (2013, p. 127)

No total da história portuguesa, foram 48 anos de repressão, o que fez


com que emergissem escritores ávidos por trazer à tona os traumas desses anos
de censura e repressão. Conforme pontuam Oliveira e Gomes (2013, p. 127), “Com
a Revolução dos Cravos a literatura portuguesa iniciou um período de acertos
de contas com a repressão de todo o período anterior, reclamando a liberdade,
revisando a história e a Guerra de Independência Colonial”.

Nesse ínterim, percebia-se que o modernismo já não era suficiente para


explicar os novos cenários, surgindo a necessidade de se repensar algo depois
desse estado de modernidade, surgindo assim o conceito de pós-modernidade.

A pós-modernidade se caracteriza pelo esgotamento das ideias modernas,


onde se acreditava que o progresso e o conhecimento científicos iriam emancipar
o homem, dando credibilidade a discursos totalizantes, mas esses mesmos
discursos permitiram as barbáries do homem moderno.

Após duas guerras mundiais e toda a atrocidade produzida,


principalmente nos campos de concentração nazistas, mas mais ainda, e com o
consentimento da maioria, a escravização de negros africanos e o extermínio das
populações indígenas para justificar a superioridade do homem europeu, branco
e colonizador fez com que se colocasse em xeque os valores, até então, apreciados.

Costuma-se dizer que o período pós-moderno surgiu após a Segunda Guerra


Mundial, e em seu bojo encontram-se a fragmentação, o hibridismo de gêneros
textuais, os questionamentos sobre as grandes “verdades” que a modernidade
propagou, a falta de regras para conteúdos e formas, independentemente das
artes, entre outras características.

151
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Para o momento, importa destacar que o pós-modernismo se consolidou


em Portugal, principalmente com a geração de escritores pós-74, todavia essa
não é uma regra fixa, até porque um dos pilares desse movimento é, de fato, não
se encaixar em nenhuma “caixinha”, ou não fazer parte de nenhum movimento.
Para o campo da linguagem literária, o exercício da autorreflexão, a fragmentação
do “eu” e a dissecação da linguagem podem ser características que demarcam
algumas obras.

Destacamos, assim, o livro Bolor, de Augusto Abelaira, publicado em 1968.


O livro pressupõe-se ser do gênero “diário”, todavia, conforme avançamos na
leitura do romance não sabemos se quem escreve é o personagem Humberto,
Maria dos Remédios, sua esposa e objeto de observação do narrador, ou ainda
Aleixo. Ao longo da narrativa, percebe-se as reflexões sobre o relacionamento do
casal, porém se observarmos que o diário, que deveria ser uma escrita para si,
desdobra-se em outros narradores “traindo” as características do gênero, o que
podemos ver é a linguagem como forma de tentativa de organizar os mundos:

Divirto-me: neste momento sou o Humberto que sonha ser o Aleixo


ou o Aleixo que sonha ser o Humberto? Ou o Humberto que sonha
ser a Maria dos Remédios que por sua vez sonha ser o Aleixo que por
sua vez sonha ser o Humberto que por sua vez sonha... Ou o Aleixo
que sonha ser o Humberto que por sua vez sonha ser a Maria dos
Remédios que por sua vez sonha ser o Humberto que por sua vez...
(ABELAIRA, 1974, p. 126).

Eis também uma das características da escrita pós-moderna, a fusão entre


ficção e realidade e a busca de compreensão do mundo pela linguagem de outras
formas, pois ao escrever um diário, o autor pretende registrar suas memórias e,
quiçá, encontrar-se através das palavras. Porém, a escrita também é um artefato
que pode ser manipulado, como se vê no trecho acima e no livro todo, já que
há um jogo de linguagem com o leitor, o que nos faz lembrar que a língua e a
linguagem são, de fato, um jogo de xadrez, ou as regras podem ser mudadas?

Ainda, Barros (2013, p. 89) menciona o momento político vivido nesse


período em Portugal: “A literatura poderia ser um corpo de defesa no corpo
linguístico do idioma ao expressar uma cultura e uma sociedade doentes pelo
fascismo. Tudo só se torna possível pela e na poiesis”. Desse modo, vemos que a
linguagem e a arte são formas de expressão que possibilitam ao sujeito lidar com
seus fantasmas e suas dores, principalmente numa época em que já não existe
mais salvação, pois todas as vias e tentativas dessa emancipação foram postas
à prova e provaram não serem suficientes para salvar o homem de si mesmo,
restando apenas, nesse processo, a tentativa de fuga da realidade através de uma
arte que lhe possibilite expressar-se livremente, mesmo que para isso acontecer a
liberdade se dê através das palavras, apenas.

152
TÓPICO 2 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA

Vale ressaltar, porém, que a pós-modernidade não traz soluções aos


problemas encontrados no período que a antecede pois pode, inclusive, ocorrer a
generalização destes com a dita globalização, por exemplo. O papel que a ciência
continua exercendo, para bem ou para mal, contribui ainda para uma legitimação
de poder pelos seus detentores, segundo Lyotard expõe:

Na idade pós-industrial e pós-moderna, a ciência conservará e


sem dúvida reforçará ainda mais sua importância na disputa das
capacidades produtivas dos Estados-nações. […]. Sob a forma de
mercadoria informacional indispensável ao poderio produtivo, o
saber já é e será um desafio maior, talvez o mais importante, na
competição mundial pelo poder. Do mesmo modo que os Estados-
nações se bateram para dominar territórios, e com isto dominar
o acesso e a exploração das matérias-primas e da mão-de-obra
barata, é concebível que eles se batam no futuro para dominar as
informações. Assim encontra-se aberto um novo campo para as
estratégias industriais e comerciais e para as estratégias militares e
políticas (LYOTARD, 2009, p. 3, grifos nossos).

Portanto, vemos que há ainda muito a ser feito numa época em que (quase)
tudo já foi dito referente a saberes, ciências, artes, política e tecnologias, todavia,
ainda falta o ser humano descobrir o potencial dos afetos de sua humanidade
focada numa vertente descolonizadora e permeada de afetividade real em busca do
Outro como um diferente que o complemente, e não visando exterminá-lo, como
ocorreu na Era dos Extremos, esta descrita por Eric Hobsbawn em seu livro que
trata desde a Primeira Guerra Mundial até a queda da União Soviética, em 1991.

DICAS

Para compreender melhor essa discussão, leia o artigo O que é pós-


modernidade? Resumo de uma falência da modernidade, de Vinícius Siqueira (2014).
Disponível em https://colunastortas.com.br/pos-modernidade/.

3 LITERATURA PÓS-1974
Em seu acerto de contas com a história, Portugal viu nascerem obras
poéticas de profunda autorreflexão identitária, pois os escritores que estiveram
nas guerras, por exemplo, retornavam ao país sendo vistos como “derrotados”,
já que o resultado das guerras foram as independências das colônias africanas.
Todavia, esses mesmos escritores não compreendiam o porquê daquelas guerras,
já que a emancipação dos países africanos poderia ter ocorrido de forma menos
sanguinária, não fosse a insistência lusitana em se fazer colonizador até o último
suspiro. Desse modo,

153
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

A crua representação dos acontecimentos relativos ao envolvimento


de Portugal com as guerras pela descolonização africana, confere a
tais narrativas traços de vigoroso imediatismo, pois transfiguram com
uma veemência testemunhal, beirando a revolta, as ações colonialistas,
violentas, preconceituosas e repressivas da política lusitana, não
só em relação aos africanos insurrectos, mas também em relação ao
próprio povo português, o qual arcou com imensas perdas financeiras
e humanas, em nome de uma quimera imperial que as outras nações
não reconheciam e condenavam (ROANI, 2004, p. 25).

Dentro dessa reflexões pós-coloniais, destacamos a obra de Lídia Jorge


intitulada “Costa dos Murmúrios”, publicada em 1988. Misturando fatos
verídicos sobre a Guerra de Moçambique com a ficção, a personagem portuguesa,
Eva Lopo, desconstrói mundos ao acompanhar o marido, também português, ao
país africano. O livro foi adaptado ao cinema por Margarida Cardoso. Conforme
pontua Oliveira (2006, p. 2),

A primeira parte de A costa dos murmúrios, “Os gafanhotos”, narra


a comemoração do casamento do alferes português Luís Alex e sua
noiva portuguesa Evita, durante dois dias, em que ocorre uma trégua
nos combates contra os levantes coloniais. A comemoração das bodas
se dá no terraço do hotel Stella Maris, onde um cortejo de convidados
dança inebriado, num clima de “gáudio e furor”, enquanto um
fotógrafo registra as cenas de harmonia da festa. [...] Entretanto,
o clima eufórico das personagens é ameaçado por pequenos fatos
como a aglomeração de cadáveres de negros na praia. Os membros
do cortejo nupcial apenas observam, através de binóculos, a imagem
destes “imensos, incontáveis afogados”, que eram varridos da vista da
cidade em caminhões de lixo (OLIVEIRA, 2006, p. 2).

DICAS

COSTA DOS MURMÚRIOS

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=hntdAH4In8k>. Acesso em: 11 mar. 2020.

O filme A costa dos murmúrios, de Margarida Cardoso (2012) e adaptação


homônima do livro de Lídia Jorge está disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=hntdAH4In8k.

154
TÓPICO 2 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA

Na segunda parte do romance, a personagem vai desvelando a trama


apontando o caso dos negros envenenados e outras atrocidades do terrível e
temível jogo da guerra colonial. Percebe-se, por exemplo, a tentativa de se manter
a ordem da festa em contraste aos horrores que aconteciam à população negra
naquela cidade. Recursos metafóricos e de ironia são as armas discursivas que a
autora traz a fim de mostrar o passado cruel dessa história.

Também o escritor Antônio Lobo Antunes e sua trilogia Memória de


Elefante, Os cus de Judas e Conhecimento do inferno narram as experiências vividas
pelo autor na guerra de Angola. Lobo Antunes atuou, de fato, como médico nos
campos de batalha e quando retorna a Portugal, “vencido da vida que nunca
quis viver”, começa a se questionar e questionar o seu país. Dono de uma escrita
tumultuosa e complexa, vamos percebendo em seus discursos a fusão polifônica
e o dialogismo inerentes da linguagem. Conforme aponta Mello (2012, p. 9):

A memória da guerra, a melancolia e o ressentimento exemplificam


essa falta portuguesa de identificação consigo mesmo nas obras
escolhidas; é através da linguagem que essas feridas vão sendo abertas
e os estilhaços pululam por todas as partes da vida do personagem
desta trilogia. Com uma narrativa ácida, Lobo Antunes nos conduz
ao universo degradado de um sujeito ultrajado por sua nação, sua
família, seus amores e sem expectativas de um futuro promissor.

O sujeito pós-moderno encontra-se num limbo, em que muitas vezes


a loucura pode ser a saída, ou uma solução temporária para fugir dos ataques
cotidianos da “insustentável leveza de se ser” humano (lembrando do livro de
Milan Kundera). Em que medida se justificam as barbáries, e em nome de quem, de
que deus se opera uma guerra?! A guerra, tão exaltada pelos futuristas modernos,
eclodiu na mutilação da consciência humana que se viu nua diante de si própria.
E é assim que Lobo Antunes vai nos conduzindo nessa trilogia para mostrar que

Salazar de um cabrão que nunca mais acabas de morrer, pensou ele


na altura, [...] defrontando-se com a obstinação do senhor Joaquim:
quantos senhores Joaquins dispostos a seguirem de olhos vendados
um antigo seminarista trôpego com alma de governanta de abade
contando tostões na despensa? No fundo, meditava o médico
contornando o Jardim das Amoreiras, o Salazar estoirou mas da barriga
dele surgiram centenas de Salazarzinhos dispostos a prolongarem-
lhe a obra com o zelo sem imaginação dos discípulos estúpidos,
centenas de Salazarzinhos igualmente castrados e perversos, dirigindo
jornais, organizando comícios [...], berrando no Brasil o elogio do
corporativismo (ANTUNES, 2006, p. 128).

O que a literatura pós-1974 revela é um povo luso que, por haver silenciado
durante muitos anos, desaprendeu de falar pela voz e ousou reencontrar essa
voz nos discursos que diversos autores trouxeram à tona após aquele período
de horror que antecedeu o processo histórico e fez com que a única história
contada fosse tida como verídica e feliz, como nas propagandas feitas pela equipe
salazarista tal qual aquelas que vemos na TV de produtos como “margarina”
vendendo uma família feliz e unida numa bela manhã, na qual se esquece que a
guerra ocorre ao lado e mesmo dentro de cada um de nós.
155
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

DICAS

Recomendamos a leitura do TCC intitulado O eterno retorno na trilogia


antuniana: experiências e escritas em memória de elefante, Os cus de judas e conhecimento
do inferno, de Carla Mello (2012), a fim de compreender as oscilações do personagem entre
fazer parte do país que colonizou Angola e estar em território estrangeiro identificando-se
com as dores em pleno campo de batalha. Disponível em: https://letrasportugues.grad.ufsc.
br/files/2012/06/TCC_CARLA_CRISTIANE_MELLO_VERSAO_FINAL_2012.pdf.

4 JOSÉ SARAMAGO
José Saramago é um dos escritores portugueses mais conhecidos da
contemporaneidade, pois ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, o que o
fez transpor os espaços relegados à literatura de língua portuguesa (justamente
por conta da língua). Seu currículo é vasto, e sua militância de esquerda é lembrada
em alguns romances do autor e pela crítica, tanto para o bem quanto para o mal.

Nascido em 16 de novembro de 1922 e falecido em 18 de junho de 2010,


José Saramago conta em sua autobiografia o percurso de sua família pobre e
das dificuldades financeiras pelas quais passavam. Em sua vida professional,
em primeiro lugar, exerceu a profissão de serralheiro mecânico; em seguida, na
área administrativa; depois numa editora, onde conheceu importantes escritores
portugueses e retomou sua relação com a literatura, que sempre esteve presente,
mas foi se fortalecendo com o tempo.

Além disso foi tradutor e jornalista. Em 2007, criou a Fundação José


Saramago objetivando “a defesa e a divulgação da literatura contemporânea,
a defesa e a exigência de cumprimento da Carta dos Direitos Humanos, além
da atenção que devemos, como cidadãos responsáveis, ao cuidado do meio
ambiente” (SARAMAGO, 2020., s.p.).

Entre suas obras, temos os romances mais conhecidos Terra do pecado


(1947), seu primeiro livro publicado; Memorial do Convento (1982); O ano da morte
de Ricardo Reis (1984); entre outros. Seus discursos são claramente uma mistura de
gêneros, com intertextualidades e fusão de narradores. Na maioria das vezes, não
há marcação gráfica de pontuação, o que pode, num primeiro momento, levar o
leitor à loucura até que comece a se deixar entrelaçar pela escrita alucinante desse
autor num fluxo de consciência constante.

156
TÓPICO 2 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA

DICAS

Leia a autobiografia de José Saramago, disponível em https://www.josesaramago.


org/autobiografia-de-jose-saramago/ e descubra mais sobre esse importante escritor!

Selecionamos aqui o romance Ensaio sobre a cegueira (1995) para que


você, acadêmico, leia na íntegra e possa acompanhar a amplitude literária de
Saramago. Neste livro, vemos na cena inicial um homem que, de repente, fica
cego no trânsito, e em seguida o surto da “cegueira branca” domina todo o país.
Os personagens não possuem nome, o país também não é especificado, sequer o
tempo e espaços são relevantes, já que aos poucos vemos que poderia ser o aqui e
o agora, sendo inclusive nós a viver a situação.

Apenas uma mulher, a mulher do médico oftalmologista, é imune ao


surto que acometeu a todos. Quando o governo cria lugares para que as pessoas
infectadas fiquem em quarentena, a mulher do médico, que se finge de cega
também, acompanha o marido. E é lá dentro, num lugar que aos poucos vai se
assemelhando a uma prisão, haja vista que os soldados que ficam do lado de fora
não permitem que os cegos de lá saiam, que a trama se desenrola.

Nesse processo, as estruturas sociais e humanas são colocadas à prova:


o quanto a cegueira está dentro ou fora de cada um de nós? O que fazemos
quando ninguém nos vê? O que é ética e humanização do ser humano quando
colocado frente a frente com seus instintos e limitações? A seguir, um excerto que
nos mostra alguns questionamentos desse livro perturbador e, por isso mesmo,
imprescindível para leitura.

O ar frio da madrugada refrescou-lhe a cara. Que bem se respira cá


fora. pensou. Pareceu-lhe notar que a perna lhe doía muito menos, porém
isto não o surpreendeu, já antes, por mais que uma vez, acontecera o mesmo.
Estava no patamar exterior, não tardaria em chegar aos degraus, Vai ser o mais
complicado, pensou, descer com a cabeça para a frente. Levantou um braço
para certificar-se de que a corda estava lá, e avançou.

Tal como previra, não era fácil passar de um degrau para outro,
sobretudo por causa da perna, que não o ajudava, e a prova teve-a logo,
quando, a meio da escada, por ter uma das mãos resvalado num degrau, o
corpo descaiu todo para um lado e foi arrastado pelo peso morto da maldita
perna. As dores voltaram instantaneamente, com as serras, com as brocas,

157
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

com os martelos, nem ele soube como conseguiu não gritar. Durante longos
minutos ficou estendido de bruços, com a cara assente no chão. Um vento
rápido, rasteiro, fê-lo tiritar. Não trazia no corpo mais que a camisa e as cuecas.

A ferida estava, toda ela, em contacto com a terra, e ele pensou, Pode
infectar-se, era um pensamento estúpido, não se lembrou de que a vinha
arrastando assim desde e camarata, Bom, não tem importância, eles vão tratar-
me antes que ela se infecte, pensou depois, para tranquilizar-se, e pôs-se de
lado para melhor alcançar a corda. Não a encontrou logo. Tinha-se esquecido
de que ficara em posição perpendicular a ela quando rebolou pela escada, mas
o instinto fê-lo permanecer onde estava.

Depois foi o raciocínio que o orientou a sentar-se e a mover-se lentamente


até tocar com os rins no primeiro degrau, e foi com um sentimento exultante
de vitória que sentiu a aspereza da corda na mão levantada. Provavelmente
foi também esse sentimento que o levou a descobrir, logo a seguir, a maneira
de se deslocar sem que a ferida roçasse no chão, pôr-se de costas para onde
estava o portão e, usando os braços como muletas, como faziam dantes os
estropiados das pernas, deslocar, em pequenos movimentos, o corpo sentado.
Para trás, sim, porque, neste caso como em outros, puxar era bem mais fácil
que empurrar. A perna, assim, não sofria tanto, além de que o suave declive do
terreno, descaindo em direcção à saída, ajudava.

Quanto à corda, não havia perigo de a perder, quase que lhe tocava com
a cabeça. Perguntava-se se ainda lhe faltaria muito para chegar ao portão, não
era o mesmo ir por seu pé, melhor ainda se pelos dois, e avançar às arrecuas,
em deslocações de meio palmo ou menos. Esquecido, por um instante, de que
estava cego, virou a cabeça como para certificar-se do que Ihe faltava percorrer
e encontrou na sua frente a mesma brancura sem fundo. Será noite, será dia,
perguntou-se, bom, se fosse dia já me teriam visto, além disso só houve um
pequeno-almoço e foi há muitas horas.

Assombrava-o o espírito lógico que estava descobrindo na sua pessoa,


a rapidez e o acerto dos raciocínios, via-se a si mesmo diferente, outro homem,
e se não fosse este azar da perna estaria disposto a jurar que nunca em toda a
sua vida se sentira tão bem. As costas bateram na parte inferior, chapeada. do
portão. Chegara.

Metido na guarita para proteger-se do frio, ao soldado de sentinela


tinha-lhe parecido ouvir uns ligeiros ruídos que não conseguira identificar, de
todo o modo não pensou que pudessem vir de dentro, teria sido o ramalhar
breve das árvores, uma ramagem que o vento fizesse roçar de leve na grade.

Outro ruído lhe chegou de súbito aos ouvidos, mas este foi diferente,
uma pancada, um choque, para ser mais preciso, não podia ser obra de vento.
Nervoso, o soldado saiu da guarita engatilhando a espingarda automática e
olhou na direcção do portão. Não viu nada.

158
TÓPICO 2 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA

O ruído, porém, voltara, mais forte, agora era como o de unhas raspando
numa superfície rugosa. A chapa do portão, pensou. Deu um passo para a
tenda de campanha onde o sargento dormia. mas reteve-o o pensamento de
que se desse falso alarme teria de ouvir das boas, os sargentos não gostam que
os acordem, mesmo quando haja motivo.

Tornou a olhar para o portão e esperou, tenso. Muito devagar, no


intervalo entre dois ferros verticais, como um fantasma, começou a aparecer
uma cara branca. A cara de um cego. O medo fez gelar o sangue do soldado,
e foi o medo que o fez apontar a arma e disparar uma rajada à queima-roupa.

O estrondear sacudido das detonações fez surgir quase imediatamente


de dentro das tendas, meio vestidos, os soldados que compunham o piquete
encarregado da guarda do manicómio e de quem lá fora posto dentro. O
sargento já estava no comando, Que raio foi isto, Um cego, um cego, balbuciou
o soldado, Onde, Ali, e apontou o portão com o cano da arma, Não vejo lá nada,
Estava ali. eu vi-o. Os soldados tinham acabado de equipar-se e esperavam
alinhados, de espingardas na mão.

Acendam o projector, ordenou o sargento. Um dos soldados subiu


à plataforma do veículo. Segundos depois o foco deslumbrante iluminou o
portão e frontaria do edifício. Não há ninguém, sua besta, disse o sargento, e
dispunha-se a proferir mais umas quantas amenidades militares do mesmo
estilo quando viu que por debaixo do portão estava alastrando, sob a luz
violenta, uma poça negra. Deste-lhe cabo do canastro, disse.

Depois, lembrando-se das rigorosas ordens que lhe haviam sido dadas,
gritou, Cheguem-se para trás, isto pega-se. Os soldados recuaram, medrosos,
mas continuaram a olhar a poça de sangue que lentamente se espalhava pelos
intervalos entre as pedras miúdas do passeio. Achas que o gajo está morto,
perguntou o sargento, Tem de estar, apanhou com a rajada em cheio na
cara, respondeu o soldado, agora contente pela óbvia demonstração da sua
boa pontaria. Neste momento, outro soldado gritou nervosamente, Nosso
sargento, nosso sargento, olhe para ali.

No patamar exterior da escada, de pé, iluminados pela luz branca


do holofote, viam-se uns quanto cegos, mais de uma dezena, Não avancem,
berrou o sargento, se dão um passo que seja estoiro com todos. Nas janelas
dos prédios em frente, algumas pessoas acordadas pelos disparos olhavam
assustadas através das vidraças. Então o sargento gritou, Quatro homens daí
que venham buscar o corpo. Porque não se podiam ver nem contar, foram seis
os cegos que se moveram, Eu disse quatro, berrou o sargento histericamente.
Os cegos tocaram-se, tornaram a tocar-se, ficaram dois deles. Os outros
começaram a andar ao longo da corda.

FONTE: <https://rparquitectos.weebly.com/uploads/2/6/6/9/266950/jose_saramago_-_
ensaio_sobre_a_cegueira.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2019.

159
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Os cegos vivem num espaço confinado, com comida racionada e


abandonados pelo governo, posto que não encontraram a cura para o mal e,
aparentemente, todo o mundo ficou doente. Dentro daquele espaço infernal e
infernizante, apenas a mulher do médico vê, mas isso a faz questionar a existência
e porque ela não ficara cega. O processo narrativo vai se desenrolando de forma
agonizante quando se lê, em que já não sabemos mais o que é ficção ou realidade,
ou até que ponto a realidade seria ficção, posto que os problemas enfrentados pela
humanidade cega não parecem ser muito diferentes da nossa humanidade que
olha, mas nem sempre vê, com seus estupros coloniais ou cotidianos, seus roubos
reais ou simbolícos fazendo parte da vida de seres em busca da sobrevivência.
É por essas e outras reflexões que os livros de Saramago nos fazem sair da zona
de conforto para adentrarmos ao universo das palavras que nos espreitam, nos
mastigam e nos engolem nesse mundo “pós-pós” em que já sequer sabemos
mencionar nossos nomes próprios.

DICAS

O brasileiro Fernando Meirelles dirigiu uma adaptação de Ensaio sobre a


cegueira (2008) para o cinema. Recomendamos que você assista ao filme, além de ler o
livro, pois aquele contou, inclusive, com a aprovação do próprio Saramago à época do seu
lançamento.

Indicamos também a leitura da tese de Nanci G. Richter (2007) intitulada Os


espaços infernais e labirínticos em Ensaio sobre a cegueira, disponível em https://teses.
usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-18122007-110516/en.php.

Visite, também, a página da Fundação José Saramago, onde se pode encontrar


tudo sobre a vida e obra desse renomado escritor: https://www.josesaramago.org/.

160
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Em 25 de abril de 1974 ocorreu, em Portugal, a Revolução dos Cravos, que


derrubou a ditadura fascista de Salazar predominante por 41 anos.

• O cenário das literaturas contemporâneas pode ser dividido em pré-1974, em


que ainda haviam traços de neorrealismo; e pós-1974, em que se encontram
características pós-modernas e pós-coloniais em suas obras.

• O pós-modernismo visa apontar os conceitos totalizantes do modernismo,


como o conceito de nação.

• Dentre as características pós-modernas na literatura encontra-se a fragmentação,


a hibridização de gêneros, a polifonia e intertextualidade.

• Dentre as características da literatura pós-1974, encontramos discursos críticos


à colonização portuguesa nas guerras de independência dos países africanos.

• Lídia Jorge e Antônio Lobo Antunes escreveram as memórias sobre suas


experiências nas guerras de Moçambique e Angola, respectivamente.

• José Saramago foi um dos grandes escritores da contemporaneidade, e escreveu


diversos livros, dentre eles, Ensaio sobre a cegueira.

• Saramago ganhou o maior prêmio literário do mundo, o Nobel de Literatura,


em 1998.

161
AUTOATIVIDADE

1 Quais são as características das literaturas contemporâneas em Portugal


após o fim da ditadura salazarista?

2 Sobre o contexto histórico em Portugal e suas consequências:

I- Portugal travou guerras coloniais com os países africanos de 1961 a 1974,


donde resultaram as independências desses países.
II- Lídia Jorge escreveu o romance A costa dos murmúrios em que relata como
pano de fundo a guerra entre Portugal e Moçambique.
III- Antônio Lobo Antunes escreveu uma trilogia sobre a guerra colonial em
Angola, e participou ativamente como médico no campo de batalha.
IV- A independência dos países africanos dominados por Portugal ocorreu de
forma lenta e pacífica ao longo de 13 anos.

São CORRETAS as afirmativas:


a) ( ) I, II e III.
b) ( ) II, III e IV.
c) ( ) III e IV.
d) ( ) I e IV.
e) ( ) I, III e IV.

3 (PUC-RS, 2016) Leia o excerto do romance “Intermitências da Morte”, de


José Saramago, e analise as afirmativas:

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às


normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos
os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos
quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra,
de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo,
com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e
nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento
por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de
nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel
tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o
excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre
quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.

I- A partir de uma situação fantástica, a inexistência de mortes é vista como


um fato inquietante.
II- Conforme o texto, podemos inferir que adoentados em estado grave
foram salvos da morte, libertando-se de seu sofrimento.
III- O estilo do autor é marcado pela oscilação entre a narrativa de um fato e
o comentário dissertativo sobre ele.

162
A(s) afirmativa(s) CORRETA(S) é/são:

FONTE: <https://questoes.olhonavaga.com.br/questoes?id=675213&tc=4>. Acesso em: 10


dez. 2019.

a) ( ) I.
b) ( ) II.
c) ( ) III.
d) ( ) I e III.
e) ( ) II e III.

163
164
UNIDADE 3
TÓPICO 3

LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO


PORTUGUESA

1 INTRODUÇÃO
Este tópico está reservado para traçarmos um breve recorte a respeito das
literaturas africanas de expressão portuguesa, a saber, dos países: Moçambique,
Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe, que tiveram que travar
guerras sangrentas para se libertarem do jugo do colonialismo português, além
de terem que enfrentar, após a independência, guerras civis como é o caso dos
dois primeiros países citados, além de golpes de estado e casos intensivos de
corrupção nos últimos.

Essas guerras civis ocorreram porque existiam muitas etnias inimigas


nesses territórios. Elas se uniram para combater a Independência, mas depois
disso não tiveram consenso para governar, o que resultou em graves desacertos
a toda a população.

FIGURA 3 - PAÍSES AFRICANOS COLONIZADOS POR PORTUGAL

FONTE: <http://www.educacaofisica.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=326>. Acesso em: 10 dez. 2019.

165
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Ressalta-se que, aqui no Brasil, com a Lei nº 10.639/2003, o ensino da


história e cultura dos povos africanos e afro-brasileiros tornou-se obrigatória na
educação, desde o ensino fundamental até o superior, seja em escolas públicas seja
em escolas privadas. Ainda, encontramos discussões acirradas sobre as políticas de
ações afirmativas, como as cotas raciais nas universidades brasileiras apontando
um grande número de pessoas contrárias, o que demonstra que nos encontramos,
inúmeras vezes, com discursos racistas disfarçados por igualdade. É importante
que você, futuro docente, tome consciência a respeito desses temas e discussões
para que possa se posicionar e repassar os fatos históricos aos seus alunos.

E
IMPORTANT

A Lei nº 10.639/2003 foi complementada pela Lei nº 11.645/2008, que trouxe as


temáticas indígenas para a obrigatoriedade no ensino. Todavia, mesmo há mais de 15 anos,
encontramos empecilhos e pouca difusão desses estudos nas escolas.

Infelizmente, encontramos diversas vezes discursos que repassam


informações sobre o continente africano de formas exóticas ou catastróficas, o
que contribui para que se mantenha um imaginário ocidental de que estes países
são “atrasados”, “primitivos” e “extremamente pobres”. É fato, sim, que diversos
problemas que existem nos dias atuais são reflexos das colonizações desmedidas
e do processo de escravização que perdurou por séculos para esses povos, todavia
há muitas riquezas e diversidade nesses países. Vamos observar aqui um viés de
diversidade literária para que possamos conhecer um pouco mais sobre eles.

Mas antes é necessário dizer que, durante o período salazarista, a


justificativa para se manter as colônias africanas, mesmo com todos os países
europeus desaprovando isso, contou com um aparato ideológico respaldado na
ideia do português como “o bom colonizador” cuja imagem foi construída pelas
teorias lusotropicalistas do brasileiro Gilberto Freyre, este que foi convidado pelo
governo português a visitar as colônias naquela época.

Em resumo, essa teoria visava consolidar a ideia de que Portugal era


adepto da “democracia racial”, haja vista que “se misturou” com os povos nativos,
tanto no Brasil como com os africanos e, a partir daí, não haveria motivos para
não haver harmonia entre colonizador e colonizado:

A teoria colonizadora portuguesa do “Estado Novo” salazarista


basear-se-ia na doutrinação de Freyre, bastando alargar para a
presença lusa em África o que o pernambucano dissera da colonização
lusa no Brasil. A viagem de Freyre pelo império português em África
(1951-52) inscrevera-se precisamente no quadro dessa “mistificação
colonial moderna” (MEDINA, 2000, p. 52).

166
TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

Tais teorias têm consequências até os dias atuais, principalmente no Brasil,


onde podemos ver que pretende se rebater o debate racial alegando que “aqui não
existe racismo”. Todavia, mesmo com a referida Lei em vigor, ainda são escassos
os esforços para, de fato, implementar-se a lei e, mais que isso, desmistificar a
ideia de “África como sendo apenas um país”, por exemplo.

Por outro lado, devemos mencionar também que as literaturas africanas


de língua portuguesa ganharam muitas influências de escritores brasileiros como
Jorge Amado, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, entre outros. Nos dias de hoje,
o diálogo entre escritores e intelectuais brasileiros e africanos torna-se cada vez
mais profícuo.

2 O CONTEXTO HISTÓRICO
É importante destacarmos o papel que teve, para a história da libertação
dos povos africanos aqui tratados, a Casa dos Estudantes do Império – CEI, criada
em 1944 com o objetivo de trazer os “melhores” estudantes das colônias africanas
para cursarem o ensino superior em Lisboa. Não por acaso, é nesse lugar que
ocorriam saraus literários e as discussões sobre as revoluções de independência
foram tomando corpo, literalmente. Passaram por ali inúmeros escritores que
militaram e, inclusive, participaram ativamente da guerra, como o guineense
Amílcar Cabral, os angolanos Agostinho Neto e Pepetela, entre outros. Mesmo
vivendo na ditadura salazarista, esses estudantes conseguiram se organizar e
guerrear com seu colonizador, inicialmente por outras vias, resistindo através da
arte e, posteriormente, alguns foram para o campo de batalha.

Além do discurso anticolonial, esses intelectuais se organizavam para


discutir as questões da negritude, do racismo e das consequências da escravização
aos negros em diáspora, fruto da transposição forçada de milhares de africanos
para o “Novo Mundo”.

Não em vão, por essa época, emergiam importantes autores como Aimé
Césaire e o movimento da Negritude, que buscava valorizar as raízes africanas
e toda sua história. Outro movimento importante também ocorreu na sequência,
o Pan-africanismo, cujo objetivo era, resumidamente, a união de todos os povos
negros espalhados em diáspora pelo mundo. A Negritude começou a estar em
voga a partir da década de 1950, e o Pan-africanismo, a partir de 1960.

167
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

DICAS

Para saber mais sobre esses dois importantes movimentos, sugerimos a leitura
do artigo de Kabengele Munanga (2016), intitulado Pan-Africanismo, Negritude e Teatro
Experimental do Negro, disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/
view/2175-8034.2016v18n1p109.

Outro detalhe importante que também deve ser considerado nas culturas
africanas é o papel da oralidade. Conforme pontuam Oliveira e Gomes (2013, p.
156-157):

Pensar nessa oralidade é perceber o falar como enraizamento, e


possibilidade de um entrelugar do tempo e do espaço. E assim, a
literatura oral é a voz de uma cartografia africana de intensidades,
marcada pela memória cultural e pelos apagamentos da história
oficial. Nesse contexto, os Griots (guardiões da memória e de histórias)
representam assumir a voz cultural de um lugar e as fronteiras do
diálogo entre passado e presente.

Os griots possuem um papel de suma importância para a preservação


das culturas de suas comunidades. Atualmente, o gênero musical rap reivindica
essa ancestralidade da diáspora africana sendo que alguns rappers se afirmam os
griots contemporâneos da história do povo que foi escravizado e continua sendo
invisibilizado na sociedade.

Também diversos autores incluem suas línguas maternas em seus textos,


pois, por muito tempo, se questionavam, inclusive, se deveriam escrever ou
não na língua do opressor. Nesse sentido, aqui no Brasil não tivemos esse tipo
de situação, haja vista que a maioria das etnias indígenas foram exterminadas,
todavia, temos mais de 200 línguas desses povos que são faladas no território
nacional, contudo, a língua oficial é o português, mas mesmo LIBRAS, que é a
segunda língua oficial, acaba ficando, infelizmente, restrita aos seus falantes.

Na sequência, enumeramos juntamente com Secco (2011, p. 11), os


sete paradigmas norteadores das Literaturas Africanas de língua portuguesa,
conforme diz:

referente às origens (segunda metade do século XIX), cujos poemas


se encontram colados à produção literária portuguesa; o relativo
a uma fase intermediária de busca de identidade local (primeiras
décadas do século XX), em que as obras são ainda perpassadas por
uma ambiguidade entre a pátria lusitana e a mátria africana; o que
compreende o período de mergulho nas raízes africanas e de afirmação
das respectivas nacionalidades (década de 30, em Cabo Verde, e década
de 50 em Angola, Moçambique, São Tomé); o correspondente à época

168
TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

das utopias libertárias, das lutas contra o colonialismo (década de 60); o


que se refere à fase de “gueto”, período de intensa censura, em que, por
terem muitos escritores sido presos, a poesia, apenas metaforicamente,
faz alusões ao social, abordando temas universais e voltando-se para
a sua própria construção e linguagem (fim dos 60 e primeiros anos da
década de 70); o que compreende os anos da pré e da pós-independência,
quando voltam os temas sociais, as utopias revolucionárias, os textos
celebratórios da liberdade; nessa época, surgem também narrativas
que discutem a necessidade da reconstrução nacional (década de 70
e parte da década de 80); e, por fim, o que corresponde à fase atual
de desencanto (fim dos 80 e os 90), em que a literatura reflete sobre a
falência dos antigos ideais fundados em um marxismo ortodoxo e
aposta na resistência cultural, investindo na recuperação dos mitos e
sonhos submersos no inconsciente coletivo desses povos.

É importante destacar esses momentos, pois embora as literaturas


africanas sejam relativamente jovens, compreender seus desdobramentos nos
permitem conhecer um pouco mais de suas histórias. Observa-se que há uma
preferência pela poesia à prosa, no entanto, após os períodos de independência
esta última vai se popularizando também, conforme veremos. Além disso, há que
ser levado em consideração o caráter e o papel da já mencionada oralidade, pois
para nós pode parecer estranho essa relação entre memória e oralidade, porém,
para esses povos ela cumpriu um papel primordial.

FIGURA 4 - PRÉDIO ATUAL ONDE SITUOU-SE A CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO EM


LISBOA, DE 1944 A 1965

FONTE: <https://www.dw.com/pt-002/casa-dos-estudantes-do-imp%C3%A9rio-ber%C3%A7o-
de-l%C3%ADderes-africanos-em-lisboa/a-16233230>. Acesso em: 10 dez. 2019.

3 LITERATURAS DE ANGOLA E MOÇAMBIQUE


Angola é um país situado ao sul do continente africano, na costa oeste, e
conta com mais de 29 milhões de habitantes, com vastos recursos naturais, entre eles
o “ouro negro” (petróleo). O país conquistou sua independência de Portugal em
1975, porém teve intensas guerras civis até 2002, quando os dois principais grupos,
UNITA — União Nacional para a Independência Total de Angola — e o MPLA —
Movimento Popular de Libertação de Angola —, disputavam o poder, sendo que
este último esteve à frente do governo perante uma “democracia” questionável.

169
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Embora houvesse algumas produções literárias anteriores, a consolidação


da literatura angolana se dá com a revista “Mensagem”, em 1951, onde autores
como Agostinho Neto, que se tornou o primeiro presidente do país depois da
independência, Viriato da Cruz e Alda Lara, entre outros, divulgaram suas poéticas.

Com influências modernistas, esses autores começaram a se afastar dos


estilos literários do colonizador para criarem os seus próprios estilos. Entre
1950 a 1970, busca-se valorizar a nacionalidade, com um viés neorrealista, o que
contribuiu para as lutas pela independência. Ressalte-se também, que muitos
desses autores, como já dito, viviam na CEI, logo, há muitas semelhanças entre
essas literaturas nesse período, embora cada uma conservasse suas próprias
historicidades locais.

Num outro momento, pós-1975, há uma busca pela “angolanidade” no


sentido de compreender que homem negro é esse, que terra ele vive e quais são
as características desse povo. A tentativa que ocorreu, não só em Angola, mas
em todos os países aqui tratados, de formalizar-se enquanto uma nação, já que
por muitos anos a colonização apagava todos os traços desses povos, haja vista
que muitas etnias vivem nesse país. Vejamos, a seguir, um dos mais conhecidos
poemas de Alda Lara publicado na antologia de “Mensagem”:

MOMENTO

Nos olhos dos fuzilados,


Dos sete corpos tombados
De borco, no chão impuro
Eis!
...sete mães soluçando...

Nas faces dos fuzilados,


Nas sete faces torcidas
De espanto ainda, e receio,
sete noivas implorando...

E do ventre de além-mundo,
Sete crianças gritando
Na boca dos fuzilados...
Sete crianças gritando
Ecos de dor e renúncia
Pela vida que não veio...

Na boca dos fuzilados


Vermelha de baba e sangue,
…sete crianças gritando!
FONTE: <http://lusofonia.x10.mx/alda_lara.htm#ALDA_LARA_NA_REVISTA_MENSAGEM>.
Acesso em: 10 dez. 2019.

170
TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

Na prosa angolana, destacam-se Pepetela e Ondjaki. Artur Carlos Maurício


dos Santos, ou Pepetela, é um escritor da geração da revolução, pois inclusive
esteve em campo de batalha. Seus primeiros romances tratavam diretamente
da colonização, da guerra e da desilusão pós-independência. São eles Mayombe
(1979), Yaka (1985) e Geração da Utopia (1992). O autor conta com mais de 19 livros
publicados.

Ndalu de Almeida, ou Ondjaki, é um jovem escritor angolano que gosta


de transitar pelos diferentes gêneros textuais, desde poemas, contos a romances e
teatro. Entre suas obras, indicamos os romances Bom dia camaradas e Avó Dezanove
e o mistério soviético.

DICAS

Para conhecer mais sobre Pepetela, acesse o endereço https://www.


portaldaliteratura.com/autores.php?autor=393. E sobre Ondjaki consulte https://www.
portaldaliteratura.com/autores.php?autor=1298.

DICAS

Para saber mais sobre a literatura angolana, leia o artigo do escritor Pepetela,
disponível em: https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/122-algumas-quest%C3
%B5es-sobre-a-literatura-angolana, pois há ali um panorama desde o século XIX. Além
disso, este é o endereço virtual da União dos Escritores Angolanos, onde se pode encontrar
outros autores e suas vidas e obras ali descritos.

Além disso, indicamos a tese de Frank Nilton Marcon intitulada Leituras


transatlânticas: diálogos sobre identidade e o romance de Pepetela, disponível em: http://
www.tede.ufsc.br/teses/PASO0157.pdf.

Moçambique é um país do sudeste africano e possui mais de 27 milhões


de habitantes. Assim como Angola possui vastos recursos naturais e sua economia
vem crescendo, embora a maioria da população encontre-se com problemas
socioestruturais inerentes aos países dito subdesenvolvidos. Sua independência
também ocorreu em 1975, mas o país teve guerras civis de 1977 a 1992.

171
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Entre os poetas que surgiram na década de 1950, cuja característica


também está voltada para demarcar uma “moçambicanidade”, estão Noêmia
de Souza e José Craveirinha, este que foi o primeiro escritor africano a ganhar
o Prêmio Camões de Literatura, um dos mais importantes da área. Vejamos o
poema Negra, de Noêmia de Souza, publicado em sua antologia Sangue Negro.

NEGRA

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos


quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.

Mas não puderam.


Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados


foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE

FONTE: <https://www.escritas.org/pt/t/7688/negra>. Acesso em: 10 dez. 2019.

José Craveirinha também trouxe poemas maravilhosos, muitos deles ao


estilo de combate e resistência como inúmeras poesias criadas pelos africanos ao
longo da formação identitária e libertação colonial. Vejamos o poema Reza, Maria
a seguir.

172
TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

REZA, MARIA

Suam no trabalho as curvadas bestas


e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos


e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças


e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem à míngua de pão


vermes na rua estendem a mão a caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens


das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança

Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!

FONTE: <https://www.escritas.org/pt/t/13395/reza-maria>. Acesso em: 10 dez. 2019.

Na prosa moçambicana impossível não falar de Mia Couto, autor de


Terra sonâmbula (1992), O outro pé da sereia (2006), O último voo do flamingo (2000) e
outros grandes romances, além de contos, poemas e crônicas diversas. Sua escrita
traz características peculiares de marcas da oralidade onde cria um universo à
parte entre palavras “reais” e “inventadas”, além de retratar os contornos de
Moçambique vistos a partir de seu olhar múltiplo, ou ainda:

173
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

A obra de Mia Couto, em seu conjunto, é uma constante viagem


pelas paisagens e lugares de Moçambique, atravessando também os
múltiplos tempos de que eles são feitos. A viagem é uma metáfora rica
e possível para captar e compor literariamente os nós dos encontros
e desencontros desses espaços e tempos, bem como as insondáveis
identidades moçambicanas que nesses nós vivem (OLIVEIRA;
GOMES, 2013, p. 163).

DICAS

Tanto a biografia quanto as bibliografias de Mia Couto estão disponíveis em


seu endereço virtual: https://www.miacouto.org/biografia-bibliografia-e-premiacoes/.

Sugerimos que você, acadêmico, leia o romance Terra Sonâmbula para


contrastar com a película feita por Teresa Prata, na qual se vê Moçambique num
período de guerra civil e o sonho de um menino, Muidinga, que se encontra num
ônibus incendiado com o velho Tuahir. Entre os corpos que foram ali encontrados,
um dos soldados tinha um diário, que o menino começa a ler e, a partir de então,
as histórias de vivos e mortos se misturam e o fantástico dá vazão à esperança
para se fugir do ambiente hostil e insensato da guerra.

UNI

Indicamos o filme dirigido por Teresa Prata (2007), Terra sonâmbula,


adaptação do livro que mostra as sutilezas das personagens e o pano de fundo do
cenário pós-independência de Moçambique, disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=iukiUyEU-tw.

Também sugerimos uma visita ao endereço do escritor para conhecer melhor


suas obras: https://www.miacouto.org/. Inclusive, há indicações de trabalhos de pesquisa
sobre suas obras, como dissertações e teses.

A dissertação de Gisele Krama chamada Entre esquecer e lembrar: violência,


memória e restituição em Mia Couto também permite nos permite ampliar nosso
conhecimento a respeito deste renomado autor. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
xmlui/handle/123456789/168074.

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TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

4 LITERATURAS DE CABO VERDE, GUINÉ BISSAU E SÃO


TOMÉ E PRÍNCIPE
Guiné Bissau e Cabo Verde geralmente são mencionados juntos, embora
ambos os países possuam suas peculiaridades, porque a guerra de libertação teve
o grande líder Amílcar Cabral, guineense, como defensor desses países. Todavia,
vale destacar que Guiné Bissau é um país continental e possui mais de 1,5 milhão
de habitantes. Já Cabo Verde é um país formado por dez ilhas e conta com uma
população de pouco mais de 500 mil habitantes.

Em Cabo Verde surge a revista “Claridade”, em 1930, buscando


expressar, também, a “cabo-verdianidade”. Todavia, diferentemente de Angola
e Moçambique, a temática da negritude não fazia parte das obras, haja vista a
mestiçagem ser uma forte característica no país. Em Moçambique, por exemplo,
o mestiço era visto como “problemático” e preterido tanto pelos brancos quanto
pelos negros.

Portanto, os temas que permeiam os autores de Cabo Verde estão


relacionados com o ambiente que vivem, ou a insularidade, e suas culturas.
Destacam-se alguns poetas como Jorge Barbosa. Vejamos um poema em que se
percebe o desejo de partir através do mar, mas tendo que ficar.

POEMA DO MAR

O drama do Mar,
o desassossego do Mar,
sempre
sempre
dentro de nós!
O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

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UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...

O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros...

O Mar! dentro de nós todos,


no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

Este convite de toda a hora


que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
e ter que ficar!
(in Ambiente, 1941)

FONTE: <http://lusofonia.x10.mx/jorge_barbosa.htm>. Acesso em: 10 dez. 2019.

É a partir de 1944 que a literatura cabo-verdiana ganha contornos mais


politizados e se destaca Orlanda Amarílis, que continua escrevendo até hoje, e
coloca as mulheres no foco de seus contos. Destacamos também o escritor Baltazar
Lopes e seu romance Chiquinho (1947), cujo texto insere o criolo cabo-verdiano
juntamente ao português, haja vista que poderia se dizer que em Cabo Verde o
português seja utilizado mais em espaços formais, como primeira língua. Além
disso, o criolo sofre variações linguísticas nas diferentes ilhas.

Sobre o romance, diz Carreiro (2016, s.p.): “é um romance de aprendizagem


[...] por três motivos: o tema é o da iniciação de um jovem à vida adulta (como
um percurso iniciático, da aldeia à cidade, até à partida para o estrangeiro); foi o
primeiro e único romance de Baltasar Lopes; é o romance inicial cabo-verdiano”.
Vejamos um excerto da obra a seguir.

CHIQUINHO – CAPÍTULO 30

Pela cara que levava, o ano seria de fome. Eu devia andar pelos meus
catorze anos, e não me lembrava de ver tanta miséria estampada na cara de
todo o mundo. Sempre havia falta. Passado o mês de Fevereiro, era niclitar
conforme fosse possível. Os leios de milho e os balaios de feijão quási nunca

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TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

botavam fora o tempo seco. A criatura tinha de apertar o cordel na cintura e


arranjar coragem para encarar o tempo, muito feliz se pudesse ter uma reserva
para os meses das as-águas, enquanto a favinha-inglesa não pintava.

O mês de Setembro, passados os borrifos certos por Nossa Senhora da


Lapa, esteve sem um pingo de água. Com o mês de Outubro nem contar, que
chuva nele é rara como ambargrise.
[…]

Um dia chegou pedindo esmola um velho que não conhecíamos. Não


tinha nada o ar de pedinchão de nhô José Catrina. Havia dignidade nos seus
olhos sérios.
— Donde é você, velho?
— Sou da Ribeira dos Calhaus, irmão.
— Porquê você veio de tão longe?
— Falta é que está obrigando...
— Você sente-se e descanse. Está com cara de cansado.

Mamãe mandou Tanha trazer-lhe uma chícara de café. O velho encarou


em Mamãe-Velha:
— Estou pensando que conheço você...
— De onde, irmão?
— Você não é parente daquela gente de nha Rosa Maria Antiga, da Ribeira dos
Calhaus?
— Sou, sim...
— Está-se vendo. A cara não perde...
— Seu nome, velho...
— Sou Joaquim Naninho, da nação de Gaída Branca, você não conhece?
— Conheço, conheço, velho... Gente direita e com quê de seu... Mas então?

O velho abriu os braços desconsoladamente:


— Aqui onde me vê, sempre estes braços é que foram o meu sustento. Ainda
este ano, apesar de fraco, semeei as minhas hortinhas. Mas o que colhetei
outrano não me botou fora o mês de Maio, e neste ano nem é bom falar...
Acabou toda a esperança. Agora estou no braço da caridade. Parece que Deus
se esqueceu de me vir buscar...
— Você é só?
— Tenho dois filhos que embarcaram faz muito tempo, mas nunca mais deram
notícia. Penso que morreram.
— Quem sabe, irmão? De um dia para outro são capazes de aparecer…

O velho levantou para o céu um olhar carregado de esperanças.

FONTE: <http://lusofonia.x10.mx/baltasar_lopes.htm>. Acesso em: 10 dez. 2019.

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UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Da Guiné Bissau podemos mencionar o revolucionário Amílcar Cabral,


Vasco Cabral e Hélder Proença na poesia. Vejamos o poema de Amílcar Cabral.

GUINÉ-BISSAU

…NÃO, POESIA
…não poesia:
Não te escondas nas grutas do meu ser,
Não fujas à vida.
Quebra as grades invisíveis da minha prisão,
Abre de par em par as portas do meu ser
- e sai…
Sai para a luta (a vida é luta),
Os homens lá fora chamam por ti,
E tu, poesia, és também um homem.
Ama a poesia de todo o mundo,
-Ama os homens
Solta os teus poemas para todas as raças,
Para todas as coisas.
Confunde o teu corpo com todos os corpos do mundo,
Confunde-te comigo…
Vai, poesia:
dá-me os teus braços para que abrace a vida.
A minha poesia sou eu.

FONTE: Oliveira e Gomes (2013, p. 149)

Em São Tomé e Príncipe, país insular situado na costa equatorial ocidental


da África Central, com uma população de pouco mais de 200 mil habitantes,
podemos destacar os poetas Francisco José Tenreiro e Alda do Espírito Santo,
cujo poema é reproduzido a seguir.

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TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

EM TORNO DA MINHA BAÍA

Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições:
HUMANIDADE.

FONTE: <https://www.escritas.org/pt/t/13327/em-torno-da-minha-baia>. Acesso em: 11 mar. 2020.

Ao encerramos esta unidade, fazemos o convite para que você, acadêmico,


pesquise mais a fundo a história e a literatura desses países. Além disso, suas
culturas são tão diversas dentro de um único país que desvendá-las torna-se um
grande aprendizado que pode, inclusive, ser incentivado dentro da sala de aula
com seus futuros alunos, pois isso ajuda a desmistificar a ideia de uma África
única e ultrapassada e faz com que os processos de reconhecimento dessas
culturas tão jovens e desses países nos façam, também, repensar nossa própria
relação com as nossas culturas e literaturas recentes e diferentes para nós.

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UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

DICAS

A fim de aprofundar o conhecimento sobre a literatura de Cabo


Verde, leia Literatura cabo-verdiana: leituras universitárias, organizado por Simone
C. Gomes, Antonio Mantovani e Érica A. Pereira, disponível em: www.unemat.
br›reitoria›editora›downloads›eletronico›ebookliteratura.

Para conhecer a discussão da literatura guineense em torno da oralidade,


indicamos o artigo de Marceano T. U. Costa intitulado A crítica literária sobre a literatura da
Guiné Bissau: considerações sobre um “suposto vazio”, disponível em: https://mafua.ufsc.
br/2018/a-critica-literaria-sobre-a-literatura-da-guine-bissau-consideracoes-sobre-um-
suposto-vazio/.

Sobre a literatura são tomense, o trabalho de Luciana Ribeiro de Souza intitulado


São Tomé e Príncipe em dois momentos identitários ajuda a dar um panorama sobre o
país e sua cultura. Disponível em: http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/cpgl/article/
download/9428/5753/.

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TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

LEITURA COMPLEMENTAR

A seguir, destacamos excertos de um artigo que apresenta alguns desafios


para o ensino de literatura em sala de aula. Essa reflexão é de fundamental
importância para que você, futuro professor(a), possa criar metodologias de
ensino a fim de trazer o destaque à literatura e incentivar a leitura. Também pode
servir para uma autoavaliação sobre seu modo de aprender através dessa arte,
tão cara aos estudantes de Letras.

LEITURA, LITERATURA E TEORIA DA LITERATURA NO ENSINO MÉDIO

Ivanda Maria Martins Silva

Quando se discute a presença da literatura na escola, é pertinente


considerar as ideias de alguns autores, como Beach e Marshall, por exemplo, no
sentido de estabelecer distinções entre a leitura da literatura e o ensino da literatura.
A compreensão desses dois níveis implica posturas distintas em face do objeto
literário, o que, consequentemente, influenciará a interação texto-leitor na escola.

Segundo Beach e Marshall (1991:38), a leitura da literatura está relacionada


à compreensão do texto, à experiência literária vivenciada pelo leitor no ato da
leitura, ao passo que o ensino da literatura se configura como o estudo da obra
literária, tendo em vista a sua organização estética. Na verdade, esses dois níveis
estão imbricados, na medida em que ao experienciar o texto, por meio da leitura
literária, o aluno também deveria ser instrumentalizado, a fim de reconhecer a
literatura como objeto esteticamente organizado. No entanto, a escola parece
dissociar esses dois níveis, desvinculando o prazer de ler o texto literário
(produzido pela leitura da literatura) do reconhecimento das singularidades
estéticas da obra (proporcionado pelo estudo/ensino da literatura).

É preciso que a escola amplie mais atividades, visando à leitura da literatura


como atividade lúdica de construção e reconstrução de sentidos. O aluno-
leitor deve sentir-se motivado a ler o texto, independentemente da imposição
das tarefas escolares requeridas pelos professores. Contudo, parece-nos que o
contexto escolar privilegia mais o ensino da literatura, no qual a leitura realizada
pelos professores é diferente daquela efetivada pelos alunos, pois a diversidade
de repertórios, conhecimento de mundo, experiências de leitura influenciam
diretamente o contato do leitor com o texto. Tanto a leitura da literatura quanto
o ensino da literatura deveriam estar presentes no contexto escolar de modo
articulado, pois são dois níveis dialogicamente relacionados.

Como afirmam Beach e Marshall (1991:39), o desafio do professor é ajudar


os alunos a elaborar ou rever suas interpretações iniciais, sem descartar totalmente
suas primeiras leituras. O professor deve colaborar com os alunos, visando à

181
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

construção/reconstrução de interpretações e não simplesmente apresentando


leituras já prontas. Conforme esses autores (1991:9), uma das formas de mapear
alguns problemas relacionados ao ensino de literatura é considerar a interação
entre professor, alunos e texto.

É preciso, ainda segundo Beach e Marshall, que o professor reconheça


dois níveis de leitura. Por um lado, há a leitura realizada pelo aluno que está
construindo sua interpretação a partir, muitas vezes, de um único contato
com o texto. Por outro lado, há a leitura do professor, em que entram fatores
mais complexos como o saber linguístico, bem como o conhecimento de dados
biográficos e do contexto histórico, enfim, a noção de elementos instrumentais
específicos da teoria e crítica literárias.

Ainda conforme os autores, o professor deve colocar o aluno frente à


diversidade de leituras do texto literário, para que o educando reconheça que o
sentido não está no texto, mas é construído pelos leitores na interação com textos. É
justamente a partir dessa interação do aluno com textos que o estudo da literatura
em sala de aula torna-se significativo. É fundamental valorizar o papel do leitor e
transformar a visão ainda tradicional que norteia a prática pedagógica de vários
professores, baseada em análises imanentes em face da obra literária.

Objeto de análises superficiais, o texto literário é geralmente tratado em


sala de aula de modo isolado, como espécie de expressão artística que por si só
já carrega significação própria e independe da atualização do aluno-leitor. Além
disso, como afirma Rouxel (1996:73), a escola cultiva uma visão tradicional da
literatura, considerada como um conjunto de textos a ser admirado, ou ainda,
caracterizada por um “bom estilo”, digno de ser imitado pelos alunos. A concepção
de literatura como objeto artístico ancorado num processo histórico-social precisa
ter uma penetração maior no espaço de sala de aula.

Na perspectiva de Zilberman (2001), a escola, a crítica literária, a academia


e a imprensa são instituições capazes de conferir e legitimar o estatuto de certas
produções artísticas em detrimento de outras. Segundo a autora (2001, p. 82):

Essas entidades estabeleceram e fixaram a concepção de literatura


enquanto “belas letras”, operada a partir da consolidação da sociedade
burguesa e do capitalismo, garantindo sua permanência. A seguir,
passaram a colocar normas e exigências aos criadores, que eles devem
adotar ou não para serem reconhecidos pelo meio e aceitos enquanto
artistas.

A noção da literatura como “belas letras”, apontada por Zilberman (2001),


ou como um conjunto de textos marcados pelo uso de uma “bela linguagem”,
conforme Rouxel (1996), promove, a nosso ver, uma elitização das obras literárias,
supervalorizando o cânone literário, o que pode distanciar a literatura do aluno.
A visão da escola sobre a literatura difere consideravelmente da noção que o

182
TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

aluno/leitor tem acerca do literário. É preciso repensar os julgamentos de valores


disseminados pelas instituições que abordam a literatura sob prismas distintos (a
escola, a crítica literária, a imprensa, etc.), quando consideramos que cabe ao leitor
construir o seu próprio “cânone literário”, valorizando seu repertório de leituras.

Nesse sentido, o texto literário não pode ser compreendido como objeto
isolado, sem as interferências do leitor, sem o conhecimento das condições de
produção/recepção em que o texto foi produzido, sem as contribuições das diversas
disciplinas que perpassam o ato da leitura literária, inter/multi/transdisciplinar
pela própria natureza plural do texto literário.

[...]

O texto literário é plural, marcado pela interrelação entre diversos códigos


(temáticos, ideológicos, linguísticos, estilísticos, etc.) e o aluno deve compreender
a interação entre literatura e outras áreas que se interrelacionam no momento da
constituição do texto. Segundo Reuter (1986:76), “a leitura é um objeto largamente
transdisciplinar”, por isso qualquer discussão teórica sobre o ato de ler deve
considerar a reflexão sob uma perspectiva mais ampla que envolva as diversas
áreas atreladas à prática da leitura como fenômeno sociocultural.

[...]

Vários são os fatores que dificultam o tratamento dado à literatura em sala


de aula, um deles refere-se à metodologia utilizada no Ensino Médio, efetivamente
orientada para o vestibular como um fim em si mesmo. O objetivo principal de
muitas escolas e diversos cursinhos é ensinar para o vestibular, conquistar o
maior índice de aprovação nos exames.

[...]

É necessário que o aluno compreenda a literatura como fenômeno cultural,


histórico e social, como instrumento político capaz de revelar as contradições e
conflitos da realidade. No diálogo entre o mundo empírico e o universo ficcional,
a literatura pode produzir um significado para o contexto em que vivemos.

Ao trabalhar com a leitura literária, o professor deve orientar os alunos


para a função ideológica dos textos literários, na medida em que “antes de se
transformar em discurso estático, subverter a ordem provável da língua para
alcançar determinados efeitos de comunicação, a literatura ‘se alimenta’ na fonte
de valores de cultura” (GONÇALVES FILHO, 2000:104). Na maioria das vezes,
o aluno não entende que a obra literária é produto de um contexto amplo e, por
conseguinte, visões de mundo, valores ideológicos de uma época, costumes,
enfim, a diversidade de elementos culturais participa ativamente da constituição
do texto.

183
UNIDADE 3 | A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES

[...]

Assim, ensinar literatura não é apenas elencar uma série de textos ou


autores e classificá-los num determinado período literário, mas sim revelar para o
aluno o caráter atemporal, bem como a função simbólica e social da obra literária.

Retomamos aqui as considerações de Beach e Marshall (1991:17): “o


estudo da literatura poderia ser justificado por sua habilidade para ajudar os
alunos a compreenderem a si próprios, sua comunidade e seu mundo mais
profundamente”.

É essa integração entre o texto literário e a dimensão sociocultural que a


escola deve proporcionar aos alunos, levando-os a perceber as possibilidades de
significação que o texto literário permite, enquanto objeto artístico polissêmico
que transgride normas e regras, envolvendo o leitor num jogo de construção /
reconstrução de sentidos. No entanto, a tarefa de apresentar ao aluno o caráter
polissêmico da leitura literária, valorizando a recepção do leitor na significação
textual, ainda parece ser um desafio no contexto escolar. Conforme Kramsch
(In:JACOBUS, 1996: 134), os alunos precisam entender o texto literário como uma
forma de (re)descoberta de sua própria identidade, por meio da reescrita que se
concretiza no ato de ler, momento em que o leitor responde ativamente ao texto.

Rosenblatt (In: JACOBUS, 1996: 141) afirma que a obra literária oferece
uma oportunidade de o leitor se envolver numa experiência de reconstrução dos
acontecimentos vividos pelas personagens. Enquanto alguns críticos acreditam
que é perigoso deixar o texto à mercê simplesmente da concentração exclusiva
das opiniões pessoais dos alunos, Rosenblatt argumenta que precisamos ajudar
o aluno a desenvolver uma leitura estética da obra. Os professores precisam
encorajar os alunos para que estes desenvolvam autonomia no ato da leitura. O
papel do professor é crítico ao selecionar obras que permitam uma interação mais
produtiva, além de utilizar questões que possam deixar clara a relação entre a
experiência do aluno e o texto.

Com base nessas reflexões, insistimos que a teoria literária precisa


subsidiar a prática pedagógica dos professores, no sentido de transformar os
alunos em leitores críticos da literatura. A sala de aula ainda é um espaço marcado
pelas abordagens formalistas e estruturalistas que analisam o texto literário
como produto acabado, sem valorizar a interferência do leitor na atualização
da significação textual. As abordagens que priorizam a interação texto-leitor
precisam ter mais penetração no contexto escolar, a fim de se valorizar mais o
papel dinâmico do leitor na recepção textual.

A educação literária proposta pela escola merece ser reavaliada, a fim de


que nossos alunos-leitores possam encontrar razões concretas para o estudo da
literatura como fenômeno artístico atrelado às transformações históricas, sociais
e culturais. [...]

184
TÓPICO 3 | LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

Talvez uma forma de repensar o processo de ensino-aprendizagem da


literatura na escola seria a busca de sintonia entre a prática pedagógica dos
professores e as contribuições da teoria literária. Elencamos, a seguir, alguns
objetivos que podem subsidiar o trabalho com o texto literário em sala de aula:

• articular leitura crítica, análise e interpretação do texto literário, visando atingir


um discurso crítico desenvolvido pelo aluno, a partir do reconhecimento das
singularidades estéticas do fazer literário;
• apresentar distinções entre os gêneros literários, percebendo também o diálogo
entre características de diversos gêneros numa mesma obra literária;
• analisar a obra literária sob uma ótica interdisciplinar, reconhecendo as relações
entre Literatura e Sociologia, Literatura e História, Literatura e Psicanálise,
entre outras;
• desenvolver estudos da obra literária baseados no interculturalismo;
• considerar as diversas correntes teóricas que se debruçaram sobre o fazer
literário com perspectivas diferentes (Formalismo, Estruturalismo, Pós-
estruturalismo, Sociologia da Literatura, Sociocrítica, Fenomenologia da
Leitura, etc.);
• estabelecer distinções entre Teoria da Literatura, Crítica Literária e História da
Literatura;
• desenvolver estudos intersemióticos, considerando as relações entre literatura
e outras expressões artísticas (literatura e pintura, literatura e música, etc.).

Os tópicos levantados são apenas um breve resumo de alguns subsídios


teóricos que podem contribuir para minimizar as distâncias que ainda existem
entre a literatura e o leitor no espaço escolar. [...]

É fundamental que se promova uma reavaliação das metodologias


direcionadas ao ensino de literatura, visando à exploração de alternativas didáticas
de ensinoaprendizagem capazes de motivar os alunos à leitura por prazer, à
busca de conhecimento, à leitura crítica do texto articulada com a compreensão
crítica do mundo.

FONTE: SILVA, I. M. M. Literatura em sala de aula: da teoria literária à prática escolar. Anais do
Evento PG Letras 30 Anos, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 514-527, 2006. Disponível em: http://miniweb.
com.br/literatura/artigos/Rom_Class.pdf. Acesso em: 10 nov. 2019.

185
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Os países africanos que foram colonizados por Portugal conquistaram sua


independência colonial através de guerras desde 1961 e que perdurou até
1974. São eles: Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e
Príncipe.

• Em Lisboa, formou-se um grupo de intelectuais desses países na Casa do


Estudante do Império (CEI), onde começaram a se organizar para pensar os
processos de libertação colonial.

• Efetivamente, considera-se que as literaturas desses países começaram a tomar


forma, já afastada da literatura colonial, a partir de 1950 (ou 1930, em Cabo
Verde).

• No período pré-independência destaca-se a busca pela nacionalidade, críticas


ao colonialismo e valorização da negritude.

• No período pós-independência buscou-se valorizar as singularidades de cada


país, como a angolanidade, a moçambicanidade e a cabo-verdianidade a fim de
afirmar sua identidade e relação com o espaço.

• A oralidade cumpriu e ainda cumpre um papel de destaque nas literaturas


africanas. Destaca-se as antigas figuras dos griots, contadores de histórias cujo
objetivo era preservar as memórias de seus povos.

• As influências da literatura brasileira sempre são mencionadas pelos diversos


escritores africanos de língua portuguesa.

CHAMADA

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186
AUTOATIVIDADE

1 (PUC-MG, 2013, adaptada) Leia os poemas de literaturas africanas de


língua portuguesa a seguir:

“Portugal colonial”

Nada te devo
nem o sítio
onde nasci
nem a morte
que depois comi
nem a vida
repartida
p'los cães
nem a notícia
curta
a dizer-te
que morri
nada te devo
Portugal
colonial
cicatriz
doutra pele
apertada

FONTE: David Mestre, poeta angolano. In: DÁSKALOS, M. A.; APA, L.; BARBEITOS, A. Poesia
africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003, p. 104.

“Revolta”

Revolta dentro do peito


Por aquilo que não fiz
E que eu devia ter feito.
[...]
Revolta dentro de nós,
Revolta arrastando os passos...
Vozes mancharam-me a voz,
Braços prenderam os braços...
Vôo desfeito no berço...
Revolta crua e sem fim,
Revolta triste e infeliz,
Por trazer esta revolta
Fechada dentro de mim,
Num verso que nunca fiz.

FONTE: FONSECA, A. poeta cabo-verdiano. In: FERREIRA, M. (org.). No reino de Caliban.


Lisboa: Seara Nova, 1975, p. 155.

187
“Poema”

Pés descalços
pisam caminhos de areia
Pés descalços
pisam sujos caminhos de areia
Pés cansados negros e descalços
pisam tristes sujos caminhos de areia
Pés negros
pisam tristes caminhos da vida

FONTE: ROCHA, I. poeta moçambicano. In: NEVES, J. A. Poetas e contistas africanos de


expressão portuguesa. São Paulo: Brasiliense, 1963, p. 66.

a) Considerando a relação entre os poemas e o contexto histórico-social de sua


produção, é possível perceber:

FONTE: <http://www1.pucminas.br/documentos/vestibular_2013_02_interior_3.pdf>.
Acesso em: 10 dez. 2019).

a) ( ) Um discurso de resistência e de combate à opressão.


b) ( ) Uma abordagem nostálgica do passado.
c) ( ) Um distanciamento dos poetas em relação aos problemas sociais.
d) ( ) Manifestações poéticas contra o preconceito racial.

b) Tendo em vista o modo como recobram a herança do colonialismo português,


os poemas sugerem uma relação com Portugal pautada por sentimentos de:

a) ( ) Revolta.
b) ( ) Impotência.
c) ( ) Gratidão.
d) ( ) Amizade.

2 Descreva as sete características norteadoras para o entendimento das


literaturas africanas de língua portuguesa no contexto pré e pós-colonização:

3 Assinale a alternativa INCORRETA:

a) ( ) As literaturas africanas de língua portuguesa são de difícil acesso, pois


são escritas nas línguas nativas desses países.
b) ( ) Muitos escritores estiveram nas guerras de libertação de seus países,
entre eles Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Pepetela.
c) ( ) A oralidade ainda cumpre um papel importante nas culturas africanas,
tanto que o griot é um contador de histórias que preservava a memória
cultural de seus povos.

188
d) ( ) Mia Couto é um escritor moçambicano de grande destaque internacional,
pois suas obras são traduzidas em mais de 20 países.
e) ( ) Pepetela escreveu uma trilogia sobre a colonização, a guerra de
independência e a desilusão pós-independência intitulados Mayombe,
Yaka e Geração da Utopia.

4 A partir da leitura do texto complementar, cite duas estratégias de


abordagem possíveis para trabalhar as literaturas africanas de língua
portuguesa em sala de aula.

189
190
REFERÊNCIAS
A CHEGADA DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA À BAHIA (painel). In:
Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1977/
a-chegada-da-familia-real-portuguesa-a-bahia-painel. Acesso em: 16 out. 2019.

AMORA, Antonio Soares. Presença da literatura portuguesa. O simbolismo.


São Paulo: Difel, s.d.

ANTUNES, A. L. Memória de elefante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

CABRAL, M. V. A estética do nacionalismo: modernismo literário e


autoritarismo político em Portugal no início do século XX. Novos estudos –
CEBRAP, São Paulo, n. 98, p. 95-122, mar. 2014. Disponível em: http://www.
scielo.br/pdf/nec/n98/06.pdf. Acesso em: 10 nov. 2019.

CANTIGA DE MALDIZER. Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/3999/


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CANTIGAS MEDIEVAIS GALEGO-PORTUGUESAS: Disponível em: https://


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