Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 69

A casa do medo 1st Edition Edgar

Wallace
Visit to download the full and correct content document:
https://ebookstep.com/product/a-casa-do-medo-1st-edition-edgar-wallace/
More products digital (pdf, epub, mobi) instant
download maybe you interests ...

A casa do medo 1st Edition Edgar Wallace

https://ebookstep.com/product/a-casa-do-medo-1st-edition-edgar-
wallace-2/

A terra inabitável Uma História do futuro David


Wallace-Wells

https://ebookstep.com/product/a-terra-inabitavel-uma-historia-do-
futuro-david-wallace-wells/

Máquina do Medo Marcos Carvalho Lopes

https://ebookstep.com/product/maquina-do-medo-marcos-carvalho-
lopes/

Quem tem medo do feminismo negro Djamila Ribeiro

https://ebookstep.com/product/quem-tem-medo-do-feminismo-negro-
djamila-ribeiro/
A Bela Casa do Lago 1 Tradução DarkseidClub 1st Edition
Mark Waid Mahmud Asrar

https://ebookstep.com/product/a-bela-casa-do-lago-1-traducao-
darkseidclub-1st-edition-mark-waid-mahmud-asrar/

A casa das mil velas e o segredo do Sr Glenarm 1st


Edition Meredith Nicholson

https://ebookstep.com/product/a-casa-das-mil-velas-e-o-segredo-
do-sr-glenarm-1st-edition-meredith-nicholson/

A Bela Casa do Lago 5 Tradução DarkseidClub 5th Edition


Mark Waid Mahmud Asrar

https://ebookstep.com/product/a-bela-casa-do-lago-5-traducao-
darkseidclub-5th-edition-mark-waid-mahmud-asrar/

A Bela Casa do Lago 2 Tradução DarkseidClub 2nd Edition


Mark Waid Mahmud Asrar

https://ebookstep.com/product/a-bela-casa-do-lago-2-traducao-
darkseidclub-2nd-edition-mark-waid-mahmud-asrar/

A Bela Casa do Lago 4 Tradução DarkseidClub 4th Edition


Mark Waid Mahmud Asrar

https://ebookstep.com/product/a-bela-casa-do-lago-4-traducao-
darkseidclub-4th-edition-mark-waid-mahmud-asrar/
Título original: The Frightened Lady

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira
Participações S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e
estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja
eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

Editora Nova Fronteira Participações S.A.


Av. Rio Branco, 115 — Salas 1201 a 1205 — Centro — 20040-004
Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Tel.: (21) 3882-8200

IMAGEM DE CAPA: Arte feita a partir de MrCardholder | Shutterstock; Serhii Borodin |


Shutterstock; Sharpner | Shutterstock

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

W187c Wallace, Edgar


A casa do medo / Edgar Wallace ; traduzido por Jamir Martins. – 3.ed. – Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 2023.
(Mistério e Suspense)

Formato: epub
Título original: The Frightened Lady
ISBN: 978-65-5640-731-9

1. Literatura inglesa. I. Martins, Jamir. II. Título.

CDD: 823
CDU: 821.111

André Queiroz – CRB-4/2242

Conheça outros livros da editora


Sumário
Capa
Folha de rosto
Créditos
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
Conheça os títulos da coleção
Colofão
1

O
próprio Mr. Brooks contra si mesmo admitia, perante Kelver, o
mordomo, que criados americanos não eram coisa natural.
Era um homem sólido, apertado na libré, de óculos; cabelo ralo e
grisalho, e voz inclinada para o agudo. Do bolso do seu colete de
listras encarnadas, que fazia parte do uniforme, ressaltava
visivelmente uma barra de goma de mascar já começada. Mascava a maior
parte do tempo, movimentando a mandíbula com regularidade quase
pendular. Gilder, que tinha grande amor pela exatidão matemática, chegara
a cronometrar tais movimentos, concluindo que apenas variavam entre 51 e
56 por minuto. No recôndito de seu quarto porém, Mr. Brooks costumava
saborear um grande cachimbo carregado com uma mistura adocicada,
muito peculiar, que importava dispendiosamente da Califórnia.
Nem a figura de Mr. Brooks, lacaio, nem a de Mr. Gilder, lacaio também,
assentava com Marks Priory ou com o povoado de Marks Thornton.
Eram pobres criados que nunca pareciam aprimorar-se com a prática nem
beneficiar-se da experiência.
Entretanto, eram homens muito requintados, se o leitor for capaz de
imaginar tamanha anomalia como a de existirem dois lacaios americanos
requintados. Jamais se intrometiam na vida alheia, mostravam-se quase
extravagantemente polidos com seus conservos e nem uma vez sequer
(figurava isto como um crédito monumental a seu favor) tinham
denunciado outros servidores por qualquer negligência no serviço, mesmo
quando tal negligência interferisse adversamente com seu próprio conforto
pessoal.
Ambos eram muito estimados, e Gilder um tanto temido também.
Sombrio, de faces rugosas e encovadas, tinha a voz ainda por cima lúgubre e
cavernosa; o cabelo era preto e escasso, porém longo, e trazia na cabeça
grandes áreas inteiramente calvas, sendo ademais imensamente forte.
Este último pormenor descobriu-o o couteiro do lugar, chamado John
Tilling; ruivo, grandalhão, de faces coradas e obcecado por suspeitas.
É bem verdade que sua esposa era bonita e, à guisa de consolo, muito dada
a sonhar, na maior parte dos dias, com coisas que nunca chegava a realizar
de todo. Por exemplo, não descobrira nenhum Romeu de pele azeitonada na
pessoa de certo palafreneiro que conquistara no povoado. Ele era antes
rosado, um tanto grosseiro demais, cheirava a um misto de estábulo e
cerveja, e costumava envergar uma mesma camisa sete dias a fio. Este
homem lhe oferecera a mecânica do amor, e a imaginação dela encarregara-
se de suprir o glamour faltante. Esse, porém, era um escândalo antigo. Se
tivesse chegado ao conhecimento de Lady Lebanon, o chalé de Box Hedge
rapidamente teria tido novos inquilinos.
Passado algum tempo, Mrs. Tilling deu mostras de já estar interessada em
algo melhor que palafreneiros; o marido, entretanto, não o soube por algum
tempo.
E aconteceu que, certa tarde, o couteiro interceptou Gilder quando este
cruzava Priory Field.
— Com licença.
Sua polidez era ameaçadora.
— Esteve em meu chalé uma ou duas vezes ultimamente… enquanto eu
estava em Horsham?
Era asserção mais que pergunta.
— Ora, sim — respondeu o americano à sua maneira lenta. — Sua
senhoria pediu-me que fosse lá buscar uma ninhada de ovos. Como o
senhor estava ausente, deixei para ir no dia seguinte.
— Quando eu também não estava — disse Tilling, com um sorriso
escarninho e o rosto ainda mais rubro.
Gilder fitava-o divertido. Não era dado a bisbilhotices e, assim sendo, nada
sabia dos infortúnios domésticos de seu interlocutor.
— É verdade. O senhor estava em alguma parte do bosque.
— Mas minha mulher bem que estava em casa… E foi daí que o senhor se
deteve para tomar uma xícara de chá, não é assim?
Gilder sentiu-se ultrajado. Seus olhos cinzentos deixaram de sorrir e se
tornaram duros.
— Aonde está querendo chegar? — perguntou.
Num gesto brusco, o outro o agarrou pelo paletó.
— Tire a mão daí!…
Tilling não se continha; então o criado americano agarrou-lhe o pulso
com delicadeza e, torcendo-o vagarosamente, fê-lo largar-lhe a roupa.
Se Tilling fosse uma criança, não teria oferecido resistência mais efetiva.
— Veja lá; não faça isso… É verdade! Vi sua mulher e tomamos chá. Ela
pode ser um pitéu pra você, mas pra mim não passa de dois olhos e um
nariz. Ponha isso na cabeça.
Dizendo isso, sacudiu-lhe o braço ligeiramente, mas com muita violência.
Era um truque que aperfeiçoara com a prática. O outro oscilou para trás e só
com dificuldade recuperou o equilíbrio.
Tilling era excessivamente bronco e incapaz de entreter duas emoções ao
mesmo tempo. E na ocasião estava pasmado demais para sentir qualquer
outra coisa que não fosse puro pasmo.
— Você conhece sua mulher melhor do que eu — prosseguiu Gilder,
curvando-se —, e provavelmente está certo a respeito dela. Mas está
completamente enganado quanto a mim!
Ao voltar do povoado (fora à farmácia), deu com Tilling à sua espera,
quase no mesmo lugar em que o deixara.
Mas desta vez não houve o menor sinal de truculência; o outro, de certo
modo, chegou até a mostrar-se escusatório.
Gilder, ao que diziam, caíra na graça de sua senhoria Lady Lebanon, sobre
quem, de resto, exercia grande influência; coisa francamente fantástica para
uns e obviamente torpe para outros.
— Gostaria que esquecesse o que lhe disse há pouco, Mr. Gilder. Anna e
eu temos nossos pequenos desentendimentos, e eu sou um pouco
precipitado. Mas é que tem havido muitas visitas a Box Hedge
ultimamente… Entretanto, sendo o senhor um homem de família…
— Não sou casado, mas tenho índole doméstica — atalhou-o Gilder. —
Não falemos mais nisso.
Depois contou o caso a Brooks, que o ouviu tranquilamente, com a
mandíbula em ação. Enquanto conversavam, apresentou um paralelo
histórico.
— Já ouviu falar de Messalina? Era uma italiana, mulher de Júlio César ou
coisa que o valha.
Brooks lia muito, de modo que a memória às vezes o traía.
Ainda assim, para um criado que ademais era cidadão americano, o
simples fato de saber da existência de Messalina e de ser capaz de apresentá-
la em alguma forma reconhecível para ilustrar uma situação já era algo
fenomenal.
Agora, coloque o leitor um tal homem e seu companheiro contra o fundo
de Marks Priory, e eles se tornarão absurdos.
Os alicerces de Marks Priory foram assentados por pedreiros saxônios, e a
Fortaleza Ocidental fora destruída quando William Rufus caçava na Nova
Floresta. Henry Tudor achou-a em ruínas e a restaurou para seu protegido
John, o Barão Lebanon. Resistira a um cerco dos soldados de Warwick.
Seu estilo era Plantageneta, Tudor e Moderno. Nenhum construtor do
século XVIII lhe profanara a forma; sobreviveu, pois, à ascensão e à queda
da renascença vitoriana, que produziu tantos anjos e querubins
estrambóticos.
Havia ali certa madureza e vetustez que só o tempo e o clima da Inglaterra
teriam possibilitado.
Entretanto, Willie Lebanon achava-a irritante e anódina; para o dr.
Amersham era uma prisão e um desagradável encargo, enquanto na opinião
de Lady Lebanon, apenas, representava a Realidade.
2

L
ady Lebanon era esguia, miúda segundo padrões estritos, embora
jamais desse a impressão de pequenez. Entretanto, houve pessoas
que, tendo-lhe falado pela primeira vez, acharam-na majestosa.
Era firme, fria e decidida. Seus cabelos negros eram repartidos
ao meio e penteados sobre as orelhas. Tinha feições pequenas e
delicadas, e o talhe de seu rosto chegava a ser estético. Em seus olhos escuros
ardia o fogo inextinguível do verdadeiro fanático. Sempre parecia consciente
de algum dever para com a aristocracia. O mundo moderno mal a tocara;
sua fala era precisa, isenta de extravagâncias, quase se podendo ver as
vírgulas e os pontos com que espacejava as sentenças. Odiava a gíria, o fumo
entre as mulheres e a vulgaridade da ostentação.
Jamais se esquecia de que provinha de um quarto barão (casara-se com
um primo), nem tampouco da tremenda importância que se devia à família.
Willie Lebanon confessava-se aborrecido da vida que levava. Embora
pequeno de estatura, passara em Sandhurst com distinção, e se seu serviço
de dois anos no 30.º Hussardo não chegara a consagrá-lo como soldado, a
experiência lhe fizera bem ao físico. O grave ataque de febre que o trouxera
para casa (explicava Lady Lebanon, quando condescendia em explicar o que
quer que fosse) era em grande parte responsável por sua inquietude. Um
observador imparcial talvez encontrasse razões melhores para a exasperação
do moço.
Ele desceu morosamente a escada em caracol da torre de Marks Priory e
entrou no grande hall, determinado a “entender-se de vez” com a mãe. Já
tivera o mesmo propósito antes e, no meio do argumento que então usava,
decidira abandonar o assunto, de puro enfado.
Ela estava sentada à escrivaninha, lendo cartas. Ergueu os olhos quando
ele penetrou em seu campo de visão e fixou-o com aquele olhar comprido e
inquisitivo que sempre o embaraçava.
— Bom dia, Willie.
A voz era suave e rica, mas tinha certa dureza que o fez recolher-se em si.
Era como irromper na presença do oficial comandante quando este se
achasse em seu pior estado de humor.
— Humm, posso falar com a senhora? — começou a custo.
Tentava lembrar-se da fórmula que escolhera para dar início ao assunto.
Era o chefe da casa, Senhor de Marks Priory no Condado de Sussex e de
Temple Abbey no Condado de Yorkshire!… Teve apenas uma vaga
satisfação ao lembrar-se disso e certamente não estava nem um pouco mais
próximo do ar dominador que diligentemente procurara assumir.
— Sim, Willie?
Ela depôs a pena sobre a mesa, recostou-se no espaldar e esperou.
— Despedi Gilder — informou ele num repelão. — Ele é um perfeito
camponês. Muito impertinente… Acho ridículo a gente empregar criados
americanos que não conheçam o trabalho, a senhora não? Deve haver
centenas de criados por aí, que a senhora poderia empregar. E Brooks é tão
mau quanto…
Neste ponto, fez uma pausa, esbaforido: mas ela esperou. Se ao menos
dissesse alguma coisa, ou se zangasse! Afinal, ele era o chefe da casa. Era
absurdo que não pudesse despedir qualquer criado que quisesse. Já
comandara um esquadrão! (É bem verdade que o fizera na ausência de
oficiais superiores, mas o comandante elogiara o modo como se
desincumbira.) Clareou a garganta e prosseguiu.
— Isto me faz um tanto ridículo, não acha? Quero dizer, a posição em que
eu fico. As pessoas falam de mim. Até estes caipiras que frequentam o
“White Hart”. Disseram-me que o pessoal anda comentando no povoado…
— Quem lhe disse?
Willie, que detestava aquele timbre metálico na voz da mãe, estremeceu.
— Bom, quero dizer, o pessoal anda falando que a senhora me controla,
sabe como é.
— Quem lhe disse? — tornou ela a perguntar. — Studd?
Ele ficou rubro. Era diabólico da parte dela adivinhar logo da primeira
vez, mas tinha um dever de lealdade para com o chofer, por isso mentiu.
— Studd? Ora essa, não! Isto é, eu não iria discutir uma coisa dessas com
um criado. Tomei conhecimento do boato, apenas. E seja como for, já
despedi Gilder.
— Receio que eu não possa dispensar Gilder. Foi uma grande falta de
consideração sua despedir um criado sem me consultar.
— Mas estou consultando agora.
Ele arrastou uma cadeira para a escrivaninha e sentou-se; fez um esforço
heroico para defrontar os olhos da mãe, mas não conseguiu desfitar o
castiçal de prata que pendia dum gabinete atrás dela.
— Todo mundo já notou como esses dois se comportam — prosseguiu ele
com obstinação. — Só raríssimas vezes me chamam de “Senhor”. Não que
isso me importe. Acho que esse tratamento é estúpido e antidemocrático.
Mas eles não fazem nada a não ser vadiar pela casa!
Ela se inclinou por sobre a mesa, com as mãos finas cruzadas sobre uma
folha de mata-borrão.
— Está completamente enganado, Willie. Preciso desses homens aqui. É
absurda a sua prevenção contra criados americanos.
— Mas eu não estou… — recomeçou ele.
— Por favor, não me interrompa quando estou falando, Willie querido.
Não deve dar ouvidos a Studd. Ele é uma excelente pessoa, mas não estou
bem certa de que seja a espécie de criado de que precisemos em Marks
Priory.
— A senhora não está pensando em despedi-lo, está? — protestou o rapaz.
— Tenha a santa paciência! Tive três bons criados de quarto, e cada um
deles, na sua opinião, não era bom, apesar de me servirem muito bem. —
Neste ponto, encheu-se de coragem. — Suponho que a verdade é que eles
não sirvam para Amersham, não é?
Ela se entesou um pouco.
— Eu nunca levo em conta as opiniões do dr. Amersham. Jamais lhe peço
conselhos nem me deixo guiar por ele — replicou ela com voz mais aguda.
Com esforço ele a encarou nos olhos.
— Que faz ele aqui, então? — perguntou. — Esse fulano praticamente
mora em Marks Priory. É um sujeito tremendamente asqueroso. Se eu lhe
contasse tudo o que já ouvi sobre ele…
Deteve-se de súbito. O rubor que subiu ao rosto de sua mãe era indício a
não ser ignorado.
Foi então que, para seu alívio, Isla Crane irrompeu no hall trazendo
algumas cartas. Ao vê-los, hesitou e teria empreendido uma rápida retirada
se Lady Lebanon não a chamasse.
Isla tinha vinte e quatro anos, era morena, delgada e comedidamente bela.
Há duas variedades de beleza: a que demanda descoberta instantânea e a que
só vem com a familiaridade, e isto para surpresa do descobridor. Isla não se
fazia notar à primeira vista. À terceira, porém, monopolizava a atenção.
Tinha belos olhos, muito graves e um tanto tristonhos.
Willie Lebanon saudou-a com um sorriso. Gostava de Isla; ousara mesmo
dizer isso à mãe, a qual, para surpresa sua, não o reprovou por isso. Era uma
espécie de prima, definitivamente secretária particular de Lady Lebanon.
Willie ainda não lhe notara a beleza; por outro lado, pode-se dizer que o dr.
Amersham ainda não a deixara de notar, mas Lady Lebanon ignorava isso.
A moça depôs as cartas na mesa e sentiu-se aliviada ao ver que sua
senhoria não fez o menor esforço por detê-la. Quando acabou de sair:
— Não acha que Isla está ficando bonita? — perguntou Lady Lebanon.
Que pergunta mais esquisita! Elogios por parte de sua mãe eram coisa
muito rara. Willie pensou que ela só estivesse querendo desviar o rumo da
conversa e acolheu com prazer a digressão, pois já atingira os limites de suas
reservas de determinação por aquele dia.
— Sim, atordoante! — respondeu, sem nenhum entusiasmo especial, a
perguntar-se o que viria a seguir.
— Quero que se case com ela — tornou a outra calmamente.
O rapaz esbugalhou os olhos, atônito.
— Casar?! Santo Deus, nunca pensei em me casar! Detesto essa ideia! Ora
essa! Ela é terrivelmente bonitinha, mas…
— Nada de “mas”, Willie. Quero que você tenha o seu próprio lar.
Ele poderia ter replicado, e esse pensamento de fato lhe ocorreu, que já
tinha um lar próprio, o qual seria todo seu se tão somente lhe permitissem
governá-lo.
— Se andam falando por aí que você está sendo controlado, devia acolher
bem essa ideia. Não tenho o menor desejo de permanecer em Marks Priory
e devotar a você o resto de minha vida.
Aquela já era uma perspectiva mais atraente. Willie Lebanon deu um
longo suspiro, descruzou as pernas e ergueu-se.
— Suponho que terei de me casar, cedo ou tarde —— disse. — Mas olhe
que é muito difícil lidar com ela.
Hesitou um instante, não sabendo como sua confissão seria recebida.
— Para ser franco, já tentei iniciar alguma intimidade com ela… Na
verdade, tentei beijá-la faz quase um mês, mas ela me pareceu um tanto fria
demais.
— É natural! Ora, isso foi muito vulgar da sua parte!
Gilder apareceu por ali neste instante, fazendo com que as explicações do
indignado jovem fossem sustadas.
O uniforme de Gilder lhe fora cuidadosamente ajustado ao corpo por um
bom alfaiate de Londres. Entretanto, ele era do tipo em quem toda roupa
resultava em puro desperdício. Aquele seu uniforme poderia ter sido
adquirido em qualquer lojinha ordinária. O casaco como que pendia dele, as
calças amorfas formavam barrigas nos joelhos. Ele era alto, cadavérico, de
feições duras; e sua expressão normal, de veemente desaprovação a tudo.
Lorde Lebanon esperou para presenciar a repreensão; no seu entender,
inevitável. Mas sua mãe não fez a menor tentativa de admoestar o criado
nem lhe pediu explicações das impertinências contra ele alegadas.
— Precisa de mim, m’lady? — Era uma pergunta maquinal.
Quando ela negou com um movimento de cabeça, ele se retirou sem
pressa.
— Queria que a senhora lhe perguntasse que diabo ele está pretendendo
com… — começou o rapaz.
— Lembre-se do que eu lhe disse sobre Isla — tornou ela, não fazendo
caso de seu protesto inacabado. — É encantadora… e do mesmo sangue. Hei
de falar-lhe a respeito.
— Ela ainda não sabe? — perguntou o rapaz, cheio de surpresa.
— Agora, quanto a Studd… — recomeçou ela, juntando as sobrancelhas
numa carranca.
— Não está pensando em mandá-lo embora, está? Ele é um camarada
danado de bom e, seja como for, não me contou nada…!
Encontrou-se com Studd depois; estava trabalhando na garagem.
— Acho que enfiei os pés pelas mãos, Studd; e desconfio que você saiu
prejudicado — explicou com pesar. — Contei a sua senhoria que o pessoal
andava falando, sabe como é…
Studd ergueu os olhos, endireitou as costas com uma careta e sorriu.
— Não faz mal, m’lord.
Era um homem de trinta e cinco anos, fora soldado e servira na Índia.
— Não me agradaria deixar esse emprego, mas acho que os meus dias aqui
estão contados. Não guardo mágoa de sua senhoria; sua mãe sempre foi
muito gentil e bondosa para mim, apesar de tratá-lo como a um escravo…
Mas aquele cara eu não aguento. — E sacudiu a cabeça.
Lorde Lebanon suspirou. Não havia necessidade de perguntar quem era o
tal “cara”.
— Se sua senhoria soubesse a respeito dele tanto quanto eu — disse Studd
misteriosamente —, não o deixaria entrar nesta casa.
— O que é que você sabe? — perguntou Lebanon.
Já fizera aquela pergunta antes e recebera quase a mesma satisfação que
agora.
— Na ocasião oportuna, terei algumas palavrinhas a dizer — respondeu
Studd. — Ele não esteve na Índia?
— Claro que sim. Só voltou de lá para me trazer pra casa. Esteve no
Serviço Médico Indiano durante anos, creio eu. Sabe de alguma coisa sobre
ele… quero dizer, sobre o que ele fez na Índia?
— Na ocasião oportuna — insistiu Studd, grave — subirei e darei a minha
opinião.
Apontou para um recesso na garagem. Willie Lebanon viu um carro
luzidio que nunca vira antes.
— É dele. De onde ele tira o dinheiro? Se pagou alguma coisa por isso,
deve ter sido umas duas mil libras. E, quando eu o conheci, ele estava
completamente quebrado. De onde vem esse dinheiro todo?
Willie Lebanon nada disse. Fizera a mesma pergunta à mãe e não obtivera
resposta satisfatória.
Detestava o dr. Amersham; todos o detestavam, exceto os dois criados de
Lady Lebanon. Um homenzinho janota, enfeitado demais e perfumado em
excesso; tirânico e um tanto libertino, a julgar pelos boatos que sobre ele
corriam o povoado. Enriquecera da noite para o dia e não se sabia a origem
de sua fortuna; tinha um belo apartamento em Devonshire Street, dois ou
três cavalos de corrida em treinamento, e era considerado bom sujeito por
certas pessoas com ideias muito peculiares acerca do que seriam os bons
sujeitos.
O fato de ele se encontrar em Marks Priory não surpreendeu Willie.
Sempre estava lá. Vinha à tarde e pela manhã, de Londres, e passava ali uma
ou duas horas; quando chegava, parecia o senhor de Marks Priory.
Desceu as escadas, onde estivera parado — e, se a verdade deve ser dita, a
ouvir —, um instante depois de Willie ter-se retirado; arrastou uma cadeira
para perto da escrivaninha onde estava Lady Lebanon e, colhendo um
cigarro de uma cigarreira dourada, acendeu-o sem ao menos pedir licença.
Lady Lebanon observava-o com olhos inescrutáveis, indignada de tanta
familiaridade.
Por entre os lábios camuflados pela barba o dr. Amersham soltou um anel
de fumaça e olhou para ela.
— Que ideia é essa de casar Willie com Isla? Algum novo esquema?…
Claro que ouvi tudo da escada — disse. — A senhora nunca me conta o que
está havendo, de modo que tenho eu mesmo que descobrir as coisas. Isla,
hein?
— Por que não?
Os olhos do homem estavam rubros e inflamados; sua cútis, que de modo
algum era o seu ponto forte, estava um tanto manchada; a mão com que
tirou o cigarro da boca tremia um pouco. Dera uma festinha em seu
apartamento e, em consequência, dormira pouco ou nada.
— Foi por isso que me chamou? Era isso que queria me dizer? Para ser
franco, eu quase não vinha. Tive uma noite terrível por causa de um
paciente…
— Você não tem pacientes — disse ela. — Duvido que em Londres haja
alguém tão tolo a ponto de empregá-lo!
Ele sorriu a isso.
— A senhora me empregando é o quanto basta. A melhor paciente do
mundo, hein?
Era um bom gracejo, mas ele riu sozinho. O rosto de Lady Lebanon estava
inteiramente inexpressivo.
— Esse seu chofer não é nada bom… Studd. Teve a maldita impertinência
de me perguntar por que não trago o meu próprio chofer; e, além do mais, é
demasiadamente amigo de Willie.
— Quem lhe disse? — perguntou ela incisiva.
— Sei tudo sobre isso. Há um monte de gente pelas vizinhanças que me
informa por carta de tudo o que está se passando aqui.
Sorriu, complacente. Na verdade, tinha dois bons amigos em Marks
Thornton, como, por exemplo, a encantadora Mrs. Tilling, mas Lady
Lebanon ignorava tudo a esse respeito. A esposa do couteiro era grande
admiradora de Studd; o médico recentemente descobrira isso e sentira-se
aviltado.
— O que Isla tem a dizer sobre o casamento?
— Ainda não perguntei.
Ele tirou o cigarro de entre os lábios e fitou-o com interesse.
— É, não é má ideia. Por incrível que pareça, nunca me ocorreu. — Puxou
o pequeno cavanhaque. — Isla… sim, uma ideia extraordinária.
Se ela se surpreendeu com a aprovação dele, não o demonstrou.
— É parenta dos Lebanons, também. Não houve outro membro da família
que se casou em circunstâncias parecidas? Isto é, com um primo?
Ergueu os olhos para os retratos escuros da família que pendiam da
parede de pedras.
— Uma dessas damas, não foi? Tenho boa memória, hein? Lembro-me da
história dos Lebanons quase tão bem quanto a senhora.
Sacou o relógio com alguma ostentação.
— Está ficando tarde… — começou.
— Quero que fique aqui — disse ela.
— Mas tenho um compromisso muito importante esta noite…
— Quero que fique — repetiu a mulher. — Mandei preparar-lhe quarto.
Studd, é claro, deve ir embora. Ele contou a Willie o boato da cidade.
O médico endireitou-se na cadeira. Mrs. Tilling seria da espécie de
mulheres que falam…?
— Sobre mim? — perguntou ele depressa.
— Sobre você? O que é que saberiam sobre você?
A isso ele sorriu confuso.
Se ela tivesse alguma opinião sobre o caráter da exuberância daquele
homenzinho, não a exprimiria de modo algum.
Ele acatou o desejo dela como ordem; resmungou um pouco, mas já que
não podia valer-se da escusa de que não estava preparado para ficar, não
apresentou outra.
Não tinha mesmo nenhuma intenção de voltar para a cidade. Tinha um
chalé nas cercanias, decorado e mobiliado por um jovem artista dos mais
elegantes de Londres. Planejara passar lá aquela noite, pois era homem com
responsabilidades locais. Lady Lebanon ignorava isso também.
— A propósito — tornou ela, detendo-o no meio da escada —, encontrou-
se com Studd alguma vez na Índia? Ele esteve em Poona.
O semblante do dr. Amersham se transfigurou.
— Em Poona? — esganiçou ele. — Quando?
Ela meneou a cabeça.
— Não sei, mas anda dizendo que o conheceu lá; o que é mais uma razão
para ele deixar Marks Priory.
O dr. Amersham conhecia ainda outra, mas guardou-a para si.
3

M
r. Kelver, mordomo de Marks Priory, costumava ficar à porta
do santuário durante uma hora em noites estreladas, a
contemplar o luxuriante bosque de Sussex, e imaginando, sem
nunca chegar a uma conclusão, se era condizente com sua
dignidade e importância ser segregado de sua senhora às nove
em ponto toda noite. Pois a essa hora sua senhoria, com as próprias mãos,
girava a chave na fechadura daquela enorme porta de carvalho que daí em
diante isolava a ala nordeste de Marks Priory das demais dependências da
casa.
Os alojamentos dos criados eram confortáveis. Dentro dos limites do
razoável, e com a permissão de Mr. Kelver, os criados podiam entrar ou sair
à vontade, seguindo a trilha que, ladeando o bosque, dava para o povoado.
Não seria, afinal, afrontoso para alguém que já estivera a serviço de uma
Alteza Sereníssima ver-se agora classificado entre os excluídos?
A porta do santuário ficava na ala nordeste, e, em certo sentido, era a
entrada privativa de Mr. Kelver; os demais criados utilizavam o pequeno hall
de entrada que também servia aos comerciantes.
Coisa esquisita, pensava. Quase chegou a expressar sua opinião a Studd,
conquanto jamais fizesse àquele polido e experiente homem uma
confidência completa. Pois Mr. Kelver pertencia a uma época a que os
choferes eram estranhos, e jamais colocara esses vivos e talentosos
mecânicos em ordem de precedência na hierarquia doméstica. Desde seu
advento constituíram-lhe um enigma. Um mordomo com sua experiência
conhecia à perfeição todas as sutis distinções de importância entre um
primeiro criado e uma dama de companhia; sem errar, era capaz de avaliar o
“peso” de um cozinheiro contra o de um criado de quarto, mas com choferes
a coisa não era tão fácil.
Studd fora aceito, convertera-se em “Mister Studd” e estava agora tão
perto de tornar-se confidente do mordomo quanto o estaria qualquer outro.
E ultimamente Mr. Kelver vinha sentindo necessidade de abrir o coração a
alguém.
Pensava ainda em Studd, quando este apareceu contornando uma das
torres do priorado. Mr. Kelver saudou-o com um gracioso aceno de cabeça,
e Studd, a caminho da garagem, parou. Estava um tanto corado. A princípio,
Mr. Kelver, que sempre pensava dos criados o pior, teve a impressão de que o
outro andara bebendo.
— Acabo de ter uma conversinha com Amersham. — Studd apontou com
o polegar por cima do ombro. — Que cavalheiro, hein! E que médico! Se sua
senhoria soubesse o que eu sei, ele não permaneceria mais cinco minutos
aqui. Exército indiano, hein? Eu poderia lhe dizer alguma coisa sobre o
Exército indiano!
— Mesmo? — interveio Mr. Kelver polidamente.
Nunca encorajava boatos, mas estava sempre ansioso por ouvi-los.
— Coisa engraçada — prosseguiu Studd. — Encontrei um fulano no
povoado, um freguês muito esquisito, que disse ter estado na Índia. Tomei
um trago com ele no balcão particular do “White Hart”. Não falei muito, só
ouvi. Mas ele esteve lá sim.
Kelver, magro, aristocrático, moveu a cabeça prateada e fixou os olhos no
pequeno chofer com interesse renovado.
— O dr. Amersham se… humm… queixou de alguma coisa? —
perguntou.
Studd reassumiu seu ar enfurecido.
— Alguma coisa encrencou no carro dele — explicou. — Ele quer que eu
conserte em cinco minutos, e é trabalho pra dois dias. A gente chega a
pensar que ele é o mandachuva por aqui, o senhor não acha, Mr. Kelver,
honestamente?
Kelver sorriu misteriosamente e apresentou a resposta convencional que
reservava para as perguntas embaraçosas.
— Este mundo precisa de todo tipo de pessoas, Mr. Studd — disse ele.
Studd sacudiu a cabeça.
— Eu não sei, não — disse vagamente. — Que lugar é este? Marks Priory,
não é? Quem é o proprietário? O lorde Lebanon, não é?
Estendeu os dedos da mão e passou a interpretar a hierarquia local.
— É assim, pela ordem. Número um, este dr. Amersham, o Senhor Alto
Controlador. Número dois, sua senhoria Mrs. Lebanon. Número três… —
neste número embaraçou-se. — Suponho que como número três o senhor
poria Miss Crane, apesar de eu não ter nada contra ela… E só depois é que
vem o lorde Lebanon!
— Sua excelência ainda é jovem demais — acudiu Mr. Kelver gentilmente.
Não era resposta, e ele o sabia muito bem. Concordava inteiramente com
Studd, mas conhecia o seu lugar. Quem já servira o duque de Meckenstein
und Zieburg, bem como à casa do duque de Colbrook, e cuja família, através
de gerações, servira gente grande grandiosamente, não podia, com
propriedade e dignidade, passar agora a criticar seus senhores.
Ouviu-se o som de passos apressados que se aproximavam pela trilha
pedregosa, e o dr. Amersham surgiu à vista deles.
— Então, Studd, já acabou de consertar meu carro?
Tinha voz aguda, aterradora. Seus modos eram normalmente irritantes.
— Não, não acabei de consertar o seu carro — respondeu Studd
agressivamente. — E tem mais: não vou acabar de consertar o seu carro esta
noite. Vou ao baile.
O rosto do médico ficou branco de fúria.
— Quem lhe deu permissão?
— A única pessoa nesta casa que pode me dar permissões — respondeu
Studd aos brados. — Sua excelência!
O pequeno cavanhaque do doutor trepidava de indignação.
— Pode ir tratando de arranjar outro emprego.
— Outro emprego? — escarneceu Studd. — Que espécie de emprego,
doutor? O de assinar meu nome nos cheques dos outros?
O rosto do médico de branco passou a carmesim e daí esmaeceu para
roxo.
— Se eu arranjar um outro emprego — prosseguiu Studd, – será emprego
honesto. E não o de roubar um oficial patrício… Além disso,
independentemente do emprego que arranjar, eu não seria levado a
julgamento e nem expulso do Exército por causa dele!
Seu tom era insinuante e recriminatório. Amersham murchou à vista do
brilho de seus olhos; abriu a boca para falar, mas só lhe saíram umas
trêmulas palavras.
— Você sabe demais, meu amigo — disse. E, girando nos calcanhares,
retirou-se dali.
Mr. Kelver ouvira sem compreender, um tanto horrorizado ante a
impropriedade das palavras de Studd, e incerto quanto a se deveria ter
intervindo ou, mesmo não o tendo feito, se de algum modo não saíra
comprometido da refrega. Se estava certo quanto à posição de Studd na
hierarquia do serviço…
Enfim, tivera a impressão (e nisto não se enganava) de que o dr.
Amersham nem dera por sua presença.
— Peguei bem na ferida! — exclamou Studd triunfalmente. — Viu só
como ele mudou de cor? Agora na certa ele vai querer me despachar, não é?
— Creio que não deveria ter falado ao doutor daquele modo, Studd. — O
tom de Kelver era levemente admonitório.
Mas o chofer estava sob a exaltação de quem emitira o próprio parecer e
sentia-se acima de qualquer censura.
— Agora ele conhece o seu lugar, e ainda há mais umas outras coisinhas
que eu podia ter dito — declarou.
Havia um baile a fantasia no povoado aquela noite, em benefício do clube
de bocha. Ao cair da tarde, chegou uma carruagem trazendo um pierrô, uma
pierrete, uma cigana e um hindu para as festividades.
Mr. Kelver reprovava o uso de roupas teatrais por parte de criados, ainda
que fossem de confecção caseira, pois isto os retirava de sua jurisdição.
Tinha uma ou duas palavrinhas a dizer-lhes sobre a hora em que deveriam
estar de volta. Preocupava-o a impropriedade das pernas da pierrete. Era a
primeira vez que tomava consciência de que a arrumadeira tinha pernas.
Reservara principalmente um conselho paternal para o suntuoso hindu, que
não era outro senão Studd.
— Se eu fosse o senhor, Mr. Studd, creio que procuraria o doutor pela
manhã e lhe pediria desculpas. Afinal, se o senhor estiver certo, bem pode
dar-se o luxo de se desculpar, e se estiver enganado, não pode dar-se o luxo
de deixar de fazê-lo.
Conscientemente ou não, parafraseava o mais sábio conselho de Mr.
Horace Lorimer.
Após a partida da carruagem, ele entrou no hall e fez ainda uma inspeção
antes de recolher-se à ala dos criados; ajeitou uma almofada no lugar e
removeu um copo vazio (do doutor, sem dúvida) que ficara sobre a
escrivaninha de sua senhoria.
Viu depois o doutor. Estava num desvão de janela, no corredor principal,
em companhia dos dois criados: Brooks, corpulento e de óculos, e o ossudo
Gilder. Confabulavam em voz baixa. Além de Mr. Kelver, alguém mais os
viu. O lorde Lebanon, à porta de seu quarto, observava a conferência, um
tanto divertido. Disse boa-noite ao mordomo quando este passou, depois
chamou-o de volta.
— Aquele não é o doutor? — O lorde era um pouco míope.
— Sim, senhor; o doutor e Gilder; e penso que Brooks também.
— Que diabo estarão falando?… Kelver, não acha esta casa um tanto
esquisita?
Kelver era homem demasiado polido e criado perfeito demais, para
concordar.
Achava esquisitíssima a casa, e aqueles dois criados o fenômeno mais
ultrajante de Marks Priory. Mas não estavam sob sua autoridade, fato que
sua senhoria fizera questão de deixar claro desde sua chegada ali. Além
disso, aqueles dois não eram segregados com os demais lacaios depois das
nove; ao contrário, tinham livre acesso a todas as dependências da casa.
— Sempre me pareceu, senhor — respondeu ele —, que este mundo
precisa de todo tipo de pessoas.
Willie Lebanon sorriu.
— Creio que já disse isso antes, Mr. Kelver — tornou ele, dando
palmadinhas afáveis no ombro do outro, com o que surpreendeu e muito
embaraçou o idoso mordomo.
4

H
avia um homem chamado Zibriski. Como, entretanto, tivesse
alma de poeta, dizia-se Montmorency. Também foi chamado de
outros nomes, nada lisonjeiros, pelas pessoas que se pilharam na
posse de notas de papel-moeda impressas em offset numa de
suas prensas particulares. Como arte, eram admiráveis; como
instrumentos de troca, inteiramente inúteis. Mr. Zibriski levava uma vida
muito respeitável; ia a Monte Carlo no inverno e a Baden-Baden no verão;
constava que mantinha um luxuoso apartamento em Londres (mal sabia sua
oxigenada esposa que, na verdade, eram dois) e rodava para cima e para
baixo num reluzente carro americano.
Não era um falsário comum, mas um verdadeiro mestre, no mais alto
sentido da palavra. Tinha uma prensa em Hanover e outra nos fundos de
um pequeno hotel numa ruela próxima do cais de Ostend. Suas notas de
cinco libras eram belamente impressas e impressionantemente numeradas.
Caixeiros de bancos chegaram a aceitá-las; passaram igualmente sem
despertar suspeitas debaixo dos narizes aduncos dos crupiês de Deauville.
Outro indivíduo, chamado Briggs, várias vezes condenado à prisão, que
percorreu a vida na ilusão de que a desonestidade era compensadora, residia
havia uma semana no povoado de Marks Thornton como hóspede do
“White Hart”. Era o subagente; em breve Mr. Montmorency apareceria em
seu faiscante automóvel e lhe entregaria quatro imponentes embrulhos,
recebendo por conta a metade do valor nominal da “mercadoria”. Briggs, por
seu turno, dividiria os pacotes em quatro partes e as distribuiria, levantando
um lucro de cem por cento, o qual seria ainda maior se tão somente ele
tivesse a coragem de se tornar um negociante mais ativo.
Fora, pois, a Marks Thornton aguardar a chegada do atacadista; ao mesmo
tempo, porém, chegaram a uma localidade vizinha dois estranhos,
aparentemente inofensivos, e mais interessado em Zibriski do que em
Briggs.
— Segui-o até Marks Thornton — declarou o sargento-detetive Totty. —
Na minha opinião, não vai acontecer nada lá…
— A sua opinião — disse o inspetor-chefe Tanner, do Departamento de
Investigações Criminais — é tão sem importância que dificilmente eu a
ouviria e, seja como for, é de segunda mão, pois eu a expressei primeiro.
— Por que não agarramos Briggs agora? — perguntou Totty.
Era um homem de estatura abaixo da média e de maneiras pomposas;
corajoso, mas um tanto curto de visão. Tanner, com um metro e oitenta e
cinco de altura, baixou os olhos para o subordinado e suspirou.
— De que o acusaríamos? — perguntou. — Não poderíamos enquadrá-lo
nem mesmo no Ato de Prevenção Criminal. Além disso, não é Briggs que eu
quero. Quero Zibriski. Toda vez que vejo a fotografia dele atirando rosas às
belas mulheres de Nice sinto-me mal. Não existe nenhuma força policial na
Europa que não saiba ser ele o comerciante mais sujo do mundo, e, apesar
disso, nunca sofreu nenhuma condenação. Vamos nos mexer um pouco esta
noite, Totty.
— Belo lugar esse Marks Thornton — disse Totty. — Pra dizer a verdade,
quase aluguei um quarto no “White Hart”. É besteira a gente investigar a
nove quilômetros do lugar suspeito… Há lá também um castelo antigo.
Tanner confirmou.
— É a vivenda do Visconde de Lebanon: Marks Priory.
— Bem fora de moda — sugeriu o sargento Totty.
— E tinha que ser — explicou Tanner. — Começou a ser construído em
1160.
Ao anoitecer, dirigiram-se para o povoado, passaram pelo “White Hart” e
subiram em marcha lenta a estrada que costeia Marks Priory. Da crista do
morro podia-se ter uma boa vista do sombrio solar com suas quatro torres,
uma em cada canto do edifício. No tempo dos Tudors, o sólido muro que o
cercava fora demolido e construíra-se em seu lugar uma monstruosa peça
do tudorismo.
Tanner freou o carro e examinou com curiosidade o castelo.
— Parece mais um presídio — comentou Totty. — Igualzinho ao Holloway
Castle.
Mr. Tanner não se dignou responder a isso.
Não viram nem sinal de Zibriski em nenhum dos lugares que visitaram.
Às onze em ponto voltaram para onde estavam alojados. Zibriski não
apareceu nem no dia seguinte nem ainda no outro. Ao fim da semana,
Tanner regressou a Londres. Sabia muito sobre as atividades do submundo;
tanto que estava convencido de que Zibriski fora avisado de sua presença e
alterara o plano. Nisso, porém, se enganou.
Na noite do baile a fantasia, Zibriski apareceu, encontrou-se com seu
agente no quarto deste, onde fez uma rápida troca de dinheiro mau por
bom. Briggs meteu as notas falsas numa maleta e, concluído o negócio, saiu
para dar um passeio; achava-se naquele estado de exaltação comum aos
criminosos em tais ocasiões.
Havia ali uma espécie de baile. Briggs ficou distante do centro do
povoado, ouviu as notas exóticas emitidas por uma banda de jazz
especialmente contratada e, subindo o morro, chegou a um mata-burro,
onde se sentou, encheu o cachimbo e pôs-se a especular gostosamente sobre
a boa fortuna que lhe calhara. Passar notas falsas era bom negócio, e seu
lucro de 100%, coisa líquida e certa.
Viu alguém subindo a estrada, uma aparição estranha, envergando um
chambre e trazendo um turbante na cabeça. Havia uma meia lua aquela
noite. Briggs ergueu-se da trave em que sentara e, com ar curioso, pôs-se a
tirar seguidas baforadas. Um hindu? Então lembrou-se do baile.
Ao passar por ele, o homem alegremente desejou-lhe boa-noite. De sua
voz Briggs concluiu que andara bebendo. O homem transpôs o mata-burro e
enfiou-se pelo campo adentro, a caminho do povoado. Briggs tornou a
sentar-se e reacendeu o cachimbo, que se apagara.
Súbito, chegou-lhe por trás um gemido como de alguém em agonia
mortal. Só durou uma fração de segundo. Briggs, sentado na trave do mata-
burro, sentiu os cabelos se arrepiarem. Voltou-se, tentando enxergar através
da escuridão, mas nada viu. Puxou o lenço e esfregou a testa úmida.
Depois ouviu que alguém corria em sua direção e logo avistou um
homem.
— Quem está aí? — ouviu perguntar uma voz esganiçada.
Sob a fraca luz do luar distinguiu um rosto com uma pequena barba e
ficou perplexo ante a visão.
— Quem é? — perguntou o ex-presidiário, notando com surpresa que
estava rouco.
— Tudo bem! Sou o dr. Amersham — retrucou o barbudo.
— Quem é que estava gemendo? — tornou a perguntar Briggs.
— Ninguém; deve ter sido alguma coruja.
Amersham voltou-se e mergulhou na escuridão. Briggs permaneceu ali
sentado longo tempo. Estava meio aterrorizado, mas tinha a intensa
curiosidade que constitui a grande virtude dos londrinos; em breve transpôs
o mata-burro e percorreu cautelosamente a trilha batida. Lembrando-se de
que levava uma pequena lanterna manual no bolso traseiro, apanhou-a,
ligou-a, dirigiu-lhe o facho a poucos passos de si e prosseguiu caminho.
Já estava a ponto de desistir quando viu algo brilhar contra a luz do farol
que empunhava. O reflexo provinha de um montículo à beira da trilha. O
coração começou a bater violentamente, enquanto caminhava lento em
direção ao local. Deteve-se, hesitou por um instante, cerrou os dentes e
prosseguiu na investigação.
Era um homem; o mesmo que passara por ele em traje hindu. Jazia imóvel
estendido no chão. Em torno de sua garganta havia uma gravata vermelha…
apertada demais. Estava morto e fora estrangulado.
Seu rosto estava horrivelmente contorcido, mas apesar disso Briggs o
reconheceu. Era o chofer da mansão; o mesmo homem em cuja companhia
bebera no bar: Studd!
Palpou-lhe o pulso cautelosamente, enfiou a mão sob a extravagante
camisa, procurando sentir-lhe o coração. Depois ergueu-se, percorreu
apressadamente o caminho de volta e transpôs o mata-burro, com o coração
aos saltos. Daí dirigiu-se vagarosamente para o “White Hart”. Que lá a
polícia encontrasse os seus próprios mortos. Briggs não queria se envolver e
tinha para isso boas razões.
Deixou o lugarejo logo pela manhã, uma hora antes de encontrarem o
corpo estrangulado.
5

M
r. Arty Briggs chegou à Victoria Station desejoso de ocultar-se
na populosa cidade, mas sem revelar grande ansiedade. Os
quatro policiais à paisana, que fecharam um círculo ao seu
redor assim que ele transpôs o cancelo, não lhe deixaram
dúvidas quanto à seriedade de sua situação.
Levaram-no a Bow Street e revistaram-lhe a maleta. Ninguém deu ouvidos
à sua declaração de que tal objeto não lhe pertencia e que só o carregava
para um amigo desconhecido chamado Smith. O receptáculo continha
muito do que, com alegria, Mr. Briggs teria visto evaporar-se no ar.
— Eu nunca vi isto antes em toda a minha vida — jurou ele, tomando o
céu por testemunha.
Depois foi interrogado por Tanner, o inspetor-chefe.
— Transporte de notas falsas não é nada em comparação com aquilo de
que ainda vamos acusá-lo, Briggs — começou Tanner. — Você esteve no
povoado de Marks Thornton a noite passada, onde ocorreu um crime. O que
você sabe sobre o caso?
Mr. Briggs não sabia nada. Causava-lhe, disse, grande admiração que
alguém pudesse ser assassinado num lugar tão bonito como aquele.
Perguntou, com muita argúcia, se tinham encontrado alguma arma com ele
por ocasião da vistoria a que acabara de se submeter e prontificou-se a
deixar-se reexaminar com maior rigor.
— Até parece que você já sabe que o homem foi estrangulado — disse-lhe
Tanner, que, de sua parte, estava longe de supor que aquele homem tivesse
algo a ver com o crime. Briggs não era assassino; era apenas o vendedor
regular de um artigo com muita saída. Além do mais, era velho no ramo, e
não somente sua história como até seu temperamento já eram sobejamente
conhecidos da polícia.
Tanner não podia imaginar que aquele homem tivesse visto com os
próprios olhos o chofer estrangulado, de modo que não levou o
interrogatório muito longe. Mas, sob a ameaça de suspeita de assassinato,
Briggs fez uma confissão completa do delito menor; e como não há honra
entre gatunos, graças à sua cooperação, Mr. Zibriski foi arrancado de um
barco no Havre, àquela mesma noite, e atirado numa cela de Southampton.
Quando voltou à Scotland Yard, Tanner subiu para ver o comissário. Em
resposta à sua pergunta, este sacudiu a cabeça.
— Não, a polícia local não nos pediu auxílio, e é improvável que o faça até
desaparecerem todas as pistas. Parece ser um crimezinho bem comum, e eles
o atribuem a mera vingança pessoal. Esse tal de Studd parece ter feito
algumas péssimas amizades aqui e ali, mas aparentemente não tinha
inimigos reais.
Falara a Horsham por telefone, de onde extraíra aquelas informações.
Bill Tanner também obtivera um ou dois outros fragmentos de
informação aquela tarde, mas nada que despertasse interesse. Studd tivera
uma escaramuça com um couteiro por este o suspeitar alvo das fantasias
adulterinas da esposa; suspeita que, aliás, se revelou injusta. Ninguém
mencionara o nome do dr. Amersham. Nos relatórios que chegaram à
Scotland Yard, seu nome também não aparecia, e foi só uma semana depois,
quando a polícia local invocou por fim o socorro da Yard, que Tanner e seu
auxiliar, dirigindo-se para Marks Thornton, tomaram conhecimento dele.
Fizeram também uma rápida visita a Marks Priory, mas foram acolhidos
com frieza. Casualmente Tanner mencionou o nome do dr. Amersham a sua
senhoria.
— Ele costuma vir aqui ocasionalmente — disse a dama —, mas não
estava aqui na noite desse terrível acontecimento. Creio que nos deixou
perto das dez.
Essa única vista rápida que tivera da vida interna em Marks Priory não o
levou a nenhum progresso nas investigações. A vivenda era típica de um
grande aristocrata e, na ocasião de sua visita, estava em obras de reparo.
Havia estacas e andaimes contra as paredes, e Kelver, que lhe servira de
cicerone, mostrou-lhe as plaquinhas de pedra encravadas na parede, cada
qual exibindo o brasão de algum velho membro da família.
— Sua senhoria — dizia Kelver com a devida reverência — é uma
autoridade em heráldica. Ela é capaz de identificar brasões como o senhor e
eu identificamos as palavras de um livro. É surpreendente o conhecimento
que tem da matéria. Como o senhor provavelmente sabe, a família é muito
antiga. O primeiro Lebanon foi armado cavaleiro pelo rei Ricardo I.
— Interessante — disse Bill, que não era arqueólogo. — E o que é que
pode me dizer sobre Studd?
Kelver meneou a cabeça.
— Aquele trágico acontecimento, senhor, tem-me feito passar noites em
claro. Era uma pessoa extremamente agradável; um perfeito cavalheiro; e
nunca o vi desentender-se com ninguém…
Fez uma pausa, e Tanner interpretou mal a hesitação do mordomo.
Este não vira nem ouvira nada. Tomara conhecimento da morte do chofer
pelo policial que encontrara o corpo. Não tinha senão elogios para o defunto
e repelia toda sugestão de que em vida pudesse ter feito algum inimigo.
O sargento Totty, que se encarregara de interrogar os demais criados,
trouxe depois a mesma história.
— Procurei a femme, mas não achei nenhuma — explicou ele. — Não há
mulher metida nisso.
Investigavam já havia seis dias. E era tarde demais para levantar novos
indícios. Havia um estranho hospedado na estalagem do povoado, e Tanner
sabia muito bem quem era. Ouviu-se a história de costume sobre
vagabundos e ciganos, mas a caravana de ciganos mais próxima achava-se a
32 quilômetros dali. Os campos do priorado não costumavam ser
frequentados por caçadores ilícitos, pois estes preferiam os abrigos do
parque de Marks Priory. Todos os caçadores locais foram interrogados.
Tanner viu a fotografia da vítima, examinou a gravata com que fora
estrangulada e apoderou-se dela: um feio pedaço de pano de cor vermelha,
que tinha costurado a um canto um rótulo minúsculo no qual se liam
algumas palavras em hindustânico, as quais, uma vez traduzidas, revelaram
o nome do fabricante.
Viu o lorde Lebanon e interrogou-o. O rapaz não conseguiu ajudá-lo em
nada. Era realmente amigo de Studd, mas isso Bill já apurara pelo mordomo;
de resto, estava muito transtornado com a sua morte.
O terceiro membro importante da casa ele encontrou ao cruzar os campos
do priorado em direção da aldeia. Isla Crane caminhava apressada em sua
direção e o teria ultrapassado se não a parasse.
— Desculpe… É Miss Crane, não é? Sou o inspetor Tanner, da Yard.
Para sua surpresa, a essas palavras o rosto da moça empalideceu e a mão
que ergueu à altura da boca estava trêmula. Fitava-o com olhos
esbugalhados, cheia de apreensão. Ele já vira expressões como aquela antes.
As pessoas, inocentes ou não, sempre reagem de modo estranho quando
interpeladas pela polícia. Entretanto, nunca esperaria que uma moça
daquela classe traísse a mesma emoção. Estava assustada, aterrada. Ao vê-la
a ponto de desfalecer, sua surpresa ganhou vulto.
— Verdade? — disse ela num espasmo. — Sim… eu… disseram-me que o
senhor era… É sobre a morte de Studd, não é? Coitado!
— Imagino que a senhora não viu nada, não é? Não pode nos ajudar a
esclarecer o caso de algum modo?
Ela sacudiu a cabeça quase antes de ele terminar a pergunta.
— Não… Como eu poderia?
Dizendo isso, arrancou dali abruptamente. Tanner virou-se e teve a
impressão de que ela corria.
O sargento Totty ficou a observá-la até perdê-la de vista. Depois disse ao
superior:
— Que engraçado!
— Engraçado nada — retrucou Bill Tanner. — Já vi muita gente se
comportar desse jeito. Deve ser péssimo para pessoas dessa classe verem-se
de uma hora para outra às voltas com um assassinato.
Fez o resto do percurso imerso em meditações.
Isla chegou ao grande pórtico que havia diante da entrada principal de
Marks Priory. Gilder, o lacaio, estava ali sentado, perdido na leitura de um
jornal. Ergueu-se ao ver a moça se aproximar e lhe atirou um olhar
reprovador. Já o tinha passado quando ele lhe falou:
— Esteve com o tira?
— O detetive? — perguntou ela, depois de se ter voltado.
Ele confirmou.
— Ele perguntou alguma coisa, dona?
Isla fitou-o por um momento sem compreender.
— Ele perguntou alguma coisa? — trovejou o criado. Sua voz de baixo
profundo era um tanto intimidadora.
— Só se eu tinha ouvido alguma coisa — respondeu ela e, voltando-se
rápida, entrou.
Lady Lebanon estava no grande salão sentada à escrivaninha. Costumava
passar lá a maior parte do tempo. Era capaz de dedicar-se dias a fio ao
exame das velhas inscrições heráldicas e dos pergaminhos dos Lebanons.
Era exímia latinista, e poucos a ombreavam no conhecimento do inglês
antigo. Perlustrava agora um livro, fazendo anotações à parte, num bloco de
papel. Ao ver Isla, fechou o livro, enfiou o bloco numa gaveta, trancando-a
depois, resolutamente, à chave.
— Que há? — perguntou.
A moça tremia da cabeça aos pés. Por alguns instantes ficou como quem
não pudesse falar.
— Ele anda fazendo perguntas — disse por fim. — Mr. Tanner!
— O policial? Que perguntas? Ele disse algo sobre Amersham?
A moça fez que não com a cabeça.
— Não mencionou o nome do doutor. O que vai acontecer agora?
Lady Lebanon recostou-se no espaldar, repousou os cotovelos nos braços
estofados da cadeira e enclavinhou as mãos.
— Há momentos em que não chego a entendê-la, Isla — disse com alguma
acrimônia na voz. — O que poderia acontecer?
— E se eles descobrirem?
Da escrivaninha, a calma dama ergueu para a moça seus olhos escuros.
— Eu realmente não sei do que você está falando, Isla. Quem poderia
descobrir? Gostaria que não falasse sobre coisas que não lhe dizem respeito.
Isla Crane foi cedo para seus aposentos aquela noite. Ocupava o que era
conhecido, como “o quarto do velho lorde”, uma câmara grande, majestosa e
lúgubre, com um gigantesco leito de armação ainda a ostentar na cabeceira
as armas já quase invisíveis de algum Lebanon esquecido. Não, porém, por
Lady Lebanon, que jamais esquecia nada. Passou-se muito tempo até que
Isla conseguisse dormir.
— Por que ela foi tão cedo pra cama?
— Não se amofine, Willie querido — respondeu-lhe a mãe. — Não há
nenhuma razão pela qual ela devesse ficar de pé.
E fitou o dispendioso relógio de pulso.
— Está quase na hora de você também ir se deitar, querido. Não fique
acordado até tarde… Falou com Isla?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não, ainda não tive oportunidade desde que aconteceu essa coisa
medonha. — Disse isso e inclinou a cabeça apurando o ouvido. — É um
carro! — disse depois. — Amersham?
— Ele deve vir esta noite.
— Ele estava aqui na noite do crime, não estava?
Ela ergueu rapidamente os olhos.
— Não, ele partiu cedo… perto das dez, eu acho.
O rapaz sorriu a isso.
— Mãe querida, eu vi o carro dele saindo daqui às sete da manhã. Por
acaso eu estava olhando da janela. Alguém me disse que ele tinha dado uma
escapada aquela mesma noite.
— E você corrigiu essa informação? — perguntou a mulher agudamente.
Ele meneou a cabeça.
— Não. Por quê?
E ergueu os olhos para o teto abobadado, com um suspiro.
— Puxa, que lugar medonho — comentou depois. — Até me dá arrepios.
Não quero ver Amersham; vou para o meu quarto.
A porta se abriu, mas não para dar passagem ao abominável doutor. Era
Gilder, que trazia uma bandeja, um sifão e um copo. Despejou um tanto de
whisky e misturou-lhe soda. Durante todo o tempo que levou nisso, o olhar
hostil do lorde Lebanon o vigiava em cada movimento.
Apanhou o copo da mão do criado e sorveu-lhe o conteúdo. Só percebeu
certo amargor algum tempo depois de haver bebido.
— Que whisky mais engraçado! — disse…
E foi a última observação que se lembrava de ter feito. Quatro horas
depois despertou com dor de cabeça; tendo acendido a luz, deu consigo em
seu próprio quarto. Estava na cama e de pijama. Com um gemido, ergueu-se
ainda estonteado. Mr. Gilder fora um tanto generoso no manejo da droga
que lhe ministrara.
6

L
ebanon levantou-se, cambaleou até a porta e tentou abri-la. Estava
trancada. Instintivamente levou a mão para o lugar onde a chave
deveria estar, mas não a achou. Ficou confuso; sua cabeça parecia
estar fora de controle; inclinava-se de um lado para outro. Fez um
esforço para acabar de acordar, encontrou o interruptor e
acionou-o.
Na casa, só havia dois quartos que conhecia intimamente. A princípio,
supôs que estivesse num terceiro; mas aos poucos, à medida que suas
percepções despertavam, reconheceu alguns objetos. Havia um cordão de
campainha próximo da cama; puxou-o, sentou-se no leito e esperou longo
tempo antes de obter resposta. Estava a ponto de tocar de novo quando
ouviu uma chave introduzir-se na fechadura e estalar ao ser girada.
Era Gilder. Algo tinha se passado com ele. Seus olhos estavam
descoloridos; trazia amarfanhado o colarinho; seu colete de listras estava um
tanto lacerado e, ademais, faltavam-lhe dois botões. Por longo tempo fitou,
carrancudo, o rapaz.
— Deseja alguma coisa, senhor? — disse por fim, e Lebanon percebeu que
tivera de violentar-se para proferir aquela forma polida de tratamento.
— Quem trancou esta porta?
— Eu mesmo — respondeu friamente o outro. — Um fulano que apareceu
esta noite armou um sururu lá embaixo, e eu não quis que o senhor se
envolvesse.
O rapaz fitou-o embasbacado.
— Quem era? — perguntou.
— Ninguém que conheça — respondeu rápido o criado. — Há alguma
coisa que eu possa fazer pelo senhor?
— Arranje-me um trago… Alguma coisa fria. Aquele whisky que você me
deu não era lá muito bom, Gilder.
Talvez o lacaio percebesse o tom de suspeita na voz de seu senhor, mas
não deu o menor sinal de estar embaraçado.
— Foi justamente o que o outro cavalheiro disse. Acho que o whisky por
aqui não presta mesmo. Vou pedir a sua senhoria que encomende mais da
cidade.
— Onde está minha mãe? Ela estava lá quando…?
Gilder meneou a cabeça.
— Não, senhor; estava nos aposentos dela.
— O que aconteceu?
O criado fitou-o com um sorriso forçado.
— Talvez o senhor prefira vir e ver — respondeu; e Lebanon, tendo
calçado os chinelos, seguiu-o corredor afora. Desceram depois a escada
circular que dava para o hall.
Brooks estava lá em mangas de camisa, aparentemente tentando restaurar
a ordem do ambiente. Havia ainda uma mesa de pernas para o ar, a borda do
sofá estava lacerada, os restos de um pequeno relógio jaziam espalhados em
torno, e, do candelabro, quatro velas pendiam desordenadas e sem vida.
Lebanon passeou os olhos escancarados por tudo aquilo.
— Quem fez isto? — perguntou, tentando imprimir à voz certo tom de
autoridade.
— Um amigo do dr. Amersham — respondeu Gilder, e havia no seu tom
uma ponta de malícia que Lebanon não percebeu.
O chão estava manchado e coberto de cacos de vidro; obviamente a
garrafa de whisky tinha levado a breca. Uma parte do apainelado fora
rompida também.
— Parece que algum lunático andou solto por aqui! — disse Lebanon.
O sorriso se desvaneceu do rosto de Gilder, que ficou momentaneamente
alarmado.
— Hein? — disse. — Sim, de fato. Parecia um doido mesmo… esse amigo
do dr. Amersham.
Eram três e meia. Willie notou uma luz mortiça a oriente, quando
desaferrolhou a enorme porta, soltando-lhe as cadeias, e saiu alguns passos,
a aspirar o ar fresco da manhã. Estava ainda muito escuro e muito calmo ali;
e o silêncio o fez estremecer. Os últimos animais a se recolherem já o haviam
feito, e os mais madrugadores ainda estavam por gorjear as primeiras notas
de saudação ao novo dia. Ao ver a luz no outro extremo do campo, lembrou-
se de que Tilling, o couteiro, morava lá, à beira do bosque; homem ríspido e
hostil. É óbvio que estaria de pé; parte de seu trabalho consistia em vigiar a
propriedade. Marks Thornton contava com muitos caçadores ilícitos;
homens astutos, de rostos tostados pelo sol, com seus cães indiscriminados.
A esse pensamento, Willie Lebanon sorriu dentro da noite. Aquela
atividade, em todo caso, não lhe parecia criminosa. Se fosse juiz do condado,
não condenaria ninguém só por apanhar o que, afinal de contas, já lhe
pertencia.
Ouviu atrás o passo lento e fatigado de Gilder, que caminhava sobre o
lajedo, vindo em sua direção. Fumava um charuto, sem aparentar o menor
indício de embaraço.
— Tilling parece ter ficado de pé até tarde esta noite. Deve estar de
serviço, não?
Gilder não respondeu logo. Tirava imperturbáveis baforadas, com os
olhos taciturnos fixos na luz distante.
— Tilling foi a Londres a noite passada — respondeu depois.
Neste momento, o retângulo luminoso, alvo da atenção de ambos, se
apagou, e Lebanon ouviu do criado uma interjeição reprobatória.
— Eis alguém à procura de encrenca.
— Quem?… Tilling?
Gilder não respondeu.
— É melhor entrar. Só está vestido com esse roupão, e a noite está fria.
Agora seu tom era respeitoso.
Havia ocasiões em que Lebanon gostava daquele magro americano. Em
certos momentos, sua familiaridade insolente o divertia. Não se vexava do
charuto nem daquela camaradagem presunçosa.
— Você é engraçado — disse, enquanto seguia o lacaio e o ouvia trancar a
casa por dentro ruidosamente.
— Nunca me senti menos engraçado em toda a vida — replicou Gilder.
— Quem foi que aprontou toda aquela confusão?
Gilder sacudiu a cabeça.
— Um amigo do dr. Amersham — respondeu e sorriu um sorriso
esdrúxulo. — Mas, pensando melhor, talvez não fosse tão amigo dele…
Neste ponto, o rapaz notou que a voz do criado se alterava.
— Que está fazendo aqui embaixo, dona?
Willie voltou-se em direção à escada. Era Isla. Usava um roupão espesso e
decerto estava toda vestida por baixo, pois trazia meias e sapatos.
— Nada — respondeu ela num espasmo. — Está tudo bem, Gilder?
— Tudo bem, dona. Não precisa se preocupar. O cavalheiro que armou o
barulho já foi pra casa.
Disse isso com determinação, fitando-a fixamente. Willie teve a impressão
de que, de forma velada, ele tentava sugerir algo à moça, ou mesmo lhe
impingia uma explicação para aquela desordem que não apenas seria irreal
como forçosamente ela devia saber que o era.
— Compreendo — tornou a moça com um aceno de cabeça. Ainda estava
sem fôlego. — Ele já foi para casa… É bom saber disso… Sua senhoria
queria ver o dr. Amersham antes de se recolher, Gilder.
O criado esfregou o queixo.
— Queria?… Bom, acho que Amersham…, o doutor, não está aqui. Foi
dar uma volta faz uma meia hora. Hora esquisita pra passear, não é? Pode
dizer a sua senhoria que eu o mando logo que o encontrar.
Quando a moça se retirou, Lebanon transferiu o olhar atônito para Gilder.
— Ela o viu… esse tal, seja lá quem for?… Miss Isla?
O lacaio confirmou com um aceno.
— Se viu! — disse lacônico; e era óbvio que não estava para confidências.
— É melhor ir para a cama, senhor. É muito tarde.
Lebanon não protestou. Na verdade, aceitou de bom grado a sugestão, pois
repentinamente começara a sentir-se muito cansado e estranhamente
apático.
Fora narcotizado; sabia disso, mas quase não se importava. E em seu
estado de exaustão era incapaz de afligir-se com o que quer que fosse.
7

O inspetor-chefe Tanner, com sua alta estatura e índole prática, apenas


preservara em si mesmo aquele bocado de romantismo sem o qual a vida
se tornaria insuportável. Acreditava em muitas coisas, materiais e práticas
sobretudo, mas nem sequer uma ínfima parte de sua vida se apoiava na
imponderável substância dos sonhos. Entretanto, argumentava que, quando
alguém parasse de sonhar, morreria, e nisso não se enganava, pois os seus
próprios sonhos, quase sempre rudes e extravagantes, tinham muitas vezes
originado soluções extraordinariamente práticas para seus problemas mais
comezinhamente mundanos.
Era crente fanático na eficácia dos departamentos de registro, e até mesmo
aí encontrava certo encanto romanesco. Era capaz de ficar horas esquecidas
num lugar desses, passando em revista velhos conhecidos. Dessem-lhe um
cartapácio, alguns índices remissivos, um fichário com fotografias de gente
mal-encarada, e ele estaria feliz. Isso o faria permanecer sentado horas a fio,
cismando e ponderando.
No mais das vezes, suas especulações tinham como origem algum ponto
convencional. Que teria acontecido ao velho Steine? Fazia anos que não o
via. Lá estava ele, velho e trombudo, transfixando-o do fichário; sua ficha era
alentada; assaltante, arrombador de cofres, suspeito de homicídio. Estaria
morto? Atirado, talvez, à vala comum, ou dissecado por algum jovem
anatomista de algum hospital londrino? Ali estava Paddy the Boy, bem-
apessoado, com o mesmo olhar feroz; larápio que nunca pudera resistir à
tentação de beijar criadas adormecidas. Foi isso mesmo o que o arruinou.
Mais adiante apareceu Johnny Greggs, benevolente, calvo, a sorrir com
afetação para o fotógrafo do presídio. Cumpria pena de sete anos e cinco
meses em Parkhurst, e teve sorte de escapar de coisa pior. Seu crime fora
assalto com violência e, ao ser preso, tinha em seu poder duas automáticas
inteiramente carregadas: pecado imperdoável.
Mr. Tanner permitiu-se afinal abandonar aquela linha de investigação.
Dobrou o fichário e voltou a examinar a pasta M. O.
Ora, todos os malfeitores habituais são especialistas, e o método de
classificá-los por seu modus operandi reduz-lhes a especialidade a um
simples e frio índice. Mr. Tanner inspecionava, pois, os nomes e dossiês de
todas as pessoas que, desde a formação do arquivo criminal, tivessem
alguma vez estrangulado ou tentado estrangular alguém. Não poucos nomes
que leu pertenciam a homens que tinham dado o passeio das nove horas que
terminava no patíbulo. Alguns se achavam no asilo de criminosos lunáticos
de Broadmoor; pervertidos que tinham ido longe demais. Na lista de nomes
restante, não encontrou nenhum caso paralelo ao ocorrido em Marks Priory.
Havia um número surpreendentemente grande de homens e mulheres que já
haviam tentado ou conseguido estrangular alguém com cordas, mas,
examinando-os um por um, não encontrou nome nem dossiê que pudesse
identificar o autor do crime que investigava.
Desceu a seu gabinete, achou o sargento Totty confortavelmente instalado
em sua cadeira, e, sem a menor cerimônia, tocou-o dali.
O sargento não era romântico na acepção ampla da palavra. Era, isto sim,
um mentiroso de primeira quando se tratava de fazer o relatório de suas
proezas. Mentiroso inofensivo, porque ninguém caía nas suas histórias, que
aliás eram muito mal contadas. Abrigava certo ressentimento contra as
autoridades do ensino, que, em seus testes para promoção, exigiam dos
candidatos um nível mínimo de conhecimentos sobre História; e comungava
com o temível sargento Elk, antigo inspetor já aposentado, um desrespeito
quase malevolente pela rainha Elizabeth, pois ainda não conseguira
apresentar, nos três exames em que fora reprovado, detalhes precisos da vida
daquela majestade.
Totty ergueu-se relutante, foi até a janela e pôs-se a fitar o movimentado
Embankment.
Profissionalmente, aquela fora uma semana enfadonha.
— Quem é Amersham? — perguntou Tanner de sopetão.
— Hein? — Mr. Totty estava distraído. — Amersham — respondeu depois
— é uma cidade de Kent.
— Amersham — tornou o inspetor Tanner pacientemente — é uma
cidade de Buckinghamshire. Essa ânsia de aprender tudo ainda acaba por
levá-lo a ser exato algum dia. Estou falando do dr. Amersham.
Totty mordeu os lábios.
— Ah, sei! — disse. — Aquele fulano de Marks Thornton. É um médico.
— Nem isso você sabe — disse Tanner. — Ele se intitula doutor e talvez
seja, mas se é de música ou medicina não temos meios de saber.
Tirou do bolso uma caderneta, virou-lhe as páginas e leu uma anotação.
— Ele tem um apartamento em Ferrington Court, Devonshire Street —
disse. — Talvez um conjunto de apartamentos.
— Fica na esquina de Park Lane — informou Totty animadamente.
Quando ficava assim, Tanner já sabia que a informação que dava era falsa.
— Nisso eu estaria disposto a crer se já não soubesse que você está
enganado — respondeu Tanner. — Ferrington Court é residência cara
demais para médicos. Além disso, ele também é proprietário de dois cavalos
de corrida.
— Um deles venceu outro dia — tornou Totty. — Engraçado, eu quase
apostei nele.
— Faz dois anos que nenhum deles ganha uma corrida — informou
Tanner gentilmente. — Gostaria de conhecer os antecedentes dele. E, antes
que você comece a fazer novas adivinhações, fique sabendo que o que eu
queria era saber algo sobre o seu negro e hediondo passado.
— Mal reparei no homem — disse Totty.
— O que não é de admirar — tornou o outro —, já que você não chegou a
vê-lo. Vou-lhe dar uma dica, para o caso de querer bancar autoridade no
assunto: ele esteve na Índia; logo, talvez seja médico. Mas o que será que ele
faz em Marks Priory, qual sua ligação com a família?
— Ele podia ter cometido aquele crime — disse o sargento Totty,
momentaneamente alerta.
— E você também — disse Tanner. — E quase todo mundo que está na
lista telefônica.
— Vou-lhe dizer o que eu notei quando estive lá. — A voz de Totty
assumiu um tom oficial, de modo que Mr. Tanner se dispôs a ouvi-lo. — Eles
têm lá um couteiro, um cara chamado Tilling. Alegre como um fim de
semana chuvoso. Vi ele num boteco… Na estalagem, aliás. Estava com as
mãos em cima do balcão. Nunca vi mãos daquele jeito: que nem lombo de
carneiro! Mencionei isso ao estalajadeiro, e ele disse que Tilling uma vez
matou um cachorro usando só as mãos; estrangulou ele…
— Não me diga! — exclamou Tanner.
Totty sorriu.
— Eu conservo os ouvidos abertos, Tanner. Você me acha um fracasso,
mas quando acontece alguma…
— Claro que você conserva os ouvidos abertos; a natureza fez você
assim… Então quer dizer que ele estrangulou um cachorro, hein? Por que
não me disse isso antes?
— Pra falar a verdade — Totty parecia inusitadamente franco —, eu me
esqueci. Ele também tem esposa… bonita, pelo que ouvi dizer.
— Isso quer dizer que ela tem boa cara ou que é um problema para o
marido?
— As duas coisas. É muito amiga de rapazes, pelo que dizem. Parece que
tem namorado uns dois ou três fulanos. Caramba! — Seu queixo caiu. —
Ora essa, Studd foi um deles. Como é que eu me esqueci disso?!
— O que foi morto?… O chofer?…
— Ele mesmo… Engraçado eu não juntar os dois fatos. Mas, sou assim
mesmo; as coisas têm de estar muito bem arranjadas na minha mente…
— Que mais você tem a dizer? — perguntou Tanner impaciente. — Eu vi o
homem… Um sujeito grandalhão e intratável; lembro dele.
Totty ergueu os olhos para o teto, em busca de inspiração.
— Acho que é só isso que eu sei — disse. — Ah, é mesmo; ele estava em
Londres na noite do crime, com o filho do estalajadeiro. Por isso não pude
levar adiante minhas investigações.
— Tilling estava na cidade? Vamos verificar isso. Eu vou sair e ter uma
conversinha com essa mulher, e, no caminho, quero ver se encontro o dr.
Amersham.
Consultou o relógio; eram quatro e meia.
— Quer que eu vá junto? — perguntou Totty.
— Acho que não é preciso. Fique aqui e tente lembrar um pouco mais de
tudo que esqueceu. Sabe onde estiveram Tilling e o filho do estalajadeiro
quando vieram a Londres?
Totty bateu na testa e sorriu um sorriso amarelo.
— Sim, sei — disse. — Está bem aqui. — E tornou a bater na testa. —
Arquivo criminal. Fichário. Nunca me esqueço de nada, uma vez que tenha
sido bem plantado… Eles vieram visitar o irmão do estalajadeiro que tem
um bar em New Cut. Era aniversário dele, ou coisa parecida, e o jovem Tom
deu uma carona a Tilling até lá; passaram a noite na cidade.
— Verifique isso — disse Tanner.
Chegou a Ferrington Court meia hora atrasado. Era um novo conjunto de
apartamentos, concebido por um arquiteto com propensão para o estilo do
tempo da rainha Ana, no que se referia a exteriores, mas que se esquecera da
funcionalidade ao planejar o interior. O saguão era de mármore. Os falsos
pilares nem eram coríntios nem egípcios nem bizantinos. Havia um elevador
com uma porta corrediça, cujo interior era laqueado à maneira chinesa.
— O dr. Amersham? Sim, senhor; ele está. Ele o aguarda?
— Espero que não — sorriu Bill Tanner.
Passava para o elevador quando alguém mais entrou no prédio e
atravessou correndo o vestíbulo em direção a eles. Era um clérigo; homem
franzino e pálido que sorria beatificamente para o ascensorista e para Bill.
Subiram ao terceiro andar. Quando a porta se abriu, o clérigo desceu e Bill
imitou-o. Via-o agora em frente ao número 16, que também era seu destino.
Um jovem criado de libré abriu a porta. Obviamente o religioso não lhe
era estranho. Por alguma razão supôs que Tanner o acompanhasse.
— Vou dizer ao doutor que o senhor está aqui, Mr. Hastings — disse o
criado e deixou-os sós.
— Meu assunto não é urgente — sorriu o clérigo. — Sou o vigário de
Peterfield… John Hastings. Conhece Peterfield?
— Já ouvi falar — respondeu Tanner educadamente.
Não se admirou de que o dr. Amersham conhecesse um clérigo. Para ele
Amersham podia ser alguém de fundos princípios religiosos, ou aquele
homem podia ser algum velho companheiro seu de escola.
O vigário inclinou a cabeça e falou em tom confidencial.
— Receio que vou causar amolação ao nosso caro amigo Amersham —
disse, com certa malícia na voz. — É o salão de festas da cidade; um perfeito
pesadelo para mim. Já tem sete anos, e ainda não o concluímos. O doutor
tem sido muito bondoso e… — Neste ponto, tossiu.
A porta abriu-se e entrou o dr. Amersham. O sorriso com que saudou o
vigário desvaneceu-se quando ele avistou Bill.
— Bom dia, Mr.… Tanner, não é?
— Isso mesmo, doutor — respondeu Bill. — O senhor tem boa memória.
— Maravilhosa — acudiu Mr. Hastings. — Constatei isso quando o doutor
esteve em Peterfield numa, quase diria, missão vital…
— Posso conceder-lhe alguns minutos, Mr. Tanner. Quer entrar para a
sala, por favor? — A interrupção de Amersham fora brusca, quase rude.
— Não se incomoda, reverendo?
Cruzou apressadamente a porta e, quando Bill entrou, fechou-a atrás dele.
— Bem, Mr. Tanner, descobriram alguma coisa sobre esse infeliz
acontecimento?
— Não, doutor, nada de importante. Pensei que talvez o senhor pudesse
me dizer algo.
O dr. Amersham fitou-o pensativamente, mordeu os lábios tapados pela
barba e sacudiu a cabeça.
— Não, acho que não tenho muito que dizer. Claro que foi um grande
choque para mim e para Lady Lebanon… Choque terrível. O homem,
refiro-me a Studd, não era uma pessoa lá muito agradável; na verdade,
tivemos muitas rixas um com o outro. Tinha maneiras muito impertinentes
e também como chofer não era essas coisas…
Studd, na verdade, era um excelente chofer, mas o doutor não pôde deixar
de menosprezá-lo.
— Ele era uma espécie de conquistador, também; não era? — indagou
Tanner.
O doutor olhou-o espantado.
— Não sei exatamente o que quer dizer. É claro que não cheguei a saber
muito sobre sua vida particular. Havia alguma mulher na vida dele?
Bill sorriu de leve e sacudiu a cabeça. Carregara a pergunta de certa
malícia.
— Não sei mais do que o senhor, mas ouvi uma história de que houve uma
espécie de caso amoroso entre ele e a mulher de um couteiro, uma tal de
Mrs…. — Fez uma pausa para lembrar-se do nome. — Tilling, não é?
E notou que o doutor se empertigara. Aquela sugestão representava um
golpe na sua vaidade.
— Absurdo! — retrucou ele. — Mrs. Tilling é uma mulher muito…
humm… encantadora. Studd? Ridículo!
— Ela é muito bonita? — indagou Bill. — Quero dizer, atraente?
— Sim, creio que é. — respondeu o doutor, lacônico — Não, Mr. Tanner; o
senhor está completamente enganado a respeito de Studd. Mrs. Tilling é
Another random document with
no related content on Scribd:
THE LOSS OF THE SHIP PERUVIAN
Over the North Atlantic ocean and the coast of Cape Cod on the
night of the 26th of December, 1873, swept a gale and storm so
fierce and wild that even dwellers of the coast were surprised.
With almost hurricane force the wind-driven sea rushed in
mountainous waves towards the outlying sand bar and hurled
themselves with a terrific roar on the sands of the beach.
Many weeks before from the smooth waters of the harbor of
Calcutta the American ship Peruvian had passed out into the deep
sea and with a blue sky and favoring breeze had spread her white
sails and headed for home on her long voyage.
Beneath her decks was stored a valuable cargo of sugar and
block tin and Boston was her destination.
The ship was in command of Captain Charles H. Vannah. And
she carried a crew of 24 men. With such a bright departure they
were anticipating a quick and safe voyage. All had gone well with
ship and crew until this fateful December morning. All day long the
snow had fallen thick and fast, driven over the deck of the ship and
through her rigging by the ever increasing gale. Riotous waves lifted
the big ship to their crests only to plunge her the next moment into
the depths of the deep hollows as they tore madly away in the
approaching darkness.
Captain Vannah had been unable for 24 hours to obtain an
observation, but he knew that his ship was approaching the coast of
Cape Cod. Hoping every moment that some slight abatement in the
storm might give him a chance to pick up some outlying beacon or
the glimmer of some friendly lighthouse he kept the ship’s head to
the north with all the sail upon the spars that they could stand
without breaking. Higher and stronger ran the seas, wilder and more
terrific blew the gale, often across the ship’s decks swept the huge
waves, while all about them the dark skies lowered and the angry
waters swirled when suddenly, just before midnight with a terrible
plunge and an awful crash the ship struck the sand bars of the
dreaded Peaked Hill Shoals, nearly a mile from shore; then utter
confusion reigned on the ship. Up to that time only occasional seas
had swept her decks; now the huge waves in torrents constantly
swept her and pounded unceasingly her breaking decks. Boats, deck
fittings and everything movable was swept away in the darkness and
the turbulent sea; her crew driven to the rigging found there only a
temporary place of escape; soon came a mountain-like wave,
overtopping all those which had preceded it and thundered over the
doomed ship, tearing away all of her masts and portions of her deck,
hurling the entire ship’s crew into this mass of thrashing wreckage
and churning sea, and their last sad cries were hushed in the mad
seas that covered them.
With the first glimmer of approaching daylight men hurried to the
outer beach, believing that some terrible disaster had occurred. They
found the shore for miles covered with portions of the cargo and
many broken timbers of the lost ship, but owing to the distance from
shore to where the ship went down only three bodies were ever
recovered and those only after many days of washing about in the
surf.
Out there across yonder bar, where you see the waters curl and
break into a ripple, forming a white line against the blue of the sea
beyond, lies the sunken and sea-washed hull of the once stately
ship; in that sparless hull and the rotting and sand covered timbers
you cannot recognize the majestic vessel that only a few short years
ago sat out there in all her splendor and with her strong sides
seemed to defy the elements.
That blue water, so quiet now, and breaking with such gentle
ripples on the shore, does not give you the impression, that in a few
hours with a change of wind, it could be lashed into fury, and with
towering foam capped waves dash upon the beach with the roar of a
Niagara.
The storm is o’er and all along the sandy reach,
The shining wavelets ripple on the lonely beach,
Beneath the storm-washed sands and waves of blue,
There rests unclaimed, the members of the lost ship’s crew.

Captain Vannah had been a seafaring man all his life. In a pretty
little town, nestling among the granite hills of New Hampshire, he
had known and loved a dear young girl; for several years they had
planned that when his sea voyages were ended he would come to
claim his bride and would sail the seas no more. He had secured a
fair competency and had promised her that this would be his last
voyage. He wrote to her when his ship sailed out of that far eastern
port, advising her of the probable date of his arrival at Boston. She
had made all arrangements to go down to the city and meet him
when his ship should be reported as approaching the harbor.
She daily scanned the ship news columns of the papers, and on
this December morning she knew his ship must be nearing port, but
in her sheltered home she did not realize what a terrible storm was
sweeping the coast.
Only those who have been suddenly overwhelmed with a
paralyzing blow can appreciate what, with ruined hopes, this young
girl felt, when she opened the daily paper only to read in great black,
cruel headlines these words, “Ship Peruvian goes down off Cape
Cod, and all hands are lost.”
HIGHLAND LIGHT, CLIFFS AND BEACH, NORTH TRURO
BARK FRANCIS
The same storm that carried the Peruvian and her whole ship’s
company to destruction drove the North German Bark Francis to the
same fate only three miles farther down the coast, but though sad
enough in some of its features this disaster was not attended with
the appalling loss of life that accompanied the loss of the Peruvian.
These two vessels sailed from the same port in Calcutta only a
few days apart, and had almost been in sight of each other during
the long voyage.
The Peruvian was so unfortunate as to become involved in the
shallows of Peaked Hill Bars, while the Francis, in the deeper waters
to the south was driven by wind and sea over the outer line of bars
and finally grounded within two hundred yards of the beach; her hull
was of iron and she soon settled firmly into the sand.
Every avenue of approach to the beach was blocked with snow,
huge drifts covering every highway and hollow. There were no
mortar guns and no life saving crews then, and no boats of any kind
on the outer beach available. At the shore on the bay side of the
cape was a whale boat, a boat sharp at both ends and about
eighteen feet in length; this boat might afford possibly safe means of
reaching the imperilled crew on the ship, but to get it to the scene of
the wreck was a problem. Finally, through the united exertions of
twenty strong men, the boat was drawn to the edge of the pond in
the village of North Truro, then dragged over the frozen surface of
the pond to the highway near the Post Office, where a pair of horses
was attached to wheels, the boat mounted on them and the journey
to the outer beach and possible rescue was fairly begun; when snow
drifts were not too deep horses and men hurried the boat along;
when great drifts were encountered shovels were brought into use
and a way broken for the horses; then on again, ever in the face of
the storm swept moors towards the ocean, across the gale swept
hills and snow covered valleys the party struggled, until finally, at ten
o’clock in the forenoon, almost exhausted, they reached a point on
the beach opposite the wreck.
A volunteer crew manned the boat, willing hands helped to push
the boat through the foam covered surf, the men bent to the oars
and the trip to the side of the bark was made in safety.
Captain Kortling, of the bark, had been ill in his cabin for many
days and it was with no little difficulty that he was finally lowered
helpless into the rocking and pitching boat, which the thrashing sea
threatened every moment to dash to pieces against the iron sides of
the ship. Brought to the beach and landed, Captain Kortling was
taken in a farm wagon and hurried to the Highland House.
Weakened by disease and worn out by the terrible exposure of the
wreck and the storm, he lived but four days after reaching shore, and
his remains lie buried in the Old Cemetery on the hill, near the west
entrance. The other members of the crew, twenty in number, were
rescued without mishap.
In a few days tugs and lighters were brought to the scene of the
wreck and the work of attempting to save the cargo was begun. A
large part of her cargo was sugar in great straw mats; these in the
process of hoisting out of the hold of the vessel frequently became
broken and the sugar sifted out upon the deck; some twenty-five
men were required to assist in this work of hoisting out the cargo and
placing it upon the lighters. As it was not practicable for these men to
go ashore at noontime they were obliged to take their dinners with
them to the ship; generally a small pail or basket sufficed for carrying
the noon meal. When these men left their work at night the overseer
in charge of the work of unloading would tell the workmen that they
might fill their lunch baskets with the loose sugar which had sifted
out of the broken mats and take it home. In the beginning their pails
as a rule held two or three quarts, but when it became known that
the dinner pails could be filled each night on leaving the ship the size
of these lunch pails and baskets increased amazingly, from a
receptacle with a three quart capacity they soon rose to twenty-five
and even fifty pounds capacity, so that the boat in her last trip to the
shore was in danger of being swamped with the great weight of
lunch baskets. This abuse of a privilege resulted in the cutting off the
supply, although many workmen had already secured a year’s
supply of sugar for their families when the shut off edict was issued.
This vessel seemed to offer the wreckers a good proposition as
an investment and a company was formed with the purpose of
making an attempt to raise and float the vessel. They purchased her
of the Insurance Companies into whose hands the ship had fallen;
then they spent hundreds of dollars in trying to get her from the sand
bar; finally after many weeks of preparation everything seemed
ready, a powerful tug was engaged to stand by and be ready to pull
the ship away as soon as she floated, big steam pumps were
installed on board and all was expectancy; then after a full day’s
steady pumping by the great pumps on her deck, suddenly the big
ship stirred in her bed and rose to the surface with a bound; then a
great shout went up from the assembled crowd on the beach and
from the interested investors on the bark’s deck when they believed
their venture was about to be crowned with success, but this quickly
turned to dismay when the ship, as suddenly as she had come to the
surface, sank back again beneath the sea, from which place she
never moved again, and the shifting sands soon covered her.
The rocking of the ship by the waves and the storms that beat
over her on the sand and coarse gravel of the bed of the sea had
worn holes through her iron sides where her masts were stepped
into her keel, and immediately the ship rose from the bottom a great
torrent of water poured in through these openings, flooded the entire
ship again and carried her back into the sandy bed where she had
so long reposed. For many years in the ever changing sands the
jagged sides of her ever diminishing hull would be exposed only to
be buried by the next great storm that swept her.
LOSS OF THE GIOVANNI
A northeast gale and furious snow storm was sweeping the
coast of Cape Cod and hiding the great sea in its smother all through
the day of March 4th, 1875. Late in the afternoon, during a
momentary breaking away of the storm filled clouds, a great vessel
was discovered fast upon the outer sand bar nearly three miles north
of Highland Life Saving Station. It proved to be the Italian bark
Giovanni, Captain Ferri, from Palermo for Boston, with a cargo of
sumac, nuts and brimstone; her sails were blown away, her rudder
broken. She was in a position to be pounded to pieces before
another sunrise; her crew was almost helpless from exposure to the
cold storm. The crews of Life Saving Stations 6 and 7 were promptly
at the scene of the wreck, but owing to the snow bound conditions of
the roads and the almost impassable state of the beach, added to
the great distance from the Life Saving Stations, it was a task almost
beyond the power of human endurance to get their boats and beach
apparatus to the shore opposite the scene of the disaster, but as
soon as the position of the vessel was clearly determined, and it was
recognized what kind of gear was necessary in order to aid the men
in the ship, they hurried to their stations, and after hours of almost
superhuman exertions, dragging their beach carts, mortar guns and
apparatus through heavy snow drifts that had to be broken out
before they could proceed. Over sand hills swept bare by the driving
gale, through meadow bogs and brush covered ridges, they finally
reached the beach in the vicinity of the wreck. No attempt was made
to launch the life boat, as such an effort, in the face of all the terrible
conditions that prevailed, the awful sea and the distance of the
vessel from shore, would have been foolhardy in the extreme, and
would only have added to the death roll the lives of the life-savers,
without accomplishing the saving of a single life.
The mortar gun, however, was made ready with all possible
dispatch, though it was recognized from the first that no gun could
carry a line that distance in the face of such a terrific gale. But the
gun was charged, the charge exploded and out over the foam
covered sea the shot line sped, only to fall spent in the wild sea more
than a hundred yards short of the ship. The uselessness of further
attempts along these lines was apparent, but the life savers again
made ready with another line, hoping that the pounding sea would
with the rising tide force the bark over the sand bar and nearer the
shore. But it now became evident that the ship was so firmly impaled
upon the treacherous shoal that there was no hope of her being
moved by sea or tide, and in fact it was but a short time later that
there came to the shore evidence that the vessel was beginning to
break up, as portions of her upper works and even some portion of
her cargo could be seen between shore and wreck and was being
driven shoreward by the savage seas that broke in fury over the
sand bars. Just then two men were seen to leap from the deck
house on the after part of the ship, into the roaring torrent that raged
about them; for a moment they were lost to sight in the suds of the
churned up sea, then as they appeared upon the surface they were
seen to seize upon pieces of wreckage that floated near them; to
these they clung desperately, at one moment buried from sight in the
salt spume, the next moment rising to the top of a foam crested
wave rushing onward and almost wrenching the plank to which they
clung from their grasp; when more than two-thirds of the distance
from wreck to shore had been covered the wreckage which had
borne one of the sailors appeared upon the top of an oncoming
wave, but there was no human form clinging to it; nature had made
its last long struggle and the poor fellow had released his grasp and
dropped helpless into the wild sea that covered him forever.
The other man still retained his hold upon the frail support that
bore him shoreward; now it was a question of only minutes, would
his strength stay by him, could he hold on a moment longer, should
his rapidly waning strength desert him now and his grasp relax he
would be swallowed up in the sea instantly and no power could save
him. Men rushed to the edge of the tide, even into the surf, grasping
hands as a living rope; on came man and wreckage, as the broken
water smashed down upon the sands strong hands reached out and
seized the sailor before the relentless undertow could draw him back
into its cruel grip. He was saved, but he was the only one of the
whole ship’s company of fifteen men.
Night shut in but we kindled a huge bonfire on the beach and
patrolled the shore up and down all night, hoping that some other
unfortunate might be brought in with the tide. Long before daybreak
the shore for miles was strewn with flotsam and jetsam from the
wreck which was being constantly rended by the sea; bags of
sumac, bags of nuts and even casks of wine mingled and washed
together in the surf, but not a human body, alive or dead, was cast
up by the sea. Every watcher on the beach believed that the ship
had been entirely broken up, and that every person on board had
perished. Still we lingered awaiting the coming of the sunlight; when
it did come and objects were visible for any distance, what was our
surprise to see the after deck house of the bark still in place, and a
portion of her bow and the stump of her broken foremast still
standing; the huge waves were still smashing over her furiously. If
we had been surprised at seeing any portion of the hull still standing
above the water, we were dumbfounded when we saw a man jump
from the bow near the broken foremast and swim through the fiercely
raging waters to the after deck house, and in the face of the
pounding sea that beat upon him, climb under a sheltering piece of
the cabin that had not been torn away.
That a human being could live through such a night as that, in
that icy water and retain his hold upon any part of those ice covered
timbers and sea swept wreck seemed incredible. But the chapter of
horrors was not yet complete in this wretched disaster. Piece by
piece the sea tore away what remained of the wreck until nothing but
the deck house roof remained above the sea; as wave after wave
hurled itself against the battered top it was seen to lift from its
fastenings that held it to the submerged wreck and the next wave
bore it off far into the thrashing sea. Then we saw, clinging to the few
remaining pieces of the frame of the deck house, with a death grasp,
four members of the ship’s company, but endurance had reached its
limits and they were quickly swept from the last possible thing to
which they could cling, and though they made a last heroic effort to
seize some piece of wreckage, two of them did succeed in grasping
some floating object and were carried for a considerable distance
towards the shore, but their long and terrible exposure had so
exhausted and chilled them that they could make no further exertion
and the mad sea claimed them.
Some adverse criticism was directed against the men of the Life
Saving corps, for their failure to rescue these sailors, but it was
wholly unmerited as the Life Savers did everything in their power or
that it was possible to do under the circumstances.
It was one of those terrible marine disasters, of which there are
many, where man is a plaything in the grip of the sea when the storm
king is abroad in his might.
THE JASON
Late in the afternoon of December 5th, 1893, the patrol of the
coast guard of Life Savers of Nauset Beach, a few miles south of
Highland Light, during a momentary break in the furious storm driven
snow, saw the outlines of a great ship, not more than two miles from
the beach, heading towards the Port of Boston under close reefed
lower topsails, struggling with the grasp of giant waves which
threatened every moment to overwhelm her. Soon again the
increasing gale hid all the turbulent waters of the great sea. The
winter night came on with rapid pace. All along the shore each Life
Saving crew had been warned by telephone to watch with increased
vigilance for a disaster which their experience had taught them was
inevitable. Not a coast guardsman slept that night. All the boats and
beach apparatus were made ready for instant use; the patrol
watches were doubled; the men at their stations stood ready
dressed, anxious, dreading but ever watchful and ready for the call
which they expected to come at any moment.
At 7.15 a surfman of the Pamet River station rushed breathlessly
and excitedly into the station and shouted, “She is ashore, half a mile
north of this station.” All the stations were immediately notified. Then
out into the storm and darkness and the blinding snow, along the
gale swept beach where the flying sand cut their faces like knives,
toiling through the yielding sand with their mortar guns and boats,
hoping to reach the scene of the disaster ere it was too late, the Life
Savers hurried. Chips and logs along the shore were gathered
together and a huge bonfire kindled that those on the ship might
know that every human effort was being exerted to aid them. By the
glare of the light on the shore away over there in the awful night the
faint outlines of the doomed ship could be seen, her great white sails
being torn to shreds by the savage fury of the winter storm. Great
torrents of gale driven sea swept her decks every moment. Her
broken masts fell with a crash to her decks. Soon her iron hull was
twisted and wrenched asunder; through her rended decks and
battered sides floated portions of her cargo to the shore. The cries of
her drowning sailors could be heard above the fury of the storm. The
mortar gun of the Life Savers thundered again and again. The shots
sped true to their mark and the life lines fell across the ship’s hull,
but her men could not reach them, so madly rushed the waters
between. Soon a surfman saw a dark object thrown up by the sea; it
was a human being. He was quickly taken up by willing hands and
hurried to the station, restoratives were applied and soon he was
able to tell the story of the wreck:
“Our vessel was the British ship Jason, Capt. McMillan. We were
on a voyage from the East Indies to Boston with jute bales. We did
not know our position until we saw the land at four this afternoon. We
tried, by crowding every sail upon the ship, to weather Cape Cod; we
failed. There were 27 officers and men in our ship’s company. I am
the only one that lives; I saw all my shipmates perish when the
mizzenmast fell.”
WRECK OF THE JASON

Like many another shipwreck the irony of fate pursued this ship’s
company, when her keel was driven into the sand bar by the force of
the mighty waves which hurled her forward, the only spot upon the
whole ship which seemed to offer a place of refuge from the boiling
surf which tore across her deck was the mizzenmast. Into the rigging
of this spar every man hurried except the one man who was saved.
He was swept from the rail before he could gain a foothold with his
shipmates; but what they had hoped would be their haven of safety
was their doom. Scarcely had they climbed above the maelstrom of
rushing waters when the mast went down with a crash into the sea,
killing many of the sailors in its fall and drowning the others in the
wreckage. The foremast stood unmoved by the winter’s storms for
many weeks. Could this unfortunate crew have reached this portion
of the ship many of them would have been rescued on the following
day.
Out there today when the tide is low, protruding through the
sands of the bar and the white caps that wash them, are the broken
fragments of the sunken ship looking like tombstones in the village
churchyard. All along the shores of this wind swept and sea washed
coast those half submerged and silent sentinels remind us that up
and down this sandy reach the ever moving sea has covered
hundreds of those heroic men who have gone down in ships on the
great sea.
LOSS OF THE STEAMSHIP
PORTLAND
Among all the terrible disasters which have made the dreaded
shores of Cape Cod known to mariners the world over, probably the
worst of all was the loss of the steamer Portland, which sailed from her
pier in Boston, on the evening of November 26th, 1898, on one of her
regular trips to Portland, Maine, and before midnight of the following
day her broken timbers, cabin fittings, large quantities of cargo and
dead bodies lined the outer shores of Cape Cod, from Highland Light
to Chatham. Not a person of her 175 passengers and crew survived
the disaster.
The awful hurricane which swept the coast of New England that
fateful Saturday night and Sunday was the worst in the memory of
living men; the wind attained a velocity of approximately one hundred
miles an hour.
When the Portland steamed out of Boston Harbor on that eventful
Saturday night her captain did not anticipate that the storm would be
more severe than the ordinary winter gale. She ran quickly down the
smooth waters of the harbor, out by Boston Light, the gale increasing
every moment. She passed Thatcher’s Island and on towards Cape
Ann; she could have made Gloucester Harbor, but her master hoped
the storm had reached its worst; not so, for every moment it grew more
furious; the lights along the coast, one after another, were now blotted
out by the ever thickening snow, the great seas ran riot in the bay. Now
it was too late to turn back; the ship plunged into the wild seas that
rose like mountains before her. To have attempted to turn the ship
about with her high superstructure when she would have fallen off into
the trough of the sea would mean her speedy destruction. On she
staggered in the inky darkness of the wretched night until the fury of
the gale and sea checked her further progress; then their only hope lay
in being able to keep the ship’s head towards the wind. All through the
long night and far into the next day, Sunday, the ship reared and
plunged in the mad sea, slowly but surely every hour being carried
nearer the lee shore of Cape Cod, drifting helplessly but ever with her
bow to the sea. At 4 o’clock on the afternoon of Sunday the Life
Savers at Race Point Station heard two distinct blasts of a steamer’s
whistle, sharp and piercing; at 10 o’clock that night the patrolmen from
stations south of Race Point came upon great masses of broken
beams, deck-houses, furniture, boxes and barrels of freight and
several dead bodies.
It is believed by men on the coast familiar with storms and tides
that the whistle heard by the Race Point Life Savers at 4 o’clock was
the last despairing cry sent up by the doomed ship before the sea
engulfed her and those on board, and that between that hour and 7
o’clock that night the ship’s total destruction was accomplished.
It is no doubt a fact that the ship was held to her course until
suddenly her steering gear was torn away by some huge sea more
vicious than those before, she immediately fell off into the trough of the
sea, and amid the crash of broken timbers and the thunder of the awful
sea the ship went down with all on board.
There has been much speculation and prolonged search by the
government and others to determine if possible approximately where
this ship was swallowed up in the sea; the location of this terrible
disaster has never been satisfactorily determined, but there is no
question in the minds of sea coast men but that this ship went down
somewhere between 8 and 12 miles north of Highland Light.
Out of the entire company of passengers and crew which went
down with the ship only 60 bodies were recovered. Some of those
found were fully dressed with life preservers upon them, indicating that
the wearers knew that their chances for life were slight indeed. Other
bodies were entirely nude when recovered, showing that some of the
passengers had evidently retired to their staterooms in the earlier
hours of the voyage and were made so ill by the terrible pitching and
rolling that they made no exertion to dress themselves before the ship
went down.
It is believed that no less than 500 human lives were the sea’s
death toll in this awful hurricane that swept the shores of Cape Cod
and Massachusetts Bay in that frightful storm.
This disaster will pass into the annals of Cape Cod’s shipwreck
history as the one which concerned the greatest loss of life from a
single vessel.
The fury of such a gale can hardly be understood or appreciated
by any one not having had personal experience with sea coast storms.
As far as the eye could reach on that Sunday morning over the wild
sea not the least bit of blue water could be seen for a distance of two
miles from the shore; the whole ocean was a mass of seething foam;
this driven shoreward by the gale would be caught from the beach by
the wind and blown skyward high over the towering bluffs, then swept
inland and break like bursting soap bubbles in the fields hundreds of
yards away.
x( Where wreckage first landed from S.S. Portland Sunday
night.
P Place five miles N. E. of High Head Life Saving Station,
where it is thought by all coast men the Portland went down.
Such was the force of this hurricane of wind that every window
pane on the ocean side of our house (the Signal Station at Highland
Light) was blown in and smashed into a thousand fragments. Men
exposed to the full force of the storm were blown from their feet and
hurled about like blocks of wood.
Men of the Life Saving service were exhausted by their exertions in
trying to cover their beats, and several of them were completely
unnerved by their frequent trying experiences in dragging torn and
sea-washed bodies from the surf. There were cases where some of
the men of this service were made almost nervous wrecks by their
almost nightly contact with the disfigured and unfortunate victims
thrown up to their feet by the sea.
Destruction widespread on land and sea was the result of this
fearful storm.
Never had its like been seen before.

* * * * *
My daughter for a number of years was my assistant and the
following story, which originally appeared in the New York World, may
be of interest in this connection:

Você também pode gostar