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Narrativas e História

de Vida

Prof.a Jacqueline Leire Roepke

Indaial – 2021
2a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2021

Elaboração:
Prof. Jacqueline Leire Roepke
a

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

R716n

Roepke, Jacqueline Leire

Narrativas e história de vida. / Jacqueline Leire Roepke – Indaial:


UNIASSELVI, 2021.

220 p.; il.

ISBN 978-65-5663-917-8
ISBN Digital 978-65-5663-918-5

1. Textos autobiográficos. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo


da Vinci.

CDD 010

Impresso por:
Apresentação
Prezado acadêmico, primeiramente, queremos deixar registrada a
alegria que estamos sentido por estarmos fazendo parte da sua formação
acadêmica.

Este livro abordará algumas temáticas atreladas às narrativas, aos


textos autobiográficos, aos relatos acerca de histórias de vida. Os conteúdos
que estarão disponibilizados, aqui, almejarão subsidiar a construção
do conhecimento a respeito de tais temáticas, por meio de reflexões, de
contestações e de ponderações no que se refere às relações entre o uso da
linguagem e as narrações de si próprio. Desse modo, este livro didático será
dividido em três unidades.

A primeira delas apresentará os aspectos introdutórios que englobam as


narrativas, por exemplo, no que diz respeito à tipologia textual. Portanto,
deparar-nos-emos com as características de crônicas, de fábulas, de contos,
de romances, de novelas, de epopeias, dentre outros gêneros discursivos que
costumam ser escritos em narrativas. Inclusive, entraremos em contato com
algumas obras literárias compostas por narrações.

A segunda unidade iniciará com temas ligados às narrativas


vinculadas à infância. Faremos menção ao uso de narrativas por parte de
crianças institucionalizadas, e de algumas que emergem nas brincadeiras
em um contexto terapêutico. Também, mencionaremos relatos produzidos
a posteriori, por adultos que resgatam memórias das infâncias deles. Na
sequência, a Unidade 2 se concentrará na utilização de narrativas para fins de
aprendizagem e de formação acadêmica, portanto, citaremos a presença das
narrações das vivências que são escritas enquanto a pessoa está cursando o
Ensino Médio ou algum curso de nível superior. Finalmente, daremos ênfase
às narrativas na formação de profissionais da educação.

A última unidade, por sua vez, estará mais atrelada à adultez e à


velhice, mais voltada ao contexto da saúde. Nela, inicialmente, o foco recairá
sobre o emprego de narrativas de vida no âmbito do trabalho, na esfera
profissional. Quase no fim do livro, você encontrará reflexões que abarcarão
as narrativas de imigrantes, portanto, entrará em contato com as experiências
interculturais, com as dificuldades diante de se passar a conviver com um
novo idioma, com novos costumes e preconceitos, além de diferentes motivos
que levaram à mudança de endereço de um país para o outro. O desfecho do
livro se circunscreverá nas narrativas de idosos, assim, você poderá pensar
na passagem do tempo sob a perspectiva de quem atingiu a longevidade, e
que, possivelmente, já não dispõe de tantos anos disponíveis para usufruir
de um futuro aqui.
Inspirados por Helen Keller e pela concepção dela, de que “nunca se
deve consentir em rastejar quando se sente impulso para voar”, objetivamos
contagiá-lo com o desejo e com a coragem para alçar voos ousados. Que,
ao ler este livro, você possa construir novos conhecimentos atinentes à sua
formação acadêmica, e possa se sentir incentivado a se expressar por meio
da escrita, para exteriorizar alguns de seus pensamentos, sentimentos,
impressões e lembranças. Principalmente, que você não se limite a ser um
acadêmico e/ou profissional que rasteja. Assim, dedique-se com empenho e
venha voar conosco!

Bons voos e intensas altitudes!

Prof.a Jacqueline Leire Roepke

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!
LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela


um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro


que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá
contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares,
entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


Sumário
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA..................................................................... 1

TÓPICO 1 — SOBRE NARRATIVAS.................................................................................................. 3


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 3
2 O QUE SÃO NARRATIVAS?............................................................................................................. 3
RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 14
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 15

TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA................................................. 17


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 17
2 NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA....................................................................... 17
3 MEMÓRIA E AUTOBIOGRAFIA................................................................................................... 21
4 REALIDADE OU IMAGINAÇÃO.................................................................................................. 27
RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 34
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 35

TÓPICO 3 — AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA.......................................................................... 37


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 37
2 LITERATURA E SUBJETIVIDADE................................................................................................ 37
3 MEMÓRIA E ESCRITA: REFLEXÕES SOBRE TEXTOS DA LITERATURA BRASILEIRA...... 38
4 ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA E LITERATURA CONTEMPORÂNEA................................ 41
LEITURA COMPLEMENTAR............................................................................................................. 52
RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 53
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 54

REFERÊNCIAS....................................................................................................................................... 57

UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO........... 63

TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA..................................................................................... 65


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 65
2 NARRATIVAS DE CRIANÇAS INSTITUCIONALIZADAS.................................................... 68
3 NARRATIVAS, INFÂNCIA E BRINCAR...................................................................................... 71
4 NARRATIVAS SOBRE INFÂNCIA A POSTERIORI.................................................................. 78
RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 90
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 91

TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E


FORMAÇÃO ACADÊMICA...................................................................................... 95
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 95
2 PROJETOS........................................................................................................................................... 96
3 ENSINO MÉDIO E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS................................................. 101
4 ENSINO SUPERIOR........................................................................................................................ 103
5 OBSERVAÇÕES DE REMATES..................................................................................................... 111
RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 112
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 113
TÓPICO 3 — NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO.................................... 117
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 117
2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES................................................................................................. 117
3 ENSINO RURAL............................................................................................................................... 123
4 PONDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................... 126
LEITURA COMPLEMENTAR........................................................................................................... 127
RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 133
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 134

REFERÊNCIAS..................................................................................................................................... 137

UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA


À VELHICE.............................................................................................................. 141

TÓPICO 1 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO.................................. 143


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 143
2 NARRATIVAS E ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL.................................................................. 143
3 NARRATIVAS E TRABALHO....................................................................................................... 147
4 NARRATIVAS E MORTE NO TRABALHO............................................................................... 153
RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 157
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 158

TÓPICO 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE........................................... 161


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 161
2 HANSENÍASE................................................................................................................................... 162
3 INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA.......................................................................................... 164
4 ANOREXIA........................................................................................................................................ 166
5 VIOLÊNCIA E SAÚDE MENTAL................................................................................................. 169
RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 176
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 177

TÓPICO 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IMIGRANTES........................... 181


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 181
2 TRAVESSIAS ENTRE SÉCULOS XIX E XX................................................................................ 181
3 SITUAÇÕES MAIS RECENTES.................................................................................................... 185
RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 189
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 190

TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS


QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE TERMINALIDADE DA VIDA......... 193
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 193
2 NARRATIVAS DE IDOSOS........................................................................................................... 193
3 NARRATIVAS E TERMINALIDADE DA VIDA....................................................................... 202
4 REMATES REFLEXIVOS................................................................................................................ 206
LEITURA COMPLEMENTAR........................................................................................................... 208
RESUMO DO TÓPICO 4................................................................................................................... 213
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 214

REFERÊNCIAS..................................................................................................................................... 217
UNIDADE 1 —

NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar os elementos essenciais da narrativa literária;

• conhecer a estrutura geral das narrativas;

• apontar alguns dos tipos de narrativas;

• perceber os modos pelos quais a literatura lida com os temas da sociedade;

• analisar a função dos elementos tempo e espaço na estrutura da narrativa;

• articular as noções de narrativa, de realidade e de representação.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade,
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – SOBRE NARRATIVAS

TÓPICO 2 – NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

TÓPICO 3 – AUTOBIOGRAFIA E LITERATURA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

1
2
TÓPICO 1 —
UNIDADE 1

SOBRE NARRATIVAS

1 INTRODUÇÃO
Ao escrevermos as primeiras linhas deste livro, estivemos imaginando
algumas das expectativas e das impressões que os leitores formarão a partir da
leitura do título do livro, “Narrativas e Histórias de Vida”. Assim, planejamos este
primeiro tópico para que você se sinta melhor situado em relação aos objetivos e
aos conteúdos desta disciplina.

Inicialmente, podemos sinalizar que, em alguns momentos, você se


sentirá com um livro de português nas suas mãos, já que serão vistos assuntos
que costumam ser trabalhados em aulas de Língua Portuguesa, inclusive, na
Educação Básica. Nesse primeiro tópico, certamente, você terá essa sensação

Em outros momentos, é possível que você sinta que está lendo um livro
de História, pois se deparará com enfoques da historiografia. Ainda, a leitura
deste livro lhe passará a impressão de que está diante de um livro de Sociologia,
sobretudo, quando forem levantadas questões de narrativas e da sociedade. Isso
não é tudo: por vezes, você se imaginará diante de um livro de Psicologia (ao
estudarmos a memória, a ressignificação), ou de Arte, talvez, até de Literatura.
Isso ocorrerá porque a temática do livro será perpassada por olhares de diferentes
áreas do saber.

Não pretendemos nos aprofundar em todas elas, nem sequer em uma


delas. O que se propõe, com este livro, é que você construa conhecimentos acerca
de Narrativas e Histórias de Vida sob o prisma interdisciplinar.

O livro, ainda, terá, por intuito, providenciar um material para que você se
imagine elaborando as próprias narrativas, organizando a escrita da sua própria
história de vida.

Vamos lá?!

2 O QUE SÃO NARRATIVAS?


É possível que você já tenha ouvido falar da palavra “narrativa”, e que,
além disso, saiba o que ela significa. Ainda assim, vamos observar algumas
definições desse vocábulo?!

3
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

QUADRO 1 – DEFINIÇÕES DE NARRATIVA

Narrativa (substantivo feminino)


1.
ação, processo ou efeito de narrar; narração.
2.
exposição de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos
encadeados, reais ou imaginários, por meio de palavras ou de imagens.
3.
conto, história, caso.
4.
o modo de narrar.
5.
LITERATURA
prosa literária (conto, novela, romance etc.), caracterizada pela presença de personagens
inseridos em situações imaginárias; ficção.
6.
LITERATURA
o conjunto das obras de determinado autor ou de uma determinada época, de um país etc.
"a n. de José de Alencar"

FONTE: <encurtador.com.br/aAB07>. Acesso em: 19 fev. 2021.

A partir do quadro exposto, pode-se inferir que narrar é contar algum


fato (que pode ter acontecido na vida real, ou não). A forma de relatar esse fato
pode se dar por intermédio da escrita (manuscrita, impressa ou digital), ou seja, a
narração é uma tipologia textual, da qual decorrem diversos gêneros, como conto,
história em quadrinhos, crônicas, dentre outros. Contudo, existem situações nas
quais a narração ocorre oralmente. Um exemplo de narrativa oral é a contação de
causos, ou a apresentação feita por um repentista, ainda, por um trovador.

NOTA

O que é repentista? O que é trovador?

As duas palavras indicam uma pessoa que, por meio do improviso, expressa um
poema que vai nascendo espontaneamente, diante do público. Por exemplo, o repentista
ou trovador está em uma praça pública, e vê uma menina de olhos claros e cabelos
cacheados. Ele pode criar um poema e declamar ao vivo, sem, previamente, escrever.
Assim, ainda que possa ser classificado como “poema”, ao mesmo tempo, está apto a ser
caracterizado como uma narrativa, já que descreve uma menina, especificamente.

Por vezes, a narrativa é estruturada com base em imagens, sem o emprego


de palavras (escritas ou orais). Vejamos um exemplo a seguir:

4
TÓPICO 1 — SOBRE NARRATIVAS

FIGURA 1 – AUTORRETRATOS DE VAN GOGH - UMA NARRAÇÃO

FONTE: <encurtador.com.br/FOT05>; <https://www.bbc.com/portuguese/geral-46731221>.


Acesso em: 4 mar 2021.

Ao olharem para as duas figuras, supostamente, alguns dos leitores se


recordaram de alguma aula da disciplina de “Educação Artística”, ou de “Artes”,
do tempo da escola. Talvez, de algum documentário ou vídeo que assistiram por
curiosidade ou por entretenimento.

Essas duas figuras consistem em dois dos autorretratos feitos pelo artista
Vincent Van Gogh. Já ouviu algo a respeito de um certo corte na orelha dele? Vale a
pena dar uma sondada nisso nos motores de busca da internet.

NOTA

Van Gogh viveu na Bélgica, na Holanda e em Paris, até se estabelecer em Arles,


Sul da França, em 1888. A ideia era fundar uma comunidade de artistas: chamou a residência
e o ateliê dele de Casa Amarela, e fez a série Girassóis para decorá-la. Entretanto, apenas
Paul Gauguin aceitou o convite para permanecer em Arles. Essa foi a mais produtiva fase
de Van Gogh. Nos três últimos anos de vida, ele pintou cerca de 400 telas. Foi a época das
pinceladas vigorosas, do amarelo intenso e do vermelho vivo, das cores e das expressões
que revelavam os sentimentos que tinha.

A instabilidade psicológica provocava brigas constantes entre Van Gogh e Gauguin,


o que fez o primeiro, devido a um surto, perseguir Gauguin com uma navalha nas mãos.
Gauguin se refugiou, naquela noite, em um hotel, e, quando retornou à Casa Amarela,
soube que Van Gogh estava hospitalizado. Ele se mutilou. Cortou um pedaço da própria
orelha dele, e, depois de embrulhá-la, levou de presente a uma prostituta. O episódio fez
com que Gauguin partisse, imediatamente, para Paris.

Sozinho e consciente da própria enfermidade, Van Gogh decidiu se deixar internar


em um hospital psiquiátrico em Saint-Rémy-de-Provence. Em 1890, deixou o hospital e se
mudou para Auvers-sur-Oise, onde podia se consultar com Dr. Gachet, médico acostumado
a cuidar de artistas. Após uma fase muito produtiva, suicidou-se inesperadamente.

FONTE: Van Gogh: entre a genialidade e a doença. J. Bras. Patol. Med. Lab., Rio de Janeiro,  v.
46, n. 1, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-
24442010000100001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 11 maio 2021.

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UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Quanto aos leitores deste livro que já tinham tido contato com a história
contada a partir do suposto evento com a orelha dele, o fato de olharem para
as duas figuras os conduziu para uma espécie de leitura de narrativa, sem que
precisassem do suporte das palavras. A leitura das figuras se relacionava a uma
narrativa por si só.

O que caracteriza uma narrativa é a exposição de um acontecimento,


geralmente, distribuído em sequências, as quais vão se desencadeando ao
longo do relato. Não precisa estar organizado em ordem cronológica. Pode ser
apresentada com trechos do presente, do passado, que vão se cruzando, ou se
sobrepondo. A história é relatada ao leitor através da mediação de um narrador.

NOTA

Conforme Vieira (2001), a obra Poética, de Aristóteles (1992), foi a pioneira em


termos de estudos que tratavam da narrativa. Ela foi escrita em 335 a.C.

Aqui, neste livro, estarão em realce as narrativas escritas.

A narrativa pode se referir a um evento específico (eleições presidenciais,


eclipse, copa do mundo), à história de um lugar ou à de uma pessoa, a um
momento trágico etc. De qualquer modo, costuma ser um texto composto por
descrições, já que as narrativas são empregadas para serem contadas histórias.
Além das descrições, por vezes, são formadas por narrações, dissertações, e, até
mesmo, por diálogos.

Pode-se dizer, em linhas gerais, que o texto narrativo é aquele que


se desenrola em um determinado tempo. Na maioria das vezes, dá indícios
do cenário, ou seja, do lugar onde o fato acontece. Além do mais, esse texto,
comumente, conta com a presença de personagem/personagens. São as pessoas,
ou seres, que vão aparecendo no relato.

Personagens não precisam ser, necessariamente, pessoas. Fazem-se


presentes animais falantes que, frequentemente, recheiam as fábulas, e, até
mesmo, objetos (como exemplo, os móveis e as louças que se movem e expressam
emoções em A Bela e a Fera).

6
TÓPICO 1 — SOBRE NARRATIVAS

FIGURA 2 – MADAME SAMOVAR

FONTE: <https://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-124552/>. Acesso em: 11 maio 2021.

Quanto aos objetos, são personificados no lugar de animais, o que denota


um apólogo. Ainda, costumam ser de cunho moralista (JUZWIAK, 2013).

Pronto, agora você já sabe quais são os elementos de uma narrativa. Vamos
recapitular cada um deles?!

QUADRO 2 – ELEMENTOS DA NARRATIVA

Abrange o conteúdo do texto. É a base na qual estão apoiadas as ações da


estrutura da narrativa. Também, é conhecido como trama. Apresenta um
conflito/intriga. Costuma dar indícios para a resolução da intriga, portanto,
Enredo podem ser vistas frases avaliativas acerca da complicação, e algumas de cunho
moral, voltadas à conclusão da história, ao que se pretende “ensinar” com ela,
porém, nem todas as narrativas têm enredos com fins pedagógicos. Parte delas
é escrita para produzir a fruição, ou seja, o prazer, o deleite no leitor.
São aquelas que executam as ações. A personagem de maior destaque é
chamada de protagonista, ou de personagem principal. As personagens
secundárias são denominadas de coadjuvantes. A que se opõe à protagonista
Personagens
é intitulada de antagonista.
Costumam ter os atributos apresentados no texto, e as funções delas ficam
implícitas ou explícitas. O caráter, também, em diversos momentos, é expresso.
É a “voz” que narra os fatos. O narrador pode participar da história ou ser,
apenas, um espectador. Por vezes, ele é o protagonista que apresenta a
versão dele sobre o ocorrido, uma personagem secundária, ou, até mesmo, a
antagonista. Vale esclarecer que existem diversos tipos de narradores: narrador-
personagem, narrador-observador, e narrador onisciente (é aquele que sabe
tudo o que aconteceu, como se pudesse ver todos os eventos. Inclusive, sabe
Narrador
os pensamentos e os sentimentos das personagens). A maneira através da
qual o narrador conta a história dá mostras do quão valorizada ela é para ele.
Frequentemente, o narrador expõe as avaliações das ações das personagens,
dos efeitos e dos aspectos morais relacionados. Ainda, tende a manifestar juízos
de valor ao longo da narrativa, ou, no mínimo, fornecer subsídios para que os
leitores avaliem os fatos por si mesmos.

7
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

É o período ou época em que se desenrolaram os fatos. O tempo pode ser


exposto em ordem cronológica (linear) ou psicológica (não linear, subjetiva).
Ainda, é observado diretamente, com datas específicas, como “Essa história
aconteceu entre dezembro de 1939 e janeiro de 1945”, ou faz menção aos fatos
Tempo históricos, como “Essa história aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial”.
A data não está explícita, mas o leitor pode se situar no contexto histórico,
amparando-se nos fatos históricos evidenciados no decurso da narração. De
qualquer modo, trata-se da sequência temporal das ações ou dos episódios. Em
outras palavras, é quando os fatos ocorreram.
Diz respeito ao ambiente no qual os fatos se dão. É o lugar, ou cenário, onde as
Espaço coisas vão acontecendo. Pode ser manifesto diretamente, com o nome do lugar,
ou, apenas, conter a descrição física de como é esse espaço.

FONTE: Adaptado de Vieira (2001)

Agora que conhecemos os elementos das narrativas, vamos checar como


elas costumam ser estruturadas, ou seja, distribuídas, divididas ao longo das linhas?

Um texto narrativo inicia a partir de uma Orientação, na qual são


definidas as situações de espaço, de tempo e as características das
personagens. Em seguida, ocorre uma Complicação, através de uma
ação que visa modificar o estado inicial e que dá início à narrativa
propriamente dita. A narrativa, então, culmina no momento em que
uma ação transforma a nova situação provocada pela complicação, ou
em que uma Avaliação da nova situação indica as reações do sujeito
do enunciado. Chega-se, então, a um Resultado, a partir do qual é
estabelecido um novo estado, diferente do estado inicial da estória. O
final da narrativa se dá quando é elaborada uma Moral, a partir das
consequências da estória (VIEIRA, 2001, p. 602).

Em outras palavras, podemos dizer que as narrativas possuem uma


apresentação inicial, isto é, uma etapa introdutória na qual são mencionados,
brevemente, o lugar e o momento histórico que devem desenvolver a trama.
Depois, o enfoque recai sobre as ações das personagens. A história atinge um
ponto alto, o ápice, quando se torna mais emocionante, surpreendente. Por fim, é
finalizada, com a apresentação de um desenlace.

FIGURA 3 – ESTRUTURA GERAL DA NARRATIVA

Começo É a abertura da narrativa, com uma


apresentação, ou uma introdução do texto.

Meio É o desenvolvimento, com o encadeamento dos


fatos se processando.

Clímax É o ponto alto da narração, a partir do qual o leitor pode se surpreender


com alguma revelação ou mudança drástica no desenrolar da história.

Fim É o arremate da narração, a conclusão da história. Vale


lembrar que o fim pode parecer aberto em alguns textos.

FONTE: A autora

8
TÓPICO 1 — SOBRE NARRATIVAS

A partir da figura anterior, você, certamente, pôde se lembrar de alguma


aula de Língua Portuguesa da sua infância, na qual aprendeu que todo texto
precisa ter começo, meio e fim. O diferencial da narrativa é, justamente, esse
clímax, o qual, não necessariamente, precisa aparecer em outro gênero discursivo,
como o artigo científico, por exemplo.

Muito bem, agora, já temos uma noção a respeito das macroproposições


que costumam compor uma narrativa. Chegou o momento de revermos as formas
de apresentação do texto narrativo.

Vimos a palavra fábulas, em algumas linhas anteriores, lembra? As fábulas


são um modo de apresentação das narrativas. Vamos recordar dos demais?!
Além delas, as outras formas de apresentação do texto narrativo são a epopeia,
o romance, a crônica, a novela e o conto. Essas palavras devem estar ativando
algumas memórias das aulas de Língua Portuguesa, não é mesmo?!

Por que precisamos revê-las nesta disciplina? Pois, ao escrevermos


uma autobiografia, por exemplo, o processo pode se tornar mais facilitado se
conhecemos as diferenças entre esses gêneros do discurso. Assim, há mais
subsídios para a escolha de um deles, ao optar por colocar as palavras em um texto.

Evidentemente, nem todos os escritores de narrativas fazem essa escolha


previamente, ou conscientemente. Sobretudo, os amadores começam a rascunhar
frases no papel, ou no computador, sem prestar atenção se estão elaborando uma
crônica ou uma novela. Vão, simplesmente, escrevendo frases sucessivas, de
modo intuitivo, espontâneo, empírico.

Por outro lado, a escrita pode ficar mais limpa, mais organizada, mais
elegante se o autor a faz de maneira planejada, escolhendo um gênero discursivo
específico, e buscando, inclusive, aprender mais a respeito de tal gênero.

Alguns dos gêneros discursivos mais frequentes da narrativa são o conto, o


romance, a novela, a fábula, a crônica e a epopeia. Assim, vamos conferir algumas
características de cada um deles?!

QUADRO 3 – TIPOS DE NARRATIVAS

Em termos de extensão, é menor do que os demais tipos de narrativas. Comumente, são


chamados de contos de fada, ou contos maravilhosos. O conto costuma ser caracterizado
como um texto curto, composto por poucos personagens, os quais agem ou interagem a
partir de um conflito. Não necessariamente, precisa ter uma intenção moralizante nos
Conto dias atuais. Pode explorar o lado fantástico ou o psicológico.
Para Ginzburg (2018), o fim do conto pode, inclusive, ser aberto. Ao finalizar a leitura,
o leitor, por vezes, fica com a impressão de que não entendeu, exatamente, o que
aconteceu no texto.
Exemplo de conto: A Cartomante, de Machado de Assis.

9
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Trata-se de uma narrativa, frequentemente, escrita em prosa, e comprida.

Romances são longos, ou melhor, eles abarcam um espectro


amplo de tamanhos, das 20 mil palavras, de  Daphnis e
Chloe, às 40 mil, de Chrétien, 100 mil, de Austen, 400 mil,
de Dom Quixote, e mais de 800 mil, de The storyofthestone,
e um dia será interessante analisar as consequências desse
espectro, mas, por ora, aceitemos, apenas, a simples noção
Romance de que são longos (MORETTI, 2009, p. 204).

O romance costuma apresentar diversos personagens, vários tipos de conflitos que


se desenrolam em diversificados locais e em distintos períodos (tempo). No decorrer
do século XVIII, aconteceu uma ascensão do romance na Europa. Inicialmente, visava
expor o cotidiano da sociedade burguesa, mostrando hábitos e costumes, para suscitar
reflexões entre os leitores. Em contrapartida, existem muitos romances nos quais o
enfoque está na aventura (MORETTI, 2009).
Exemplo: Orgulho e Preconceito, de Jane Austen.

É um tipo mais curto de romance, no sentido de, geralmente, apresentar menos


personagens, conflitos e cenários. Por outro lado, é mais extensa do que um conto. É
caracterizada pela estrutura peculiar e pelo conteúdo. A ação no tempo é mais ágil na
Novela
novela do que no romance.
Ao longo da história, tornaram-se mais conhecidas as novelas cavaleirescas, e de cavalaria.
Exemplo de novela: Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
De acordo com Moutinho e Conti (2010), geralmente, é considerada uma forma mais
simples de produção artística. Pode aparentar ser mais elementar e, até mesmo,
mais básica do que outros tipos de narrativa, mas, por vezes, serve de base para a
formação de formas literárias mais complexas. Na maioria dos casos, a fábula aborda
uma afirmação de caráter universal, a qual é apresentada em um caso específico. Assim,
passa a ilustrar uma ideia geral. Comumente, é empregada como uma resposta rápida a
Fábula uma questão, a um dilema. Tende a desvelar contrastes do cotidiano por meio da alegoria.
Como já foi visto, aqui, neste livro, animais falantes são personagens frequentes nas fábulas.
Ainda, para Moutinho e Conti (2010), têm, por intuito, apresentar uma conclusão moral,
ou, pelo menos, instigar a reflexão e a constatação, por parte do leitor, a respeito dos
atos dos personagens e dos efeitos, ou das consequências.
Exemplos de autores de fábulas: Esopo, Tolstói, La Fontaine e Krilov.
Exemplo de fábula: A Lebre e a Tartaruga, de Esopo.
Para Siebert (2014), a crônica pressupõe uma narrativa que pode ser escrita com diferentes
fins, e disseminada por diversos canais de comunicação, já que, além da Literatura,
apresenta discursos da História e do Jornalismo. Na maioria das vezes, as crônicas são,
relativamente, curtas, leves, e fazem menção às situações cotidianas. Frequentemente,
auxiliam-nos a entender as relações entre a história da sociedade e a da própria linguagem.
O significado da palavra crônica está ligado à Cronos, isto é, diz respeito ao tempo. Na
maioria das vezes, os cronistas são motivados a deixar um registro de fatos que aconteceram
dentro de um dado intervalo de tempo, para promover a memorização do ocorrido. Por
exemplo, já na Idade Média, os colonizadores deixavam as descobertas feitas, durante
Crônica as circunavegações, registradas. Os eventos que se davam nas viagens, a descrição dos
cenários e dos povos que eles iam encontrando nas expedições, tudo ia sendo, pouco a
pouco, narrado em crônicas. Algumas têm, por intuito, evidenciar hábitos e costumes atuais,
coisas que as pessoas vão fazendo sem se dar conta das implicações. Assim, algumas coisas
são questionadas nas linhas, pelo autor, o qual deseja provocar a reflexão nos leitores. Um
dos objetivos do cronista pode ser gerar a sensação de que as coisas que fazemos no dia a
dia não fazem sentido, quando paramos para as analisar de perto. Parte dos cronistas tem
habilidade de abordar os temas com um ar poético, ou engraçado, até mesmo, sarcástico.
Exemplos de autores de crônicas: Rubem Braga, Nelson Rodrigues e Clarice Lispector.
Exemplo de crônica: Bons Dias, de Machado de Assis.

10
TÓPICO 1 — SOBRE NARRATIVAS

Segundo Ebenhoch (2020), é um longo poema narrativo que apresenta tom solene
e elevado, já que realça atos de grandeza, impactantes ações bélicas, atitudes
heroicas. Esse gênero discursivo foi inventado há muito tempo, tanto que passa a
impressão de ser antiquado, talvez, até mesmo, obsoleto. Certamente, é o primeiro
tipo de narrativa que foi criado. As epopeias, geralmente, mencionavam intervenções
Epopeia
divinas ao longo da narração; apresentavam alegorias, paródias, e alguns escritos
formulados em verso, como poema. Temas épicos eram abordados. O leitor de uma
epopeia tende a sentir admiração e deleite. Vale lembrar que alguns autores desse
gênero buscavam contribuir para o desenvolvimento de certas virtudes nos leitores.
Exemplos de epopeias: Ilíada e Odisseia, de Homero.

FONTE: A autora

Ao acompanhar o quadro anterior, você percebeu que cada tipo de


narrativa possui características próprias, certo?! Contudo, é válido recordar que,
de modo geral, as narrativas apresentam alguns pontos em comum, como já
vimos nas páginas anteriores.

ATENCAO

Cuidado para não confundir as novelas, enquanto gênero discursivo da


literatura, com as telenovelas que, aqui, no Brasil, são chamadas de novelas.

Perceba que Machado de Assis foi citado como exemplo de escritor no conto
e na crônica. Ele é considerado, por muitos, como o escritor brasileiro de maior
destaque. Produziu textos de teatro, de romance, de conto, de crítica, de poesia, de
crônica. Parecia mais habilidoso com romances e com contos. Um dos textos dele
que costuma ser abordado nos cursos superiores da área da saúde é O Alienista,
que trata da dicotomia entre normal e anormal no que tange à loucura. Você já
conhece o texto? Procure lê-lo. É divertido e, ao mesmo tempo, formado com frases
penetrantes, as quais nos fazem questionar alguns paradigmas da sociedade.

DICAS

Para quem já conhecia O Alienista, fica, como sugestão de leitura, o artigo de Maria
Vanesse Andrade, Aluísio Ferreira de Lima e Maria Elisalene Alves dos Santos, intitulado de A
Razão e a Loucura na Literatura: Um Estudo Sobre O Alienista, de Machado de Assis. Você
pode encontrá-lo ao procurar, com esse título, nos motores de busca da internet. Quando
o presente livro foi produzido, o texto estava disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S2177-093X2014000100006&lng=pt&nrm=iso.

11
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Antes de encerrarmos este tópico, também, é necessário esclarecermos que


não abordamos, aqui, todos os tipos de narrativa. Citamos algumas delas para
que você possa ter uma noção de alguns tipos mais antigos, como a epopeia, e de
outros que continuam circulando, com frequência, entre os leitores da atualidade.

Que tal vislumbrar alguns outros tipos de narrativas que existem? Para
tanto, recorremos a Brockmeier e Harre (2003, p. 527, grifo nosso):

De uma forma sistemática, subcategorias de narrativa incluem mitos,


contos populares e contos de fadas, estórias reais e fictícias e certos
textos históricos, jurídicos, religiosos, filosóficos e científicos. Cada
categoria deve ser diferenciada, pois, por exemplo, nem todos os
textos jurídicos são narrativas, pois alguns são análises de conceitos,
e seria antinatural tentar encaixá-los às práticas de contar histórias.
Narrativas fictícias, por enquanto, incluem estórias literárias (ficção)
que empregam as formas de prosa, como um romance.

Por que, até aqui, não foi dada ênfase a essas subcategorias? Porque não
há espaço para aprofundar todas. Parte delas será vista mais adiante, nos tópicos
subsequentes. Ainda, pois um dos enfoques deste livro é a escrita autobiográfica,
como já foi dito na introdução deste tópico, e autobiografia não combina,
facilmente, com textos jurídicos, por exemplo.

Outra coisa que precisa ser esclarecida, desde já, é que podem ser
encontrados alguns textos narrativos nos quais há misturas de tipos de narrativa,
o que, também, é chamado de hibridismo. Vejamos o que Brockmeier e Harre
(2003, p. 527, grifo nosso) falam a respeito dessa mescla:

No entanto, existe uma enorme variedade de formas mistas, porque


as narrativas são, também, apresentadas na forma de, ou como
poesia, épicos tradicionais e literários,  teatro, música, filme, balé e
diversificadas formas de arte visual. Mais uma vez, cada uma dessas
espécies inclui subespécies. No nível do romance, por exemplo, existem
gêneros, como romântico, de aventura, policial, estórias de viagem, e
o  Bildungsroman (um termo usado na teoria literária para caracterizar
um amplo gênero de novela que captura o desenvolvimento ao longo
da vida de um personagem). Todos esses gêneros são estruturados,
de acordo com um enredo que se desenvolve no tempo.

Um texto pode interagir com o outro, ou inspirar uma nova produção


textual. Um livro está apto a virar um filme, assim como uma produção
cinematográfica consegue se tornar um livro. Há relações entre os textos e entre
as obras, inclusive, obras que são apresentadas em diferentes tipos de suporte.
Assim, a intertextualidade está relacionada com essas interações entre os textos
ou entre as obras artísticas.

12
TÓPICO 1 — SOBRE NARRATIVAS

DICAS

Sugestão de leitura para aqueles que querem aprender mais a respeito do


hibridismo e da intertextualidade. Trata-se do artigo intitulado de Imaginários Midiáticos:
Uma Reflexão a Partir de Narrativas Intertextuais e Imagens Híbridas, feito em 2016 (s.p.)
pelo doutor em comunicação Rogério Luiz Covaleski. Segue o resumo:

O presente trabalho, no âmbito da semiologia da imagem,


observa a recorrente adoção da iconicidade de signos
culturais na construção de imaginários midiáticos. O artigo
trata de narrativas contemporâneas que buscam o efeito
de conotação veridictória, o que conduz os produtores da
imagem às relatividades culturais de discursos-signos para
interpretação, reconhecimento e engajamento do público com
o qual dialogam. Instigada por exemplos atuais de estimado
valor criativo e consciente da constituição da comunicação
contemporânea, também, a partir das relações simbólicas
culturais – alimentadoras de imaginários midiáticos, a pesquisa
propõe uma reflexão teórica a respeito do objeto e da leitura
descritiva de exemplos que se enquadram em narrativas
intertextuais e contemplam imagens híbridas. São referenciados,
teoricamente, processos de hibridização, intersecções entre
artes e comunicação no processo criativo da publicidade e na
intertextualidade em conteúdos midiáticos.

A intertextualidade costuma ser muito bem-vista pelos leitores, sobretudo,


pelos mais experientes. Afinal, dá mostras de que o escritor tem contato com textos
que representam a cultura. Uma sugestão, aos que pretendem se lançar na escrita
autobiográfica, é que procurem se lembrar dos textos que foram impactantes ao
longo da vida. Que tal explorá-los em meio às palavras que você escreverá?

Agora que revisitamos as características dos textos narrativos; que


aprendemos, apenas um pouco, a respeito de alguns tipos de narrativas; e que
tivemos um certo contato com a intertextualidade, já podemos ir nos preparando
para o próximo tópico, no qual analisaremos a escrita autobiográfica. Vamos lá?!

13
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• As narrativas podem ser classificadas como gênero discursivo.

• Os textos narrativos, por vezes, são formados por elementos imaginários,


reais, históricos, míticos e vivências pessoais.

• Muitas vezes, os textos narrativos são escritos em prosa, mas alguns podem
ser encontrados como poemas.

• Parte das narrativas dá indícios de como eram os hábitos e os costumes de


um grupo em um certo período da história.

• As narrativas apresentam conteúdos de cunhos social, cultural, histórico e


pessoal.

• Os relatos autobiográficos podem ser apresentados por meio de narrativas.

• O conto é uma narrativa curta, centrada em alguns acontecimentos e que


apresenta poucos personagens.

• O romance é uma narrativa longa que costuma conter vários personagens,


abrangendo diversos acontecimentos.

• A novela é maior do que os contos, em sua extensão, e menor do que os


romances. O desenrolar da novela é mais rápido do que o do romance.

• As fábulas costumam ter, como desfecho, uma “moral da história”, e,


frequentemente, apresentam animais falantes como personagens.

• A crônica é, geralmente, um texto híbrido, que pode ter distintas funções para
além da narração, como: descrever, desvelar, contar, provocar, comentar e analisar.

• A epopeia apresenta situações de coragem, batalhas épicas, momentos


históricos impactantes para um povo ou para um país.

14
AUTOATIVIDADE

1 Um dos tipos de narrativas aprendidos neste tópico foi o romance. A


maioria deles nasceu na tradição oral, já o romance “[...] surgiu depois da
invenção da escrita e dos livros impressos, o que leva em conta o modo
silencioso de recepção [...]” (EBENHOCH, 2020, p. 115). Com relação ao
romance, assinale a alternativa CORRETA:

FONTE: EBENHOCH, M. Epopeia e romance em conflito? O Feliz Independente (1779), de


Teodoro de Almeida. Rev. Bras. Lit. Comp., Niterói, v. 22, n. 40, p. 114-123, 2020. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2596-304X2020000200114&l
ng=en&nrm=iso. Acesso em: 24 fev. 2021.

a) ( ) É fundamentado na vivência pessoal e na imaginação.


b) ( ) Precisa ser, obrigatoriamente, baseado em fatos reais.
c) ( ) Necessita ser, essencialmente, fruto da imaginação do autor.
d) ( ) Requer algum envolvimento amoroso entre personagens ao longo da
narração.

2 No decurso deste tópico, a palavra “prosa” apareceu algumas vezes. Você


sabe o que ela significa? Já estudou na escola? Recorreu ao dicionário em
caso de dúvida? Levando em conta o seu conhecimento prévio acerca da
prosa, e o que estudou neste livro, registre o seu entendimento.

3 A seguir, será exposta uma breve análise de um texto que é caracterizado


como narrativa. Ao ler os itens que fazem menção a esse texto, procure
prestar atenção e tentar identificar de que tipo de narrativa se trata:

I- Um dos membros da família se afasta de casa.


II- Ao herói, impõe-se uma interdição.
III- A interdição é transgredida.
IV- O agressor tenta obter informações.
V- O agressor recebe informações a respeito da vítima.
VI- O agressor tenta enganar a vítima para se apoderar dela
ou dos bens dela.
VII- A vítima se deixa enganar e ajuda, assim, o inimigo sem
saber.
VIII- O agressor faz mal a um dos membros da família ou o
prejudica.
IX- (a) Falta qualquer coisa a um dos membros da família; um
deles deseja possuir qualquer coisa.
X- O herói que demanda aceita ou decide agir.
XI- O herói deixa a casa.
XII- O herói passa por uma prova, um questionário, um
ataque etc., os quais o preparam para o recebimento de
um objeto ou de um auxiliar mágico.
XIII- O herói reage às ações do futuro doador.
XIV- O objeto mágico é posto à disposição do herói.
XV- O herói é transportado, conduzido ou levado perto do
local onde se encontra o objetivo da demanda.

15
XVI- O herói e o agressor se confrontam em um combate.
XVII- O herói recebe uma marca.
XVIII- O agressor é vencido.
XIX- A malfeitoria inicial ou a falta é reparada.
XX- O herói volta.
XXI- O herói é perseguido.
XXII- O herói é socorrido.
XXIII- O herói chega incógnito à casa dele ou a outro país.
XXIV- Um falso herói faz valerem pretensões falsas.
XXV- Propõe-se, ao herói, uma tarefa difícil.
XXVI- A tarefa é cumprida.
XXVII- O herói é reconhecido.
XXVIII- O falso herói, ou o agressor, o mau é desmascarado.
XXIX- O herói recebe uma nova aparência.
XXX- O falso herói, ou o agressor, é punido.
XXXI- O herói se casa e sobe ao trono (VIEIRA, 2001, p. 600).

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Trata-se de um conto, e se pode perceber que os primeiros sete itens
correspondem a uma fase preparatória do texto. A intriga começa
quando alguém comete um ato maldoso.
b) ( ) É uma epopeia, afinal, possui um herói no enredo. Sabe-se que a
epopeia dá ênfase aos atos de bravura, às atitudes heroicas realizadas
em um contexto no qual uma nação é protegida.
c) ( ) A análise se dá sobre um texto narrativo de ordem jurídica. O emprego
das estruturas sintáticas e a escolha dos vocábulos mostram que o
advogado quis manifestar o posicionamento de maneira velada.
d) ( ) Trata-se de um poema, pois, conforme a análise apresentada, pode-
se notar a preocupação do autor com a rima, com a sonoridade das
palavras e com a arquitetura dos versos.

16
TÓPICO 2 —
UNIDADE 1

NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

1 INTRODUÇÃO
Até aqui, você já deve ter memorizado que as narrativas estão ligadas ao
ato de contar histórias. No primeiro tópico, estiveram em realce os conteúdos
da Língua Portuguesa, ao passo que, no tópico presente, deparar-nos-emos
com os conteúdos das Ciências Sociais. Precisávamos de uma breve revisão que
englobasse o que são narrativas, para que, a partir daqui, possamos entender
alguns dos motivos pelos quais, comumente, são produzidas, lidas e analisadas.

É importante destacar que o nosso foco está sobre as narrativas acerca de


si mesmas, também, chamadas de autobiografias. Por vezes, são denominadas de
narrativas de histórias de vida.

Com base no tópico anterior, já podemos inferir que uma das funções
das narrativas é promover determinado ordenamento de experiências humanas,
ajudando, assim, as pessoas a lembrarem de momentos importantes, ou de eventos
marcantes. Ainda, propiciam o registro de memórias individuais e coletivas, o
que faz com que elas sejam repassadas para as subsequentes gerações.

Neste tópico, ao iniciarmos os nossos estudos acerca da escrita


autobiográfica e da memória, começaremos a perceber que a narrativa de si
mesmo tem especificidades. Por fim, também, passaremos a analisar os dilemas
entre a realidade e a imaginação, e a literatura de testemunho.

Vamos lá?!

2 NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA


As narrativas de si são prenhes de aspectos subjetivos, portanto, expressam
a subjetividade de quem as escreve. Vamos conferir o que é subjetividade antes
de adentrarmos nas autobiografias?!

[...] De acordo com a Psicologia histórico-cultural, são as relações sociais


de produção que promovem o desenvolvimento da subjetividade, e a
formação se atrela à historicidade dos fenômenos. A subjetividade,
portanto, é constituída por fatores internos e externos, através da qual
a forma de o indivíduo se perceber está relacionada com o modo como
os homens estabelecem as relações sociais em um contexto específico,
decorrente de condições histórico-sociais (AITA; FACCI, 2011, p. 39,
grifos nossos).

17
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

A subjetividade está ligada ao processo de constituição do sujeito, aos


modos pelos quais cada pessoa vai se desenvolvendo, e a participação de outras
é essencial nesse processo. Por outro lado, você já notou que muitos discursos
andam surgindo no sentido de que cada pessoa “se basta”, de que “não precisamos
dos outros pra nada”?

FIGURA 4 – ME BASTO

FONTE: <https://www.pensador.com/frase/MjE3MzI3NQ/>. Acesso em: 11 maio 2021.

Quantas vezes você já viu postagens, nas redes sociais, dando a entender
que a única opinião que conta é a da própria pessoa? Ainda, que devemos ignorar,
totalmente, o que os outros pensam ou dizem a nosso respeito? No entanto, não
é bem assim que as coisas acontecem... Primeiramente, nenhum ser humano
sobrevive se alguém não cuidar dele nos primeiros dias, semanas, e, talvez, até
possamos dizer, nos primeiros anos de vida.

Se pararmos para analisar, na nossa sociedade atual, mesmo que um adulto


more sozinho, ele depende de outras pessoas, daqueles que plantam, colhem
e vendem alimentos, daqueles que fornecem energia elétrica e água encanada,
daqueles que fabricam e comercializam roupas. Até mesmo, um eremita precisou
de outros seres humanos para se desenvolver e se tornar quem ele é.

Não somos como muitos dos animais, os quais, logo após o nascimento,
levantam-se e andam, e, a partir dali, alimentam-se sozinhos e sobrevivem sem
cuidados dos genitores, ou de outros da espécie. Enquanto isso, entre os humanos,
cada pessoa vai se constituindo a partir das interações que estabelece com outras.
Até mesmo aqueles que afirmam que não ligam para o que os outros dizem
recebem cargas de influência (no mínimo) das pessoas com as quais convivem.

A nossa percepção de nós mesmos é construída com base no que os outros


nos dizem, mostram-nos, fazem-nos sentir.

18
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

A gênese da subjetividade se dá conforme o sujeito se apropria das


relações sociais. Cada indivíduo faz isso de forma única, o que não
significa dizer que a gênese da subjetividade está no interior do sujeito.
A subjetividade se constitui conforme o sujeito internaliza, subjetiva as
relações sociais que são externas a ele, em um processo dialético entre
o interno e o externo (AITA; FACCI, 2011, p. 43-44, grifos nossos).

Essa reciprocidade entre interno e externo pode ser chamada de


interconstrução. Para Teixeira (2003), um texto autobiográfico é valioso enquanto
construção subjetiva. Textos autobiográficos não são uma invenção recente,
contudo, somente com o advento do homem moderno, as condições se tornaram
mais favoráveis para as narrativas sobre si, isso porque, só a partir de então,
houve a abertura de espaço para que ocorresse essa expressão subjetiva.

Gauer e Gomes (2008) acrescentam que a escrita autobiográfica é


perpassada por elementos sensoriais, da imaginação, da percepção, da linguagem,
das emoções e das memórias. Todos esses elementos, também, participam da
formação e do desenvolvimento da subjetividade.

Teixeira (2003) aborda a história de vida enquanto método empregado


pelas Ciências Sociais. Nesse sentido, ao ler uma narrativa de história de vida,
com esse olhar das Ciências Sociais, o foco recai sobre as relações estabelecidas
entre a esfera individual e a social. Busca-se romper com os paradigmas do
determinismo, e valorizar as ações dos sujeitos que estão sendo narradas,
considerando-os enquanto atores sociais.

O leitor não observa se a narrativa está homogênea, inteiramente coerente,


ou estável. O direcionamento do olhar é, justamente, para as manifestações da
singularidade do escritor, para as mostras de recursos identitários, por exemplo.

A leitura de narrativa, sob essa ótica, concentra-se na análise da esfera


social, em como ela é expressa ao longo das narrações. Observam-se os modos
pelos quais essa esfera social se personifica nos personagens, além dos indícios de
que os eventos cotidianos narrados deixam da dinâmica social que os engendra
(TEIXEIRA, 2003).

Em outras palavras, ao se analisar uma autobiografia a partir do


prisma das Ciências Sociais, o desafio consiste em ler para além do que está
dado explicitamente na narrativa. Não importa se o relato autobiográfico está
organizado linearmente, apresentando os fatos dentro da ordem cronológica,
ou se é um texto cheio de idas e vindas, no decorrer do tempo. Tanto faz. Em
qualquer caso, o olhar do leitor busca o que não vem, diretamente, à tona nas
linhas relatadas. Fica atento aos indícios, às pistas, às entrelinhas, aos aspectos
encobertos (TEIXEIRA, 2003).

O leitor pode tentar entender as motivações do escritor, as intenções, os


desejos, os posicionamentos dele. Ainda, não se contenta com a superfície do texto,
pelo contrário, deve cavar o quanto conseguir, e levantar os tapetes presentes no
enredo para ver o que ficou escondido embaixo deles.

19
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

As histórias de vida se tornaram, há uns vinte anos, um material de


pesquisa muito em voga nas ciências humanas, pois não há simpósio,
colóquio ou encontro científico no qual estejam ausentes. No campo
da educação, além dos trabalhos de pesquisa-formação, observa-
se o desenvolvimento, nos currículos, e, inclusive, na formação de
professores (as) da rede escolar, de uma sensibilidade para a história do
aprendiz e da relação dele com o conhecimento, enquanto as formações
contínuas se abrem ao reconhecimento da experiência. Além disso,
numerosos procedimentos biográficos foram introduzidos para
acompanhar, orientar, suscitar ou facilitar a elaboração dos projetos
pessoais de indivíduos em busca de uma orientação ou de uma
reorientação profissional, em busca de um emprego, de mulheres
que desejam trabalhar após um tempo em que acompanharam a
educação das crianças. Como situar esse fascínio pelo singular, a
individualidade, o sujeito, o vivido, o experiencial, a globalidade
concreta, o existencial, a complexidade dos processos de formação etc.
no movimento de ideias da segunda metade do século XX? Alguns,
como Charles Taylor, Ken Wilber, ou Robert Misrahi, dedicaram-
se a essa tarefa com excelência, a partir das perspectivsa filosófica e
epistemológica. De minha parte, gostaria de indicar alguns autores-
chave dentre aqueles que me acompanharam na minha abertura para
esse novo paradigma e em meu engajamento intelectual na abordagem
biográfica da formação do sujeito (JOSSO, 1999, p. 13, grifos do autor).

Note que, para as Ciências Humanas, o enfoque já está na individualidade,


na singularidade das narrativas, em como o sujeito lida com as interações
que estabelece. Vargas et al. (2007) destacam que, durante muitos anos, os
pesquisadores de Ciências Humanas buscavam a verdade do outro ao ler as
narrativas produzidas por ele. Aqui, também, apareceu uma expressão que,
ainda, não tínhamos visto neste livro: pesquisa-formação. Trata-se de um texto
dos letramentos acadêmicos nos quais o pesquisador escreve a respeito do
próprio processo de formação acadêmica. Narra as próprias histórias de vida e
as entrelaça com a formação escolar, ou com a trajetória profissional.

NOTA

Para que você tenha um pouco mais de noção ao se falar da pesquisa-


formação, posso deixar duas experiências que vivi enquanto cursei o Mestrado em
Educação. Em uma das disciplinas, precisamos fazer um trabalho com base no modelo
de portfólio, alinhavando a nossa história pessoal com a escolha que foi feita pela área da
educação. Tínhamos liberdade para fazer o portfólio de inúmeras formas. Escolhi montar
o meu com fotos minhas – desde a infância – até chegar ao mestrado. Incluí trechos
de letras de músicas que eu ouvia em cada época, e associava imagens, refrões de canções,
e acontecimentos que se associavam a elas. Assim, fui narrando o meu percurso de me
fazer professora.

20
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Esse foi um trabalho bastante diferente do que eu fiz ao longo da graduação,


pois os trabalhos acadêmicos, geralmente, pedem-nos para falar de pesquisadores
famosos, teóricos renomados, usar a terceira pessoa, ter, sempre, um autor para embasar
o que estamos dizendo no texto... Assim, fazer um trabalho de mestrado sobre mim foi
algo diferente, e muito prazeroso. Entrelacei muitos eventos que foram marcantes na
minha história pela decisão de adentrar, profissionalmente, o campo da educação, com
fundamentos das perspectivas pedagógicas.

Outro trabalho impactante foi a dissertação de mestrado, que é o trabalho de


conclusão do Mestrado. Nela, além de todos os autores apresentados, e dos dados que
foram gerados ao longo da minha pesquisa, apresentei várias situações da minha vida
pessoal que me conduziram a querer saber mais a respeito da literatura e da educação.

Quem folhear a minha dissertação se deparará com fotos dos livros que marcaram
a minha infância – versões diferentes do Pequeno Polegar. Poderá chegar em parágrafos nos
quais conto sobre a minha infância e as minhas vivências que me deixaram tão pertinho
de livros de literatura.

Não posso classificar a minha dissertação como “pesquisa-formação” em si, mas


foi uma experiência que vivi que se aproximou dela.

DICAS

Para aqueles que quiserem folhear ou ler a minha dissertação, seguem as


informações para que seja encontrada. Título: Sentidos Sobre Práticas de Letramentos com
Literatura: Trajetórias de Licenciandos de Letras. Foi escrita por Jacqueline Leire Roepke,
em 2018, sob orientação da Dra. Adriana Fischer. Disponível em: https://bu.furb.br//docs/
DS/2018/364515_1_1.pdf.

Voltaremos a falar do uso de narrativas de si em pesquisas acadêmicas em


outras partes deste livro. Por hora, é suficiente que lembremos que as narrativas
autobiográficas não são difundidas apenas em crônicas, em romances, em novelas,
em contos... Elas, também, podem ser vistas em textos de letramentos acadêmicos,
produzidos no formato de pesquisa-formação no âmbito universitário.

3 MEMÓRIA E AUTOBIOGRAFIA
Essas palavras do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós,
certamente, inspiram-nos para darmos sequência à leitura que abarca a memória e
a autobiografia. Voltaremos a falar dele daqui a pouco, e em outras partes deste livro.

21
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

FIGURA 5 – BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS

FONTE: <http://grandesobrasdaliteratura.blogspot.com/2013/02/bartolomeu-campos-
de-queiros.html>. Acesso em: 25 fev. 2021.

A respeito das memórias, vale elucidar que elas não surgem em


ordem cronológica para o escritor, nem seguem alguma lógica, ou padrão
nas manifestações. Muitas das memórias autobiográficas, também, podem
ser chamadas de episódicas, conforme Pergher et al. (2006). Elas equivalem às
lembranças que vão despontando sobre si próprio, sobre as suas vivências.

A memória é um dos fundamentos da literatura, não só por sua


capacidade de dar forma a eventos, de configurá-los por meio do
recurso à rememoração, mas, também, por registrar o movimento
dessa própria memória, que se revela no diálogo entre textos. Seja,
propositalmente, instituído pelo autor, seja arquitetado pelo leitor,
esse diálogo demonstra que a literatura se constitui por evocações,
as quais, suscitadas por procedimentos discursivos, presentificam
a intertextualidade. Ativadas pelos atos de produção e de recepção,
as lembranças promovem a articulação de textos, e, ao evidenciar
as semelhanças e/ou as diferenças, ampliam as possibilidades de
interpretação (SARAIVA, 2017, p. 43).

Teixeira (2003) nos lembra de que as narrativas costumam ser elaboradas


a partir de idas e vindas, construções e reconstruções, reconstituições de uma
história específica, singular. Há lembranças que o escritor de uma autobiografia não
consegue evocar, ou não quer evocar (por motivos conscientes ou inconscientes),
então, há pontos cegos na hora de escrever, ou espaços em branco que não têm
compatibilidade com o preenchimento, como diz Teixeira (2003). Há pontas que
teimam em ficar soltas, que se negam a se encaixar em uma narrativa lógica.

Teixeira (2003) procura desfazer a ilusão da existência de “um eu único”.


Ele busca romper com as noções de “unicidade do indivíduo”, tanto que
muitas pessoas recorrem à escrita da história de vida dele como uma forma de
organizar o eu delas, sistematizar a própria história, revisitá-la, ressignificá-la,
mas essas pessoas se deparam com a impossibilidade de um fechamento, de uma
22
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

completude. Desejam algo que não pode ser encontrado em sua totalidade, pois
é impraticável encontrar uma determinação clara que tenha motivado todos os
pensamentos, atitudes, decisões, ações e desejos.

Vargas et al. (2007), também, problematizam a procura pela verdade do


sujeito em visões totalizantes. Partem do pressuposto de que as pessoas vivem
dentro de narrativas que, factualmente, vão sendo elaboradas por muitas mãos.

Alguns textos narrativos vêm sendo escritos com base nos vestígios que
surgem durante a evocação de uma memória. As memórias não são compostas,
apenas, de fatos, de cenas reais. Elas tendem a se apresentar misturadas com
imagens, palavras, discursos, histórias, aromas, sons e cores.

“A recordação de eventos pessoais marcantes é acompanhada de


julgamentos relativos ao evento recuperado (reflexivos) e ao ato de lembrar em si
(heurísticos)” (GAUER; GOMES, 2008, p. 507). Significa que as recordações não
emergem limpas, neutras, sem interferências. Recordações são encharcadas por
interpretações, deduções, amparadas em situações anteriores, ressignificadas por
vivências atuais.

As lembranças não costumam ser evocadas por inteiro, mas por pedaço
a pedaço, são pecinhas que vão se encaixando, fragmentos de coisas vividas,
sonhadas, pensadas, imaginadas. Ao escrever sobre si mesmo, é possível que a
pessoa fique confusa e reflita se aquela situação, realmente, ocorreu, ou não. Se
aconteceu do jeito que ela está se lembrando ou se o tempo alterou as lembranças,
desvanecendo algumas partes, ou dando maior ênfase a outras.

A recordação de eventos pessoais vividos no passado constitui a


memória autobiográfica, a síntese e a referência das nossas histórias de
vida. O ato de recordar envolve várias habilidades cognitivas, desde
aquelas que permitem lembrar um fato pessoal, como o caminho
de casa ao trabalho, até aquelas necessárias para escrever um livro
contando a história de uma vida (GAUER; GOMES, 2008, p. 507).

A memória é uma função psicológica superior, conforme a concepção


vygotskyana. Assim, segundo Pimenta e Caldas (2014), ela não é, apenas,
realizada por processos de atividade cerebral. De fato, há a participação de
atividades biológicas, porém, não se restringe a isso. As interações que uma
pessoa estabelece com as outras, e com o espaço ao seu redor, afetam o processo
de memória. Afinal, as funções psicológicas superiores são fruto das interações
do sujeito, que costumam ser mediadas por instrumentos, símbolos, signos – e
tudo isso foi e continua sendo construído historicamente.

O homem constitui sua subjetividade mediante o processo de


apropriação dos conhecimentos construídos historicamente,
desenvolvendo, assim, suas funções psicológicas superiores, como
raciocínio lógico, pensamento abstrato, capacidade de planejamento,
dentre outras funções. Esse é um aspecto fundamental para o
desenvolvimento da subjetividade e está assentado, também, na
relação com outros homens (AITA; FACCI, 2011, p. 36, grifos nossos).

23
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

NOTA

Você sabia que a memória não é a única função psicológica superior utilizada
na produção de uma escrita autobiográfica? Linguagem, pensamento, percepção, atenção,
concentração e abstração, também, são.

Gauer e Gomes (2008) explicam que eventos podem ser rememorados em


narrativas, como histórias coerentes ou trechos fora de ordem linear. Algumas
narrativas autobiográficas são marcadas por forte emoções, já em outras, isso
aparenta estar mais amenizado. Isso, também, está relacionado com os julgamentos
que cada escritor de autobiografia faz ao avaliar o grau de importância de um
evento da sua própria vida. Além disso, esse grau pode mudar ao longo do
tempo. Por exemplo, ter feito uma cirurgia simples na perna pode ter recebido
um elevado grau de importância na história de uma pessoa. No entanto, anos
depois, ela faz uma cirurgia complexa no abdômen, envolvendo vários órgãos
internos, assim, a partir daí, a primeira cirurgia passa a ser avaliada, pela própria
pessoa, como desimportante.

Teixeira (2003) comenta que algumas autobiografias dão ênfase à busca


e à conquista da felicidade, à procura pela cura das dores que foram sentidas, à
tentativa de ultrapassar todo mal-estar que foi vivenciado.

Galvao, Neiva e Jinzenji (2018) analisaram o posicionamento de alguns


escritores adultos de autobiografias quanto aos grupos aos quais se sentiam
pertencentes. Os escritores destacavam os grupos nos quais estavam inseridos,
como o socioeconômico e o étnico-racial, para situarem o lugar de onde estavam
falando. O que os escritores analisados tinham em comum era a autobiografia
em cima de memórias da infância.

Teixeira (2003) destaca que, na medida em que vão sendo publicadas


histórias de pessoas que não são famosas, ganha-se muito material para ampliar
o entendimento da história da humanidade, isso porque, como vimos no
tópico anterior, muitos textos costumavam focalizar os hábitos e os costumes
de certos estratos da população, sobretudo, dos aprovisionados, privilegiados
economicamente. Assim, as pessoas que vivenciavam a pobreza, geralmente,
ficavam esquecidas, muito raramente, um livro de literatura apresentava algum
personagem que vivia na miséria, mostrando a realidade dele em minúcias.
Muito menos os livros que são estudados na disciplina de história. Por isso, as
narrativas de pessoas anônimas nos ajudam a ter uma noção mais completa de
toda a caminhada (TEIXEIRA, 2003), pois não são só os feitos de pessoas famosas
que formam a história mundial, ou de uma nação.

24
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

De mais a mais, ao leitor da autobiografia que está inserido no mesmo


grupo destacado pelo escritor, há maiores chances de que o processo de
identificação se estabeleça. O leitor se sente acolhido pelo escritor, inspirado,
talvez, até mesmo, refletido por ele. Nesse sentido, a autobiografia pode exercer
a função de ensinamento, já que os escritores transmitem as próprias estratégias
para contornar as vicissitudes da trajetória de vida deles. Tornam-se modelos
de superação (GALVAO; NEIVA; JINZENJI, 2018).

A pesquisa mostrou, de modo geral, que os textos analisados podem ser


considerados narrativas edificantes, organizadas a partir de histórias
de superação. Os autores das autobiografias parecem partilhar da
ideia de que o ato de escrever é motivado, antes de tudo, pelo desejo
de mostrar como pessoas comuns são capazes de superar uma
infância difícil e ser, em diferentes aspectos, bem-sucedidas. Em outras
palavras, são histórias de resiliência e, assim, devem ser compreendidas
pelos leitores (GALVAO; NEIVA; JINZENJI, 2018, p. 196).

A pesquisa de Galvão, Neiva e Jinzenji (2018) identificou que os escritores


das autobiografias articulavam episódios, vividos na infância, com as próprias
constituições enquanto sujeitos, isto é, a relação entre as crianças que foram e
os adultos que se tornaram. O esforço e a meritocracia são destacados pelos
escritores, como estratégia para superar as agruras vividas, para ir além dos
obstáculos.

Ainda, com relação às memórias autobiográficas da infância, é pertinente


citar a obra de Bartolomeu Campos de Queirós, Vermelho Amargo. Conforme Silva
(2016), essa obra não é um ajuntamento de relatos da infância do escritor. Pelo
contrário, é fruto da busca que o escritor fez no próprio passado, por luzes que o
ajudariam no presente. Há articulações entre o já vivido por ele, e os dias durante
a escrita da obra. Isso acontece porque a memória não é estagnada, ela se move
entre antes e agora, e se lança como hipóteses de futuro... A memória não obedece
às divisões de tempo e nem as divisões de espaço.

A autobiografia pode ser considerada, nesse sentido, uma fonte fértil


para a investigação da história da infância, desde que não seja tomada
em sua transparência, pois a escrita pode expressar muito mais um ato
de engajamento do escritor-adulto no momento da elaboração da obra
do que um suposto retrato da infância do passado (GALVAO; NEIVA;
JINZENJI, 2018, p. 210-211).

Ainda que as autobiografias de infância, escritas por adultos, não nos


mostrem a infância livre das interferências que atravessam os relatos dos tempos
de criança, elas são ricas para que possamos compreender como a infância foi
avaliada, posteriormente, por quem a viveu, quais são os novos significados
dados a antigos eventos, ressignificações.

Ademais, o que ficou evidente, também, na pesquisa de Galvão, Neiva e


Jinzenji (2018), é a menção dos escritores aos movimentos sociais coletivos dos
quais participaram, além do quanto foram importantes para que os obstáculos
fossem superados.

25
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Silva (2016) explica que só factível compreender a nossa visão temporal


da própria história a partir do presente. No presente, um autor de autobiografia
se encontra – o presente, aqui, é entendido como o momento em que ele está
escrevendo a própria trajetória de vida. A partir desse instante, é plausível uma
construção do fluxo temporal do seu ser.

DICAS

Você quer saber mais a respeito desse tema que envolve infância e escrita
autobiográfica? Então, recomenda-se a leitura de um texto na íntegra: O Lugar dos
Pertencimentos do Escritor-Adulto na Reconstrução das Memórias de Infância. Elaborado
em 2018. Encontre-o em https://www.scielo.br/pdf/pp/v29n1/0103-7307-pp-29-1-0192.pdf.

Desse modo, voltemos a um outro aspecto que foi citado, brevemente, em


algumas linhas lá atrás: narrativas, no que se refere às narrativas vinculadas às
questões de um grupo étnico-racial. Silva e Ferreira (2017) chamam a atenção para
a aparente falta de participação das mulheres negras nas narrativas hegemônicas
do movimento feminista brasileiro, na primeira metade do século XX. Assim,
Silva e Ferreira (2017) fazem questionamentos à historiografia do feminismo e da
luta das mulheres engajadas em movimentos políticos na referida época do Brasil.
Para tanto, Silva e Ferreira (2017) coletaram informações de diferentes jornais
brasileiros que abordavam trajetórias políticas de mulheres negras que lutaram
para promover reflexões e debates acerca de ideologias. Elas estabeleceram
alianças, foram participativas nos espaços de militância.

O objetivo desse texto, nem de longe, é dar conta das vivências


das mulheres negras e do feminismo negro no Brasil. Através das
experiências de vida e da luta das mulheres que escolhemos para
discutir nessas poucas linhas, buscamos fazer um chamamento para a
importância de visibilizar, de explorar e de questionar a forma através
da qual as lutas sociais são contadas, historicamente, no Brasil. As
narrativas sacralizadas e oficiais, na nossa historiografia, precisam ser
revisitadas, rediscutidas, e as escalas e as táticas precisam ser relidas
à luz da luta pelo reconhecimento e pela sobrevivência que muitas
sujeitas sociais precisam travar (SILVA; FERREIRA, 2017, p. 1030).

Essas narrativas podem fornecer material para que emerjam algumas


“verdades” da história dos feminismos, para que consigamos alcançar diferentes
significados que perpassam os feminismos. Outra riqueza desse material
está no fato de que a história política do nosso país costuma ser narrada por
homens. Dessa maneira, nas narrativas das mulheres negras, podemos ouvir
a versão da história por meio da perspectiva delas. Assim, a visibilidade das
mulheres, no meio político, é desvelada, já que, na maioria das vezes, elas nem
eram mencionadas. Não significa que elas não existiram, ou que os atos delas

26
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

não foram válidos. Significa que aqueles que contaram a história selecionaram
que partes apresentariam e que pessoas seriam mencionadas. Nessa situação, os
que contaram a história deixaram as mulheres negras do lado de fora, ao passo
que Silva e Ferreira (2017) fizeram o caminho inverso, tornando as narrativas de
mulheres negras, envolvidas na política, conhecidas.

DICAS

Para entender o tema ainda mais, sugere-se a leitura completa do artigo E as


Mulheres Negras? Narrativas Históricas de um Feminismo à Margem das Ondas, escrito por
Tauana Olivia Gomes Silva e Gleidiane de Sousa Ferreira, em 2017. Pode ser encontrado em
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000301017.

Vargas et al. (2007, p. 149) acrescentam que a Antropologia vem contribuindo


com as narrativas que difundem a história do eu na contemporaneidade. Ainda
que o foco dessas narrativas seja o “eu”, está, diretamente, vinculado às interações
que a pessoa estabelece com os outros ao seu redor. Assim, a “[...] formação dos
mais diferentes grupos está atravessada por um ideal regulatório do eu, em suas
formas de experiência de vida”.

Até agora, já entramos em contato com as narrativas vinculadas às Ciências


Sociais, Humanas, e, novamente, com a Literatura. Já vimos que é difícil exigir
memórias intactas dos escritores de autobiografias. Assim, vamos aprofundar,
um pouco mais, essa questão, pensando no que é real e no que é ficção nas
narrativas de si mesmo?

4 REALIDADE OU IMAGINAÇÃO
É esperada, de alguns tipos de narrativas, mais veracidade em comparação
a outros. Por outro lado, as pesquisas em Neurociência e em Psicologia nos
mostram o quanto é difícil extrair, apenas, “a verdade” das memórias de
alguém. Algumas vezes, a pessoa não consegue se manter, inteiramente, fiel ao
que presenciou, não por maldade, pela intenção de mentir, ou pelo intuito de
proteger alguém. A respeito de narrativas autobiográficas, pode-se dizer que “[...]
as memórias de si se confundem com a história que querem contar e construir”
(MORAES, 2018, p. 142).

A memória recebe influências, lapsos, esquecimentos, deturpações.


Silva (2016) esclarece que, em parte das narrativas, o escritor revisita situações
atravessadas, entra em contato com as dores dele novamente, com a intenção de
atenuá-las, ou, ao menos, compreendê-las.

27
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Aqui, podemos resgatar as palavras de Bartolomeu Campos de Queirós:


“Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega
a se esquecer deles”. Por vezes, “o narrador revisita as dores do passado para
compreendê-las e assume a escrita poética de modo a valorizar a mentira ou a
ficção em detrimento da verdade, confirmando que a memória é uma seleção, e
só se conserva aquilo que se escolhe” (SILVA, 2016, p. 64).

Não nos aprofundaremos em tais questões, mas deixaremos sugestões de


leitura para quem quiser aprender mais acerca do assunto:

DICAS

Recomenda-se a leitura dos seguintes artigos:

Narrar o Trauma: A Questão dos Testemunhos de Catástrofes Históricas, escrito por Márcio
Seligmann-Silva, em 2008.

O Retorno do Pesadelo: Um Estudo Sobre a Luta da Memória Contra o Esquecimento,


escrito por Myrian Sepúlveda dos Santos, em 2020.

Apesar de não adentrarmos nas questões das dificuldades de se coletar


(e de expressar) memórias verídicas e neutras, precisamos ter, ao menos, uma
noção do que é literatura de testemunho. Você já ouviu falar disso?

A expressão literatura de testemunho tem circulado em livros, em


revistas literárias e, mesmo, na grande imprensa, com intensidade
crescente desde 1990. Às vezes, seu significado é impreciso, mas,
certamente, o leitor comum não mais o associa à visão do texto literário
como um testemunho do tempo dele, entendimento do senso comum
que alude à capacidade de representar, com mediações formais, o
processo social no qual se inscreve a produção. Nos últimos anos, a
expressão remete, sempre, a uma relação entre literatura e violência
(MARCO, 2004, p. 45).

Ou seja, os textos que vêm sendo classificados como “literatura de


testemunho” seriam perpassados pelo forte compromisso com a verdade, já
que discorrem sobre aspectos com implicações éticas, morais. Pode-se dizer que
é esperado que tais textos sejam os mais fiéis possíveis às reais vivências que
narram. Seria uma espécie de “história oficial”.

Nessa concepção da literatura de testemunho, é possível, também,


reconhecer duas tendências. Uma, a hegemônica, reserva-a à produção
dos sobreviventes, recusa-lhe qualquer aproximação à ficção,
examina-a a partir de critérios éticos e se nega a considerá-la à luz da
estética (MARCO, 2004, p. 57).

28
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Na maioria das vezes, não há provas para confirmar se um texto classificado


como literatura de testemunho é, totalmente, verdadeiro, ou não. Assim, só se
pode contar com os relatos dos eventos narrados. Geralmente, dizem respeito
a eventos trágicos, dolorosos, como catástrofes, genocídios, acidentes, guerras,
opressão etc. Em contrapartida, a concepção hegemônica que acabamos de ver
não é a única existente para a literatura do testemunho. Existe uma concepção
diferente dela:

A outra tendência, ao contrário, privilegia, em seu exercício


crítico, as questões de natureza literária, desdobrando-se, assim,
no âmbito da estética; não restringe seu  corpus  à produção dos
sobreviventes. Portanto, aqui, também, é necessária atenção para o
rigor no uso de alguns conceitos e na hierarquização dos argumentos
(MARCO, 2004, p. 57).

São diversificados os modos de expressão do testemunho. Podem ser


disseminados como romance, produção cinematográfica, depoimento, músicas,
quadrinhos etc.

Durante o lockdown, por conta da pandemia da COVID-19, alguns


professores de Língua Portuguesa recomendaram a leitura de O Diário de Anne
Frank para os estudantes do Ensino Fundamental. Muitos adolescentes, e, até
mesmo, adultos, puderam se identificar com partes das narrativas da autora, que
deu ênfase aos dias nos quais precisou ficar trancada em um ambiente fechado,
sem poder caminhar pelas ruas e fazer as coisas que, antes, estava tão habituada,
como visitar pessoas, ir à escola, conversar, pessoalmente, com as amigas etc.

FIGURA 6 – ANNE FRANK

FONTE: <https://www.annefrank.org/en/anne-frank/who-was-anne-frank/quem-foi-anne-frank/>.
Acesso em: 24 fev. 2021.

O Diário de Anne Frank, escrito pela jovem garota que registrou as


vivências dela durante a Segunda Guerra, é um exemplo de narrativa da
literatura de testemunho. Por falar em diário, vale a pena citar que ele é uma
das modalidades tradicionais de narrativas autobiográficas. Costuma apresentar
escritas introspectivas.

29
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Assim como na maioria dos diários de adolescentes, identificamos,


no texto de Anne Frank, uma escritura autorreferencial e um tom
confessional, que busca o desvelamento de uma subjetividade. O pacto
entre leitor e escritor permite uma aproximação dessa intimidade que
se constrói no texto autobiográfico. Veremos, em sua escrita, esse
trabalho da construção de um romance familiar (LIMA; SANTIAGO,
2012, p. 109).

Um diário difere da obra Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de


Queirós, porque Anne Frank falou da adolescência dela enquanto estava passando
por ela. Já Bartolomeu Campos de Queirós escreve, durante a adultez, a respeito
da infância dele. Os processos são diferentes, recorrem a tipos de memórias
diferentes. Anne Frank fez muito uso de memórias de curto ou de médio prazo,
ao passo que Bartolomeu buscou, principalmente, as memórias de longo prazo.
Existem inúmeras outras diferenças entre as duas obras, apenas destacamos
uma delas aqui.

Outro exemplo de obra da literatura de testemunho, e escrita por um


brasileiro, é Memórias do Cárcere, produzida pelo memorialista Graciliano Ramos.

FIGURA 7 – GRACILIANO RAMOS

FONTE: <https://horadopovo.com.br/graciliano-ramos-e-o-romance-do-nordeste/>.
Acesso em: 24 fev. 2021.

A experiência na cadeia, em 1936, significou um corte na vida


do autor, que deixou o estado natal de Alagoas para nunca mais
voltar, estabelecendo-se no Rio de Janeiro. A obra é uma espécie de
testamento literário no qual ele registrou o intento de ser recordado
como uma pedra no caminho das classes dominantes, com as quais,
entretanto, teve relações ambíguas. Ao recordar o cárcere, Graciliano
externou o seu mal-estar com a ordem estabelecida, que colocava,
ainda, obstáculos à profissionalização e à autonomia dos escritores, ao
mesmo tempo que lhes oferecia relativos privilégios. Paradoxalmente,
a intenção expressa em  Memórias do Cárcere,  de registrar as
arbitrariedades praticadas na cadeia, também, serviu como elemento
de distinção, guindando o autor ao pleno reconhecimento público
como escritor e exemplo de intelectual vitimado pelo autoritarismo,
embora, depois de solto, tenha ocupado cargos ligados ao governo
federal (RIDENTI, 2014, p. 493).

30
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Quanto às narrativas que não se enquadram como literatura de testemunho,


é muito frequente que parte do texto seja modificada, propositalmente, pelo
escritor, com acréscimos da ficção, seja para tornar a leitura mais atrativa, seja
para evitar a exposição de determinadas pessoas ao longo da trama, ou por
outros motivos. Por exemplo, um escritor que sofre fortes agressões físicas dos
pais, durante a infância, pode omitir esses fatos em uma autobiografia porque
não quer prejudicar o relacionamento atual dele com os pais, ou porque não quer
correr o risco de se envolver em questões judiciais etc.

Muitas vezes, encontramos narrativas nas quais acontece o seguinte:


ainda que o autor mude o nome dos personagens, e altere partes da história, a
fim de não ser identificado como o autor – inclusive, fazendo uso de pseudônimo
na autoria da obra –, coloca outros personagens para representar os maus tratos
que recebeu – para dar seguimento ao exemplo citado recentemente.

Ao invés de o autor colocar, nos personagens dos pais, a figura dos


agressores, ele altera o enredo, colocando que o personagem que sofria a violência
doméstica era algum vizinho, ou um colega. Há a transferência de um personagem
para outro. Talvez, faça isso pelos motivos já mencionados, ou porque não
consegue colocar, em primeira pessoa do singular, tudo o que vivenciou.

Vamos a outro exemplo. Há um filme que faz menção à autora de


Frankenstein,  ou de Prometeu Moderno, Mary Shelley. O filme (que, talvez,
tenha muita ficção no enredo) deixa implícito que a autora criou o personagem
Frankenstein para representar o marido dela, que tanto a fazia sofrer.

NOTA

A primeira edição de Frankenstein foi publicada em 1 de janeiro de 1818, em


Londres, pela casa editora Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones. A obra foi dividida
em três volumes, com um prefácio assinado por Percy Shelley e dedicado a William Godwin,
mas sem indicação do nome do (a) autor (a) da obra (CONCEIÇÃO; PORTO; COUTO, 2020).

31
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

FIGURA 8 – MARY SHELLEY

FONTE: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-230645/>. Acesso em: 24 fev. 2021.

Blume (2013), em seu texto sobre ensaísmo autobiográfico, na literatura


contemporânea, em língua alemã, faz várias menções à escritora Herta Müller,
e, também, problematiza essas divisas entre o que é real ou imaginário, verdade
ou ficção.

Algo inventado é, por princípio, algo não real, nem verdadeiro. Já a


percepção advém, justamente, de uma impressão despertada pelo real,
por aquilo que foi ouvido, visto, sentido, portanto, algo que deveria
ser verdadeiro. Assim, esse conceito, "percepção inventada", em um
primeiro momento, parece denotar uma contradição em si (BLUME,
2013, p. 62).

É possível encontrar narrativas de história de vida em vários suportes de


leitura diferentes. Neste tópico, foram citados livro, jornal, televisão (produção
cinematográfica), diário, dissertação de mestrado, e portfólio. Existem vários
outros, como álbum, gibi, revista, almanaque e fotografias. Por vezes, as cartas,
também, são utilizadas como narrativas que comportam registros de vivências.

Por falar de cartas, podemos citar as cartas que foram trocadas por
Sigmund Freud e o pastor Oskar Pfister:

Este é Oskar Pfister, um apaixonado pela psicanálise e pela vida, e


se viu diante de inúmeras dúvidas existenciais, como a atividade
religiosa e o casamento dele, mas, a despeito desses momentos,
dedicou-se ao acolhimento de uma dor específica, a da alma. Foi um
pesquisador dinâmico, com mais de 200 artigos publicados, além de
inúmeros livros que tratavam de variados assuntos, incluindo, nesse
rol, a pedanálise, a tentativa de aplicação da psicanálise à pedagogia,
que influenciou um grande números de educadores da época, sendo
traduzida em diversas línguas (SANTOS, 2000, p. 189).

32
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Muito do que se sabe a respeito do relacionamento de Oskar Pfister com


Freud se deve ao registro escrito deixado pelas cartas produzidas por ambos.

Ainda, com relação à multiplicidade de registros, é pertinente destacar:

Alguns textos recentes da literatura brasileira propõem, como


protagonista, uma experiência descentrada e impessoal que já não se
manifesta na história de um sujeito presente ante si mesmo, pleno de
interioridade e de propriedades, mas que, pelo contrário, escolhe as
relações e o espaço entre seres e coisas – o intervalo – como matéria-
prima da narrativa. Textos escritos, como escuta de várias vozes
diferentes (como Delírio de Damasco, de Veronica Stigger), ou a
partir de um descentramento narrativo fundamental que entrelaça
uma multiplicidade de registros (entre o ensaio, o comentário crítico,
o testemunho, a ficção e a fotografia), como em História Natural da
Ditadura, de Teixeira Coelho, encontram, na instabilidade de discursos
e de formas, outros modos de pensar na experiência [...] singular.
Outros modos de pensar na experiência, para além do sujeito e para
além do indivíduo, são aquilo que podemos chamar de experiência do
comum (GARRAMUNO, 2017, p. 110, grifo nosso).

Essa citação é o desfecho ideal para este tópico. Poderíamos dizer que os
gêneros discursivos ligados às narrativas são as memórias, o ensaio autobiográfico,
as lembranças pessoais, o romance autobiográfico. Também, poderiam ser
citados, como narrativas mais reflexivas, o diário, a série, a carta. Além de citar
o testemunho, a ficção, a fotografia enquanto multiplicidade de registros, essa
citação resgata o que fomos vendo ao longo do tópico, lembra? O rompimento
com questões de tempo e de espaço, experiências sendo apresentadas de modo
descentrado, coletivas e individuais, se é que, ainda, podemos dizer que existem
experiências que são, exclusivamente, individuais.

TUROS
ESTUDOS FU

Voltaremos a muitos dos assuntos vistos neste tópico nas próximas unidades.

33
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• A escrita autobiográfica pode ser escrita em narrativas.

• A subjetividade é construída nas interações sociais, e abrange o processo de


constituição do sujeito.

• As narrativas autobiográficas podem ser lidas por diferentes públicos, com


distintos objetivos. As formas de ler e de interpretar serão diferentes se forem
realizadas por um pesquisador das Ciências Sociais, das Ciências Humanas, ou
por uma pessoa que faz a leitura por deleite.

• As narrativas autobiográficas podem ser escritas com diferentes intuitos. É


diferente fazer uma narrativa para um trabalho acadêmico, ou para revisitar a
própria história, apenas por interesse pessoal.

• A escrita autobiográfica demanda que o escritor se lembre de alguns momentos


da própria história. Assim, a memória é uma função psicológica superior muito
utilizada pelo escritor de autobiografia.

• Ao escrever sobre si mesmo, é difícil separar, exatamente, o que são memórias


de fatos reais, memórias de sonhos, ou memórias da imaginação. Talvez,
seja impossível extrair memórias, totalmente, puras, sem interferências de
julgamentos, de pensamentos, de ideologias.

• Nem sempre é possível separar, precisamente, o que, em uma narrativa de


história de vida, é verdade, realidade ou ficção.

• É diferente ler uma autobiografia que fale da infância se ela for escrita por uma
criança ou por um adulto que rememora aquele próprio período. Afinal, trará
o seu olhar de adulto para os fatos narrados.

• A narrativa autobiográfica não mostra, tão somente, a individualidade de


quem a escreve. Dá indícios, também, da coletividade que o cerca.

34
AUTOATIVIDADE

1 A seguir, leia o excerto de O Diário de Anne Frank, pela editora Geek


(s.d., p. 171):

Quando escrevo, sinto um alívio, a minha dor desaparece, a


coragem volta. Mas me pergunto: algum dia escreverei coisa
importante? Virei a ser jornalista ou escritora? Espero que sim,
espero de todo o meu coração! Ao escrever, sei esclarecer tudo,
os meus pensamentos, os meus ideais, as minhas fantasias. Não
tenho trabalhado em A Vida de Candy, mas sei como desenvolver
a história e só não consigo fazer rapidamente. Pode ser que nunca
acabe aquilo e que vá parar no cesto de papel ou no fogão. Não
é uma ideia agradável, mas penso: com catorze anos e com tão
pouca experiência, ainda não se pode, afinal, escrever uma história
filosófica. Não quero perder a coragem. Tudo tem que dar certo,
pois estou decidida a escrever!

Diante do exposto, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as


falsas:

( ) Por se tratar de um diário, pode-se observar uma escrita introspectiva,


autorreferencial e um tom confessional.
( ) É perceptível um pacto entre leitor e escritor no sentido de uma
aproximação, facilitada por meio do texto autobiográfico.
( ) Anne Frank já sabia o que queria, a vida dela era repleta de sentido, por
isso, a escrita não procurava estabelecer um sentido para a vida individual. 

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) F – F – V.
c) ( ) F – V – F.

2 Neste tópico, tivemos um breve contato com a escritora Mary Shelley. Para
Conceição, Porto e Couto (2020, p. 8), o mais famoso personagem criado por
Mary Shelley pode representar diferentes pessoas, ou, até mesmo, situações:

Um ponto de vista para compreender Mary Shelley é vê-la como


uma jovem mulher em busca do conhecimento sobre si, em luta
para se libertar dos monstros que se apropriaram da história e
da identidade dela: o pai, a mãe, o marido, os escândalos que
marcaram a vida e as tragédias que criaram fissuras no coração.
Assim, as pessoas que orbitaram a existência e os acontecimentos
que marcaram a história dela se tornaram a linha que costurou a
carne, que traçou o modo de viver consigo e com o outro, e que
teceu a (falta de?) perspectiva de futuro. Juntos, contribuíram para
a criação de um monstro com muitas faces (ou seria: muitas faces
que compõem um monstro?) que problematiza as necessidades
psicoemocionais e sociais do homem na medida em que ilumina
as possibilidades das promessas oferecidas pela Ciência Moderna.

35
Frente ao apresentado, analise as sentenças que seguem:

I- Mary Shelley publicou o livro aos dezoito anos de idade, e omitiu ser a
autora na primeira edição da obra.
II- William Godwin, pai de Mary, foi apresentado como o autor da primeira
versão do livro, já que um livro escrito por uma mulher não seria aceito
na época.
III- Mary Shelley teve o manuscrito recusado em, 1817, em uma editora.
Percy Shelley, marido de Mary, assinou o prefácio da primeira edição.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Estão corretas as sentenças I e III.
b) ( ) Estão corretas as sentenças II e III.
c) ( ) Estão corretas as sentenças I e II.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 “Escritores, como Primo Levi, Robert Antelme, Elie Wiesel, Jorge Semprún,
Imre Kertész procuram o caminho da literatura onde o recurso da fabulação
tenta superar as falhas da linguagem” (BASEVI, 2013, p. 152). Élie Wiesel é
o autor do livro Uma Vontade Louca de Dançar, do qual será extraído o
trecho que segue. Articule-o com o que tem aprendido nesta disciplina.

– Bem, falemos disso. Essa doença, no senhor, data de quando?


– Realmente, doutora, a senhora me decepciona! Acha, de fato,
que se possa precisar a origem de um desejo, ou o nascimento
do receio de assistir à morte desse desejo? Se eu lhe afirmar
que minha doença é mais velha do eu, acreditaria? Ou melhor,
compreenderia? Aliás, perguntando sobre o meu passado, a
senhora me obriga a um esforço considerável e cansativo, me faz
pensar em voz alta e isso me causa mal-estar. Tem consciência
disso? Leva-me a me questionar, ou seja, a pensar no meu
pensamento, a abri-lo, dissecá-lo, reenviá-lo para trás, distante,
o mais distante possível, até a fronteira, até o nascimento, quer
dizer, ao primeiro pensamento humano, que seria o do Criador; é
o que a senhora quer? E se eu lhe dissesse que meu pensamento,
esse que, através de mim, a senhora persegue, não avança nem
recua em linha reta, mas por arranques, que ele é feito de lascas
estilhaçadas, porque perfura caminhos em ziguezague, de uma
imagem a outra, de um cérebro a outro, de uma existência a outra,
posso dizer, de planeta em planeta, de galáxia em galáxia, de deus
a Deus? (WIESEL, 2009, p. 83).

36
TÓPICO 3 —
UNIDADE 1

AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA

1 INTRODUÇÃO
Com a leitura dos tópicos antecedentes, podemos entender que a
autobiografia tem uma longa tradição (SCHWARTZ, 2013), e que o gênero
autobiográfico vem se transformando. Ainda, é possível inferir que as narrativas
autobiográficas têm sido utilizadas por escritores que buscam elaborar uma
reinvenção do próprio passado, ou uma construção/reconstrução do futuro
(LIMA; CIAMPA, 2017).

Neste tópico, estudaremos algumas especificidades das narrativas de vida,


da escrita autobiográfica no que concerne à literatura. Prepare-se para reflexões
mais profundas quanto às polêmicas entre realidade e ficção em autobiografias.
Vamos lá?!

2 LITERATURA E SUBJETIVIDADE
A leitura de obras literárias exerce uma influência significativa na
formação do sujeito, isto é, na constituição enquanto ser humano, para a
construção da subjetividade. Além de auxiliar na humanização, a literatura pode
ajudar uma pessoa a se compreender melhor, a se construir e a se reconstruir, a
elaborar os próprios traumas e a ressignificar a história pessoal (PORCACCHIA;
BARONE, 2011). Esses efeitos advêm da leitura de literatura, para Porcacchia e
Barone (2011), e podem ocorrer, até mesmo, com as crianças que têm acesso à
leitura da literatura infantil. Muitas vezes, o enfoque sobre a literatura parece
estar na educação escolar, contudo, ela, também, é impactante na formação da
personalidade, na composição da subjetividade de uma pessoa.

Porcacchia e Barone (2011) chamam a atenção para alguns dos benefícios


da leitura de textos literários para as crianças:

• Promove a percepção criativa.


• Propicia a experiência da ilusão.
• Fornece os subsídios para a construção da percepção objetiva da realidade.
• Gera as possibilidades de simbolização.
• Possibilita as reflexões a respeito do processo de aprendizagem.
• Provê um material para a ressignificação das próprias histórias de vida.
• Contribui para a construção de conhecimentos cognitivos.

37
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

• Produz a curiosidade e o interesse por palavras que lhes eram desconhecidas.


• Frutifica os desejos de aprender a ler e de aprender a escrever.
• Pode causar os desejos de ler e de escrever.
• Colabora na construção da subjetividade.

Pode-se acrescentar que esses efeitos da leitura de obras literárias não se


restringem às crianças. Pessoas de todas as idades podem ser beneficiadas por
eles. A literatura ajuda o leitor a entender melhor o entorno e a avaliá-lo.

Note que esses são os benefícios da leitura de textos literários, e que eles
impactam na história de vida do leitor. Na sequência, abarcaremos a escrita
autobiográfica no que se refere ao âmbito da literatura.

3 MEMÓRIA E ESCRITA: REFLEXÕES SOBRE TEXTOS DA


LITERATURA BRASILEIRA
Chegou o momento de darmos mais alguns passos, para as nossas
reflexões, com o estudo da memória e das narrativas de si em obras literárias.
Para Saraiva (2017), a memória é uma das bases da literatura, sobretudo, quando
se tratam de romances memorialísticos. As obras Leite Derramado, de Chico
Buarque, e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, exemplificam
esses romances memorialísticos.

FIGURA 9 – MACHADO DE ASSIS

FONTE: <https://exame.com/casual/livro-de-machado-de-assis-em-ingles-esgota-
em-um-dia-nos-eua/>. Acesso em: 28 fev. 2021.

Saraiva (2017) apresenta algumas similitudes e dissimilitudes entre as


duas obras, quanto aos aspectos composicionais e temáticos, por exemplo. Ambas
trazem metáforas da nacionalidade brasileira, com certa ênfase à trajetória de
vida dos protagonistas e das famílias deles.

38
TÓPICO 3 — AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA

Essas duas narrativas contaram com atitudes criativas por parte dos
respectivos escritores, e apresentam algo que se assemelha a um jogo de espelhos,
no qual o leitor se sente diante da possibilidade de refletir sobre si próprio
enquanto conduz a leitura (SARAIVA, 2017).

As narrações, em Leite Derramado e em Memórias Póstumas de Brás Cubas,


escoram-se em memórias pessoais, e expressam o tom de confissão, ainda que
sejam representativas do universo ficcional (SARAIVA, 2017).

Na referida obra de Machado de Assis, a natureza metarreflexiva é


percebível, tal qual a matriz da subjetividade do narrador. Ele teve cuidados com
os procedimentos formais vinculados à literatura. A obra desvela a estrutura da
sociedade brasileira, na qual inúmeros indivíduos estão submetidos às estruturas
de poder e de opressão (SARAIVA, 2017).

Chico Buarque optou por romper com a linearidade temporal em Leite


Derramado, tendo em vista que ele apresentava fatos passados mesclados a
planejamentos para o porvir, e, ainda, acontecimentos do tempo presente. O
fluxo de pensamentos perpassa as três épocas, passado, presente e futuro, com
idas e vindas, com retomadas de situações que já tinham sido apresentadas na
obra, mas com novos pensares e avaliações de tais situações (SARAIVA, 2017).

FIGURA 10 – CHICO BUARQUE

FONTE: <https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,em-essa-gente-chico-buarque-
oferece-retrato-tragicomico-do-brasil-atual,70003080468>. Acesso em: 28 fev. 2021.

Leite Derramado contém, ainda, o sentimentalismo, as lacunas deixadas


e as coisas incompreendidas pelo narrador, que expõe as próprias incoerências
(SARAIVA, 2017).

Silva (2016) escreveu um artigo que trata de autobiografia e de memórias,


fazendo menção à novela Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós.
Itens que tiveram destaque no artigo consistem na casa da infância e nas
lembranças que ela suscita.

39
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Em Vermelho Amargo, as imagens da infância se mostram como feridas


abertas e expostas aos olhos do leitor. A solidão vivenciada na infância está em
evidência ao longo do texto. Essa novela corresponde à escrita autobiográfica
apresentada por meio de uma narrativa memorialista (SILVA, 2016).

O tempo, o discurso e a memória aparecem espontâneos, descontínuos,


fora de ordem cronológica. A narrativa memorialista é compatível com o caráter
fragmentário, e não é imperiosa a necessidade de estabelecer as ações em ordem
(SILVA, 2016).

Nesse sentido, a escrita de Queirós adquire uma tensão: se, por um


lado, é, declaradamente, autobiográfica, e, portanto, deveria conter um
valor mais exato, ao representar o triunfo da individualidade, e por se
tratar de um gênero referencial, por outro lado, é poética, tecida pelos
fios do texto memorialístico, construída a partir da fluidez do tempo
da memória, que é não linear. Queirós procede, pois, à ficcionalização
dos aspectos autobiográficos. Para tanto, adota um relato memorialista
envolto por signos artísticos (SILVA, 2016, p. 50).

Os escritos memorialistas recuperam recordações, reminiscências para


avaliá-las até pelos avessos, nas idas e vindas, e, ao ponderá-las, ressentimentos
são revistos, novamente, sopesados. As sensações, os sentimentos podem estar
em proeminência (SILVA, 2016).

O escritor pode deixar a própria caneta (ou as teclas do teclado do


computador) ao embalo das emoções, o que lhe permite citar os acontecimentos
de modo desordenado, desalinhado (SILVA, 2016).

Em Vermelho Amargo, pode-se observar a fuga da realidade, a distorção do


real, o desvelamento da dor e o respectivo enfrentamento. Nota-se que o escritor se
refugia na imaginação, na fantasia, em alguns momentos, como forma de escapar
da dor ou de encontrar uma luz para aquela situação. O escritor compartilha, com
o leitor, as reflexões a respeito das próprias condições (SILVA, 2016).

As expressões das palavras – a escrita – são levantadas, pelo escritor, como


uma forma de se sentir acolhido, amparado, já que, através das palavras, ele revê
a própria história, organiza os sentimentos, e se posiciona no que toca às causas
dos sofrimentos (SILVA, 2016).

Essa imagem da casa se constitui como um devaneio imemorial, por


promover a comunhão entre memória e imaginação, lembrança e
imagem. [...] Desse modo, busca, no porão, que assume a condição
de ventre materno; nas palavras, por meio de sentidos e formas; e na
concha, formada pelos calcários da dor e da solidão, os elementos
que formarão os degraus para se alcançar a libertação. O narrador
revisita as dores do passado para compreendê-las e assume a escrita
poética, de modo a valorizar a mentira ou a ficção em detrimento
da verdade, confirmando que a memória é uma seleção, e só se
conserva aquilo que se escolhe (SILVA, 2016, p. 63-64).

40
TÓPICO 3 — AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA

Agora que já percebemos algumas características da escrita autobiográfica


em textos literários escritos por autores brasileiros famosos, como Machado de
Assis, Chico Buarque e Bartolomeu Campos de Queirós, vejamos como a escrita
autobiográfica tem sido conduzida na contemporaneidade?!

NOTA

Muitas pessoas conhecem Chico Buarque através das músicas dele, mas é
válido lembrar que, além da carreira na música, ele, também, é escritor e dramaturgo.

4 ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA E LITERATURA


CONTEMPORÂNEA
Conforme Blume (2013), estamos vivendo em uma época na qual os
limites entre a via pública e a privada têm se diluído cada vez mais. Esse é um
dos aspectos que parece favorecer o aparecimento da necessidade de narrar a
própria vida. Os escritos autobiográficos costumam ter um tom confessional,
como já vimos neste livro.

O tom confessional, aqui, tem o sentido de equivaler a uma confissão.


Inclusive, Schwartz (2013) associa a tendência autobiográfica, justamente, à
influência do Concílio de Latrão e à imposição da regra da confissão, em 1215.
Desde então, os cristãos deveriam falar, regularmente, dos pecados, pensar no
que fizeram, e rezar/orar para que fossem perdoados. Para Schwartz (2013), o ato
de confessar os pecados estimulou a autorreflexão.

Magalhães (2015) afirma que estamos diante da “era da narrativa


confessional”, tão articulada ao interesse impertinente pela intimidade de outrem.
Assim, as narrativas confessionais passam a impressão de equivaler às falas que,
até então, eram mais compatíveis com o setting terapêutico. Em outras palavras,
o leitor de um texto autobiográfico pode ter a sensação de estar observando uma
consulta entre um psicólogo e um paciente/cliente.

Além do aumento das vendas de livros de biografias e de autobiografias


"puras", Schwartz (2013) menciona o expressivo crescimento dos programas de
"reality show" em televisões de todos os continentes e a implosão da noção de
privacidade por intermédio do uso da internet, a partir do compartilhamento de
imagens e de dados de circunstâncias que, talvez, antes, não saíam do âmbito
familiar.

41
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Já que estamos estudando a metarreflexão e a autorreflexão, é pertinente


citar a escritora alemã Herta Müller, que vem se destacando nos contextos
contemporâneos da escrita autobiográfica e do ensaísmopoetológico, por conta
das características estéticas da composição autobiográfica e pelos efeitos políticos
das palavras que usa (BLUME, 2013). Vejamos algumas das belíssimas palavras de
Herta Müller: “Esse é o círculo vicioso: eu procuro viver, para não ter de escrever.
E, justamente, porque procuro viver, tenho de escrever a respeito” (MÜLLER,
1991 apud BLUME, 2013, p. 56).

FIGURA 11 – HERTA MÜLLER

FONTE: <https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/certas-palavras/leia-trecho-do-livro-de-
herta-muller-vencedora-do-nobel/>. Acesso em: 28 fev. 2021.

Assim, podemos observar que a escritora alemã reflete a respeito da


própria escrita autobiográfica. Alguns textos autobiográficos, inclusive, dão mais
enfoque aos processos de rememoração do que aos eventos em si (BLUME, 2013).

Ainda, com relação às escritas de Herta Müller, Blume (2013, p. 76)


destaca que,

embora realizado em uma forma textual que, tradicionalmente, é


mais teórico-reflexiva, o seu ensaísmo se apresenta, aqui, como uma
textualidade híbrida, em que a narração da experiência pessoal, do
autobiográfico, do privado, alimenta um dizer sobre a criação literária
e sobre as suas condições em regimes de opressão.

Aqui, no livro, já havíamos nos deparado com a questão do hibridismo


nos textos, você se lembra disso? Blume (2013) destaca que o autobiografismo
pode ser realizado com uma enorme variedade de gêneros discursivos.

Nas décadas anteriores, a autobiografia tradicional pode ter sido a


maneira mais utilizada de escrever sobre si mesmo. Dos textos classificados como
autobiografia tradicional, esperava-se que a vida do protagonista que representava
o próprio escritor da obra fosse narrada através de uma retrospectiva, com a
intenção de fornecer uma visão coerente e congruente da formação e da atuação
desse protagonista.

42
TÓPICO 3 — AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA

Para Blume (2013), essas expectativas não se aplicam ao romance


autobiográfico, já que esse tipo de romance é compatível com a ficcionalização
da própria vida, então, não necessariamente, precisa abordar fatos, realmente,
vivenciados pelo escritor.

Em outros tópicos, também, já tivemos um certo contato com essa


polêmica entre realidade e ficção, certo?! Vamos aprofundar, um pouco mais, essa
questão?! Que tal iniciarmos com reflexões acerca da autoficção? Você já tinha
ouvido falar disso?

Hidalgo (2013) explica que a invenção da palavra autoficção ocorreu em 1977,


pelo escritor Serge Doubrovsky. Muitos estudiosos de literatura vêm debatendo,
contudo, o termo está, cada vez mais, popular entre autores contemporâneos.

FIGURA 12 – SERGE DOUBROVSKY

FONTE: <encurtador.com.br/egoyP>. Acesso em: 3 mar. 2021.

De acordo com Schwartz (2013), em escritas autobiográficas, tem se visto


que a ficção se justapõe à realidade, ou, até mesmo, mesclam-se. Ocorre que a
representação acaba tendo valor de realidade. Preste atenção nessa palavra que
apareceu aqui em negrito. Mais adiante, voltaremos a falar dela.

Schwartz (2013) cita três representantes de romances contemporâneos no


que toca à autobiografia mesclada à ficção: Philip Roth, Ricardo Piglia e J. M.
Coetzee. Schwartz (2013), ainda, lista alguns escritores de gerações diferentes que,
nos últimos sessenta anos, vêm fazendo junções entre a autobiografia e a ficção:

• Primo Levi.
• Thomas Bernhard.
• Winfried Georg Maximilian Sebald (W.G. Sebald).
• Georges Perec.
43
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

• Giuseppe Berto.
• Saul Bellow.
• Imre Kertész.
• Claudio Magris.
• Ernesto Vila-Matas.
• António Lobo Antunes.
• Julian Barnes.
• ArtSpiegelman.
• Paul Auster.
• Bernardo Carvalho.
• Michel Laub.
• Ricardo Lísias.

Com todos esses exemplos, pode-se deduzir que não são raros os autores
que associam realidade e ficção em escritas autobiográficas.

O sucesso da palavra "autoficção" é nítido nas mais diversas culturas,


não apenas na literatura, mas em outros domínios estéticos, como nas
artes visuais. Na prática autoficcional, quando a ficção se adiciona
à autobiografia, o efeito é, sem dúvida, uma soma inexata que,
paradoxalmente, subtrai, de cada elemento, exatamente, aquilo que o
caracterizava. De início, a ficção pode parecer menos criativa porque,
a princípio, origina-se de uma história real, e, a autobiografia, menos
real, por contar com a liberdade da imaginação. Entretanto, em vez de
subtrair, para autores contemporâneos, essa conta parece inflacionar.
Trata-se de auto + ficção, etimologia, aparentemente simples. Escritores
pensam, portanto, em ganhar dos dois lados, sem nada a perder, com
toda uma liberdade que, no domínio teórico, suscita, cada vez mais,
problemáticas (HIDALGO, 2013, p. 223-224).

Como já vimos, textos autobiográficos não precisam, obrigatoriamente,


resgatar e disseminar situações, realmente, vividas, ou “lembranças autênticas”.
Conforme Blume (2013), parte dos escritos autobiográficos até abrange reflexões
a respeito do que aconteceu, mas existem vários que envolvem o que poderia ter
ocorrido se diferentes escolhas tivessem sido feitas. Alguns textos autobiográficos
parecem trabalhar com diferentes hipóteses, com as possíveis consequências de
decisões diferentes.

DICAS

A título de ilustração, recomendamos o filme Um Amor, Mil Casamentos,


que pode ser classificado como comédia, romance. Atenção! Ele não representa,
necessariamente, um texto autobiográfico. Está sendo indicado para que você observe que
o desenrolar da história poderia ser muito dessemelhante, caso um evento inicial tivesse
acontecido de modo diferente. Em um texto autobiográfico, o escritor pode buscar a
inspiração inicial em algo que ele até tenha vivido, mas contar a história pensando em uma
perspectiva diferente.

44
TÓPICO 3 — AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA

CARTAZ DO FILME UM AMOR, MIL CASAMENTOS

FONTE: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-273578/>. Acesso em: 27 fev. 2021.

Vamos esclarecer melhor esse exemplo do filme Um Amor, Mil Casamentos.

É possível que um autor de romance autobiográfico esteja compartilhando


o que ele imagina que teria transcorrido se, em vez de fazer uma escolha, ele
fizesse outra, por exemplo.

O autor de um romance autobiográfico não precisa avisar aos leitores,


ao longo da trama, que essa é uma hipótese diferente do que aconteceu na vida
real. Ele pode apresentar a história e deixar a imaginação do leitor flutuar entre
“será que foi assim mesmo?”, “será que isso tudo é verdade?”, “ah! Com certeza,
isso é verdade!”. Para Blume (2013), o autor de um romance autobiográfico pode
discorrer a respeito das próprias percepções, imaginações que lhe ocorreram
espontaneamente, talvez, até das coisas que inventou propositalmente.

Um ponto em comum une os mais variados exercícios autoficcionais:


a possibilidade de apagar, ao menos, embaralhar os limites entre uma
verdade de si e a ficção, mesmo se isso revoluciona a ideia de  pacto
autobiográfico, definida por Philippe Lejeune, abrindo novas perspectivas
de leitura - a leitura, simultaneamente, referencial e ficcional de um
mesmo texto (HIDALGO, 2013, p. 223-224, grifos da autora).

Vamos analisar isso com um pouco mais de atenção? Em um texto


autobiográfico, o "real" e o "fictício" andam “irresolúveis" de umas décadas para
cá. Assim, os limites entre interioridade e exterioridade desvaneceram. Estamos
diante de um problema indecidível, isto é, é impraticável construir um algoritmo
que sempre responde, corretamente, com sim ou não. Inspirado em Magalhães
(2015), fica o questionamento: Mas, então, o leitor estaria sofrendo uma torção
produzida pelo texto e pelas virtualidades onde os escritores circulam?
45
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

Se não há conclusões definitivas, ao menos algumas questões podem


iluminar novos caminhos de reflexão: talvez, para alguns autores,
o termo "autoficção", por si só, ajude a amalgamar os mais diversos
paradoxos contidos em narrativas que reúnem fatos reais e fictícios,
desde que a literatura é literatura; talvez, seja possível pensar, ainda,
em uma espécie de  autoficção-limite,  como recurso extraordinário
do eu submetido a condições em que o humano está em risco. Esse eu,
geralmente, ameaçado pelo social, pelo coletivo, ao purgar no centro
de uma situação-limite, passa a ignorar códigos da boa moral e do
bom costume, colocando à prova a própria humanidade. Esse eu, mais
do que partido, fragmenta-se. Passa a se apresentar no plural:  eus-
ficções, aparentemente, em busca da raiz ontológica desse somatório,
e, no cerne dessa busca, desse excesso de si mesmo, em alguns casos, a
autoficção de neologismo se torna antídoto (HIDALGO, 2013, p. 231).

Nesse sentido, Carvalho (2019), também, convida-nos para uma reflexão,


no sentido de que as questões relacionadas com a imitação, com a representação
artística e com a formação abrangem os campos da ética e da estética. Magalhães
(2015) sinaliza que alguns escritos autobiográficos podem acabar deformando o
real e o fictício, ao problematizar a indecidibilidade entre o gênero literário e o
autobiográfico:

Dois casos recentes, na produção literária brasileira, especificam


bem esse movimento que, de um lado, prima pelo alardeamento, e,
de outro, pela denegação, senão pela relativização; de todo modo,
sempre, na forma de réplica. Tratam-se dos romances O Filho Eterno,
de Cristovão Tezza, e  Divórcio, de Ricardo Lísias, dois livros que
tiveram repercussão imediata quando dos lançamentos, com rápidas
reedições, e, no caso de Tezza, com o reconhecimento crítico advindo
do recebimento dos prêmios mais prestigiados do setor. Nos dois,
trata-se da indecidibilidade entre o gênero literário e o autobiográfico,
produzida no corpo mesmo das obras, por meio de enxertos que
indiciam a demarcação da origem, porém, anunciam, em seu próprio
formato (romance), a impossibilidade de demarcação (MAGALHÃES,
2015, p. 148, grifos da autora).

Ainda que essas polêmicas tenham sido difundidas em 2015, por


Magalhães, muitos desses aspectos já foram causando divergências no século 4
a.C., entre Aristóteles e Platão, tanto que na obra Arte Poética, Aristóteles (1995)
apresenta o termo mimesis com um novo olhar, diferente do olhar de Platão.

Carvalho (2019) aborda questões relativas às relações entre conhecimento e


representação artística no âmbito da educação. Ainda que, neste tópico, estejamos
falando das autobiografias e da literatura (e não da educação), podemos nos apoiar,
em parte, nos argumentos de Carvalho (2019), e fazer algumas transposições da
educação para a literatura, por exemplo, quanto às implicações de inter-relações
e de interdependências entre conhecimento e representação artística.

O que seria a representação nesse contexto? Em linhas gerais, equivaleria


a modificar a realidade, ou fazer algumas manobras com ela, ou seja, o escritor
faz uso de certos recursos para delimitar distâncias significativas entre realidade
e ficção. A representação é uma construção realizada pelo escritor, ou, ainda, uma
produção feita por ele.
46
TÓPICO 3 — AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA

Representações podem ser adotadas pelos escritores a fim de tornar


o texto mais atrativo ao leitor, deixá-lo com um forte potencial de oferecer
entretenimento, ou, ainda, tornar a narrativa mais complexa, por exemplo.

Tal demarcação de lugar, se tem valor por sua ênfase, peca pela
incapacidade de fazer o luto da sua própria perda identificatória, pois
se se trata, ainda, de ficção, é já uma outra que não se limita às leis
de origem, visto que, em seu próprio escopo, rasura a ficcionalidade
com diversas provas que depõem contra esta. Uma crise se instala,
inevitavelmente, no que é, tão facilmente, nomeado de "ficção". Poder-
se-ia perscrutar, se existissem meios, por que se lê, agora,  Divórcio?
É provável que seja lido menos como um livro de ficção do que
como uma autobiografia. É, sempre, possível reiterar o equívoco das
leituras, apontando as diferenças com o autobiográfico propriamente
dito. No entanto, diagnosticar uma crise no gênero autobiográfico
como tal, e isso é feito desde que se constituíram as bases da sua
definição, não é suficiente para que os traços que dizem respeito à
vida, como "dados concretos e verificáveis" [...] (MAGALHÃES, 2015,
p. 148-149, grifos da autora).

Aqui, o que podemos articular com as ponderações de Carvalho (2019) é


que aspectos históricos e culturais influenciam as relações que vamos realizando
entre conhecimento e representação artística:

FIGURA 13 – CONHECIMENTO X POIESIS

Conhecimento Poiesis
Criação
Filosofia
Arte
Saber científico
Imitação
Saber técnico
Representação

FONTE: Adaptada de Carvalho (2019)

Carvalho (2019) explica que o termo  mimesis tem o sentido de oposição


entre representação artística e formas de reflexão teórica. A mimese consiste em
um processo que implica imitação e representação da realidade, e que se articula
com aspectos artísticos, influenciando, sensibilizando a formação humana.
Assim, vem sendo perpassada por críticas e refutações.

O fato de não haver possibilidade de saber onde está o corte, ou,


mesmo, se há, entre um discurso e outro, não deveria servir para a
afirmação da generalidade da estrutura da ficção, pois é, ao reconhecer
os limites de um gênero, que se pode alterá-lo, deformá-lo, para que ele
continue subsistindo. Não é outra coisa que nos diz tantos discursos
sobre a "morte" da arte, da literatura etc. A lição das vanguardas, no
que havia nelas de mais interessante, parece não ter sido apreendida,

47
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

pois havia, nelas, a ousadia do jogo de enunciar o tipo de ruptura


que se almejava. Não se tratando mais de ruptura, trata-se do que,
exatamente, esses textos que colocam em evidência o nome próprio,
o corpo, a "letra", facilmente, pode ser relacionado à "figura real"
do escritor? Se não há um dispositivo textual que valha a pena ser
dissecado, para que realizá-lo? Por isso, não me parece razoável fazer
uma defesa temática ("Meu romance... tematiza, em parte, certos
aspectos de certa imprensa brasileira") que, no cálculo geral da obra, é,
apenas, um dentre os traços possíveis de demarcação, em detrimento
do que, a meu ver, é bem mais elaborado. Essa ineficácia do discurso
crítico, para elaborar teses sobre a própria obra, advém do apego ao
princípio de identidade. Nesse gesto de negação, o escritor-crítico
continua, assim, a falar de si mesmo, e não do que fez em sua obra,
de quais artifícios utilizou para promover o embaralhamento do
que, agora, fora do livro, precisa dar provas, até que haja a inevitável
separação (MAGALHÃES, 2015, p. 149).

Para Aristóteles (1995), mimesis explicita a representação artística,


portanto, pressupõe a imitação. Segundo Aristóteles (1995), a arte consiste na
representação do mundo. Por outro lado, também, para Aristóteles (1995), aqueles
que trabalham com a arte, seja na literatura, na escultura, na música, na retórica
e na pintura, precisariam fazer uso das técnicas, em consonância com as regras e
os procedimentos de fabricação.

DICAS

Para saber mais da mimesis em Aristóteles, recomenda-se a leitura da seguinte


obra: ARISTÓTELES. Arte poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica.
São Paulo: Cultrix, 1995.

A abrangência da mimese foi expressa, em sua amplitude, nos cinco


primeiros capítulos da  Poética, quando Aristóteles explicou a atividade
mimética, interessado em apresentar a epopeia e a tragédia, temas
centrais da sua lição. Epopeia, tragédia, comédia, poesia ditirâmbica,
música de cítara e flauta eram todas consideradas mimese, além das
representações por cores e figuras, ou a partir da voz, além da dança,
que mimetizava não apenas caracteres, mas, igualmente, emoções e
ações, segundo o Estagirita (CARVALHO, 2019, p. 20, grifo do autor).

Já que voltamos a nos deparar com uma lista de gêneros discursivos,


convém lembrarmos que, por mais tradicionais que alguns gêneros sejam, ao
longo do tempo, eles vêm sendo transformados. Por exemplo, para Schwartz
(2013), os eventos da Segunda Guerra Mundial repercutiram na forma de produzir
autobiografias. Alguns autores, como Samuel Beckett, inclusive, buscaram
subverter determinadas regras:

48
TÓPICO 3 — AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA

Entre um trecho e o outro, o romance dinamita quase todas as


convenções do romance: não há personagens, enredo, progressão
temporal, ambiente, representação, apenas uma voz que fala, fala e
fala, sabe-se lá de onde, sem nenhuma motivação. Ali, a experiência
modernista é levada ao extremo, a uma espécie de marco regulatório
final, a partir do qual seria preciso retroceder se se quisesse continuar.
Se o homem encolhera, se a humanidade atingira o fundo do poço,
talvez, esse retorno, esse recomeço, passasse por um olhar ficcionalizado
para a própria história pessoal, para a constituição contraditória e
incerta desse único sujeito que, talvez, se possa conhecer, além de
desconhecer minimamente, o pequeno eu (SCHWARTZ, 2013, p. 86).

Com essa citação, vemos que, além dos atravessamentos entre ficção e
realidade, “as regras” dos próprios gêneros vêm sendo quebradas, talvez, em
busca da originalidade, da autenticidade, talvez, como resposta às mudanças
que vêm ocorrendo na sociedade com o transcorrer do tempo.

DICAS

Segue a sugestão de um livro que, também, pode te ajudar a refletir a respeito


das relações entre arte e ficção: LODGE, D. A arte da ficção. Porto Alegre: L&PM, 2017.

A ARTE DA FICÇÃO

FONTE: <encurtador.com.br/dvDFR>. Acesso em: 28 fev. 2021.

Expandindo essa discussão, seguindo o "autorretrato do gênero",


todo e qualquer texto gravitaria em torno da impossibilidade de estar
restrito ao gênero que lhe é imposto. Essa "pertença sem pertença",
uma vez que não existiria texto sem gênero, evoca, novamente, o
fato de essa discussão sobre o posicionamento crítico do escritor se
justificar não porque ele gravita no exterior ou em torno da sua obra,
mas, sim, porque se situa "entre" o interior e o exterior, ou seja, há

49
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

uma borda indiscernível entre o "dentro" e o "fora" indiscerníveis, no


próprio corpo dos textos. Há, portanto, "contaminação", "impureza",
"hibridismo", se quisermos fazer uso de uma palavra mais comum ao
vocabulário da produção contemporânea. Isso significa dizer que não
é um movimento passivo, nem pacífico, no qual apenas o termo que
contamina (no caso, a autobiografia) deixa de ser o que é, estando, o
outro termo (no caso, a ficção, e, se quisermos, a literatura), imune ao
ataque. Há restos. Nenhum corpus resta intacto. E se houvesse espaço,
seria, ainda, possível dissertar sobre essa lógica do resto, que barra,
por exemplo, a conclusão de Ricardo Lísias ("um livro de ficção,
portanto") (MAGALHÃES, 2015, p. 151).

Outra vez, esbarramo-nos com a palavra hibridismo. Além da hibridização,


na constituição dos gêneros discursivos, Martins (2009) menciona a instabilidade
que tem sido vista em alguns gêneros, incluindo a mobilidade e a plasticidade.

O romance, por exemplo, é um gênero secundário, conforme Martins


(2009), que envolve uma comunicação cultural, que pode apresentar uma
linguagem mais complexa, sobretudo, quando escrita com características
artísticas e/ou sociopolíticas. Apesar de ser um gênero secundário, o romance
vai se transformando com as influências dos gêneros primários (simples), que
costumam se processar por meio da comunicação oral e espontânea.

Sugiro, ainda, que, observar o processo mimético como dinâmica de


tensionamento das fronteiras aparentes entre conhecimento, filosofia,
saberes científico e técnico e aquilo que se designa como  poiesis,
criação, arte e representação, pode incrementar um olhar epistêmico
mais vigoroso sobre as condições de contorno dos referenciais que
constroem o exercício intelectual poligráfico de escritores e de artistas,
as quais, no mais das vezes, subtraem-se à reflexão, sendo ocultas
ou elipsadas, tornando-as irrefletidas. Elucidar os processos pelos
quais as tendências de pensamento prevalentes em representações e
modelos emergem na interface entre conhecimento e representação
evitaria a adesão que não se interrogue, criticamente, sobre seus
fundamentos, e que se partilhe como evidência convencionada,
manifestando o ponto cego do pensamento crítico em que se aninham
prejuízos hermenêuticos. Nesse sentido, remontar à gênese histórica
do conceito de mimese, e, mesmo, à etimologia, pode ser um modo
para fazer uma crítica social e cultural do presente através do passado
(CARVALHO, 2019, p. 29, grifo do autor).

Assim, essas tensões entre ficção e realidade, conhecimento e poiesis, não


poderiam ser vistas sem se levarem em conta as condições de produção textual
com as quais contam os escritores de autobiografias. Vargas et al. (2007) nos
convidam a refletir a respeito das novas formas de entendimento do processo de
viver humano.

Ainda que sejamos tentados a homogeneizar o processo de viver humano,


é válido, sempre, recordarmos que a vida vai sendo construída e perpassada por
diferentes hábitos sociais. A construção de sentidos, para certos comportamentos
e rituais cotidianos, é atravessada por questões culturais que variam entre
os distintos grupos étnicos. Até mesmo, dentro do mesmo grupo, notam-se

50
TÓPICO 3 — AUTOBIOGRAFIA: LITERATURA

variações de atitudes, de significados partilhados, talvez, propulsionado por


situações sociais díspares. Por trás das letras de um escritor, há uma infinidade de
valores que ora se chocam entre si, ora convergem, ora são questionados, afinal,
os valores são heterogêneos. É por isso que tanto tem se falado de se romper com
os determinismos (VARGAS et al., 2007).

DICAS

Para aprofundar essas questões, sugere-se a leitura do seguinte artigo:


FRIEDMAN, N. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Está
disponível em https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33195/35933.

Considerando-se, portanto, que, no interior da literatura, a expressão


de um "eu", que se avizinha do nome próprio do autor, realiza uma
tarefa de "contaminação" dos gêneros. As discussões não deveriam
ser, propriamente, sobre o "eu", mas sobre o que esse "eu" pode fazer,
no interior de um gênero, para transbordá-lo. Dito de outro modo,
deve-se manter a desconfiança em relação a leituras imanentistas,
que encontram, nos jogos linguísticos, todas as justificativas para o
que acontece e tem lugar no texto, e, também, em relação às leituras
biográficas e/ou sociológicas que, cruzando as relações do dizer com
os fatos da vida, julgam ser possível discernir os limites de um e de
outra (MAGALHÃES, 2015, p. 14).

Note como essa última citação trata de assuntos que vimos ao longo de
todo este tópico. A literatura, a escrita autobiográfica (expressão de um “eu”)
mescla gêneros e a polêmica verdade versus ficção.

Talvez, você esteja se sentindo confuso em relação a tudo o que acabou de


ler. Afinal, é certo fazer a junção realidade e ficção? Por outro lado, se lembrarmos
das leituras dos tópicos anteriores, é possível escrever, inteiramente, com base na
realidade? Se escrevermos a respeito da nossa própria história, já não estaremos
a compartilhando, contaminada com o nosso olhar, sentimentos, impressões,
percepções sobre os fatos ocorridos? Não seria a nossa versão de um tema?

Se um casal escrever a respeito do casamento deles, por exemplo, cada um


dos dois fará uma escrita autobiográfica desse mesmo casamento, os dois livros
serão idênticos? Qual será o verdadeiro? Cada um contará sob o próprio ponta de
vista. Ainda que tentem ser fidedignos com os eventos vivenciados ao longo do
evento, é possível se restringirem à realidade?

A intenção desta unidade não é fechar a questão, nem determinar que


posicionamento é certo e errado. O intuito é levar, até você, algumas perspectivas
diferentes, para que reflita a respeito e formule as próprias conclusões.

51
UNIDADE 1 — NARRATIVAS E AUTOBIOGRAFIA

LEITURA COMPLEMENTAR

Para aprofundar, ainda mais, os assuntos debatidos nesta unidade,


acompanhe a seguinte leitura complementar, intitulada de O Ponto de Vista na
Ficção: O Desenvolvimento de um Conceito Crítico: https://www.revistas.usp.br/
revusp/article/view/33195.

CHAMADA

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52
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• O contato com a literatura ajuda o leitor na constituição da própria subjetividade.

• A narrativa é uma forma de reviver o passado, contando-o para outrem.

• A partir das últimas décadas, pode-se observar o crescimento significativo em


termos de inserção de aspectos autobiográficos nas narrativas.

• O romance contemporâneo vem sendo apresentado por meio da mistura da


ficção e da autobiografia.

• A escritora Herta Müller tem se destacado, na contemporaneidade, no que


concerne à escrita ensaística. Ela vem contribuindo com reflexões acerca da
expressão "percepção inventada".

• Herta Müller vem escrevendo romances, contos, ensaios, e as conjugações


estética e política têm sido perceptíveis neles.

• Em meio às polêmicas entre o que é real e ficcional, alguns escritores vêm


buscando contemplar os critérios em termos de autenticidade.

• É uma tarefa árdua evocar memórias puras. As reminiscências emergem


e reemergem de modos diferenciados, associadas a imagens, a aromas, a
palavras, a sinais sonoros.

• Ao resgatar uma memória, ela tende a vir diferente em comparação àquela


primeira vez que foi acessada. Em cada resgate, há o acréscimo de associações
ou a perda de detalhes.

• Escrever uma autobiografia não é, tão somente, registrar o real. É um exercício


de revisitação da própria história. Nesse processo, não é raro que surjam
espaços em branco, lapsos de memórias, dúvidas em relação a fatos. De vez
em quando, os escritores de autobiografias povoam esses espaços livres com
ficção – tenham eles consciência de que estão fazendo isso ou não.

53
AUTOATIVIDADE

1 Já que estamos, aqui, aprendendo a respeito da literatura e da memória,


sinta-se, primeiramente, convidado a se deleitar com as palavras de
Marcel Proust (1982, s.p.):

É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-


lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis.
Está ele oculto, fora de seu domínio e do seu alcance, nalgum
objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material)
que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só de acaso depende que
o encontremos antes de morrer, ou que não encontremos nunca.

Diante do exposto, classifique V para as assertivas verdadeiras e F para as


falsas:

( ) A memória é um dos fundamentos da literatura, especialmente, quando


se tratam de romances memorialísticos. São exemplos de romances
memorialísticos: Leite Derramado e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
( ) Ao escrever uma autobiografia, o escritor jamais se depara com devaneios
imemoriais. Por isso, é, totalmente, proibido realizar a junção entre
memória e imaginação, e entre recordações e imagens.
( ) Existem textos de autobiografia nos quais o narrador revê as próprias
dores passadas. Muitas vezes, o autor usa a escrita poética para valorizar
a realidade ou a ficção, até porque a memória é uma seleção, e só se
conserva aquilo que se escolhe.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V.
b) ( ) F – F – V.
c) ( ) V – V – F.
d) ( ) F – V – F.

Os diversos possíveis lugares do "eu", em uma frase, narrativa,


romance, enfim, em um gênero artístico, esfacelam, de imediato,
qualquer coisa que sugira algo como pacto autobiográfico,
demonstrando, de pronto, o anacronismo de tal proposta. A
propensão está em forçar aberturas a partir do jogo com esse
pronome pessoal, relacionado, ou não, ao nome próprio que
enfeixa um gênero, como o romance, aberto a todo tipo de
intervenção (MAGALHÃES, 2015, p. 140).

54
Tendo em vista a relação entre literatura e autobiografia, analise as sentenças
a seguir:

I- Existem vários escritores brasileiros que introduzem componentes


autobiográficos nas obras deles, o que pode instituir uma “presença
problemática da primeira pessoa autobiográfica”.
II- Magalhães (2015) apresenta problematizações acerca da confluência entre
realidade e ficção em autobiografias, fazendo interrogações a respeito dos
desdobramentos éticos dessas situações.
III- O leitor conduz a leitura e as posteriores reflexões acerca de uma obra da
mesma forma, não importa se ele pense que o livro que está lendo é uma
obra de ficção ou um livro de literatura de testemunho.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Estão corretas as sentenças I e II.
b) ( ) Estão corretas as sentenças II e III.
c) ( ) Estão corretas as sentenças I e III.
d) ( ) Somente a sentença II está correta.

3 Faça uma pesquisa a respeito da autora do livro A Terra das Ameixas


Verdes, a fim de descobrir mais informações dela. Em seguida, redija um
parágrafo que trate do que mais chamou a sua atenção.

FONTE: <https://livralivro.com.br/livro/a-terra-das-ameixas-verdes/588613.html>.
Acesso em: 11 maio 2021.

55
56
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WIESEL, E. Uma vontade louca de dançar. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora


Bertrand Brasil, 2009.

61
62
UNIDADE 2 —

NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA:


INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender as relações entre narrativas e histórias de vida e infância;

• analisar alguns dos aspectos da infância, manifestos em autobiografias, e


narrativas elaboradas por sujeitos que viveram essa fase do ciclo vital;

• perceber as especificidades do emprego de narrativas autobiográficas na


formação acadêmica;

• identificar algumas das utilidades das pesquisas de narrativas e histórias


de vida na formação docente.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade,
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – NARRATIVAS E INFÂNCIA

TÓPICO 2 – NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM


E FORMAÇÃO ACADÊMICA

TÓPICO 3 – NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

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64
TÓPICO 1 —
UNIDADE 2

NARRATIVAS E INFÂNCIA

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, você estudará as relações entre as narrativas e a fase do ciclo
vital denominada de infância.

Por vezes, encontramos narrativas expressas, oralmente, em documentários,


em programas televisivos, em consultórios de terapeutas. Pesquisas científicas,
eventualmente, contêm trechos de narrativas de vida transcritos e analisados.
Também, podemos nos deparar com narrativas escritas por crianças. O livro
O Diário de Anne Frank, que foi citado na unidade antecedente, é um exemplo
disso. Ainda, encontramos pessoas adultas que escrevem a respeito de memórias
da infância, como exemplifica o livro Ler, Escrever e Fazer Conta de Cabeça, de
Bartolomeu Campos de Queirós.

Na verdade, narrativas produzidas por crianças podem surgir em


diferentes locais, incitadas por diferentes profissionais. Por isso, Gullestad (2005)
explica que o estudo de histórias de vida concede inúmeras ocasiões favoráveis
para os trabalhos interdisciplinar e transdisciplinar, envolvendo sociólogos,
antropólogos, historiadores e outros cientistas sociais, até mesmo, professores,
terapeutas, críticos literários.

Vale elucidar, desde já, que os procedimentos metodológicos, para


coletar essas narrativas das crianças, variam, de acordo com o profissional que
irá procurá-las, e em conformidade com os seus objetivos. Esses diferentes
profissionais elencados encaram as lembranças pessoais, atinentes à infância,
com perspectivas distintas (GULLESTAD, 2005).

Já que estamos em um tópico que se refere à infância, e que, portanto,


abrange o brincar, vamos acolher as imagens expostas, aqui, com carinho e
ternura? Ao contemplá-las, permita-se entrar em contato com a sua criança!

Viana, Imbrizi e Jurdi (2017) nos lembram de que o genuíno contato com
crianças, ou com a infância, demanda, do adulto, a renúncia a si. Isso é essencial
para que o adulto se encontre com a sua própria criança, que permanece viva nas
memórias, nas lembranças e nas vivências dele.

65
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

ATENCAO

Você já se perguntou qual é a origem dessa noção tão disseminada de resgatar


a “criança interior”, ou de, pelo menos, entrar em contato com ela? A origem da metáfora da
"criança por dentro" é antiga, mais precisamente, do século XVIII. Desde então, passou-se
a difundir a noção de que o homem está vinculado à moral, e de um sentimento interno
intuitivo quanto ao que é certo e errado. Passou-se a dar enfoque às questões subjetivas,
e de que essa voz interior abrange a criança – que, inclusive, é considerada vulnerável
(GULLESTAD, 2005).

Assim, Viana, Imbrizi e Jurdi (2017) recomendam que, principalmente,


aqueles que querem ser pesquisadores do campo das Ciências Humanas ou
Sociais exercitem o próprio “devir-criança”.

Vamos iniciar esse exercício por meio de uma obra de Portinari?!

FIGURA 1 – CRIANÇAS BRINCANDO EM BRODOWSKI - CANDIDO PORTINARI

FONTE: <https://vejasp.abril.com.br/atracao/portinari-e-a-poetica-da-modernidade-brasileira/>.
Acesso em: 15 maio 2021.

Dando sequência à inspiração de refletir a respeito da infância, quiçá


acessar lembranças da nossa própria infância, vamos ler um poema escrito por
Cecília Meireles (1983)?! Parece que ele contém fragmentos da história de vida dela:

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TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

DICAS

LEMBRANÇA RURAL

Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.


A encosta barrenta aceita o frio, toda nua.
Carros de bois, falas ao vento, braços, foices.
Os passarinhos bebem do céu pingos de chuva.

Casebres caindo, na erma tarde. Nem existem


na história do mundo. Sentam-se à porta as mães descalças.
É tão profundo, o campo, que ninguém chega a ver que é triste.
A roupa da noite esconde tudo, quando passa...

Flores molhadas. última abelha. Nuvens gordas.


Vestidos vermelhos, muito longe, dançam nas cercas.
Cigarra escondida, ensaiando na sombra rumores de bronze.
Debaixo da ponte, a água suspira, presa...

Vontade de ficar neste sossego toda a vida:


bom para ver de frente os olhos turvos das palavras,
para andar à toa, falando sozinha,
enquanto as formigas caminham nas árvores...

Que tal reler o poema, prestando atenção no modo através do qual a escritora
apresenta situações que, tantas vezes, passam despercebidas pelos “geralmente, são
ocupados adultos”?!

CECÍLIA MEIRELES

FONTE: <https://www.infoescola.com/literatura/cecilia-meireles/>.
Acesso em: 15 maio 2021.

FONTE: <http://vita-gotasdepoesia.blogspot.com/2010/12/lembranca-rural.html>. Acesso em:


15 maio 2021.

67
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Agora que já tivemos contato com os primeiros itens que pretendiam ativar
as nossas sensibilidade e memória, vejamos como este tópico está subdividido.
Inicialmente, estudaremos as narrativas de crianças institucionalizadas. Logo
após, refletiremos a respeito das relações entre o brincar e as narrativas. Por
fim, concentrar-nos-emos nas narrativas baseadas em memórias da infância,
produzidas, por pessoas, a partir da adolescência.

2 NARRATIVAS DE CRIANÇAS INSTITUCIONALIZADAS


Trivellato, Carvalho e Vectore (2013) realizaram um estudo que engloba
as narrativas elaboradas por crianças em abrigos, que deu enfoque ao processo de
acolhimento dessas crianças e das narrativas delas.

Segundo Trivellato, Carvalho e Vectore (2013), a elaboração das narrativas,


por parte dessas crianças, desencadeou a manifestação de baixa autoestima,
insegurança, e, até mesmo, dificuldades nas habilidades de escrita. Estas últimas
poderiam ser exploradas pelos professores, com intervenções específicas.

A escuta atenta é importantíssima, já que ela encoraja que as crianças


institucionalizadas externalizem as histórias e as narrativas do que vivenciaram.
A verbalização oral, ou a escrita dessas narrativas, permite que elas exponham
conteúdos singulares das crianças, o que favorece o processo de acolhimento
(TRIVELLATO; CARVALHO; VECTORE, 2013) e o estabelecimento do vínculo
entre a criança e o adulto, que ouve as narrativas dela.

Segundo Gullestad (2005), existem diferenças entre as narrativas orais e


escritas. Para os cientistas sociais, a oralidade tende a ser a melhor opção, já que é
mais análoga e correspondente à realidade, até porque, ao escrever, a narração
propende a ser menos espontânea, já que a pessoa costuma apresentá-la de
maneira mais engendrada, melhor formulada. Ao escrever, a pessoa tem mais
tempo para decidir o que omitirá, e o que atenuará, intensificará etc.

Existem, também, semelhanças expressivas entre as narrações oral e


escrita. Ambas são reconstruções verbais do "que, realmente, ocorreu".
As coisas se complicam mais ainda quando percebemos que os
relatos escritos podem ter um caráter "oral", e, os orais, um caráter
"escrito". Por exemplo, algumas histórias de vida escritas contêm
mini narrativas, que já foram transmitidas, oralmente, muitas vezes,
enquanto outras histórias de vida, ou partes de histórias de vida
(independentemente de orais ou escritas), contêm materiais que nunca
foram contados antes. Muitas histórias de vida empíricas contêm
misturas de gêneros, inclusive, partes que se leem como memoriais;
outras que enfocam experiências íntimas, sem falar de poesias e cartas.
Algumas lembram romances. Podem ser, altamente, construídas, mas,
mesmo assim, revelar verdades profundas sobre o autor. Outras,
baseadas em acontecimentos reais, aproximam-se da história, mas
continuam ficcionais em um certo sentido (GULLESTAD, 2005, p. 517).

68
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

É válido sinalizar que essas situações, relativas à oralidade e à escrita, são


válidas não só para as memórias da infância. Inclusive, é meritório lembrar o que
já vimos na unidade anterior, a respeito das dificuldades de delimitar o que é
realidade e o que é ficção, até mesmo, para o próprio narrador.

As infâncias vividas diferem das textuais. Até que ponto as histórias de


vida, em torno da infância – relatadas por um adulto –, podem ser indicativas do
ponto de vista da criança? Afinal, estão sendo produzidas por um adulto, e não
por uma criança. Exemplificando, como esse adulto pode distinguir as memórias
reais daquelas que imaginou (GULLESTAD, 2005)?

Para Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), as crianças têm algo a dizer, mas, nem
sempre, encontram oportunidade de se expressar, até porque o protagonismo lhes
foi recusado ao longo do tempo. Por exemplo, nos dias atuais, ainda, encontramos,
sobretudo, idosos se queixando da liberdade que as crianças vêm usufruindo de
participar das conversas dos adultos quando chega uma visita. Muitos idosos
falam que, antigamente, isso não poderia acontecer, pois as crianças não podiam
interagir com as visitas, e, até mesmo, quando, apenas, os moradores de uma
casa estavam no jantar, as crianças tinham que pedir permissão para falar, e nem
sempre a obtinham. Isso não ocorre, apenas, com a fala, mas, até, com o choro.
Você já ouviu algum adulto dizer a seguinte frase para uma criança: “Pode parar
de chorar! Engole o choro!”? Geralmente, essas palavras são esbravejadas quando
são empregadas. Assim, hoje, já percebemos que as crianças têm mais liberdade
para fazer uso da palavra, no entanto, ainda, encontramos pessoas que defendem
que o correto seria a sociedade voltar ao silenciamento delas, ou seja, existem
pessoas que são contrárias à exteriorização das crianças. Por isso, especialmente,
no contexto institucional, ou terapêutico, é ideal que o adulto, com o qual a criança
se relaciona, proporcione condições para que ela possa se manifestar livremente.
Disponibilize tempo para que a criança fale, ofereça um ambiente limpo e
aconchegante, demonstre estar escutando atentamente, demonstrando que está
disposto a acolhê-la e a oferecer a escuta sensível (VIANA; IMBRIZI; JURDI, 2017).

O estudo de Trivellato, Carvalho e Vectore (2013), inclusive, recomenda


a criação de políticas públicas para a capacitação dos educadores, de modo que
tenham subsídios para valorizar as histórias das crianças com as quais trabalham,
priorizando os aspectos de construção humana. Isso, com o intuito de expandir a
qualidade do atendimento às crianças, de modo que não se restrinjam, apenas, aos
cuidados básicos. Além disso, sugere a formação da equipe multiprofissional.

Tendo em mente os devidos atendimento e entendimento do processo


de acolhimento, destaca-se a necessidade de explorar conteúdos capazes de
abarcar a multiplicidade e a complexidade de aspectos que se apresentam em tal
processo. Vale, ainda, ressaltar a iniciativa do Conselho Regional de Psicologia
- 6ª Região, de promover fóruns de debate sobre a atuação dos psicólogos nos
serviços de acolhimento institucional para crianças e adolescentes, pois contribui
com práticas cada vez mais pertinentes, visando à melhoria da qualidade no
atendimento às crianças institucionalizadas.

69
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

“Dar voz à criança significa, portanto, tomar as complexidades e as


pluralidades, que constituem a formação humana, como substrato para fazer
psicologias” (VIANA; IMBRIZI; JURDI, 2017, p. 10). Nas narrativas, infâncias
vão sendo produzidas, e, nelas, vão surgindo reivindicações das crianças. Nesse
sentido, Gullestad (2005) clarifica que as narrativas não só exprimem a realidade,
elas constroem a realidade, por isso, são ligadas ao poder. Assim, narrar a história
de vida equivale a um ato de empoderamento.

Já que estamos falando das instituições e da infância, é pertinente


mencionar a escola. Para Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), essa instituição é relevante
enquanto espaço produtor de narrativas, compartilhando o papel de formador
de identidade com a família. Por conseguinte, ela poderia oferecer mais
oportunidades de empoderamento às crianças.

A maioria das crianças da nossa sociedade passa muito tempo na escola,


e, lá, experimenta situações de trocas relacionais com crianças da mesma idade,
e, até mesmo, intergeracionais (com professores, e outros profissionais que
integram o espaço escolar). Esse local é ideal para favorecer a maturação e o
desenvolvimento das perspectivas e das ideias que as crianças vão construindo
acerca de si próprias, do mundo e da sociedade (VIANA; IMBRIZI; JURDI, 2017).
Apesar disso, diversas escolas não têm incentivado, apropriadamente, o brincar,
tampouco, a exploração da fantasia e o desenvolvimento da criatividade.

“A escola não tem dado espaço suficiente para a invenção, ela vem
abrindo mão da produção de ferramentas de criatividade e de imaginação, e
sendo capturada pelas lógicas mecanicistas e produtivistas” (VIANA; IMBRIZI;
JURDI, 2017, p. 11). Desse modo, Viana, Imbrizi e Jurdi (2017) destacam que as
escolas poderiam explorar o universo dos jogos e das brincadeiras com mais
frequência, não somente entre as crianças, mas incluindo os adultos que as
integram. Ainda, fazer mais uso de metodologias lúdicas nas situações de ensino
e de aprendizagem.

Viana, Imbrizi e Jurdi (2017) ressaltam que, ainda, são raros os locais que
favorecem a livre expressão das crianças, que garantam, a elas, uma “experiência
não asséptica”, isto é, lugares nos quais as crianças encontrem uma ocasião
calorosa, e não a indiferença, a frieza, o desdém. Além de tudo, os adultos podem
sugerir, conduzir atividades lúdicas enquanto estiverem com as crianças, como
forma de instigar a comunicação e favorecer a aproximação com elas.

Brincar é urgente. A criança pode e precisa ser vista, e, para isso, só é


preciso disposição para o encontro. A produção coletiva nasce desse
tecer de aberturas, e essas aberturas são responsáveis pelo contato com
o mundo, que pulsa e produz vida fora dos muros e paredes. A escola
pode ser outra, é só entrar no jogo (VIANA, IMBRIZI; JURDI, 2017, p. 8).

Assim, passemos à próxima parte, que tratará, diretamente, das relações


entre brincadeiras e narrativas. Vamos lá?!

70
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

3 NARRATIVAS, INFÂNCIA E BRINCAR


Vieira e Sperb (2007) mostram as relações entre o brincar simbólico e a
construção de narrativas por parte do menino que recebeu o nome fictício de
Carlos. Trata-se de um estudo acerca da narrativa enquanto elemento constituinte
da linguagem do brincar. Para tanto, essa criança foi acompanhada, no decorrer
do processo, por psicoterapia, durante cerca de um ano. Vieira e Sperb (2007)
informam que Carlos foi observado enquanto brincava na caixa de areia –sandplay,
sendo que o maior enfoque da observação foi colocado sobre a organização das
narrativas que emergiam por parte do garoto.

Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), também, debruçaram-se sobre o brincar e as


narrativas atreladas à infância.

Viana, Imbrizi e Jurdi (2017) sugerem algumas brincadeiras que, também,


podem ser propostas, para que a criança se sinta mais confortável para interagir
e para conversar: faz de conta, jogos com peças, bolas e papéis, objetos, e, até
mesmo, o uso do corpo, como acontece na brincadeira de esconde-esconde.
Parte delas poderá ser observada a seguir:

FIGURA 2 – TELAS INSPIRADAS PELA INFÂNCIA - RICARDO FERRARI

FONTE: <https://www.revistaprosaversoearte.com/a-crianca-e-eterna-nas-pinturas-
de-ricardo-ferrari/>. Acesso em: 15 maio 2021.

Na concepção de Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), a disposição para jogar, para


brincar, e a imersão no mundo da fantasia são imprescindíveis ao pesquisador
que almeja estudar a infância. Afinal, as trocas, durante o brincar, propulsionam
a criação de narrativas pelas crianças.

Dificilmente, obtém-se uma narrativa da criança, coagindo-a a falar, ou


pedindo para ela escrever. Muito menos, ordenando-a a verbalizar. Quanto
ao brincar, esse sim, pode muito, a partir dos efeitos, enquanto promotor de
narrações infantis (VIANA; IMBRIZI; JURDI, 2017).

71
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Voltando ao estudo de Vieira e Sperb (2007), nele, foi constatado que


o brincar simbólico permitiu que a criança construísse os próprios textos, ora
apresentados como narrativa oral, ora como imagem. De qualquer forma, os textos
elaborados demonstravam inúmeros elementos, vinculados a outras narrativas
ou imagens produzidas no decurso da história da humanidade.

Consequentemente, foi notório que o brincar, não apenas, acarreta


narrativas. Ele, também, contribui em diferentes processos psicológicos. Por
exemplo, pôde-se notar que a criança organizava as próprias experiências de
vida por meio dos textos que formulava. Então, pode-se afirmar que o brincar
simbólico apresenta funções cognitivas articuladas à organização das situações
vividas pela criança (VIEIRA; SPERB, 2007).

As falas da criança pareciam produzir sentidos para situações que ela


presenciava, procurando entendê-las. Isso não ocorria só com circunstâncias
em si, mas com vários aspectos do entorno da criança, incluindo a passagem do
tempo (VIEIRA; SPERB, 2007). Assim, ela ia construindo significados, sentidos,
com base nos conhecimentos que tinha construído previamente, relacionando
informações, sentimentos, discursos, percepções, com o intuito de compreender
o mundo ao redor (VIEIRA; SPERB, 2007).

Os movimentos de atribuir sentidos ao que se presenciou não se limitam,


somente, ao tempo presente. Eles se estendem para os dias futuros: “Por meio das
mais precoces percepções do mundo, cada pessoa adquire algumas das ideias,
imagens e metáforas básicas que, mais tarde, vão estruturar as experiências no
mundo e os sentidos que dão a este” (GULLESTAD, 2005, p. 526, grifos nossos).

De modo geral, as pessoas narram para organizar as coisas dentro de si


próprias, para assimilar o que viram, ouviram, sentiram, viveram. Isso envolve
variados processos psicológicos e funções mentais, como a memória, a percepção,
a imaginação, a cognição (VIEIRA; SPERB, 2007).

A criança brinca o que “houve”, revive, enlaçada pela imaginação,


tudo aquilo que já lhe aconteceu, que já a afetou de alguma maneira.
Também, aquilo que “deveria haver”, seus anseios, e aquilo que
produziu, ao interpretar, de maneira singular, como o mundo a
compõe, e, também, compõe-se ao seu redor (VIANA; IMBRIZI;
JURDI, 2017, p. 4).

Diante disso, as narrativas revelam desejos, atitudes, ações, intenções,


objetivos, agruras, arrependimentos das pessoas. Ainda que usem a ficção para
expressar, podem ocorrer associações entre aspectos da vida do autor e de algum
personagem (VIEIRA; SPERB, 2007). Não significa que os comportamentos dos
personagens são cópias exatas do comportamento de quem narrou a história, mas,
possivelmente, existe algum tipo de vínculo: o tema abordado, a inspiração para
a criação de personagens, o drama desenrolado, alguns elementos da narração
que representam incidentes vivenciados pelo narrador etc. Exemplificando: a
criança do estudo de Vieira e Sperb (2007) citava alguns animais nas narrativas
dela: caranguejo, elefante, girafa, leão, peixe, tigre, veado e zebra. Esses animais

72
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

apareciam, com frequência, nas narrativas do menino Carlos, vinculados


às situações que giravam em torno de pai e de filho. O pai, muitas vezes, foi
representado por um leão ou por um elefante – animais que remetem, a essa
criança, as características de força, de poder, de braveza. Isso não foi por acaso.
Essa criança é oriunda de uma família que atravessou momentos de violência.

Em suas narrativas, protonarrativas e imagens, vemos Carlos tentando


lidar com uma situação desfavorável de vida e procurando soluções
que lhe permitam se desenvolver e crescer. Se observarmos a totalidade
do material trazido pelo estudo de caso, veremos que essa produção
simbólica, transcorrida dentro de um processo psicoterapêutico, teve a
função de auxiliar a criança a organizar essa situação desfavorável de
vida em uma experiência, de modo que ela seja inteligível e possível
de ser transformada, ou, caso isso não seja possível, para que a criança
não sofra, passivamente, o destino que lhe é reservado pela repetição
dos complexos dos pais e das famílias, e que, pela fala, através das
estórias e imagens simbólicas, ela consiga, ao menos, partilhar, com
o terapeuta, sua sina, e, com ele, busque meios de transformá-la
(VIEIRA; SPERB, 2007, p. 18, grifo nosso).

Viana, Imbrizi e Jurdi (2017) realçam que, quando o adulto ouve,


atentamente, as narrativas produzidas pelas crianças, pode ver o mundo por
intermédio dos olhos dela, e percebê-lo a partir das impressões e das ideias dessas
crianças. Pode acessar as [in]compreensões que a criança tem elaborado acerca da
vida. Nem sempre, as brincadeiras de faz de conta têm, como desfecho, “e foram
felizes para sempre”.

Situações desfavoráveis não despontaram nas narrativas de criança, apenas,


no estudo de Vieira e Sperb (2007). Na pesquisa de Viana, Imbrizi e Jurdi (2017,
p. 8), uma das crianças demonstrou, por meio das brincadeiras, que enfrentava
“[...] uma situação social vulnerável, precária em recursos básicos de subsistência”.

Nem sempre as narrativas de crianças são prenhes de alegria e de


brincadeiras. Do mesmo modo, nem sempre as pinturas ou as estátuas retratam
a infância com tons de alegria, vinculando-se ao brincar. A título de exemplo, na
sequência, encontraremos uma figura que representa a angústia de uma criança
perante o trabalho infantil:

FIGURA 3 – MONUMENTO AO PEQUENO JORNALEIRO - ANÍSIO OSCAR MOTA (1933)

FONTE: <encurtador.com.br/yDMQ2>. Acesso em: 15 maio 2021.

73
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

DICAS

Sugere-se a leitura do artigo intitulado de Pobreza, Relações Étnico-Raciais


e Cotidiano Escolar: Narrativas do Viver, que menciona narrativas de uma criança de nove
anos, integrante de uma família desprovida de recursos financeiros. Residem em uma moradia
enjambrada com materiais alternativos, em um terreno baldio que invadiram. Esse artigo
não enfoca a questão do trabalho infantil, mas, sim, uma série de agruras que essa criança
enfrenta no dia a dia dela. Na sequência, você encontrará o resumo do referido artigo:

Este artigo inscreve o discurso social de uma criança de 9


anos de idade, procurando interpretar os seus mundos vividos
e, também, os imaginados. Trata-se de uma história de vida
tomada pelo viés das narrativas que impeliram a menina a falar
de si, de suas lembranças e de suas experiências vividas. O
valor da humanidade, vista nos pequenos frascos da inscrição
do discurso social, está no suposto de que as particularidades
podem revelar modos de vir a ser, para além daqueles que
revelam como se é. As dinâmicas de produção de sentidos,
processadas nas narrativas e na relação presente/passado,
revelaram múltiplas dimensões do seu viver. Isso implicou um
olhar para a Memória e para a Identidade na sua dimensão
social. Palavras-chave: pobreza; relações étnico-raciais;
cotidiano escolar (MEDEIROS, 2011, p. 271).

FONTE: MEDEIROS, A. B. de. Pobreza, relações étnico-raciais e cotidiano escolar: narrativas


do viver. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 46, p. 167-189, 2011. Disponível em: http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782011000100010&lng=en&nrm
=iso. Acesso em: 18 maio 2021.

Agora, voltando à pesquisa de Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), a narrativa deu


indícios de que uma criança precisava se dedicar muito ao auxílio de atividades
domésticas. Certamente, é um caso bem diferente do que os pequenos jornaleiros
(representados na figura) atravessaram ao longo dos anos. Ainda assim, ao serem
aplicadas tantas horas na “faxina” da casa, está sendo tolhida de oportunidades
de brincar.

Com evidências desde o período colonial, no Brasil, as crianças foram


encaradas como potenciais trabalhadoras, tendo, como premissas, a
posição de classe e o grupo étnico ao qual pertenciam. A narrativa
de V. nos coloca de frente com essa questão: uma criança que é
convocada a ajudar os adultos no trabalho doméstico, que tem pouco
tempo para brincar, e que, nas brincadeiras, durante os encontros
com o pesquisador, queria realizar, rapidamente, todas as atividades
propostas, e pedia mais e mais, o que demonstrava uma necessidade
grande de aproveitar “tudo” o que aquele momento lúdico, em sua
vida, oferecia-lhe (VIANA; IMBRIZI; JURDI, 2017, p. 8).

74
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

Agora, voltando aos animais referidos pelo menino Carlos, vale dilucidar
que, já nos mitos e nas fábulas antigas, encontramos a presença de personagens
que são animais. Isso pode ser levado em conta ao analisar as narrativas.

Há um outro elemento, cuja presença, no brincar simbólico, tem, para


nós, um significado fundamental: a participação da cultura, através da
interposição de narrativas, culturalmente, dadas. Pelo menos, dentro
do âmbito desse trabalho, podemos afirmar que, sem uma referência a
narrativas culturais, como os mitos e os contos de fada, a compreensão
do sentido das narrativas e das imagens produzidas pela criança,
através do brincar simbólico, seria uma tarefa impossível. Sem uma
análise cultural do significado dos diversos animais que povoaram
as estórias das crianças, não conseguiríamos o nível de entendimento
que apresentamos nesses estudos de caso. Sem uma referência aos
estudos da crítica literária ou da mitologia, nossas interpretações não
passariam de conjecturas baseadas no senso comum (VIEIRA; SPERB,
2007, p. 18, grifo nosso).

Nas brincadeiras, parece que algumas narrativas são repetidas, retomadas


com diferentes desdobramentos, aprofundadas, ou resgatadas com menos
elementos (VIEIRA; SPERB, 2007). Nesses movimentos, a criança pode estar
levantando hipóteses de como lidar com as situações do dia a dia dela, pensando
em possíveis consequências das ações que planeja efetivar.

As narrativas são formadas por pensamentos, impressões, imaginações,


descobertas, dúvidas, questionamentos, informações obtidas na mídia, na escola,
no lar, na igreja, na esfera dos sonhos, nas realidades, nos aspectos culturais, artísticos
etc. (VIEIRA; SPERB, 2007). Por exemplo, quanto aos sonhos, Sanches e Silva (2018)
articulam relações entre elementos oníricos, o brincar na infância e as narrativas.
À vista disso, a criança não inventa as narrativas, no momento da brincadeira, de
maneira, totalmente, despretensiosa. Talvez, ela nem se dê conta dos motivos
que a levam a narrar, mas eles têm funções relevantes (VIEIRA; SPERB, 2007).

Para Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), o conteúdo das narrativas não surge do
nada, nem o jeito de contá-las é adotado aleatoriamente. Tudo o que envolve as
narrativas tem porquês, e está emaranhado com a subjetividade, a identidade, os
sentimentos, os pensamentos daquele que narra. É possível que o narrador nem
perceba que revela tanto de si ao narrar.

O que observamos é que, através da construção das imagens e das


narrativas, a criança procura organizar o fluxo de acontecimentos em
termos de uma experiência que faça, para ela, algum sentido, isso,
de maneira que ela possa reagir a essa experiência e participar, de
algum modo, da construção da sua própria vida. A construção dessa
experiência não poderia se dar de outro modo senão através de uma
linguagem, seja linguística, através da palavra e da narrativa, ou
através da imagem. Demonstramos, aqui, que o momento de brincar,
em psicoterapia, é um momento de construção de um texto sobre a
própria vida, seja, esse texto, produzido através da linguagem ou
da imagem. O terapeuta é o ouvinte e o interlocutor, aquele que, ao

75
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

mesmo tempo, escuta e que interpela a criança autora do próprio


texto. O texto produzido pela criança são as narrativas que a auxiliarão
a encontrar um sentido para a sua vida, construindo, assim, a sua
própria representação da vida e a sua própria experiência de vida.
Sem esse ato de construção de sentido, não há representação mental
possível da vida, sendo, esta, apenas, uma sequência de eventos dos
quais a criança tem pouco a ver e a dizer. É, portanto, a partir desse ato
de construção de sentido, que a criança ensaia uma primeira tentativa
de tomar posse da própria vida, o que ocorrerá, de fato, somente
quando se tornar adulto (VIEIRA; SPERB, 2007, p. 18, grifo nosso).

No que se refere à representação da vida, relacionada com as narrativas,


Gullestad (2005) aponta que as narrações possibilitam construções e representações
de eus.

Ainda que, com um outro viés, o estudo de Sanches e Silva (2018),


também, aponta que a composição de relatos e de narrativas pode ter a função
de ordenar as coisas na vida da criança. Assim, ela se apropria de elementos,
vasculha situações, e, com as narrativas, atribui novos sentidos.

Viana, Imbrizi e Jurdi (2017) acrescentam que a produção de narrativas


auxilia a criança a se posicionar perante o mundo.

Para Sanches e Silva (2018), os sentidos podem ser testados, movidos,


invertidos, revistos, reordenados, reconstruídos, modificando, assim, a percepção
e a interpretação do que se vivencia.

Gullestad (2005), também, teceu reflexões a respeito das significações


das lembranças de infância que são provisórias, ou seja, essas significações são
modificáveis, versáteis, pois as pessoas podem construir novos sentidos para
situações vivenciadas no passado, com base nas vivências atuais (leituras, peças
de teatro, filmes, diálogos, sonhos, pensamentos etc.).

Ao observar crianças brincando com bonecas, pode-se notar que, de vez


em quando, emergem falas e ações por parte delas, pois estão reproduzindo
o modo através do qual os adultos lidam com elas, ou lidam com crianças do
convívio. Às vezes, elas empregam as frases mais repetidas pela mãe, pelo pai,
pelo professor etc. Por exemplo, a criança ouve inúmeras vezes a mãe lhe dizer:
“Tem que comer tudinho pra ganhar a sobremesa!”. Ao brincar com a boneca, a
criança assume o papel de mãe, e fala a mesma frase, várias vezes, para a boneca.

76
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

FIGURA 4 – CRIANÇAS BRINCANDO - JORGE MORI

FONTE: <encurtador.com.br/vEQRV>. Acesso em: 15 maio 2021.

Sanches e Silva (2018), ainda, dão ênfase aos aspectos éticos, estéticos,
sensíveis que fazem parte das narrativas das crianças.

Agora, vamos saber um pouco mais de alguns aspectos metodológicos


da pesquisa feita por Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), e que abordou a infância
articulando narrativas ao brincar?!

Trata-se de uma experiência de um projeto de iniciação científica conduzido


sob a perspectiva qualitativa. Quanto aos aspectos metodológicos, destacam-se:
observação participante, elaboração de diários de campo e elaboração e análise
de duas narrativas sobre o brincar com crianças (VIANA; IMBRIZI; JURDI, 2017).

Foram produzidas duas narrativas sobre o encontro com as crianças,


a fim de se aproximar dos processos de interpretação e de significação
do mundo delas, suas posições perante ele e o papel que assumem nas
instituições que frequentam, assim como o acolhimento da escola em
seu território. As narrativas foram produzidas, tendo, como mote, o
convite para que a criança brincasse com o pesquisador, que portava
uma caixa de material com artigos de papelaria e jogos diversos, que
serviam de disparadores para as brincadeiras. Em todos os encontros,
pesquisador e participante da pesquisa brincaram durante todo o
tempo juntos, sem planejamento prévio de atividades ou jogos, mas
investidos de criatividade. As brincadeiras não se propuseram, em
nenhum momento, a ser temáticas e/ou abordar assuntos específicos.
Optou-se por entrar em contato com aquilo que emergisse do encontro,
e fazer, dessa espontaneidade, material de análise e discussão dos
dados produzidos (VIANA; IMBRIZI; JURDI, 2017, p. 5).

77
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Que tal articularmos alguns dos resultados obtidos com essa pesquisa, de
Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), com as Figuras 1 e 2? Antes de dar continuidade à
leitura, observe, novamente, essas duas figuras. Elas condizem com o que temos
visto no dia a dia atual?

Para Viana, Imbrizi e Jurdi (2017), a infância não pode ficar restrita às
paredes, muito menos, à solidão. A infância urge por espaço para transbordar.
As escolas podem ajudar nesse sentido, já que permitem a interação das crianças
com outras e com pessoas adultas.

Não convém que as crianças permaneçam em isolamento social nos


turnos nos quais não estão na escola. Essa situação vem ocorrendo em muitos
municípios brasileiros nas últimas décadas, e só foi intensificada pelas medidas
de prevenção da pandemia, que atingiu, representativamente, o Brasil, a partir de
2020. Tão logo essa pandemia cessar, vamos propor mais atividades lúdicas ao ar
livre para as crianças?

Vamos brincar na escola e produzir escolas brincantes. Novas


passagens, brincadeiras de roda, pés descalços. O mundo carece
do novo. Brincar é urgente. Brinquemos, pois, na escola, até que os
muros caiam e os espaços todos sejam educadores, (de)formativos e
emancipatórios de novas crianças em nós (VIANA; IMBRIZI; JURDI,
2017, p. 11).

Agora que já tivemos contato com narrativas de crianças institucionalizadas,


e com narrativas acerca do brincar, produzidas por crianças, vamos refletir a
respeito da infância relembrada pelo narrador adulto? Esse é o tema do próximo
subtópico, vamos lá?!

4 NARRATIVAS SOBRE INFÂNCIA A POSTERIORI


A partir de agora, estudaremos as narrativas que tratam da infância,
mas que não são proferidas durante a infância. Em outras palavras, veremos as
especificidades das narrações emitidas por jovens, adultos ou idosos em relação
às infâncias deles.

Comecemos com um exemplo que envolve o uso de imagens para


representar a infância a posteriori. Você já ouviu falar do pintor Ricardo Ferrari?
Ele fez algumas telas, as quais foram intituladas Telas Inspiradas Pela Infância,
como mostrará a figura a seguir:

78
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

FIGURA 5 – TELAS INSPIRADAS PELA INFÂNCIA - RICARDO FERRARI

FONTE: <https://www.guiadasartes.com.br/ricardo-ferrari/obras-e-biografia>.
Acesso em: 15 maio 2021

Quando essas telas foram pintadas por Ricardo Ferrari, ele já era adulto.
Assim, retomou lembranças do passado para retratar. Observe o discurso dele
que menciona isso no Uni a seguir.

NOTA

O desenho, seguido da pintura desses meninos, proporciona-


me uma amplitude tão grande em termos de temas que
partem dessa relação com a infância, que é, para mim,
bastante lúdica. O que mais me atrai, talvez, seja essa ideia
da brincadeira. Eu morei em Belo Horizonte quando a cidade
era conhecida por ser um imenso quintal, onde as crianças
podiam brincar na rua. Em torno disso, tem um sentimento de
alegria, de liberdade que move bastante. [...]
Ricardo Ferrari, em Telas Inspiradas pela Infância. Jornal O
Tempo, 18.9.2013 (REVISTA PROSA, VERSO E ARTE, s.d., s.p.).

FONTE: <https://www.revistaprosaversoearte.com/a-crianca-e-eterna-nas-pinturas-de-ricardo-
ferrari/>. Acesso em: 15 maio 2021.

Releia, atentamente, essas ponderações de Ricardo Ferrari, e observe


como se articulam às palavras de Gullestad (2005, p. 509):

O vínculo entre o eu da criança e o eu do adulto é o corpo enquanto


repositório de memórias e sistema de ação, e o exame profundo e
contínuo das experiências de infância é, geralmente, considerado uma
parte central e natural da representação da pessoa adulta.

79
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Gullestad (2005) fez um estudo que envolveu a autobiografia e a história


de vida com base nas rememorações de infância, articulando-a à reflexividade, à
modernidade e à formação do eu.

O intuito de Gullestad (2005) é propor olhares para as histórias de vida


sob os prismas da crítica literária, da história e das ciências sociais, por meio
de aproximações entre esses distintos campos do saber, com diálogos entre eles.
Assim, as análises das histórias de vida não se pautariam, unicamente, em um dos
campos do saber, mas, sim, nas associações deles. Isso vale para as autobiografias
escritas e para aquelas obtidas através das entrevistas.

Gullestad (2005), ainda, destaca que, cada vez mais, as reminiscências da


infância vêm servindo de material para a elaboração de narrativas autobiográficas.

As recordações de infância vêm sendo exploradas para a “construção do


eu moderno” (GULLESTAD, 2005, p. 509). Isso significa o empenho incessante que
cada pessoa aplica nas tentativas de associar os diversos papéis que já assumiu ao
longo da vida, além das experiências e das identidades.

Meu argumento é que um enfoque da infância deveria se tornar central


nas atuais tentativas teóricas de reconfigurar as relações entre textos e
vidas, porque ele intensifica e esclarece as discussões sobre a verdade
e a autenticidade nas narrativas autobiográficas. Além disso, o estudo
das conexões entre o textual e o social, nas histórias de vida, melhora
nossa compreensão do papel das memórias de infância na construção
e na objetificação dos eus modernos (GULLESTAD, 2005, p. 511).

Para Gullestad (2005), a pertinência e a magnitude desse novo olhar para


com as reminiscências de infância se pautam no fato de que elas vêm assumindo um
papel significativo nas narrativas de vida, no que tange, pelo menos, a três aspectos:

• Quantidade.
• Intensidade.
• Centralidade.

Curiosamente, ainda que as narrativas sobre a infância pareçam estar


se tornando mais frequentes, elas continuam recebendo pouquíssima atenção
teórica. São dados intrigantes em termos de aspectos culturais da modernidade
(GULLESTAD, 2005).

Em outros termos, experiências transcorridas na infância vêm sendo,


dia após dia, mais expressas (redigidas, faladas, pintadas etc.) e examinadas,
demonstrando-se como partes centrais da criação de representações do eu adulto. Em
contrapartida, essas experiências parecem naturalizadas, ignoradas, e, até mesmo,
marginalizadas por teóricos de diversificados campos do saber (GULLESTAD, 2005).

80
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

Gullestad (2005) esclarece que as narrativas de crianças vêm sendo


utilizadas com diferentes objetivos. Historiadores e cientistas sociais olham para
elas com outras perspectivas, em comparação aos críticos literários, por exemplo.

Se levarmos em conta os exemplos de pesquisa que já vimos aqui, nesta


unidade, podemos depreender que psicólogos buscam suscitar a produção de
narrativas por parte das crianças, a fim de estabelecer um vínculo com elas, uma
aproximação, e para acessar alguns aspectos da vida dessa criança, para planejar
intervenções para promover a saúde mental dela.

Um professor de língua portuguesa, por sua vez, pode propor a escrita


de narrativas das crianças, com um enfoque na aprendizagem de conteúdos da
língua relacionados à produção textual.

Pesquisadores de diferentes áreas podem instigar as narrações das


crianças, com o intuito de compreender como a infância vem se apresentando
na atualidade (ao ouvir crianças hoje), ou de resgatar a infância nas décadas
anteriores (ouvindo jovens, adultos hoje). O quadro a seguir clarificará essas questões.

QUADRO 1 – DIFERENÇAS ENTRE PROFISSIONAIS QUE ANALISAM NARRATIVAS

Analistas de textos.
Historiadores.
Críticos literários.
Cientistas sociais.
Teóricos literários.
Extrair informações dos cursos de vida. Vê-las como narrativas, para
Examinar o que marcou a vida de quem obter insights sobre os aspectos
Objetivo
está narrando, e/ou como significou particulares e únicos dos autores
isso, como compreende isso. das próprias vidas.
Enfoque A vida. Os fatos objetivos. A história. A criatividade. O estilo.
Os produtores de narrativas são,
frequentemente, chamados de
Autores/ Os autores, geralmente, são
sujeitos de pesquisa. Pessoas dos mais
Produtores grandes escritores.
diversificados grupos da sociedade
podem fazer parte das pesquisas.
As narrativas de vida não são
experiências, nem acontecimentos
propriamente ditos. Elas são relatos de Situam as autobiografias entre a
experiências e de acontecimentos. história e as literaturas imaginativa
Especificidades Em geral, consideram a riqueza dos e criativa, embora mais perto da
relatos de vida escritos e orais como criatividade do que da história.
impureza, pois, para eles, a reflexão
posterior "distorce" as informações dos
acontecimentos antecedentes.

FONTE: Adaptado de Gullestad (2005)

81
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Quanto ao aspecto “autores/produtores”, podemos perceber que o estudo


de Viana, Imbrizi e Jurdi (2017, p. 11) contou com crianças “do morro”:

Mas a escola, ainda, é um espaço de resistência para a infância que


encontramos ali no morro. Ela, ainda, é refúgio, e tem agentes para
regar o solo e dar novos frutos, florescer outras primaveras. A escola é
o espaço das crianças, e é necessário o protagonismo ativo delas para a
construção e o aprimoramento. O fato de uma escola estadual do morro
Vila Progresso, na cidade de Santos, ter oferecido o espaço para a nossa
proposta de pesquisa, pode ser indício de que as instituições escolares
estão abertas para inovações que estão pautadas em procedimentos
metodológicos que priorizam o brincar com as crianças.

Viana, Imbrizi e Jurdi (2017) acrescentam que, no que diz respeito aos
pesquisadores das ciências sociais, é necessário que se sensibilizem diante da
infância, e que busquem contribuir com a ciência, por meio da produção de
conhecimento acerca da infância, que vá além do que é esperado, das expectativas
dos próprios pesquisadores e do que já foi instituído. Afinal, pesquisar sobre a
infância é assumir responsabilidade e comprometimento com ela.

ATENCAO

Você se lembra de que, na unidade anterior, mencionamos a dicotomia entre


realidade/verdade e ficção/imaginação?

A diferença entre o eu que narra e o eu que foi atinge o seu auge


quando as pessoas narram as experiências da infância. Nesse
sentido, as lembranças da infância podem ser consideradas como
"infâncias imaginadas" (GULLESTAD, 2005, p. 509, grifos nossos).

Não deixe passar despercebido o que o quadro anterior mostra disso! Conforme
Gullestad (2005), essa dicotomia entre fato e ficção inquieta as ciências sociais e a análise
literária, ainda que de maneiras distintas:

Também, quero contestar o pressuposto, profundamente,


arraigado na modernidade ocidental, de que existe uma
contradição fundamental entre verdade e autenticidade, por
um lado, e construções literárias, pelo outro. Os narradores
costumam recorrer a meios literários ou imaginários
para construir um relato, aproximadamente, autêntico de
experiências, a partir do ponto de vista da criança no passado
narrado (GULLESTAD, 2005, p. 527, grifos nossos).

Você se lembra de ter lido, em algum parágrafo das páginas antecedentes,


que as lembranças da infância são provisórias? Como isso se relaciona com a
verdade e com a autenticidade?

82
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

NOTA

Darei um exemplo pessoal que ocorreu hoje mesmo, comigo, para ilustrar
essa provisoriedade das lembranças.

Hoje, fui até a costureira buscar uma boneca com a qual brinquei durante muitos
dos anos da minha infância. Ainda que eu tenha cuidado muito dela, e guardado, até hoje,
com carinho (estou com 38 anos), o tronco da boneca, que era de plástico, ressecou-se
e se espatifou. Tornou-se impossível colar as partes do tronco, pois, mesmo com toda a
cautela, o simples ato de pegar cada pedaço com os dedos os despedaçava ainda mais. Por
outro lado, a cabeça, os braços e as pernas da boneca estavam em perfeito estado, pois são
de outro material.

Levei a boneca até a costureira dias atrás, e, hoje, ela estava pronta. Logo depois
que a busquei, visitei o meu pai, e eu estava com essa boneca na mão quando ele me
viu. Jamais imaginei que ele fosse se lembrar dela. Sempre fomos próximos, apegados,
entretanto, lembro-me de que meu pai trabalhava o dia todo, então, não fazia ideia de que
ele reconheceria a boneca.

Para minha surpresa, assim que a viu, ele disse:

– A Chuquinha! Você ainda tem essa boneca, filha? O que aconteceu com ela? Ela não era
assim no formato original.

Essas falas do meu pai modificaram as minhas memórias – ou, no mínimo,


minhas impressões sobre elas. Se ele recordou o nome da boneca, e percebeu que o corpo
dela estava diferente, significa que ele, certamente, foi muito mais presente do que eu me
recordava. Essa não foi a única alteração de memórias que esse evento acarretou.

Meu pai deu seguimento ao diálogo:

– Lembro-me, exatamente, do dia em que comprei essa boneca. Era uma véspera de
feriado. Era a véspera do dia das crianças. Naquele dia, passei o dia todo pensando no que
compraria para você quando o meu expediente, no trabalho, acabasse.

Uau! Até hoje, eu achava que as compras dos meus brinquedos eram de
responsabilidade da minha mãe. Nunca pensei que ele tinha comprado algum brinquedo
para mim! Isso porque, nas minhas reminiscências, ele era muito ocupado.

[...] As experiências ulteriores e as preocupações do autor


no seu presente dão outras cores às lembranças de infância,
tornando as narrativas de vida, inerentemente, instáveis.
As memórias de infância costumam ser, continuamente,
reinterpretadas e retrabalhadas (e, num certo sentido, até
repetidas), segundo o tipo de vida que uma pessoa leva. À luz
de novas experiências, a avaliação de certos acontecimentos,
ou períodos, costuma mudar. Com isso, uma infância narrada
pode mudar constantemente, e depender do que está
ocorrendo no presente do narrador. Outro argumento é que
as memórias de infância são reconstruídas a partir de uma
distância no tempo, e têm uma natureza particular. Por causa da
distância no tempo, elas são meio esquecidas e obscuras. Por
causa da natureza particular, elas não podem ser, facilmente,
verificadas (GULLESTAD, 2005, p. 524, grifos nossos).

83
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Note o quanto esse diálogo, tão curto, entre mim e meu pai, ressignificou parte das
minhas lembranças sobre a minha história de vida. Minhas memórias se mostraram instáveis,
e os sentidos que eu tinha construído sobre elas, até então, foram reinterpretados, revistos,
retrabalhados, reconstruídos, com base nessa experiência que vivi hoje. Posso dizer que minhas
memórias, ou que, pelo menos, os meus sentidos sobre as minhas memórias, mudaram.

NOTA

Já que citei um brinquedo que, certamente, marcou a infância de muitas


crianças na década de 80/90, resolvi partilhar a foto de uma Chuquinha com vocês.
Talvez, algum dos leitores se lembre dessa boneca a partir da figura. Quiçá olhar para ela
desemboque no resgate de alguma lembrança sua:

BONECA CHUQUINHA

FONTE: <https://www.voceselembra.com/2020/04/boneca-chuquinha.htm>.
Acesso em: 15 maio 2021.

NOTA

Segue outro exemplo da provisoriedade das lembranças de infância:

Conheço uma mulher que sempre se queixava de que a mãe dela era muito
ausente, e que a mãe nunca se importou com ela, desde que nasceu. Esse discurso emergia
com frequência, e as duas tinham sérios problemas de relacionamento.

84
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

Um dia, eu a visitei, e ela me mostrou as fotos de infância dela. Como temos


idades semelhantes, notei que as roupas que ela vestia nas fotos eram muito diferentes do
que as minhas. Questionei se ela sabia a procedência daquelas roupas tão “excêntricas”. Ela
ficou pensativa, mostrou-se emocionada, e falou que a mãe era costureira, e todas aquelas
roupas tinham sido feitas por ela.

[...] Numa autobiografia, a parte da infância pode ser lida como


o produto de um diálogo entre a criança que o autor foi e o
adulto que ele, ou ela, é então. As memórias de infância não são
apenas, parcialmente, esquecidas, também, são, parcialmente,
lembradas [...]. Como todas as memórias, as de infância não
são, apenas, inerentemente, instáveis, como, também, um
tanto contínuas (GULLESTAD, 2005, p. 524).

Também, notei que ela tinha uma grande quantidade de álbuns de foto de infância,
muito acima do que eu estava habituada a ver nas casas de outras pessoas da nossa faixa
etária. Os custos com a revelação eram um tanto quanto caros na época. Se os pais dela
gastaram tanto dinheiro com essas fotografias, certamente, valorizavam a menina, afinal,
ela estava na maioria das fotos.

Em grande parte das fotos, a menina aparecia com cabelos bem arrumados, com
penteados variados. Percebi que as fotos pareciam bem centralizadas, feitas com atenção,
em cenários diferentes. Curiosa, perguntei de quem eram os créditos das imagens. Ela fez
uma expressão facial de quem estava cavando fundo nas memórias, e, em seguida, em
silêncio, ela ficou com uma expressão estarrecida. Foi, então, que ela balbuciou, em meio
às lágrimas, que quem clicou o botão da câmera, na maioria das vezes, tinha sido a mãe
dela, e que os penteados, também, eram obras da mãe.

Contar sua vida não é, apenas, um diálogo entre escritor e


leitor (ou entre contador e ouvinte), mas, também, entre o
narrador e os seus eus passados. É, exatamente, esse aspecto,
de diálogo reflexivo, que faz, dessas narrativas de vida, uma
fonte concorrida e desafiadora para as ciências sociais. Embora
o presente da escrita seja privilegiado, pois influencia a seleção
de acontecimentos do passado e colore a apresentação, a
infância do passado, também, é privilegiada, em um certo
sentido. São as experiências da infância que fornecem a base
para a aprendizagem e a criatividade ulteriores (GULLESTAD,
2005, p. 526, grifos nossos).

Seguramente, essas constatações foram muito representativas para essa mulher.


Geraram inúmeras reflexões e elucubrações a ela, tanto que eu soube que, mais adiante, ela
procurou a mãe para pedir perdão, e que o relacionamento delas melhorou muito depois disso.

Repare que esses dois exemplos ocorreram em situações cotidianas, nas quais as
narrativas, ou as rememorações, não foram provocadas por algum profissional das ciências
sociais, nem do âmbito literário. Foram circunstâncias corriqueiras que se deram entre
familiares e conhecidos.

Uma das conclusões de Gullestad (2005, p. 527) é que os profissionais de diversos


campos do saber podem juntar esforços na análise de narrativas de infância:

Neste ponto, os cientistas sociais têm muito a aprender com a


análise autobiográfica na crítica literária, mas é, também, nisso, que
o enfoque nas questões da infância tem algo a acrescentar à crítica
literária e à análise social: as reminiscências da infância podem,
em particular, ser verdadeiras sem ser, historicamente, exatas.

85
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Eu e a mulher tínhamos lembranças (ou impressões acerca de lembranças) que


nos pareciam verdadeiras, ainda que com base nas nossas percepções.

Não decidimos, deliberadamente, pensar que os nossos respectivos pais eram


pouco presentes. Não fizemos isso de propósito. Ocorre que nos faltavam elementos para
perceber que eles se importavam conosco muito além do que nós imaginávamos.

Você percebeu o quanto é difícil constatar quando uma pessoa está falando
a verdade ou a mentira nas narrativas dela?

Agora, antes de finalizarmos este momento, tente se lembrar do seguinte:


se você já foi convidado a tecer narrativas no tocante a sua infância. Caso isso,
ainda, não tenha ocorrido, é conveniente lembrarmos que, cada vez mais, as
pessoas têm se deparado com situações nas quais necessitam produzir narrativas
sobre o período de infância delas. Isso tem se tornado frequente na educação, no
âmbito profissional, na saúde etc.

Nem todas as pessoas gostam de pensar no que viveram nos primeiros


anos de vida. Outras têm dificuldades para acessar memórias da infância. Algumas
alegam que as lembranças parecem ter sido, totalmente, deletadas das cabeças delas.

Quando você precisar, ou quando quiser, voluntariamente, entrar em


contato com a sua criança interior, e com as suas memórias da infância, pode
fazer os seguintes exercícios:

• Leia um livro que apresente memórias da infância para se inspirar.

DICAS

LIVRO LER, ESCREVER E FAZER CONTA DE CABEÇA

Reforçamos a indicação
desta leitura, já citada na introdução
deste tópico:

FONTE: <encurtador.com.br/hkBQX>. Acesso em: 16 maio 2021.

86
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

• Procure fotos da sua infância com os seus pais, familiares, parentes, amigos de
infância, e, até mesmo, em escolas, nas quais tenha estudado.
• Visite os seus familiares, conhecidos/vizinhos do tempo da infância, ou amigos
de infância, e tente puxar conversas sobre situações que vivenciaram, juntos,
durante aquela fase. Pergunte o que você costumava responder à pergunta “o
que gostaria de ser quando crescer?”. Investigue se era mais agitado, calmo, e
coisas que eles lembram que você tenha feito.
• Entre na rua na qual você morava, na escola na qual estudou, na igreja que
frequentava, ou em outros lugares que tenham marcado a sua infância. Olhe,
atentamente, para esses ambientes, e fique atento às lembranças que eles
engatilharão.
• Faça uma busca dos seus diários, cadernos ou testes escolares, livros, álbuns de
figurinha. Se você não guardou nada disso, pergunte, aos seus familiares mais
próximos, se, por acaso, isso ficou na casa deles. Acredite! Alguns pais/mães
guardam mais coisas do que podemos suspeitar.
• Pesquise, nos motores de busca da internet, quais eram as brincadeiras, os jogos,
os brinquedos, a moda, as músicas, os programas televisivos mais famosos da(s)
década(s) equivalente(s) a sua infância.
• Assista a algum episódio/trecho de série, desenho animado, novela, ou filme
que tenha marcado a sua infância.
• Faça um passeio em um museu de brinquedos e de brincadeiras.

DICAS

Pesquise se, no seu município, ou Estado, existe algum museu de brinquedos.


Por exemplo, em Santa Catarina, está localizado o Museu do Brinquedo Pomerode. Se você
não encontrar museus, como esse, perto da sua moradia, recomendamos que visite os
museus virtualmente, ou que procure museus de hábitos e de costumes.

MUSEU DO BRINQUEDO POMERODE

FONTE: <https://www.gazetadopovo.com.br/turismo/cidade-mais-alema-do-brasil-
ganha-museu-com-brinquedos-antigos/>. Acesso em: 17 maio 2021.

87
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

DICAS

Olhe, atentamente, para a figura que segue, e veja se alguma cena retratada
nela te evoca memórias. Observe que boa parte das brincadeiras, ali, retratadas, ainda, é
preservada em algumas regiões do Brasil. O ideal é que você procure essa figura na internet,
e aproxime o máximo que puder (zoom):

JOGOS INFANTIS (1560) – PIETER BRUEGEL

FONTE: <https://www.mackenzie.br/fileadmin/OLD/47/Editora/REMEF/Remef_6.3/Artigo_03.pdf>.
Acesso em: 15 maio 2021.

DICAS

Antes do desfecho deste tópico, que tal uma pausa para nos permitirmos um
momento de fruição? Trata-se da leitura do poema Infância, de Carlos Drummond de Andrade:

INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.


Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia
Eu sozinho, menino entre mangueiras
lia história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu


a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

88
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E INFÂNCIA

Minha mãe ficava sentada cosendo


olhando para mim:
- Psiu... não corde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava


no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história


era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

FONTE: <https://www.escritas.org/pt/t/10931/infancia>. Acesso em: 15 maio 2021.

89
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Seria ideal que as crianças (institucionalizadas ou não) encontrassem ocasiões


nas quais pudessem se expressar com liberdade, sem coação.

• Profissionais que atuam com crianças, e pesquisadores, precisam desenvolver


habilidades atinentes ao saber ouvir.

• Aproximações significativas entre o adulto, que almeja coletar narrativas da


infância de crianças, requerem comportamentos acolhedores por parte dele, e
que se conecte com a sua criança interior.

• Escolas são ambientes que podem favorecer a interação entre as crianças e com
os profissionais que, ali atuam.

• Várias escolas não estão explorando as condições favoráveis que possuem de


promover a interação e o brincar. Elas não têm oferecido momentos, ambientes e
ocasiões adequados para o brincar.

• As narrativas produzidas pelas crianças dão sinais dos processos de percepção,


de interpretação e de significação do mundo delas.

• As narrativas de uma criança fornecem indícios sobre os modos através dos


quais essa criança se posiciona diante do entorno dela.

• O brincar é um dos geradores de narrativas em crianças que vem sendo


utilizado por pesquisadores e terapeutas.

• As significações de reminiscências da infância são provisórias, mutáveis. Elas


vão sendo revistas, ampliadas, modificadas na medida em que a pessoa acessa
novas informações, novas lembranças, novos sentimentos etc.

• As narrativas autobiográficas, que abrangem rememorações da infância, vêm


sendo suscitadas e empregadas com vistas à construção do eu.

• Diferentes profissionais podem precisar de narrativas de infância, e as


finalidades e os encaminhamentos posteriores a essas narrativas, também,
podem variar.

90
AUTOATIVIDADE

1 Com base na sua leitura desta unidade, emergiram algumas das suas
memórias de infância? Registre algumas delas. Esse registro poderá ser
útil, em algum momento, para você.

2 Leia o texto que segue:

“A ESCUTATÓRIA” - Rubem Azevedo Alves.

“Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de


escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a
ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai
se matricular. Escutar é complicado e sutil…

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é
dito, é preciso, também, que haja silêncio dentro da alma”. Daí a dificuldade:
a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem, logo, dar um palpite melhor,
sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer…

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa


arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos,


estimulado pela revolução de 64. Contou-me da experiência dele com os
índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio.
(Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados
em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as ideias estranhas).
Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos.


E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não
ouvia. Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos


interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece
no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz
mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres
dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não
havia, que, de tão linda, faz-nos chorar.

Para mim, Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância
de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a
beleza do outro e a beleza da gente se juntam em um contraponto. Ouçamos

91
os clamores dos famintos e dos despossuídos de humanidade que teimamos
a não ver, nem ouvir. É tempo de renovar, se mais não fosse, a nós mesmos, e,
assim, tornarmo-nos seres humanos melhores, para o bem de cada um de nós.

É chegado o momento, não temos mais o que esperar. Ouçamos o humano


que habita em cada um de nós e clama pela nossa humanidade, pela nossa
solidariedade, que teima em nos falar e nos fazer ver o outro que dá sentido,
e é a razão do nosso existir, sem o qual não somos e jamais seremos humanos
na expressão da palavra”.

FONTE: <https://amominhaidade.com.br/saude/texto-de-rubens-alves-a-escutatoria-que-
traz-uma-visao-sabia-e-muito-pertinente-para-os-dias-de-hoje-sobre-a-arte-de-escutar/>.
Acesso em: 15 maio 2021.

Agora, responda: De que maneira esse texto pode ser articulado ao que
aprendemos neste tópico?

3 “A infância é um tema de interesse nas pesquisas e nas produções


acadêmicas, nas ciências humanas e sociais” (VIANA; INBRIZI; JURDI,
2017, p. 1). Como você responderia à seguinte pergunta feita por Viana,
Imbrizi e Jurdi (2017, p. 1): “As crianças têm tido voz para dizer quem são
elas e o que é ser criança”? Justifique a sua resposta.

4 Leia o parágrafo que segue, e, em seguida, registre alguns tópicos que


abarquem o que você compreendeu a respeito dele:

Neste respeito, pode ser útil distinguir a infância como tema, por


um lado, da infância como assunto, por outro. O tema seria o que
o narrador descobre no seu assunto, ou seja, o desenvolvimento
narrativo da significação encontrada em acontecimentos e em
experiências. Muitas histórias de vida exemplificam temas adultos
no assunto infância. Além disso, elas podem conter descrições
ocasionais de emoções infantis intensas e longos trechos a respeito
das práticas e das rotinas da vida cotidiana na infância. A meu ver,
a descrição ocasional de momentos de intensa emoção pode conter
um vislumbre do que pode ser "ser uma criança" (GULLESTAD,
2005, p. 527).

5 No tocante ao resgate de memórias, que é estimulado no ambiente escolar,


abrangendo aspectos da vivência das crianças, e, consequentemente,
também, aspectos da personalidade e da consciência, Braga e Smolka (2020,
p. 194) esclarecem que,

ao narrar sobre o que se torna significativo em sua vivência, ao


colocar a vida em perspectiva, a criança se abre para o futuro:
“E é só, por enquanto”. Compartilhamos, com ela, essa abertura,
o inacabado, e reiteramos as possibilidades, sempre, de futuras
elaborações, das memórias do futuro.

FONTE: BRAGA, E. dos S.; SMOLKA, A. L. B. Memória e sentido na narrativa de crianças:


inspirações vygotskianas para a pesquisa na escola. Cadernos CEDES [online], v. 40, n. 111, p.
185-197, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/CC231666. Acesso em: 24 abr. 2021.

92
Frente ao exposto, classifique V para as asserções verdadeiras e F para as
falsas:

( ) Em conformidade com a concepção vygotskiana, o discurso, e, mais


especificamente, a narrativa, são considerados instâncias privilegiadas na
constituição da memória e da subjetividade.
( ) Em algumas narrativas redigidas por crianças, pode-se encontrar,
eventualmente, a incorporação de palavras alheias. Em contrapartida, essas
palavras, também, tornam-se constitutivas da subjetividade da criança.
( ) A memória infantil não sofre influência da memória familiar. As narrativas
que as crianças escutam desde pequenas, a respeito do que elas próprias
vivenciaram, não interferem nas memórias que ficaram registradas no
aparato cognitivo delas.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) F – F – V.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – V – F.

6 Para Dias e Landeira-Fernandez (2011, p. 22), “a memória autobiográfica se


desenvolve, de acordo com os estímulos recebidos que rodeiam a criança,
principalmente, da mãe, da sociedade, da cultura”. Dessa maneira, analise
as asserções que seguem:

FONTE: DIAS, L. B. T.; LANDEIRA-FERNANDEZ, J. Neuropsicologia do desenvolvimento


da memória: da pré-escola ao período escolar. Neuropsicologia Latinoamericana, Calle,
v. 3, n. 1, p. 19-26, 2011. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S2075-94792011000100003&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 27 ago. 2021.

I- O desenvolvimento da habilidade narrativa, entre dois e cinco anos, é


primordial para a memória autobiográfica.
II- O desenvolvimento da linguagem, no período da pré-escola, é
desvinculado dos processos mais elaborados da memória.
III- Nos primeiros anos da pré-escola, os processos de memória explícita estão
relacionados com os processos de planejamento mental de tarefas.
IV- Conforme a criança vai organizando a própria narrativa e vai sendo
estimulada com ajuda externa, a memória vai se estruturando.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) São corretas as asserções I, II e IV.
b) ( ) São corretas as asserções I, III e IV.
c) ( ) São corretas as asserções I e II.
d) ( ) São corretas as asserções II e IV.

7 No estudo que fez das relações entre narrativas feitas na infância, para a
evocação de memórias, Medeiros (2010, p. 325) constatou que, “por meio da
análise das elaborações das crianças, na comunicação das lembranças delas

93
através de narrativas, observa-se como se configura a habilidade das crianças
para estabelecer relações entre tempos”. No tocante às narrativas elaboradas
por elas, classifique V para as assertivas verdadeiras e F para as falsas:

FONTE: MEDEIROS, A. B. de. Crianças e narrativas: modos de lembrar e de compreender o


tempo na infância. Cadernos CEDES [online], v. 30, n. 82, p. 325-338, 2010. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0101-32622010000300004. Acesso em: 24 abr. 2021.

( ) A produção de narrativas, na infância, equivale, tão somente, à repetição


do passado.
( ) A escrita da narrativa é uma das maneiras de retomar memórias e de
reconstruir sentidos para momentos vivenciados.
( ) A atitude narrativa é, essencialmente, criadora, já que é, sempre, nova,
diante do repensar no passado.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F.
b) ( ) F – V – V.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – V – F.

94
TÓPICO 2 —
UNIDADE 2

NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS:
APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, abordaremos a utilização de narrativas autobiográficas, com
a finalidade de promover a aprendizagem e a formação acadêmica.

Certamente, você perceberá, com este tópico, que o aproveitamento das


histórias de vida, com vistas à formação acadêmica, ocorre de diversificadas
maneiras, e com objetivos específicos distintos.

Por vezes, a intenção é refletir sobre si próprio, compreender o seu


percurso histórico, retrabalhar decisões tomadas, ressignificar escolhas ligadas à
vida profissional etc.

Não há espaço, neste livro, para que possamos examinar, com


profundidade, todos os estudos citados neste tópico, portanto, de antemão,
incentivamos que você procure ler, na íntegra, os artigos que mais chamarem a
sua atenção. Todos eles estão disponíveis, gratuitamente, na internet.

Com este tópico, você constatará que existem inúmeras formas de


conduzir propostas de exploração de histórias de vida, pois poderá observar,
resumidamente, alguns relatos muito heterogêneos em sua natureza e objetivos,
que partiram de narrativas sobre si próprio, e com foco na formação (JOSSO,
1999). Para tanto, entraremos em contato com a condução de projetos que almejam
oportunizar a exploração biográfica, alinhavando-a à formação acadêmica.
Poderemos perceber que projetos que englobam a história de vida podem ser
conduzidos com crianças, adolescentes e adultos, nos mais variados níveis de
formação acadêmica.

Teremos acesso a alguns estudos que salientaram o uso de histórias de


vida com os estudantes do ensino médio, e, por fim, do ensino superior. Vamos
iniciar com os estudos que exploram o emprego de histórias de vida, colocadas a
serviço de projetos?!

95
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

2 PROJETOS
Josso (1999) esclarece que trabalhos biográficos podem ser conduzidos
com base em experiências de vida, ou tendo algo como elemento norteador,
como na abordagem temática. Até mesmo itinerários podem ser usados nesses
trabalhos. Nesse sentido, Josso (1999) prefere adotar a expressão “histórias de
vida”, precisamente, entre aspas. Afinal, quando elas são postas a serviço de
projetos, são, imprescindivelmente, ajustadas e circunscritas ao foco imposto
pelo projeto do qual fazem parte. “Ao passo que as histórias de vida, no sentido
pleno do termo, para os membros da nossa rede, abarcam a totalidade da vida em
todos os seus registros, nas dimensões passadas, presentes e futuras, e, portanto,
na sua dinâmica global” (JOSSO, 1999, p. 18). Assim, Josso (1999) distingue
dois procedimentos de histórias de vida, que são guiados por dessemelhantes
objetivos teóricos, como mostrará o quadro a seguir:

QUADRO 2 – PROCEDIMENTOS DE HISTÓRIAS DE VIDA

Dois tipos de objetivos teóricos


Deslocamento do posicionamento Delimitação de um novo território de
do pesquisador. reflexão que abarca a formação.
Refinamento de metodologias de Contribuições do conhecimento
pesquisa-formação. de metodologias.
Foco na construção de uma história de vida. Foco na autoformação.
Visa diferenciar melhor as modalidades e os
papéis desempenhados no processo, as etapas Visa conduzir processos de formação
e os projetos de conhecimento específicos para específicos, com públicos particulares.
a pesquisa-formação.

FONTE: Adaptado de Josso (1999)

De acordo com Josso (1999), se os/as pesquisadores/as e os/as práticos/


as priorizarem um trabalho coletivo, de articulação teórica dos conhecimentos
biográficos produzidos no campo da formação, da autoformação, pautados
na perspectiva ético-epistemológica, o projeto teórico das histórias de vida em
formação testemunhará a vitalidade.

TUROS
ESTUDOS FU

Fique atento! Na leitura complementar, apresentada ao fim desta unidade,


você encontrará uma parte do texto de Josso (1999), que está sendo citado neste
tópico. Se você preferir ler o artigo na íntegra, acesse https://www.scielo.br/j/ep/a/
FPRNJxFHvDf8jX5Yx55ThhH/?format=pdf&lang=pt. Boa leitura!

96
TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

Josso (1999) destaca a articulação entre a subjetividade e a intersubjetividade,


isto é, a mobilização da subjetividade como modo de produção do saber. Já a
intersubjetividade enquanto suporte do trabalho interpretativo e da produção de
sentidos para os autores dos relatos.

Josso (1999), ainda, menciona os cuidados metodológicos que são


necessários, os desafios (dentre os quais, os epistemológicos), e as normas de
legitimação de um saber científico.

Na Europa, na América do Norte e na América do Sul têm se


desenvolvido, igualmente, projetos de conhecimento a partir do
desenvolvimento de “histórias de vida”, e têm sido encorajados,
sustentados, acompanhados ou supervisionados projetos de formação,
de ação ou de intervenção, utilizando as abordagens biográficas
(JOSSO, 1999, p. 14).

Ao analisar o percurso histórico dos projetos em torno das “histórias de


vida”, Josso (1999) cita dois nomes: Jean Vassileff e Jean Avezou.

Jean Vassileff foi cofundador do Instituto de Pedagogia do projeto em


Nantes. Adotou uma perspectiva sociopolítica, por meio da qual as pessoas
em formação são convidadas a trabalhar com o relato autobiográfico delas sob
o prisma de  colocar o desejo em projeto, com a finalidade de desenvolver as
capacidades de projeção de si próprias e de autonomização pessoal (JOSSO, 1999).

FIGURA 6 – CAPA DE UM LIVRO DE JEAN VASSILEFF

FONTE: <https://www.amazon.co.uk/Histoires-vie-pedagogie-du-projet/dp/2850081523>.
Acesso em: 29 maio 2021.

Quanto ao legado de Jean Avezou, está ligado à formulação de “oficinas


de escrita”, comumente, vinculadas ao desenvolvimento pessoal, com base em
narrações de si, centradas em um trabalho autobiográfico (JOSSO, 1999).

97
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Josso (1999) citou algumas tentativas voltadas para projetos profissionais,


por exemplo, em situações de reorientação profissional, de reinserção, ou, ainda,
para a necessidade de se adquirir uma nova ferramenta de trabalho. Segue um
exemplo mais detalhado:

O primeiro exemplo se refere a uma abordagem baseada na


experiência a serviço de uma avaliação de competências, tendo em
vista um novo referencial profissional desenvolvido junto a cerca
de vinte professores/as de uma escola profissional de enfermagem.
O órgão de controle da profissão, a Cruz Vermelha Suíça, acabara
de publicar o novo referencial de competências dos enfermeiros,
que deveria servir de base à redefinição dos cursos de formação
inicial e de formação contínua oferecidos no conjunto das escolas do
território helvécio. Os professores/as deveriam efetuar uma avaliação
das suas competências, tendo em vista esse referencial, a fim de
assegurar seu emprego e assegurar sua capacidade de ensinar essas
competências recém-definidas. O trabalho consistiu na construção de
itinerários individuais, desenvolvendo as experiências profissionais
ou sociais empregadas com base no novo referencial, e as diferentes
competências que os caracterizavam. Cada itinerário foi discutido por
todos os participantes, com o objetivo de colocar em evidência, da
forma mais depurada possível, os pontos fortes e fracos de cada um/a,
conduzindo à reflexão sobre as modalidades de uma legitimação ou
“validação das aquisições” pelos especialistas, após esse primeiro
trabalho de autorreconhecimento das pessoas (JOSSO, 1999, p. 18).

DICAS

Você gostaria de mais informações para conseguir imaginar ou visualizar


como um projeto semelhante ocorre na prática? Então, sugere-se que você procure pelo
documentário Como o Cérebro Cria.

COMO O CÉREBRO CRIA

FONTE: <https://saosebastiao.se.df.gov.br/escolaartografica/?p=766>.
Acesso em: 29 maio 2021.

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TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

No documentário Como o Cérebro Cria, é citado o programa inovador que


foi coordenado pelo escritor Zacharty Lazar, no Centro de Detenção de Lafayette,
na Louisiana. Esse escritor percebeu que muitas pessoas criativas estavam nas
prisões, portanto, resolveu explorar essa criatividade por meio de um trabalho
voltado aos detentos, no sentido de aprimorar as habilidades de escrita.

Para o coordenador do programa, não é certo reduzir as pessoas, que


estão aprisionadas, à pior coisa que elas fizeram. Dar, a elas, a oportunidade de
construírem narrativas é fundamental para que se enxerguem para além do crime
que praticaram. Assim, elas podem refletir sobre diversas coisas que vivenciaram,
sobre pessoas com as quais conviveram, e, até mesmo, sobre si mesmas. Enquanto
você assistir ao documentário, encontrará o depoimento de alguns detentos que
participam desse programa. Verá que, alguns deles, apontam que, ao escrever, colocam
as coisas em ordem para si. Um deles afirma que ele se encontra enquanto escreve.

Nesse programa, os detentos encontram uma ocasião na qual os outros dão


atenção às “histórias de vida” deles. Isso exemplifica o que Delory-Momberger
(2006) chama de poder socializador da atividade biográfica.

Vamos aprender, um pouco mais, sobre isso, por meio do estudo realizado
por Delory-Momberger (2006), com ênfase na história de vida, nas escrituras
de si, vinculadas à biografização e à socialização?! Essa autora realçou o uso da
história de vida com o intuito de promover mudanças qualitativas nas pessoas,
nos âmbitos pessoal e profissional. Melhor dizendo, Delory-Momberger (2006)
defende que as escrituras de si viabilizam uma mudança global na pessoa, além
de melhorar a relação dela com o saber e com a própria formação. Nesse ponto de
vista, a vida é considerada uma experiência formadora.

Para que possamos ter uma compreensão melhor desse estudo, vejamos
o resumo desse artigo:

A partir de um quadro geral de caminhos de formação, por meio


das histórias de vida, que apelam para procedimentos de exploração e
se inscrevem contra uma definição acadêmica e instrumental da
intervenção formativa, a proposta deste artigo é a de apresentar
um dispositivo particular – os ateliês biográficos de projeto. O texto
desenvolve, ao mesmo tempo, os princípios teóricos relativos a
esse dispositivo, em suas modalidades práticas, e os desafios de
formação dos quais ele é portador. O ateliê biográfico de projeto é
um procedimento que inscreve a história de vida em uma dinâmica
prospectiva que liga o passado, o presente e o futuro do sujeito, e visa
fazer emergir seu projeto pessoal, considerando a dimensão do relato
como construção da experiência do sujeito e da história de vida como
espaço de mudança aberto ao projeto de si. No quadro de um grupo de
12 pessoas, as histórias de vida individuais são o objeto de um trabalho
de exploração e de socialização que passa por atos de escritura de
si (autobiografia) e pela compreensão do outro (heterobiografia). O
procedimento de formação acionado tem, como objetivo explícito,
portanto, colocar os participantes em situação de extrair um projeto de
si profissional (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 359, grifos da autora).  

99
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Os projetos que partem de ateliês biográficos favorecem a socialização


inerente à  atividade biográfica, demandam a reflexividade biográfica dos
integrantes e ativam o processo de biografização. Por conseguinte, esses projetos
podem atingir um efeito transformador (DELORY-MOMBERGER, 2006).

O que as práticas formativas por histórias de vida fazem aparecer é a


dimensão socializadora da atividade biográfica, o papel que ela exerce
na maneira pela qual os indivíduos se compreendem a si mesmos e
se estruturam em um vínculo de coelaboração de si e do mundo social.
Ainda que tomem a forma de roteiros de ação, de construções mentais,
de episódios de conversação, de relatos de vida, as 'histórias' que
contamos sobre nós mesmos e que, em alguns casos, endereçamos a
outros, longe de nos remeter a uma intimidade inacessível, têm, como
efeito, harmonizar nosso espaço-tempo individual com o espaço-tempo
social. Harmonia que só pode ser obtida porque a sequência narrativa
que construímos, nas suas formas e em seus conteúdos, subentende
um conhecimento dos contextos, das instituições, das práticas, porque
ela configura uma racionalidade social à qual estamos misturados,
porque ela é uma mediação  entre o mundo social e nós mesmos. Nas
múltiplas ocasiões de relato que o cotidiano nos oferece,  instituindo-
nos como autor (ao menos narrativos) das 'histórias' que contamos,
não deixamos, na realidade, de participar da construção da realidade
social, enunciando-a, segundo os múltiplos motivos e as múltiplas
intrigas que nos ligam a ela (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 370,
grifos da autora). 

Assim, ao escrever sobre si própria, e ao ouvir as narrações das “histórias


de vida” de outrem, a pessoa pode se compreender melhor, refletir sobre as
próprias escolhas. Pode, até mesmo, encontrar uma ocasião oportuna para se
perdoar, para se reconstruir, para mudar as formas de encarar a vida o modo
de pensar. Isso lhe permite optar pela mudança, e passar a trilhar um caminho
diferente. Afinal, não nos constituímos sozinhos, mas, sim, na relação com o
mundo que nos cerca, na interação com os outros. Por isso, o aspecto socializador
desses projetos foi tão enfatizado por Delory-Momberger (2006).

Antes de adentrarmos no uso de “histórias de vida” voltadas ao público


do Ensino Médio, vejamos, um pouco, o estudo feito por Basso e Abrahao (2017,
p. 172), que envolveu ateliês biográficos de projetos voltados à autorregulação da
aprendizagem. Portanto, esse estudo destaca a valorização de um procedimento de
formação com ateliês biográficos, conforme podemos notar no resumo do artigo:

Este artigo teve o objetivo de compreender, por meio das narrativas


autobiográficas, como os sujeitos se percebem e se constituem como
agentes da própria formação no cotidiano de experiências escolares,
através do processo da aprendizagem autorregulada. A pesquisa foi
realizada em duas escolas da Rede Estadual de Ensino Fundamental,
localizadas no município de Porto Alegre-RS. Participaram, desse
estudo, 30 alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. A abordagem
metodológica foi baseada nos ateliês biográficos de projetos. Foram
organizadas sete sessões, em grupos de 5 a 10 alunos, com duração
de 45 minutos cada uma. Todas as etapas foram realizadas no
ambiente escolar. A análise dos resultados foi realizada por meio de
um ângulo diferenciado e inovador, inspirado na compreensão cênica.

100
TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

Os resultados evidenciaram três cenas que revelaram as relações dos


múltiplos sujeitos envolvidos, a compreensão de si por meio da escuta
do outro e as cenas esquecidas ou reprimidas. As etapas vivenciadas
nos ateliês ajudaram os alunos participantes a compreenderem como
eles se constroem enquanto alunos e como se auto-organizam para
regular as suas aprendizagens, para superar obstáculos e para se
adaptar ao mundo escolar. Concluiu-se que a abordagem inspirada nos
ateliês biográficos de projetos pode auxiliar na reflexão dos processos
de autorregulação da aprendizagem, inserindo-se, adequadamente,
em uma dinâmica evolutiva do percurso educativo.

Esse estudo apontou que os ateliês biográficos de projetos dão destaque


e relevância à experiência e à experimentação das numerosas estratégias
autorregulatórias. Essas estratégias são oportunas e significativas para desenvolver
o aprender a aprender, e para expandir e aprimorar o processo de aprendizagem
como um todo (BASSO; ABRAHAO, 2017).

Na prossecução, acompanharemos o uso de “histórias de vida” no Ensino


Médio. Boa leitura!

3 ENSINO MÉDIO E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS


Agora, entraremos em contato com duas experiências que envolveram o
uso de narrativas autobiográficas e relatos de história de vida no Ensino Médio. A
primeira experiência ocorreu na disciplina de história, e, a segunda, na disciplina
de ciências. Vamos lá?!

Cunha (2016) examinou a aprendizagem histórica vinculada às narrativas


autobiográficas no contexto da educação histórica. Assim, estavam envolvidos
dispositivos de formação, de estranhamento e de desnaturalização. Na sequência,
você encontra o resumo do artigo elaborado por Cunha (2016, p. 93, grifo nosso):

Narrar a própria experiência provoca estranhamentos do saber


sobre o lugar comum, e podem possibilitar conscientizações nas
relações entre história, estrutura social e trajetórias individuais. Nesse
sentido, indagamos como a imaginação e a consciência histórica, o
estranhamento e a desnaturalização, tidos como objetivos do ensino
de história, aproximam-se das narrativas autobiográficas como
dispositivos de formação, estabelecendo um diálogo entre o ensino
de história e o campo da pesquisa (auto)biográfica em educação. Este
trabalho põe em diálogo as orientações legais sobre as especificidades
da aprendizagem histórica e as narrativas autobiográficas como
dispositivos de formação. Discute, também, a fundamentação
epistemológica do trabalho, com narrativas autorreferenciais nas
aulas de história, e, por fim, apresenta e analisa a aplicação de uma
proposta de ensino de história a partir de narrativas autobiográficas
de alunos do Ensino Médio. A análise dos relatos, decorrentes da
proposta, foi realizada com base na análise textual discursiva, cujas
unidades de análise, também, foram fundamentadas nos conceitos
de construção e de reconstrução da aprendizagem, nas relações entre
a reflexão autobiográfica e a imaginação histórica, e no papel da

101
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

aprendizagem histórica na constituição de uma consciência histórica.


Estranhar e desnaturalizar o que se sabe sobre si, o que se escuta sobre
si, e deixar em suspensão para novas reorganizações, para construções
e reconstruções da aprendizagem, e, principalmente, para uma
prática de questionamentos a partir da qual a interrogação não versa,
somente, sobre o outro, mas sobre si, na relação com outros e com
os fatos históricos, eis aí, talvez, uma tarefa da educação na qual a
história adquire importância na formação dos jovens. Desse modo, o
que sustentamos é a centralidade da relação sociedade-indivíduo no
ensino de história e na educação escolar.

Reveja esse resumo e observe que a palavra desnaturalização foi grifada.


Você já tinha ouvido falar dela? Ela diz respeito a refletir sobre os motivos que
levam as pessoas a reproduzirem determinados comportamentos que, até então,
pareciam óbvios, inquestionáveis. Vamos a um exemplo básico sobre isso? Em
uma dada família desprovida de poderes aquisitivos substanciais, na noite de
Natal, colocavam um frango assado na mesa, cortado em pedaços. O tempo
passou, e uma menina oriunda dessa família adquiriu muitas posses na vida
adulta. No Natal, ela convidou a família dela para o jantar, e serviu um peru
assado, cortado em pedaços.

Enquanto comiam, a mãe perguntou, à filha, por que não tinha deixado
o peru inteiro, o que daria uma apresentação mais bonita ao prato. A filha riu
desconcertada, e disse que nunca lhe passou pela cabeça deixá-lo inteiro, já que,
em todas as memórias dela, o frango sempre foi servido em pedaços. Era uma
tradição familiar que ela tinha naturalizado.

A mãe explicou que o frango era, sempre, despedaçado porque eram


pobres, o forno era minúsculo, tanto que, nas formas para se colocar o frango,
nem caberia inteiro. Quando à filha, a cozinha dela estava equipada com um
forno maior, tinha formas maiores, daí, poderia deixar a ave inteira.

Note que a filha jamais pensou nisso, nunca teve a curiosidade de entender
o motivo pelo qual a família preparava o frango de um jeito diferente do que se
via na televisão. Desnaturalizar é isso. É olhar para os fenômenos sociais, levando
em conta a historicidade, os interesses, os motivos que estão por trás de certos
hábitos, comportamentos, pensamentos, decisões etc.

Se um exemplo de preparar a ceia de Natal tinha uma explicação


surpreendente, vamos imaginar quantos dos nossos hábitos, comportamentos
e costumes são embasados em explicações impressionantes e que contemplam
determinados interesses?! Assim, para Cunha (2016), as escritas de si têm
significativos potenciais enquanto dispositivos de formação no âmbito escolar.
Elas podem suscitar questionamentos, reflexões e confrontações dos discursos
disseminados pela mídia, pelas políticas públicas, e, até mesmo, pela historiografia
tradicional. Esta última costuma ser reproduzida nos livros didáticos e na
formação dos professores de história. Por conseguinte, Cunha (2016) vê, nas aulas
de história, que fazem uso das narrativas autorreferenciais, um grande potencial
para amplificar autonomias e consciências.

102
TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

Agora, passaremos ao estudo desenvolvido por Araujo Jr, Avanzi e


Gastal (2017), que articulou a história de vida com o varal literário, envolvendo
a educação de jovens e adultos. Para tanto, vamos conferir o resumo do artigo?!

Trata-se de pesquisa-ação desenvolvida com jovens e adultos de


uma escola pública do Distrito Federal, Brasil. A articulação entre
saberes escolares e saberes da experiência se deu em uma oficina na
qual conteúdos de zoologia foram trabalhados a partir da relação
entre os estudantes e os animais não humanos. As histórias foram
compartilhadas em roda, e os textos produzidos foram expostos em
varal literário, no pátio da escola. A proposta se baseia nas premissas
freireanas e nas relações delas com outros autores, segundo os quais
todo professor é um professor de leitura e de produção de textos; a
escola é instância legítima de construção de conhecimento; todo
aprendizado é um exercício de releitura da sua experiência. Decorre,
dessa pesquisa, que é possível organizar atividades que valorizem as
trajetórias de vida particulares dos sujeitos, sem deixar de ensinar
ciências, com o benefício de favorecer a construção de memória pessoal
e coletiva (ARAUJO JR; AVANZI; GASTAL, 2017, p. 1, grifos nossos).

Consequentemente, Araujo Jr, Avanzi e Gastal (2017) propõem que as


aulas de ciências sejam utilizadas, também, para que os estudantes reflitam sobre
as suas próprias vivências, e aprendam com as vivências dos colegas. Quiçá a
produção de textos de natureza autobiográfica (narrativa pessoal) colabore na
compreensão de textos de natureza técnica-científica, e vice-versa.

De mais a mais, as alegorias textuais que se fizeram presentes nos textos


de muitos alunos dão indícios de que eles experienciaram o deleite de construir
novas interpretações para as palavras, que as escritas geraram prazer ao serem
produzidas e acolhidas pelos demais integrantes da turma (ARAUJO JR; AVANZI;
GASTAL, 2017).

Observe que a primeira experiência focou mais os conteúdos de história,


ao passo que a segunda deu ênfase aos processos de produção textual e à fruição
da leitura. Como vimos no início deste tópico, os objetivos e os enfoques podem
variar muito, ao abordar histórias de vida com vistas à formação. Cabe, ao
professor que opta por abordar esse tema, ter clareza quanto aos objetivos e às
finalidades, antes de conduzir um trabalho similar em sala de aula.

A partir de agora, demonstraremos a aplicação de histórias de vida na


educação de nível superior. Vamos lá?!

4 ENSINO SUPERIOR
Antes de adentrarmos nesse conteúdo, que tal um exercício de imaginação?
Com base no que leu nas páginas anteriores, até aqui, tente imaginar em quais
cursos universitários pode ser útil a aplicação de atividades que envolvem as
“histórias de vida”. Faça uma rápida pausa para pensar nisso, antes de dar
continuidade à leitura.

103
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Veremos alguns exemplos da exploração de narrativas sobre si próprio na


esfera universitária. Para iniciar, levaremos em conta alguns aspectos propostos
por Pineau (2006), acerca da autobiografia e da história de vida articuladas à
existência, ao movimento biográfico e à pesquisa-ação-formação. Vamos verificar
o resumo do referido artigo?!

O texto faz um sobrevoo histórico contemporâneo sobre a emergência


das práticas multiformes que trabalham com histórias de vida no
período de 1980 a 2005. Três períodos se destacam nesse histórico: um
período de eclosão (os anos de 1980), um período de fundação (os anos
de 1990), e, finalmente, um período de desenvolvimento diferenciador
(os anos de 2000). Essa eclosão será interpretada como uma corrente
de pesquisa-ação-formação existencial às voltas com 25 anos de vida.
Vinte e cinco anos é pouco na escala da história. É, contudo, suficiente
para provocar problemas de construção de sentido e de comunicação
intergeracional, que serão discutidos neste artigo, a partir de questões
como as que seguem: Quais práticas autorreflexivas de construção
histórica geram, ou não, mais ou menos conscientemente, essa corrente?
Como, ao lado de outras tendências (biográfica, autobiográfica, relatos
de vida), essa corrente se inscreve em um movimento biorreflexivo
de construção de novos espaços conceituais para trabalhar com o
crescimento multiforme de problemas vitais inéditos? A nosso ver, na
sua modesta escala, ela pode contribuir para fazer, das suas práticas,
uma arte poderosa de autoformação da existência, ou, ao contrário, de
submissão, conforme permite, ou não, aos sujeitos, apropriarem-se do
poder de refletir sobre as suas vidas, e, desse modo, ajudá-los a fazer,
delas, uma obra pessoal (PINEAU, 2006, p. 329, grifos nossos).

Josso (1999) destaca que o deslumbramento, com referência à perspectiva


biográfica, parece inerente à  “reabilitação progressiva do sujeito e do ator”,  e
essa recuperação pode ser compreendida como um regresso estabilizador,
ulteriormente, a uma hegemonia do modelo de causalidade determinista das
concepções funcionalistas, marxistas e estruturalistas do indivíduo até o fim da
década de setenta.

De acordo com Pineau (2006), o desafio bioético, tenso entre os paradigmas


do comando e do controle, e aquele da autonomização, inscreve o futuro das
histórias de vida.

Enquanto você leu o resumo desse artigo, certamente, percebeu que


algumas palavras estavam grifadas. Assim, o quadro a seguir buscará distinguir
as três expressões:

104
TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

QUADRO 3 – HISTÓRIA DE VIDA, AUTOBIOGRAFIA E RELATO DE VIDA

História de Vida Autobiografia Relato de vida


Aponta para a construção de Autobiografia – escrita da Caminha para a importância
um sentido temporal, sem sua própria vida – tem da expressão do vivido pelo
privilegiar os meios social e seu pesquisador, Philippe “desdobrar narrativo”, quer
material da construção. Lejeune, promotor da essa enunciação seja oral
Reflete a expressão direta dos Associação pelo Patrimônio ou escrita. A aparição e o
atores sociais às voltas com o Autobiográfico. Em oposição aumento da expressão, no
correr da vida, ao darem uma à biografia, ela constitui um século XX, acompanham
forma e um sentido a ela. modelo no qual, no limite, a revolução técnica das
Histórias de vida — ator e autor se superpõem multimídias: o cinema e o
Entrelaçadas a essas sem um terceiro mediador vídeo liberam a palavra do
correntes do biográfico, explícito. O prefixo “auto” (texto) escrito e ampliam
autobiográficas e relatos a aproxima dos outros os modos de coleta e de
de vida, nós assistimos à processos que utilizam tratamento da informação.
eclosão e ao desenvolvimento esse prefixo, em relação ao
da corrente que se intitula problema do lugar do outro
história de vida para nessa utilização.
significar, primeiramente, A autobiografia representa um
o objetivo, perseguido meio pessoal maior, e, talvez,
de construção de sentido incontornável, do exercício
temporal, sem prejulgar os em um círculo diferente do
meios. A determinação desse “curvar-se (fechar) reflexivo
objetivo de construção de e do desdobrar-se (abrir)
sentido temporal pela história narrativo”. Sublinhar “o
de vida mobiliza alguns e interesse e a dignidade
imobiliza outros. Ela abre um do ato autobiográfico” é
horizonte ambicioso que pode um contrapeso necessário
ser uma miragem ilusória. às pulsões totalitárias de
A perseguição desse limite, apropriação cognitiva da vida
que recua quando se avança, pelos profissionais do sentido.
não se pode fazer sem riscos
e perigos, porém, essa busca
parece inerente à pulsão vital.
É por isso que ela mobiliza
explicitamente, e gera uma
corrente específica.

FONTE: Adaptado de Pineau (2006)

Pineau (2006) aponta o nome de Philippe Lejeune como um destaque no


que se refere à autobiografia.

105
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

FIGURA 7 – CAPA DE UM LIVRO DE PHILIPPE LEJEUNE

FONTE: <encurtador.com.br/luBF8>. Acesso em: 29 maio 2021.

Já no que toca ao relato de vida, Daniel Bertaux foi um pioneiro na França


(PINEAU, 2006).

FIGURA 8 – DANIEL BERTAUX

FONTE: <https://www.ukdataservice.ac.uk/teaching-resources/pioneers/
pioneer-detail?id=pioneer_people_bertaux>. Acesso em: 29 maio 2021.

Agora, veremos um estudo proposto por Daltro e Bueno (2010), articulando


as narrativas à ludicidade na educação médica. Vamos conferir o resumo para ter
uma noção melhor desse artigo?

INTRODUÇÃO: Este trabalho apresenta a avaliação de uma


experiência educacional inovadora que articula a construção
do conhecimento às questões subjetivas do sujeito. A disciplina
Desenvolvimento do Ciclo de Vida (DCV), ministrada no terceiro
semestre, usa ludicidade e Narrativa Autobiográfica como método, e
busca compreender os processos psicológicos típicos da gestação ao
envelhecimento, e desenvolver competências interpessoais necessárias
à prática médica.

106
TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

OBJETIVO:  Descrever a avaliação de estudantes egressos da disciplina


sobre seus efeitos educacionais.
METODOLOGIA: Estudo descritivo qualitativo, realizado em uma
instituição privada de ensino superior em Salvador, na Bahia. Análise
de conteúdo de sete entrevistas semiestruturadas com um estudante
de cada semestre, desde que a disciplina começou a ser oferecida.
Utilizou-se a análise de domínios, e o estudo foi aprovado pelo Comitê
de Ética.
RESULTADOS: Os entrevistados percebem o método utilizado como
uma estratégia de aprendizagem positiva e referem um importante
reflexo desta em seu processo formativo.
DISCUSSÃO/CONSIDERAÇÕES:  A aquisição do conhecimento
se faz com processos reflexivos, e possibilita a percepção dos limites
e das possibilidades do sujeito, qualificando as suas competências
interpessoais. A humanização emerge espontaneamente, evidenciando
o impacto da disciplina na construção da identidade profissional
desses estudantes (DALTRO; BUENO, 2010, p. 497, grifos dos autores).

Segundo Daltro e Bueno (2010), com o uso de narrativas autobiográficas,


o acadêmico é beneficiado de várias maneiras:

• afirma-se como sujeito da própria história;


• faz ponderações acerca de si próprio;
• pode ressignificar a sua história;
• reflete sobre a profissão;
• avalia o próprio modo de pensar;
• modifica a forma de pensar sobre o(s) outro(s);
• muda os modos pelos quais interage com os demais;
• envolve-se, ativamente, na construção do conhecimento;
• amplia a autonomia;
• desenvolve a capacidade avaliativa;
• fortalece a capacidade reflexiva;
• articula teoria e prática.

No tocante à construção do "Livro da Vida", foi considerada, por todos,


uma experiência singular e positiva para o sujeito e para a aprendizagem dele.
Preponderaram relatos do que se aprendeu, experiencialmente, nas circunstâncias
da vida. Essa estratégia de ensino concilia a aprendizagem à vida dos sujeitos,
o que a caracteriza como uma experiência de aprendizagem, efetivamente,
formativa (DALTRO; BUENO, 2010).

Mais especificamente, quanto à inclusão da subjetividade no currículo


do curso de Medicina, justifica-se porque possibilita, ao estudante, apropriar-
se de conhecimentos básicos sobre os processos comunicativos e as relações
interpessoais, intra e intergrupais. De mais a mais, o uso da narrativa
autobiográfica pode favorecer a humanização por meio do autoconhecimento.
Isso posto, observa-se que os objetivos da atividade proposta estão alinhados aos
objetivos do curso, que propiciam o desenvolvimento de competências para que,
posteriormente, consigam estabelecer uma relação médico-paciente humanizada
(DALTRO; BUENO, 2010).

107
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

No estudo com o qual entraremos em contato nesse momento, Venâncio


e Wegner (2018), também, defendem a inclusão de temas ligados à subjetividade
nos âmbitos acadêmico e científico, dessa vez, no que diz respeito à formação do
sociólogo e do historiador. O foco desse estudo foi a escrita acadêmica, associada
à historiografia e ao ensaio. A seguir, encontrar-se-á o resumo do artigo:

Aborda o debate estabelecido entre Sérgio Buarque e Gilberto


Freyre, reconhecidos como ensaístas nos anos 1930, e a forma como
se posicionaram sobre o tema no suplemento literário do Diário de
Notícias. De uma parte, Holanda reverbera os debates desenvolvidos
nos meios universitários e se alinha em defesa dos estudos acadêmicos,
com o argumento de que eles renovavam a vida intelectual do país
e rompiam com o ensaísmo. Por outro lado, ao defender seu projeto
intelectual inaugurado com Casa Grande & Senzala, Freyre prossegue,
defendendo a forma ensaística como um padrão de cientificidade
legítimo, e sugere que ela poderia, inclusive, renovar os estudos
acadêmicos realizados em outros países. O artigo investiga o debate,
de modo a reconstruir as formas que ele ganhou no seu presente,
buscando elaborar uma reconstrução genealógica da categoria
ensaio, exatamente, no momento em que se constituía em critério
de classificação negativo das narrativas sobre o Brasil (VENANCIO;
WEGNER, 2018, p. 730).

Como se pode notar, nesse estudo, emergem debates acerca de fronteiras


epistemológicas, da institucionalização do espaço universitário, dos jornais de
ampla circulação, e da oposição entre uma escrita de caráter ensaístico e uma
narrativa acadêmica e profissional. Também, eclodiu a discussão que envolvia os
limites das produções sociológica e histórica no que concerne à interpretação, à
erudição e ao método científico (VENANCIO; WEGNER, 2018).

Retomando os estudos com enfoque na formação em saúde, agora,


checaremos o resumo do artigo de Imbrizi et al. (2018, p. 938, grifos nossos), que
trata de processos de produção de subjetividade, abarcando narrativas de história
de vida:

A produção escrita de narrativas tem se apresentado como estratégia


de ensino-aprendizagem na formação em saúde do  campus  Baixada
Santista, da Universidade Federal de São Paulo. Neste artigo,
discutimos como os estudantes se apropriam dessa atividade e como
os professores estabelecem critérios para avaliar o material que
substitui a prova. São apresentadas três experiências: o memorial;
a biografia sobre o brincar; e a história de vida dos usuários de um
Núcleo de Atenção Psicossocial (Naps). O método se baseou na escolha
de trechos dos escritos dos estudantes de 2014, e posterior análise à luz
de autores que discutem narrativas. Os dados produzidos apontam
a importância de considerar o processo criativo na elaboração de
um texto; a transitoriedade entre a verticalidade da história singular
e a horizontalidade da cultura; e a reflexão acerca da constituição
subjetiva no encontro com a diferença.

108
TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

De acordo com Imbrizi et al. (2018), quando o professor opta pelo uso
de narrativas de história de vida, como estratégia de ensino-aprendizagem na
formação de profissionais de saúde, está fazendo uma opção política. Afinal, é
um ato de resistência no que tange a certos modos de transmitir conhecimentos
e, posteriormente, realizar a avaliação. As narrativas são, ainda, atreladas aos
aspectos culturais, artísticos e da vida (IMBRIZI et al., 2018). Trata-se de uma
proposta que interliga a produção de saberes com a experiência de diferentes
atores sociais (professor, estudante, dentre outros). Ela, também, viabiliza a
articulação de inspirações teóricas, afetivas, artísticas (IMBRIZI et al., 2018).

Na concepção de Imbrizi et al. (2018), o emprego de narrativas de histórias


de vida pode gerar diversos proveitos:

• disparar e propiciar reflexões sobre o processo de formação cultural;


• proporcionar momentos de autorreflexões;
• provocar problematizações acerca da sua singularidade;
• suscitar questionamentos sobre aspectos da cultura contemporânea;
• incitar ponderações quanto ao individualismo e à concepção de que o sujeito se
faz sozinho;
• instigar o acadêmico a meditar sobre condições desiguais que são oferecidas
pela sociedade;
• estimular a implicação, já que o ato de escrever sobre si próprio requer esse real
envolvimento;
• motivar circunstâncias nas quais os universitários pratiquem as técnicas de si;
• despertar práticas de liberdade;
• engendrar circunstâncias nas quais os acadêmicos consigam criar modos de
existência que se contrapõem aos discursos normalizadores e às imposições
hegemônicas de modos de estar no mundo.

ATENCAO

Você percebeu que esse estudo de Imbrizi et al. (2018) parece em consonância
com o que aprendemos, em alguns parágrafos atrás, sobre a desnaturalização, ao
observarmos alguns pontos do estudo de Cunha (2016)?

Com essas narrativas, o acadêmico tem a oportunidade de ocupar um


papel ativo no próprio processo formativo, isso porque a experiência de escrita
lhe possibilita a apropriação do seu percurso de aprendizado, da produção da sua
subjetividade, e da constituição do seu lugar profissional (IMBRIZI et al., 2018).

109
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Já o estudo elaborado por Barros e Spadacio (2011) aborda a formação


profissional, levando em conta as ciências sociais e humanas em saúde. Ele foi
deixado para o final do tópico porque se refere à pós-graduação, e procuramos
seguir uma ordem cronológica. Vale lembrar que, no tópico anterior, aprendemos
sobre a infância, e, neste, passamos por estudos com adolescentes, em seguida,
com o Ensino Médio, Educação Superior, e, agora, a pós-graduação.

Retomaremos o artigo de Barros e Spadacio (2011), que envolve a


sociologia da saúde em termos de ensino e de pesquisa. Vamos ao resumo dele?!

O objetivo deste artigo é apresentar uma síntese do debate do II


Encontro Paulista de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, a partir
da apresentação A formação do pós-graduando no mundo contemporâneo
no cotidiano da pesquisa, organizada pelos conceitos de práxis, campo
e rupturas epistemológicas, e desenvolvida por meio de princípios
das Ciências Sociais. Sabe-se que: o mundo contemporâneo convida
à passagem de uma sociedade da informação para uma sociedade
do conhecimento; as Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CSHS)
são um corpo no campo da Saúde Coletiva, que se institucionaliza
na interface das Ciências Sociais e Humanas e Ciências da Saúde; o
projeto das CSHS não alcança "todos os povos, a todos os tempos",
mas o diálogo promove um potencial para a construção de sentidos
universalizantes; existe uma terceira geração de cientistas sociais no
campo da saúde brasileira; as CSHS são uma aplicação em um campo
que "consome" ciências para gerir o Sistema Único de Saúde; os
nossos esforços e posicionamentos no presente, ainda que dirigidos
pelo fato de não conhecermos o desfecho, permitem-nos potencializar
a natureza e o espírito humanos para uma vida melhor. Assim,
compreendemos, conclusivamente, que é fundamental produzir,
com os pós-graduandos, informações, sentimentos, processos, ações
e significados que explicitem narrativas fluidas, flexíveis e reflexíveis
sobre como as pessoas interpretam os seus mundos sociais (BARROS;
SPADACIO, 2011, p. 50, grifo nosso).

Barros e Spadacio (2011) ressaltam que o mundo contemporâneo nos


impele à passagem de uma sociedade da informação para uma sociedade do
conhecimento. Em vista disso, a formação ética e cognitiva é imprescindível. A
educação estática e tradicional é, ainda mais, incabível nos dias atuais. Para tanto,
são necessários esforços e posicionamentos para que a formação profissional
em saúde potencialize a natureza e o espírito humanos para uma vida melhor
(BARROS; SPADACIO, 2011). Isso posto, Barros e Spadacio (2011) defendem
que é indispensável produzir, com os pós-graduandos, não só informações e
conhecimentos, afinal, sentimentos, processos, ações e significados, também,
são essenciais nas formações acadêmica e profissional. Nesse sentido, abordar
as narrativas é uma ótima escolha, pois, por meio delas, as pessoas têm as
oportunidades de compreender e de interpretar os seus mundos sociais,
com fluidez, flexibilidade  e reflexividade.

110
TÓPICO 2 — NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS: APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO ACADÊMICA

5 OBSERVAÇÕES DE REMATES
Ainda que o uso de narrativas e de histórias de vida esteja crescendo
na esfera da formação acadêmica, quando um professor resolve adotá-las pela
primeira vez, pode se deparar com dúvidas, e, até mesmo, com reclamações dos
estudantes, os quais, nem sempre, estão habituados com o uso dessas estratégias
em sala de aula. Dessa maneira, Imbrizi et al. (2018) nos tranquilizam, já que essas
possíveis dificuldades são atadas à novidade dessas estratégias para uma parte
representativa de estudantes e de docentes. Então, essas dificuldades aparecem
mais como estranhamentos iniciais do que como problemas árduos. Essas
resistências apresentadas pelos estudantes podem ser geradas por conta dos
pensamentos novos que são produzidos pela escrita (IMBRIZI et al., 2018). Além
do mais, com a leitura deste livro, até aqui, você já deve estar entendendo que
os usos da narrativa de história de vida, por mais diversificados e heterogêneos
que sejam, não têm, por intuito, manifestar o que é “comum” para “todos” os
indivíduos. O foco consiste em compreender os elementos da singularidade que
materializam o universal (LIMA; CIAMPA, 2017).

111
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• É possível utilizar propostas com narrativas de história de vida com vistas


à formação acadêmica, com estudantes dos ensinos fundamental, médio e
superior – inclusive, da pós-graduação.

• Embora os exemplos citados com os alunos do ensino médio tenham sido de


aulas das disciplinas de ciências e de história, certamente, outras disciplinas,
também, podem fazer uso de narrativas e de histórias de vida.

• Ainda que a maioria dos artigos ligados à esfera universitária tenha sido da
área da saúde, certamente, os alunos de cursos de outras áreas, também, podem
ser beneficiados com a utilização de narrativas e de histórias de vida.

• São incontáveis os privilégios que os estudantes obtêm quando o professor


aplica estratégias de ensino e de aprendizagem com base na exploração de
narrativas e de histórias de vida.

112
AUTOATIVIDADE

1 Vimos alguns artigos sobre ateliês biográficos ao longo deste tópico, como
o estudo que mencionou o poder socializador da atividade biográfica, feito
por Delory-Momberger (2006). Esse artigo é primoroso, em contrapartida,
emprega expressões que não fazem parte do dia a dia da maioria das
pessoas. É o caso da expressão “atividade biográfica”, que, inclusive, foi
citada neste tópico. Você sabe do que se trata? Recomenda-se a leitura
do artigo na íntegra, para que você possa fazer um resumo, com as suas
próprias palavras, acerca dessa expressão.

FONTE: DELORY-MOMBERGER, C. Formação e socialização: os ateliês biográficos de


projeto. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, 2006. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022006000200011&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: 18 maio 2021.

2 O que é o processo de biografização, de acordo com Delory-Momberger


(2006)?

FONTE: DELORY-MOMBERGER, C. Formação e socialização: os ateliês biográficos de


projeto. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, 2006. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022006000200011&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: 18 maio 2021.

3 Ew et al. (2018, p. 9) realizaram um estudo acerca de narrativas feitas na


adolescência, divulgadas no Facebook. Ao longo do estudo, foi possível
observar que,

nessas mídias, os indivíduos podem buscar elementos de


identificação e de diferenciação em relação aos outros, que são,
por eles, acessados e incluídos em rede. Essa identificação/
diferenciação não é feita de forma acabada ou linear, mas, sim, em
um processo fragmentado e parcial, de maneira a proporcionar
uma composição maleável de estilos e de gostos, que são
articulados contextualmente. Ainda que mencionassem o espaço
digital e o “concreto” como formas diferenciadas de realidade,
é possível considerar que, em suas narrativas, foram indicadas
experiências de conexão e de continuidade entre essas esferas.

FONTE: EW, R. de A. S. et al. Mídias sociais: construção de narrativas de si de adolescentes.


Psicologia & Sociedade [online], v. 30, e169654, 2018. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/1807-0310/2018v30169654. Acesso em: 24 abr. 2021.

Levando em conta as especificidades do gênero discursivo intitulado de


“narrativas”, classifique V para as afirmativas verdadeiras e F para as falsas:

113
( ) A construção da noção de si próprio, a partir da produção de uma
narrativa, é estabelecida em um sentido de continuidade no tempo e
de coerência de trajetórias. Portanto, engloba percepções do passado e
perspectivas de futuro.
( ) Narrativas dispostas em redes sociais, na internet, abarcam um jogo
estratégico de sociabilidade. Assim, é possível ocupar esses espaços de
interação comunicativa como campos de inclusão, ao mesmo tempo em
que favorecem certa “economia” das relações interpessoais.
( ) As construções de si, nas narrativas expostas nos meios digitais, são
idênticas àquelas que são divulgadas em material impresso. Não há
diferenciação para o estabelecimento de vínculos – independentemente
de qual é o suporte no qual as narrativas são apresentadas.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) F – F – V.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – V – F.

4 Santos e Torga (2020, p. 121) mencionaram, diversas vezes, a perspectiva de


Lejeune, no artigo que escreveram:

Acreditamos que, na materialidade autobiográfica, não somente


na produção, como no âmbito da sua contemplação, para além
do relato como plena captura e resgate do uma vez vivido, cabe
refletir a condição de ressignificação das experiências de vida que
marcaram/marcam uma dada subjetividade. Propomos, então, a
ressignificação como elemento característico no fazer discursivo
desse gênero, e, também, como ação necessária ao público leitor,
horizonte contemplativo dos que se propõem a, literariamente,
autobiografar suas experiências de vida.

FONTE: SANTOS, Y. A. B.; TORGA, V. L. M. Autobiografia e (res) significação. Bakhtiniana:


Revista de Estudos do Discurso [online], v. 15, n. 2, p. 119-144, 2020. Disponível em: https://
doi.org/10.1590/2176-457342467. Acesso em: 24 abr. 2021.

Concentrando-se na perspectiva de Lejeune, classifique V para as sentenças


verdadeiras e F para as falsas:

( ) Atribui-se o mais elevado valor ao escritor de autobiografias, ao passo que


o leitor ocupa um lugar desprestigiado na relação. Isso porque o leitor não
pode determinar, enquanto interlocutor, a tal noção de real impregnada
no discurso autobiográfico.
( ) A autobiografia consiste na narrativa retrospectiva em prosa, por meio
da qual um sujeito real faz da própria existência dele, quando focaliza a
história individual, em particular, a história da sua personalidade.
( ) O gênero autobiográfico se distingue de outras formas narrativas, como:
poema autobiográfico, memórias, biografia, romance pessoal, diário e
autorretrato, ou ensaio. A autobiografia requer, necessariamente, a relação
de identidade entre o autor, o narrador e o personagem.

114
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) F – V – V.
b) ( ) V – F – F.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – V – F.

Daniel Bertaux é um sociólogo francês, amplamente, reconhecido


na Europa, e alhures, por ter sistematizado o método de pesquisa
qualitativa que chamou de etnossociologia. Nele, os relatos de
vida constituem fontes de dados por excelência. Renomado
pela obra  Le Récit de Vie  (Bertaux, 1997), sua abordagem foi
introduzida no Brasil há quase quarenta anos, por meio da
publicação  Destinos Pessoais e Estrutura de Classe  (Bertaux,
1979). Todavia, carece de uma “apropriação” por parte dos(as)
cientistas sociais brasileiros(as), no que diz respeito ao método
proposto, apesar do interesse, frequentemente, demonstrado no
meio acadêmico brasileiro (COSTA; SANTOS, 2020, p. 319).

FONTE: COSTA, L. R.; SANTOS, Y. G. dos. O “relato de vida” como método das ciências sociais:
entrevista com Daniel Bertaux. Tempo Social [online], v. 32, n. 1, p. 319-346, 2020. Disponível
em: https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2020.159702. Acesso em: 24 abr. 2021.

Tendo em vista a perspectiva de Daniel Bertaux, analise as assertivas a seguir:

I- Ele procurou verificar se a coleta de relatos de vida possibilitava, ao


pesquisador, a percepção empírica de aspectos de ordem sócio-histórica
que, até então, mantinham-se invisíveis em outros métodos de observação.
Parte-se do pressuposto de que não podemos confundir os procedimentos
metodológicos das ciências sociais com as ciências da natureza.
II- Só são válidos os relatos completos acerca da trajetória de vida. Portanto,
o pesquisador não pode coletar, apenas, um relato sobre uma fase da vida
daquele que se propõe a narrar. Só se extrai um relato de vida quando se
obtém a narrativa que abarque todo o ciclo vital. Não se pode confundir
a fatualidade dos dados com a objetividade de uma representação
sociológica.
III- Todo relato de vida é, intrinsecamente, uma produção  subjetiva, mas
isso não significa que tudo seja falso. Espera-se que o narrador ligue
uns aos outros  (fatos, situações fatuais, atos resultantes, razões etc.). O
narrador, então, propõe interpretações dessas sequências, e não é tarefa
fácil mensurar o grau de verdade expresso em uma interpretação.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) São corretas as assertivas I e II.
b) ( ) São corretas as assertivas II e III.
c) ( ) São corretas as assertivas I e III.
d) ( ) Apenas a assertiva I é correta.

115
116
TÓPICO 3 —
UNIDADE 2

NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, concentrar-nos-emos em conhecer pesquisas sobre as
narrativas e as histórias de vida de profissionais da educação, com vistas a
contribuir com a formação docente, com a educação rural no que diz respeito
ao trabalho docente. Para tanto, acessaremos alguns artigos científicos que vêm
abordando as histórias de vida desses profissionais da educação, baseando-se
em diferentes objetivos e perspectivas. Por exemplo, veremos que alguns deles
partem de depoimentos orais, memórias, identidades, significados, práticas
educativas, currículo etc. Além do mais, encontraremos artigos sobre diferentes
áreas de atuação docente, como da história, matemática, teatro, ciências e
medicina. Vamos lá?!

2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Para iniciar a reflexão sobre o uso de histórias de vida na formação de
professores, começaremos com o estudo feito por Pacievitch e Cerri (2010), que
foi articulado à consciência histórica, à memória e aos depoimentos orais, como
poderemos observar no resumo que segue:

A preparação específica para trabalhar, profissionalmente, com a


História, tem quais efeitos sobre a consciência histórica do professor?
Este artigo apresenta os resultados de pesquisa de Mestrado em
Educação realizada entre 2005 e 2007. Investigou-se a constituição de
identidades de professores de História a partir do eixo da formação
de consciência histórica, tendo, como pilares de análise, a relação
com o conhecimento histórico, com o posicionamento político e com
a relação com o transcendental (religiosidade). A fundamentação
teórica repousa, principalmente, nos trabalhos de Rüsen e Heller. A
metodologia incluiu a coleta de depoimentos, visando à produção
de narrativas específicas e de questionários abertos e de múltipla
escolha. Os resultados apontam, dentre outros aspectos, que a
formação em História conduz a um padrão de produção de sentido
histórico concentrado nas formas genética e crítica, mas, também, que
a trajetória de vida é o principal fator de variação individual nesses
padrões (PACIEVITCH; CERRI, 2010, p. 163).

Essa pesquisa apontou aspectos sobre as concepções que os professores


de História possuem. Ficou evidente que eles não se veem como sacerdotes,
como guerrilheiros, como professores abnegados, como revolucionários, como

117
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

militantes, nem orientados por um ideal transcendental que exige sacrifícios. Por
conseguinte, as identidades se apresentaram complexas, oras repulsando oras
admitindo estereótipos, de qualquer forma, sempre procurando a reconstrução e
a ressignificação (PACIEVITCH; CERRI, 2010).

Nas narrativas, emergiram concepções religiosas, políticas, filosofias de


vida atreladas aos processos de construção de sentidos sobre seus ideais e práticas
escolares e extraescolares. Inclusive, essas concepções interferem na construção
dos saberes e das identidades docentes (PACIEVITCH; CERRI, 2010).

Outro estudo acerca da formação de professores foi elaborado por Gomes


(2014), mais voltado à Educação Matemática, envolvendo a escrita autobiográfica e
as narrativas sobre Ensinar-Aprender. Vamos conferir o resumo do artigo?!

Este artigo aborda a leitura e a produção de narrativas autobiográficas


na disciplina História do Ensino da Matemática, integrante da matriz
curricular do curso a distância de Licenciatura em Matemática,
oferecido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O
texto focaliza a relevância das dimensões históricas do ensino da
Matemática na formação de professores, apresenta o contexto em foco
e discute parâmetros teórico-metodológicos para o trabalho com textos
autobiográficos na pesquisa e no ensino da História da Educação
Matemática. São comentados, em especial, aspectos relacionados ao
ensino e à aprendizagem da tabuada nas narrativas autobiográficas
escritas por alunos do referido curso, em 2011 (GOMES, 2014, p. 820,
grifos nossos).

Quanto a esse artigo, é válido esclarecer que essas produções textuais


foram elaboradas como parte final da avaliação da disciplina, restringindo-se ao
uso da linguagem verbal escrita, já que não foram conduzidos diálogos posteriores
sobre os textos (GOMES, 2014). Ainda assim, a leitura e a escrita de narrativas
autobiográficas foram vantajosas, contribuindo com as dimensões históricas do
ensino para os estudantes, dentre outros aspectos, como o autoconhecimento, e
com uma certa conexão entre os estudantes de um curso a distância e o professor
universitário que conduziu essa proposta de narrativas. Afinal, até então, o
professor não tinha acesso às histórias de vida dos alunos, apenas, às avaliações
dos conteúdos específicos da matemática (GOMES, 2014).

Cunha e Cardozo (2011), também, fizeram uma pesquisa sobre a formação


de professores, abrangendo o ensino de História, história oral e narrativas. Na
sequência, estará o resumo do artigo:

Este artigo tem, como objetivo, investigar a profissão do educador de


História, através da sua identidade narrativa. Nessa pesquisa, buscamos
relacionar a formação inicial do educador com a percepção que tem
da docência. Para isso, entrevistamos professores da disciplina de
História das escolas públicas da cidade de Santa Maria, RS, tendo,
como metodologia, a história oral de vida. A pesquisa mostrou que
a formação inicial tem um papel central na constituição de posturas
teóricas, práticas pedagógicas e na identidade profissional. A principal
crítica apontada nas narrativas, sobre a formação inicial, relaciona-se à

118
TÓPICO 3 — NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

dicotomia entre teoria e prática. Entretanto, a percepção do educador,


acerca da sua profissão, não fica restrita aos processos de formação
formal, sendo influenciada pelas trajetórias pessoal e profissional,
tendo, sua gênese, na história de vida dos entrevistados: na escolha
da profissão e na imagem que se tem, a priori, da docência. A partir
dessas reflexões, apontamos a necessidade de rever paradigmas que
norteiam as práticas de formação de professores de História (CUNHA;
CARDOZO, 2011, p. 14).

Com esse estudo, ficou evidente que a formação inicial exerce impactos
representativos na constituição de posturas teóricas, nas práticas pedagógicas, na
construção da identidade profissional. O estudo, ainda, apontou o distanciamento
entre teoria e prática, e entre a escola e a universidade (CUNHA; CARDOZO, 2011).

Os processos de formação influenciam a esfera profissional do educador,


mas eles não são os únicos. A vida profissional, também, é afetada, diretamente,
pelas trajetórias pessoais e profissionais de cada educador, portanto, pela própria
história de vida. As vivências antecedentes dos educadores contribuem para a
formação das concepções que eles possuem acerca do que é ser professor e da
(auto)imagem docente, por exemplo (CUNHA; CARDOZO, 2011).

Ao abordar a formação, Lobo (2011) deu enfoque aos saberes, à experiência,


à etnocenologia no que tange ao teatro. No resumo do artigo, você pode ter uma
noção sobre as especificidades desse estudo:

Este artigo discute as concepções de e as experiências com o teatro na


trajetória de professoras, a partir das análises dos depoimentos delas.
As categorias analisadas dialogam com os impactos dos processos
de socialização dessas docentes a partir das suas escolhas de vida e
com as suas concepções sobre o teatro. Tais reflexões são resultado
de pesquisa realizada nos anos de 2008 e 2009 em Rio Branco –
Acre. Consideraram-se aspectos que permearam as preferências e as
concepções das docentes, na perspectiva teórica de Pierre Bourdieu,
de Bernard Lahire, da História Cultural e da Etnocenologia (LOBO,
2011, p. 214).

Possivelmente, parte das experiências que envolve o teatro, nas escolas


brasileiras, não possa ser considerada como ideal, ou significativa. Por outro lado,
para algumas crianças, talvez, essas sejam as únicas experiências que terão com o
teatro ao longo da vida delas (LOBO, 2011).

Experiências com o teatro são classificadas como processos de


socialização secundária, e podem desencadear elementos impactantes nas
trajetórias formativas das crianças e dos profissionais que entram em contato
com elas (LOBO, 2011). Por conseguinte, esse artigo destaca representações
sociais da figura feminina no campo da profissão docente, levando-se em conta
aspectos subjetivos das professoras e configurações sociais que desembocaram
na constituição das identificações com a profissão docente (LOBO, 2011). Assim,
o propósito desse artigo foi analisar os aspectos que interferiram nas trajetórias
formativas, nas histórias de vida, além de saber, das professoras, sobretudo, no

119
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

que toca às trajetórias delas como profissionais da educação. Estas são perpassadas
pelas impressões das professoras, e por suas preferências, crenças, compreensões
e concepções acerca de talento e de dom. Em outras palavras, a pesquisadora
estava atenta ao que as professoras pensavam sobre a aprendizagem ligada ao
teatro, no sentido de habilidades que podem ser adquiridas por meio do ensino
e/ou da prática, e das habilidades inatas – aquelas com as quais a pessoa já nasce
(LOBO, 2011).

Algumas propostas vinculadas ao teatro, nos espaços educacionais, são


baseadas na tradição do espontaneísmo, do aprender-fazendo. Assim, são raros
os ambientes institucionais de aprendizagem que abordam essa arte (escolas,
universidades etc.) (LOBO, 2011).

Ainda, com relação à formação docente, podemos aprender com o estudo


de Passeggi, Souza e Vicentini (2011), que abarca a pesquisa (auto) biográfica e a
profissionalização.

O objetivo do texto é partilhar eixos de análise teórico-metodológicos


que orientam um projeto de cooperação acadêmica – "Pesquisa (auto)
biográfica: docência, formação e profissionalização" – realizado
por grupos de pesquisa de programas de Pós-Graduação em
Educação (UNEB, UFRN e USP), que vêm colaborando em distintas
instâncias, as quais tomam as narrativas autobiográficas como prática
de formação docente e como método de pesquisa, com diversas
entradas nas áreas dos Fundamentos da Educação. Apresentamos,
inicialmente, um panorama da pesquisa (auto)biográfica, no qual
se situam as atividades de pesquisa, docência e formação na pós-
graduação. Em seguida, discutimos os principais marcos do processo
histórico da profissionalização docente no Brasil, antes de comentar
os grandes eixos de investigação, seus propósitos e as potencialidades
da pesquisa com fontes (auto) biográficas (PASSEGGI; SOUZA;
VICENTINI, 2011, p. 369).

O artigo escrito por Passeggi, Souza e Vicentini (2011) cita as capacidades


de autodesenvolvimento reflexivo, o movimento socioeducativo das  histórias
de vida em formação, os memoriais autobiográficos e as narrativas de formação.
Parte do uso das histórias de vida, mencionadas no artigo, é atrelada à História
da Educação, ao trabalho docente, à identidade profissional, ou à didática e à
formação de professores.

DICAS

Passeggi, Souza e Vicentini (2011) fizeram menção aos seguintes dois autores
que são considerados referências em termos de formação de professores. Recomendamos
a leitura de alguns textos escritos por eles aos que desejam aprofundar os conhecimentos
sobre os respectivos temas:

120
TÓPICO 3 — NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

• Antonio Nóvoa

NÓVOA, A. Formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, A. Os professores e


sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

Ainda, o artigo Os Professores e a sua Formação num Tempo de Metamorfose da Escola:


https://www.scielo.br/j/edreal/a/DfM3JL685vPJryp4BSqyPZt/?lang=pt.

• Marli E. D. A. André

ANDRÉ, M. E. D. A. Ensinar a pesquisar... Como e para quê? Recife: Edições Bagaço, 2006.

ANDRÉ, M. E. D. A. A produção acadêmica sobre formação de professores: um estudo


comparativo das dissertações e teses defendidas nos anos 1990 e 2000. Revista Brasileira
de Pesquisa sobre Formação Docente, v. 1, n. 1, 2009.

Ainda, com relação ao artigo de Passeggi, Souza e Vicentini (2011), destaca-se


que foi abordado o campo da pesquisa biográfica no Brasil, levando em conta a
sistematização de peculiaridades das produções, os métodos (auto) biográficos, e
as práticas de pesquisa com histórias de vida.

Textos representantes da pesquisa biográfica, no Brasil, com vistas à


educação, não se registrem, apenas, ao nível de graduação, mas envolvem os
textos de nível de pós-graduação (especialização, mestrado, doutorado), portanto,
podem ser encontradas narrativas de si próprio em trabalhos de conclusão de
curso, monografias, dissertações e teses. Além disso, não são, exclusivamente,
textos escritos que representam esse campo de pesquisa, já que o movimento
abrange, também, os Congressos Internacionais sobre Pesquisa (Auto) Biográfica
(CIPA) (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011).

Silva, Oliveira e Souza (2018) fizeram um estudo sobre identidade,


negociação de significados, imaginação, ensino de ciências e docência.

O estudo objetivou descrever experiências negociadas em trajetórias


diversas, para entender como elas forjam situações nas quais é possível
se imaginar uma professora que ensina sobre Ciências. Nessa pesquisa
autobiográfica, na qual a história de vida é utilizada como dispositivo
de investigação, apresentamos a imaginação como um componente
importante da nossa experiência no mundo, a qual nos possibilita
criar novas relações, ampliando nosso eu e transcendendo o tempo e
o espaço. Sustentamos que, na participação em comunidades sociais,
como as comunidades escolares, das quais as/os professoras/es são
membros, significados são (re)negociados na relação com as/os outras/
os, conduzindo-as/os a experiências de aprendizagem da docência que
as/os permitem se imaginar no mundo, (des)construindo identidades
docentes de pertencimento a essas comunidades. Como pertencemos,
simultaneamente, a muitas comunidades diferentes, (des)construímos
múltiplas identidades ao longo de nossas trajetórias, em um movimento
contingente em que vamos assumindo vertentes de nossas identidades
(SILVA; OLIVEIRA; SOUZA, 2018, p. 1, grifos nossos).

121
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Essa pesquisa deu enfoque, portanto, à imaginação – um processo,


intensamente, ligado à criatividade. A (re) negociação de significados e a (des)
construção de imagens do mundo dizem respeito às questões de identidade.
Assim, esse artigo enfatiza a imaginação identitária, que é arraigada às experiências
vividas como professora que trabalha com Ciências, e são influenciadas por teorias
das áreas de ensino de Ciências e de Educação (SILVA; OLIVEIRA; SOUZA, 2018).

Agora, passaremos a analisar artigos que levam em consideração a


memória, no que se refere às práticas de docentes. Primeiramente, veremos um
exemplo sobre a educação médica, ao passo que, mais adiante, abordaremos o
ensino rural.

O artigo que focaliza a educação médica foi escrito por Vieira, Pinto e
Melo (2018), e a articula com narrativa, currículo, ensino baseado na comunidade
e Programa Mais Médicos:

O ensino baseado na comunidade se trata de uma abordagem


educacional voltada à inserção de estudantes em cenários de
prática real, desde os anos iniciais dos cursos, principalmente, em
comunidades urbanas e/ou rurais, e em serviços da atenção primária
à saúde, nos quais o planejamento, a execução e a avaliação das ações
desenvolvidas partem das necessidades de saúde local, e, idealmente,
inclui-se a participação de pessoas da comunidade, das equipes de
saúde e da própria universidade em todas as suas etapas. Este estudo
problematizou o processo de implementação de um currículo baseado
no ensino em comunidade em uma escola médica criada no âmbito do
Programa Mais Médicos, no sertão nordestino. Para isso, trabalhou-
se com interlocuções teóricas entre narrativas, memória e currículo.
Teve-se, por objetivo, compreender como docentes médicos vivenciam
o ensino baseado na comunidade, tendo em vista suas memórias da
formação médica. Trata-se de estudo qualitativo, nos marcos da história
oral. Para a produção das narrativas e a contextualização dos sujeitos,
utilizaram-se observações participantes, questionários socioeconômicos
e entrevistas individuais semiestruturadas. As informações foram
analisadas pela técnica de codificação temática. Os resultados são
apresentados e discutidos por meio de duas categorias temáticas: “eles
serão médicos dentro de uma comunidade”: currículo, memória e
formação médica; e “na hora em que eu cheguei lá, quis ir embora”:
atuação docente no ensino baseado na comunidade. As narrativas
desvelaram as disparidades e incongruências entre uma formação
médica modelada nas prescrições do currículo “tradicional” e as
expectativas de atuação docente a partir de um currículo “inovador”,
caracterizado pela centralidade do estudante e das necessidades de
saúde locais que produzem arranjos pedagógicos diversos próprios do
ensino baseado na comunidade. Nesse panorama, imbricam-se desafios,
dificuldades e gratificações em um movimento, ainda, amorfo, e em um
espaço, ainda, com muitos vazios que esperam para ser preenchidos,
descritos, narrados com futuras histórias de vida que poderão elucidar
como se aprendeu a ser docente nesse horizonte que se espraia a
nossa frente. Cumpre destacar a polissemia do termo “comunidade”
no contexto estudado e as dificuldades vivenciadas no início da
carreira docente, o que evidencia a necessidade de investimentos em
desenvolvimento docente nos cursos médicos, em geral, e nos recém-
criados, em particular (VIEIRA; PINTO; MELO, 2018, p. 140).

122
TÓPICO 3 — NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

Voltaremos a falar do uso de narrativas e de histórias de vida com vistas


à saúde mais adiante, neste mesmo livro. Optamos por trazer esse artigo, agora,
porque diz respeito à formação docente em Medicina. Assim, o artigo de Vieira,
Pinto e Melo (2018) fornece evidências sobre como os docentes médicos foram
aprendendo a ser docentes. Para tanto, indica como eles experienciaram o ensino
baseado na comunidade, como eles aprenderam acerca de si próprios, tendo,
como base, memórias da formação médica.

O capital narrativo dos interlocutores está demonstrado no artigo de


Vieira, Pinto e Melo (2018), que o relacionam ao projeto identitário. Além de
expressar a individualidade do narrador, são desveladas algumas esferas sociais.

No que tange ao currículo, pôde-se perceber que predominou a


ideologia do currículo prescritivo, ou seja, “tradicional”. Isso pareceu um tanto
contraditório, uma vez que emergiu uma valorização pela inovação curricular
que era, aparentemente, esperada (VIEIRA; PINTO; MELO, 2018).

Outros aspectos que vieram à tona, no artigo de Vieira, Pinto e Melo


(2018), foram:

• sentimentos expostos pelos interlocutores;


• dificuldades enfrentadas para o ingresso na carreira universitária;
• ausência de formação específica ligada ao ato de lecionar;
• inexperiência na docência;
• complicação de alinhamento da execução dos papéis de médico e de professor;
• concepção de educação dos interlocutores e do que é “ser professor”.

De mais a mais, esse estudo fortaleceu a noção de que o docente precisa ter
constante disposição para aprender, e abertura para rever, repensar nas práticas
dele (VIEIRA; PINTO; MELO, 2018).

Na sequência, encontraremos material para subsidiar nossas reflexões


sobre o ensino rural. Vamos lá?!

3 ENSINO RURAL
Para darmos início ao assunto relativo ao ensino rural, recorreremos
ao artigo escrito por Souza e Grazziotin (2015), o qual dá ênfase às práticas
como poderemos observar no resumo do artigo:

Este estudo analisa as narrativas de Gersy, uma professora do grau


primário, cujas memórias ajudam a compreender como se constituíram os
primeiros tempos de escolarização no espaço rural de Lomba Grande, Novo
Hamburgo, RS. As práticas culturais, nesta pesquisa, pretendem recompor a
história do ensino nesse local, entre o ingresso de Gersy na escola, como aluna, em

123
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

1931, até o início de sua vida profissional como professora, em 1940. Halbwachs


(2006), dentre outros autores, auxilia na articulação entre memória e contexto
sócio-histórico reconstruído pela ótica da história cultural. O conjunto de
indicadores empíricos evidencia um saber incorporado ao fazer docente naquela
comunidade e a mobilização da comunidade para que os filhos dos colonos
tivessem escola. Ao desenvolver os procedimentos analíticos, percebem-se,
também, limites e possibilidades no uso da memória. Dentre as conclusões,
ainda, permanece a questão: um grupo escolar, em uma região rural germânica,
poderia estar associado à "política de nacionalização" que caracterizou o governo
de Getúlio Vargas? (SOUZA; GRAZZIOTIN, 2015, p. 383).

Por meio das memórias do tempo no qual ela viveu como aluna, pôde-se
gerar material para auxiliar nas pesquisas acerca da história da educação. Assim,
pôde-se averiguar a respeito do processo de escolarização naquela localidade do Rio
Grande do Sul, nas primeiras décadas do século XX (SOUZA; GRAZZIOTIN, 2015).

A partir de textos como esse, pode-se analisar como os processos se


desencadearam, quais foram as mudanças que os marcaram, além de possibilitar
um olhar crítico para o que foi feito no passado, articulando tais ações ao que vem
sendo feito no presente (SOUZA; GRAZZIOTIN, 2015).

A busca pelo progresso e pelo desenvolvimento estão presentes no


texto, além dos aspectos relacionados com a saúde, a higiene e a educação, nos
meandros da transformação cultural nacional. O texto, ainda, sinaliza o modo
simples característico do ensino rural, que abrange práticas necessárias para a
vida cotidiana (SOUZA; GRAZZIOTIN, 2015).

No tocante aos interesses políticos, pode-se notar, no texto, a importância


dada à alfabetização de imigrantes, tendo em vista o desenvolvimento da
autonomia de pensamento. A preocupação com a urbanização e a democratização
do ensino público, também, podem ser percebidas no texto referido por Souza e
Grazziotin (2015).

Outro artigo que pode incrementar a nossa construção de conhecimento


sobre o ensino rural foi escrito por Luchese e Grazziotin (2015), dessa vez, dando
o enfoque às práticas escolares conduzidas por docentes leigas, como veremos
a seguir:

O presente texto tem, por objetivo, compreender o cotidiano escolar


rural, entre as décadas de 1930 e 1950, por meio das memórias de
professores que atuaram na Região Colonial Italiana do Rio Grande
do Sul (RCI), Brasil. Compreendemos a RCI como aquela formada
pelas antigas colônias Conde d’Eu, Dona Isabel e Caxias, atualmente,
municípios de Caxias do Sul, Garibaldi, Carlos Barbosa e Bento
Gonçalves. Trata-se da região que foi ocupada, a partir de 1875, por
imigrantes, predominantemente, italianos. No recorte temporal, 1930
a 1950, destacamos a expansão da rede escolar pública e as práticas
de nacionalização empreendidas pelo governo varguista. Utilizamos,
como referencial teórico, as contribuições da história cultural, e, como

124
TÓPICO 3 — NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

metodologia, a análise documental histórica e a história oral. Os


documentos produzidos a partir das narrativas docentes pertencem a
dois acervos: banco de memórias do Arquivo Histórico Municipal João
Spadari Adami (AHMJSA) e Instituto Memória Histórica e Cultural,
mantido pela Universidade de Caxias do Sul. Acrescemos, aos acervos
orais, diversos documentos das intendências e órgãos administrativos
da educação. Narramos histórias de vida dos docentes, mulheres, em
sua maioria, que se tornaram professoras por terem os conhecimentos
mínimos exigidos para a função e pela absoluta falta de profissionais
com titulação. Suas experiências vividas em escolas isoladas, rurais,
permitem-nos (re) construir cotidianos, aspectos da vida comunitária,
e, especialmente, escolar. Essas professoras leigas contaram como
organizavam suas aulas, o que ensinavam, o modo como procediam
em turmas heterogêneas, a relação delas com alunos e familiares,
que são, portanto, aspectos da cultura escolar dessas aulas isoladas
rurais, que marcam a história da educação brasileira (LUCHESE;
GRAZZIOTIN, 2015, p. 341).

Possivelmente, a expressão “docentes leigas” tenha chamado a sua


atenção, não é mesmo, acadêmico?! Ela foi empregada porque se tratam de
professoras que tiveram acesso a poucos anos de escolarização. Elas se tornaram
professoras mais pela ligação delas com o espaço comunitário, e pela necessidade
de que alguém se dedicasse ao ensino, com a bagagem de conhecimentos que
tinham acumulado (LUCHESE; GRAZZIOTIN, 2015).

As memórias das professoras dão indícios de que o papel da comunidade


foi imprescindível para o “se tornar professora” delas, além dos cursos de
aperfeiçoamento, das incursões autodidatas, e da vida religiosa – já que, na época,
parte dos professores, também, era catequista (LUCHESE; GRAZZIOTIN, 2015).

Naquele período histórico, algumas qualidades eram muito valorizadas


pela sociedade, no que se refere aos professores. Eles deveriam ser verdadeiros
exemplos de vida, cumpridores de deveres, hábeis com a manifestação da ordem
e da disciplina da classe (LUCHESE; GRAZZIOTIN, 2015).

A partir dessas narrativas docentes apontadas por Luchese e Grazziotin


(2015), foi possível constatar:

• as escolarizações individual e coletiva marcadas por diversos elementos;


• as considerações da escola pelas comunidades;
• as representações sociais acerca do bom professor;
• a docência como oportunidade causada pela ausência de professores com
formação;
• os processos de seleção e de indicação para a carreira docente;
• as práticas educativas;
• os fazeres docentes;
• os saberes ensinados;
• as condições de trabalho das professoras;
• as culturas escolares rurais;
• os materiais utilizados.

125
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Como pode-se reparar, as habilidades, com os ensinamentos de leitura


e das operações fundamentais, não eram suficientes aos professores do ensino
rural. Valores, como respeito, asseio, caráter, sobriedade e os bons costumes eram
fundamentais (LUCHESE; GRAZZIOTIN, 2015).

Parte desses itens não é, facilmente, acessada por meio da leitura de


documentos oficiais da educação. Esse é um dos motivos pelos quais as pesquisas
que se amparam em memórias são tão valiosas (LUCHESE; GRAZZIOTIN, 2015).

4 PONDERAÇÕES FINAIS
Para concluirmos este tópico sobre narrativas de profissionais da educação,
reportar-nos-emos, mais uma vez, ao artigo de Passeggi, Souza e Vicentini (2011),
posto que menciona alguns dos desafios atinentes à consolidação da pesquisa
(auto) biográfica no campo educacional, no Brasil.

Estamos diante de desafios que são variados e heterogêneos, os quais


abarcam:

• diversificação de abordagens;
• amplitude de temáticas;
• possibilidades de entradas, oferecidas pelo trabalho, com as escritas de si na
contemporaneidade.

As pesquisas em relação às narrativas de profissionais da educação


requerem novos olhares, e conclamam a inserção de novos pesquisadores que
venham a contribuir para a busca de soluções para esses desafios, e para outros
que, ainda, surgirão.

DICAS

Indicamos a leitura do artigo intitulado Currículo, Narrativa e o Futuro Social,


porque cita o conceito de “aprendizagem narrativa”: GOODSON, I. Currículo, narrativa e o
futuro social. Revista Brasileira de Educação [online], v. 12, n. 35, p. 241-252, 2007. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782007000200005. Acesso em: 24 abr. 2021.

126
TÓPICO 3 — NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

LEITURA COMPLEMENTAR

HISTÓRIA DE VIDA E PROJETO: A HISTÓRIA DE VIDA COMO PROJETO


E AS "HISTÓRIAS DE VIDA" A SERVIÇO DE PROJETOS

Marie-Christine Josso

Resumo

Vinte anos de práticas de reflexão, sobre e nos procedimentos de “histórias de vida em


formação”, permitem fazer uma síntese sobre a contribuição e compreender a formação do
ponto de vista dos sujeitos aprendizes, além das aspirações de conhecimento em relação
aos contextos de utilização de perspectivas biográficas. O artigo oferece, desse modo,
um amplo panorama europeu e internacional de autores que publicaram as pesquisas
deles nesse âmbito, e distingue as histórias de vida, como projeto de conhecimento, das
perspectivas biográficas, temáticas a serviço de projetos específicos. Nessa diversidade,
porém, depreende-se uma unidade: a preocupação de construir um saber a partir de um
trabalho intersubjetivo dos autores, dos relatos com os pesquisadores, e, por conseguinte,
a preocupação de dar, ao trabalho sobre e com a subjetividade, um estatuto hermenêutico,
produzindo, no mesmo movimento, um conhecimento do processo de construção de si
(self) e os conhecimentos generalizáveis pelo seu valor de uso.

[...]

As histórias de vida se tornaram, há uns vinte anos, um material de pesquisa


muito em voga nas ciências humanas, pois não há simpósio, colóquio ou encontro
científico no qual estejam ausentes. No campo da educação, além dos trabalhos
de pesquisa-formação, observa-se o desenvolvimento, nos currículos, e, inclusive,
na formação de professores (as) da rede escolar, de uma sensibilidade para a história
do aprendiz e de sua relação com o conhecimento, enquanto as formações contínuas se
abrem ao reconhecimento da experiência. Além disso, numerosos procedimentos
biográficos foram introduzidos para acompanhar, orientar, suscitar ou facilitar
a elaboração dos projetos pessoais de indivíduos em busca de uma orientação
ou de uma reorientação profissional, em busca de um emprego, de mulheres
que desejam trabalhar após um tempo em que acompanharam a educação das
crianças delas. Como situar esse fascínio pelo singular, pela individualidade, pelo
sujeito, pelo vivido, pelo experiencial, pela globalidade concreta, pelo existencial,
pela complexidade dos processos de formação etc. no movimento de ideias da
segunda metade do século XX? Alguns, como Charles Taylor, Ken Wilber ou
Robert Misrahi, dedicaram-se a essa tarefa com excelência, nas suas perspectivas
filosófica e epistemológica. De minha parte, gostaria de indicar alguns autores-
chaves dentre aqueles que me acompanharam na minha abertura para esse
novo paradigma e no meu engajamento intelectual na abordagem biográfica da
formação do sujeito.

127
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

As histórias de vida na emergência de um novo paradigma: algumas referências

O fascínio em relação à perspectiva biográfica parece inseparável


da reabilitação progressiva do sujeito e do ator, e essa reabilitação pode ser interpretada
como um retorno estabilizador após a hegemonia do modelo de causalidade
determinista das concepções funcionalistas, marxistas e estruturalistas do
indivíduo até o fim dos anos setenta. Dentre as consequências da valorização
desses dois conceitos para pensar nas pessoas, acha-se, claramente, evidente, uma
redescoberta da problemática da intencionalidade, com a tradução pragmática
nas múltiplas figuras do projeto.

Essa reabilitação do sujeito e do ator se tornou plausível teórica


e, cientificamente, pelo sucesso da Teoria dos Sistemas de Bertalanfy (1972),
reintroduzindo a abertura e a indeterminação no seio de uma visão determinista,
quer seja linear ou multifatorial, pela mediação do conceito de autopoiésis, que
caracteriza, no campo social, as individualidades. Em Antropologia, os trabalhos de
Gregory Bateson (1980) e da Escola de Palo Alto tiveram um impacto considerável
sobre a interpretação que construímos mediante nossas interações concretas. No
campo da Sociologia, Crozier e Friedberg contribuíram, fortemente, com O Ator
e o Sistema, para dar uma tradução concreta da teoria sistêmica. No que tange
à abordagem interdisciplinar, vem-me à memória que, em 1986, o Colóquio de
Cerisy, Pensar o Sujeito Hoje (GUIBERT-SLEDZIEWKI, 1988), constituiu um sinal
importante do deslocamento de intelectuais de diversos horizontes para a adesão
a esse novo paradigma. Enfim, nos campos da Psicologia e da Educação, cabe
lembrar as perspectivas de Carl Rogers, de Paulo Freire e de Bernard Honoré,
como os autores de referência que prepararam o terreno do nosso interesse
biográfico para abordar a formação do ponto de vista do sujeito aprendiz.

As obras de Edgar Morin (1977), publicadas sob o título geral La Méthode,


vieram esclarecer, de modo novo, a complexidade das dinâmicas bio-psico-sócio-
culturais, mediante uma síntese de um conjunto de abordagens contemporâneas,
cobrindo a quase totalidade dos campos científicos. Capaz de autonomia inventiva
e sujeito a imposições, o Anthropos encontra limites, uma intencionalidade em
busca de lucidez, uma reflexividade atuante, recobrindo, assim, o direito e os
deveres que o acompanham, de orientar, individual e coletivamente, suas
atividades, suas perspectivas e sua busca de conscientização.

[...]

Em nossa equipe de Genebra, o projeto de tese de Jean-Michel Baudoin nos


introduz às articulações entre Histórias de Vida, Abordagens Discursivas e Teorias da
Ação (a ser publicado). Jacqueline Mombaron trabalha sobre uma tese que busca
uma compreensão biográfica de nossas relações com instituições e seu lugar em
nossa formação, depois de ter nos apresentado os elementos dessa problemática
em um artigo a ser publicado, intitulado de Le Vécu Institutionnel du Formateur.
Laurence Turkal (1998) tenta compreender a construção biográfica da competência

128
TÓPICO 3 — NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

de aprender, enquanto Ronald Muller sensibiliza nossa equipe para a abordagem


alemã da lebenswelt (“mundo da vida”), alimentando a dimensão “sensível” da
formação. Ainda, Catherine Schmutz-Brun trabalha sobre as articulações entre a
escrita do relato e formação (ambos a serem publicados).

Ao longo desse rápido panorama dos projetos de conhecimento que têm,


como núcleo, os procedimentos de histórias de vida em formação, parece-me que
a história de vida, como projeto de pesquisadores/as e de autores/as, poderia ser,
assim, qualificada: o reconhecimento de elaborações e de processos-projetos de
formação do  nosso  ser-estar-no-mundo singular-plural mediante a exploração
pluridisciplinar – ou transdisciplinar, para alguns – e intersubjetiva de sua
complexidade biográfica.

As “histórias de vida” a serviço do desenvolvimento de projetos

Nesta segunda parte, o termo história de vida vai aparecer entre aspas.
Por que isso? Se é verdade que, em certos procedimentos de desenvolvimento
de projetos, o relato oral ou escrito tenta abranger a totalidade da vida em
seus diferentes registros e em sua duração, na maior parte das vezes, a história
produzida pelo relato é limitada a uma entrada que visa fornecer o material útil
ao projeto específico. Nessa última perspectiva, parece-me mais adequado falar
de abordagem biográfica ou de abordagem de experiência. Para melhor esclarecer
o meu propósito, eu gostaria de apresentar quatro exemplos de desenvolvimento
de projetos, dentre os vários, a que fui solicitada a colaborar nos últimos dez anos.

O primeiro exemplo se refere a uma abordagem baseada na experiência


a serviço de uma avaliação de competências, tendo em vista um novo referencial
profissional desenvolvido com cerca de vinte professores/as de uma escola
profissional de enfermagem. O órgão de controle da profissão, a Cruz Vermelha
Suíça, acabara de publicar o novo referencial de competências dos enfermeiros,
que deveria servir de base à redefinição dos cursos de formação inicial e de
formação contínua oferecidos no conjunto das escolas do território helvécio.
Os/As professores/as deveriam efetuar uma avaliação das suas competências,
tendo em vista esse referencial, a fim de assegurar o seu emprego e assegurar
a sua capacidade de ensinar essas competências recém-definidas. O trabalho
consistiu na construção de itinerários individuais, desenvolvendo as experiências
profissionais ou sociais empregadas com base no novo referencial, e as diferentes
competências que os caracterizavam. Cada itinerário foi discutido por todos os
participantes, com o objetivo de colocar em evidência, da forma mais depurada
possível, os pontos fortes e fracos de cada um/a, conduzindo à reflexão sobre
as modalidades de uma legitimação, ou “validação das aquisições” pelos
especialistas, após esse primeiro trabalho de autorreconhecimento das pessoas.

O segundo exemplo trata, igualmente, de uma abordagem baseada na


experiência, e colocada a serviço da formação inicial em enfermagem, por adultos
que retornaram aos estudos. A formação, concebida a partir do novo referencial
de competências, anteriormente, nomeado, explorava novas modalidades

129
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

pedagógicas, no centro das quais um projeto individualizado de formação


permitia, aos adultos, avaliarem a defasagem entre as aquisições anteriores,
a partir de experiências de vida diversas, e as competências a adquirir ou a
desenvolver. Além do mais, foi dada uma atenção particular ao seu itinerário
escolar, a fim de acompanhar, da forma mais adequada possível, suas dificuldades
nessa retomada dos estudos.

O terceiro exemplo diz respeito a uma abordagem biográfica temática no


quadro de um processo de formação de formadores de enfermeiros, reunindo,
aproximadamente, vinte professores/as e enfermeiros/as clínicos pelo uso da
escrita dos relatos de vida no campo da saúde. Nesse caso, a meta era a exploração
biográfica da sua formação no cuidado de si e dos outros, e, em seguida, trabalhar
com a transferência das verificações efetuadas durante o processo na formação
inicial e nos serviços de enfermagem.

O quarto exemplo se refere, novamente, a uma abordagem biográfica


temática. Trata-se de um módulo de formação contínua oferecido, durante muitos
anos, pela associação profissional de enfermeiros e enfermeiras do Cantão de Vaud
(CH), e pelo serviço de formação contínua vinculado à direção de enfermagem
do Hospital Universitário de Genebra. Esse módulo tinha, como objetivo, ajudar
os profissionais a retrabalharem, e, desse modo, a ressignificarem a sua escolha
profissional a partir da “História de meus projetos”.

Esses relatos muito heterogêneos, em sua natureza e objetivos, ainda que


inspirados em minha prática de histórias de vida em formação, não podem ser
considerados como “histórias de vida” propriamente ditas, o que não desvaloriza
em nada o trabalho biográfico efetuado a partir de uma entrada baseada na
experiência ou da abordagem temática de um itinerário. Ao apontar essa diferença,
pretendo destacar que as “histórias de vida”, colocadas a serviço de projetos, são,
necessariamente, adaptadas e restritas ao foco imposto pelo projeto no qual se
inserem, ao passo que as histórias de vida, no sentido pleno do termo, para os
membros da nossa rede, abarcam a totalidade da vida em todos os seus registros,
nas dimensões passadas, presentes e futuras, e, portanto, na sua dinâmica global.

É certo que as tentativas orientadas para projetos profissionais, em todas as


suas modalidades, são as que mais se inspiram nos saberes produzidos por nossos
processos de história de vida em formação. Na perspectiva do reconhecimento
das aquisições, validadas, ou não, depois, os seminários de Ginette Robin (1988)
podem ser considerados exemplares. Laurence Turkal, de Genebra, animou, em
parceria com ela, durante vários anos, os seminários oferecidos pelo serviço de
formação contínua da Universidade de Genebra. Esse procedimento é oferecido,
geralmente, a pessoas em busca de uma reorientação, de uma reinserção, mas
ele é, também, experimentado por profissionais que desejam adquirir uma nova
ferramenta de trabalho. O relato de experiência serve de base a um inventário de
capacidades e de competências, e se traduz em um “portfólio”, que ficará como
um recurso que a pessoa poderá utilizar em um contexto de emprego e em um
contexto de formação. No mesmo filão, mas com um procedimento, totalmente,

130
TÓPICO 3 — NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

original, pela combinação dos instrumentos utilizados, o coletivo “Espaço de


mulheres para a formação e o emprego” utiliza uma abordagem biográfica com
mulheres que têm, como perspectiva, a volta ao trabalho (EFFE, 1998).

Os centros de avaliação de competências que foram constituídos nestes


últimos anos devem ser, igualmente, mencionados nesta perspectiva, pois
muitos, dentre eles, adaptaram os processos autobiográficos de reconhecimento
das aquisições. Em Genebra, por exemplo, Pierre Dominicé e eu própria
acompanhamos, por mais de um ano, a reflexão de um pequeno grupo
organizado pelo diretor do escritório de orientação profissional na perspectiva
biográfica, preparando, assim, o terreno para a criação de um centro genebrino.
Os processos de educação de formadores que acompanham os trabalhadores
em busca de emprego, inspirados na autobiografia reflexiva de Henri Desroches
(1990), tal qual descrita por Jean Avezou (1992), podem ser integrados nessa
perspectiva, que tem um forte componente profissional. Enfim, Ari Haramein, do
núcleo de Quebec, aposentado da Universidade de Montreal, oferece, no quadro
da Associação de Formação de Direito Privado, que ele criou há dois anos, em
Montreal, uma reflexão biográfica sobre os desafios, as dificuldades e as crises da
vida profissional.

Dentre as tentativas de ajuda à inserção social, gostaria de lembrar um


organismo comunitário em Quebec – “A caixa postal de Longueuil” –, cujas
animadoras, Suzanne Daneau, Françoise Lefebvre e Martine Dupont, membros
do núcleo de histórias de vida daquela região, tomam os relatos de experiências
autobiográficas de pessoas analfabetas como suporte a um processo de expressão
de si e de aprendizagem da leitura e da escrita.

Dentre os procedimentos orientados por um projeto de desenvolvimento


pessoal, não é raro que o relato de si, ou de fragmentos autobiográficos, seja
um suporte de trabalho para múltiplas “oficinas de escrita” que proliferaram
nos últimos anos. A experiência de Jean Avezou, no Oeste francês, deve,
novamente, ser, aqui, assinalada, porque as suas oficinas eram, explicitamente,
centradas sobre um trabalho autobiográfico. Eu fui introduzida à dimensão
biográfica das oficinas da escritora suíça Mary-Anna Barbey (1997), pela análise
crítica que uma de minhas estudantes, da Faculté de Psychologie et Sciences de
l’Education, Anne-Marie Decrevel, efetuou em seu memorial de licenciatura.
Mencionemos, igualmente, Jeannne-Marie Gingras (1999), que trabalha com o
relato de seus estudantes da Universidade de Montreal, a partir da perspectiva
do desenvolvimento da sua criatividade, inspirando-se, ao mesmo tempo, no
Diário de Progoff e nos trabalhos de Vallery.

Um lugar particular deve ser conferido a Jean Vassileff – falecido em


1996 –, cofundador do Instituto de Pedagogia, do projeto em Nantes. Colocando
o seu trabalho sob uma perspectiva, abertamente, sociopolítica, as pessoas em
formação são convocadas a trabalhar com o relato autobiográfico delas a partir da
ótica de colocar seu Desejo em projeto, para desenvolver a capacidade de projeção
de si mesmas e de autonomização pessoal.

131
UNIDADE 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

Para terminar a segunda parte, gostaria de lembrar um trabalho de


fôlego que efetuei com Bernardette Courtois, apresentando as reflexões críticas
dos membros de um grupo de pesquisa que ela coordenou na AFPA (Agence
Francaise de Formation Professionelle des Adultes), versando sobre os riscos de
instrumentalização das “histórias de vida” nas práticas dos/as profissionais de
formação, de orientação ou reorientação, de reinserções social e profissional, e,
mesmo, nas empresas (Josso; Courtois, 1997).

A reflexão sobre as relações entre histórias de vida e construção de


projetos está longe de ser um tema esgotado, uma vez que Jean-Pierre Boutinet
nos convidou, há pouco tempo, a pensar em um projeto de encontro centrado
na comparação sistemática entre as metodologias de história de vida e as
metodologias do projeto.

Abertura

Nessa tentativa de balanço sobre a história de vida como projeto e as


abordagens biográficas ou de experiência a serviço de projetos, eu assinalo dois
pontos fortes para o futuro. O projeto teórico das histórias de vida em formação
testemunhará a sua vitalidade, para além das duas primeiras gerações, se os/as
pesquisadores/as e os práticos colocarem, como prioridade, um trabalho coletivo
de articulação teórica dos conhecimentos biográficos produzidos no campo da
formação, da autoformação e dos processos que os caracterizam em torno de uma
perspectiva ético-epistemológica. Além disso, é preciso frisar a necessidade de
um trabalho de diferenciação, e, portanto, de clarificação de projetos e de práticas
de relatos autobiográficos, de abordagens de experiências e de histórias de vida,
a fim de nomear, mais explicitamente, se necessário, as opções fundadoras do
projeto educativo subjacente – centrado sobre o formativo versus o prescritivo -
que reuniriam o conjunto dessas práticas, e dizer o que elas (práticas e opções)
questionam e se se situam em ruptura com a concepção e as práticas escolares,
ainda, dominantes nas formações inicial e contínua, geral ou profissional.

FONTE: <https://www.scielo.br/j/ep/a/FPRNJxFHvDf8jX5Yx55ThhH/?format=pdf&lang=pt>.
Acesso em: 20 jun.2021.

132
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Pesquisas de narrativas e de histórias de vida têm sido utilizadas na formação


docente.

• Existem monografias, dissertações e teses de cursos relacionadas à educação,


com base em memórias das próprias experiências de vida.

• É possível envolver histórias de vida na docência de diferentes cursos e


disciplinas, como história, matemática, ciências, teatro, medicina, ensino rural etc.

• Reflexões com base em narrativas acerca de si próprio podem servir de recurso


na formação docente.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

133
AUTOATIVIDADE

1 As qualidades mais admiradas nos professores continuam sendo, nos dias


atuais, as mesmas do que nas primeiras décadas do século XX? Justifique
sua resposta.

2 Quais são os desafios no tocante às pesquisas narrativas de histórias de vida de


profissionais da educação, de acordo com Passeggi, Souza e Vicentini (2011)?

Mais do que escrever novas prescrições para as escolas, um novo


currículo, ou novas diretrizes para as reformas, elas precisam
questionar a verdadeira validade das prescrições predeterminadas
em um mundo em mudança. Em resumo, precisamos mudar
de um currículo prescritivo para um currículo como identidade
narrativa; de uma aprendizagem cognitiva prescrita para uma
aprendizagem narrativa de gerenciamento da vida (GOODSON,
2007, p. 242).

FONTE: GOODSON, I. Currículo, narrativa e o futuro social. Revista Brasileira de Educação


[online], v. 12, n. 35, p. 241-252, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-
24782007000200005. Acesso em: 24 abr. 2021.

No tocante ao conceito de aprendizagem narrativa, analise as asserções que


seguem:

I- A aprendizagem narrativa se desenvolve na elaboração e na manutenção


continuada de uma narrativa de vida, ou de identidade. Dentre os
motivos que emergem na aprendizagem narrativa estão o trajeto, a busca
e o sonho – todos eles são motivos centrais para a contínua elaboração de
uma missão de vida.
II- A aprendizagem narrativa passou a ser vista como central para o
entendimento da forma como as pessoas aprendem ao longo da vida.
Na investigação da aprendizagem narrativa, pode-se encontrar subsídios
para desenvolver o conceito de capital narrativo.
III- A aprendizagem narrativa e o capital narrativo podem ser considerados
uma nova forma de educação, que trabalha a partir de acepções unívocas
das formas de aprendizagem que se opõem ao currículo prescritivo.
IV- Passar da aprendizagem prescritiva autoritária e primária para uma
aprendizagem narrativa e terciária poderia transformar nossas instituições
educacionais e fazê-las cumprir a antiga promessa de ajudar a mudar o
futuro social dos alunos.

134
Agora, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As asserções corretas são I e IV.
b) ( ) As asserções corretas são II e III.
c) ( ) As asserções corretas são I, III e IV.
d) ( ) As asserções corretas são I, II e IV.

4 No que se refere ao estudo feito por Silva, Oliveira e Souza (2018),


sobre identidade e docência, abrangendo a negociação de significados,
a imaginação e o ensino de ciências, classifique V para as afirmativas
verdadeiras e F para as falsas:

FONTE: SILVA, P. P.; OLIVEIRA, A. M. P. de; SOUZA, E. C. de. E agora, quem sou eu? Vou me
lembrar, se puder! Estou decidida!: (Des) Construções identitárias de uma professora que
ensina sobre ciências. Educ. Rev., Belo Horizonte, v. 34, e183635, 2018. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982018000100145&lng=e
n&nrm=iso. Acesso em: 19 maio 2021.

( ) A história de vida pode configurar um dispositivo de investigação que


permite, aos pesquisadores, a compreensão de processos de formação
para a docência, ou seja, as estratégias, os espaços e os momentos que
foram formadores ao longo de uma vida.
( ) As autobiografias de professores são valiosas em pesquisas quantitativas
que visam generalizar os resultados obtidos mediante os procedimentos
metodológicos, afinal, o processo de se formar professora/professor é
linear, e pode ser considerado invariável de pessoa para pessoa.
( ) A narrativa de si pode representar uma atividade de biografização, isto
é, de significação das experiências vividas. Pode ser útil nas pesquisas
autobiográficas de cunho qualitativo. Por meio dela, pode-se averiguar o
modo pelo qual as pessoas se constituem.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – V.
b) ( ) V – V – F.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

Tornar-se professor - para nos servirmos do célebre título de Carl


Rogers,  Tornar-se pessoa  - obriga a refletir sobre as dimensões
pessoais, mas, também, sobre as dimensões coletivas do
professorado. Não é possível aprender a profissão docente sem a
presença, o apoio e a colaboração dos outros professores.
Não se trata de convocar, apenas, as questões práticas, ou a
preparação profissional, no sentido técnico ou aplicado, mas
de compreender a complexidade da profissão em todas as suas
dimensões (teóricas, experienciais, culturais, políticas, ideológicas,
simbólicas etc.). Nesse sentido, a comparação mais adequada para

135
a formação de professores é com a formação dos médicos ou dos
engenheiros. Mas dizer isso, que parece simples, é colocar em
causa muito do que se faz nas licenciaturas (NÓVOA, 2019, p. 6).

FONTE: NÓVOA, A. Os professores e a sua formação num tempo de metamorfose da


escola. Educação & Realidade [online], v. 44, n. 3, e84910, 2019. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/2175-623684910. Acesso em: 24 abr. 2021.

No que concerne à formação docente em consonância à perspectiva de Nóvoa,


classifique V para as afirmativas verdadeiras e F para as falsas:

( ) A solução é formar professores sem investimentos significativos nesse


processo, de modo que seja dispensável estabelecer relacionamentos
com professores que já exercem a profissão, evitando estudos da
área da educação e a construção de conhecimentos pedagógicos – que
demandariam muitos investimentos financeiros aos cofres públicos.
( ) O campo da formação de professores tem um conjunto de autores, de
pesquisadores e de experiências institucionais de grande relevância. Em
virtude disso, a formação docente deveria estar vinculada ao trabalho
pedagógico, à reflexão, à pesquisa, à escrita e à ação pública. 
( ) A formação de professores deve ser transformada em um
verdadeiro mercado por grupos, empresas e fundações, já que políticas
públicas se mostram frágeis, e, as universidades, ausentes, ou, então,
devem ser prestigiados os modelos praticistas de formação, que defendem
o regresso a uma mera formação prática, no terreno escolar, com um
professor mais experiente.
( ) O ideal seria a construção de uma comunidade de formação, que
disponibilize espaços de experimentação pedagógica e de novas práticas,
composto por universidades e escolas. Na complexidade de uma formação,
a partir das experiências e das culturas profissionais, podemos encontrar
uma saída para os dilemas dos professores.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) F – F – F – V.
b) ( ) V – V – V – F.
c) ( ) F – V – F – V.
d) ( ) V – F – V – F.

136
REFERÊNCIAS
ARAUJO JR, A.; AVANZI, M. R.; GASTAL, M. L. Uma experiência de encontro
entre narrativas autobiográficas e narrativas científicas no ensino de biologia
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Horizonte, v. 19, e2705, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
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140
UNIDADE 3 —

NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA


ADOLESCÊNCIA À VELHICE
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender as relações entre as narrativas e as histórias de vida na


adolescência, na vida adulta e na velhice;
• refletir acerca de conjunturas de saúde atreladas à produção de narrativas
e de histórias de vida;
• observar as especificidades do emprego de narrativas autobiográficas nos
contextos de trabalho;
• conhecer as peculiaridades da construção de narrativas em situações de
imigração;
• identificar os benefícios da formação e da expressão de narrativas por
idosos, e por pessoas sob cuidados paliativos.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade,
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO

TÓPICO 2 – NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

TÓPICO 3 – NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IMIGRANTES

TÓPICO 4 – NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E


DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

141
142
TÓPICO 1 —
UNIDADE 3

NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO

1 INTRODUÇÃO
Ao concluirmos a unidade anterior, tivemos noções do uso de narrativas
e de histórias de vida vinculadas à formação docente, e, consequentemente, ao
trabalho dos professores. Neste tópico, continuaremos refletindo a respeito do
emprego de narrativas articulado ao trabalho, dessa vez, envolvendo outras
profissões, ocupações, e atividades que se relacionam ao ato de trabalhar – sejam
elas com “carteira assinada” ou não.

Veremos, inicialmente, algumas reflexões sobre o processo de orientação


profissional com jovens, os quais estão ponderando sobre as profissões que
planejam exercer futuramente. Logo após, concentrar-nos-emos sobre as
narrativas atinentes aos trabalhos de pesquisadores, de trabalhadores rurais, de
empreendedores. Por fim, entraremos em contato com narrativas que abordam a
morte no âmbito do trabalho.

Bons estudos!

2 NARRATIVAS E ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL


Para iniciar as nossas reflexões sobre o uso de narrativas, relacionado à
orientação profissional, observaremos alguns dados gerados pela pesquisa de Maia
e Mancebo (2010), acerca de jovens que estão planejando o projeto de vida deles,
abrangendo as intenções acerca do trabalho e de outros aspectos da vida adulta.

Acompanhe o resumo do artigo, para ter uma melhor compreensão dos


enfoques apresentados por Maia e Mancebo (2010, p. 377, grifo nosso) que serão
vistos logo depois:

O texto tem, por objetivos, analisar e discutir as maneiras pelas quais


os jovens, na atualidade, vêm construindo trajetórias, narrativas
e projetos de vida a partir das novas configurações assumidas pelo
trabalho, e apresenta, inicialmente, as concepções teóricas centrais que
nortearam a pesquisa: o contemporâneo, as mudanças ocorridas no
mundo do trabalho, a juventude e os projetos de vida. Expõe, a seguir,
o estudo empírico realizado, através de entrevistas semidirigidas,
com jovens de classe média alta do Rio de Janeiro, universitários e
estagiários de uma grande empresa local, cujos depoimentos foram
analisados pela análise de conteúdo e pela análise do discurso. Ao
final, o texto apresenta e analisa as principais temáticas localizadas

143
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

nos depoimentos: (1) as percepções, vivências e experiências relatadas,


pelos entrevistados, sobre os estágios, que remeteram, de maneira
direta ou indireta, a um aprendizado de construção pessoal e/ou
de adequação a um determinado perfil valorizado e reconhecido
no atual mercado de trabalho; (2) os contatos, que emergem como
facilitadores para a inserção e a permanência no mercado de trabalho;
e (3) a abordagem da entrada na vida adulta e a concepção de futuro,
apresentada, pelos jovens, como um mosaico de possibilidades que se
assentou, de fato, em uma concepção de presente alongado.

É válido notar que esse artigo vem fornecendo subsídios para que
pesquisadores, psicólogos, e outros estudiosos e profissionais compreendam
algumas das facetas da orientação profissional. Contudo, na medida em que os
jovens que fizeram parte da pesquisa (que foram os sujeitos de pesquisa) foram
se expressando ao longo dela, também, foram acionados processos reflexivos, e,
talvez, mudanças nos próprios processos decisórios sobre o projeto de vida deles.
Afinal, a pesquisa de Maia e Mancebo (2010) abrange a subjetividade enquanto
produção histórica na relação dialética com a realidade objetiva, isto é, cada
pessoa possui uma história individual, características singulares, potencialidades
próprias, e esses itens são entrelaçados com a sociedade e com o ambiente no
qual cada pessoa se insere.

Os discursos dos jovens em questão, possivelmente, acionaram reflexões


sobre presente, passado e futuro, e, assim, “[...] fornecem um sentido de continuum
à diversidade de vivências pessoais que, unidas, formam uma história de vida”
(MAIA; MANCEBO, 2010, p. 382).

Frequentemente, crianças, adolescentes e jovens, que integram a sociedade


ocidental, são questionados sobre “o que pretendem ser quando crescer”. Ao
receber essa pergunta (ou outras similares), a pessoa tende a pensar sobre quem
ela é, o que a difere das demais, o que ela tem em comum com as outras etc. Isso
pode se tornar um convite ao autoconhecimento, dependendo do modo pelo qual
a pergunta é feita e do diálogo que é estabelecido logo depois da (s) resposta (s).
Afinal, para se expressar sobre isso, é necessário colocar os processos ligados à
percepção, à memória e ao autoconceito em movimento.

As trajetórias e narrativas de vida desses jovens parecem constituir


um caminho de múltiplas e diferenciadas possibilidades, permitido
pelo seu contexto socioeconômico, que vai sendo construído como um
mosaico, no qual cada experiência, como uma peça, é, pouco a pouco,
inserida (MAIA; MANCEBO, 2010, p. 387).

O ambiente social é uma das facetas do referido contexto socioeconômico.


Vale lembrar das demais especificidades culturais inerentes, que fazem com que
os resultados apresentados por esse estudo não possam ser generalizados para
outros grupos com características diferentes (MAIA; MANCEBO, 2010).

Gullestad (2006), inclusive, destaca que grande parte das narrativas


de vida dos dias atuais acaba servindo como uma forma de testemunho dos
processos históricos, econômicos, sociais e culturais da modernidade capitalista.

144
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO

“O ambiente social é o meio no qual a realidade objetiva vai sendo


traduzida em realidade subjetiva, e a atividade, para o jovem, vai adquirindo um
significado próprio, com um objetivo definido” (DIAS; SOARES, 2014, p. 329).

Diante do exposto, na sequência, concentrar-nos-emos no estudo feito


por Dias e Soares (2014, p. 317), que, também, abrangeu a trajetória de vida e
a identidade cultural de jovens em fase de escolha no processo de orientação
profissional:

Este trabalho apresenta o relato de um estudo com o objetivo de


analisar as condições psicossociais envolvidas nas escolhas dos jovens
em seus projetos profissionais, a partir da vivência de uma das autoras
no Projeto Jovem, Mostre a sua Cara!, desenvolvido na Ilha do Mel,
Paraná. A Psicologia sócio-histórica e a metodologia qualitativa
embasaram o estudo realizado, no qual foram utilizadas técnicas de
orientação profissional. A análise das narrativas produzidas pelos
grupos ressaltou aspectos sobre a realidade do trabalho e sobre os
limites e as possibilidades de escolhas profissionais, que refletem a
situação particular desses jovens. A relevância desse relato se centra
no fato de que qualquer projeto de intervenção requer o conhecimento
dos aspectos socioculturais e das dinâmicas próprias de uma
comunidade específica como essa. A prática da orientação profissional
pretendeu ter contribuído para mobilizar a participação dos jovens
no projeto, nas suas múltiplas dimensões, e ter fornecido subsídios
para as instituições envolvidas, tanto neste quanto em outros projetos
dessa natureza.

Dias e Soares (2014) utilizaram narrativas de jovens com vivências nos


processos grupais, com o intuito de averiguar as influências subjetivas das
condições psicossociais nas decisões dos planos profissionais deles, isto é, os
processos de constituição da subjetividade foram enfatizados nesse artigo:

Constituição significa algo que faz parte, forma e compõe a


subjetividade. O indivíduo acolhe as relações sociais ao configurar a
sua identidade pessoal, e, também, constrói uma história, um projeto
de vida, que pode ser entendido como uma narrativa (DIAS; SOARES,
2014, p. 324).

O artigo de Dias e Soares (2014) faz menção à atribuição dos sentidos e


dos significados às palavras. Afinal, as identidades vão sendo mobilizadas nos
espaços de articulação de sentidos e de práticas.

Assim, através do estudo dos significados das palavras produzidos


nas narrativas, é possível conhecer como o homem se insere no
seu processo histórico, não apenas como ele é determinado, mas,
principalmente, como ele se torna agente da sua história, como pode
transformar a sociedade na qual vive. A ação do sujeito, o que este vai
fazer em sua perspectiva de escolha profissional, depende do grau de
autonomia e iniciativa alcançado por ele nas diversas relações sociais
estabelecidas na comunidade, na família, com os colegas, na escola,
nos diversos grupos dos quais participa (DIAS; SOARES, 2014, p. 319).

145
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Por intermédio dos relatos das histórias e das vivências diárias, vão
emergindo os gostos dos jovens, as crenças, os aspectos afetivos, cognitivos
etc. Envolvem-se, ainda, preferências por determinadas práticas de esportes,
programas de televisão, hobbies, estudos, o que sinaliza a identidade de
pertencimento. Também, vão despontando aspectos relativos à autonomia, à
felicidade, à vergonha e ao orgulho (DIAS; SOARES, 2014).

Para cumprir a sua finalidade, a orientação profissional deve ser


operacionalizada, da maneira mais coerente possível, com as
circunstâncias sócio-históricas encontradas, e de acordo com o
contexto no qual está inserida. Deve trabalhar com todas as técnicas
disponíveis, promover o autoconhecimento do sujeito como um meio
não só de facilitar a escolha profissional, mas de ajudar o indivíduo
na elaboração de um projeto de vida mais pleno, que considere a
multiplicidade de aspectos envolvidos na escolha dos seus futuros
pessoal e profissional (DIAS; SOARES, 2014, p. 331).

A partir desses dois artigos, já podemos ter noções de possíveis articulações


entre narrativas e relatos de histórias de vida, além das primeiras reflexões sobre
a inserção no mercado de trabalho.

Gullestad (2006) esclarece que as narrativas evidenciam diversificadas


reações, adaptações e resistências específicas à modernidade e às peculiaridades
do capitalismo.

O capitalismo moderno é, sem dúvida, o sistema mais eficiente, em


termos de produtividade, criado pelo ser humano, mas a própria
racionalização que o tornou possível entra em choque com os
valores da civilização ocidental, como a criatividade individual e a
independência da ação.
O trabalho é tido como obrigação moral do indivíduo; a sociedade
cobra que todos produzam por meio dele. Aquele que não trabalha não
está de acordo com a ética dessa sociedade. Isso repercute, até mesmo,
naqueles que já trabalharam, adquiriram o direito à aposentadoria,
e, quando se aposentaram, continuam vítimas dessa ética. Os
indivíduos, mesmo depois de terem passado a maior parte das suas
vidas desempenhando uma atividade especializada, monótona,
sentem-se, quando longe dessa atividade, incompletos e/ou inúteis,
por estarem fora do mercado de trabalho (SOUZA; MATIAS; BRÊTAS,
2010, p. 2841).

O enfoque deste livro não é discutir o capitalismo, no entanto, não


podemos deixar de, pelo menos, citá-lo, sendo que ele influencia muitos dos itens
que serão debatidos neste tópico.

A seguir, veremos alguns exemplos de como as narrativas podem se


articular ao trabalho e à carreira profissional propriamente dita. Vamos lá?!

146
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO

3 NARRATIVAS E TRABALHO
Quanto às pesquisas que associam as narrativas de histórias de vida
às questões profissionais ou do mundo do trabalho, optamos por apresentar
quatro delas. Vale elucidar que a ordem de exposição dessas pesquisas se deu
aleatoriamente. Iniciaremos as nossas reflexões pautados na pesquisa feita por
Itelvino et al. (2018), que relaciona a história de vida às educações formal e não
formal, mais especificamente, no tocante ao empreendedor social. Vejamos
o resumo do artigo, para que possamos ter uma melhor compreensão das
ponderações que estarão na sequência:

Os empreendedores sociais convertem assuntos sociais em


oportunidades, criam negócios e transformam a experiência
empreendedora em conhecimento empreendedor. Assim, é relevante
entender o processo de formação desse indivíduo como gerador
de mudança da sociedade. Esse é, portanto, o objetivo geral desta
pesquisa, que é qualitativa, e cujo método envolveu a análise de três
narrativas da história de vida de empreendedores, considerados
referências no desenvolvimento de projetos sociais de impacto no
Brasil, segundo o Prêmio Empreendedor Social, realizado pelo jornal
Folha de São Paulo e pela Fundação Schwab. Para a organização das
análises, utilizou-se o software ATLAS. Os resultados demonstraram
que a formação do empreendedor social está vinculada aos espaços e
aos contextos de aprendizagem, à trajetória de liderança e à motivação
para o empreendedorismo social, sendo, essas categorias, permeadas
pelas educações formal e não formal (ITELVINO et al., 2018, p. 471,
grifos nossos).

Note que um dos resultados dessa pesquisa foi apresentar subsídios


didáticos para serem explorados e desenvolvidos pelas esferas educacionais e
empresariais, com o intuito de formar novos empreendimentos e empreendedores
sociais (ITELVINO et al., 2018).

É pertinente destacar que o uso de narrativas da história de vida pode


acarretar material para diversas finalidades. Ao longo deste livro, poderemos
constatar que não são, apenas, os participantes da pesquisa que são beneficiados.
Os resultados dessas pesquisas fornecem elementos que poderão ser úteis em várias
situações, e que poderão incidir sobre diferentes pessoas, ou grupos da sociedade.

Em todo um outro setor, aquele da gestão de empresas, um número


recente da Revue Française de Gestion — intitulado: Récits de vie et
management (vol. 31, nº 159, 2005) – desenvolve o interesse, de colocar
em forma de relato, “fragmentos de experiência vivida” para a formação
de competências e sua transmissão, para a cultura da empresa, e,
finalmente, para dar sentido à ação coletiva. Os autores traduzem,
por “narração”, o termo norte-americano storytelling (contar história).
Esses títulos são, também, indicadores da amplitude e da diversidade
do movimento de biorreflexividade narrativa, que transborda da
biografia no sentido etimológico (PINEAU, 2006, p. 340-341).

147
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Por exemplo, uma pesquisa como essa, desenvolvida por Itelvino et


al. (2018), é valiosa diante do aumento da quantidade de egressos no Ensino
Superior do nosso país. Vale sinalizar que as políticas de inclusão têm auxiliado
na elevação desses números. Em contrapartida, a inserção no mercado de trabalho
não vem crescendo na mesma proporção, o que faz com que a introdução da
visão empreendedora e inovadora, nos cursos de graduação, seja imprescindível
(ITELVINO et al., 2018). Assim, Itelvino et al. (2018) sugerem que a visão
acadêmica da formação universitária seja acrescida de práticas que propiciem,
aos alunos, o contato com o ambiente social. Essas circunstâncias contribuem
para o desenvolvimento da postura empreendedora e inovadora no decorrer da
formação acadêmica.

Por conseguinte, Itelvino et al. (2018) defendem que a “Socialização


Empreendedora” seja promovida nas esferas universitárias, por intermédio de
ações didáticas que integrem espaços e contextos formais e não formais. Inclusive,
ressaltam que o desenvolvimento da liderança profissional e do senso coletivo seja
estimulado e desenvolvido através de atividades práticas de intervenção social.

DICAS

O aumento de egressos nos cursos de nível superior, perante um mercado de


trabalho que não vem absorvendo esses formandos, não parece característica exclusiva
do Brasil. Afinal, o filme Desnorteados, lançado em 2015, também, aborda essa conjuntura
(dentre outras). Trata-se de um filme espanhol, do gênero comédia, que mostra algumas
das agruras atravessadas por dois espanhóis graduados, ao perceberem que o mercado de
trabalho do país deles está saturado. Assim, eles resolvem buscar oportunidades de trabalho
em Berlim, na Alemanha.

CAPA DO FILME PERDIENDO EL NORTE

FONTE: <https://www.nonetflix.com.br/desnorteados/24669>. Acesso em: 6 jul. 2021.

148
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO

Na continuação, estaremos pautados na pesquisa feita por Silva (2018), que


abordou histórias de vida e narrativas vinculadas ao trabalho nos assentamentos
rurais, e, também, à colonização:

Este texto versa sobre a colonização, reforma agrária e os projetos de


assentamentos rurais de Mato Grosso. Assim, objetiva compreender, a
partir das histórias de vidas e narrativas dos participantes da pesquisa
do Projeto de Assentamento Vale do Arinos, seus sentimentos ao
chegarem no assentamento, suas experiências de vida individuais e
coletivas, seus sonhos, lutas e desafios empreendidos em busca da posse
de seus lotes de terra, no contexto do assentamento rural. O estudo se
baseia no método de pesquisa qualitativa, associado ao método de
histórias de vida e narrativas de doze assentados, especificamente, dos
primeiros moradores do assentamento. Os dados da pesquisa apontam
que as narrativas manifestadas mostram, por um lado, a satisfação e a
alegria pela oportunidade que tiveram ao realizar o sonho de conquistar
seus próprios lotes de terras para a garantia da produção familiar, e,
de outro, que existem, ainda, problemas inerentes ao descaso e/ou
pouco comprometimento do poder público, ao não disponibilizar, aos
assentados, a infraestrutura básica preconizada nas políticas de reforma
agrária para assentamentos rurais (SILVA, 2018, p. 1, grifos nossos).

Nas narrativas dos participantes dessa pesquisa, foi possível acessar


algumas das experiências (individuais e coletivas), sentimentos, motivações,
expectativas, sonhos, alegria, felicidade, contemplações, esperanças deles
(SILVA, 2018), porém, as narrativas não foram compostas, apenas, por aspectos,
frequentemente, considerados positivos.

As narrativas dos pesquisados fazem alusões de que o acesso à terra, a


propriedade do lote, os trabalhos realizados são subsídios importantes,
mas não suficientes para possibilitar condições de produção, de renda
e de qualidade de vida. Desse modo, foi difícil, para os assentados,
continuarem no assentamento sem os meios necessários para as
atividades produtivas, como máquinas, equipamentos, insumos,
créditos, e, também, o conhecimento não só de como produzir, mas do
ambiente natural da região (SILVA, 2018, p. 17).

Ou seja, as narrativas, também, revelaram tramas, desafios, percalços,


pouco transporte, desesperanças, falta de dinheiro e de infraestruturas básicas
(escolas, pontes, postos de saúde, moradias, água), marchas, e lutas visando
ao direito pela terra, e, consequentemente, por melhores condições de vida
(SILVA, 2018). Assim, foram percebidas muitas reflexões que expressaram as
vidas, as decisões, a qualidade de vida e a dignidade. Por meio das narrativas
dos participantes dessa pesquisa, foi possível notar que eles se tornaram atores
sociais em busca dos interesses e dos direitos deles (SILVA, 2018). “Ressaltam que
conseguiram contornar vários desses problemas/desafios com muito trabalho,
individual ou coletivo, e aprenderam a ouvir e a sentir o lugar” (SILVA, 2018, p. 17).

No momento em que uma pessoa é convidada a partilhar aspectos da


vida dela com um pesquisador de ciências humanas ou sociais, está diante de
um convite que pode interferir no presente e no futuro da sua vida, pois as falas

149
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

dela poderão conduzir essa pessoa a uma ressignificação do próprio passado, e a


novos horizontes. “Essa busca pela transformação decorre quando o sujeito toma
consciência de si nesse processo de construção sociocultural” (SILVA, 2018, p. 3).

Na prossecução, encontraremos alguns enfoques da pesquisa conduzida


por Closs e Antonello (2014), que se concentra sobre o uso de história de vida,
voltado para o desenvolvimento sustentável, por meio da educação para a
sustentabilidade. Portanto, trata-se de um artigo que menciona a aprendizagem
transformadora e a reflexão crítica.

O presente estudo teve, como objetivo geral, compreender processos


de aprendizagem transformadora – que objetivam transformações
conscientes nos quadros de referência dos indivíduos, por intermédio
da reflexão crítica sobre pressupostos – ocorridos entre gestores.
Investigou-se a percepção destes acerca do impacto de problemáticas
contemporâneas, enfocando, em especial, questões relacionadas à
sustentabilidade. Além disso, discutiu-se o papel da educação gerencial
na conscientização desses profissionais quanto à responsabilidade
deles no desenvolvimento da sustentabilidade. Para a realização da
investigação, foi adotado o método de história de vida. Essa abordagem
metodológica favorece o estudo de processos de aprendizagem
gerencial, possibilitando as contextualizações pessoal, histórica, social,
institucional e política das narrativas. Foram entrevistados sete gestores,
e se teve a preocupação de contemplar ambos os gêneros, diferentes
faixas etárias e formações superiores, experiências em funções e
setores diversos, e a realização de cursos de mestrado em diferentes
instituições, obtendo suficiente riqueza de dados para a análise e para
a consecução do objetivo estabelecido. Os achados em campo revelam
que a teoria e os processos de aprendizagem transformadora: 1. não
podem ocorrer de modo individual, em meio a pressões sociais e
corporativas contrárias, mas, sim, como um processo de transformação
coletiva, compartilhado por outros, em meio a mudanças sociais e
culturais; 2. abrem possibilidades para uma formação gerencial que
vise a posturas mais críticas e reflexivas, levando em consideração a
subjetividade dos indivíduos e visões mais inclusivas e participativas,
como requer a educação para a sustentabilidade; 3. possibilitam a
inserção crítica do gestor na sociedade, incorporando, no processo
de ensino e aprendizagem, as dimensões socioeconômica, política,
cultural e histórica, além das dimensões intelectual, afetiva e moral
e não apenas os materiais, favorecendo o desenvolvimento da
sustentabilidade. Sugere-se a realização de pesquisa-ação, a partir
da qual se incorporem os fundamentos da teoria da aprendizagem
transformadora em programas de educação gerencial que promovam a
sustentabilidade, dados os potenciais benefícios da reflexão crítica para
a consecução dos seus objetivos (CLOSS; ANTONELLO, 2014, p. 222).

Com a leitura desse resumo, pode-se perceber a relevância de tais


temáticas, já que o desenvolvimento sustentável diz respeito à sociedade, e ao
planeta, como um todo. Vincular a sustentabilidade à formação gerencial é viável
e necessário na atualidade, por conta dos potenciais benefícios da promoção
da reflexão crítica para o alcance desse propósito. Por isso, Closs e Antonello
(2014) recomendam que mais programas de desenvolvimento gerencial passem a
enfocar a sustentabilidade.

150
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO

A pesquisa de Closs e Antonello (2014), ainda, deixou contribuições no


que se refere aos processos de aprendizagem de gestores – sobretudo, no tocante
ao aporte teórico da aprendizagem transformadora, procedente do campo da
educação e aplicado na área da administração.

As narrativas revelaram o anseio dos gestores para responderem


aos desafios do contexto organizacional atual – tão dinâmico e complexo.
Também, sinalizaram a importância de estratégias pedagógicas envoltas por
experiências transformadoras de aprendizagem e pela reflexão crítica (CLOSS;
ANTONELLO, 2014).

Closs e Antonello (2014) ressaltam que essas situações não devem ficar
circunscritas à fase de educação gerencial em seu desenvolvimento, mas, sim,
que passem a ser incorporadas em suas práticas sociais e na atuação profissional.

Vale mencionar que, assim como a expressão “atores sociais” se fez presente
no artigo de Silva (2018), expressões, como “protagonista”, e “aprendizagem
emancipatória”, foram citadas no estudo de Closs e Antonello (2014).

Veja como outras expressões semelhantes, utilizadas por Closs e Antonello


(2014, p. 248, grifos nossos), remetem ao conceito de atores sociais, visto no artigo
antecedente:

Além disso, ao destacar o protagonismo dos alunos em seu processo


de aprendizagem gerencial via reflexão crítica, a aprendizagem
transformadora reforça a importância de oportunizar, na educação
gerencial, a abertura para novos modos de pensar e de agir ante as
demandas da sociedade. O processo educacional envolve a capacidade
transformadora do aluno, como agente, perante a sua experiência de
aprendizagem na formação gerencial, pressupondo a problematização
de elementos ideológicos "preconcebidos" para ressaltar a ideia
de que, muitas vezes, as ideologias são interiorizadas, de modo
inconsciente, pela exposição a contradições, dilemas, dúvidas e novas
possibilidades.

Se, no artigo anterior, deparamo-nos com histórias de vida de assentados


que assumiram os postos de atores sociais atuantes nos cenários econômico, social
e político (SILVA, 2018), agora, encontramos narrativas de gestores assumindo a
postura de agentes e de protagonistas do processo de aprendizagem (CLOSS;
ANTONELLO, 2014).

151
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

NOTA

A expressão ator social está, diretamente, relacionada aos processos


de produção, de reprodução, e, principalmente, de transformação da realidade. Por
conseguinte, tratam-se de agentes, de pessoas que saem da passividade, assumindo o
protagonismo. Para Ruscheinsky e Treis (2019, p. 180), “[...] os atores sociais se desdobram
em seus limitados meios para, igualmente, consolidar um lugar de controle, em especial,
criam-se espaços de cobrança e de críticas à inoperância de programas de reparação”.

Por fim, Closs e Antonello (2014) fazem menção à tensão entre o que é
planejado no currículo educacional do curso e o que é demandado dos gestores
no cotidiano profissional, para lidar com os desafios e as incertezas da prática nas
organizações e na sociedade.

Partindo, agora, para o desfecho deste momento, entraremos em contato


com uma pesquisa sobre auto/biografia e ciências sociais, ligada ao Curriculum
Vitae e ao Currículo Lattes, realizada por Nascimento e Nunes (2014).

É válido lembrar que a grande maioria do que vimos até aqui, sobre
narrativas e histórias de vida, diz respeito às escritas de pessoas sobre as próprias
trajetórias de vida, ou às expressões escritas/orais que emitiram mediante
entrevistas guiadas por pesquisadores.

Já o trabalho de Nascimento e Nunes (2014, p. 1077, grifos nossos) se


concentra nas narrativas contidas nos currículos, como no vitae e no da Plataforma
Lattes, como mostrará o resumo a seguir:

Dentro das diversas maneiras de utilizar a abordagem biográfica,


adotamos, como material de pesquisa, o Curriculum Vitae (CV) de
pesquisadores brasileiros que atuam como cientistas sociais da saúde.
Esses CV fazem parte da Plataforma Lattes do CNPq (Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que inclui os
Diretórios de Pesquisa e das Instituições. Neste trabalho, são analisados
238 CV. Os CV contêm, dentre outras, as seguintes informações:
formação profissional, atividades e projetos, produção acadêmica,
participação em bancas, núcleos e laboratórios de pesquisa, pequena
autobiografia. Neste trabalho, há breve revisão sobre a importância
da auto/biografia para as ciências sociais, enfatizando o CV como
uma forma de "prática autobiográfica". Destacamos, como resultados:
grupo formado, predominantemente, por mulheres, graduadas em
ciências sociais, antropologia, sociologia ou ciência política, com pós-
graduação; maior concentração de cientistas sociais nas regiões Sul e
Sudeste e em algumas instituições; atuação principal como docentes e
pesquisadores; grande diversidade temática nas pesquisas.

152
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO

De acordo com Nascimento e Nunes (2014), o uso de currículos foi


apropriado para os objetivos da pesquisa deles, já que buscavam traçar um perfil,
indicando algumas características de um grupo de cientistas sociais que atuam no
campo da saúde. Assim, foi possível identificar características de cientistas sociais
a partir da autobiografia denominada de curricular.

Nascimento e Nunes (2014) esclarecem que dados mais específicos, e


informações mais aprofundadas, podem ser gerados mediante relatos de vida, com
técnicas, como entrevistas, relatos orais e depoimentos. Eles podem ser oportunos
para pesquisadores que desejam compreender aspectos da profissionalização,
relacionados à escolha profissional, ligada ao campo da saúde, por exemplo.

Agora que já vimos alguns pontos discutidos, em pesquisas, sobre o uso


de narrativas em pesquisas que abarcam o trabalho, passaremos para a parte final
deste tópico, que abordará articulações entre narrativas, trabalho e morte.

4 NARRATIVAS E MORTE NO TRABALHO


A morte é um assunto considerado um tabu por muitas pessoas.
Curiosamente, ela está presente em vários filmes, séries, e não parece ser tão
difícil vê-la na tela da televisão, em obras de ficção, quanto é falar dela nas salas
de aula das faculdades. Em contrapartida, na vida real, não são raros os dias nos
quais algum trabalhador morre por conta de um acidente de trabalho.

DICAS

Segue uma sugestão de filme que apresenta reflexões sobre a morte resultante
de acidentes de trabalho:

CAPA DO FILME HORIZONTE PROFUNDO: DESASTRE NO GOLFO

FONTE: <encurtador.com.br/fsKRX>. Acesso em: 6 jul. 2021.

153
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Horizonte Profundo: Desastre no Golfo – Título original Deepwater Horizon –


(2016). Ilustra a tensão da luta pela sobrevivência de mais de cem trabalhadores que ficaram
presos por conta de uma explosão ocorrida em uma plataforma de extração de petróleo
no Golfo do México. O filme mostra o quanto o protagonista precisou lutar para se manter
vivo, e, inclusive, auxiliar alguns companheiros que ficaram feridos com a explosão. O filme
é, inclusive, baseado em fatos reais.

De mais a mais, não é, apenas, a morte do trabalhador em si, que interfere


no âmbito profissional. Comumente, quando uma pessoa atravessa o processo
de luto, em decorrência da morte de um ente querido, a produtividade dela é
afetada no trabalho. Uns aumentam a produtividade, pois, com a sensação de
que mergulharam no trabalho, não têm tempo para sofrer a dor da perda. No
entanto, a maior parte das pessoas apresenta diminuição da concentração ou da
produtividade quando falece alguém com quem tinha muita proximidade.

DICAS

Um filme que mostra algumas das dificuldades que um pai vivencia no trabalho,
durante o processo de luto pela morte da filha, é Beleza Oculta.

CAPA DO FILME BELEZA OCULTA

FONTE: <https://cozinhaemcena.com.br/2020/01/beleza-oculta.html>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

Para ilustrar o uso de narrativas em pesquisas que tratam da morte por


decorrência de acidente de trabalho, recorremos à pesquisa feita por Freitas e
Santos (2017), que envolveu os temas condições comuns e diferenciações, ligados
à morte de trabalhadores.

154
TÓPICO 1 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E TRABALHO

Este artigo parte da identificação e da seleção de processos criminais,


ocupados com os trâmites investigativos da morte de determinados
trabalhadores, para evidenciar relações construídas entre os sujeitos
abordados na apuração criminal. Ao apontar a imbricação entre
eles, pontuamos a historicidade de uma trama que anota aspectos
expressivos da emergente ação industrial – materializada nas atuações
de serrarias, olarias e frigoríficos – e a presença de trabalhadores
nessas atividades. Essas relações, empreendidas a partir de meados do
século XX, são destacadas com o interesse em discutir tensões sociais,
suscitadas no processo de constituição territorial do Oeste do Paraná.
Na documentação apresentada, promovemos a visualização de
imagens da desigualdade e da diferenciação vivida por trabalhadores
– fossem eles “sulistas”, “paraguaios” e/ou “nortistas” –, um convite
para acessar essa experiência social por meio das ambiguidades e
das confrontações que compõem esse processo (FREITAS; SANTOS,
2017, p. 1).

Ainda que a palavra narrativas e outras similares não tenham aparecido


no resumo, Freitas e Santos (2017) se debruçaram sobre narrativas procedentes de
investigação policial ou de apreciações judiciais. Essas narrativas apontam relações de
poder implícitas ao crivo de escrivães e peritos. De um jeito ou de outro, esses
profissionais acabaram adotando as próprias entonações ao datilografar as falas
e as posições dos narradores a eles submetidos.

DICAS

A leitura complementar desta unidade é relativa a este tópico. O título é O Uso


da Autobiografia na Educação de Adultos: Modos Narrativos de Valorização e Legitimação
da Experiência Profissional. Foi escrita por António Calha. Você a encontrará ao fim do
Tópico 4. Boa leitura!

Mais do que analisar o trâmite de investigação criminal, ou,


meramente, os sentidos atribuídos aos crimes, interessa-nos tratar das
narrativas processuais como evidências históricas. Elas permitem que
nos aproximemos de visões sobre sujeitos, temporalidades e condutas,
valoradas em relações de poder e tensões sociais. Consideramos que
essas narrativas, ainda que registradas para a composição de processos
criminais, quando tratadas como fontes, permitem alinhavar elementos
importantes da experiência social, apontando questões pertinentes
sobre a vida dos trabalhadores e sobre o que os aproximam da morte
(FREITAS; SANTOS, 2017, p. 2).

As narrativas evidenciam os lugares sociais que as pessoas ocupam frente


à morte tratada (patrões, trabalhadores, delegado). Essas narrativas descortinam
situações de desigualdade e de exploração.

155
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

DICAS

Que tal ler esse artigo na íntegra? O título dele é Entre a Vida e a Morte de
Trabalhadores: Imagens de Desigualdade e Diferenciação Autoprocessuais e Narrativas
da Experiência Social no Oeste do Paraná (Aspectos de Relações Mantidas em Serrarias,
Olarias e Frigoríficos em Meados do Século XX). Foi escrito por Sheille Soares de Freitas e
Carlos Meneses de Sousa Santos. Está disponível em https://www.scielo.br/j/his/a/MQjd44
kzz3SX9w4LMW6Fgks/?lang=pt&format=pdf.

Antes de finalizarmos este tópico, convém resgatar um excerto do artigo


de Gullestad (2006), uma vez que ele articula questões do uso de narrativas
autobiográficas com circunstâncias acarretadas pelo capitalismo:

Quero argumentar, aqui, que as narrativas autobiográficas se tornam


mais importantes na vida das pessoas com essas mudanças econômicas,
sociais e culturais. O gênero autobiográfico está se efetivando e se
transformando por se estender a novos grupos, novos contextos
e novas regiões do mundo como parte das presentes mudanças.
Interpreto essa extensão como integrando uma luta contemporânea
por constelações fundamentadas de significação dentro de processos
cada vez mais globais (GULLESTAD, 2006, p. 514).

DICAS

CAPA DA SÉRIE GODLESS


Outra sugestão de obra
cinematográfica sobre a morte no
trabalho é a série intitulada Godless.
Trata-se de uma ficção do gênero faroeste
cujo enredo é a morte de, praticamente,
toda a população masculina de uma
localidade, em virtude de um desastre
em uma mina. A série mostra o quanto
as mulheres precisaram ser resilientes
para manter a sobrevivência da cidade
de La Belle.

Além disso, a série mostra a


perseguição que o fora-da-lei Frank
Griffin (Jeff Daniels) e seu bando realizam
para tentar encontrar Roy Goode (Jack
O'Connell), seu maior inimigo.
FONTE: <encurtador.com.br/axEP7>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

156
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Pesquisas vêm sendo feitas com o intuito de buscar compreensões acerca de


pessoas, de determinados processos e de situações a partir de narrativas.

• As narrativas e as histórias de vida costumam revelar conjunturas dos cenários


econômicos, históricos, sociais, culturais, ideológicos e políticos.

• Participar de uma pesquisa das ciências humanas ou sociais, enquanto sujeito


de pesquisa, pode desencadear processos reflexivos de autoconhecimento, e
possíveis ressignificações.

• A sociedade é beneficiada com pesquisas que se embasam em narrativas, pois


novas compreensões sobre diferentes temáticas podem ser conquistadas.

• Não são, apenas, os livros de autobiografia que fornecem textos de narrativas


e de histórias de vida.

• É possível entrar em contato com as narrativas de outrem por meio de


depoimentos, de relatos, de entrevistas, de currículos, e, até mesmo, em textos
do campo do Direito, como textos de investigação policial ou de apreciações
judiciais.

157
AUTOATIVIDADE

1 Leia o excerto do artigo que foi visto neste tópico, acerca dos assentados:

As narrativas são indissociáveis da história de vida, por isso,


constituem-se fontes potenciais para compreender o sentido
que os assentados – participantes desta pesquisa –, atribuem às
histórias de vidas deles, que são, genuinamente, mobilizadas por
sonhos, esperanças, sentimentos, pela decisão deliberada em lutar,
em trilhar os (des)caminhos para fazer acontecer as políticas de
reforma agrária e, sobretudo, movidos pela busca da justiça e da
igualdade social. Nesse percurso de narrar as histórias de vida, os
pesquisados são mobilizados a acionar suas memórias do tempo
que retratam as lutas e as mobilizações, desde o processo inicial de
criação e institucionalização do Projeto do Assentamento do Vale
do Arinos. Os múltiplos percalços, passos (in)certos e avanços,
por certo, aparecerão nas histórias e nas narrativas de memórias
dos assentados (SILVA, 2018, p. 4).

Narrativas e histórias de vida vêm sendo mais empregadas em pesquisas de


abordagem quantitativa ou qualitativa? Justifique sua resposta.

2 Para um cientista da área de humanas ou sociais, ter um currículo Lattes


em mãos para analisar equivale a ter um longo depoimento de uma pessoa,
coletado com o auxílio de um roteiro de entrevista semiestruturado?
Justifique sua resposta.

3 Furtado, Carrieri e Bretas (2014) realizaram um estudo sobre narrativas


produzidas por trabalhadores insatisfeitos com as circunstâncias do
ambiente de trabalho. Os trabalhadores disseminaram as narrativas na
internet, no formato de vídeos. Elas são compostas por um discurso de
reação, de problematização das relações de poder, por intermédio do
humor. Tendo em vista a elaboração de narrativas, classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas:

FONTE: FURTADO, R. A.; CARRIERI, A. de P.; BRETAS, P. F. F. Humor na internet: trabalha-


dores utilizam nova estratégia para protestar contra demissões e terceirizações. Revista de
Administração [online], São Paulo, v. 49, n. 1, p. 33-44, 2014. Disponível em: https://doi.
org/10.5700/rausp1129. Acesso em: 24 abr. 2021.

( ) O humor pode equivaler a uma estratégia de resistência e de controle. É


uma estratégia interessante para manifestar uma luta simbólica.
( ) Narrativas construídas com base no humor podem ser proveitosas para se
perceberem as ambiguidades e os paradoxos que perpassam o cotidiano
das empresas.
( ) Apenas as narrativas tradicionais, como as entrevistas, permitem que o
leitor note as relações de poder e os relacionamentos estabelecidos nos
ambientes de trabalho.
( ) Os autores de narrativas que optam pela internet para divulgá-las tendem
a ter maior poder de alcance.

158
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) V – V – F – V.
b) ( ) F – F – V – V.
c) ( ) V – F – V – F.
d) ( ) F – V – F – F.

4 Leia o resumo do artigo escrito por Bispo, Dourado e Amorim (2013, p. 699),


e, depois, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

Este artigo foi movido pelo propósito de estudar o sentido que


indivíduos envolvidos com a cultura Hip Hop atribuem ao
trabalho. O referencial teórico explora os vários sentidos que
o trabalho adquiriu, principalmente na contemporaneidade.
Adotou-se uma abordagem qualitativa de investigação, optando-
se pela história oral como método de pesquisa. A escolha dos dois
indivíduos foi baseada no critério de informantes-chave. Utilizou-
se a análise de conteúdo, comparando-se os dados obtidos com os
ethos desenvolvidos por Bendassolli (2007; 2009) sobre o sentido
do trabalho na sociedade contemporânea. O sentido do trabalho,
para os entrevistados, fundamenta-se, sobretudo, no ethos
romântico-expressivo. Porém, é importante deixar em evidência
que, no decorrer da vida, esses indivíduos circularam em mais de
um ethos, ou foram, a eles, expostos.

FONTE: BISPO, D. de A.; DOURADO, D. C. P.; AMORIM, M. F. da C. L. Possibilidades de dar


sentido ao trabalho além do difundido pela lógica do Mainstream: um estudo com indivíduos
que atuam no âmbito do movimento Hip Hop. Organizações & Sociedade [online], v. 20,
n. 67, p. 717-731, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1984-92302013000400007.
Acesso em: 24 abr. 2021.

( ) De modo geral, alguns dos sentidos atribuídos ao trabalho, nas narrativas


e nas histórias de vida, são: obrigação, emprego, uma questão de
responsabilidade, dignidade, prazer, lazer, e, até mesmo, indistinção entre
trabalho e vida.
( ) As Ciências Sociais e Humanas não levam em consideração outras formas
de trabalho que não façam parte do mercado de trabalho formal, porque,
sem ele, não é possível garantir o sustento financeiro de uma pessoa.
( ) As atividades de trabalho que não se encaixam no mercado de trabalho
formal podem representar resistência ao processo de mercantilização, até
porque tendem a romper com a lógica tradicional das empresas.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) F – F – V.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – V – F.

159
5 Bispo, Dourado e Amorim (2013, p. 712) fizeram um estudo sobre narrativas
vinculadas ao trabalho, mais especificamente, ao sentido do trabalho,
nos contextos de identidade e de hip hop. Com ele, chegaram à seguinte
conclusão:

De uma forma geral, foi possível observar que o trabalho realizado


no movimento social está imerso em uma dimensão, cujas bases se
assentam no prazer, no lazer e na indistinção entre trabalho e vida.
Portanto, as narrativas desses membros do Movimento Hip Hop
serviram para anunciar que o trabalho que realizam, também,
distingue-se daquele próprio do modelo econômico.

FONTE: BISPO, D. de A.; DOURADO, D. C. P.; AMORIM, M. F. da C. L. Possibilidades de


dar sentido ao trabalho além do difundido pela lógica do Mainstream: um estudo com
indivíduos que atuam no âmbito do movimento Hip Hop. Organizações & Sociedade
[online], v. 20, n. 67, p. 717-731, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1984-
92302013000400007. Acesso em: 24 abr. 2021.

Perante o exposto, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as


falsas:

( ) A partir da sociedade industrial, o discurso hegemônico, disseminado na


sociedade, prioriza o divertimento, o entretenimento, o descanso, opondo-
se à centralidade econômica atrelada ao trabalho.
( ) Ao escrever uma narrativa sobre si mesmo, o indivíduo pode se deparar
com momentos nos quais se sente organizando a própria história,
pensando na identidade dele, podendo, inclusive, encontrar um sentido
para a existência.
( ) Um texto autobiográfico dá indícios das crenças e dos desejos do autor.
Também, evidencia a imagem que o autor construiu acerca de si próprio.
Muitas vezes, esses textos indicam a relação que o autor estabelece com o
mundo do trabalho.
( ) Escritas de si próprio são, imprescindivelmente, influenciadas por outras
narrativas. Narrativas que o autor ouviu e leu durante a vida dele, além
dos discursos narrativos do trabalho, da arte e da cultura com os quais ele
teve contato no dia a dia, na sociedade.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) F – V – V – V.
b) ( ) V – F – F – V.
c) ( ) F – V – F – F.
d) ( ) V – F – V – F.

160
TÓPICO 2 —
UNIDADE 3

NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

1 INTRODUÇÃO
Levar em conta a história de vida do paciente é essencial em vários
contextos ligados à saúde. Independentemente da idade dele, e de qual seja a
situação delicada com a saúde, com a qual esteja tentando lidar, são primordiais o
acolhimento, o acesso às devidas informações e as orientações acerca dos direitos
sociais, das ações de educação em saúde.

Vale lembrar que as redes de cuidados têm influenciado nas práticas de


ajuda social, além de estarem contribuindo para a ressignificação de doenças.

Barros e Botazzo (2011) vêm defendendo a abordagem da história


de vida na atenção básica de saúde desde a anamnese. Afinal, essa ocasião é
potencial para a produção de subjetividade e influencia no estabelecimento de
vínculo entre profissionais e paciente, e na relação da escuta e do acolhimento.
Para tanto, o profissional de saúde precisa estar atento aos aspectos ligados à
comunicação no momento da consulta, priorizando favorecer o acolhimento, a
elaboração apropriada do diagnóstico, e reestabelecendo a homeostasia corporal.
O diálogo é vital para o estabelecimento do vínculo, e envolve, necessariamente,
responsabilidades do profissional e do usuário, além da resolução das queixas e
das necessidades dele (BARROS; BOTAZZO, 2011).

Neste tópico, recebemos o convite para refletirmos a respeito de narrativas


vinculadas a algumas situações de saúde. Não há espaço para que contemplemos
todas as doenças, síndromes, transtornos ou patologias existentes. Ainda assim,
selecionamos algumas situações para que possamos refletir acerca das relações
entre narrativas e contextos de saúde.

Antes de checarmos como esse tópico está estruturado, vamos nos


amparar com De Conti e Sperb (2009, p. 119), para relembrar alguns aspectos
ligados à elaboração de narrativas, os quais já vimos nos tópicos antecedentes:

A narrativa é uma das formas de organização da experiência humana.


Ao construir suas narrativas, os indivíduos situam ou contrastam seus
relatos individualizados dentro de um amplo modelo cultural, tendo,
como suporte, diversos gêneros de expressão, como o mito, a lenda,
o conto, a tragédia, o drama, o romance. A narrativa de vida permite,
ao sujeito, ordenar os eventos que vivencia, construindo um tempo
histórico pessoal. Ou seja, a narrativa autobiográfica pode possibilitar,
ao sujeito, ordenar, temporalmente, a experiência dele, elaborando
uma (res) significação para os eventos da sua vida.

161
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

É importante que, no decurso da leitura deste tópico, lembremo-nos,


constantemente, desses sentidos, que perpassam a construção de narrativas –
sejam elas expressas em livros, nos contextos clínicos, no seio familiar, ou por
solicitação de pesquisadores.

Inicialmente, refletiremos a respeito da hanseníase, na sequência, da


insuficiência renal crônica. No restante do tópico, as atenções estão voltadas às
questões de saúde mental, como ocorre na situação de anorexia e nos contextos
de violência e/ou de vulnerabilidade social. Vamos lá?!

2 HANSENÍASE
Você já ouviu falar da hanseníase? Ela é, frequentemente, associada
ao isolamento social. Verdadeiramente, trata-se de uma situação que requer a
adoção de muitos cuidados. Para Cavaliere e Costa (2011), é pertinente analisar as
histórias de vida das pessoas que convivem com a hanseníase, prestando atenção
nas circunstâncias atreladas.

Muita coisa pode ser aprendida a respeito dos sentidos atribuídos ao


confinamento, à proteção social, e, até mesmo, da rede social vinculada à saúde,
ao acessar os relatos das pessoas que enfrentam a hanseníase (CAVALIERE;
COSTA, 2011).

Frente ao exposto, vamos checar o resumo do artigo escrito por Cavaliere


e Costa (2011, p. 491, grifos nossos):

Este trabalho examina, em caráter exploratório, experiências de


isolamento social vividas por indivíduos portadores de hanseníase,
internados na ex-colônia Tavares de Macedo, em Itaboraí, onde foram
mantidos da década de 1930 até os dias de hoje, para problematizar
noções sobre segregação e discriminação social presentes nesse
meio. Para tanto, examina sociabilidades e redes sociais de cuidados
estabelecidas na vida em comum nessa “ex-colônia de leprosos”, quase
sempre, como alternativas às condições oferecidas pelos sistemas
públicos de proteção social. Faz isso com base em narrativas de alguns
desses sujeitos, vistos em suas diferenças – nas interseções das relações
por sexos, classes, raças/ etnias, gerações, e, também, por religiões e
graus de escolaridade. Recorre à história oral, modo de oferecer novas
interpretações qualitativas de processos histórico-sociais evidenciados
nessas sociabilidades e redes, nem sempre, visíveis como formas
singulares de proteção social da vida em comum.

O isolamento social, frequentemente, acarreta sofrimento para as pessoas


com hanseníase e para os familiares dela. Eles se veem diante da necessidade de
superar a segregação social. A história da humanidade mostra que as formas de
considerar a hanseníase e de reagir perante ela foram mudando com o transcorrer
do tempo (CAVALIERE; COSTA, 2011).

162
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

Na medida em que as pessoas vão tomando conhecimento sobre as formas


já utilizadas para lidar com a hanseníase, é possível que tenham as impressões
delas sobre essa doença modificadas, melhorando as expectativas ao se depararem
com ela, e favorecendo os modos pelos quais ela venha a ser encarada, enfrentada
(CAVALIERE; COSTA, 2011).

Diversas pessoas com hanseníase já foram enviadas para alguma colônia


de leprosos ao longo dos anos. Parte delas passou a maior quantidade de anos da
vida sendo moradoras de tais colônias, nas quais serão chamadas de “internos”.
Algumas instituições foram denominadas de “hospitais-colônia”, nas quais os
residentes viviam como em um sistema de asilo, ao passo que, para alguns dos
internos, mais se parecem como uma espécie de prisão (CAVALIERE; COSTA, 2011).

Em contrapartida, a ex-colônia Tavares de Macedo, em Itaboraí, têm as


próprias especificidades: “A colônia é uma cidade, dentro de outra, em uma
tensa convivência; ela lutou e luta, mas não se organizou para atacar a cidade de
Itaboraí ou, dela, defender-se, mas usou e usa as práticas comuns de convivência
humana” (CAVALIERE; COSTA, 2011, p. 511).

Antes de passarmos à próxima parte, vejamos um excerto de narrativa


atinente à hanseníase.

NOTA

Firmina, 43 anos, é filha de uma mulher desfigurada pela "lepra" que, diante
do adultério do marido, cometeu suicídio. A desfiguração de corpos marca conhecidas
dificuldades de relacionamento com os outros e de formação de redes. O trágico relato
de Firmina, sobre a mãe dela, morta depois de atear fogo no próprio corpo tantos anos
atrás, encoraja-nos a avaliar a extensão das dificuldades femininas de viver e de conviver
com a desfiguração trazida pela doença e das complicações colocadas de contato social.
Durante a entrevista, Firmina, ao destacar detalhes dos curativos que fizera no corpo,
extensamente, queimado da própria mãe, descreve o cumprimento da função/obrigação
dela de cuidadora, como filha, mas, também, de um ato de amor. Logo depois de um longo
intervalo de silêncio, registra informes, aparentemente, negligenciáveis, sobre a ausência
do cuidado médico nesse episódio. A memória dela parece preservar um ressentimento
(BRESCIANI; NAXARA, 2004), associado a uma possível rejeição pelo nojo experimentado
pelo profissional durante o trato desse corpo ferido. Conta, então: "Ela ficou jogada, sem
tratamento, nem médico queria botar a mão" (muxoxo).

Com esse gesto, faz expressar a censura à falta do necessário cuidado médico a
esse corpo desfigurado, nessa história vinda do passado, mas, de imediato, nesse tempo
presente dela, desloca-se para outras experiências de destrato, por ela, sofrido, no mundo
de "dentro" e no de "fora". Logo após a narrativa sobre a mãe, registra: "Quando meu
companheiro morreu, para esquecê-lo, fui morar fora da Colônia, mas não deu certo.
Voltei, e, morando de favor em casa de uma “amiga”, fui humilhada. Ninguém me ajudou".
Na colônia, narra, internos/as continuam a perseguindo, por onde passa, com a pecha de
"louca como a mãe".

163
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Sem marcas da hanseníase, esse olhar do outro não deixa de propagar, na colônia,
entre internos/as e aos quatro ventos, um estado de loucura visto como transmitido de
mãe para filha, razão para mais uma discriminação entre assemelhados com a doença,
agora, acrescida de mais um atributo que a segrega: "louca como a mãe". A medicação
para combater as dores dessa doença provoca reações físicas e desequilíbrio emocional, o
que a caracteriza como "doente dos nervos", ou louca. O olhar dos outros, hoje, classifica,
como loucas, a mãe e ela. Como "mulher nervosa", vive a situação que, regularmente,
discrimina e penaliza as mulheres irritadiças, predestinadas a ser calmas, joviais, ternas...

Momentos muito difíceis cercam a história pessoal da filha, marcada por


resistências e transgressões oferecidas às regras disciplinares do HETM. Ela nasceu na
colônia. De acordo com normas, então, vigentes, foi separada da mãe e levada para o
orfanato, o Educandário de Vista Alegre, do qual fugiu. Firmina relembra: “Eu fugi do
educandário com 13 anos para ficar com minha mãe. Ela me trancou dentro do guarda-
roupa para me esconder porque, nos anos 1970, não podia ficar filho de doente na Colônia”.
Nesse ato simbólico, a mãe a protege, rompendo regras de isolamento. Narra que, ao sair da
companhia da mãe, perambulou pelas ruas e se instalou em uma casa próxima da colônia,
modo de estar, furtivamente, com a mãe, na condição de doméstica sem pagamento,
em troca de alimentação 509 e moradia. A patroa dizia que estava fazendo um favor a
ela. Sabia que estava sendo explorada e, mesmo sob maus-tratos, diz-se agradecida pela
ajuda. Do lado de fora da colônia, e, por muito tempo, ficou nos arredores dela, sempre
como modo de assegurar a aproximação da mãe, até que conseguiu voltar a morar lá
dentro, restabelecendo vínculos familiares. Essas pessoas, também, traçam redes de ajuda,
mesmo sob intensos constrangimentos, como nesse caso, sentidos como uma graça...
Firmina diz desconhecer qualquer rede primária de cuidados. Por outro lado, destaca o
bom atendimento do sistema público de seguridade social: “Sofro reação da talidomida,
mas me trato e sou bem atendida no ambulatório”. O trabalho das instituições, também,
forja redes de cuidados.

FONTE: Adaptado de Cavaliere e Costa (2011, p. 508-509)

3 INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA


Xavier et al. (2018) se concentraram em analisar narrativas correlacionadas
à insuficiência renal crônica. Além de questões específicas da enfermagem,
também, deparam-se com casos de resiliência psicológica, como mostra o resumo
do artigo exposto a seguir:

Reconstruir, a partir da escuta, a trajetória de vida de uma paciente


renal crônica, em tratamento hemodialítico, constitui o objetivo deste
artigo. Como procedimento metodológico, trabalhamos com a história
oral de vida, utilizando a entrevista como principal instrumento. A
análise se pauta nas narrativas da colaboradora, ancorada em estudos
que tratam da história oral e da subjetividade humana, com destaque
para a resiliência. Foi possível apreender, com a trajetória de vida
dela, que a superação das dificuldades é um marco da singularidade.
Portanto, a história nos leva a concluir que, apesar das adversidades e
do sofrimento, existe, no ser humano, as forças de navegar nas torrentes
e de conseguir ser feliz (XAVIER et al., 2018, p. 841, grifos nossos).

164
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

A leitura dos excertos da história de vida analisada por Xavier et al. (2018)
propicia reflexões acerca dos cuidados prestados em enfermagem, destacando,
assim, a importância do relacionamento humano, da sensibilidade do profissional
de saúde, que disponibiliza a escuta atenta e acolhedora. Inclusive, pode-se
notar que esses quesitos são fundamentais para o estabelecimento de vínculos
favoráveis ao tratamento do paciente em hemodiálise.

A pesquisa que amparou a escrita do artigo é de cunho qualitativo,


portanto, desencadeou as conjunturas oportunas para que a paciente expressasse
a subjetividade e a singularidade dela. Ela pôde exprimir sentimentos, valores,
momentos que vivenciou, e as próprias experiências relativas à doença e ao
tratamento (XAVIER et al., 2018).

Enquanto discorria sobre si própria, ela ia [re] construindo a trajetória


de vida dela, fazendo associações entre os hábitos, os costumes e as práticas ao
quadro de saúde que apresentava. Era convidada, pelos pesquisadores, a expor
percepções, impressões, opiniões e sentimentos (XAVIER et al., 2018).

Ainda que os relatos indicassem que a vida dela tenha sido marcada
por dificuldades – sobretudo, no que tange ao enfrentamento da doença e
aos respectivos tratamentos –, demonstrava otimismo, parecendo nutrir uma
esperança ilimitada estendida, inclusive, aos outros pacientes que atravessam
condições similares (XAVIER et al., 2018).

Dessa forma, essa história poderá contribuir com o crescimento


pessoal, já que fornece caminhos para enfrentar melhor os obstáculos e
aprimorar os cuidados de pacientes em situações congêneres, de modo
a ofertá-los todo o apoio necessário durante o tratamento. Portanto,
dentre outras valiosas lições, a trajetória de Izôlda nos leva a concluir
que, apesar das adversidades da vida e do sofrimento, existe, no ser
humano, as forças de navegar pelas torrentes, de ser resiliente e de
conquistar a felicidade (XAVIER et al., 2018, p. 849).

Segundo Xavier et al. (2018), as narrativas dessa paciente enfatizaram a


superação de dificuldades enquanto um marco da singularidade dela. Vale citar
que alguns dos itens que foram mencionados, como auxiliares da maneira de
lidar com as agruras da doença, foram:

• a rede de apoio familiar;


• a rede apoio social;
• o suporte dos profissionais de saúde.

Em seguida, passaremos a focar, por instantes, sobre as narrativas de


pessoas com anorexia. Vamos lá?!

165
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

4 ANOREXIA
A anorexia, comumente, abarca a articulação entre o desejo de emagrecer
cada vez mais e as expectativas das demais pessoas acerca do próprio corpo.
Giordani (2009, p. 809, grifos nossos) nos proporcionou relevantes reflexões
acerca de transtornos alimentares – mais especificamente, da anorexia nervosa,
tomando, por base, as narrativas de pessoas diagnosticadas como anoréxicas,
como se pode verificar no resumo do artigo:

O objetivo deste estudo é descrever a experiência corporal pela anorexia


nervosa e compreender os sentidos que os indivíduos anoréxicos
atribuem às práticas corporais de restrição e de purgação presentes
nesse tipo de transtorno alimentar. [...] A partir da etnografia e do
método biográfico, foram acompanhados oito indivíduos anoréxicos
para uma descrição intensa do conteúdo das experiências de doença.
Foram reconstituídas narrativas sobre a história de vida apoiadas
em depoimentos autobiográficos, cartas e diários pessoais. O estudo
foi realizado em Curitiba, no período de janeiro a setembro de 2003.
[...] A abordagem fenomenológica utilizada privilegia a experiência
contada pelo indivíduo que, pela reconstituição da história de vida,
pretende trazer à tona o conteúdo do vivido. Nessa discussão, o
corpo assume uma posição central, pois, além de ser o fundamento
e a condição para participar do mundo social, ele aparece, também,
como o alicerce para a experiência, socialmente, constituída da
anorexia nervosa. Os significados atribuídos, pelos indivíduos, à
experiência deles, são o resultado de um cruzamento entre a história
biográfica e o conhecimento, significativamente, apreendido por meio
dela, com aquilo que foi experimentado pelo corpo em um mundo
intersubjetivo. A imagem corporal distorcida pela anorexia nervosa
expressa um vivido relacional pela anoréxica, e as práticas corporais
são a manifestação de um desejo de transformação da realidade.
[...] Esse estudo mostrou que o corpo é uma dimensão importante
a ser reconhecida para a compreensão do processo de adoecer, e
levantou, ainda, questões específicas a serem estudadas sobre a
gênese da anorexia nas sociedades modernas ocidentais. Revelou que
a experiência corporal, a partir da anorexia, comunica uma dimensão
social da doença, sendo que os significados são, sempre, construídos e
compartilhados com pessoas do microcosmo social do sujeito. Contar
sobre essa experiência é, de certa forma, desvelar os valores culturais
da sociedade.

Além de descortinar os valores culturais contemporâneos, a divulgação


de narrativas como essas - produzidas pelas pessoas que vivenciaram a doença
- possibilita que conheçamos a experiência da anorexia nervosa a partir das
percepções de quem experienciou a anorexia na própria pele (GIORDANI, 2009).

166
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

DICAS

Quer incrementar as suas reflexões sobre a anorexia? Então, segue uma


sugestão de filme, O Mínimo para Viver, drama de 2017, cuja direção é de Marti Noxon.
Entre o elenco, fazem-se presentes Lily Collins e Keanu Reeves.

CENA DO FILME O MÍNIMO PARA VIVER

FONTE: <https://www.papodecinema.com.br/filmes/o-minimo-para-viver/>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

Ainda que a anorexia englobe um determinado conjunto de características


e de sintomas, é válido rememorar que cada pessoa que a enfrenta possui as
próprias especificidades, particularidades. Assim, textos escritos por médicos,
ou por pesquisadores, a respeito da anorexia, raramente, apresentariam os
sentimentos, as sensações, as viscissitudes, as percepções, enfim, a subjetividade.

No relato autobiográfico, o sujeito que fala, interage com o outro, e,


também, reencontra-se comunicando a totalidade de uma experiência
em seu contexto concreto de relações sociais. A descrição da experiência
da doença, na primeira pessoa, envolve o sujeito na elaboração de
uma narrativa consistente, a partir da reflexão sobre os fatos vividos,
apreendidos, dotados de significado pelo sujeito (GIORDANI, 2009,
p. 812).

Isto é, sem as narrativas pessoais, ainda que todo o saber científico da


anorexia pudesse ser aglutinado e condensado em um texto, ele teria a visão de
cientistas sobre a anorexia – ao invés do olhar de quem sentiu a anorexia em si –,
composto por suas próprias emoções, pensamentos, elementos identitários etc.

167
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

ATENCAO

A anorexia não é “modinha passageira” que se cura sozinha. É uma situação


delicada que requer o acompanhamento de profissionais de saúde. Infelizmente, em alguns
casos, por conta dela, as pessoas podem vir a óbito.

A pesquisa de Giordani (2009) contou com os relatos de oito mulheres com


diagnóstico de anorexia nervosa (recuperadas ou em tratamento). As narrativas
foram coletadas através de depoimentos orais gravados, além da análise de
diários. Também, foram examinados prontuários e entrevistas com terceiros
(pais, médicos e terapeuta).

As narrativas que constituíram a pesquisa de Giordani (2009) expuseram


práticas corporais adotadas pelas mulheres com anorexia, utilizadas com vistas
às dinâmicas específicas e à busca desenfreada pela transformação da realidade.

Diferente do que muitas pessoas deduzem, as anoréxicas não perdem


o apetite. Elas sentem fome, e lutam contra ela constantemente. Ainda que se
sintam fracas, a ponto de desmaiar, não têm coragem de ingerir alimentos, porque
o medo de engordar é, infinitamente, maior do que a fome que sentem. Elas,
ainda, citam que a sensação de poder, de empoderamento, ao recusar a comida,
é mais satisfatória do que os prazeres que a ingestão de alimentos pode causar
(GIORDANI, 2009).

DICAS

CAPA DO FILME ABZURDAH

A segunda sugestão de filme sobre


anorexia é a obra cinematográfica intitulada de
ABZURDAH, que conta com os seguintes atores:
Eugenia Suárez, Esteban Lamothe e Gloria Carrá.
Grande parte do que foi descrito até aqui pode ser
observada ao longo desse filme.

FONTE: <encurtador.com.br/yBIVZ>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

168
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

Na sequência, veremos alguns dos efeitos que as situações de violência


podem desencadear em termos de saúde mental.

5 VIOLÊNCIA E SAÚDE MENTAL


Iniciaremos este momento refletindo sobre a história de vida de mulheres
em contexto de vulnerabilidade social. Assim, confiramos o resumo do artigo
escrito por Brandão e Germando (2009, p. 5, grifos nossos) acerca de narrativas
autobiográficas e de psicologia narrativa:

Esta pesquisa analisa as narrativas autobiográficas de três mulheres de


uma comunidade pobre próxima a Fortaleza, que se formou a partir de
mutirão. O objetivo é compreender o modo como produzem sentido
sobre si mediante a construção de enredos. As autobiografias são
estudadas a partir dos elementos referenciais (“o que” elas contam),
textuais (“como” elas contam) e performativos (o que as narradoras
“fazem” ao contar, para outra pessoa, a história delas). No aspecto
referencial, as histórias comunicam a trajetória de sofrimento precoce
e contínuo associada às condições de classe social (pobreza e trabalho
precarizado), de gênero (vulnerabilidade da mulher, especialmente,
na relação conjugal) e a questões geracionais (a difícil educação dos
filhos). Em termos textuais, as histórias tendem a explorar os momentos
regressivos (GERGEN&GERGEN, 1986). No aspecto performativo, as
narradoras fazem uso terapêutico da entrevista, solicitando apoio e
reivindicando, retoricamente, uma imagem positiva de si a partir da
polaridade “frágil-forte”.

As referidas narrativas são prenhes de vida, de luta, e de tentativas de


lidar com o sofrimento e com a dor. Elas, também, estruturam o processo de
atribuição de sentidos acerca das próprias histórias, sobre si mesmas. Dão ênfase
à força que acionaram para lidar com tantas adversidades que despontaram já na
infância (BRANDÃO; GERMANDO, 2009).

Elas se sentem guerreiras, vencedoras. A palavra dor apareceu ligada ao


casamento, à criação dos filhos, ou à falta de recursos, como mostram os excertos
das narrativas disseminados por Brandão e Germando (2009, p. 13):

De vez em quando me bate uma depressão, uma vontade de chorar, e


eu não sei o porquê.... Não sei se é por isso que fica esse vazio dentro
de mim.... A gente passava muita necessidade... (L.)
Eu via o sofrimento dela... Aí ela ficou sofrendo pra criar a gente.... Aí
por diante eu fui viver a minha vida, o mesmo sofrimento... Aí comecei
a sofrer, também, do marido, que bebe, e fica naquela coisa também....
Eu acho assim, que ela já vive tão sofrida. (M.)
E meu sofrimento já partiu da casa da minha irmã.... Ela sofria muito
por causa do marido dela. E aquele sofrimento que ela tinha com
o marido, ela descarregava todo em mim... Eu não teria nem tido
tanto filho pra sofrerem como sofrem hoje.... Aí eu fiquei sempre
aguentando, né... Mas eu sofri tanto.... E a situação tá muito difícil. (F.)

169
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Como podemos notar, as narrativas permitem rever e reconstruir as


memórias pessoais, levando em conta as memórias coletivas. Correlacionam
momentos vividos aos que foram, de antemão, narrados pelos familiares, pelas
gerações antecedentes (BRANDÃO; GERMANDO, 2009).

O sofrimento narrado, contudo, não funciona apenas como meio


de reivindicar a fragilidade e a vitimização da narradora. Na
pragmática da comunicação, essas mulheres produzem, ativamente,
conhecimentos sobre si mesmas e sua condição, solicitam ajuda e
compreensão, fazem-se ouvir pela comunidade e por outros círculos
sociais e se fortalecem para novos episódios adversos. [...] Contudo, as
mulheres recriam a rotina de sofrimento delas, valendo-se da fala como
instrumento de apoderamento, defesa, acusação, queixa, afirmação da
diferença. A dor, esculpida das mais distintas formas, apresenta-se,
em sentido amplo, um “lugar” de aprendizagem, conhecimento do
mundo e de si mesma (BRANDÃO; GERMANDO, 2009, p. 13-14).

Essas mulheres deram sinais de que, ao contarem as narrativas delas,


estavam experimentando uma oportunidade de autodescobrimento. Passaram
a impressão de que estavam diante de um privilégio, por conta da chance de
expressar a própria voz. Como se a voz fosse um “[...] legado inalienável, um meio
de passar a sua sabedoria e os seus ensinamentos de vida a seus descendentes”
(BRANDÃO; GERMANDO, 2009, p. 14).

Conte et al. (2014, p. 766, grifos nossos) abordaram assuntos relacionados


à violência sexual e à adolescência, sob a perspectiva da psicanálise, com vistas à
saúde mental. Chequemos o resumo do artigo:

O objetivo deste artigo é apresentar a História de Vida como


metodologia modificada para utilização em grupo. Tal ferramenta
foi usada na pesquisa A construção identitária na adolescência em
contextos violentos na perspectiva da Clínica em Saúde Mental,
financiada pelo Edital 033/2008, do CNPq, e desenvolvida em 2009 e
2010. Analisamos as potencialidades da História de Vida, proposta
como dispositivo grupal, possibilitador de narrativas coletivas e
ficcionais, compartilhadas e testemunhadas pelo grupo. O campo
teórico do presente trabalho aproxima a Psicanálise da Saúde
Coletiva. Visa, também, à construção de ferramentas clínicas e de
alternativas singulares e coletivas de expressão psicossocial possíveis
de serem utilizadas para além do campo da pesquisa, na clínica, na
assistência social, na interface da saúde-justiça-direitos humanos
voltados aos adolescentes atendidos em serviços públicos.

Prezado acadêmico, você notou que as palavras “coletivas” e “ficcionais”


apareceram nesse resumo de artigo? Nós as grifamos para chamar a sua atenção.
Até agora, lemos, aqui, neste livro, bem mais sobre as histórias de vida “clássicas”
– individuais, e as mais fiéis às memórias, tanto quanto possível. Em contrapartida,
precisamos nos lembrar da problematização que foi feita lá no começo do livro,
acerca do que é real ou não em narrativas e em histórias de vida. Até que ponto
podemos separar a realidade da invenção – quando se tratam de rememorações?

170
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

Existem várias situações nas quais a própria pessoa pode ter dificuldade
para saber o que, realmente, ela presenciou. Não são raros os momentos em que
nos vemos nos perguntando sobre lembranças do passado, as quais já não temos
precisão sobre o que, realmente, ocorreu. Parte dessas lembranças pode ter sido
misturada ao que sonhamos, imaginamos, vimos em livros, ou na TV.

Freud pode reconhecer, nas narrativas em análise, esse efeito real de


sujeito que a linguagem produz e que ela mesma não é capaz de conter
na forma de uma relação unívoca. É, nesse ponto, radicalmente esquivo,
que se ancora a cadeia de transmissão articulada pela psicanálise. Uma
transmissão que se dá se, e quando, um apagamento específico do
sujeito acontece não mais em benefício, pura e simplesmente, do ganho
de saber, proporcionado pela operação da letra, mas da veiculação
daquilo que a letra porta de presença e da palavra do Outro – o que
implica todo o trajeto de uma análise (LO BIANCO; COSTA-MOURA;
SOLBERG, 2010, p. 24).

O uso de bebidas alcóolicas ou de outras drogas pode interferir nas


lembranças, e quadros de psicose aguda ou de esquizofrenia, também, podem
bagunçar os sentidos (visão, audição, tato, olfato e, até, paladar), por meio das
alucinações. Quando uma pessoa com esquizofrenia alega estar vendo uma outra
em uma situação de perseguição, não está inventando isso. Ela, realmente, está
vendo o que relata.

DICAS

Você já assistiu ao filme Ilha do Medo? Caso tenha assistido, pode deduzir o
quanto seria difícil, para o protagonista Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio), narrar sobre
determinados momentos da vida dele, com base nas próprias memórias e percepções, não
é mesmo?!

CAPA DO FILME ILHA DO MEDO

FONTE: <encurtador.com.br/gzJKM>. Acesso em: 6 jul. 2021.

171
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Constatamos que não há formas de assegurar a validade da


interpretação da narrativa autobiográfica, já que o discurso do
narrador se dá “em movimento”, no instável espaço intersubjetivo da
situação comunicativa (BRANDÃO; GERMANDO, 2009, p. 14).

Portanto, não são, apenas, as pessoas sob efeito de drogas, ou com


diagnóstico de esquizofrenia, que podem sentir que determinadas lembranças
estão bagunçadas, atrapalhadas. Situações de trauma psicológico tendem a
embaralhar rememorações, ou desordenar a lembrança do desencadeamento de
situações. Por isso, em algumas narrativas, podemos nos deparar com frases, tais
como “não lembro o que aconteceu primeiro, se foi isso ou aquele outro ato”,
“lembro dos acontecimentos até esse ponto, daí parece que deu um branco, e só
consigo me lembrar de coisas de horas adiante, então, não sei, ao certo, até que
patamar a violência chegou”.

DICAS

CAPA DO FILME FRATURA

Sugerimos que você assista ao filme


Fratura, e que, no fim do filme, tente identificar
qual é a versão REAL dos fatos sob o ponto de
vista do protagonista Ray (Sam Worthington).
Ele passa a maior parte do filme em um
hospital, procurando pela filha e pela esposa,
que desapareceram após um procedimento
diagnóstico feito nesse hospital.

FONTE: <encurtador.com.br/esxI3>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

Agora, voltemos ao resumo do artigo de Conte et al. (2014)?! A ficção


a que eles se referem é a possibilidade de que os adolescentes inventassem
algumas coisas nas narrativas proferidas por eles próprios. Vale esclarecer que
a psicanálise faz uso do método de associação livre, por meio do qual o paciente
vai falando do que lhe vem à mente. O analista não está interessado em saber
se as coisas verbalizadas pelo paciente ocorreram na vida real, ou, apenas, na
imaginação dele. Isso não vem ao caso no contexto analítico da psicanálise. Sendo
reais ou invenções, as narrativas dos pacientes exercem propósitos no discurso.

172
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

Por conseguinte, Conte et al. (2014) adotaram uma metodologia de história de


vida inovada, por ser aplicada em um contexto grupal, e que permite o uso da
criatividade. Esse procedimento metodológico

[...] colabora com as adolescentes, mobilizando recursos para o


exercício de uma posição de protagonismo em relação à fala, com
criatividade e ficção, facilitando a retomada da relação com a
alteridade e com o lúdico, suspensa ou interrompida, em função das
experiências vividas. As histórias ficcionais só vão fazer diferença se
profissionais e instituições (saúde, assistência social, educação e justiça)
derem sustentação, testemunho e valorização ao que as adolescentes
enunciam (CONTE et al., 2014, p. 776).

Muitos adolescentes que sofrem abuso sexual não têm coragem de relatar
o ocorrido com medo das ameaças feitas pelo agressor. Desse modo, deparar-se
com a chance de “inventar” coisas relacionadas ao que se viveu/vive no dia a dia
permite, ao adolescente, externalizar as angústias dele sem medo de represálias,
sem o receio de que o agressor seja identificado e venha a se vingar. Além disso,
o adolescente pode, dessa forma, abrir-se para o processo terapêutico, e aceitar
a ajuda do terapeuta/analista no lidar com as questões pessoais. Por outro lado,
os profissionais que estão diante do adolescente precisam valorizar o que ele
está dizendo. “Contar algo a alguém não é uma mera sequência de fatos, mas
uma narrativa para a qual se credita um autor que é protagonista da sua história
ao ter a quem, com quem, em nome do que e para que contar” (CONTE et al.,
2014, p. 776).

Na concepção de Conte et al. (2014), o uso dessa metodologia de narrativas


e de histórias de vida possibilitou os seguintes benefícios:

• Suscitou reflexões nos adolescentes e consequentes deslocamentos da


identificação cristalizada que tinham na posição de vítima.
• Fez com que traços singulares emergissem.
• Estimulou a inventividade, a criatividade.
• Instigou o levantamento de outras hipóteses, de outros pontos de vista e de
outras possíveis versões da própria história, de maneira compartilhada.
• Desencadeou pensamentos, ideias e reflexões que podem colaborar em seus
projetos singulares de vida.
• Provocou movimentos no campo identificatório dos adolescentes.

Frente a situações de violência, como as que acompanhamos na


presente pesquisa, entendemos que sair da posição de recusa e
ressentimento para construir e se ancorar em sonhos é um ganho
psíquico e social que pode tornar possível a mobilização de novos
recursos que permitam a (re) tomada e a criação de novos rumos para
as histórias das referidas adolescentes, ao se lançarem nesses exercícios
de ressignificar o passado no presente e se abrir para um futuro. Pela
originalidade e potencialidade no cuidado com adolescentes, essa
metodologia contempla a preocupação clínica para que cheguem a
uma produção de saber que faça sentido para elas e colabore com um
(CONTE et al., 2014, p. 777).

173
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

DICAS

CAPA DO FILME SEMENTES PODRES

Já que esta parte tem


citado eventos de violência
vivenciados na adolescência e
possibilidades de ressignificá-los por
intermédio de metodologias que
envolvem grupos, convém indicar
um filme para os acadêmicos que
desejam aprofundar as reflexões
nesse sentido. Trata-se do filme
Sementes Podres.

FONTE: <encurtador.com.br/xzJ13>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

Quanto ao olhar para o próprio presente, e a refletir sobre o passado, a


psicanálise, também, pode contribuir, e muito: “A retomada reflexiva do passado
pode nos ajudar a não o repetir infinitamente e a ousar esboçar outra história e
inventar outro presente” (CONTE et al., 2014, p. 776).

DICAS

CAPA DO FILME ESCRITORES DA LIBERDADE

Um filme que, também, aborda


situações de violência, agressividade e
rebeldia na adolescência se chama Escritores
da Liberdade. Nele, uma professora usa
metodologias diferenciadas para que a
turma saia da posição de vítima, para ocupar
um lugar de responsabilidade para com a
própria história.

FONTE: <encurtador.com.br/fiDN8>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

174
TÓPICO 2 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA E SAÚDE

Na concepção de Conte et al. (2014), é possível adotar a metodologia da


história de vida como um dispositivo flexível que articula psicanálise e saúde
coletiva. Ela, também, pode ser usada em outros contextos para além da pesquisa,
como:

• clínica;
• assistência social;
• justiça;
• educação;
• saúde.

Se fôssemos tentar traçar algo em comum em todos os quadros relativos


à saúde citados neste tópico, poderíamos afirmar que fazer uso da palavra,
acerca de si próprio, pode ter fins terapêuticos, no sentido de reflexão, e de
ressignificação da própria história. Indubitavelmente, se isso ocorrer em um
contexto terapêutico, os efeitos da fala serão maiores, já que o profissional terá mais
conhecimento para acolher tais palavras, e saberá como proceder para auxiliar o
paciente no processo reflexivo.

Já que estamos percebendo, cada vez mais, o poder da palavra, que


possamos nos tornar melhores ouvintes. Que possamos dar oportunidades para
que pessoas do nosso entorno teçam, pelo menos, trechos das histórias de vida
delas. Uma provável “moral da história” deste tópico seria a seguinte: Ouvir
pode equivaler a promover saúde.

Por fim, uma observação sobre a escuta do entrevistador: ouvir é tarefa


delicada e, particularmente, importante nos dias atuais, quando as
narrativas parecem encontrar o seu acaso (BRANDÃO; GERMANDO,
2009, p. 14).

175
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Narrativas são produzidas com fins simbólicos, para dar sentido à experiência
humana.

• Não é suficiente que os profissionais da saúde construam, apenas, conhecimentos


científicos em relação à hanseníase, à insuficiência real crônica, ou à anorexia. É
ideal que, também, acessem as narrativas elaboradas por pessoas que viveram
tais condições.

• As histórias de vida podem ajudar aqueles que as escrevem ou as verbalizam a


organizar, temporalmente, a trajetória de vida deles.

• Ao ler a narrativa de alguém que atravessou os mesmos entraves que você,


pode-se encontrar inspiração, otimismo, ou, no mínimo, a sensação de ser
compreendido.

• Ao narrar, a pessoa tem a chance de interpretar a própria vida.

• Por meio das narrativas, a pessoa pode criar significações pessoais para os
episódios experienciados.

• A história individual não reproduz, necessariamente, a história coletiva.

• Quando os profissionais de saúde leem narrativas de pessoas que enfrentaram


doenças, podem se tornar mais sensíveis e compreensíveis diante dos pacientes
com os quais se relacionarão.

• Narrativas e histórias de vida podem propiciar possibilidades para que a


pessoa identifique e afirme a própria singularidade.

• O convite para narrar as próprias histórias de vida pode desencadear


possibilidades para que a pessoa perceba outros pontos de vista e imagine
outros encaminhamentos futuros.

176
AUTOATIVIDADE

1 Quais são as vantagens de serem disseminadas narrativas de pessoas que


tiveram anorexia?

Em O Narrador, Benjamin afirma que a narrativa que transmitia


a experiência coletiva é substituída, na modernidade, pela
informação jornalística e pelo romance, cujos objetos são as
experiências individuais. Trata-se do momento de emergência
da narrativa centrada no eu, ou no que Freud isolou como o
“romance familiar do neurótico”. Contudo, no romance e no conto,
prepondera a busca do sentido que possa suportar as vicissitudes
de um eu que não encontra amparo na vida compartilhada; já a
psicanálise inaugura uma práxis que dará lugar a um sujeito não
mais igual ao eu individual. A intervenção analítica realiza, através
da fala, uma operação com a história, que permite a emergência do
sujeito do inconsciente. Ponto de ancoragem de uma transmissão
que, embora instaurada no campo das narrativas modernas, não
se apoia no sentido, e constitui um campo que se realiza, apenas,
no fragmentário e no pontual (LO BIANCO; COSTA-MOURA;
SOLBERG, 2010, p. 17).

FONTE: LO BIANCO, A. C.; COSTA-MOURA, F.; SOLBERG, M. C. A psicanálise e as narrativas


modernas: a transmissão em questão. Psicologia Clínica [online], v. 22, n. 2, p. 17-25, 2010.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-56652010000200002. Acesso em: 24 abr. 2021.

Frente ao exposto, quais são as vantagens de se dar espaço para que sejam
elaboradas narrativas de pessoas em situação de vulnerabilidade social?

3 Leia o resumo do artigo escrito por Martinhago (2018, p. 3327, grifo nosso),
e, depois, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) se


destaca por atingir cerca de 5% a 10% da população infanto-juvenil
em diversos continentes, sendo, a principal opção de tratamento,
o uso do metilfenidato (Ritalina). Nesse contexto, esta pesquisa
teve, como objetivo, compreender como os conteúdos veiculados
nas redes sociais (comunidades virtuais) influenciam no modo
pelo qual os familiares, membros dessas comunidades, entendem
o TDAH e o tratamento, e como lidam com os filhos com suspeita
ou já diagnosticados com TDAH. A pesquisa foi desenvolvida
na perspectiva da Antropologia Médica. A etnografia virtual foi
elegida como metodologia de investigação, para adentrar em
uma comunidade virtual da rede social Facebook. Observou-se
que a comunidade virtual investigada, constituída por mães de
crianças e de adolescentes diagnosticados com TDAH, discute,
principalmente, o uso da medicação para tratamento do TDAH
nos seus filhos. As narrativas indicam que causa muita angústia,
em algumas mães, dar, a seus filhos, um medicamento controlado.

177
O sofrimento dos pais, mediante as dificuldades para lidarem com
os filhos, induz à ideia de que há necessidade de uma solução
médica, pois vivemos em uma era na qual os percalços da vida se
tornaram patologias.

FONTE: MARTINHAGO, F. TDAH e ritalina: neuronarrativas em uma comunidade virtual da


Rede Social Facebook. Ciência & Saúde Coletiva [online], v. 23, n. 10, p. 3327-3336, 2018.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.15902018. Acesso em: 24 abr.
2021.

( ) As narrativas deram enfoque à medicação. Aparentemente, ela se tornou


indispensável para a convivência harmônica da criança na família e na
escola. Por outro lado, não foram poucas as mães que demonstraram
angústia nos relatos, por estarem dando uma medicação controlada aos
filhos, sobretudo, pelo temor de que ela possa acarretar dependência física
ou psíquica.
( ) É válido refletirmos sobre a saúde mental neste tópico, que trata de
narrativas vinculadas à saúde, porque muito tem se falado a respeito de
que estamos vivendo “tempos de neuro”, inclusive, tem emergido uma
forte preocupação atinente ao campo da saúde mental, no tocante à uma
epidemia de transtornos mentais.
( ) O intuito desse artigo foi o de questionar a existência de transtornos
mentais em crianças e em adolescentes, especialmente, mostrando-
se contrário à dita necessidade de acompanhamento em relação à
saúde mental. A autora apregoa que a referida medicação não deve ser
administrada em crianças porque, na verdade, ela só serve ao interesse
econômico de indústrias farmacêuticas.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F.
b) ( ) F – V – F.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – V – V.

4 Levando em conta as narrativas apresentadas por Cavaliere e Costa (2011),


acerca do isolamento social, das sociabilidades e das redes sociais de
cuidados no que se refere às pessoas com hanseníase, classifique V para as
asserções verdadeiras e F para as falsas:

FONTE: CAVALIERE, I. A. de L.; COSTA, S. G. Isolamento social, sociabilidades e redes


sociais de cuidados. Physis: Revista de Saúde Coletiva [online], v. 21, n. 2, p. 491-516, 2011.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312011000200009. Acesso em: 24 abr. 2021.

( ) Geralmente, a ênfase dada aos sofrimentos decorrentes da hanseníase


tende a variar, de acordo com a fase de tratamento na qual a pessoa se
encontra. Por isso, às vezes, os eventos atrelados aos sofrimentos gerados
pela hanseníase podem não ser rememorados com a mesma intensidade
com a qual foram vivenciados no passado.

178
( ) Narrativas de pessoas adultas revelam memórias da existência que,
geralmente, são organizadas cronologicamente. O mesmo acontece com
pessoas que apresentaram hanseníase. Por isso, elas elaboram narrativas
tão organizadas sobre as vidas delas antes da doença e após o diagnóstico.
( ) Nem sempre as narrativas de pessoas com hanseníase dão ênfase à
patologia e às agruras. Em alguns casos, os autores das narrativas dão
prioridade aos acontecimentos felizes da vida delas, como ao casamento,
ou a antigas interações com pessoas amigas, por exemplo.
( ) Em alguns casos, o narrador prefere falar mais dos cuidados que recebeu
(ou que, ainda, recebe) dentro e fora do hospital do que abordar as dores
acarretadas pela hanseníase. Isso pode acontecer porque, ao falar do
estigma, a pessoa se depara com lembranças, extremamente, dolorosas,
as quais prefere evitar.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F – F.
b) ( ) F – V – F – V.
c) ( ) V – F – V – V.
d) ( ) F – V – V – F.

5 Porto (2019), também, fez um estudo que envolveu as escritas de si,


elaboradas por pessoas que conviveram com a hanseníase. Foi percebido
que as narrativas continham representações acerca da doença e sofrimentos
desencadeados pelo isolamento compulsório. No tocante às narrativas,
analise as afirmativas que seguem:

FONTE: PORTO, C. L. Escritas de si e de uma doença: um estudo sobre produções de


caráter biográfico e autobiográfico de ex-portadores do mal de Hansen. História, Ciências,
Saúde-Manguinhos [online], v. 26, n. 3, p. 899-915, 2019. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/S0104-59702019000300010. Acesso em: 24 abr. 2021.

I- Narrativas de si possibilitam que o leitor conheça, ao menos, em parte, a


mentalidade de um período histórico e do grupo social do qual o narrador
fazia parte. O leitor pode perceber, ainda, os valores e as práticas do
grupo social, e alguns dos meandros que perpassavam as relações que
iam sendo, ali, estabelecidas.
II- As narrativas, comumente, contêm aspectos atinentes à época de produção.
Por isso, o leitor pode prestar atenção ao uso de certo vocabulário, à
maneira peculiar de descrever as práticas. Essas escritas, também, revelam
aspectos sociais, como os diferentes usos adotados pelo grupo que está
sendo mencionado na narrativa.
III- O foco das narrativas de si sempre recai no passado. A intenção é, sempre,
relembrar, extrair lições do passado. Trata-se de um gênero discursivo que é
desvinculado do futuro e produzido sem correlações com o presente. O
autor, sempre, vê-se diante das necessidades de esclarecer e de justificar
os atos que realizou no passado, e de relatar os motivos que o levaram a
tomar aquelas decisões.

179
Agora, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Estão certas as afirmativas I e II.
b) ( ) Estão certas as afirmativas I e III.
c) ( ) Estão certas as afirmativas II e III.
d) ( ) Apenas a afirmativa II está certa.

180
TÓPICO 3 —
UNIDADE 3

NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IMIGRANTES

1 INTRODUÇÃO
Chegamos ao penúltimo tópico deste livro. Nele, concentrar-nos-emos
em acessar alguns materiais de relatos, narrativas, e histórias de vida feitos por
imigrantes. Para tanto, procuramos contemplar situações de imigração realizadas
nos séculos XIX, XX, e outras mais recentes. Portanto, você encontrará, ao longo
do tópico, contextos de imigração acarretados por guerra, catástrofe natural e
situações de cunho familiar, pessoal.

Bons estudos!

2 TRAVESSIAS ENTRE SÉCULOS XIX E XX


A partir de agora, entraremos em contato com pesquisas que abordam
narrativas de imigrantes, cuja viagem ocorreu entre os séculos XIX e XX.

DICAS

CAPA DO LIVRO TRANSPLANTE DE MENINA:


DA RUA DOS NAVIOS À RUA JAGUARIBE

Você já ouviu falar da escritora


Tatiana Belink? Ela nasceu na Rússia,
em 1919, veio para o Brasil em 1929, e se
destacou, principalmente, com obras de
literatura infanto-juvenil. Traduziu alguns
livros do idioma russo para o português,
e, até mesmo, participou da adaptação de
O Sítio do Pica-Pau Amarelo para as telas
da televisão.

Sugerimos que você leia uma


obra autobiográfica dela, intitulada de
Transplante de Menina: Da Rua dos Navios
à Rua Jaguaribe, escrita em 1989.

FONTE: <encurtador.com.br/sKRT2>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

181
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

As narrativas literárias acerca da imigração costumam dar ênfase ao


trauma de deixar a Terra Natal – uma experiência, extremamente, dolorosa, e,
aparentemente, definitiva (MOLINARI, 2017). Será que os relatos reais de quem
viveu essas experiências são semelhantes ao que é propagado nos textos literários?
Para sanar essa curiosidade, iniciaremos com o artigo de Frotscher (2018, p. 1),
que se refere às narrativas autobiográficas de emigração da Alemanha para o
Brasil, que se deram por meio de cartas. Vamos conferir o resumo?!

O artigo é baseado em cartas enviadas da Alemanha, entre 1946


e 1950, à Prefeitura Municipal de Blumenau - SC, nas quais os
remetentes pedem informações, ajuda e intermediação para poder
imigrar. Discuto, aqui, os significados e as funções de cartas em
projetos migratórios, o imaginário, as percepções e os motivos que
fundamentam a vontade expressa de emigrar e como ela opera na
construção da narrativa autobiográfica. Analiso, também, as relações
que os remetentes estabelecem entre o “espaço de experiência” na
Alemanha e o “horizonte de expectativa”.

Essa pesquisa contou com cartas escritas por doze diferentes autores. Nelas,
eles registraram expectativas, percepções e construções acerca da emigração. Seis
deles associaram a intenção de emigrar ao que ouviram e leram sobre Blumenau,
seja na escola ou com conhecidos (FROTSCHER, 2018).

Ao analisar as cartas, foi possível perceber que os homens procuraram


deixá-las atrativas para futuras vagas de trabalho, tanto que usaram palavras,
temáticas e formato de escrita com um ar mais profissional, por exemplo, usando
máquina de datilografar e, até mesmo, timbre de uma empresa (FROTSCHER, 2018).

Apesar de cada autor das cartas manifestar as próprias singularidades


e particularidades por meio da escrita, de modo geral, os escritos continham os
seguintes itens:

• Preâmbulo.
• Dados de identificação (nome completo, idade ou data/local de nascimento).
• Estado civil.
• Número de filhos.
• Formação escolar e/ou profissional.
• Ocupações profissionais.
• Habilidades e aptidões proveitosas para um futuro emprego.
• Características da personalidade.

Em grande parte dos casos, os remetentes articularam o pedido de


imigração às questões familiares ou individuais que vivenciaram. Não foram
poucas as vezes em que a Segunda Guerra apareceu em tais discursos manuscritos.
Vale lembrar que as cartas foram feitas poucos meses após o fim da guerra,
portanto, são citadas muitas perdas – de pessoas e de bens (FROTSCHER, 2018).
Também, foi mencionada a escassez de oportunidades de trabalho na área de
formação ou de experiência profissional, tendo em vista que a guerra deixou a
Alemanha, literalmente, em ruínas, e desesperançosa (FROTSCHER, 2018).

182
TÓPICO 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IMIGRANTES

Vamos conferir um trecho dessas cartas, seguido de uma breve análise a


respeito dele?!

Como fiquei sabendo por intermédio de conhecidos, é, novamente, possível, para


nós, alemães, emigrar para o Brasil. Então, gostaria muito de saber sob quais condições isso
é possível e a que lugar se deve dirigir para se obter sucesso. Antes disso, resumidamente,
[seguem] minhas condições familiares: meu marido, 44 anos de idade, técnico em
construção civil; eu própria, 40 anos, costureira autônoma; o filho, 18 anos, trabalhador
da estrada de ferro; a filha, 15 anos, ajudante dos serviços domésticos na residência dos
pais. 63 Na narrativa, a emigração aparece, portanto, enquanto um projeto familiar.

O desejo de emigrar é fundamentado não apenas nas condições


socioeconômicas da remetente, mas de todos os membros da família. Ela não se
coloca à frente do marido – seus dados sucedem os do marido –, apesar de ser
a parte ativa na escrita da carta. A sequência dos dados dos familiares é ditada
pela ordem decrescente das idades deles. Talvez, ela fosse, também, guiada por
ordenação, baseada em critérios socioculturais utilizados por órgãos públicos, que
valorizavam a precedência dos dados do marido aos da esposa. Não dispomos de
mais dados sobre o que ocorreu, durante a guerra, com os integrantes da família,
se o marido serviu, ativamente, como soldado, e, assim, esteve ausente por
longos períodos ou não, quais as consequências disso para a ordem e as relações
familiares e de gênero. É possível que, em razão do conflito, Gertrud K. tenha
feito, da habilidade de costurar, uma profissão, em razão da necessidade material
vivida durante a guerra e o pós-guerra, quando muitas mulheres tiveram que
sustentar, praticamente sozinhas, os filhos (FROTSCHER, 2018).

DICAS

Você quer saber mais sobre narrativas CAPA DO DOCUMENTÁRIO


de alemães que vieram colonizar o Brasil? Então, SEM PALAVRAS
assista ao documentário intitulado de Sem Palavras,
de 2009, cuja direção é de Kátia Klock.

O título do documentário gerou


curiosidade? Ele foi escolhido por conta da
proibição do uso do idioma alemão durante um
período no qual o Brasil tinha, como presidente,
Getúlio Vargas. Até então, muitos alemães que
viviam no Brasil, e os descendentes deles, que
nasceram aqui, falavam, apenas, alemão no dia a
dia, inclusive, muitos nem sabiam falar português.
Todos precisaram se habituar a falar, apenas, o
português, e aqueles que não sabiam se comunicar
através de outro idioma, precisavam ficar calados,
sobretudo, nos ambientes públicos. Diversas
pessoas que eram flagradas falando alemão eram FONTE: <encurtador.com.br/dkKN9>.
aprisionadas. Acesso em: 6 jul. 2021.

183
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Ainda que a pesquisa de Molinari (2017, p. 1), também, tenha se baseado em


cartas de emigrantes, ela adotou e focalizou histórias de migrações italianas, mais
especificamente, no tocante à viagem transoceânica e às doenças enfrentadas pelos
emigrantes, como podemos observar, com mais clareza, no resumo que segue:

O caminho da emigração é um objeto de investigação histórica


imprecisa: é uma história de homens, de navios, de interesses
econômicos e políticos. Para os emigrantes, é, sobretudo, um momento
de espera, além de interrupções entre a vida que deixaram para trás e
aquela nova que encontrarão nos países de destino. Para os intelectuais,
a travessia para fins de conhecimento (literário, científico, sociológico)
e de viagem é um lugar por excelência para observar os fluxos
migratórios e deixar um relato. A travessia dos migrantes, entre o século
XIX e o século XX, pode se tornar um observatório interessante para
verificar as tramas, em geral, dramáticas, entre os projetos migratórios
das classes mais baixas e as dinâmicas de exploração do trabalho delas
na Itália ou nas Américas. As enfermarias dos navios, sobretudo, nas
viagens de volta dos Estados Unidos, estão repletas de emigrantes que
foram, forçadamente, repatriados, por serem portadores de doenças,
como a tuberculose, ou por serem considerados doentes mentais. Para
aqueles que, no momento do desembarque, eram "deportados" de volta
à Itália, por serem considerados doentes mentais, não existia, apenas,
a derrota do projeto migratório, mas corriam o risco de terminar as
próprias vidas em um manicômio.

Segundo Molinari (2017), o conteúdo das cartas de emigrantes se difere


do que é, frequentemente, disseminado pelos textos de literatura. A travessia
transoceânica não é revestida de toda aquela relevância.

Nas vezes em que a viagem é pormenorizada, ela acaba sendo descrita


como uma aventura perigosa, ou difícil, contudo, sem ser vista como uma
separação perdurável. O evento migratório é mais interpretado como uma viagem
provisória do que como algo inalterável (MOLINARI, 2017).

Apesar de existirem incontáveis relatos escritos deixados por emigrantes,


é pertinente elucidar que a quantia é irrisória se levarmos em conta a quantidade
de pessoas que entrou naqueles navios, cujo destino estava selado em regiões
remotas (MOLINARI, 2017).

Algumas perguntas que podemos fazer são: Quantos emigrantes eram


alfabetizados? Quantos tinham o hábito de escrever cartas e/ou diários? Aqueles
que escreviam as próprias experiências, faziam isso mediante que motivação?

Na concepção de Molinari (2017), uma grande parcela dos emigrantes


enfrentou dificuldades, e, supostamente, não recebia muito estímulo externo
para escrever sobre as próprias experiências.

A maior parte deles não considera ter vivido experiências


“memoráveis”. Quem deixou uma memória autobiográfica é porque,
ou espontaneamente, ou por estímulos externos, conquistou a
consciência de que, também, a vida das pessoas comuns “merece” ser
contada (MOLINARI, 2017, p. 6).

184
TÓPICO 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IMIGRANTES

DICAS

CAPA DO DOCUMENTÁRIO
LEGADO ITALIANO

Sugerimos que você assista ao


documentário Legado Italiano, de 2020.

Nele, estão contemplados os legados


cultural, econômico e social vinculados ao
fluxo migratório de italianos para o território
brasileiro no final do século XIX.

FONTE: <encurtador.com.br/OSW58>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

Agora que já refletimos um pouco sobre as narrativas de emigração de


tempos mais distantes, vamos checar experiências mais recentes?!

3 SITUAÇÕES MAIS RECENTES


Você já imaginou o quanto sofreram os alemães e os descendentes deles
que viveram aqui, no Brasil, na época em que o idioma alemão foi proibido no
nosso território? Sem dúvidas, uma das grandes dificuldades que envolve a
imigração está relacionada ao idioma. Será que essa dificuldade só ocorre com
pessoas que chegam em um país cujo idioma é muito diferente da língua natal
delas? Será que, também, isso pode acontecer entre emigrantes que transitam em
países que se consideram idênticos no idioma oficial?

Vamos conferir o que a pesquisa de Oliveira (2012), sobre língua portuguesa


e língua brasileira, tem a nos esclarecer sobre isso?! Ela aborda narrativas relativas à
interculturalidade e à identidade. Na sequência, encontraremos o resumo:

Este estudo de caso busca analisar, com base em narrativas orais de


uma estudante de origem portuguesa do curso de Letras, a construção
de sua(s) identidade(s), incluindo aspectos educacionais, culturais,
pessoais, ao contar a sua história de vida e experiências relacionadas à
vivência no contexto brasileiro. Os resultados sinalizam a inexistência
de unicidade linguística entre falantes brasileiros e portugueses,
evidenciando a complexidade do sistema língua-cultura. Nele, a

185
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

participante constrói referências para representações surgidas após o


contato com o(s) outro(s). Essa dinâmica molda sua(s) identidade(s),
marcando a(s) diferença(s), e oferecendo preciosos indícios para
a compreensão de influências sociais, linguísticas e culturais
relacionadas à vida da estudante (OLIVEIRA, 2012, p. 73).

As pesquisas do subtópico anterior foram feitas com as cartas dos


emigrantes, já quanto à pesquisa presente, foi conduzida por meio de narrativas
orais de uma aluna de origem portuguesa (OLIVEIRA, 2012). Em contrapartida,
essa pesquisa, assim como as duas anteriormente citadas, levou em conta aspectos
culturais, contextuais, pessoais e identitários.

Oliveira (2012), por sua vez, realçou a construção da história de vida da


estudante, sobretudo, no que tange à aprendizagem.

Para Oliveira (2012), essas pesquisas sobre experiências linguístico-


culturais adversas contribuem para a compreensão de si próprio e do outro.

Mesmo que a estudante que participou da pesquisa de Oliveira (2012) não


tenha atravessado o mesmo grau de dificuldade que aqueles que vieram com os
navios no período imediato ao pós-guerra, não significa que a emigração tenha
sido, plenamente, tranquila para ela.

DICAS

CAPA DO LIVRO UM BRASILEIRO EM BERLIM

Podemos sugerir a leitura do


livro Um Brasileiro em Berlim, escrito
por João Ubaldo Ribeiro, que morou
na Alemanha durante quinze meses, na
década de noventa.

FONTE: <eencurtador.com.br/dgpES>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

186
TÓPICO 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IMIGRANTES

Agora, passaremos a refletir sobre a migração humana decorrente de


desastre natural. Indubitavelmente, trata-se de uma conjuntura que envolve
extremo sofrimento. Para ilustrar esse contexto, basear-nos-emos no artigo de
Barros e Martins-Borges (2018, p. 157), a respeito da imigração e do Haiti.

A cultura oferece rituais e discursos que orientam o indivíduo,


inclusive, nos acontecimentos que excedem as possibilidades imediatas
de representação psíquica, os eventos traumáticos. Em janeiro de 2010,
o Haiti foi atingido por um terremoto com proporções catastróficas.
A dificuldade do país, em responder ao ocorrido, que agravou a
situação precária da maioria da população, levou muitos haitianos a
emigrarem, sendo, o Brasil, um dos destinos – ainda que provisório.
O processo migratório, principalmente, nas migrações involuntárias,
implica em diversas mudanças, e pode levar o sujeito a um estado de
vulnerabilidade psíquica, pois muito daquilo que o orientava, em sua
existência, é ameaçado pelo contato com a cultura diferente. O objetivo
principal deste estudo foi analisar quais os impactos psicológicos do
terremoto que, além de levar a experiência do imprevisível pelo evento
em si, foi seguido de uma migração necessária para a continuidade
e a reconstrução da vida. De naturezas qualitativa e exploratória,
o procedimento de coleta de informações se deu por meio de
entrevistas semiestruturadas. Aplicou-se a análise de conteúdo das
narrativas, orientada pelos olhares psicanalítico e etnopsiquiátrico.
Os resultados demonstram que a lembrança traumática, as perdas de
pessoas próximas, a casa, o trabalho e a educação foram acrescidos às
dificuldades de uma migração que, apesar de facilitada legalmente,
é vivida com dificuldade de integração pela maioria desses sujeitos.
Em contrapartida, o desejo de reconstrução das histórias individual e
coletiva se apresenta como importante força na vida dessas pessoas que,
mesmo a distância, procuram compartilhar projetos com os conterrâneos.

Por se tratar de um exemplo de imigração involuntária, é necessário


elencar alguns pontos para meditarmos. Além de toda a dor da perda com a qual
esses sobreviventes do terremoto precisam lidar, ao chegar aqui, deparam-se com
inúmeras situações de preconceito racial. Por conta disso, muitos deles se rendem
ao isolamento social, ou, na melhor das hipóteses, interagem com conterrâneos
ou com outros imigrantes africanos que conhecem em algum momento da rotina
deles. No que se refere à integração com os brasileiros nativos, é rara, e, quando
ocorre, não se dá sem dificuldades (BARROS; MARTINS-BORGES, 2018).

Ao falarem sobre a imigração, frequentemente, citam as próprias


experiências com o aquele terremoto, revelando, assim, as marcas profundas que
esse evento lhes deixou. Articulam esse episódio à história do Haiti (BARROS;
MARTINS-BORGES, 2018). Em alguns relatos, pode emergir o sentimento de
culpa, por deixarem a terra natal, um embargo na voz, pela necessidade de terem
renunciado à vida que levaram lá até que o terremoto mudasse, inteiramente, as
velhas rotinas.

187
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Evidentemente, a imigração pós-desastre possui características próprias,


vinculadas aos traumas arraigados ao momento da catástrofe e ao que vivenciaram
depois dela (BARROS; MARTINS-BORGES, 2018). Vamos conferir mais alguns
elementos que desvelam aspectos psicológicos dos imigrantes haitianos na
perspectiva das próprias vozes deles?

De modo inverso ao que costuma ocorrer nas imigrações impostas por


violências de pessoas (tortura, guerra, genocídio), os sobreviventes de desastres
naturais, que partem para outras nações, demonstram que mantêm preservados
alguns dos recursos que colaboram para a elaboração do que vivenciaram
(BARROS; MARTINS-BORGES, 2018). Inclusive, os imigrantes haitianos citaram
a impressão de elevação do senso fraternal, da solidariedade, do auxílio mútuo,
dos cuidados prestados por outrem (BARROS; MARTINS-BORGES, 2018).

Certamente, o fato de deixar a terra natal, por causa de uma catástrofe


natural que, dificilmente, poderia ser evitada, gera impressões e percepções
diferentes do que precisar sair do país de origem por conta do ódio e da violência
praticados por pessoas.

ATENCAO

Estudos, como esse realizado por Barros e Martins-Borges (2018), são valiosos
para pensar nas políticas públicas, nas práticas de atenção à saúde e de assistência social
para com imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil. Será que podemos fazer algo para
melhorar o acolhimento a eles?

188
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Inúmeras pessoas imigraram/emigraram por conta da segunda guerra.

• Os alemães que estavam no Brasil, durante a Era Vargas, sofreram preconceito


racial, sendo chamados de galegos e “quinta-coluna”, como formas de xingamento.

• Em uma fase da Era Vargas, no Brasil, os alemães foram proibidos de fazer uso
do idioma alemão. Muitos deles nem sabiam falar português. Alguns foram
presos por serem flagrados falando alemão, ou ouvindo rádio da Alemanha.

• Muitos imigrantes relatam dificuldades decorrentes do desconhecimento do


idioma em uso no país no qual passaram a morar.

• Livros de literatura ficcional sobre imigração tendem a enaltecer o medo da


travessia do oceano, ou as situações vividas no decurso da viagem, dando a
entender que essas pessoas jamais voltariam à terra natal.

• Imigrantes haitianos e africanos se deparam com o preconceito racial até os


dias atuais no Brasil, o que leva muitos deles a optarem pelo isolamento social,
ou a interagirem, apenas, com outros negros.

189
AUTOATIVIDADE

1 Como vimos, uma das dificuldades que as pessoas, geralmente, enfrentam,


ao se mudar para outro país, está ligada à linguagem. Isso ocorre, apenas,
pela dificuldade de se comunicar com as pessoas em volta, ou abrange,
ainda, outras questões?

FONTE: OLIVEIRA, H. F. de. Narrativas de uma portuguesa vivendo no Brasil: algumas


considerações sobre suas experiências interculturais. Revista Brasileira de Linguística
Aplicada [online], v. 12, n. 1, p. 73-91, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1984-
63982012000100005. Acesso em: 24 abr. 2021.

2 O estudo conduzido por Barros e Martins-Borges (2018, p. 168) sinaliza


que a imigração dos haitianos não foi uma escolha feita por eles como um
desejo pessoal.

A imigração não é, portanto, uma simples consequência do evento,


uma vez que se concretizou no pós-desastre e foi motivada pelas
circunstâncias deste, além de ser atravessada por características
que a constituem como uma saída paradoxal frente ao impensável.

FONTE: BARROS, A. F. O.; MARTINS-BORGES, L. Reconstrução em movimento: impactos do


terremoto de 2010 em imigrantes haitianos. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 38,
n. 1, p. 157-171, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-3703003122016. Acesso
em: 24 abr. 2021.

Se não foi uma decisão tomada por iniciativa própria de cada imigrante
haitiano, ela reflete que tipo de conjectura?

3 Os procedimentos metodológicos adotados pelo estudo feito por Barros e


Martins-Borges (2018), que abordaram questões relativas à imigração de
haitianos, abarcaram as perspectivas psicanalítica e etnopsiquiátrica na
etapa de análises das narrativas, como você pôde ver neste tópico. Tendo
em mente a perspectiva psicanalítica, assinale a alternativa CORRETA:

FONTE: BARROS, A. F. O.; MARTINS-BORGES, L. Reconstrução em movimento: impactos do


terremoto de 2010 em imigrantes haitianos. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 38,
n. 1, p. 157-171, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-3703003122016. Acesso
em: 24 abr. 2021.

a) ( ) A Psicanálise é a vertente da psicologia que repele toda forma de


[re]construção ficcional da vida, afinal, para a Psicanálise, só importam
as lembranças, factualmente, reais.
b) ( ) A Psicanálise vê, nos textos autobiográficos, a melhor forma de curar
traumas psicológicos, defendendo que todos os eventos da vida são
passíveis de ser significados.

190
c) ( ) O olhar da Psicanálise sobre os textos autobiográficos parte do
pressuposto de que aquele que os escreve não é movido pela razão,
mas, sim, pelo inconsciente. Por isso, o enfoque não está em identificar
o que aconteceu na realidade, e o que é fantasia.
d) ( ) Freud é o fundador da Psicanálise, e ele já se mostrava contrário à
ligação entre Psicanálise e Literatura, opondo-se, principalmente, aos
textos de histórias de vida, justamente, porque eles são incompatíveis
com a escrita científica.

4 Bagno e Ewald (2009, p. 245) fizeram um estudo que envolveu a literatura


e a imigração italiana “[...] a partir de obras literárias, valendo-se do
personagem Nanetto Pipetta, jovem imigrante clandestino vêneto, cujas
aventuras eram publicadas, semanalmente, em capítulos do jornal gaúcho
Stafetta Riograndense, nos anos 1924-1925”. Com relação às narrativas,
analise as afirmações a seguir:

FONTE: BAGNO, S.; EWALD, A. P. Lembranças do país da cocanha entre os descendentes


de imigrantes italianos no início do século XX: o Brasil imaginado. Estud. Pesqui. Psicol., Rio
de Janeiro, v. 9, n. 1, 2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1808-42812009000100019&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 24 abr. 2021.

I- Certamente, o personagem Nanetto Pipetta levava os imigrantes italianos


do Sul do Brasil, que liam os referidos capítulos, à identificação, isso
porque eles eram compostos pelos motivos que os conduziram a imigrar,
e porque, neles, mencionavam-se as experiências do embarque, da
travessia, da chegada, e os desafios da aculturação.
II- As narrativas nos mostram que muitos dos imigrantes italianos se
deslocaram até o Brasil atraídos pela esperança de que teriam melhores
chances de sobrevivência. Eles desejavam a abundância, imaginando que,
aqui, desfrutrariam de alimentos em fartura e de condições de vida mais
aprazíveis.
III- As narrativas desconstroem as tradições e as esfacelam. Esse gênero
discursivo é criticado por contemplar, apenas, a experiência contada pelo
narrador, sem contemplar a experiência vivida pelo leitor enquanto efetua
a leitura. As narrativas são isentas da capacidade de instigar estados
emocionais nos leitores.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As afirmações corretas são I e II.
b) ( ) As afirmações corretas são II e III.
c) ( ) As afirmações corretas são I e III.
d) ( ) Exclusivamente, a afirmação I é correta.

5 Bechler e Silva (2019, p. 27) fizeram um estudo sobre a imigração alemã


articulada aos textos de memória impressos em livros didáticos regionais.
“A imigração alemã, assim como de outras etnias que vieram para o Brasil,

191
atendeu a objetivos particulares e distintos dos que incentivaram a vinda
dos portugueses das ilhas dos Açores”. Frente ao exposto, analise as
assertivas que seguem:

FONTE: BECHLER, R. R.; SILVA, C. B. da. Livros didáticos como textos de memória: notas
sobre narrativas da imigração alemã em livros didáticos de história regionais. História
da Educação [online], v. 23, e81563, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-
3459/81563. Acesso em: 24 abr. 2021.

I- As narrativas, presentes nos livros didáticos, omitem os nomes dos


fundadores das cidades catarinenses, na medida em que os imigrantes
alemães que os acompanharam recebem a mesma consideração do
que eles. Todos são, igualmente, apresentados como sujeitos ativos e
importantes nas ações praticadas durante a colonização – todos tendo
nomes e sobrenomes ocultados.
II- A análise dos textos didáticos, enquanto “textos de memória”, mostra-
nos que as narrativas históricas escolares carregam consigo sentidos
profundos, estabelecidos e legitimados por culturas de memória que se
perpetuam e se reinventam no tempo, subsidiando compreensões do
presente sobre os passados.
III- A partir dos textos narrativos divulgados nos materiais didáticos, o
professor pode abordar essas temáticas ligadas à imigração, ficando atento
à inteligibilidade e aos modos pelos quais as narrativas sobre a chegada
dos imigrantes alemães no Brasil, no século XIX, foram elaboradas,
alteradas, reiteradas no decorrer do século XX, indicando interpretações e
memórias para a composição de um traçado narrativo para a história de
Santa Catarina e das suas gentes.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) São corretas as assertivas I e II.
b) ( ) São corretas as assertivas II e III.
c) ( ) São corretas as assertivas I e III.
d) ( ) Apenas a assertiva I é correta.

192
TÓPICO 4 —
UNIDADE 3

NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE


PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE TERMINALIDADE
DA VIDA

1 INTRODUÇÃO
Neste, que é o último tópico do livro, refletiremos sobre as narrativas
produzidas por idosos – sejam elas escritas ou verbalizadas. Veremos quais são
os temas que, mais regularmente, surgem nos relatos deles.

Entraremos em contato com narrativas elaboradas diante do sofrimento


decorrente do prognóstico de doença que ainda não possui cura – terminalidade
iminente.

Por fim, serão listados alguns dos benefícios do ato de contar narrativas e
histórias de vida.

Boa leitura!

2 NARRATIVAS DE IDOSOS
Iniciaremos as nossas reflexões sobre narrativas e histórias de vida de
idosos amparados pelo artigo de Massi et al. (2015, p. 2065, grifos nossos). Eles
articulam a linguagem e o envelhecimento, com entonação às práticas de escrita
autobiográfica feitas por idosos. Trata-se de uma pesquisa vinculada à saúde do
idoso, sob a ótica da fonoaudiologia.

O envelhecimento populacional está ocorrendo de forma acelerada em


todo o mundo, e o Brasil vem acompanhando essa tendência mundial.
As políticas públicas brasileiras reconhecem que o crescimento da
longevidade humana gera uma série de demandas para que seja
oportunizado, a toda população, um envelhecimento com qualidade
de vida e autonomia. A presente pesquisa objetiva analisar os efeitos
que práticas de escrita autobiográfica, desenvolvidas por sujeitos
idosos, podem gerar em sua autonomia e bem-estar. Participaram,
desse estudo, cinco mulheres e três homens, com idades entre 60 e
87 anos. Trata-se de um relato de caso, cujos dados são analisados,
qualitativamente, a partir da Análise do Conteúdo. O corpus de
análise é composto por respostas elaboradas pelos sujeitos da pesquisa
a uma entrevista semiestruturada. Tal entrevista focou em questões
sobre as atividades de leitura e de escrita desenvolvidas pelos sujeitos

193
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

antes e depois de terem participado de práticas significativas com a


linguagem. A partir da análise das respostas, é possível afirmar que
a escrita autobiográfica pode se constituir em uma prática efetiva de
letramento, capaz de proporcionar bem-estar, autoestima, realização
pessoal, imortalização de experiências e relatos pessoais, resgate de
lembranças e promoção de atitudes de cidadania. Esse estudo de
caso indica que um trabalho fonoaudiológico, voltado ao incremento
de práticas de letramento, com pessoas idosas, atende a princípios
e propostas das políticas públicas saudáveis voltadas à população
que envelhece, pois promove autonomia e participação dos idosos
na comunidade, ampliando suas possibilidades de vivenciar um
envelhecimento saudável e bem-sucedido.

Curiosamente, a maior parte dos idosos que foram integrantes dessa


pesquisa conduzida por Massi et al. (2015), inicialmente, considerava-se sem
capacidade para escrever narrativas das próprias histórias de vida. Na opinião
desses idosos, eles não contavam com o grau de escolaridade necessário para
escrever, inclusive, alguns deles se classificaram como pessoas que não sabiam
ler ou escrever bem. Surgiram, ainda, por parte dos idosos, falas sobre o
desconhecimento da convenção ortográfica, além da vergonha de se expor e do
medo de escrever.

Alguns dos idosos se mostraram motivados a escrever sobre trechos das


próprias histórias de vida após o contato com a Oficina da Linguagem. A Oficina
propôs reflexões sobre as relações entre esses idosos e a linguagem escrita. Assim,
foram conduzidas atividades de letramento, incitando os idosos a um novo olhar
sobre as práticas de leitura e de escrita deles. A partir de então, começaram a tomar
a própria escrita como possibilidade dos reconhecimentos pessoal e social, além
de a considerarem uma oportunidade de valorização das histórias vivenciadas
(MASSI et al., 2015).

ATENCAO

Segundo Massi et al. (2015, p. 2070), “[...] é preciso ressaltar a necessidade e


a importância de novos estudos e pesquisas direcionados à população idosa, no sentido
de consolidar o papel do fonoaudiólogo na área da Gerontologia e a participação dele na
promoção da saúde e da cidadania dos idosos, resgatando o papel da linguagem como
constitutiva do sujeito”.

Para Massi et al. (2015), incentivar que idosos realizem práticas de


letramento, relacionadas aos relatos autobiográficos, é proveitoso, porque, dessa
forma, contribui-se com o desenvolvimento da autonomia e da participação ativa
deles na comunidade. Inclusive, ao redigir as narrativas e as histórias de vida,
os idosos demonstraram que as possibilidades de vivenciar um envelhecimento
saudável e bem-sucedido foram promovidas e ampliadas.

194
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

De mais a mais, tais práticas estão em consonância com os princípios e as


propostas das políticas públicas saudáveis direcionadas à parcela da população
que envelhece (MASSI et al., 2015).

Daremos seguimento às reflexões sobre as histórias de vida de idosos


com base no artigo escrito por Guedes (2014, p. 255, grifos nossos), no qual são
mencionados projetos gerontológicos, reconstrução do passado e questões de
identidade em sociedades complexas. Vejamos o resumo:

Examino, neste artigo, o processo de reconstrução do passado de


idosos engajados em projetos gerontológicos, utilizando material
empírico produzido em pesquisas sob minha coordenação. Seguindo
a orientação de Ruth Behar, considero que cada narrativa chamada
de “história de vida” se constitui na produção de um texto que é
uma versão do self construída por um sujeito. Nesse sentido, o artigo
tem dois objetivos: o primeiro, de ordem teórico-metodológica, visa
acentuar a dimensão interpretativa e situada das narrativas estudadas,
verificando como algumas categorias interpretativas ordenam a
produção das histórias de vida em agências gerontológicas; o segundo
é contribuir para uma discussão mais ampla sobre as formas de
relacionamento entre culturas diversas em sociedades complexas.

As narrativas geradas por meio dessa pesquisa foram suscitadas por


intervenções que objetivavam contribuir com a reconstrução da experiência e
da memória de idosos, a partir de interpretações e reinterpretações. Portanto,
foram narrativas elaboradas por idosos, endereçadas aos pesquisadores, que as
instigaram e as analisaram, levando em consideração o contexto intercultural
(GUEDES, 2014).

A intenção de Guedes (2014) não foi a de coletar narrativas cristalizadoras


e estanques de trajetórias de vida. Pelo contrário. Buscou proporcionar situações
para que os idosos pudessem repensá-las, atribuindo novos significados ao
que viveram, e um olhar para a própria história, vinculado ao movimento e à
mudança, e não ao fechamento.

Para Guedes (2014), dois itens que marcaram a maior parte das
verbalizações dos idosos foram depressão e autoestima.

DICAS

Um filme que pode ajudar a refletir sobre a velhice, sob a perspectiva dos
idosos, chama-se A Fuga dos Avós. Nele, o anúncio da aposentadoria faz com que a
sociedade, e, até mesmo, os familiares, passem a olhar para o casal como se estivessem
finalizando a vida, adentrando nas fases de inutilidade e de inatividade. Já para o casal, não
faltam planos futuros, incluindo o sonho de se mudar para outro país.

195
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Algumas cenas do filme ilustram a vida nos acionamos, ou asilos. Por ser uma
comédia, tudo isso é repassado com certa leveza. Ainda assim, oferece subsídio para várias
reflexões. Bom divertimento!

CAPA DO FILME A FUGA DOS AVÓS

FONTE: <https://www.netflix.com/br/title/81191429>. Acessos em: 6 jul. 2021.

No seguimento, meditaremos sobre a história de vida de idosos


institucionalizados, tendo em mente as fases do ciclo da vida. Trata-se do artigo
escrito por Marin et al. (2012, p. 147, grifos nossos), cujo resumo é o seguinte:

Considerando que a institucionalização, muitas vezes, representa


a única possibilidade de sobrevivência ao idoso, sendo revestida de
sofrimentos e limitações que interferem nas condições de vida, o
presente estudo se propõe a compreender a história de vida de um
grupo de idosos institucionalizados. Trata-se de um estudo qualitativo
realizado a partir das narrativas de oito idosos residentes em uma
Instituição de Longa Permanência (ILP). A interpretação dos dados
teve, como referência, o método de análise de conteúdo modalidade
temática. Os resultados apontam para semelhanças nas trajetórias
marcadas pelo desfavorecimento do contexto sócio-histórico.
Depreende-se que a atenção ao processo de envelhecimento deve se
iniciar na infância, por meio de condições propícias ao crescimento e
ao desenvolvimento nos aspectos biopsicossociais.

Parte dos idosos demonstrou descontentamento com a situação vivenciada,


relatando se sentir entregue ao abandono e à solidão pelos próprios familiares,
ao passo que alguns deram mais ênfase ao sentimento de ser bem cuidado na
instituição. Ainda assim, talvez, esse sentimento reverbere, apenas, uma espécie
de conformismo com a situação (MARIN et al., 2012).

As histórias dos oitos idosos que fizeram parte do estudo de Marin et al.
(2012) possuem diferenças e semelhanças. Dentre elas, podem ser citadas:

• baixa condição socioeconômica no decorrer de todo o curso da vida;


• desfavorecimento do contexto sócio-histórico;
• perda prematura do núcleo familiar;

196
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

• baixo grau de escolaridade;


• trabalho infantil;
• falta de construção de fortes vínculos afetivos;
• sensação de abandono e solidão na velhice.

NOTA

Marin et al. (2012) realçam que, nem sempre, idosos que estejam vivendo com
os familiares podem desfrutar de condições mais dignas e respeitosas.

Marin et al. (2012) defendem que a atenção para com o processo de


envelhecimento precisa ter início na infância, por intermédio de condições
favoráveis ao crescimento e ao desenvolvimento das pessoas sob os aspectos
biopsicossociais, sobretudo, daquelas de classes sociais desfavorecidas, a fim de
que possam ter condições de preservar o convívio familiar e os laços afetivos
na velhice.

Na continuação, concentrar-nos-emos em mais histórias, desta vez,


ligadas à enfermagem geriátrica, envolvendo idosos de 80 anos ou mais. Trata-se
do artigo de Willig, Lenardt e Caldas (2015, p. 697, grifos nossos), que abrangeu
temáticas da longevidade e da cultura. Confiramos o resumo:

Objetivo: interpretar as histórias de vida dos idosos longevos de uma


comunidade, alicerçada na perspectiva do Envelhecimento Ativo e
Curso de Vida. Método: pesquisa qualitativa, da qual participaram
vinte idosos de 80 anos e mais, usuários de uma Unidade Básica de
Saúde. As histórias de vida foram coletadas e analisadas segundo
a proposta da Entrevista Narrativa Autobiográfica. Resultados: no
processo analítico, surgiram elementos presentes no passado e no
presente dos longevos, que contribuíram para o desenvolvimento de
um modelo teórico: “Construindo a longevidade no curso de vida”.
Conclusão: a longevidade tem suas raízes no passado, fortemente,
influenciada pela cultura familiar e pelo curso de vida. Os pressupostos
do Envelhecimento Ativo são mais expressivos na trajetória atual dos
informantes. O teor das narrativas apontou novas possibilidades
de intervenção da Enfermagem Gerontológica na Atenção Primária,
visando à promoção e à prevenção da saúde, fundamentadas,
especialmente, no respeito à cultura dos longevos.

Nesse estudo, também, emergiram relatos sobre o sofrimento. Para reduzi-


lo, os idosos disseram utilizar práticas culturais de cura associadas à medicina
tradicional. As falas dos idosos foram perpassadas por tristezas, alegrias, perdas,
ganhos, e uma forte ênfase foi dada aos acontecimentos mais emocionantes:
geralmente, ligados às perdas pessoais e à morte de entes queridos (WILLIG;
LENARDT; CALDAS, 2015).

197
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Os idosos destacaram os modos pelos quais superaram as mais difíceis


agruras vivenciadas, e as articularam ao desenvolvimento de sabedoria (WILLIG;
LENARDT; CALDAS, 2015).

NOTA

Willig, Lenardt e Caldas (2015) esperam que o trabalho deles colabore com
a adequação de ações de promoção e de cuidado gerontológicas aos idosos. É preciso
repensar e alterar as maneiras de se trabalhar com a saúde e as participações social e
cultural dos idosos.

Ainda, foram apontados, nas falas dos idosos, o trabalho que realizaram,
a foram de agir, a participação em grupos, e a convivência (WILLIG; LENARDT;
CALDAS, 2015).

Mesmo que muitas pessoas imaginem que idosos com oitenta anos de
vida só estejam pensando na finitude da vida, os relatos desses exprimiram
projetos de vida, isto é, planos futuros. Isso contesta a perspectiva da inatividade
(WILLIG; LENARDT; CALDAS, 2015).

NOTA

Willig, Lenardt e Caldas (2015) nos lembram de que os idosos devem ser
respeitados, além da cultura deles. Cada vez mais, eles têm mostrado que não podem
ser considerados inativos ou improdutivos, mas, sim, protagonistas das próprias histórias
e planejamentos para o amanhã. A autonomia e a independência dos idosos devem ser
preservadas e estimuladas.

Não poderíamos falar de narrativas de idosos sem fazer menção à história


oral de vida enquanto estratégia humanizadora de aproximação entre cuidador/
idoso. Por conseguinte, embasamo-nos em Mota, Reginato e Gallian (2013, p.
1681, grifos nossos), a fim de refletirmos sobre a necessidade de humanização
da assistência no que tange à saúde do idoso. Trata-se de mais um estudo sobre
autobiografia, no qual despontaram acontecimentos que mudam a vida. Vamos
prestar atenção ao resumo?!

Este artigo objetiva apresentar um estudo sobre o uso da abordagem


da História Oral de Vida como estratégia de aproximação entre
cuidador e idoso, a fim de contribuir para a humanização na relação

198
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

entre profissional da saúde e paciente. Trata-se de uma pesquisa


qualitativa e descritiva. Nossa amostra reuniu sete idosos, homens
e mulheres, maiores de 65 anos que, por meio de entrevistas abertas
e semiestruturadas, possibilitaram a produção de narrativas de
histórias de vida, as quais, uma vez finalizadas, foram devolvidas
aos colaboradores em forma de cadernos personalizados para que
dispusessem delas como quisessem. Como resultado, pôde-se perceber
que tal abordagem contribuiu para a geração e o fortalecimento do
vínculo entre enfermeiro e idoso, apresentando-se não apenas como
elemento humanizador, mas, também, terapêutico.

Os relatos dos referidos idosos, também, expuseram o sofrimento, a


solidão, o isolamento social, a tristeza. Os idosos evidenciaram que percebem
conviver com a dinâmica perversa de marginalização. Sentem-se esquecidos e
abandonados pelos jovens. Essas circunstâncias, inclusive, aparentam afetar as
condições de saúde deles. Aludiram, ainda, a superação de limitações físicas, o
enfrentamento de várias enfermidades e as causas mais agudas de abatimento e
pesar (MOTA; REGINATO; GALLIAN, 2013).

Na sequência, refletiremos sobre a oralidade, por intermédio de


performances narrativas em contextos de conflito, em regiões de fronteira. Vamos
aprender um pouco sobre aspectos relacionados aos contadores de histórias?!
Comecemos pelo resumo que segue:

Neste artigo, trato da constituição do sujeito-narrador na região da


fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai, onde venho realizando
pesquisa etnográfica desde 1997. Inicialmente, dedico-me à análise
do papel que as performances narrativas ocupam na construção da
subjetividade, partindo da constatação de que grande parte dos
eventos narrados pelos contadores de “causos” da região é relativa
a ocasiões de ruptura ou de quebra da normalidade cotidiana. Nesse
sentido, a noção de “conflito” é adotada, aqui, como elemento-chave
para refletir sobre as trajetórias de vida desses narradores. Em um
segundo momento, faço um levantamento da presença de situações
de conflito sob diferentes contextos, nas narrativas pessoais dos
contadores. Considero, finalmente, a importância das performances
narrativas na organização da experiência de se tornar pessoa nessa
zona de fronteira (HARTMANN, 2014, p. 767).

Talvez, você esteja se perguntando: por que esse artigo está sendo
mencionado em um livro de histórias de vida? Qual é a relação entre anedotas,
causos ou contos tradicionais e trajetórias de vida?

Os contadores de história mais experientes nunca (ou quase nunca)


falam de “enterros de dinheiro”, de lobisomens, de bruxas, ou de mulheres de
branco sem conectar esses relatos à própria vida. Seja verdade ou ficção, eles se
esforçam para fazer com que o causo pareça verídico, para tanto, articulam-no
à vida deles, ao cotidiano. Em virtude dessas articulações (diretas ou indiretas),
fez-se necessário, pelo menos, fazermos menção aos contadores da fronteira e à
trajetória deles (HARTMANN, 2014).

199
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

“Essa relação de interdependência entre as narrativas pessoais e as


narrativas tradicionais é fundamental para a compreensão da oralidade na
fronteira. É a análise das performances dessas narrativas que permite o acesso a
seus significados” (HARTMANN, 2014, p. 768).

Vale lembrar que os contadores da fronteira contam com o reconhecimento


da comunidade na qual se fazem presentes e da audiência. As relações de poder
perpassam muitos dos causos contados, assim como os conflitos entre as regiões,
as questões hierárquicas, os embates sociais, as situações de trabalho rural ou de
pecuária que, comumente, fazem parte do dia a dia das pessoas que vivem em
tais localidades (HARTMANN, 2014).

Dessa forma, constituir-se como sujeito-narrador, nesse contexto,


comporta, de um lado, organizar a sua própria experiência através
das narrativas, de outro, ser reconhecido por isso, com direito a um
nome. A habilidade dos contadores permite garantir a manutenção
do vínculo social que liga os membros da comunidade fronteiriça
não apenas através das narrativas, mas, também, por um modelo de
sujeito que é, dessa forma, constantemente atualizado. A valorização
da experiência e, consequentemente, dos anos de vida e da trajetória
necessária para adquiri-la, faz com que os idosos ocupem, portanto,
um papel especial nessa comunidade (HARTMANN, 2014, p. 787).

É, justamente, por isso, que deixamos para fazer referência aos contadores
da fronteira aqui, neste tópico, porque a maioria deles apresenta idade avançada.
Inclusive, essa característica colabora para a legitimação dos discursos deles
perante a sociedade local. As experiências de vida são valorizadas pela audiência
(HARTMANN, 2014).

Eles, também, são, seguidamente, aplaudidos pela brilhante capacidade


de transmitir eventos atinentes à memória da comunidade e episódios da sua
trajetória particular (HARTMANN, 2014).

DICAS

Já que estamos falando de narrativas e de histórias de vidas de idosos, é válido


citar o documentário intitulado de Numerado, no qual sobreviventes dos campos de
concentração da segunda guerra dão os depoimentos deles sobre o que viveram naqueles
dias difíceis.

200
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

CAPA DO DOCUMENTÁRIO NUMERADO

FONTE: <encurtador.com.br/uz027>. Acesso em: 6 jul. 2021.

Dando prosseguimento, o enfoque passa a recair sobre a memória


autobiográfica em idosos com demência de Alzheimer nas fases leve e moderada,
tomando-se, como base, o teste e o questionário de memória autobiográfica. Para
tanto, citamos o artigo escrito por Lemos, Hazin e Falcão (2012, p. 135):

O presente trabalho apresenta dados de pesquisa referentes à


investigação de Memória Autobiográfica (MA) em idosos com
Demência de Alzheimer (DA) nas fases leve e moderada. Participaram,
do estudo, quarenta e quatro idosos, divididos em três grupos: DA leve
(n = 15) e DA moderada (n = 15); e 14 idosos sem histórico de alterações
neuropsiquiátricas que constituíram o grupo Controle. Utilizou-
se, na avaliação da memória autobiográfica, as versões reduzidas
do Teste de Memória Autobiográfica (TMA) e do Questionário de
Memória Autobiográfica (QMA). Os dados evidenciaram diferenças
significativas entre os grupos representantes da variável independente
(estados leve e moderado de DA) e o grupo Controle, tendo-se
verificado, nesse grupo, maior número de memórias específicas,
com elevada intensidade vivencial das características fenomenais
da recordação, quando comparado aos grupos com DA. Tais dados
permitem concluir que alterações na MA, em sujeitos com DA, podem
ser observadas desde a fase inicial da doença, tanto no que diz respeito
à capacidade de especificar a recordação, quanto com relação às
características fenomenais da lembrança.

Ao que tudo indica, o declínio da Memória Autobiográfica, nos quadros


de Demência de Alzheimer, parece começar a partir dos aspectos emocionais
dessa memória. Desse modo, ficam conservados, em fases intermediárias da
doença, somente, aqueles associados ao esquema de si e aos fatos autobiográficos
(LEMOS; HAZIN; FALCÃO, 2012).

Lemos, Hazin e Falcão (2012) perceberam que as pessoas com demência


de Alzheimer moderada rememoram os eventos autobiográficos como se fossem
desligados do caráter emocional, reconhecendo-os como pessoais, exclusivamente,
pelas evidências de que estes sucederam com eles próprios e a partir de alguns
detalhes.
201
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

Quanto às pessoas com Demência de Alzheimer leve, Lemos, Hazin e


Falcão (2012) notaram que elas sustentam a experiência vivencial associada aos
aspectos emocionais. Por outro lado, a frequência de tais produções é inferior à
do grupo Controle, desvelando dificuldades mais elevadas para a recuperação de
eventos autobiográficos específicos.

ATENCAO

“Os achados da presente pesquisa resgatam a indissociabilidade das dimensões


cognitivas e afetivas no funcionamento psicológico humano” (LEMOS; HAZIN; FALCÃO,
2012, p. 142).

Lemos, Hazin e Falcão (2012), ainda, salientaram que o declínio do sistema


da memória autobiográfica, em idosos com Demência de Alzheimer, dá sinais do
impacto de tal dissociação em contextos patológicos.

3 NARRATIVAS E TERMINALIDADE DA VIDA


Agora que estamos mais perto do desfecho deste livro, vimo-nos diante da
necessidade de abordar, brevemente, sobre as narrativas pessoais em contextos
de cuidados paliativos, ou seja, nos momentos de intenso estresse psicológico
diante da aproximação da terminalidade da vida.

ATENCAO

Você já ouviu falar dos cuidados paliativos?

Quase sempre, o que presenciamos, quando o paciente se


encontra em fase terminal de vida, é a submissão dele às
condutas médicas, as quais tentam preservar a sobrevivência
a qualquer custo. A pessoa perde a tutela do próprio corpo,
torna-se, quase, uma não pessoa, porque a existência dela
depende, inteiramente, do cuidado e do respeito. Nessas
circunstâncias, é, apenas, o discurso médico que determina o
que vai ser feito. O paciente não pode expressar os próprios
sentimentos, pois estão entorpecidos pelo impacto iminente
da morte (COELHO; FERREIRA, 2015, p. 347).

202
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

Nesse sentido, escoramo-nos no artigo elaborado por Coelho e Ferreira


(2015, p. 340, grifos nossos), que procurou compreender a subjetividade do
cuidador que sofre com a dor do outro, a partir da ideia dos cuidados paliativos ao
doente. Assim, as narrativas analisadas foram produzidas por aqueles que cuidam
de pessoas que estão frente a frente com a notícia da iminente terminalidade deles.

Este artigo tem, como objetivo, compreender o sofrimento do


cuidador diante da situação-limite da terminalidade da existência.
O estudo é de natureza qualitativa – modalidade metodológica de
história oral em sua vertente temática –, e foi realizado no Hospital
Paulo de Tarso, em Belo Horizonte/MG, Brasil. Os participantes da
pesquisa são cuidadores, compreendendo familiares de pacientes
hospitalizados e profissionais de saúde que os acompanhavam. As
narrativas, colhidas por meio de entrevistas semiestruturadas, foram
transcritas e desdobradas em categorias analíticas, na perspectiva da
filosofia de cuidados paliativos. A relevância desse estudo se encontra
na compreensão da dimensão do cuidado que requer sutilezas, às
vezes, só percebidas mediante um olhar, um gesto, uma conversa ou
o silêncio. Verificou-se que a escuta é fundamental para pensar no ser
humano, dizendo sobre sua história, suas escolhas e decisões, e, diante
dessa subjetividade, tentar dar sentido e significado ao viver, como
forma de aliviar sua dor e sofrimento.

Vale lembrar que, além da angústia de conviver com pessoas que estão
cientes de que possuem um diagnóstico apontando a impossibilidade de cura,
esses cuidadores, também, lidam, correntemente, com a morte de pacientes.
Durante o horário de trabalho, esses cuidadores estão em contato com pessoas
em situação-limite de dor e sofrimento (COELHO; FERREIRA, 2015).

Pessoas que encaram a dor com tanta frequência tendem a sentir algum
alívio quando encontram alguém que as ouça com atenção. A escuta respeitosa
e sensível favorece a verbalização de fluxos narrativos, possibilitando, assim,
o acesso à expressão do sofrimento humano perante doenças consideradas
incuráveis, e, consequentemente, perante a morte. As narrativas que costumam
surgir nesses contextos, rotineiramente, indicam medo, angústia e memórias
(COELHO; FERREIRA, 2015).

DICAS

Tendo em vista que muitas pessoas em situação de dor constante expressam


crenças e mencionam aspectos relacionados com a espiritualidade, vale a pena ler o livro
escrito por Philip Yancey, intitulado de Decepcionado com Deus. No livro, ele levanta
hipóteses sobre as funções da dor na vida humana. Por exemplo, menciona experiências
de pessoas que perdem a capacidade de sentir dor física por conta de condições de saúde
específicas e o quanto a falta da sensação de dor se torna maléfica para elas.

203
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

CAPA DO LIVRO DECEPCIONADO COM DEUS

FONTE: <encurtador.com.br/noJP6>. Acesso em: 6 jul. 2021.

Outro livro de Philip Yancey, que vem sendo indicado, a fim de consolar enlutados
ou pessoas em outras situações de tristeza profunda, chama-se Quando a Vida nos Machuca
– trata-se de um livro menos denso do que Decepcionado com Deus, cuja leitura é mais
rápida (também, porque possui bem menos páginas do que Decepcionado com Deus).

Nem sempre, o sofrimento é manifesto por meio de palavras nos momentos


em que se oferece a escuta sensível para pessoas em situação de tamanha
consternação. Por vezes, são os olhares, os suspiros, as pausas, as entonações
na voz, os gestos, e, até mesmo, as oscilações na frequência de respiração que
desvelam o sofrimento (COELHO; FERREIRA, 2015).

Nessa escuta, é impossível ficar alheio ao sofrimento humano. Os


cuidados paliativos entram em cena e demonstram por que a sua ação
está no campo da ética do cuidado, na qual o outro demanda uma
atitude de respeito, de atenção (COELHO; FERREIRA, 2015, p. 345).

Quando a pessoa se sente sem chances de permanecer viva, pode encontrar


algum refrigério quando se sente estimulada a, pelo menos, dizer. Diante da
finitude iminente, pode lhe trazer algum conforto, ou consolação, a oportunidade
de contar a própria história, as decisões, as dores, os choros, os risos. Esse contar
não equivale a jogar conversa fora. Essa fala é terapêutica, já que, enquanto vai
sendo dita, vai, simultaneamente, atribuindo novos sentidos aos fatos ocorridos,
produzindo novos sentidos para o que foi vivido (COELHO; FERREIRA, 2015).

Nessas narrativas, apareceram assuntos ligados à espiritualidade e ao


cuidado. É pertinente esclarecer que os cuidados paliativos visam, não apenas,
ao controle de sintomas e de dores, mas, também, disponibilizar conforto para
a pessoa. Imprescindivelmente, esses cuidados abarcam emoções difíceis de

204
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

serem traduzidas. “A intensidade do sofrimento varia, conforme a cultura, os


valores, os mundos afetivo e social, os sentimentos de pertencimento, as ideias e
as escolhas do próprio sujeito, em sua intimidade e relação com o mistério último
da realidade” (COELHO; FERREIRA, 2015, p. 347).

Em nossa sociedade, morte e doenças permanecem sendo encaradas como


tabus. São assuntos que, raramente, são citados. Muitos têm superstições de que
o ato de, tão somente, falar deles, pode gerar maus agouros. Em contrapartida,
parece que, quanto mais esses assuntos são evitados, mais dificuldades as pessoas
têm para enfrentá-los quando se concretizam nas famílias delas (COELHO;
FERREIRA, 2015). Em virtude disso, vez ou outra, encontram-se pessoas sob
cuidados paliativos que fingem estar tudo bem, cujas famílias jogam esse mesmo
jogo e que, possivelmente, esperam, de fato, um milagre. A espera de milagres
deve ser respeitada, porém, o ato de fingir que está tudo bem traz prejuízos ao
paciente, para os familiares, e, até, para a equipe de saúde. Quando alguém se
encoraja e quebra o silêncio, todos esses envolvidos, que acabaram de ser citados,
tendem a sentir algum alívio (COELHO; FERREIRA, 2015).

Coelho e Ferreira (2015) elencaram os seguintes benefícios da escuta


sensível, oferecida aos familiares que acompanham situações de prognóstico de
óbito premente:

• proporciona alívio;
• transmite a sensação de acolhimento;
• apresenta características terapêuticas;
• gera o prazer que é encadeado pelo ato de conversar;
• produz bem-estar;
• disponibiliza falas por parte dos sujeitos envolvidos, nas quais declaram se
sentir melhores após a conversa.

DICAS

Você se lembra do famoso autor C. S. Lewis, que se tornou famoso, sobretudo,


após escrever As Crônicas de Nárnia? Ele, também, escreveu um livro sobre o sofrimento, no
qual relata as próprias dores diante da perde de entes queridos. O título do livro é O Problema
do Sofrimento, e ele é muito útil para ampliar as suas reflexões sobre a dor e o sofrer.

205
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

CAPA DO LIVRO O PROBLEMA DO SOFRIMENTO

FONTE: <https://www.amazon.com.br/Problema-do-Sofrimento-C-Lewis/dp/8573678518>.
Acesso em: 6 jul. 2021.

4 REMATES REFLEXIVOS
As narrativas de idosos vêm demonstrando que eles anseiam por
oportunidades a partir das quais possam escrever, ou verbalizar sobre as próprias
trajetórias de vida. Eles apreciam quando são, realmente, ouvidos.

Esses anseios não se referem, apenas, ao ato literal de escreverem sobre si


próprios. Tais anseios abraçam o sentido figurado de escreverem novas histórias
em suas vidas enquanto protagonistas, ou, mais especificamente, como autores
das histórias presentes e futuras deles.

Para Massi et al. (2015), a apreciação por ocasiões nas quais podem
compartilhar as histórias antigas (e nem tão antigas) deles não significa, tão
somente, uma maneira de atualizar a memória. Contar as próprias histórias
propicia oportunidades de elaborar (e reelaborar, ressignificar) processos de
envelhecimento vivenciados por eles.

Na concepção de Massi et al. (2015), a expressão narrativas e histórias de


vida, por meio da escrita, desperta:

• sensação de bem-estar;
• melhoras na autoestima;
• sentimento de realização pessoal;
• resgate de lembranças;
• recursos sociais de/para integração;
• superação de estereótipos.

Mota, Reginato e Gallian (2013) destacam os benefícios da história oral de


vida. Para eles, ela pode favorecer:

206
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

• a aproximação entre pacientes e profissionais da saúde (e/ou cuidadores);


• a criação de vínculo entre cuidador ou profissional de saúde (entrevistador) e
aquele que é cuidado (entrevistado);
• a transformação de vidas.

Sob o ponto de vista de Mota, Reginato e Gallian (2013), apesar da


simplicidade das narrativas orais, e dos baixos custos financeiros que as envolvem,
elas são uma ferramenta complexa e prenhe de valores, a ponto de que, ao passar
por essa experiência, ninguém permanece o mesmo, e isso vale para os narradores e
para aqueles que ouvem as narrativas.

“A narrativa é responsável por humanizar a pessoa, individualizando-a,


pois declara a sua memória única em períodos fascinantes da vida, contribuindo
para mostrar o quanto ela é importante como ser humano” (MOTA; REGINATO;
GALLIAN, 2013, p. 1683).

DICAS

Um filme que vale a pena assistir, e, até mesmo, rever, agora que você concluiu
a leitura deste livro, é intitulado de Tomates Verdes Fritos, lançado em 1991. Ele mostra
algumas limitações decorrentes do envelhecimento e o quanto uma senhora se sente
aprazida pela chance de contar histórias.

CAPA DO FILME TOMATES VERDES FRITOS

FONTE: <encurtador.com.br/ilmJV>. Acessos em: 6 jul. 2021.

207
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

LEITURA COMPLEMENTAR

O USO DA AUTOBIOGRAFIA NA EDUCAÇÃO DE ADULTOS:


MODOS NARRATIVOS DE VALORIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO DA
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

António Calha

Resumo

As alterações ocorridas nas últimas décadas, no mundo do trabalho, têm legitimado o


surgimento de políticas de reconhecimento de competências adquiridas em contextos
informais e não formais. Em Portugal, o Sistema de Reconhecimento, Validação e
Certificação de Competências (RVCC) foi colocado em prática em 2001, adoptando, como
suporte metodológico, o balanço de competências e a abordagem autobiográfica. Nesse
artigo, procuramos analisar o uso da autobiografia no contexto da educação de adultos
baseada no reconhecimento de adquiridos experienciais. Olhamos, com particular atenção,
o relato das experiências profissionais, procurando identificar as estratégias narrativas
que os candidatos utilizam para a valorização das próprias aprendizagens. Recorrendo a
um corpus analítico de cem autobiografias, identificamos a existência de um conjunto de
recursos narrativos usados, pelos candidatos, no relato autobiográfico, que, em virtude
da natureza do episódio profissional, procura lhes conferir pertinência à luz do processo.

PALAVRAS-CHAVE: autobiografia; educação de adultos; narrativa; reconhecimento


de competências [...].

Olhamos, com particular atenção, as estratégias narrativas que os candidatos


utilizam no relato da experiência profissional deles, de modo que se possa valorizar,
além de legitimar as suas aprendizagens [...].

As narrativas autobiográficas analisadas assumem as mais diversas formas e


estilos, diferindo no tipo de vocabulário, na construção frásica e na clareza do texto.
No entanto, todas elas traduzem as capacidades de objetivar e de racionalizar as
experiências de vida, ordenando-as por meio de uma ordem cronológica e causal,
hierarquizando as diversas partes.

O relato da experiência pessoal produz, necessariamente, leituras subjetivas,


mais ou menos detalhadas, de diferentes episódios de vida tidos como relevantes no
âmbito do processo RVCC. O trabalho de construção da narrativa autobiográfica
envolve um duplo esforço: por um lado, a narração das contingências da vida,
apresentadas, de forma coerente, com os objetivos do processo RVCC, e, por outro
lado, a atribuição de linearidade à narrativa concebida como um itinerário.

A narrativa assume particular importância no processo RVCC, permitindo


o acesso, não apenas, à sequência dos acontecimentos de vida, mas, igualmente,
aos quadros de referência do candidato. Para Elliott (2005), a narrativa pode ser

208
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

entendida como a organização de uma sequência de acontecimentos de tal forma


que o significado de cada acontecimento seja entendido por meio da relação dele
com o todo. No processo RVCC, a organização e a sequenciação da narrativa são
frutos de um trabalho de seleção por parte do candidato, dos acontecimentos de
vida que considera relevantes no decurso da realização de si próprio, pressuposto
no processo.

O processo RVCC exige, explicitamente, do candidato, que narre a sua


história de forma coerente e límpida, o que obriga um trabalho de unificação
identitária, quando, raramente, os indivíduos se encontram em situação, de se dizer,
de uma forma contínua e desenvolvida (KAUFMANN, 2005; MARTUCCELLI,
2007). Essa intimidação do candidato, de se narrar, enquadra-se naquilo que
Kaufmann (2005) designa de religião identitária da nossa época, ou seja, na
convicção abstrata de que existe um “eu” à margem das contingências e dos
contextos diversos que o reformulam: “esta convicção fluida, mas intensa, alimenta
[...] a ideia de que uma narrativa das narrativas, forma de narração pura e fluida,
está, em todo o momento, disponível” (KAUFMANN, 2005, p. 136). Bastaria,
portanto, invocar essa narrativa das narrativas para instituir sentido a sequências
e episódios de vida, muitas vezes, sem grande continuidade lógica entre si. O
processo RVCC compele, assim, o candidato a encontrar um fio narrativo em
percursos de vida que são marcados, com frequência, por experiências acidentais,
e, por vezes, incongruentes. Esse trabalho de unificação, encerrado na narrativa
da história de si mesmo, favorece o surgimento da imagem do candidato como
“autor” da própria vida.

Os instrumentos de mediação, utilizados no processo RVCC, apelam à


narrativa biográfica com todas as suas características, sobressaindo, no entanto,
duas particularidades. Em primeiro lugar, os instrumentos de mediação favorecem a
definição, por parte do narrador, de uma unidade global e definitiva, responsável
por expulsar incongruências e dissonâncias, pressupondo aquilo que Kaufmann
designa de trabalho de “montagem incansável, de carpinteiro, das linhas da força
da vida” (KAUFMANN, 2005, p. 148). A identidade construída a partir da narrativa
é dissemelhante à identidade imediata, construída em contextos precisos, carregados
de concretude e inseparáveis da ação. A identidade narrativa resulta, pois, de um
trabalho conduzido “em certos momentos particulares e privilegiados, um pouco à
margem da ação habitual, em solidão, ou com cúmplices” (KAUFMANN, 2005, p.
148). No caso concreto do processo RVCC, a reflexão e a avaliação da experiência
de vida, sendo processos, eminentemente, individuais, envolvem, também, a
participação “cúmplice” das equipas técnico-pedagógicas, cujo papel não é menos
importante [...].

O discurso incorpora, invariavelmente, uma das principais premissas


associadas ao processo RVCC: a de que os contextos profissionais constituem
espaços de aprendizagem, nos quais os saberes se desenvolvem na ação. De
facto, na ação, alicerça-se toda a argumentação que sustenta a demonstração das
aprendizagens ocorridas no contexto profissional, e todos os episódios relatados
revelam uma componente formativa que potencia aprendizagens. O trabalho

209
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

gera a mobilização de competências, de conhecimentos e de capacidades, e, no


relato do conteúdo funcional, descrevem-se as aprendizagens e se insinuam as
competências. Em todo caso, as aprendizagens, os conhecimentos e as competências
são, fortemente, contextualizados, vinculados a situações concretas, afastando-se,
portanto, quaisquer pretensões a um saber de natureza universal. A expressão dos
saberes, na narrativa, procede-se naturalmente, de modo retórico, circunscrevendo
a formalização dos saberes nos diferentes domínios profissionais específicos, com
recurso a códigos próprios, assim como à linguagem do quotidiano [...].

Os casos nos quais as aprendizagens ocorrem, por intermédio dos processos


formativos que conduzem à atribuição de certificados e de diplomas, constituem
episódios narrados com particular destaque da autobiografia. Nessas situações, o
processo de argumentação é facilitado pela existência de um programa de formação,
que permite objetivar as aprendizagens, e pela existência de uma nota final, para
visar ao resultado dessas aprendizagens. A formação certificada constitui, assim,
o modo privilegiado de produção de prova do processo de aprendizagem no
contexto profissional, e, os resultados, elementos, por excelência, de demonstração
do valor individual. Quando presentes, assumem uma dimensão importante da
narrativa da experiência profissional, quer no tocante à enumeração exaustiva de
certificados ou a relato de aprendizagens [...].

Evidencia-se, pela leitura do material autobiográfico, a existência de


diferentes estratégias discursivas e modos de produção narrativa utilizados pelos
candidatos, em virtude da natureza do episódio ou da experiência profissional
relatada e da imagem de si que pretendem projetar. Os diferentes recursos a que
nos referimos constituem modos de dar forma à narrativa, consoante a maior ou
menor pertinência do episódio relatado, diante dos objetivos do processo RVCC.
Nesse sentido, consideramos que a apresentação de episódios profissionais, ao
longo da narrativa, tende a ser moldada por cinco modos diferentes de legitimação
narrativa da experiência profissional à luz do processo RVCC, a saber:

1. Descrições detalhadas e desenvolvidas que realçam a posse de competências


técnicas ou a vocação para o exercício da atividade profissional;
2. Relatos que procuram impressionar o leitor com base na descrição dos
aspectos inusitados e, à partida, desconhecidos do leitor, relativos a atividades
profissionais específicas;
3. Descrições que valorizam episódios profissionais com base na dureza deles e
no esforço associado à realização;
4. Relatos de episódios que glorificam o percurso profissional;
5. Descrições parcelares e fragmentadas da experiência profissional [...].

A utilização de abordagens autobiográficas, na educação e na formação


de adultos, corresponde a uma alteração da conceção de educação que deixa de
se restringir à mera transmissão de conteúdos no contexto escolar e se alarga à
compreensão dos vários contextos de vida dos sujeitos. A experiência constitui
o recurso-base a partir do qual se realiza todo o processo de certificação escolar.

210
TÓPICO 4 — NARRATIVAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS E DE PESSOAS QUE ESTÃO DIANTE DA IMINENTE
TERMINALIDADE DA VIDA

A prática educativa, baseada nas abordagens autobiográficas, objetiva


a valorização da aprendizagem dos sujeitos ao longo da vida e nos mais
variados contextos. Com base na análise realizada a um corpus analítico de cem
autobiografias, foi possível identificar um conjunto de recursos narrativos usados
pelos candidatos no relato autobiográfico, e que, em virtude da natureza do
episódio profissional, procura lhe conferir pertinência à luz do processo RVCC.
A narrativa autobiográfica, nesse contexto, é estruturada com base na imagem de
um protagonista que se autoconstrói e se realiza pelo trabalho, passando de um
estado inicial informe para um estado acabado, competente. Na construção da
narrativa, o adulto seleciona e valoriza os acontecimentos de vida tidos como
relevantes e coerentes com a imagem que quer projetar de si a quem avalia. As
estratégias e os recursos narrativos, identificados nesta investigação, sustentam a
construção do “eu” autobiográfico, uno, coerente, e ajustado aos pressupostos do
processo RVCC. A narrativa autobiográfica, produzida no processo RVCC, não
fica, assim, imune ao risco do fenômeno de “folclorização” identitária, identificado
por  Martuccelli (2007), traduzido para um “embelezamento” de si à luz dos
pressupostos do processo.

A valorização dos episódios descritos, com base em estratégias discursivas


que configuram a narrativa, é reveladora do processo de produção da narrativa
autobiográfica como um ato social enquadrado em um contexto específico que
condiciona a sua organização. Toda a narrativa se orienta para a legitimação do
percurso profissional passível de ser reconhecido como um percurso propício à
aprendizagem.

Nessa perspectiva, o processo de reconhecimento de competências é, em


última instância, um dispositivo social de expressão individual e de apresentação
a outros, valendo-se do relato autobiográfico, no qual se procura transmitir
impressões a respeito de si próprio. Nesse processo, os atores sociais orientam a ação
deles para a concretização de um objetivo concreto, a validação e a certificação de
competências. A produção da narrativa autobiográfica é, assim, enredada por duas
linhas que a condicionam: o enquadramento em uma oferta educativa destinada
a adultos com requisitos de aferição de sucesso e a necessidade de a narrativa ser
aceita e reconhecida por parte de uma audiência que a avalia.

O processo de narração autobiográfica, no âmbito da educação de adultos,


assume contornos específicos. Se, por um lado, reconhece-se, à reflexividade do
processo de escrita, um potencial de aprendizagem, por outro lado, na medida em
que o processo decorre em contexto educativo e sujeito à avaliação, os autores das
narrativas recorrem a modos narrativos que, deliberadamente, contribuem para
um embelezamento de si.

Os resultados obtidos realçam alguns limites às potencialidades da


utilização da escrita de narrativas autobiográficas em contexto educativo. Ainda
que se reconheça que a prática de escrita, na primeira pessoa, constitui um
importante instrumento na educação de adultos, parece prudente que, na análise

211
UNIDADE 3 — NARRATIVAS E HISTÓRIA DE VIDA: DA ADOLESCÊNCIA À VELHICE

de narrativas, tomem-se em consideração os processos de construção do discurso


que sustentam a imagem de si. Tais cuidados resultam do facto de a realização
dialógica, implícita na prática de escrita de si, em contexto educativo, não ser
uma mera abertura e exposição de quem escreve ao leitor, ela é mais do que isso,
é um processo de apresentação de si ao outro. Assim, como podemos constatar na
análise de relatos de experiência profissional, evidenciam-se, em tais narrativas,
vários modos narrativos de valorização da experiência pessoal, que constituem
importantes dispositivos de segurança do narrador para a produção de uma
imagem de si digna de reconhecimento aos olhos do leitor.

FONTE: CALHA, A. O uso da autobiografia na educação de adultos: modos narrativos de


valorização e legitimação da experiência profissional. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 22, n.
7, e227168, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
24782017000400220&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 6 mar. 2021.

212
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu que:

• Narrativas e histórias de vida de idosos costumam conter falas relacionadas às


alegrias e às tristezas que vivenciaram, além de momentos de muita emoção
que experimentaram, como perdas, conquistas, dores e escolhas.

• Muitos idosos expressam, nas narrativas deles, a sensação de abandono, de


terem sido esquecidos pelos familiares, de solidão.

• Várias narrativas de idosos são compostas por movimento e mudanças de


trajetórias, inclusive, abarcam planos futuros.

• Os contadores de causo costumam associar as próprias narrações “fantasiosas”


com as histórias pessoais, até mesmo, para aumentar a credibilidade.

• A expressão oral de narrativas e de histórias de vida pode contribuir para a


aproximação e para o estabelecimento de vínculo entre cuidador, ou profissional
de saúde, e paciente.

• A escuta atenciosa e sensibilizada, oferecida às pessoas que almejam ser,


factualmente, ouvidas, pode proporcionar, a elas, efeitos terapêuticos.

• Quando contemplam os aspectos éticos e humanos, os cuidados paliativos


possibilitam reflexões acerca do ser humano e do ciclo vital.

• Idosos e pessoas sob cuidados paliativos são dignos de ser ouvidos com
atenção, e tendem a lidar bem com as possibilidades de falar com alguém que
demonstre real interesse no que estão dizendo.

• Na maioria das vezes, as pessoas que se encontram diante de óbito premente têm
expectativas de que os familiares e os profissionais que as atendem percebam as
singularidades e as complexidades delas, concedendo o cuidado integral.

CHAMADA

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213
AUTOATIVIDADE

1 Muitos dos causos que são perpetuados pelos contadores de fronteira


envolvem conflitos, brigas, ou peleia – termo, mais frequentemente,
adotado por eles. Qual é a relação entre essa faceta e as trajetórias de vida?

2 Ao longo deste tópico, algumas vantagens da contação de histórias de vida


foram citadas. Muitas delas podem ser visualizadas no filme que foi sugerido,
Tomates Verdes Fritos. Sejam escritas ou orais, as narrativas e as histórias de
vidas geram alguns benefícios aos que as contam. Cite cinco deles.

3 Leia o poema a seguir, e, depois, refletindo sobre a velhice e a produção


de narrativas autobiográficas nessa fase do ciclo vital, classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas:

Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas, e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
--- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
CECILIA MEIRELES

FONTE: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1516-08582015000100003>. Acesso em: 24 abr. 2021.

( ) Há pouco proveito para o idoso que se dispõe a escrever as próprias


narrativas de vida. Isso porque os textos redigidos por idosos focam,
somente, na decadência do corpo, apontando o substrato físico.
( ) Os idosos, também, podem experimentar melhorias na qualidade de vida
por meio da escrita de si. Ao escreverem sobre a história de vida deles,
encontram chances de reelaborar o que viveram, além de deixarem as
vivências registradas.
( ) Textos de autobiografia que são elaborados na velhice tendem a citar
episódios da vida que, ainda, marcam a existência daquele que os escreve.
Frequentemente, esses escritos abordam situações experenciadas na
família, na escola, no trabalho, dentre outros ambientes.

214
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) F – V – V.
b) ( ) V – F – F.
c) ( ) V – F – V.
d) ( ) F – V – F.

4 Torquato, Massi e Santana (2011, p. 97) fizeram um estudo sobre


envelhecimento e letramento. Essas autoras destacam que,

com o aumento da população idosa, a sociedade tem sido obrigada


a rever seus projetos sociais, políticos, econômicos, culturais
e educacionais. O envelhecimento com qualidade de vida e,
portanto, saudável, só pode se efetivar a partir do momento em
que os idosos sejam considerados cidadãos capazes de (re)
construir sua história com dignidade e autonomia.

FONTE: TORQUATO, R.; MASSI, G.; SANTANA, A. P. Envelhecimento e letramento: a leitura


e a escrita na perspectiva de pessoas com mais de 60 anos de idade. Psicologia: Reflexão
e Crítica [online], v. 24, n. 1, p. 89-98, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-
79722011000100011. Acesso em: 24 abr. 2021.

Levando em conta as questões que perpassam a linguagem e as escritas de si


na velhice, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Com os idosos que se consideram incapazes de escrever as próprias


narrativas de vida, pode-se fazer intervenções nesse quesito do
autoconceito. Problematizar essa “incapacidade”, ressignificá-la,
auxiliando o idoso a se assumir como sujeito da história dele e a se inserir
na cultura letrada.
( ) Por meio do trabalho com e pela linguagem escrita de idosos, pode-se
favorecer a promoção de um envelhecimento ativo, digno e bem-sucedido,
baseado nos princípios da equidade social.
( ) Pode-se estimular idosos, com alto grau de escolaridade, a escreverem
sobre si. Quanto aos idosos que não têm o hábito de escrever, é melhor
não incentivá-los a redigirem as próprias histórias de vida. Isso seria
desrespeitar as dificuldades de letramento deles.
( ) A oportunidade de empregar práticas de leitura e de escrita pode
possibilitar, ao idoso, um lugar de sujeito e autor da própria história,
elevando a qualidade de vida e promovendo a autonomia dele.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) F – V – V – V.
b) ( ) V – F – F – V.
c) ( ) V – F – V – F.
d) ( ) F – V – F – F.

215
5 “A narrativa em primeira pessoa justifica a necessidade de escrever sobre
a ausência/presença de uma pessoa que, ainda, mantém algum sopro de
vida, que se relaciona com o mundo a partir de gestos, esquecimentos e
silêncios” (SOUZA, 2017, p. 109). Frente ao exposto, analise as asserções
que seguem:

FONTE: SOUZA, E. M. de. Autoficção e sobrevivência. La Palabra, Tunja, n. 30, p. 107-


114, 2017. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-
85302017000100107&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 24 abr. 2021.

I- A autoficção pode equivaler ao pacto ambíguo entre a escritura e a


vida, entre a leitura e a sobrevivência de resíduos de identidades. O
procedimento relativo à prática da autoficção posiciona o sujeito entre o
relato de si e a transformação fabular dele em relato ficcional.
II- Ficcionalizar se restringe à criação de mentiras ou de distorções do real.
Trata-se de querer enganar a si mesmo e, consequentemente, enganar a
todos os leitores. É a propagação de engodos de autores que se cedem ao
jogo capcioso em vez de se manterem fiéis à própria memória.
III- A análise dos relatos autoficcionais possibilita a caracterização de várias
propostas de escritura/leitura, como a compensatória, a de autoajuda, a
de ocupação do lugar do vazio, a de abolição da distância entre arte/vida,
e a de marca do paradoxo entre saúde/doença e morte/sobrevivência.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) Estão corretas as asserções I e III.
b) ( ) Estão corretas as asserções I e II.
c) ( ) Estão corretas as asserções II e III.
d) ( ) Somente a asserção II está correta.

216
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