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|:| Tycho Brahe Parsed Corpus of Historical Portuguese
|:| Document ID: c_001
|:| Encoding: UTF-8
|:| Last Saved: 31.10.2006
|:| Title: Cartas, Cavaleiro de Oliveira
|:| Author: Cavaleiro de Oliveira
|:| Version: Simple Text, for Automatic Tools
|:| Edition Type: Edited text (from source text with edited orthography)
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[ letter (author: CO)]

[ title ] 1. |
A Mademoiselle de M. *** a qual pediu o retrato do amor

O amor puro, belíssima Genoveva, é muito raro. A ocasião de encontrá-lo,


para vos fazer a pintura, é muito dificultosa. Não sabeis que o amor passa em
ideia e que, sendo semelhante à visão dos 5 espíritos, toda a gente fala dele,
talvez sem haver no mundo quem o conheça? Se o vosso coração fosse tão meigo como
a vossa alma é bela, pode ser que encontrásseis em vós mesma as circunstâncias
necessárias para formar o seu original, porém, 10 infelizmente para o amor, vejo
que o não quereis conhecer senão no retrato. Se vós não amais, que é que
pretendeis saber? O amor é um mistério impenetrável para os que não seguem a sua
religião. Devendo porém obedecer-vos, farei a pintura, e 15 ditoso o amante que
souber mostrar-vos os defeitos dela, achando nos vossos afectos os meios de emendar
os meus erros aperfeiçoando a obra.
Enquanto vos não achais amplamente instruída nesta matéria, é mui
conveniente saberdes que o amor não é das coisas em que se requer grande
entendimento. Este parece que não é necessário aos empenhos que governam o
coração. Muitas vezes o grande juízo não serve sòmente para perder as suas 5
negociações. Os homens que melhor discursam são pela maior parte excelentes
farsistas, porém, malíssimos amantes. O que melhor representa a acção do rei é em
si mesmo um vilão. O que melhor vos figura a virtude dum santo é ordinàriamente um
10 grande pecador. O que perfeitamente imita o valor dum herói é quando muito um
cobarde. O que exagera melhor em aparências a grandeza do sábio é realmente o mais
ignorante. O amante que em agudíssimos discursos vos explica os seus afectos 15 é
quase sempre o mais falso. Fora do teatro despem-se todos das boas qualidades,
perdendo-as com as acções. Os homens que dizem sempre conceitos são discretos, mas
não amam. O amor sincero e verdadeiro inspira certos tormentos que nos obrigam 20
a emudecer e a suspirar. Não vos enganeis, vos peço, com esta qualidade de gente.
O mundo está cheio destes amantes ralhadores que, falando muito, amam pouco e que,
sem se moverem dos afectos com que se explicam, não fazem mais que 25 subtilizá-los
de agudezas para renderem à discrição a inocente simplicidade que os acredita.
Quisera dar-vos uma regra para conhecerdes estes representantes do terno, porém
como vos aproveitará o documento sem que vós sejais verdadeiramente sensível e
costumada à ternura? Vede se vos podeis sujeitar a ela, e julgai que não seria
delito persuadir-vos a deixar sentir em vós mesma uma parte do pouco ou do muito
que quero dizer-vos. Pesai bem as 5 minhas palavras e consultai o vosso coração.
O meu se satisfaria descobrindo quem executasse metade do meu pensamento, e se o
comércio fosse convosco, adorada Genoveva, com muito menos se contentaria o
coração. Suponde que nada disse. Eis 10 aqui o que é amor, ou pelo menos eis aqui
como eu entendo que deve ser.
Quando o amor ocupa uma alma deve ocupá-la toda inteiramente. Nesse caso é
puro, vivo, ágil, e tão espirituoso como ela própria, introduzindo-se 15 no coração
sem corrompê-lo e elevando o entendimento sem transviá-lo. Contente consigo,
contempla-se e medita-se em continuados exercícios. Quanto mais se conhece, quanto
mais deseja recohecer-se, e quanto mais se examina, mais se 20 goza.
O amor é um encanto que eleva o homem superiormente, descobrindo-lhe na
sublimidade a que o conduz a vasta extensão de gostos e bens, ignorados dos que não
sabem amar. A imaginação desse 25 homem está sempre cheia, sempre contente, e
sempre fixa. O seu espírito está sempre divertido, o seu coração sempre terno.
Quanto mais ama mais quisera amar; não há cousa mais dilatada, mais gostosa, nem
mais sensível, que os seus desejos; coisa 25 alguma há mais deliciosa que a sua
alegria, nem mais penetrante que a sua ternura.
À sua curiosidade nada escapa, à sua vigilância nada se opõe, porque à
sua actividade nada suspende. Em toda a parte e em todo o tempo descobre objecto,
da mesma forma que o quadrante 5 encontra o pólo. Sempre o vê presente, sempre o
estima: buscando-o, seguindo-o e contemplando-o, o adora sempre. O contentamento
do amor é o amor em si. Amar por amar e sem cessar é o seu termo. De todas as
paixões e de todas as virtudes a que 10 mais se contenta consigo própria é o amor.
Quando o amor tem produzido amor tem feito tudo, e não quer mais. Quem pede mais
merece menos. Quem se busca a si mesmo no seu amor é indigno do amor do outro:
quem quer enganar os gostos 15 perde-os. A desordem dos sentidos causa ao amor o
mesmo dano que o excesso do vinho comunica à razão. As delícias mais inocentes e
as mais puras são as mais suaves, as mais sensíveis, as mais engraçadas, e as mais
permanentes.
20 Quando a extravagância dos sentidos domina, o amor fenece, e, se se
conserva, é falso, usurpando o título que lhe não toca. Neste caso é frágil,
injusto, inconsciente, e tão corrupto como o princípio de que procede. Os
contentamentos do amor puro são de outra ordem: agradar e encantar é a sua
profissão.
Um coração que sabe amar, não sabendo outra coisa, sabe tudo. Firmando-se
no seu objectivo, 5 acha-se sempre nele achando-se em toda a parte. Não há coisa
que o embarace, que o sobressalte, que o canse, que o dissipe, ou que o desgoste.
Eleva-se e prosta-se, aumenta-se e diminui-se, aflige-se e alegra-se, seguindo as
impressões do seu objecto. 10 Não há camaleão em que as cores introduzam mais
diversidade.
Se à sensibilidade dum coração corresponde ditosamente a inteligência que
se costuma formar entre dois, sendo ambos igualmente feridos, meigos e 15 fiéis,
não creio que haja maior bem que o da harmonia. Ela se representa na minha ideia
como uma dita sobrenatural e em comparação. Se algum dia chegardes a experimentá-
la, conhecereis verdadeiramente o que é amor; enquanto porém o quereis 20 ignorar,
continuo a dizer-vos como imagino que devem ser os sentimentos deste suavíssimo
comércio.
Dois corações bem feridos e bem conformes são inseparáveis. Na ausência
tudo fala deles, no silêncio tudo por eles fala. Quanto mais ocultos os 25 seus
deleitos, mais são sensíveis: quanto menos se perceba a sua alegria secreta, mais
se aumenta. Estes corações nas companhias públicas estão como se estivessem sós;
entendem-se, adivinham-se e explicam-se: a sua atenção é fiel, a sua inteligência
30 finíssima e a sua linguagem tão particular que exprimindo-se na presença de
todos só eles a comprendem. Uma das coisas singulares, que admiro em entendê-las,
é a muda loquela de dois corações que se comunicam sem falar. O amor orna a pessoa
de cifras dificultosas. Todos as vêem, porém não há mais do que um que tenha a
chave. Um movimento de olhos, um gesto, um sorriso, um aceno, e um suspiro são
frases que declaram muito 5 a quem as sabe entender. Os medíocres sinais desta
natureza são discursos dilatados que enfeitiçam, que entretêm e que ocupam.
Pensamentos invisíveis inflamam os desejos secretos de dois amantes verdadeiros.
10 No seu comércio e na sua corespondência observam-se coisas raras, vendo-
se melancolia sem tristeza, inquietação sem moléstia, desordem sem agitação,
tresvarios sem loucura, pensamentos sem distracção, gostos sem pesares, suspiros
sem dor, 15 e furores sem desesperação. Tudo o que entendem o entendem por si
mesmos. Vivem no mundo como se o mundo não fosse feito para eles. O seu amor é um
êxtase que os eleva, que os encanta, e que os suspende. O mesmo amor lhes faz
imagens que 20 representam tudo aquilo que eles querem, que dizem tudo aquilo que
eles consideram, e que exprimem tudo aquilo que eles imaginam.
O coração amante é uma alma segunda e uma vida multiplicada. Os seus
suspiros dão movimento 25 ao coração amado. E um ar celeste, cuja influência
governa os pensamentos, inflama os desejos e aumenta a ternura. É uma harmonia que
alegra as almas, que as cativa e que as encanta.
O nome da pessoa amada é o governo do coração amante. Quando se pronuncia
o nome, o coração se inquieta, se alegra e estremece; repete-o em segredo, e forma
o retrato do objecto em um instante. Este nome é a melodia harmoniosa que 5
penetrando pelos ouvidos trespassa o coração. Enquanto se ouve esta música não se
entende outra coisa. Tudo o que se narra do merecimento das pessoas mais ilustres
se vê e se crê naquela que se ama. O amor é como o maná, em todos os gostos.
10 Duas pessoas que se amam não supõem alegria nem felicidade senão no seu
amor. Tudo o mais lhes parece um nada, porém um nada muito horrível. O amor
destas pessoas é uma imensíssima fortuna que os defende de toda a qualidade de 15
desgraças. Os pensamentos recíprocos destes amantes nascem uns dos outros. A sua
origem e o seu curso jamais cessam, conservando sempre a graça da novidade. Não há
coisa mais vasta, nem mais fecunda. As suas palavras são efeitos, o seu coração
vê-se 20 em todas as acções, e o amor ilumina a sua alma assim como a luz ilustra a
nossa vista. Este amor é o sentido perfeito do deleite, o mestre da razão, o dia e
a serenidade da alma. É semelhante à Primavera com cuja qualidade até os próprios
espinhos florescem. O amor é a mais insaciável de todas as paixões: quanto mais
se ama mais se deseja amar. Este é o grande negócio do coração amante; quem o sabe
executar, tudo faz bem. Não vo-lo disse eu, 5 belíssima Genoveva? Cuidei que
fazia o original e fiz uma cópia que não tem semelhança com o amor. Que remédio?!
A posta parte, e se dilato a carta pode ser que daqui a oito dias ainda saiba dizer
menos nesta matéria. Os homens quanto mais 10 avançam em dias mais se atrasam
nesta ciência. O amor puro não anda no mundo, desenganai-vos. Os retratos que se
fazem dele são todos quiméricos. Se quereis conhecer o amor, amai, e se vos
aparecer com outro feitio mandai-me um retrato de vossa 15 mão.
[ signed ] Se pretendo beijá-la não é como amante, vós conheceis o meu
respeito, e sabeis que sou |
vosso venerador

[ date ] Viena de Áustria, 20 de Janeiro de 1736

[ letter (author: CO)]

[ title ] 2. À Senhora Condessa de N. *** Sobre o casamento duma dama alemã,


que se casou com um italiano

Sim, Senhora, o que Vossa Senhoria ouviu a respeito deste matrimónio é mais
que certo . O noivo não fala 5 tudesco, e a noiva não sabe uma só palavra de
italiano. O negócio parece curioso, porém, perguntando-me Vossa Senhoria o que
penso dele, digo-lhe que o caso para mim tem pouco de extraordinário.
O amor é o pai de todos os homens, e todos os filhos assim o devem
entender. É verdade que o 5 amor ilícito, necessitando nas suas acções de máscara
e de disfarce, necessita ao mesmo tempo de saber a língua do país, ou para melhor
dizer a da pessoa a quem deseja comunicar-se; porém quando o amor é conduzido por
Himeneu, sem cuja 10 companhia é mal recebido das gentes honradas, basta-lhe
deixar-se ver para se fazer entender, e todo o mundo fala por ele. Em qualquer
língua que se explique logo se sabe o que procura, e a mulher mais honesta, logo
que ele se declara sem crime, o 15 entende.
A razão que há para isto é clara. A linguagem do amor é uma tradição
sincera e muito fácil de que a natureza é depositária, e esta não deixa jamais de
revelar às mulheres a inteligência dessa 20 linguagem logo que elas necessitam de
entendê-la. Além disso o matrimónio tem expressões em que são desnecessários os
intérpretes.
Não se admire pois Vossa Senhoria de que duas pessoas estrangeiras e de uma
língua tão diferente se 25 resolvessem a casar, e creia como um artigo de fé
natural que nesta qualidade de mistérios todo o mundo fala a mesma língua. Cuidei
eu que Vossa Senhoria sabia que a gente moça, casada, tem seus modos particulares
de se entender, independentes de toda a 30 qualidade de línguas que há na terra.
Entre todas as divindades o amor é a única que não mudou de serviço: o seu
culto é agora o mesmo que foi no princípio do mundo: ainda se lhe dedicam os mesmos
votos, ainda se lhe fazem os mesmos sacrifícios, ainda se lhe oferecem as mesmas
vítimas, e quando dois amantes querem assistir juntos a estes mistérios ocultos,
cheios do deus que os possui, compreendem em um momento todas as cerimónias 5 e
tudo o mais que se pratica em honra sua.
No presente caso não falta quem argumente dizendo: os nossos casados não
falam a mesma língua, logo não se entendem. Respondo a isto: que, se se não
entendem de dia, se entendem de noite. 10 Dessa forma se entenderão na ametade da
sua vida e isso não é pouco para gente casada. Quantos maridos conheço eu e
quantas mulheres conhece Vossa Senhoria que não desejariam mais? É infinito o
número de casados que, falando a mesma língua, se não entendem 15 em toda a vida.
Tenho para mim que este matrimónio será ditoso para ambos, porém muito mais para o
marido, porque, podendo gozar das carícias da noiva, está livre de ouvir
despropósitos à mulher.
20 Corram críticas sobre o noivado, fervam sátiras sobre o casamento, este
será sempre o meu parecer. Se Vossa Senhoria o não aprova, aprove a firmeza, a
sinceridade e a veneração com que protesto ser de Vossa Senhoria |
Muito venerador

[ date ] Viena de Áutria, 30 de Janeiro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 3. |
A Madame de W. F. que estava desesperada porque sua irmã se fez religiosa

Porque sua irmã de Vossa Mercê se fez religiosa, é necessário que Vossa
Mercê se ache desesperada? É possível que se não possa viver contente neste mundo
sem ter nela uma irmã? Cuidava eu que não era 5 desgraça para Vossa Mercê perder o
justo receio de vir a ter um cunhado e que seria do seu interesse não ter com quem
repartir a sucessão paternal. Tanta lágrima, para quê? Vossa Mercê deve saber
que não é permitido chorar sobre a vítima, e que é indecente 10 assistir aos
sacrifícios com vestido de luto. O pranto não pode servir de remédio. As queixas
de Vossa Mercê são faltas de razão. Que agravo fez a Vossa Mercê sua irmã seguindo
cristãmente as vozes de Deus que a chamou? Se Vossa Mercê fica mais rica com a sua
falta, 15 para que se quer tornar menos bela do que é, fazendo-se uma chorona?
Vencer o mundo, fugindo aos deleites, é grande erro da sua irmã na opinião de Vossa
Mercê ? E a culpa de Vossa Mercê não saber governar neste caso a sua paixão como a
chamaremos neste 20 mundo, minha Senhora?
A ausência da Senhora Matilde não deve ser sentida nem chorada. É verdade
que ela morreu para a família, porém de morte voluntária, preciosa diante de Deus,
e reputada civil na opinião dos homens, porque se não pode fazer coisa mais
honesta, nem que obrigue mais aos que ficam do que a acção generosa dos que assim
se despedem deste mundo.
5 Consinta Vossa Mercê em atenção ao Esposo, de que a alma dela se namorou,
na separação ditosa que fez do humano pelo divino. Isso fará que a sua fé, mais
viva do que a nossa, aumente a de Vossa Mercê gozando ela pàcificamente da que a
conduziu a um estado tão 10 perfeito.
É possível que os pesares venham sempre acompanhados e que os desgostos
façam aliança para provarem a paciência de Vossa Mercê ? Como foi esse descuido?
Quem deu ocasião a perder Vossa Mercê outra 15 prenda tão amada? Ainda o não posso
crer. Não me atrevo a pronunciar-me em semelhante desgraça. É verdade que fugiu o
seu papagaio? Será isso certo? Será crível que não vejamos mais o Portugal Real ?
Quem passa ! Que pena! que desconsolação! 20 que saudade! e que pecados! Um
animal cheio de sentimentos e de espírito, um louro que compreendia todas as cores,
um perro que falava tantas línguas, um To-carocha cujo merecimento, se fosse
conhecido, lhe podia dar um lugar na Academia, 25 um bruto tão aplicado que por não
estar ocioso roía os móveis, um feiticeiro tão belo que nos dizia, aqui sem
gazetas, quantas vezes el-rei saía à caça! Fugiu este bem, este tesoiro, este
prodígio? Oh desgraça!
30 Tendo informado da sua ausência a todos os que o conheciam, há muitas
opiniões a respeito da sua retirada. O parecer mais comum me parece o mais
acertado. Assentou-se que o papagaio partiu para a América, a visitar os parentes.
Assim creio, porém temo que a visita seja dilatada. O animal tem muitas
qualidades estimáveis, fará grande figura no país natalício, e não é natural que os
parentes e os amigos o deixem sair outra vez. Uma esperança 5 nos fica, porém, que
pode vir a efectuar-se para nossa consolação. Não há país sem invejosos, pois que
os não há sem ignorantes. Esses, afrontados e ofendidos com os merecimentos do
nosso papagaio, tenho por sem dúvida que o desgostem e que o 10 façam voltar em
bolandas para a nossa companhia. Tudo pode ser.
Observo entretanto em quase todos os amigos de Vossa Mercê uma oculta
alegria maliciosa causada pela fugida do papagaio. Talvez que se julguem muitos 15
deles com as qualidades do pássaro, aspirando a servirem a Vossa Mercê no seu
lugar. Talvez que não tendo até agora descoberto outro amante a quem Vossa Mercê
amasse, se livrem todos do ciúme que ele causava e das invejas que fazia. O certo
é que por causa do 20 bruto tem Vossa Mercê feito muitas injustiças aos racionais
que a idolatram. Estas sem-razões são mui ordinárias no mundo, e deixaria o Amor
de ser monarca se preferisse agora com leis novas a discrição dos beneméritos à
dita dos ignorantes. Não são o amor 25 nem a fortuna os que correspondem aos
merecimentos. Quais são os que podia ter o 5 papagaio para ser o único vivente
que lograva os seus agrados, sendo certo que teríamos a Vossa Mercê por insensível
se não víssemos recompensados os serviços do papagaio, ainda que com grande
injustiça, mercê de afectos e carinhos? Não me meto mais no que me não toca.
Asseguro a Vossa Mercê que sinto a desgraça do papagaio e que estimo a felicidade
da Senhora Matilde. Pela de Vossa Mercê farei eternos votos, sendo da sua 10
amabilíssima pessoa Firmíssimo, venerador

[ date ] Viena de Áustria, 26 de Fevereiro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 4. |
Ao Reverendíssimo Padre Dom Joseph Augusto, para se fazer por ela uma
tradução italiana

Amigo e meu Senhor. Não há coisa tão fácil como a que Vossa Mercê me
ordena, porém para mim 15 não há coisa que seja mais dificultosa presentemente. Só
o gosto de obedecer-lhe poderia fazer lembrar-me dos termos chúlos, extravagantes e
significativos com que em Portugal nos explicamos. O fim para que Vossa Mercê me
obriga a fazer este papel 20 terá o seu efeito. Esse presumido estrangeirote, que
promete traduzir era italiano todo e qualquer discurso que se fizer em português,
sabe tanto desta língua como eu da alemã, com a diferença que neste caso não sei o
que os brutos podem falar, e ele no mesmo caso ignora o que os homens podem dizer.
Creia Vossa Mercê que o seu compatriota se há-de ver em 5 tremuras com este papel,
porque não é só impossível que o traduza, porém incrível que o entenda. Se o
entender é português, e se o traduzir é o Diabo. Um discurso sem fundamento é uma
miscelânea sem tom nem som e não pode ser senão monstruosa; 10 porém que outra
coisa pode esperar um homem que se resolve a parir sem conceber?
Para dar trela a Vossa Mercê não faço mais do que queimar a minha
paciência, e ainda está em ver vo-lo-emos (sic) o que lhe hei-de dizer. Para lhe
dar 15 notícias do mundo passaram-me por alto as das gazetas. Se as intento ler
agora, lá vão os exdrúxulos com o Demo, com o italiano, e com o francês das mesmas
gazetas. Para dizer a Vossa Mercê o que se passa nesta terra é o mesmo que pôr-me
cachorros na cabeça, 20 porém, a falar a verdade, antes quero este C na minha que o
C que os do país trazem na sua. Informar da cidade de Viena a quem vive nela é o
mesmo que mostrar o lagarto da Penha a quem já o viu. Para contar a Vossa Mercê o
que eu passo é 25 necessário tomar entre dentes um pardal de bico amarelo, que
fazendo-me raivar, anda sofrendo gaifonas a quem me não ganha de mão, mas que me
ganha por unha. Deixemos histórias da carochinha, e entremos verdadeiramente a
discorrer. Aí torce a 30 porca o rabo, dizia o outro, e aqui para nós eu digo o
mesmo. Parece que alguma bruxa feiticeira está dando figas ao meu entendimento.
Ando daqui para lá, dando tratos ao meu juízo, e não posso descobrir um assunto que
tenha dois dedos de propósito para esta carta. Há poucos dias que falámos nos
camarões de Vila Franca, e por eles me estou lembrando da água da Fonte da Pipa.
Vossa Mercê sabe que na minha terra nem uma nem outra coisa é peixe 5 podre. Não
cuide Vossa Mercê que dar agora comigo no Ribatejo, ou que passar-me para a Outra
Banda seja um despropósito; pode ser que a mudança de clima me faça ditoso para
servir a Vossa Mercê mais que seja de narizes. Que galante tradução será a do 10
nosso italiano! Quem me dera já vê-la!
Diz-se que era uma vez Trafaria, lugar coberto de areia, onde andando eu à
caça encontrei uma mocinha, que se chamava Iria, bela como as mesmas rosas,
preciosa como o ouro, e melhor que 15 todas as alemãs, compreendidas as tudescas.
Estes versos prosaicos ou esta prosa de pés quebrados, tortos, cegos, mancos e
estropiados que encerram o seu tanto duma história verdadeira, serão o assunto da
presente carta.
20 O outro dia quando contei a dita história em uma assembleia, de feias,
se levantaram todas nos bicos dos pés em defesa da formosura do país. Foi a
primeira vez que vi executada a generosidade de acudir pelos contrários. Vossa
Mercê sabe de que assembleia lhe 25 falo. Conhece a dona da casa que tem o mono
pregado na sua mesma cara. Conhece a cunhada, que ainda estando nos seus treze não
logra o privilégio dos poucos anos. Conhece a prima, pela qual se pode dizer que
às três o Diabo as fez. Conhece a 30 condessa Arnolda, casada do bico dos pés até
à cabeça com o Crica da Sé, que a tem feito enorme chegando-lhe a roupa ao couro
infinitas vezes, não porque ela o mereça, mas porque ele se diverte nisso tomando a
gaita. Conhece a condessa de Laval, que sem embargo de andar com os pés para a
cova, se mete de réstia com a mocidade, e se lhe tocam na tecla da velhice, meninas
de Montemor vinde abaixo falar-nos. Esta dama tem espírito, porém não pode 5
remediar com ele o espírito maligno da sua figura. Conhece a baronesa Niberga, de
quem dizem que foi ao Jordão, por conservar na idade que tem muitos laivos da pouca
beleza que tinha. Nunca fui amigo de mulher gorda, e uma senhora tão grossa 10 ou
tão grosseira, que se não pode meter em camisa de onze varas, é um medo para mim e
uma coca para as crianças. Não sei que a formosura seja sebo, e sei que isto é
sòmente o que a gordura produz. Esta dama é um pouco fedorenta, e eu tenho 15
antipatia natural pelos maus cheiros. Conhece a baronesa de Angomar, verdadeira
Cirínico de penedo, que repotreada no canapé parece a morte do adro ou o mirrado de
Santos. Não há dama que meta mais à bulha o bom recebimento 20 que deve a política
aos estrangeiros de condição. Cada roca tem seu uso, e cada porca seu parafuso.
Não há panela sem testo. Conhece Madame Charpel, a quem os males de seu marido ou
os que lhe vieram por outras vias têm posto à dependura, e que parecendo a preguiça
do Brasil anda sempre fazendo 5 mesurinhas à Serpe, recuando para trás como o
caranguejo. Esta dama faz belas partidas. Além de poder pregar a partida na
cabeça dum tinhoso, tem boca de praga, e em matéria de honra e crédito das suas
amigas nos faz estalar de riso, fazendo-se-lhes 10 ver a elas o sete-estrelo.
Presume graça, porém tem pouca que não seja carvão de sacaria. Conhece a condessa
de la Fuensilla, e para aqui é que eu não peço lágrimas, porque a sua cara de
choramingas é das caras que defendem as suas pousadas, ou 15 daquelas por quem se
disse: por esta não desejarás a mulher do teu próximo. Este que é, se não estou em
erro, um marido que foi a Lisboa, sei que sabe português. Não lhe mostre Vossa
Mercê esta carta se me quer livrar de que ele me deite alguma pulha. Veio 20 muito
de asa caída, e parece-me que anda fazendo aqui carrapato. Já ouvi que quisera
fazer um calvário, porém não me lembra a razão por que deixou de pregar o calote.
Que bela tradução será a do italiano?
25 Todas estas Senhoras, meu senhor, se achavam na Assembleia quando
contei a minha bela história de Trafaria. Oh boca que tal disseste! Se Vossa
Mercê visse como as deidades gordas, macilentas, velhas e fracas tomaram o remoque,
havia de julgar como eu 5 julguei que quem se queima alhos come. Se ali não havia
cruz nem água benta, confesso que desejei ver-me uma e outra coisa, para me livrar
daqueles Demónios.
- Acaso não há formosura senão em Portugal, 10 senhor Cavalheiro? - me
dizia a condessa de Laval.
- Vous devez être aveugle - me dizia a baronesa Niberga, abafando mais que
de raiva na sua própria gordura.
- Vostra Signoria doveva portare seco 15 una belta dil suo paese - me
dizia Madame Charpel.
- Usted no es mucho civil para damas estrangeras - me dizia a condessa de
la Fuensilla.
Finalmente este ruído de alhos misturados com bugalhos em francês, em
italiano, e em espanhol era 20 uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma à
vista do bárbaro estrondo, que sobre a mesma matéria se fazia em alemão, língua de
que por altíssimas mercês de Deus não posso entender uma só palavra. Vossa Mercê
cuidará que zombo e dirá que tudo 25 isto seria bulha e mais nada: pois convença-se
que foi uma de todos os Diabos, porque, arreganhando-me as damas muito bem os
dentes, me quiseram levantar os da minha boca e por uma unha negra que estive para
me ver em calças pardas.
30 A algazarra que faziam era ainda maior do que aquilo a que chamamos
bulha suja; eu via-me metido na barafunda, desejava tirar as barbas de vergonha
sem dar patacoada, porém, não achando remédio para levar as coisas por bem, foi-me
necessário respingar vendo que vertiam água fora dos 5 testos, e disse:
- Não, Senhoras, não sou cego, nem incivil, nem apaixonado; sou verdadeiro:
e se Vossas Senhorias ou Mercês se quiserem pôr de pachorra e deixar passar esta
trabuzana, ouvindo fazer o retrato de 10 Iria da Outra Banda, veriam que lhes
provava sem ter pevide na língua que não sou dos que vendem gato por lebre. Iria
da Caparica é uma moça tão formosa que, deixando o sol às boas noites, pode fazer
tremer a passarinha às belas deste país. 15 Não nego que a fealdade é comum em
toda a parte, porém mais lindeza do que em Portugal em parte alguma se acha.
- Vossa Mercê nos corta como navalhas - me disse a dona da casa.
20 - Monsieur de Oliveira nos traz já de olho - acrescentou a condessa de
la Fuensilla.
- Isso é já nele manha velha - disse uma das baronesas.
- Que vá brincar para o adro - disse a outra.
25 - Bem aviado estava eu, minhas Senhoras - respondi a todas - se eu
falasse com Vossas Senhorias. As pedras da rua se levantariam contra mim se me
metesse nessa alhada. Referir as perfeições não é o mesmo que comparar as belezas,
e os 30 discursos gerais não podem ofender os particulares que são discretos.
- Vede a lábia - disse às outras a baronesa Niberga - com que nos quer dar,
com o mel pelos beiços depois de nos pôr o sal na moleira.
- Ele é cheio como um ouriço, porém cheio de maldades - disse a cunhada
pela primeira vez que falou, e a prima que até ali estivera calada tomou um pouco
de calor, porém falando por entre dentes 5 não pude perceber o que rosnava.
Disse a condessa de Laval:
- O homem está enfeitiçado com as suas portuguesas e anda de rixa velha com
as mulheres das outras nações; é um mal que vem de longe, e tudo 10 o que diz traz
água no bico.
- Sim, Senhora - disse madame de Charpel - Vossa Senhoria tem razão, e não
há que fiar em cão que manqueja. Monsieur de Oliveira é tão boa caixa de óculos,
que faz narizes de cera para tudo o que 15 quer dizer.
- Vossas Senhorias são parcas em louvores - ia começando a dizer a todas,
quando madame Charpel me interrompeu, protestando que queria pôr na praça as minhas
culpas.
20 - O outro dia - proferiu ela - estava este Cavalheiro, que o não pode
negar, no jardim do Arcebispo de Valença...
- Isso é verdade - disse eu.
- Ali se achavam - prosseguiu a dita madama 25 - a princesa de Valáquia, a
princesa Pórcia e outras Damas da mesma qualidade. Ora não se pode negar que a
princesa de Valáquia é uma deusa na graça, discrição e formosura.
- E diga-me, Vossa Mercê pelas chagas do Duque de 30 Aveiro - respondi eu -
quem é que o negou até agora? Acaso não tem ela uma prova pública: da sua
qualidade no destino com que os fados a submeteram ao poder dum sátiro? Estamos
frescos! Porém que é o que Vossa Mercê quer dizer?
- Quero dizer - continuou ela - que na presença dessa mesma formosura que
Vossa Mercê respeita, e sem atenção pela das outras Damas, pespegou Vossa Mercê a
modo de osga mil injúrias nas belezas de 5 Alemanha, dando uma boa lavagem à
formosura tudesca.
- Isso é falso! Não é falso - dizíamos ambos de dois ao mesmo tempo.
Cuidando o dono da casa que queríamos jogar as cristas, saiu do gabinete e
chegando-se a mim com 10 bastantes inguirimanços, depois de fazer a sua costumada
caramunha, se meteu de gorra onde não era chamado.
- Tenha Vossa Mercê mão desse canto - me disse o conde.
15 - Ponha-se Vossa Senhoria aqui e verá Palmela - lhe disse eu.
- Vossa Mercê levanta-se às maiores na minha casa? - me disse ele.
- Cada um chega a brasa à sua sardinha - lhe 20 respondi eu.
- Que histórias são estas, madame Charpel? - lhe perguntou o conde.
- Para onde o frade deita o capelo que eu lhas diga a Vossa Senhoria -
respondeu ela.
25 Continuando ele a bater mato, perguntou a sua mulher de que procediam os
alaridos que tinha ouvido. Sua mulher lhe respondeu que estava sonhando, e o
marido, crente que dormia, voltou para o gabinete como aqueles que quando vêm 30
buscar lã os mandam tosquiados. Verdadeiramente este conde não é tudesco e não sei
como sofre que a condessa jogue às escondidas com ele. Fazer gato sapato dum
marido é pôr uma mulher em pratos limpos a sua pouca vergonha. Que as senhoras,
alemãs andem fora da ordem nesta matéria, tranca pro transeat; porém que as
senhoras das mais nações as imitem pretendendo de seus maridos o tributo de pagar a
cabra, é para mim pancada de cego que me 5 faz ver as estrelas no meio-dia.
Ninguém diga desta água não beberei, porém, se temos de dar em droga, antes morte
que vergonha. Parece-me que estou já vendo a tradução do italiano!
Apenas o conde se retirou, eis senão quando que 10 madame Charpel me dizia
pegando-me pelo canhão da casaca:
- Senhor Cavaleiro, as damas como eu não mentem.
- O homens como eu crêem outra coisa, minha 15 Senhora - lhe respondi.
- Os homens como Vossa Mercê também cospem para o céu, também dão com os
bodes na areia - continuou ela, fazendo e dizendo muitos despropósitos - também
podem dar com os narizes em um sedeiro. 20 Que as mulheres sejam verdadeiras ou
falsas no conceito de Vossa Mercê é uma coisa que as não põe por portas e é coisa
que a mim nada me importa, porém desmentir-me Vossa Mercê e negar o que disse no
Jardim do Arcebispo é coisa que me dá com um pau na 25 paciência e me faz perder a
estribeira. É negócio que não deitarei para trás das costas, porque a minha honra
andou sempre mui claramente à vista de todos e antes comerei os dedos do que passar
por uma embusteira na opinião destas Senhoras.
30 - Contanto que Vossa Mercê as não exceda - disse eu - asseguro-lhe que
nenhuma se ofenderá de que as imite. Vossa Mercê me quer tirar do bico uma
confissão que lhe não posso fazer. Acuso-me do pecado em que actualmente vivo
murmurando das virtudes das 5 senhoras alemãs, porém digo a Deus minha culpa e digo
a Vossa Mercê que no Jardim do Arcebispo não pronunciei uma só palavra contra as
formosuras de Viena, nem contra as belezas de Áustria.
- É possível - me disse então - que Vossa Mercê se 10 não lembre daqueles
pés com os quais comparou os pés das damas deste país?
Respondi-lhe prontamente:
- Estamos em outros pontos, minha Senhora. - Ainda que eu corresse Ceca e
Meca e Olivais 15 de Santarém, não seria possível cair em que tinha caído à perna
da formosura, tendo-lhe pegado uma vez pelos calcanhares. Agora me lembra, e é
verdade que estando a princesa Pórcia esgaravatando os dentes depois de comer
certos farelórios no jardim 20 de que Vossa Mercê fala, disse entre outras coisas,
em que a sua malícia compete sempre com a sua graça, que não havia fortuna tão
sublime como a de estar aos pés da princesa de Valáquia. Eu me achava justamente
nesse lugar, estendido por terra junto à cadeira 25 em que a dita senhora se
sentava. Mau grado a quem pesar esta felicidade, não sei verdadeiramente o que
respondi à princesa Pórcia, porém como ela é daquelas que nos podem enfiar pelo
fundo duma agulha, fui metendo agulhas por 30 alfinetes, e avivou-se um discurso da
sua parte tão discreto que me vi abarbado para poder tirar nele o pé do lobo.
Lembra-me, como se fosse hoje, que a princesa Pórcia se admirou de que os átomos de
jasmim ou os escrúpulos de neve de que a princesa 5 de Valáquia se sustentava eram
raridades tão preciosas que a subtileza do cristal teria dúvidas para as formar.
Fiz-me moita, porque o culto destas explicações me metia num chinelo e,
como nunca fui amigo 10 de jogar de lombos, estava vendo-me e desejando-me e
pedindo às almas santas que a princesa Pórcia se calasse. Quando Deus não quer,
santos não rogam. A princesa foi batendo o ferro, e eu deixava malhar como se
fosse em ferro frio.
15 Finalmente, descendo a sua locução a certos termos que me foram mais
inteligíveis, disse que os pés da princesa de Valáquia não pareciam pés de Viena.
Eis aqui o que me fez saltar, e caindo na ratoeira lhe respondi que tinha muita
razão 20 adivinhando, pois que os pés da princesa de Valáquia não podiam ser feitos
em Viena tendo ela sido formada em Moscóvia.
- Viu Vossa Mercê nascer esta deidade? - me perguntou a princesa Pórcia.
Já os judeus não estavam todos na Rua Nova quando eu conheci o vidonho da
investida. Foi esta a ocasião em que desejei pôr-me em polvorosa.
- Sim Senhora - respondi.
- Estava Vossa Mercê em Moscóvia? - voltou ela.
30 - Não Senhora - tornei a responder.
Disse-me a princesa que as duas respostas implicavam contradição, e eu
sòmente para tapar a jeira estive para lho negar, porém vendo que deitava tudo de
pernas arriba tomei fôlego e, por não me deixar ir de unhas abaixo, dei mão a tudo
o que me podia deixar insosso. Resolvendo atirar-me ao pego me fiz vivo como um
azougue e, indo responder à princesa a respeito da contradição 5 implicada,
esqueceu-me o recado que levava e, fazendo-me mais branco do que uma parede, vi que
tinha dado com toda a minha discrição em pantanas. Eis aqui uma figura que será
muito bem traduzida em italiano! Quem me dera já ver a tradução.
10 Vendo-me ir como um passarinho e vendo-me perdido como um garraio, fiz
pé atrás e, metendo a mão na algibeira como quem mete mão, ao ferrolho, achei por
acaso a minha folhinha. Ora quem é que diria que nela estava a resposta? 15
Entregando-a à princesa Pórcia lhe disse que não era necessário assistir aos
nascimentos dos príncipes soberanos para sabermos onde e quando tal sucedia, e que
sendo felicidades públicas o que as mesmas folhinhas nos anunciavam podíamos dizer
sem contradição 20 que estávamos ou que não estávamos nos lugares em que eles
vinham ao mundo.
- Vossa Mercê é fino como um coral - me disse a princesa.
- A minha folhinha é a que merece esse louvor 25 - respondi.
- Vossa Mercê é um maganão de esguicho - me tornou a dizer.
- Não o posso negar, minha Senhora - lhe respondi.
30 Em nos vendo fora dumas, somos costumados a rogar a Deus por outras.
Vendo-me são como um pêro, comecei a deitar carapuças à Serpe, e metendo-se-me na
cabeça que a folhinha me serviria de saia de malha em qualquer ocasião perigosa,
meti-me na mais arriscada, entretanto a fazer comparações, porém saí venturoso em
muitas delas, sem saber dizer até agora se foi a fé do pau da barca que me salvou
ou foi alguma varinha do condão 5 que me assistiu. A princesa Pórcia me pôs a
assar, querendo-me fazer deitar os bofes pela boca fora, porém como eu vi que a
princesa Valáquia gostava do debate, tomei a peito a obrigação de diverti-la e a
trouxe-mouxe fui dando conta de mim, 10 considerando sempre em que tinha bem para
pêras.
Perguntou-me a princesa Pórcia onde tinha eu visto os pés da princesa de
Valàquia?
Disse-lhe que os estava vendo pegado às suas pernas.
15 - É bom adivinhar - me disse ela chamando-me traquinas - porém não é
isso o que eu pergunto. Onde viu Vossa Mercê outros pés como os seus é que desejo
saber.
- Em mim e em todos os mais humanos - lhe respondi.
- Maus cães o comam - me disse ela. - Diga-me onde viu mimos tão delicados
e bocadinhos tão doces como os da nossa princesa?
Respondi:
25 - Mimos e bocados doces os das freiras de Lisboa, e para melhores os das
freiras de Santa Mónica. - Assim têm tão belos pés essas senhoras? - me perguntou
a princesa.
- Eu não falo dos pés de freiras, minha Senhora, 30 falo de mimos.
- Ora diga-me, sem zombar, se viu mulheres em algum país com os pés tão bem
feitos, tão pequenos e tão engraçados como os da princesa de Valáquia?
- Sim Senhora - lhe respondi - na minha terra não há coisa que seja mais
comum. A graça, a pequenez, o efeito e depois disso a compostura dos pés das
minhas portuguesas, não é coisa a que eu tenha achado comparação. Uma mulher que
se serve 5 lá do pau e da vassoira tem algumas vezes os pés tão lindos, que as
primeiras Senhoras daqui lhe não podem chegar aos calcanhares.
- É muito isso - me respondeu a princesa - porém saiba que todas essas
mulheres de pé 10 pequenino são inconstantes, mudáveis, cruéis e falsas. Digo-o
diante da princesa Valáquia e não se fie Vossa Mercê em nenhuma.
Como eu vi que a nossa arenga de pés se ia pondo em pés de verdade, fora
machinho que a 15 duvidasse. Quem tem visto flamengos à meia-noite, e quem
aprendeu a jogar a cabra-cega, deve andar com pés de lã nesta matéria da fidelidade
feminina. Que as mulheres tenham pés grandes ou pequenos, isso é outro cantar, mas
que sejam firmes ou 20 variáveis isso são outros quinhentos em que eu não quero
meter-me. Ninguém as calçou que as não borrasse, e os males dos meus burricos me
fizeram alveitar. O gato escaldado da água fria há medo. Queira Deus que ainda
seja viva em Lisboa alguma 25 das que me deram razão para eu dizer tudo isto. Não
há espadana nem casquilho, conde nem duque, taralhão nem milhafre, mecânico nem
fidalgo, come-em-vão nem gato-pingado, que ou por bem ou por mal não tenha recebido
seus carolas da inconstância 30 do sexo, ou que saia, escapulindo-se, do comércio
amoroso sem algum galo na testa, ou pelo menos sem alguns penduricalhos ao pescoço.
Tenho ouvido dizer a tanta gente: babau! e adeus luzes nesta matéria, que fiquei
muito atado, e não quis retrucar ao que a princesa me disse. Vale mais perder por
carta de menos. Muitas vezes se quebram os narizes dando sempre com a testa para a
porta. Como cairá isto bem na língua italiana! Oh, quem pudera já ver a 5
tradução!
Perguntou-me ùltimamente a princesa Pórcia com que é que se pareciam os pés
das senhoras alemãs.
- Aos dos maridos da alfândega - lhe disse logo.
10 - E que animais são esses? - me perguntou ela?
- É gente, minha Senhora, de muita firmeza e de igual peso, e incapaz de
dar com carga no chão por muito grande que seja.
Perguntou-me se não tinha eu outra comparação 15 do seu conhecimento.
Então lhe disse que os pés das damas alemãs e os pés de vento de Viena não tinham
para mim diferença alguma, e que desta forma sendo como as léguas da Alemanha os
pés maiores do mundo, que nem por isso se podia fazer 20 finca-pé em quem os
lograva. Que todas as mulheres, tantas quantas eram, faziam andar os homens em
corropio, os amantes em dobadoira, e os maridos em roda-viva, reservando elas para
si andar como as carapetas. Não sei a graça que a princesa Pórcia 25 achou nestas
palavras, porém sei que às suas gargalhadas fugiu o pesadelo que se tinha
introduzido na princesa de Valáquia desde o meio da nossa conversação, que
certamente era digna de fazer sono.
- Eis aqui a culpa que me acusa madame de 30 Charpel - disse eu depois de
contar toda a história às senhoras da Assembleia - e eis aqui a confissão da mesma
culpa em abono da verdade. Porém a crítica dos pés parece-me que não tem coisa
alguma com as caras ou com os corpos. O pavão é a mais formosa das aves e deu-lhe
a natureza os pés mais horrendos dos animais.
- As senhoras alemãs podem ser belas na sua opinião, sem embargo dos
efeitos que mostram 5 aos nossos olhos. Ora peguem-lhe com um trapo quente, e
vejam como o malicioso se está nas tintas, não dando ponto sem nó, para nos
descoser os negalhos!
Esta foi a exclamação em que rompeu a 10 baroneza Niberga, fazendo duas ou
três cabriolas.
- O melhor de tudo - disse a condessa de Laval - é não bulir mais com a
maça do escaravelho. Sabe-se muito bem que há coisas em que quanto mais se mexe
mais fedem.
15 A condessa não explicou esta coisa, em francês. Oh quem te dera já ver,
ó tradução!
Sendo horas de começar o jogo na Assembleia, se recebeu fàcilmente o
conselho da condessa de Laval, tanto mais que estavam a entrar os 20 cavalheiros.
O primeiro que apareceu foi aquele das pernas de aranha com o nariz de cavalete, de
quem se diz que, tem feito a muita gente o C à unha. O que sei é que tendo muito
bom coscorrinho, joga com tanto medo a arrenegada de vintém como se 25 não tivesse
cinco réis de seu. Este senhor é miserável. Seguiu-se o senhor barão Unhas-de-
fome, que parecendo um santo não é mais que pau carunchoso. Acabava de passar pelo
seu jardim e este ve-nos contando pelos dedos as obras que fazia nele. 30 Este
cavalheiro com todo o seu juízo não deixa de ser impertinente. O outro barão, que
dá sempre com o pé na peia, entrou acompanhado do conde a quem estas senhoras dizem
que deu olhado. Eu o creio porque este fidalgo jamais me parece que foi bem visto
das gentes. O nariz de cavalete assim que o viu lhe pôs a mão pela cabeça,
tratando-o de querido como de costume. O conde lambe os dedos e estas finezas, e
verdadeiramente estes dois homens 5 sós divertem-me mais que a comédia toda junta.
Chegou o nosso pequeno, todo o cheiinho da panela, e já pela escada acima vinha
cantando um menuete novo, a modo de quem assobia às botas. Este pau de cabeleira é
o homem mais polvilhado que vi na 10 minha vida. Com as manhas que tem fará bem de
não tornar a Portugal, porque ainda que ele nos diz que se sabe sacudir muito bem,
creio que lá lhe sacudiriam o pó muito melhor. É um homem que, sem tirte-nem-
guarte, beija por força a mão a 15 todas as damas, e se alguma lha nega deita isso
para trás do cachaço, que é mais para a canga que merece do que para a Ordem que
traz. Ao amigo que prega os guardanapos grandes, sucedeu-lhe neste dia uma
desgraça. Vindo da Favorita para a 20 Assembleia, quebrou-se-lhe o coche e chegou
a pé. Vinha com a boca aberta, não podendo crer o sucesso, porém em pouco tempo se
esqueceu dele começando a dizer as suas costumadas e mal aceitas chularias.
Não se esperava nesta noite o Boca-de-Serpe, por 25 se saber que estava
curando as mazelas, porém ele chegou com o irmão do Enviado, em que não acha outra
imperfeição que a de gostar de bocarras. Não só o amigo que tem, porém a amiga que
adora são as maiores bocas que conheço. A da Barra e a de 30 Sacavém são um
cominho à vista destas. O homem do pão-por-Deus e da consoada chegou com a ranhosa
da mulher, e assim que leu a gazeta sentou-se em uma cadeira, onde dorme todas as
noites como pedra em poço. A mulher é daquelas que não sabendo o que dizem sabem
muito bem o que fazem. Joga com perfeição e não sei que a tenha em outra coisa.
Ganhar eu só ou com outro é o mesmo que buscar agulha no palheiro, porém em me
caindo 5 por sorte a sua praçaria, certos são os touros. Chegou o senhor das boas-
noites, que aconselha a todos que se deitem sem ceia para viver. Dizem muitos que
ele pratica isso mesmo para poupar; não o creio, porque vejo em todas as suas
acções muita 10 generosidade e grandeza e, aqui para nós coscós, também lhe vejo
muita vaidade. Os homens deste carácter não são avarentos. Ser amigo da saúde não
é pecado, comer só uma vez ao dia é abstinência. Quem lhe seguir o rasto pode ser
que venha 15 a dar em santo, ainda que seja por suas mossas de pau.
Faltou o senhor conde de Açorda, o barão de Maçamorda, e também faltou
aquele cavalheiro que quando chega é o mesmo que fazer vir a coca. O 20 conde da
Choraça, que é aquele que acudiu com o baracinho logo que lhe deram o porquinho,
está com as costas quentes e há dias que não sai de noite por não apanhar algum
resfriado. Gosto muito deste velho, tem honra e capacidade, e não sei como 25 pode
ajuntar a estas duas inimigas do dinheiro o dinheiro que tem.
Ferveu a obra, principiou o jogo, calaram-se as damas, e fiquei descansado.
Vossa Mercê sabe que eu jamais jogo naquela Assembleia, quando se não acha 30
presente a princesa de Valáquia. Esta chegou depois das nove horas e, porque era
já tarde, não quis fazer partida de quadrilha. Pediu uma mesa pequena e fez a
honra de eleger-me para jogar com ela os centos. A condessa de Laval que estava
mui 5 perto de nós me esteve sempre tirando a terreiro, tirando-me com a mão de
gato muitos toques e remoques a respeito da contenda que tínhamos tido depois de
jantar. Esta senhora é amiga de fazer fogo de palha e, tanto fez, que me fez
perder 10 catorze catorzadas que me vieram nesta noite à mão. Finalmente a
princesa de Valáquia ganhou e eu também perdendo com ela.
Às onze horas e meia, bolaverunt galhetas para a mesa dos donos da casa,
cada e cada um a modo de 15 quem se põe a seguro se foi pondo na sua. O pequeno
foi-se como costuma despedindo-se em latim. A condessa de Laval deu as suas mãos
de gafanhoto ao Unhas-de-fome, que a acompanhou até ao coche onde ela deu com a
ossada, que vai levando para a 20 sepultura mais alegre do que ninguém. Todos os
outros se foram indo como um saco roto, é como eu também devia passar pelas idas,
pois que tinha entrado nas avenidas, pareceu-me dar uma satisfação à dona da casa
sobre a bulha que tínhamos 25 tido. Ela que ainda estava como uma víbora, sendo
sempre má como as cobras, conheceu que eu me queria desculpar e disse-me em voz
alta:
- Que é o que Vossa Mercê me quer agora cá meter a queima-roupa?
30 - Nada, minha senhora - lhe respondi - o que eu quero, ainda que a
furta-lhe o fato, é que Vossa Senhoria me perdoe se no discurso de hoje me meti em
alguns debuxos de pouco gosto.
- Vossa Mercê é mui cabeçudo - me disse a condessa.
- Votre très humble serviteur - respondi para o lado, onde ainda havia
gente que ria tanto como os que vêem touros de palanque.
- Adieu madame la comtesse - lhe disse a 5 princesa de Valáquia.
- Très humble servante de votre Altesse - lhe respondeu o Diabo em muletas.
Eu vi a Deus pelos pés, quando vi que a princesa me dava a mão para a
conduzir ao coche. Isso 10 fiz, e acompanhando-a até casa, tive a honra de cear
com ela, contando-lhe isto mesmo que refiro a Vossa Mercê O príncipe não se achou
presente. Anda mui cabisbaixo com uma das suas palhadas, ou alhadas, que temo lhe
venham a pôr uma mão atrás, outra 15 adiante.
Acabou-se a carta, meu Senhor. Pela alma lhe preste ao italiano que der na
trilha de fazer a tradução. Oh tradução desejada quem já te vira! Não ma retarde
Vossa Mercê ; mande-ma logo que estiver feita. 20 E no entanto, que será por muito
tempo, guarde Deus a Vossa Mercê por muitos anos, etc.

[ signed ] Amigo e servidor de Vossa Mercê

[ date ] Viena de Áustria, 4 de Março de 1736.

[ letter (author: CO)]


[ title ] 5. |
A Mr. e M. *** A respeito do amor, e do ciúme

Amigo do coração. Não me posso persuadir que os estóicos, que tiveram o


primeiro lugar entre os filósofos antigos, isentassem o sábio de toda a qualidade
de paixões. Sabendo eles muito bem que 5 estas são naturais ao homem, tenho por
impossível que destruíssem nele o Essencial. Se damos crédito ao que nos diz o
folósofo Séneca, que foi o mestre dos mesmos estóicos, conheceremos claramente esta
verdade. Ele é o que confessa sinceramente que o 10 sábio não pode embaraçar os
movimentos da sua alma, ainda que a sua razão se possa opor vigorosamente aos seus
excessos. Sendo os homens compostos de inteligência, de alma, de espírito e de
corpo é fácil de provar, e sendo certo que a nossa 15 inteligência tem alguma
semelhança com a dos anjos, também é infalível que a alma que procede de nossos
pais participa da natureza dos animais, e dessa forma não há razão para duvidar que
as paixões não sejam naturais por um e por outro princípio. 20 Moisés nos ensina
que os anjos foram ciosos e orgulhosos ao mesmo tempo, e a experiência nos mostra
que os mesmos animais caminham todos os dias segundo as suas paixões. Sirva de
exemplo, ainda que raro, aquele bode que matou ao pastor 25 Crátis porque fez
carícias lascivas à sua cabra.
Sabemos que as doenças são naturais aos homens, e digam os doutores da
medicina tudo quanto lhes agradar em contrário, contanto que me seja permitido
entender que desde o princípio dos séculos 5 até o presente não houve homem algum
isento de enfermidades. Compõe-se o nosso corpo de partes tão diferentes em
temperamento, e estamos expostos a tantos acidentes que é impossível que em toda a
nossa vida não sofra ao menos uma incomodidade 10 a nossa saúde. É verdade que há
umas moléstias ligeiras e outras fortes; e que entre estas últimas, havendo algumas
perigosas de que se não morre, há outras perniciosas de que se não escapa, ou
porque alguma parte necessária à vida se 15 corrompeu, ou porque outra semelhante
causa violenta se não pôde remediar. A estas últimas chamam os médicos doenças
contra as leis da Natureza. Os homens dum bom temperamento só estão expostos às
enfermidades ligeiras, e conservando sempre por essa 20 razão boa saúde dizem
sempre que passam bem.
Isto é o mesmo que quero entender e explicar a respeito das paixões da
alma. São elas tão naturais ao homem que aqueles mesmos que quiseram isentar o
sábio de todas as paixões confessaram 25 fàcilmente que nele se não observavam
senão alguns movimentos dominados pelo entendimento, e eis aqui o que fez dizer a
muitos que o sábio era totalmente isento das paixões. Os que assim falam concordam
porém em que os outros homens estão sujeitos 30 às paixões como os mesmos animais;
e que a parte inferior das suas almas é o lugar onde as ditas paixões residem.
Desta forma confessando que há paixões, tão arreigadas em alguns homens, que são
irremediáveis, mostram que há outras que sem 5 embargo de serem grandes e perigosas
admitem remédios eficazes e saudáveis a que obedecem.
Sendo as paixões tão naturais ao homem como digo e como me parece que
provo, o ciúme que é uma das mais violentas, comparado à morte e ao 10 Inferno na
Sagrada Escritura, é aquela paixão que jamais deixará de perseguir e de atormentar
ao homem, e procedendo esta do amor somos obrigados a crer que todos os que amam
são ciosos. Este é o ponto em que me quereis ouvir, e sobre este ponto 15 sòmente
se fundará agora o meu discurso.
Não tenho necessidade de retratar aqui o amor. São tantas as pinturas que
se têm feito daquele Deus Criança que bastam para expor aos olhos de toda a gente a
natureza das suas graças e o efeito das 20 suas meninices. Ninguém duvida que o
ciúme de que vos devo falar é filho do mesmo amor.
A formosura tem feitiços tão poderosos, principalmente quando se acha no
sexo feminino, que não só obriga mas arrasta a nossa vontade a amá-la, 25 e
quaisquer forças que empreguemos para nos opor a essa violência são inúteis e
incapazes de nos defenderem do seu poder. São tais os privilégios da formosura
que, abrasando o nosso coração, forçam a nossa alma e obrigam os nossos afectos a
30 obedecer aos seus invisíveis encantos, causando-nos um desejo ardentíssimo de
possuir a pessoa que goza da beleza. Este é sem dúvida o desejo a que chamamos
amor, do qual procedem infalìvelmente todas as paixões da nossa alma.
Esta que conserva presente a ideia do objecto separado, quando ama
perfeitamente recebe extrema alegria ouvindo falar do mesmo objecto que ama; porém,
como entre as verdades que se dizem 5 se introduzem infinitas vezes as mentiras e
as falsidades, conhecem os amantes em todas as ocasiões a facilidade com que nas
certezas se misturam as imposturas. Este conhecimento induz a alma ao erro, e é o
que a faz entrar na desconfiança por 10 meio das suspeitas, das conjecturas e das
dúvidas que vai formando. Cremos muitas vezes que nos faltam as qualidades para
merecer a correspondência da pessoa amada e julgamos ao mesmo tempo que essa pessoa
amada deixando de nos amar deve ser 15 por força inconstante. Isso sucedeu a
Popeia, a qual vendo a frialdade de Nero a seu respeito se supôs sem prendas para
ser querida, como observa Petrónio. Consecutivamente, pela debilidade da nossa
natureza e pela impostura do amor estas 20 conjecturas se mudam em provas, e estas
dúvidas se reduzem a certezas por mais seguros que tenhamos da pessoa amada.
Verdadeiramente me parece que não poderíamos amar sem ser ciosos, porque em
chegando aquele alto grau de amor, onde nos 25 conservamos por causa da nossa
inconstância natural, é preciso que para entrarmos na frialdade ou para descaírmos
no aborrecimento passemos pelo ciúme. O doutor Celso, mestre insigne no
conhecimento da natureza do homem, disse com muito acerto que 30 o homem são e
robusto devia temer mais do que os outros cair doente, porque sendo tão mudáveis
todas as coisas deste mundo não podia esperar que se conservasse a sua boa
disposição por muito tempo.
5 Nas inquietações ciosas é onde a alma se acha como em desordem e como em
delírio, e depois de se defender das aparências, cortando uma cabeça à hidra que a
combate, deixa-se subornar pelas fraquezas do amor, que muitas vezes lhe mostra 10
quimeras por verdades, fazendo nascer à hidra dez cabeças por uma que se cortou.
Não é fácil que uma pessoa, dominada pela violenta paixão do ciúme, possa julgar
justamente na sua própria causa, nem que possa ver a luz entre as trevas,
ofuscando-lhe 15 o amor toda a razão. Moisés achou neste caso um expediente com o
qual nem o homem nem a mulher podiam ser juízes de si mesmo. Era o grande
sacerdote o que fazia beber às mulheres, acusadas de impudicidade, um grande copo
de água mui 20 amargosa, a que se chamava água do ciúme. Desta forma pretendia
sarar os espíritos dos maridos ciosos, fazendo aparecer o ciúme por meio da bebida
provatória, que devia corromper as entranhas da mulher culpada, conservando a saúde
da inocente. 25 Hoje teríamos muita dúvida em praticar estas provas, e não sei se
nos sujeitaríamos a crer que por este meio se pudessem descobrir roubos secretos.
Agitada a alma por diversas paixões causadas pela do ciúme , busca todos os
caminhos para sair 30 do labirinto das dúvidas que tem formado. A curiosidade lhe
dá ânimo para apurar todas as circunstâncias do negócio. Examinando e espionando
os amantes, aos enamorados sucede muitas vezes aumentarem o seu mal com as
extravagantes diligências que executam, e procurando dar-lhe remédio o fazem
incurável. Parece-me que isto nos quiseram 5 dizer os teólogos do Paganismo em uma
das fábulas que ordenaram. Irritado Vulcano, finalmente, com as desonestidades da
sua mulher resolveu a vingar-se, fazendo aparecer o seu ciúme em presença de todos
os Deuses, que ele julgava serem-lhe 10 propícios e favoráveis. Obrando,
preparando e armando redes para colher Vénus nos delitos que cometia com Marte o
conseguiu, porém longe de remediar o seu mal o fez mais forte, ficando ele infamado
na opinião dos Deuses por publicar um segredo que até 15 então era encoberto. Em
tal forma se escandalizaram os Deuses com a acção de Vulcano que, lançando-o
vergonhosamente fora do Céu, quebrou uma perna contra a Terra. Deixar de reduzir-
se a pedaços não foi pequeno milagre. Eis aqui nem mais 20 nem menos o que sucede
a todos os ciosos. Ajuntando a vingança, ao ciúme, entendem muitos que devem
descobrir a todo o mundo a fragilidade de suas mulheres, patenteando as suas culpas
aos homens. Desenganem-se os que assim fazem que, 25 além de ficarem sendo o riso
do Universo e o escárnio das gentes, eles mesmos imprimem na sua reputação a marca
do labéu eterno da desonra, ficando então tachados de infâmia que não tinham
antecedentemente.
Como a alma não ignora que tudo o que há no mundo está sujeito à
inconstância, contìnuamente 5 se sobressalta temendo perder todas as suas delícias
e todos os seus contentamentos pela mudança da pessoa amada. Este é o temor a que
se chama ciúme pròpriamente. É filho do amor, como já disse, e gerado da
desconfiança. Estas 10 circunstâncias se acham também entre amigos, e não é coisa
admirável que as mesmas inclinações que causam a amizade no comércio dos homens
sejam muitas vezes a causa do aborrecimento no trato dos amantes?
15 O ciúme é tão forte e tão poderoso no natural de muitos homens que já
houve alguns, diz Tertuliano, que ao menor ruído que o vento ou os ratos faziam à
porta da câmara suspeitavam que as suas mulheres eram roubadas e arrebatadas dos
leitos em 20 que as tinham à sua ilharga. Quando uma desconfiança semelhante se
introduz na alma débil, o aborrecimento acha também com facilidade o seu lugar,
porém, como nesse caso se não pode desterrar o amor inteiramente, sofre o espírito
desordens 25 inexplicáveis, sendo procedidas de paixões em tudo opostas.
Destas paixões contrárias nascem a cólera, a tristeza, o engano, a
esperança, a desesperação, a alegria, o cuidado, o furor e a raiva a que se segue
30 a inveja da vingança à custa da vida e ainda da própria reputação. Já houve
homens que até morrendo foram ciosos. Vencido e desbaratado em batalha, um certo
rei de Marrocos não quis que pessoa alguma gozasse sua mulher depois da morte a que
se via condenado, e pondo-a na garupa do cavalo, que obrigou a correr furiosamente,
se foi precipitar do alto duma montanha, morrendo com sua mulher e com o seu ciúme
ao mesmo tempo. João 5 de Leão nos favorece com este caso.
Sobre os efeitos do ciúme não será necessário que investiguemos na
antiguidade para descobrirmos tais histórias. Nos nossos tempos as acharemos tão
notáveis como a que sucedeu há poucos anos na 10 cidade de Niça, em Proença. O
senhor de Castel-Nuovo, de idade de sessenta e sete anos, se enamorou com tanto
excesso de sua nora Perrina de Harcouette ,de São João de Moriena, que vendo que
sua própria mulher e seu filho eram os maiores 15 obstáculos que se ofereciam para
a execução e pera o fim dos seus seus perniciosos desejos, os fez matar com veneno
administrado a ambos por uma criada da casa; porém, como o amor e o ciúme são
expostos a mui diversos acidentes, o senhor de 20 Castel-Nuovo encontrou a morte
onde entendeu achar os deleites, e, querendo gozar violentamente sua nora, perdeu a
vida entre os seus braços passando-lhe ela o coração com um punhal.
Em toda a parte onde se acha o ciúme se acha 25 o amor. Assim como a vida
acompanha sempre os doentes, e assim como a dor jamais ofende os mortos, da mesma
forma o ciúme se não aparta dos amantes, deixando sòmente de seguir aos que deixam
de amar.
30 Tendo descoberto o nascimento, a causa, a natureza, e o progresso do
ciúme, parece-me que não será fora de propósito falar-vos das suas diferenças e
dos seus efeitos. A experiência nos faz ver todos os dias que a razão é algumas
vezes a rainha das nossas paixões, moderando-as com grande império quando nos acha
acostumados a domá-las desde 5 os nossos primeiros anos. Por essa razão nos não
devemos admirar se observarmos alguns homens e algumas mulheres que se não
[ comment ]c. galves (sic)
deixam arrastar vergonhosamente por movimentos impetuosos. Na história
profana se nos oferece Júlio César, 10 domando com tanto valor as verdadeiras
causas que teve para ser cioso, que jamais a sua grandeza de alma se submeteu a
esta horrível paixão.
Stratónica mortificada pela esterilidade, ciosa e agitada com o receio de
perder por essa causa o 15 amor de seu marido Dejótaro, aprovou que ele tivesse
filhos de Electra com condição porém de os adoptar e de os reputar como seus
próprios.
Nos ânimos humildes e nos espíritos grosseiros se não encontram esses
nobres procedimentos. Sentindo 20 o amor e o ciúme com diversa força, deixam
transparecer de outra forma o sem-número de paixões diferentes que os acompanham.
Quando o amor destas pessoas chega ao estado de ciúme, tudo ele teme. Um descuido
de olhos o incomoda, uma conversação o 25 importuna, um passeio o inquieta, um
festejo o entristece e uma carta o desespera. Todas as acções da pessoa amada,
ainda sendo as mais inocentes, são criminosas. Parecem-se estas pessoas com as que
chegam a um precipício, onde perdendo a vista, 30 tremendo-lhes os corpos, e
faltando-lhes os pés se arruínam a si mesmos, sem que o precipício a que chegaram
estivesse preparado para eles. Tenho para mim que só o sábio sabe vencer a paixão
ciosa, e creio que só o louco é inteiramente isento dela.
O temor de perder o que se ama é muito mais forte no ânimo das mulheres
que no dos homens, e sendo a mulher naturalmente medrosa, a experiência nos ensina
que em ela sendo ciosa é 5 sumamente destemida. Uma mulher instigada pelo ciúme é
muito mais intrépida do que nós na execução de todos os crimes.
Perdoe-me o belíssimo sexo que venero, porém não sei dizer que haja animal
tão feroz que tenha 10 a crueldade da mulher sendo ciosa. Medeia matou os
próprios filhos para se vingar dos ciúmes que tinha de seu marido. Bastava esta
prova. Laodiceia, mulher de Antíoco, diz São Jerónimo, mandou matar Berenice com
seu filho, porque Antíoco era o pai, 15 e Laodiceia, desesperada, se envenenou. A
Escritura Sagrada nos ensina que a mulher ciosa é a dor do coração de seu marido,
fazendo as queixas ou as desordens de toda a família.
O homem usa pouco mais ou menos das mesmas 20 crueldades quando é cioso,
porém, como a lascivia não tem tanta parte no seu ciúme, apreende sòmente que outro
lhe possa roubar o bem que ele julga próprio, e levado deste falso pensamento se
encarrega duma das paixões mais tiranas que a alma pode 25 sofrer.
O ciúme fez perder a vida a Mariana, porque seu marido Herodes não pôde
sofrer que se amasse a sua formosura. Octávio, amante de Postúmia, lhe tirou a
vida, porque ela duvidou de o receber por 30 marido. Não pode chegar a maior
crueldade o ciúme quando chega a converter em ódio o próprio amor.
Há doenças muito ligeiras que podemos vencer com boa regra de vida. Outras
enfermidades há 5 tão perigosas e tão funestas que ou por nossa culpa ou pela sua
natureza as não podemos atalhar nem extinguir com remédios. A razão cura os ciúmes
ligeiros, porém não abate fácilmente os fortes nem os desesperados.
10 Quando o amante é cioso, o amor não pode ser puro. Esta é a vossa
opinião, que deve ser observada pelos espíritos da grandeza e da sublimidade do
vosso. O ciúme é a causa dos maiores danos e das mais cruéis desordens que sofrem
os amantes.
15 Não sou tão rústico que também não ame, e a experiência própria faz que
cada um diga da festa como lhe vai nela. Deus vos guarde do Amor e eu vos
guardarei do ciúme. Adeus.

[ signed ] Amigo do coração

[ date ] Viena de Áustria, 29 de Março de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 6. |
Ao reverendo Padre Frei Henrique de * * * sobre um reparo de retórica

Serve esta de coberta não ao conhecimento mas ao seguro que devo fazer a
Vossa Paternidade Reverendíssima. Consiste em que, se me visse obrigado a mudar de
confessor não escolheria a Vossa Paternidade para lhe delatar as minhas culpas.
Pesam-me porque são grandes, porém seriam muito maiores se dessem em poder de Vossa
Paternidade A mesma autoridade com que Vossa Paternidade intitula erro um
descuido que achou na minha carta, 5 faria talvez mortais as venialidades que
encontrasse na minha consciência, e eu não sou escrupuloso nem amigo de
escrupulosos. Vamos ao ponto. Que Vossa Paternidade sabe muito pouco, isso
sabemos também, porém que saiba português sempre o neguei, e agora mais 10 do que
nunca. Para Vossa Paternidade provar o contrário diz-me que achou uma cacofonia no
escrito que lhe mandei tendo escrito nele: este esteve muitos anos . Confesso que
nos discursos se devem evitar diligentemente os sons desagradáveis, porém sem
empregar 15 escrúpulos tiranos para alcançar a perfeição da frase. Lembra-me que o
senhor da Motha le Vayer não sòmente fala, porém ri nas suas obras, dum especioso
escritor francês, que para se livrar de dizer ce serait , pela semelhança que
achava nas 20 duas primeiras sílabas, estudou vinte e quatro ou mais horas. Aqui
temos justamente o meu este esteve de que Vossa Paternidade diz que Deus nos
guarde. Deus me livre a mim de Vossa Paternidade e de outras Paternidades como sua
Paternidade (veja que cacofonia) que, 25 indo a Portugal e entendendo que tinha
aprendido a língua do país, chegou aqui sòmente com a presunção de sabê-la. Se a
delicadeza que Vossa Paternidade procura nas línguas tivesse lugar, não poderíamos
dizer nem escrever coisa alguma com segurança. 30 Podíamos dizer com Quintiliano:
Quid si recipias, nihil loqui tutum est . O encontro das letras vogais nas
palavras não é crime que nos deva causar horror. O mesmo Quintiliano, que foi
retórico famoso, não quis decidir qual das duas culpas é mais viciosa nesta
matéria, se a negligência voluntária ou se a delicadeza afectada. Verdadeiramente
uma e outra creio que fazem as duas extremidades perigosas. Tenho para mim que se
deve evitar com cuidado 5 todo o defeito que interrompe o sentido dos pensamentos e
das expressões, porém esse mesmo cuidado seria impertinente se se determinasse a
apurar as negligências que não tiram a força nem a formosura aos discursos. Esta
qualidade de 10 imperfeições na opinião de Cícero tem uma galanteria, e é a de
mostrar o carácter dum homem, que cuida mais nas coisas que diz do que nas palavras
com que as escreve. Diz Vossa Paternidade que para embaraçar semelhantes
negligências é necessário ler os escritos 15 depois de feitos, e que se eu lesse o
meu que não deixaria passar aquela imperfeição. Sou do mesmo parecer, e assento em
que é regra admirável ler os discursos em voz alta depois de feitos, consultando os
ouvidos sobre aquilo que os olhos já aprovaram. 20 O ouvido é o juiz natural dos
tons e é o que conhece das cacofonias que a pena deixa passar mui fàcilmente.
Porém para ter bom ouvido dizemos que é necessário ter boa orelha, e esse
privilégio concedido a Vossa Paternidade nem todo o mundo o logra.
25 Diz outra vez Quintiliano que não é permitido a todos os homens julgar
da harmonia das palavras, nem também da dos instrumentos. Se eu lesse o meu
escrito antes de o enviar a Vossa Paternidade pode ser que este esteve me não
obrigasse à ociosidade de fazer 30 outra cópia em que mudasse o defeito. Nem ele
nem Vossa Paternidade , me pareceriam merecedores desse trabalho. Quanto mais que,
a cacofonia podia ser muito maior, e podia ser desculpada com as que deixaram
passar homens que foram maiores nas suas obras do que Vossa Paternidade é grande
nos seus reparos. Por mais delicada que seja a sua orelha, não excederá a sua
perfeição à subtileza do bom ouvido de Cícero. Vemos sem embargo disso, que deixou
passar, O fortunatam natan 5 me Consulem Roman . Escrevendo em verso e na mesma
prosa em que foi o primeiro ou o singular mestre da retórica, também lhe escapou
outra cacofonia dizendo em uma das suas cartas: Res mihi invisae visae sunt Brute .
Não digo a Vossa Paternidade que 10 imitei de propósito semelhantes negligências,
porém quero-lhe dizer que não há ouvido tão severo e tão atento que se não deixe
enganar. Conhecendo a fraqueza com que os meus se começam a debilitar, não fio
nada deles. Este escrito também não foi 15 registado senão pelos olhos. Se
escapou outra cacofonia, peça Vossa Paternidade ao secretário milanês que lha
emende em língua de preto, que é o português que ele aprende aqui, e mui semelhante
ao que Vossa Paternidade aprendeu em Lisboa.
20 A bons entendedores poucas palavras. As minhas são claras e não
necessitam de comento. Guarde-me Deus de Vossa Paternidade , etc.

[ signed ] Muito de Vossa Paternidade , sem cacofonia

[ date ] Viena de Áustria, 10 de Abril de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 7. |
A Monsieur de M. *** sobre a vingança das mulheres
Amigo do coração. Dizeis no vosso discurso que tendo as mulheres o
entendimento muito mais débil que o nosso, são as que pela maior parte cometem o
erro de descarregar os efeitos da sua cólera sobre 5 as coisas inanimadas, e que
são as únicas pessoas que, sempre que podem executar a vingança, não reparam em que
o objecto dela seja capaz ou incapaz de sensibilidade. Não há coisa alguma que
denote maior fraqueza nos espíritos humanos do que 10 as acções desta natureza, e,
se vos hei-de falar verdade, seria mais próprio dizer que faz injúria a si própria,
e não faz erro sòmente, aquela pessoa que pretende tirar vingança do insensível.
Depois de vos dizer que o vosso papel é daqueles que 15 assinariam com grande honra
os escritores mais famosos dos séculos, podendo-se gloriar com muita razão de o
terem feito, vos digo sinceramente que lhe acho duas circunstâncias que eu mudaria,
ou que vós deveis emendar se achásseis justos os meus reparos 20 e acertados os
meus conselhos.
A primeira é que ainda se encontra nele a própria paixão do autor contra o
sexo, a qual seria conveniente adoçar com o uso da imparcialidade, que é virtuosa
em todas as ocasiões e em todas as matérias 25 semelhantes. A segunda é dizerdes
absolutamente que as mulheres são as únicas que empregam a vingança na
insensibilidade. Lembro-vos que el-rei Xerxes, que pelo grande poder e pela sua
bela presença foi respeitado como o próprio Júpiter, vendo arruinar-se pelo ímpeto
das ondas a famosa ponte que tinha mandado fabricar sobre o estreito do Helesponto,
para se comunicarem Ásia com Europa, determinou vingar-se das ondas e ordenou 5 por
sentença do seu Conselho que as águas do mar fossem castigadas com um cento de
açoites, os quais efectivamente se lhes deram em sua presença, ajuntando ele ao
suplício as muitas injúrias que disse às mesmas águas. Se um erro se pode escusar
com 10 outro maior, a ridícula execução desta vingança se pode desculpar dizendo
que a intenção de Xerxes não foi a de castigar as águas, mas a de afrontar nelas o
deus Neptuno. Neste caso não sei qual das coisas seria a mais ridícula, se a de
vingar-se no 15 insensível, se a de injuriar a divindade dos deuses, que lhe eram
superiores. O que sei é que este erro, sendo de um homem, vale por todos os que as
mulheres podem ter praticado neste sentido, e que à vista dum tal exemplo, não
podereis dizer, nem 20 assegurar, que elas são as únicas em que se acham fraquezas
e debilidades desta natureza. Espero que não recebais a minha advertência como
crítica, e espero que mostreis esta carta a Mademoiselle Genoveva, para que se
persuada, como sempre lhe 25 digo, que defendo no que sei a igualdade que se
encontra nos defeitos de ambos os sexos. Como sei que vos hei-de ver na Ópera
ainda hoje, irei ouvir a repetição das duas do Cres Pro Cras, que verdadeiramente
me atemorizam. Agora, e então vos 30 assegurarei, como sempre que sou
Vosso amigo do coração

[ date ] Viena de Áustria, 21 de Maio de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 8. |
A Madame de Klembach. Sobre a liberdade e a infelicidade do homem

Na assembleia de domingo houve, minha Senhora, um assunto gordo. Os


discursos sobre ele pareceram magros, porém poderá ser que estimeis a força de
muitos, se entenderdes comigo que responder a uma 5 questão em poucas palavras é
prova dos bons juízos e não debilidade, como imaginam todos os que para dizerem que
é dia empregam tantos e tais termos que reduzem a mesma claridade a sombras.
Propôs-se, pois que o quereis saber, neste dia em 10 que faltastes, quais
era entre todos os homens o mais liberto?
Disse o Príncipe Cuzzanni que era o rei que, tendo império absoluto sobre o
seu povo, tinha triunfado de todos os inimigos.
15 Disse o marquês Pilmer que era o homem opulento que, com as suas
riquezas, podia contentar e satisfazer todos os desejos.
Disse o conde de São Pedro que era o homem que, conservando-se no estado de
solteiro, viajava 20 toda a vida pelos países do Mundo, não se sujeitando às leis
do matrimónio nem às de nação alguma.
Disse a condessa de Broov, talvez para criticar o barão de la Clef, que era
o bárbaro que habitando as montanhas e vivendo sòmente da caça, não 25 dependia da
polícia nem conhecia os rigorosos e estranhos costumes que se tinham introduzido
na sociedade humana.
Disse o Carmelita, que com a graça costumada, que era um moribundo, porque
livrando-o a morte de 5 tudo ao mesmo tempo ficava tão livre que todos os homens
juntos não teriam o mínimo poder na sua liberdade.
Disse o dono da casa que era o homem que saía novamente do cativeiro,
porque perdendo com ele 10 os rigores da servidão gozava mais do que os outros das
doçuras da liberdade.
Eu tinha respondido em terceiro lugar, e disse que o homem mais livre era
aquele que o podia ser na mesma escravidão, porque em qualquer pais 15 ou condição
em que se achasse, temendo sòmente a Deus, não podia temer outra coisa.
Votaram os juízes que o prémio destinado à melhor resposta me pertencia,
assentando que homem verdadeiramente livre era aquele que separado de 20 todo o
medo e desembaraçado de todo o desejo se submetia sòmente a Deus e à razão. Eu
recebi o prémio sem vaidade, conhecendo que o devia mais à cortesia e graciosidade
dos juízes do que ao merecimento ou ao acerto próprio. O prémio consistia 25 nas
obras de Molière, livros que me deram perfeitamente encadernados. Propôs-se em
segundo lugar qual era o mais desgraçado dos homens? Disse a condessa de Broov que
era o homem que não possuía bens, que não lograva saúde, e que não tinha honra.
Disse o dono da casa que era aquele que não tinha um só amigo.
5 Disse o príncipe Cuzzanni que era aquele que tinha filhos ingratos e
indignos. Entendeu-se que esta resposta feria o conselheiro Kling, que se achava
presente e também o seu morgado ou, para melhor dizer, filho mais velho.
10 Devendo seguir-me, estive para dizer que o homem mais desgraçado era eu
mesmo, porém disse que era um ministro que se julgava ditoso fazendo a infelicidade
de algum homem.
Disse o marquês Pilmer que o homem mais infeliz 15 era aquele que não tinha
valor para saber ser desgraçado.
Disse o conde de São Pedro que o homem mais desgraçado era aquele que tinha
maiores merecimentos.
20 Disse finalmente o Carmelita que o mais desgraçado de todos os homens
era aquele que se julgava a si mesmo desgraçado.
Pronunciaram os juízes sentença a favor desta resposta, assentando em que
a infelicidade depende menos dos sucessos que se sofrem do que da impaciência com
que se aumenta neles a desgraça. 5 Consistia o prémio que se deu ao Carmelita em
um retrato do Imperador feito em cera e dos mais bem obrados que tenho visto.
Pondo-nos à mesa, entraram os dentes a dar às línguas diverso exercício do
que até então 10 praticaram. Dizer e ouvir descrições confessam muitos que é pasta
da alma, porém não sei que galantaria tem o comer e o beber que todos geralmente se
inclinam mais a um bom bocado do que a um bom problema. Bebi à vossa saúde, porém,
não fui o primeiro que 15 dei princípio a esse obséquio. Pareceu-me bem ceder ao
barão Beaufort que o executou muito a tempo. A melhor coisa que se disse na mesa e
que me fez mais gosto do que tudo o que de bom havia nela foi pronunciada pelo
conde de São Pedro, o qual falando 20 a respeito da amizade disse que esta era um
dom do Céu e o contentamento das almas grandes, porém que era um bem que os reis,
ingratos ilustres, não conheciam, nem pagavam. Depois da ceia houve minuetes
desgarrados, que nem principiaram nem 25 continuaram com as formalidades
costumadas.

[ signed ] Muito vosso venerador

[ date ] Viena de Áustria, 30 de Maio de 1736.


[ letter (author: CO)]

[ title ] 9. |
Ao Príncipe de Valáquia sobre um convite, e outras matérias diferentes

Beijo a mão a Vossa Alteza pelos dois favores que me faz, e agradecendo
ambos aceito um só. Não posso ter a honra de jantar hoje com Vossa Alteza sabendo
que se acha na sua mesa o barão Polaco. Disse 5 Pitágoras que as almas dos homens
depois de mortos entravam nos corpos dos animais, e se vira este barão diria sem
dúvida que as almas dos animais entram nos corpos dos homens. O vinho não só é
amigo do corpo, mas é a alegria do coração do 10 homem. O vinho porém que este
polaco bebe e que obriga a beber a todos os que se acham na sua companhia, além de
ser o inimigo do entendimento, é a ruína da fábrica dos mortais. Temo que este
homem é um daqueles que hão-de morrer queimados 15 em algum dos incêndios naturais
e interiores que se têm observado em muitas pessoas, que cometeram no uso do vinho
os seus excessos. O que ele me fez beber quinta-feira é vinho que ainda me dura e,
como Vossa Alteza legislou naquela ocasião que as saúdes 20 se haviam de fazer em
roda com a mesma quantidade e com a mesma qualidade de vinho com que o barão as
principiasse, seguiu-se daí que satisfiz por força e por política às ordens que nem
por serem de Vossa Alteza deixaram para mim de ser tiranas. 25 Eis aqui o que
sucede às leis injustas, e aos príncipes que as fazem. Os vassalos mais amantes e
os súbditos mais fiéis, se não detestam, fogem ao menos quanto podem dos seus
domínios. Seja hoje o deus Baco muito bem louvado na mesa de Vossa Alteza porém
sem mim. Bem haja, o barão de Beaufremont que ama o vinho pouco, bom, e velho, e
tão velho que pareça daquele que se começava já a azedar no tempo de Pompílio: sub
rege Numa, condita vina5 bibis , se pode dizer de um homem deste bom gosto. Se eu
fosse privilegiado como o Barão de Beaufremont, para não seguir furiosa bebedeira
do barão Polaco, é certo que não recusaria a honra que Vossa Alteza me oferece da
sua companhia, porém sendo eu 10 daqueles sobre que caiu a força da lei, não me
sujeitarei outra vez a uma crueldade, que me põe em perigo de perder em um instante
o pouco juízo que tenho adquirido e com grande trabalho, desde que nasci.
Entendendo que nestas galhofas só entram 15 os que têm muito ou os que nenhum têm
para perder. O amigo Dom Florêncio será sem dúvida da partida, e tenho para mim
que em breve tempo fará alguma de repente para o outro mundo. Quanto ao Polaco,
diz a senhora condessa de la Bourlie, 20 com muita graça, que está livre de ir para
lá, porque não há no outro mundo quem o queira.
Já disse a Vossa Alteza que aceitava o segundo favor, que é o de ir ver na
sua companhia o regimento dos hussares, que há-de passar pelo arrebalde de 25
Rossau. Certamente me dará gosto, pois que é o primeiro que vejo na minha vida.
Às seis horas me acharei em casa de Calamati, onde terei o gosto de ver a cópia do
mesmo original que admiro. É certo que este homem trabalha com perfeição, 30
encontrando os objectos com felicidade. Ainda ontem vi um retrato da condessa
Aurora feito por ele, ao qual não falta mais do que a fala e do que a razão. Como
Vossa Alteza me diz que em casa de Calamati se há-de também achar o prelado de
Bresla, peço a Vossa Alteza que me não deixe muito tempo só com ele. Há muita
gente cujo entendimento é semelhante à cauda do pavão, a qual todas as vezes que se
move muda. Toties denique mutanda, quoties movenda. 5 Este bom eclesiástico em
um quarto de hora toma mais resoluções do que muitos homens juntos podem tomar em
toda a vida. É coisa admirável que ainda não achei nos seus discursos uma opinião
firme que siga duas vezes, sendo as suas palavras 10 uma sucessão continuada de
pensamentos diferentes e todos contrários uns aos outros.
Assim como não quero que o polaco me embebede, também não quero que o
prelado me enlouqueça. Cá do meu cantinho, com um copinho do 15 velho, pouco e bom
vinho beberei à saúde de Vossa Alteza que Deus guarde muitos anos.

[ signed ] Compadre e criado de Vossa Alteza


[ date ] Viena de Áustria, 26 de Junho de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 10. |
A Madame de Klembach. A respeito do amor, dos encantos e dos feitiços

O caso, minha Senhora, é geral e tão natural ao 20 mesmo tempo que até me
parece que me tendes amor determinando agora que vos fale nele. Chamais-me velho e
dais-me uma ocupação de criança obrigando-me a falar em encantos e feitiços. Ei-lo
ai vai: Como me dizeis que a minha carta há-de ser vista por homens que vos têm
dito muita coisa nesta matéria, acrescento algumas coisas que sei, para prova de
que, sendo velho ou sendo menino, 5 também fui homem. Presentemente não se sabe
nem eu mesmo sei o que sou.
O amor é a pele de todos os diabos. Ter mão. Agora me lembra que me
dissestes que queríeis uma resposta séria, e para isso é necessário tomar 10 outro
caminho. Diabo, pele e amor em quatro palavras são verdadeiramente um princípio
mui jocoso para papel que há-de ser grave. Eu me meterei no sisudo, minha Senhora,
queira o deus Amor, que desejo tratar bem, conservar-me no bom estilo. 15 Não há
pessoa que ignore o império deste monarca. Não se conhece domínio mais dilatado,
nem mais absoluto. A lei que a ele nos sujeita liga e compreende igualmente todos
os viventes. Por isso reputo como monstros aqueles corações insensíveis, 20
capazes de resistir aos efeitos do seu poder, ou como doentes atacados dum letargo,
os quais sem receberem a morte estão privados de todos os prazeres da vida. É
verdade que, fazendo muitas vezes reflexões quanto a esta qualidade de homens, me
25 parecem alguns, e pode ser que sejam todos, daqueles célebres orgulhos que têm o
segredo de mascarar o génio natural com o exterior duma indiferente hipocrisia.
Não cuideis que falo daqueles que declamam contra o amor porque ele os riscou do 30
número dos seus vassalos, e que dispensados do juramento de fidelidade, a que se
ligaram desde que nasceram, praticam a liberdade de murmurar continuamente do seu
soberano originário. Não lhes invejo a satisfação nem a consolação que acham em
tal exercício; e como eu não tenho razões, ou se as tenho não me quero lembrar
agora delas para me queixar do Amor, entendo que não há coisa que mais satisfaça
como a harmonia de duas pessoas 5 que, vendo-se sem descanso e sem fastio, se não
apartam senão por força, fazendo então propósitos de se unirem o mais que lhes for
possível, e que, adiantando-se a tudo o que pode fazer contentamento ao objecto da
sua ternura, a acham tão 10 grande quanta é a ocasião que têm de lhe sacrificarem
os gostos mais queridos. Nestas condições é que digo, e não deixarei ainda de o
repetir, a alma nada em uma alegria inefável, perdendo-se na bebedice dos prazeres,
os quais só são grandes 15 e verdadeiros se a inocência do estado em que se logram
apartam de si o temor dos escrúpulos e dos remorsos que se seguem em outros casos.
Deveis de observar que a pintura que Vos faço do amor em suas grandezas e
bondades não teve 20 por objecto aquele que é nascido da impressão única dos
sentidos: haveis de crer por consequência, que só vos falo daquele que procede dos
movimentos da alma. Só deste é que se pode dizer que, incendiado e entretido por
uma substância que imagina e que arrazoa, não está sujeito a nenhum dos
inconvenientes que se seguem 5 inevitàvelmente ao outro, pois que tira a essa mesma
substância, que nos deve conduzir, a liberdade dos movimentos e das operações.
Que diferença entre o amor que defendo e o amor que abomino! Este é o pai
do ciúme, da cólera, 10 do furor e da vingança, a quem não só persegue o temor das
leis que o proscrevem, como o avilta a companhia de desgostos, de escrúpulos e de
tristezas que recebe por milhares: Não acha descanso senão na posse e no logro;
porém este 15 descanso é perturbado muitas vezes pela apreensão de perder o objecto
dos seus empenhos, se é que estes se não fazem instantâneamente insípidos pelo
desgosto ou pela inconstância natural. Perde o amor da glória o melhor soldado em
se entregando 20 a esta paixão, o espiríto mais agudo se entorpece, o juízo mais
alto cai em delírio, o mais prudente em loucura, e o mais moderado no desprezo da
razão. Chega o homem a fazer-se neste caso de pior condição que as feras. Não
sabemos que esta 25 paixão as obrigasse até agora a imitarem homens que apagam no
próprio sangue a violência do fogo que os devora. Estas observações que aqui faço
são ideias mui ligeiras dos males a que o amor desregrado expõe a todos os que o
seguem. A 30 confusão que introduz nas almas é um suplício tão horrível que eu me
livrarei bem de a descrever, depois das pinturas vivas que muitos homens insignes
fizeram dela. Não teria aliás mais trabalho que o de copiar de Virgílio o retrato
da alma de Dido, ou o da alma da desgraçada Fedra, delineada por Monsieur Racine.
Os originais destes mestres perderiam o valor copiados por um aprendiz como eu.
Tende a bondade de os examinar nos próprios autores, os 5 quais nestes dois lugares
têm o privilégio de serem sempre lidos sem fastio.
Quantas provas históricas quereis vós das desordens que tem causado no
mundo esta espécie de amor? Medeia sacrificou a semelhante paixão as 10 riquezas
dos estados de seu pai, a vida dos filhos e a do irmão Absirto, ao qual fez em
pedaços para poder lograr a fugida com Jasão, que amaldiçoou depois muitas vezes.
Apesar das experiência que lhe tinha custado um amor legítimo, se determinou 15
Dido a ser vítima dum amor pouco honesto. Hércules mudou a maça em roca e aprendeu
com Ônfala a governar um fuso com aquelas mesmas mãos que, empunhando uma clava,
faziam tremer os leões e as hidras, escurecendo com baixezas 20 infinitas a glória
de acções imortais. Aquiles, que servia de terror ao mundo vestido de armas
brancas, foi o riso de todos os homens que o viram e consideraram, ornando-se com
justilhos e saias. Sardanápalo trocou a coroa imperial por um 25 toucado e o
ceptro por uma cana. Milo Crotoniato, mais do que homem nas forças do corpo, era
menos do que mulher na debilidade da alma. Sendo aquele a quem o valor humano não
podia arrancar da mão o pomo que nela tinha fechado, era o mesmo 30 que se deixava
inteiramente arrastar pelo melindre da mulher mais fraca. El-rei Ciro, dando lugar
no tróno a Ápama, esta lhe tirava a coroa da cabeça com uma mão, com a outra dando-
lhe bofetadas. Marco António, persuadido por Cleópatra a divertir-se pescando os
peixes com anzóis de oiro, deixou que Augusto lhe tomasse os reinos com o ferro da
espada, Cila entregou traidoramente Niso, seu pai, a um princípe que lhe fazia
guerra e de 5 quem ela se enamorou sem ter a certeza de ser amada. Lucrécia,
violada, causou uma revolução em Roma que extinguiu os reis. Roubada Virgínia, com
perda da vida, à brutalidade de Ápio Claúdio, exilou do Estado um decenvirato de
tiranos. 10 Júpiter, a quem, como diz São Jerónimo, chamaram o rei dos Céus pelas
eminentes prendas que o enobreciam, viu-se obrigado a brutalizar-se para satisfazer
à torpeza dos seus intentos. Bramando como touro por Europa, voou como cisne por
Leda, 15 desfez-se em chuva de oiro por Dánae, e transformou-se em outras
mosntruosidades que até a acção de referi-las é vergonhosa. Xerxes ocupou-se em
enriquecer de jóias, respeitando como sua rainha e servindo como sua senhora, a uma
árvore. Crispo 20 Passieno, depois de ser duas vezes cônsul, viu-se amarrado a
outro tronco por força duma paixão cega e igualmente louca. Um mancebo ateniense,
nobre, galã e rico, se condenou por desatino a requebrar uma estátua, pela qual
bárbara e 25 violentamente se matou. Viu-se Faustina tão perdida por um infame
gladiador que, para curar-se do seu frenesi, foi necessário tirar-lhe a ele a vida
e a ela dar-lhe o sangue a beber. Poucos dias depois de namorado el-rei Nino da
Babilónia, não só lhe 30 não ficou a coroa, como nem a cabeça lhe deixou Semíramis
para a suster. Ovídio, que foi bom profeta na Arte de amar , perdeu-se porque a
seguiu. Catilina matou um filho porque Aurélia Orestila o determinou.
Clitemnestra, para se gozar de 5 Egisto, matou seu marido Agamémnon, rei vitorioso
de Tróia, e intentou executar a mesma crueldade com seu filho Orestes. Fábia,
romana, por amor de Petrónio tirou a vida a seu marido Fabriciano. Lenila, senhora
de grande família, 10 para se gozar livremente dum escravo, acusou os filhos de
traição, não sossegando a sua maldade enquanto não viu o cadafalso tinto com o
sangue inocente. A condessa Dona Sancha intentou dar veneno a seu filho, o conde
Dom Sancho de Castela, 15 para casar com um rei moiro, a quem determinou entregar
os senhorios e a liberdade dos seus Estados. Márcia causou a morte de Cómodo;
Romilda, por amor de Câncano, da Baviera, causou a do duque Sisulfo, seu esposo.
Houve um rei que introduziu 20 no trono da Fé a heresia por amor duma mulher que se
pode ter como sua filha, cunhada e amiga. Ordenando Adrino, no Egipto, que se
adorasse Antínoo, a quem amou lascivamente, eregiu a si próprio o afrontoso padrão
da infâmia. Entregue25 ao amor das concubinas passou Baltasar das mãos de Dario
para as de Alexandre, dando-se o governo dos babilónios aos assírios. O roubo
duma mulher tebana acendeu a guerra sacra, que durou dez anos entre os tebanos e os
focenses. Outro insulto semelhante causou as guerras dos Messénios com os 5
Lacedemónios. A dos Troianos e dos Gregos também se não originaria se se não
roubasse a formosa Helena. O próprio Marte se viu cativo naquele dia em que foi
amante, caindo nos laços que lhe armou o injuriado Vulcano. Só foi formidável o
valor de 10 Lúcio Sila enquanto as delícias da Ásia o não afeminaram. Deslustrou a
Júlio César o louco amor de Servília, fazendo-se o dia do seu triunfo o mais
plausível para o pasquim. Sendo Vitorino nobremente adornado das prendas que se
desejam em 15 um grande príncipe, ninguém se atreve a recomendá-las na História,
onde só se acha abominada a dos seus amores desordenados. Sansão confiou a sua
vida e o seu segredo a uma Dalila infiel; Acab a Jesabel; Herodes a Herodias; o
sábio Salomão a 20 tantas moabitas depois de sacrificar à rainha de Sabá a mais
brilhante parte das grandezas com que Deus premeia os homens. A mulher do príncipe
Pútifar desceu da grandeza de senhora ao estado de escrava dum cativo. David
chorou todos os dias 25 e todas as noites da sua vida ter visto Bersabé. Perdeu-se
Siquém e toda a sua cidade pela formosa Dina. Furor e desesperação causaram os
desdéns de Susana aos velhos lascivos e a Fedra os desprezos de Hipólito. David
pagou o adultério na 5 desobediência de seu filho Salomão, vendo dividido seu reino
por causa das suas torpezas. Às de Holofernes cortou a cabeça a castidade de
Judite. Não perecera do convite Amon, se Tamar não fosse violada. Antíoco, rei da
Síria, chamado o Deus, perdeu a 10 vida nas mãos de Laodiceia por zelos de
Berenice. O imperador Antonino Vero a perdeu por outros ciúmes, bebendo o veneno
que lhe deu Lucila, sua mulher. Fredegonda, manceba de el-rei Quilperico, castigou
com a morte os seus adultérios. Arsínoe a 15 deu a Agátocles, seu enteado, porque
não quis condescender na depravação do seu desejo. Não podendo el-rei Balac vencer
com as armas a Israel, determinou Balan derribá-lo com as do amor e conseguiu-o. O
amor desordenado dos soldados formou 20 as Vésperas Sicilianas. Não se rendera
Espanha aos bárbaros nem choraríamos ainda hoje a perda de el-rei Rodrigo, se na
Espanha não houvesse aquele vício. Acabando finalmente esta confusa miscelânea de
erros dum desordenado amor, achados na 25 história antiga, sagrada e profana, que
exemplos vos não daria da moderna, se julgasse que para crer as catástrofes dos
nossas dias era necessário mais prova do que vê-las? Qual é agora o Hércules que
se não mete debaixo dos pés a que chame donairosos? Qual 30 o Ciro que se não
deixe ultrajar duma mão fraca, se é bela? E qual é ùltimamente o homem que resista
e que se defenda de ser arrastado, não digo pela formosura, mas pela mulher que
adora? Contentai-vos com a numeração dos funestos exemplos dos séculos passados e
com a experiência dos efeitos no presente. Pelo que toca aos futuros suponde
comigo que ainda serão mais abundantes e pode ser que ainda mais horrorosos pelos
danos deste amor 5 desordenado.
Convenho em que o número de semelhantes erros se poderia muito diminuir, se
o amante fosse amado sempre do objecto da sua paixão ou se fosse correspondido
constantemente; porém, como o amor 10 que temos a uma pessoa não basta para
determinar o seu e como sabemos, há muito tempo, que as correspondências não são
eternas, é necessário que vejamos todos os dias os excessos do ciúme, do desprezo e
da tristeza que conduzem os homens a 15 loucuras extraordinárias. Deixando os
furores e os efeitos trágicos a que a força destes movimentos deu princípio, passo
a referir-vos as ridicularias ou as puerilidades que os mesmos efeitos inventaram,
obrigando os homens a que as cressem e praticassem. 20 Imaginaram nossos avós um
erro, cujas partes têm chegado aos nossos dias e creram que havia meios seguros
para obrigar uma pessoa a amar. Estes meios empregavam-se de duas sortes e tinham
dois nomes. Uns eram encantos e outros feitiços. Os 25 primeiros pediam muito
aparato. Armava-se um altar ornado à roda dum frontal. Queimava-se nele incenso
macho e outros perfumes. A uma pequena estátua de cera, que se punha sobre o
altar, se pegavam seis pontas de fita de três cores diversas 30 e fazendo andar a
figura três vezes à roda do mesmo altar se davam três nós em duas pontas das fitas
que tivessem a mesma cor, dizendo-se que se davam nós no amor. Haveis de saber que
o número de três foi sempre de muita energia nesta qualidade de encantos amorosos.
Além desta figura, de que tenho falado, havia sobre o mesmo altar outra de barro e,
ao tempo que com fogo se endurecia uma e se derretia a outra, conjurava-se o
objecto amado para 5 que sentisse as mesmas alterações endurecendo-se para todas as
outras pessoas e derretendo-se pelo encantador ou pela pessoa por cuja intenção se
praticava o encanto. Punha-se depois sobre o altar uma torta, porém não sei se se
comia dela. 10 Queimava-se louro com certos betumes odoríferos e dizia-se que o
amante ardia no mesmo incêndio em que aquelas matérias se inflamavam. Finalmente,
tirando-se as cinzas do altar, lançava-as o amante a um rio atirando com elas para
trás das costas sem 15 que nessa acção se voltasse, pretendendo-se que estas cinzas
eram as que faziam maior efeito nas vitórias dos corações rebeldes. Quando a cinza
se acendia por si própria no altar, era sinal infalível do bom sucesso do encanto.
Todas estas cerimónias se 20 acompanhavam dum formulário de orações, que se
repetiam muitas vezes, com as quais se pedia a ternura e a brandura do objecto por
que elas se faziam. Tenho escrúpulo em repetir as orações porque entendo que se as
ajuntasse aqui que não 25 faltaria ainda hoje quem as rezasse fazendo a experiência
com as mais cerimónias. O sacrifício, que nesta corte se viu há tão pouco tempo
executado, prova que entre nós se conserva ainda a raça dos amantes pagãos. Não
sois vós a única a 30 entender-me e isso basta.
Eis aqui pouco mais ou menos o ritual dos encantamentos amorosos de cujos
efeitos vejo que duvidais. Os mais discretos pagãos os praticaram, tomando-os por
puerilidades. As razões que dá Ovídio bastariam para nos persuadirem, quando
tivéssemos disposições para julgar o contrário. É grande erro , diz Ovídio,
recorrer aos encantos para nos fazermos amar, ou empregar para o 5 mesmo fim
bebidas amorosas a que chamam filtros . Todas as ervas que tornaram célebre o
nome de Medeia, acompanhadas de invenções e formulários usados pelos mágicos, não
poderiam fazer com que o amor fosse eterno . Se estes meios tivessem alguma 10
eficácia, Jasão não seria infiel a Medeia e Circe prenderia a Ulisses nos seus
ferros . Desta forma, tudo leva a crer que não falou sèriamente o mesmo poeta, mas
que escarneceu de tais encantamentos quando, para se justificar com Corina, se
serviu 15 das seguintes escusas: Será algum veneno frio o que me gela o sangue ?
Terá alguma feiticeira pegado o meu nome a alguma estátua de cera e trespassado com
alguma agulha o meu coração ? Corina, que se sabia bastantemente bela para
comunicar ao 20 amante os movimentos que sentia, lhe disse: Que se alguma
feiticeira lhe tinha passado as lãs duma à outra parte do corpo, então outra
formosura lhe tinha roubado o coração , mostrando que se inclinava mais a crer na
segunda causa do que na 25 primeira.
As bebidas amorosas chamadas filtros, duma palavra grega que significa
amar, eram os feitiços que se davam às pessoas de quem se queria violentar a
natureza obrigando-as à ternura. 30 Oferecendo-se-me bastantes reflexões quanto a
esta matéria, permiti que divida a minha carta em duas partes e, dando-vos tempo
para criticardes esta primeira que vos envio, pouco tomarei para fazer a segunda,
que vos mandarei depois de amanhã. Estimarei que o estilo não vos pareça
burlesco, parecendo-me a mim a matéria de que vos escrevo tão pouco séria que o
merecia. Deus vos guarde muitos anos.
5 Muito vosso venerador
Viena de Áustria, 20 de Setembro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 11. A Madame de Klembach, continuando o discurso a respeito dos


encantos e dos feitiços amorosos

Ignorando eu qual era a verdadeira composição dos filtros, sei sòmente que
nela entravam algumas ervas misturadas com hipómanes, em que residia 10 a virtude
principal destas bebidas. Hoje haveria grande embaraço para os compor, sendo o
hipómanes nelas tão necessário, porque depois que os homens se aplicaram sèriamente
ao estudo da história natural desapareceu deste mundo a dita 15 maravilhosa
excrescência. Consistia esta, se havemos de dar crédito aos antigos, em um tumor
que os potros traziam sobre a cabeça, quando vinham ao mundo, o qual as éguas
devoravam no mesmo instante em que pariam, sendo essa a razão que se 20 dava para
explicar o amor que elas tinham e que ainda conservam aos seus potros. Como as
éguas deste tempo estão sujeitas às mesmas leis do passado, é muito natural que o
admirável hipómanes não tivesse jamais existência senão na falsidade dos mágicos
presumidos, os quais, para venderem as bebidas muito caras, se autorizavam com a 5
dificuldade que havia a supor necessàriamente na aquisição do hipómanes. Seja o
que for, o certo é que o dito hipómanes foi uma das coisas mais celebradas da
antiguidade. Como é possível que causando ele às éguas tanta ternura pelos potros,
não faça 10 o mesmo efeito nas pessoas se o usarem, diziam os antigos?
Presentemente, podia-se concluir desta observação que todos aqueles que usassem de
semelhante bebida não conseguiam outra coisa senão o prejuízo dos potros, os quais
ficariam 15 privados do amor materno pela subtracção do hipómanes. Parece-me que
esta consequência seria a mais justa, e a mais conforme às leis da boa física,
porém não temos o direito de ser tão rigorosos com a antiguidade como ela merecia
que fôssemos em 20 certas coisas.
Uma das mais desumanas e dignas de toda a severidade das leis servirá de
prova ao meu asserto, se é que necessita dalguma. Não sou eu que a invento, tendo
sido Horácio quem a contou. 25 Enterravam os antigos um menino até à barba e
apresentavam-lhe muitas vezes ao dia diferentes qualidades de alimentos sem que
lhos deixassem tocar. No meio deste bárbaro suplício morria o menino, e logo no
instante em que expirava empregavam o 30 fígado e a moela na composição e na
confeição dos filtros, como se os desejos que o desgraçado menino sofreu ao provar
os manjares tivesse comum correspondência com a vontade dos amantes. Não sei o que
se deva julgar de semelhante história; acho-me muito disposto a crer que,
aborrecendo Horácio a Canídia, confirmou este ruído popular para fazer que ela
fosse tão odiosa aos outros como era a ele próprio. É de supor que, se este caso
fosse 5 verdadeiro, não ficasse sem ser punido como um crime por todos os
princípios abominável.
Seria bem admirável que as bebidas desta natureza pudessem causar amor e
principalmente a um objecto determinado! Para amar é necessário 10 conhecer e os
filtros não fazem conhecer as pessoas que os dão. Assim como há remédios que
amortecem e que destroem inteiramente o amor, assim os pode haver para dispor as
pessoas que os tomam a senti-lo; porém que esses remédios sejam capazes de obrigar
15 a amar objectos determinados tenho-a por coisa impossível e absolutamente
contrária à razão. Poderia suceder que ao tempo da operação, apresentando-se o
amante a dar à pessoa amada a bebida amorosa, com seus discursos e graças
insinuantes 20 contribuísse do mesmo passo a tornar eficaz o filtro, mas já neste
caso não se poderá dizer que o agente seja a droga e não o indivíduo.
O único efeito que se tem observado como certo é que estas qualidades de
bebidas arruínam o entendimento causando grandes furores a muitos a quem se deram.
Escutai Ovídio. Não creiais, diz ele, determinar uma mulher a que vos ame dando-
lhe um filtro . Estas bebidas tiram o juízo, e 5 produzem a loucura . Apartai
de vós toda a acção criminosa . Se quereis ser amado, sede amável e isto é o que
o talhe e a fisionomia não podem por si só conseguir .
Olímpia, rainha da Macedónia, parece que 10 estava ìntimamente persuadida
desta verdade. Dizendo-lhe alguns senhores que certa moça tinha roubado o coração
a Filipe, seu esposo, por meio duma bebida que lhe dera, ordenou Olímpia que viesse
a dita moça à sua presença, porém 15 examinando os seus agrados e a excelência do
seu carácter conheceu e disse a todos que aquela mulher tinha o filtro na sua
própria pessoa.
Juvenal foi do mesmo parecer de Ovídio. Eis os termos em que trata esta
matéria. Um vos vende 20 encantos o outro vos vende filtros para arruinar as
cabeças dos maridos... Estes remédios, em consequência, produzem as trevas do
entendimento e a perda da memória para todas coisas que fazem. Ditosos serão
aqueles que tomando estas bebidas 25 não entrarem em furor semelhante ao de
Calígula, a quem Cesónia fez engolir um hipómanes inteiro. Causar semelhante
furor é acção que verdadeiramente se não pode conter na galantaria. Pede, diz o
mesmo Juvenal, ferro, fogo e tratos. Acaba por inundar a cidade com o sangue dos
senadores e dos cavaleiros. Aqui está no que pode redundar um filtro e uma
feiticeira.
Os historiadores concordam plenamente com os 5 dois poetas já citados.
Eusébio diz que Cornélio Galo, governador do Egipto, enfureceu e perdeu
inteiramente o entendimento depois de beber um filtro. Plutarco conta que L
Lúculo, general romano; entrou pelo mesmo principio em tal 10 loucura que perdeu a
vida. Lucila, mulher do poeta Lucrécio, suspeitando que ele lhe era infiel, lhe
deu uma bebida que depois de lhe fazer perder o juízo fez com que ele se matasse,
sendo este um raro e funesto exemplo de ternura conjugal, o qual 15 os maridos não
devem temer que se renove no tempo presente. Depois de muitos anos de loucura,
morreu na cidade de Vitemberga um sapateiro que também tomou um filtro.
Se depois dos referidos exemplos se pudesse 20 ainda duvidar dos
perniciosos efeitos dos filtros, chamaria em meu socorro a autoridade dos Gregos
que lhes dão o nome de veneno e a confirmaria com as leis romanas que pronunciam
penas capitais contra aqueles que os ministram. É certo que 25 as leis precedem ao
conhecimento do crime, porém não sei se a nossa jurisprudência é conforme neste
ponto com a romana, ainda que não duvide de que as leis que temos contra os
envenenadores podem receber aqui uma aplicação mui natural.
Eis aqui três segredos para obrigar a amar, os quais me parece que se
podem pôr em prática sem que a curiosidade interesse a consciência. O primeiro
consiste em uma pessoa trazer consigo o 5 coração duma andorinha, por efeito do
qual, dizem muitos, se fará estimar de toda a gente. O segundo não é tão
universal, porém é próprio ao nosso intento: Haver à mão dois anéis de oiro e de
prata, metê-los no ninho duma andorinha, onde se 10 deixam estar nove dias; ao cabo
tiram-se, ficando-se com um e dando outro à pessoa amada. Dizem muitos que essa
pessoa amará por força; quanto a mim, entendo que amará se quiser. O terceiro é o
mais singular. Raspam-se as asas duma cigarra, 15 apanhada na lua nova de janeiro
entre as dez e onze horas duma noite em que faça bem escuro, ao tempo que esteja a
cantar; coa-se esse pó por um ralo muito fino e dá-se a beber à pessoa amada numa
lágrima de vinho Tokai, por um dedal de 20 Tambaca do Peru. Ora, é coisa que faz
chorar, abrandar e estalar as próprias pedras! Tenho dado esta receita a muitas
pessoas do meu conhecimento e porque em todas tem feito maravilhas, julgo que não
há outro remédio que obrigue a amar com tanta eficácia, ou que seja mais verdadeiro
do que este.
Eu não duvido de que os ninhos das rolas façam, 5 como pretendem alguns, o
mesmo e ainda melhor efeito com os anéis que os ninhos das andorinhas; porém uma
bolsa cheia de boas moedas, quando se não quer usar a raspadura das asas das
cigarras, creio que na maior parte das ocasiões e com 10 a maior parte das pessoas,
de que é necessário examinar as circunstâncias, há-de ser de virtude mais
específica e mais efectiva que a dos anéis, saiam eles da quentura das rolas, ou do
bafo das andorinhas, onde já disse que devem estar nove dias.
15Sendo este também um dos meios de conciliar o amor, confirma a observação
que já fiz a respeito do número três. O nove, que é o quadrado de três, ou por
outra o produto do número três multiplicado por si próprio, não é menos eficaz
seguindo-se a 20 douta reflexão de Cornéio Agripa.
Acabaria aqui esta carta, dizendo-vos, numa palavra, que há malefícios que
danam, que prejudicam e que matam, e que não há feitiços que obriguem, constranjam
ou violentem a amar; porém como me meti a caminho de vos falar nas desordens do
amor, quero notar que este, desprovido de encanto, produz muitas vezes melancolias
5 tão fatais, que conduzem à morte os que as sofrem. Neste termo desgraçado se
achava Seleuco, o qual sem ousadia para descobrir o amor excessivo que tinha a
Estratónica, manceba del-rei seu pai, entrou em uma tristeza tão profunda que, 10
reduzindo-se a doença perigosa, a tinham já suposto sem remédio. Suspeitando
Erasístrato, que era o médico que lhe assistia, que alguma paixão da alma
entretinha o mal, disse claramente o seu parecer a el-rei Antíoco. Concordaram
ambos que, a pretexto de 15 divertir o príncipe, viessem sucessivamente à sua
câmara todas as damas da corte. Observava Erasístrato sempre que alguma delas
entrava na Câmara, assim na vista como no pulso do príncipe, a alteração que lhe
causava tal presença. Foi tão 20 sensível e tão duradoira a sua alteração quando
Estratónica apareceu que Erasístrato não duvidou assegurar logo que esta era a
causa do mal. O rei, preferindo antes sacrificar uma concubina do que um filho
único, cedeu Estratónica a Seleuco, e 25 Seleuco recuperou a saúde.
Semelhante caso sucedeu a Hipócrates, se quereis dar crédito a Sorano, que
o refere na Vida de Pérdicas, Rei da Macedónia . Mercê da sua reputação, aconteceu
que este pai da medicina fosse 30 chamado à presença daquele príncipe, combatido
desde muito tempo por uma doença mui grave. Conheceu Hipócrates por sinais
evidentes que essa doença era causada e entretida por agitação da alma. A fraqueza
e a debilidade que observou no pulso do doente à vista de Fila, concubina del-rei
seu pai, a quem ele não podia, obrigado pelo respeito, declarar a paixão violenta
que lhe inspirava, o determinou a concluir que esta era a verdadeira 5 causa de
toda a desordem. Declarando-se Hipócrates a Fila e persuadindo-a a lisonjear o
amor e esperanças do príncipe, conseguiu restabelecer-lhe completamente a saúde.
Não cuideis que foi este o último doutor alcoviteiro, porém não é aqui o lugar 10
de vos falar desta matéria.
Galeno descobriu outra paixão semelhante em uma mulher que tratava. Não
vos direi como terminou a sua doença porque me esqueci da história, porém contarei
em seu lugar outra dum doente que 15 melhorou por modo extraordinário.
Havia em Atenas uma moça chamada Hipácia, de entendimento tão superior que
ensinava retórica publicamente. Conheceu Hipácia que um dos seus discípulos se
achava perdidamente enamorado 20 dela, porém que o respeito lhe impedia que se
explicasse. O estado a que ele chegou lhe fez compaixão, vendo que ameaçava
trágico fim. Chamou-o Hipácia particularmente a sua casa e depois de lhe dizer com
toda a doçura que ela tinha 25 adivinhado o segredo do seu mal, no que ele logo
consentiu, lhe descobriu o seu corpo em hora que as mulheres têm o maior cuidado de
ocultá-lo e disse-lhe: Aqui tendes, meu filho, o horror que vós amais . O
discípulo, interdito e confuso, se lançou 30 aos seus pés, e pedindo-lhe perdão
prometeu emendar-se da sua paixão e assim o fez.
Raimundo Lúlio curou-se do amor violento que lhe inspirou uma mulher
formosa por um modo que tem alguma semelhança com o precedente. Perseguia-a ele,
havia muito tempo, para que lhe concedesse os últimos favores. Fingindo ela por
fim que se rendia aos seus excessos, lhe determinou hora particular e secreta para
se avistarem. Não 5 faltou Lúlio, porém assim que este chegou, descobrindo ela o
seio, lho mostrou quase roído dum cancro. O horror que o espectáculo lhe causou
extinguiu prontamente a flama impudica. Uma generosa piedade, ocupando o seu
lugar, obrigou-o 10 a partir para os países estrangeiros determinado a consultar os
homens doutos e a estudar com eles o remédio da cruel doença da sua amada.
Raimundo Lúlio inclinou-se à química e fez tais progressos que foi um dos que
adquiriram grande 15 reputação no segredo de fazer oiro. Voltou à pátria depois de
muitos anos, achou ainda viva a causa do seu amor, curou-a da sua enfermidade e
curou-se da sua paixão, contentando-se com ser sòmente bom amigo daquela de quem
tinha sido louco 20 amante.
Nem sempre sucedeu que os furores amorosos se curassem tão prontamente.
Quando o mau temperamento se ajunta à desordem da imaginação, aumentam-se de tal
forma que nem a razão nem a 25 honestidade têm forças para os rebaterem. Degeneram
neste caso em uma mania verdadeira, que é doença conhecida dos médicos com
diferentes nomes. Nesta conformidade todos os movimentos e todos os pensamentos do
doente respiram 30 lascívia. As suas acções, semelhantes aos seus discursos, fazem
pejo às pessoas mais dissolutas.
Foi já necessário atar alguns destes doentes com cordas para os embaraçar
que fossem buscar algures os remédios que com muito trabalho se lhes procuravam
por meios que a honra e a religião não proíbem.
Se devemos crer certos autores, era este o estado 5 em que se achava aquela
imperatriz a quem as desordens lascivas deram um nome que incarna hoje a sátira
completa da degradação. Falo de Messalina, cuja lubricidade foi tão grande que ela
própria não a sabia satisfazer.
10 Esta doença foi já algumas vezes epidémica. Refere Plutarco que as
filhas de Mileto, sem ninguém lhes poder acudir, se enforcavam em bandos, nos
acessos desta violenta enfermidade. Se soubessem que há três remédios para o amor,
o tempo, a 15 fome e a morte, decerto não escolheriam o terceiro antes de
experimentar os outros. Dizem que as mulheres da cidade de Lião se deitavam em
monte nas ribeiras e nos poços, não podendo resistir à fúria de desejos que não
queriam descobrir. Não 20 vos saberei dizer em que tempo foram as lionesas tão
lascivas. O mesmo autor francês que escreveu esta história o ignorava, ou teve
razões particulares para ocultá-lo.
Nesta e na última carta que vos mandei vos 25 tenho feito uma história mal
ordenada a respeito das desordens do amor. Se me perguntais agora quais são os
remédios para as desta última qualidade, direi que os peçais aos médicos que
pretendem tê-los não só para mitigar, mas para extinguir 30 inteiramente os seus
fogos. Nesta conta entram as folhas do Vitex ou Agnus Castus , que servindo de
cama às virgens vestais, as preservavam da tentação de perder aquela flor que
deviam conservar sob pena de serem enterradas vivas. Na mesma conta entra a erva
chamada menta , a qual se não deve semear, nem comer em tempo de guerra, conforme
um provérbio referido por Aristóteles, porque, assim como apaga os incêndios do
amor, 5 assim embaraça a restituição que o Estado pede dos vassalos que a guerra
lhe arrebatou. Dizem ainda os médicos que há mais remédios semelhantes de natureza
interna e outros que se podem aplicar com bom efeito externamente. Não metamos a
10 nossa foice na seara alheia. Os médicos sabem muito bem o que dizem, porém,
pelo que me toca, tenho mui pouca fé nestes remédios e julgo os preservativos muito
mais úteis e eficazes. Um dos melhores princípios é: oponde-vos a eles a tempo ,
15 diz o grande mestre da Arte de amar, porque é tarde para dar o remédio quando o
mal lhe tirou as forças todas . É necessário evitar a solidão, onde a alma padece
por falta de objectos que a divirtam. Não é menos conveniente fugir das lições,
das 20 companhias e dos alimentos que incitam paixões amorosas. O caminho mais
seguro para fugir delas é o de ocupar-se uma pessoa em coisas úteis. Deixai de
ser ocioso , diz Ovídio, e não só quebrareis o arco, mas extinguireis os incêndios
do Amor . É quase 25 impossível empregar-se o homem em muitos objectos ao mesmo
tempo, o que predomina destruindo todos os outros. Parece-me que por esta razão
disseram todos os poetas que há três deusas impenetráveis aos tiros do amor:
Minerva, Diana e Vesta. Se tendes necessidade de vos alistar, podeis escolher a
bandeira que quiserdes servir. Mil coisas vão ocorrendo, porém cantar mal e
ateimar é o mesmo 5 que escrever muito e dizer pouco. Já sabeis que assim como no
saber está raras vezes o poder, assim no poder está jamais o saber. Não está na
minha mão, minha senhora, saber o pouco que sei. Por isso não esteve nela ser tão
sério neste papel como 10 mandastes. Deus vos guarde muitos anos.

[ signed ] Muito vosso venerador

[ date ] Viena de Áustria, 22 de Setembro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 12. A Monsieur de M. *** Sobre coisa nenhuma

Amigo do coração. Não há coisa mais certa que a que me dizeis. Sócrates
amava muito mais imprimir 15 os seus pareceres sobre os corações dos homens do que
sobre as peles dos animais. Se eu tivera pareceres para imprimir, confesso-vos que
também seria da mesma opinião. Deixar porém de imprimir no papel os pareceres que
por esse meio se podem 20 imprimir no coração dos homens não seria acertado, por
mais certo que fosse o parecer de Sócrates. Desta forma não poderiam os sábios
ser úteis que aos seus vizinhos sòmente. Parece-me que todos os filósofos e homens
doutos devem trabalhar igualmente para a instrução do seu século e para a da 5
posteridade, e que devem escrever e imprimir as suas sentenças, as suas opiniões, e
as suas doutrinas, para as fazer passar desta forma dos corações dos homens
presentes aos dos ausentes e aos do futuro. Será possível que mostrásseis o
exemplo de 10 Sócrates para culpardes ainda a opinião que tenho, e que vos escrevi,
de Frei Henrique? Não o creio, porém se inquietasses o filósofo por esta razão,
digo-vos que já que eu o não posso imitar nos pareceres o imito justamente nos
desejos. A intenção com 15 que vos escrevi o conceito que faço dos religiosos e
dos frades é para o imprimir no vosso coração, mas não na pele de Frei Henrique.
Imitai ao filósofo no mais, porque eu só no que é menos o poderei seguir. Se sois
meu amigo não me faleis mais em 20 frades. Em religiosos falemos sempre. Nas
freiras e nas religiosas desta terra também me podeis falar, porque as tenho por
muito boa gente. Pelo que toca às freiras de Lisboa, é melhor falar com elas do
que falar nelas. As religiosas do meu país são 25 igualmente virtuosas como as do
vosso. Se vós pudésseis ver agora Carnide, eu vos asseguro que ficaríeis
arrebatado, e se eu pudesse ver agora a Madre Deus, juro-vos que estaria como na
glória. Eis aqui uma opinião que Sócrates não teve nem 30 escreveu; e eu não só a
escrevo, mas sou muito capaz de a imprimir, desejando vê-la mais no coração dos
homens do que no papel. Ver a Madre Deus, e estar na glória é o mesmo. Ver
Carnide é estar com os anjos. Para ver o Sacramento é 5 necessário tremer de
respeito. Ver o Crucifixo não se faz sem profunda devoção. A ver as Francesinhas,
e as Inglesinhas todos dirão que são coisas raras, estrangeiras e peregrinas. Ver
as Bernardas e ver as flores que elas fazem, tudo parecerá jardim onde 10 tudo são
flores. Não cuideis que vos falo de duas léguas fora de Lisboa; tudo o que vos
digo é do Mocambo. Na minha terra há muita diferença entre as freiras que vendem
bonecas e entre as freiras que os fazem ainda que sejam da mesma Ordem. Em 15
todas as Ordens há bom e mau; e a maior prova dessa desordem é a minha mesma Ordem,
na qual havendo uns que fazem figura, há outros que a desfiguram. Aqui está uma
opinião, meu amigo, em como Sócrates e todos os mais filósofos foram 20
ignorantíssimos, ou pelo menos o mostraram, não escrevendo uma só palavra nesta
matéria. Quarta-feira de Trevas deste ano assisti ao Ofício da igreja das Portas
do Céu desta cidade. As lamentações das senhoras que habitam aquele mosteiro foram
as 25 primeiras que me fizeram chorar. O Diabo que também entra na igreja me meteu
ali na cabeça que as minhas lágrimas procediam de devoção, porém, vendo que me não
podia ter com riso do muito mal que cantavam, julguei que estava tentado e assentei
em que rir muito acaba sempre em chorar. Quinta-feira Santa estive em Renweg, e
seria 5 necessário deixar de ser cristão para deixar de me mostrar devoto. Solene
e perfeitamente se executaram as cerimónias do dia na igreja do mosteiro, às quais
assistiu a imperatriz Amália, aumentando com o esplendor da sua virtude a nobreza
de tantas que 10 ali se encerram. Agora me direis que em tudo acho defeito. Tive
para mim que o era andar nesta mesma igreja um sacristão com sobrepeliz e com o
cabelo metido em um pente à moda do país. No meu não seria certamente um bom
costume. Para 15 nos livrarmos de frades basta de freiras. Falei-vos nelas por me
fazer entendido do remoque de Sócrates a respeito de Frei Henrique. Perdeis o
vosso tempo e a vossa filosofia empregando uma ou outra coisa nesta matéria, à qual
sempre vos 20 responderei, porém de chança. Tenho sono porque é tarde, e isso
mesmo sucedia a Sócrates quando se levantava cedo. Com bem passe Vossa Mercê a
noite, se diz na minha terra, porém não sei se Sócrates saberia dizer isso para
acabar uma carta. Adeus.

[ signed ] Amigo do coração

[ date ] 25 Viena de Áustria, 24 de Outubro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 13. À senhora Condessa de Roccaberti sobre o desterro


O mundo é a pátria natural, universal de todos os homens. O desterro não é
mais que uma passagem feita duma província para a outra. Esta outra província onde
se acha um desterrado é o país de 5 todos aqueles que nasceram nele e também o pode
ser do desgraçado, se ele tiver entendimento para se acomodar com a sua sorte. A
mesma pátria pode algumas vezes servir de lugar de desterro àqueles a quem não
consta onde nasceram como sucedeu a 10 Édipo, que, banido do lugar onde se criou,
viveu desterrado no mesmo lugar em que tinha nascido. Quando se levam as crianças
das casas das suas amas para as de seus pais, consideram estas as ditas moradas
como desterro, e por isso choram. É uma 15 fraqueza do ânimo considerar-se o homem
perdido quando se vê em um lugar onde nunca esteve. O homem deve imaginar que em
todo o mundo tem a mesma natureza, que em todo está debaixo do mesmo céu, e que em
toda a parte se encontram 20 homens da mesma espécie.
É verdade que podemos ser exilados para um mau país, porém não lhe havemos
de dar este nome sòmente por não ser o nosso. Todo e qualquer país está igualmente
perto do céu, e é a pátria do homem 25 fiel. Tão fàcilmente se acha a Deus no país
do nosso desterro como no da nossa pátria, e ainda mais naquele do que neste,
porque Deus está muito com as pessoas destituídas e desamparadas, e sabemos que
toma entre os seus títulos o de Protector dos Estrangeiros . Salmo 146 versículo 9.
5 Achais-vos banido por um tirano? Considerai quantos estão banidos da sua
pátria pela sua própria avareza, que é ainda maior tirania, porque a fim de se
enriquecerem se expõem a mil perigos, sofrendo infinitas incomodidades. Pois que
não há 10 coisa que pareça difícil quando para ela concorre a vontade, não temos
mais do que acomodar a nossa com a necessidade que a pede, e logo acharemos
suavidade nos mesmos trabalhos.
O homem que sofre impacientemente o desterro, 15 mostra que não compreende
bem a condição com que os fiéis estão no mundo e que ignora qual seja a pátria dos
servos de Deus. O céu é o seu país, a vida a sua peregrinação, sendo estrangeiros
não só dos mesmos países dos seus nascimentos, mas nos 20 seus próprios corpos.
Enquanto moramos nos corpos somos estrangeiros do Senhor , diz São Paulo. Vivendo
pois fora da nossa pátria em qualquer lugar do mundo onde estejamos, não nos deve
parecer que algum país seja mais estrangeiro do que outro. 25 Contanto que
caminhemos para Deus não sairemos jamais da nossa estrada.
Têm-se feito tais queixas a Vossa Excelência de que não sei tratar nos meus
escritos matéria alguma sèriamente que, se há-de dar crédito ao grande número, é
digno 30 de toda a fé o dos meus acusadores, porém, como eu nunca brinquei com as
ordens de Vossa Excelência , executo a que me deu mandando-me declarar o que eu
escreveria consolando a um desterrado. Por essa razão o faço de tal forma que não
fique lugar aos que me culpam de entenderem que também zombo com Vossa Excelência
a quem só venero. Guarde Deus a Vossa Excelência muitos anos.

[ signed ] Criado de Vossa Excelência

[ date ] 5 Viena de Áustria, 12 de Outubro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 14. A Monsieur de M. *** Em defesa dum lugar de Ovídio

Amigo do coração. Se Monsieur Charpentier não era criado de Ovídio, eu


também o não sou de Monsieur Charpentier, nem o quero ser de ninguém. Servir
sòmente a Deus e ao rei é a minha inclinação, 5 e essa foi também a educação que
recebi de meus pais. Se entendeis que sou grande amigo de Ovídio e o quero
defender, enganais-vos e juro-vos que é um homem que nunca vi, nem conheci.
Julgareis que sou contrário a Monsieur Charpentier, 10 e que por essa razão me
oponho à sua crítica contra Ovídio: também vos digo que vos enganais, porque também
nunca vi, nem conheci Monsieur Charpentier. Há mui pouco tempo que soube que era
um acadêmico da Académia Francesa, e lembra-me que, 20 encontrando as suas obras
antes de saber esta língua, as tinha por obras dum carpinteiro de ofício, e não dum
académico de nome. Não é a paixão nem o amor que farão o meu discurso. É a razão
que fala, ou é o meu juízo que erra.
25 Diz Monsieur , Deus lhe perdoe, que é para ele uma coisa muito ridícula
ver no princípio do Quinto Livro das Metamorfoses de Ovídio um tocador de lira,
ferido de morte, querer tocar ainda as cordas daquele instrumento com a mão trémula
e 5 moribunda:
- et digitis morientibus, ille retentat fila lyrae -
Por mais doido ou por mais aplicado que este músico fosse na sua arte, quem
duvida, continua a dizer o senhor Charpentier, que em se vendo 10 trespassado duma
espada não largasse a lira com toda a diligência, empregando-se na de fugir, ou na
de se defender antes que na de tocar a mesma lira? É coisa verdadeiramente
grosseira supor que este homem, que foi morto bastante tempo depois 15 de começar o
combate, tocasse ainda o instrumento naquele tempo. Apartou-se Ovídio muito do
natural, diz finalmente Monsieur Charpentier, e, dizendo vós que ele disse muito
bem, eu digo e entendo que disse e entendeu muito mal.
20 Consinto em que todos aqueles que trabalham com a imaginação: poetas,
pintores e oradores devem ter sempre diante dos olhos o admirável preceito de
Quintiliano: Intueri Naturam et sequi. Considerar a natureza e segui-la é a regra
geral 25 para acertar, porém, havendo licença para ornar as cópias que se fazem
dela, ajuntando à escolha favorável que se elege os aparatos próprios que se
apresentam, pode-se dar alguma liberdade à imaginação, contanto que se não falte à
verdade nem ao natural inteiramente.
Tal é a vida, tal é a morte. Não há coisa mais 5 natural que verem-se os
homens assistidos das suas inclinações até o último período da sua duração. Sei
dum cioso que, vendo-se entregue à morte sem remédio, cuidou mais em salvar a
ocasião do seu ciúme do que na perda da sua vida. Para o 10 conseguir tirou a vida
à própria mulher que amava. É acção bárbara, porém é verdadeira e foi executada
por um monarca. Sei dum amancebado a quem, no instante de expirar, quis persuadir
o confessor a que fizesse sair de casa e apartasse a 15 concubina em cuja amizade
se tinha entretido muitos anos. Respondeu que tudo executaria menos aquela
obrigação a que chamava despropósito. Disse-lhe o confessor que desta forma se ia
meter directamente no Inferno. Respondeu que o queria 20 ver e, fechando no mesmo
instante os olhos para sempre, pode-se supor que caiu no abismo eterno, tocando até
o último ponto as mãos da dita concubina que lhe assistia à cabeceira. Este
exemplo é medonho, porém certo e referido por infinitos 25 autores. Sei que na
última guerra de Espanha se achou um paisano que, vendo saquear sua aldeia, a sua
casa e os seus bens, passeava à vista de tudo mui sossegado; e sei que, vendo-se
não trespassado duma espada, mas arriscado e ameaçado 30 de muitas espadas
contrárias, conservou a sua mesma tranquilidade em tal forma que, vendo passar um
soldado inimigo que tocava viola destemperada, servindo-lhe a dissonância de
incomodidade o chamou e, acomodando o instrumento, lho 5 restituiu dizendo-lhe que
então podia tocá-lo pois que se achava temperado. Dando-se uma cutilada em um
homem a quem eu mesmo acudi, observei que estando mui mal-ferido não cuidava tanto
em fugir aos seus contrários, nem a reparar o seu dano, 10 como em buscar o chapéu
que tinha perdido na pendência e que mostrava estimar mais do que o muito sangue
perdido pela ferida. Se se desse uma boa estocada em qualquer avarento, não creio
que cuidasse em fugir à espada inimiga, nem em livrar 15 a vida; abraçaria os sacos
do seu dinheiro e os cofres do seu tesouro, soltando entre eles o espírito e
perdendo entre eles a alma.
Qualquer dos exemplos ou sucessos que refiro me parecem mais fortes e mais
incríveis que o de 20 Ovídio, e porque há-de ser este tão grosseiro e apartado do
natural, se os outros são naturais, verdadeiros e sucedidos realmente? Quando o
caso de Ovídio não fosse verdadeiro, podia ser natural e, por mais grosseiro que
seja na opinião de Monsieur 25 Charpentier, na minha quero que seja muito delicado:
- et digitis morientibus ille retentat fila lyrae -
Não pretendo que me acheis juízo se não me achardes razão. Uma e outra
coisa encontro sempre nos vossos discursos, porém, em seguir o de 30 Monsieur
Charpentier nesta acusação de Odívio, parece que vos desfizesses por algum tempo
da vossa justiça e da vossa discrição.
[ signed ] Adeus, Até ao tempo do digitis morientibus saberei dizer que sou
vosso |
Amigo do coração

[ date ] 5 Viena de Áustria, 28 de Outubro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 15. Ao Senhor Conde Claravino Basso. Sobre o amor e ternura


portuguesa

Ao menos não podereis negar - diz Vossa Senhoria - que os Portugueses e os


Espanhóis são os homens em quem se acha maior amor e maior ternura. Confesso que
tem Vossa Senhoria razão, e julgo que ser amante 10 e ser terno não são defeitos de
que a minha nação se deva envergonhar. Pelo que respeita à castelhana pode Vossa
Senhoria dizer o que quiser, sem que me obrigue a dar-lhe resposta no caso que se
engane alguma vez, visto que as gentes espanholas fazem reino à 15 parte y reyno
suyo que es en el su mayor glória.
Até aqui estava tudo muito bem, porém dizer Vossa Senhoria que este amor e
esta ternura obrigam os Portugueses a morrerem e a matarem-se pelas suas damas,
sendo esta furiosa loucura ignorada por 20 todas as mais nações, é levantar de
ponto, faltar à verdade e mostrar uma pouca de grande ignorância a respeito do que
se passa no mundo. Perdoe Vossa Senhoria os termos, porque querendo aproveitar-me
de todos os favores de Vossa Senhoria uso agora da liberdade que me tem dado para
que nos tratemos com 5 sinceridade e com franqueza. O Diabo foi dizer a Vossa
Senhoria o que eu disse a Sílvia no jardim de Schombrun a semana passada. É
verdade que lhe disse, porque não costumo negar coisa alguma do que digo, o
seguinte:
10 Ma destinée est de mourir, |
En vous aimant, belle Sylvie, |
Vos rigueurs m'oteront la vie, |
Ou je la finirai par l'excès du plaisir, |
Si d'un parfait retour ma tendresse est suivie.
15 A respeito desta canção diz Vossa Senhoria agora o seguinte e parece-me
que fora melhor não o ter dito:
1. A composição é verdadeiramente do Chevalier de Oliveira.
2. Um poeta francês não usaria de semelhantes 20 frases.
3. Só aos Portugueses é permitida a loucura de morrer e a fúria de se
matarem pelos seus amores.
1. A composição é verdadeiramente do Chevalier de Oliveira . Não é tal. A
composição é certamente 25 do doutor Crisóstomo Matanásio, varão claríssimo,,
doutíssimo e ornadíssimo, autor incomparável, príncipe dos críticos antigos e
modernos, glória e fénix dos nossos dias, na opinião de excelentes escritores,
sendo um deles Menkenius, reitor magnífico da 5 Universidade de Leipzig, o qual
fala assim de Matanásio na dedicatória dos seus Discursos:
......... Docte Matanasi |
Parens optime dulcium leporum, |
Censor candide, fautor et chorage |
10 Phoebi, qui ausus est elegante vena |
Doctum doctius explicare Carmen.
Eu bem quisera ter feito a canção, porém digo a Vossa Senhoria que a fez o
dito Matanásio na língua grega, e que ele mesmo a traduziu em francês da forma que
15 eu a repeti a Sílvia.
2. Um poeta francês não usaria de semelhantes frases. Ora essa! Se o
doutor Matanásio não é francês, escreveu neste idioma com aplauso universal, e
podia servir por esta razão de exemplo e de 20 resposta à negativa de Vossa
Senhoria Contudo, para mostrar Vossa Senhoria as mesmas frases em outra obra
francesa, peço-lhe que leia L'Europe Galante, na primeira cena da terceira entrada,
e suponho que achará, como eu achei, não só as frases mas o pensamento 25 de
Matanásio nos seguintes versos:
Mais ma mort est toujours certaine Quelque succès qu' Amour daigne me
préparer, Que Lucile soit inhumaine Ou sensible à l' ardeur que je viens déclarer,
5 Il faudra toujours expirer De mon plaisir ou de ma peine.
Os Espanhóis, os Italianos, os Ingleses, os Alemães e os Flamengos se
servem desta frase, e se eu soubesse a língua dos Chinos, como a sabia o ilustre 10
autor da defunta História Crítica da República das Letras , creio que também nela
encontraria algum exemplo de semelhante uso.
3. Só aos Portugueses é permitida a doudice de morrerem e a fúria de se
matarem pelos seus 15 amores. Não é tal. Veja Vossa Senhoria as histórias
antigas e achará que Macário se matou com sua irmã Canace, da qual era amante e
igualmente amado. O mesmo sucedeu a Papírio com sua irmã Canúlia. Marco António
matou-se por amor de Cleópatra. Não 20 podendo haver Pórcia uma faca para tirar a
si própria a vida depois da morte de Bruto, teve o valor de engolir brasas,
píldoras que certamente devem ser mui difíceis de tomar. Leodâmia caiu por terra
como morta, quando Protésilas partiu para em 25 campanha, e morreu efectivamente
logo que lhe constou que ele tinha perecido. Lucrécia Camília, da qual escreveu
os amores Aeneas Sylvius, morreu da dor que lhe causou a separação do seu amado
Euríalo, o qual cometeu a baixeza de se consolar 5 desta perda casando-se com uma
dama alemã, imitando ao pérfido Enéias, que se casou com a filha do rei dos
Latinos, depois que a amável Dido afogou 10 o seu amor no próprio sangue.
Provam todos estes exemplos que se morre de amor como Vossa Senhoria diz,
porém todos eles provam que não são só os Portugueses os homens que estão sujeitos
a esta loucura como Vossa Senhoria entende, talvez porque não leu em Jodelle a
seguinte passagem, pela qual se mostra que esta paixão, ou fúria que 15 o amor
causa, é natural a todos os viventes:
Nul vivant ne se peut exempter de furie, |
Et bien souvent l'amour à la mort nous marie. Um homem moço e de grandes
esperanças se achou debaixo da Ponte de Londres com as 20 algibeiras cheias de
chumbo, que expressamente meteu nelas para se afogar. A razão que teve para
executar esta loucura foi porque uma mulher, a quem ele amava e que vendia café,
intentou lavar a taça por onde tinha bebido o thé , não querendo consentir ao
amante que bebesse por ela antes de estar limpa.
Acha Vossa Senhoria destas em Portugal? Pois veja-se também em Inglaterra
e busque-as por todo o mundo, 5 e eu lhe aseguro que as encontra ainda piores. Não
é tal, dirá agora Vossa Senhoria Não basta dizê-lo, é necessário prová-lo.
Enquanto Vossa Senhoria cuida nisso, cuido eu em viver para Sílvia, estando já mui
arrependido de querer morrer por ela. O certo é 10 que falei pela boca do douto
Matanásio, mas sem tenção de executar ao pé da letra a força da canção que lhe
repeti. Perdoe Vossa Senhoria o atrevimento e, já que precisamente se há-de
morrer, deixe Vossa Senhoria morrer cada um a seu gosto e conserve-se naquele em 15
que vive de não morrer por pessoa alguma, que é o mesmo que estar no Paraíso dos
Parvos e no Estado dos Inocentes nos seus próprios significados, pois que não é
minha tenção que elas tenham outro 20 sentido. Deus Nosso Senhor guarde a Vossa
Senhoria por muitos anos.

[ signed ] Amigo e servidor de Vossa Senhoria

[ date ] Viena de Áustria, 8 de Novembro de 1736.


[ letter (author: CO)]

[ title ] 16. A Madame de Klembach, estando ausente da Corte

Ainda não vi ideia mais justa do que a vossa a respeito da fragilidade


humana. Ordinàriamente não amamos os objectos se os não vemos. O nosso coração
prende-se pelos olhos e, como quase tudo se 5 conserva por efeito das causas de que
nasce, corremos grande perigo de perder os amigos logo que os perdemos de vista. O
esquecimento fez-se para os ausentes. Este destino é tão comum que raramente se
evita. Duvido porém que essa infelicidade vos 10 compreenda, e julgo que, se os
ausentes tivessem os vossos merecimentos, nenhum a experimentara. È certo que
vivemos em um século indignamente ingrato. Não há amigo que se não queixe, não há
amante que não se desespere, porém a respeito dos 15 primeiros eles se têm feito
tão raros, que presentemente me parece que a desgraça de perdê-los não cairá sobre
pessoa vivente. Quanto aos amantes não há coisa mais fácil, nem mais praticada
entre eles que a de remediar a perda duns objectos pela 20 renovação doutros, a
eficácia deste remédio não necessitando que se lhe exagere a virtude.
Notícias da Corte não as tenho. Das mudanças que sucederam nela já sabeis.
Dois grandes ministros renunciaram voluntariamente a seus cargos. 25 Isto é raro.
Dois dignos vassalos escolheu o soberano para lhe sucederem nos empregados. Isto é
difícil. Ainda não vi eleição como esta. Tem sido tão aprovada de todos como se
universalmente fossem consultados para ela.
Quanto ao nosso Homem digo-vos que está-se nas tintas. A parvoíce vai
sendo grande, e temo que ma faça ainda maior do que aquela em que o deixastes,
trabalhando para o duque de Aremberg. 5 Nunca julguei que era tão grande o meu
merecimento, porém a honra é de quem a dá e não deixa de faltar a quem a perde.
Temo que vos pareça pequena a minha carta, porém estimarei que não tenhais
outra crítica a 10 fazer-lhe. Para não ser mais dilatado, tenho muitas razões.
Quem não sabe divertir deve ao menos não molestar. Pois que não vindes, lembrai-
vos, e pois que ficais, adeus.

[ signed ] Muito vosso venerador

[ date ] 15 Viena de Áustria, 9 de Novembro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 17. |
A mademoiselle Galetti. cantatriz da ópera de Viena

Pois que te não convences da razão, cara Galetti, persuade-te ao exemplo.


Se me não crês falando, crê-me cantando, porém teme que me crerás chorando, se me
não creres prognosticando. Desando 20 em ando , porque ando há muito tempo para
dizer-te que o jogo e a música são duas tendas que a mocidade fabricou no andar da
rua, e sobre as quais não pôde a velhice até agora formar sobrado. Morrer uma
música pobre é tão natural como morrer esfalfada, e tanto para um fim como para o
outro não é necessário mais princípio que o de ter cantado não só pùblicamente
sobre um tablado, mas no 5 retiro mais oculto da sua câmara. Aquele célebre
português, a que tu chamas Camones , e de quem ouviste tantas maravilhas em Itália,
não sabemos em Portugal que cantasse solfa; porém! sendo tão insigne como te
disseram, meteu-se-lhe na cabeça 10 formar com as figuras do A B C umas certas
claves a que chamou cantos, que sendo os mais harmoniosos que até agora se ouviram,
só por serem cantos deram com todo o seu merecimento em um canto do mundo, onde
cantando como um anjo o estimaram 15 sòmente como um cego, deixando-o morrer pobre
e miserável como Job. Se eu te quisesse referir o que se tem observado em
semelhante caso seria um nunca acabar. Na Biblioteca del-rei Cristianíssimo acham-
se seis livros mais gordos que o teu Scapin, 20 e constam De Infelicitate
Litteratorum que é o mesmo que dizer De Paupertate Musicorum . Nescio quomodo
bonae mentis soror est paupertas , dizia o bispo de Avranches, vendo estes livros e
outros tratados que se tem feito sobre a mesma matéria. 25 Ignora-se a razão da
fraternidade da ciência com a miséria, e o parentesco da música com a pobreza,
porém vê-se que a sua companhia é inseparável, e tu sabes que se diz em italiano
como em português, que para o que se vê não é necessário candeia. Ah 30 Galetti,
mia Galetti chara, veddi il fine, vê que a família dos Manuéis está para ti no fim
do mundo, e que um Manuel daquela excelentíssima casa te ilustra e te enriquece na
tua mocidade, que esse mesmo nem outro algum olhará para ti em poucos anos. Não
jogues Galetti, não sejas tola. Se cantas, guarda o que ganhas, e, se tens outros
ganhos que eu não saiba, não seja tudo cantar, nem dançar. Se não podes fazer
tesouro, cuida ao menos em 5 enceleirar. Ouve o que sucedeu a outro génio da tua
profissão, chegando a necessitar dum dos mais humildes bichos da terra.
Era quando menos uma senhora muito guapa chamada Dona Cigarra, que exposta
ao teatro 10 sublime das árvores mais frondosas, tinha estrugido com músicas
continuadas todo o auditório do Estio. Não havia vivente daqueles, a quem em honra
da sua qualidade chamamos insectos, que não trabalhasse e que não desse os dias da
vida pela sua 15 sustentação e conservação, metendo-lhe pelos olhos, ou por baixo
deles, os seus obséquios. Chegou o Inverno, adeus moscas, mosquitos e
mosquitinhos! Necessitou a Galetti, quero dizer a Cigarra; desceu dos tablados;
pôs-se por portas, e chegou a pedir 20 esmola à duma formiga, reputada por
sevandija de todos os quatro costados. Disse-lhe a formiga, vendo-lhe a boa
postura, sem examinar a miséria, que fosse ganhar a sua vida. Apertava a fome e
perdendo a Cigarra todas as esperanças de receber 25 caridade de mãos conhecidas
por avarentas, tentou a formiga com o interesse, pedindo-lhe que lhe emprestasse a
juro cem grãos de trigo sobre a hipoteca aérea de algumas vozes, com que lhe
assegurou que pagaria o principal e o interesse no mês de Agosto. 30 A nada o
brutinho se moveu.
- Que fizestes vós no Verão? - perguntou a formiga à cigarra.
- Cantei de dia e de noite, recreando os bosques, os prados e as selvas que
tive por meus ouvintes.
- Cantastes no Verão - disse a formiga - pois saltai e dançai agora no
Inverno.
Cuidando a cigarra que divertia a formiga e que teria dela algum
agradecimento, fez quatro cabriolas 5 à sua vista, porém esforçando-se para lhe dar
um recital, como as tripas estavam em ária, faltou-lhe o fôlego e morreu de estoiro
a cigarra.
Escarmenta Galetti, tem juízo, toma conselho, canta e guarda, salta e
atrepa, mas não jogues. Sou 10 teu amigo; és engraçada; tens bom amante; muito
merecimento, voz que agrada, e o mais que já se sabe; e com todas essas prendas,
perfeições e requesitos queres morrer de estoiro à porta da formiga?! Olha o que
fazes, olha para esta carta que 15 contém mais moral do que tu cuidas, e olha
também para mim esta noite quando cantares a ária, Disgombra dunque oh bella .
Dou-te três bbb portugueses se te não rires. Adeus chara .

[ signed ] Schiavo dil tuo mérito

[ date ] Viena de Áustria, 18 de Novembro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 18. |
A Senhora condessa de la Bourlie de Guiscard, marquesa de Laval

Permita Vossa Senhoria dar-me já a conhecer a uma dessas formosas em que me


falou. Morro de impaciência, e, pois que Vossa Senhoria me obriga a amar, corra
por sua conta fazer a felicidade de que eu seja 5 correspondido. Não pude sossegar
toda a noite com o sentido nas duas Senhoras a quem Vossa Senhoria me disse que me
oferecera por amante. Escrevo a uma delas o bilhete incluso, e espero que Vossa
Senhoria o queira entregar àquela que julgar que eu amo mais. Em reconhecimento 10
deste favor, declaro a Vossa Senhoria que disporá sempre de todas as minhas
afeições, prometendo não amar pessoa alguma tanto como a Vossa Senhoria senão
quando me achar persuadido que Vossa Senhoria assim o quer. Guarde Deus a Vossa
Senhoria muitos anos.

[ signed ] 15 Criado muito venerador

[ date ] Viena de Áustria, 20 de Novembro de 1738.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 19. |
A uma de duas Senhoras desconhecidas com uma declaração de amor

Inclinação semelhante à que vos tenho jamais a houve no mundo. Ignoro


absolutamente quem vós sois, e ignoro da mesma forma o vosso nome. Sem embargo
desta ignorância há vinte e quatro horas 5 que vos amo, e já podeis contar um dia
em que me fizestes padecer e suspirar. Sem vos ter visto o rosto, o acho belo, e
acho mui agradável o vosso discurso, sem que vos ouvisse falar. As vossas acções
me encantam, e finalmente imagino em vós um não 10 sei quê que me obriga a amar não
sei a quem. Parece-me algumas vezes que tendes o cabelo loiro, e outras vezes me
parece que o tendes negro. Julgo que sois pequena e ao mesmo tempo me pareceis
grande pessoa. Pode ser que passeis da estatura a 15 que chamamos mediana. Tenho
assentado em que os vossos olhos são verdes, azuis ou pretos, e também tenho
assentado em que são duas estrelas por mais escuros ou pardos que eles sejam. De
toda a forma que me figuro que sois, me pareceis muito 20 bem, e sem saber qual é a
qualidade da vossa formosura estou para jurar que é a mais encantadora e
feiticeira. Se vós tendes tão pouco conhecimento de mim e me amais tanto como eu
vos amo, tenho muitas graças que dar ao amor e aos astros; porém, 25 para que vos
não enganeis comigo e para que vos não sobressalteis quando me virdes, tendo talvez
imaginado outra coisa, vos farei pouco mais ou menos o meu retrato. O meu talhe ou
a minha estatura é pouco mais que medíocre. A cabeça uns 30 dizem que é boa,
outros que é má. O certo é que é curioso, quando não seja por outro princípio do
que pelo ornato de cabelos brancos como a neve, misturados com outros negros
cabelos, da cor mesmo do azeviche. Os olhos são doces e inquietos; já 5 foram
garridos e maganos, porém trinta e cinco Maios que têm visto lhes têm abatido essas
qualidades, as quais se eram boas vão-se cansando. Com a minha boca e com a minha
língua todos têm que fazer, porém são duas coisas de que até agora se 10 têm
queixado sòmente alguns indignos, viciosos e insolentes, que levantam o testemunho
de que a minha língua corta como uma navalha. Não temais a falsidade, executai as
experiências em que levardes gosto, e vereis que a dita língua, além de ser de 15
carne como todas as outras línguas, é delicada, branda e suave. Finalmente toda a
minha cara é diferente de todas as que tendes visto até agora. Uma das vossas
amigas vos dirá que eu sou um galante moço. O certo é que para amar três ou 20
quatro formosas ao mesmo tempo, ninguém o faz mais fielmente do que eu. Se vos
satisfazeis com estas qualidades, podeis contar que são vossas, pois que as ofereço
sinceramente.
Entretanto cuidarei em vós sem saber em quem 25 cuido, e se alguém me
perguntar por quem suspiro, não temais que eu o declare, persuadindo-vos com
prudência a que eu vos não conhecerei enquanto não souber quem vós sois.
[ signed ] Eu sou verdadeiramente

[ date ] 30 Viena de Áustria, 22 de Novembro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 20. |
Ao senhor Luís de Mo...r... i. Aconselhando-o a não aceitar um duelo, e
escusando e criticando a sua fraqueza

Vossa Mercê sabe que sou muito pacífico para o persuadir a que aceite um
duelo. Por essa razão lhe direi no presente caso o meu parecer, o qual espero que
é conforme com a resolução que Vossa Mercê sem 5 dúvida terá tomado seguindo o seu
génio. É verdade que o tenente-coronel Marfísio chamou a Vossa Mercê besta e que
teve a ousadia de lhe dar uma bofetada na sua própria presença, achando-se Vossa
Mercê em uma companhia mui numerosa e mui honrada. Dizem 10 certos estúpidos que
sem sangue não se lava a honra quando é manchada, e prezando-se estas tais gentes
de aconselharem em matéria de desafios, dizem que é preciso que Vossa Mercê pereça
ou que se vingue. Já disse a Vossa Mercê que sou pacífico e incapaz de 15 incitar
os meus conhecidos a acção alguma que seja cruel. Entendo que, achando-se Vossa
Mercê tão mal-tratado da língua e da mão de Marfísio, não é conveniente que cuide
em irritar também a sua espada, porque ainda que Vossa Mercê se ache aflito pelo 20
título que recebeu de besta, parece-me que ficará muito mais magoado se se vir
metido no número dos defuntos. Se Vossa Mercê se encerra na sepultura, então
poderá o contrário, fàcilmente e com toda a segurança, murmurar do seu valor. Será
muito 25 melhor que Vossa Mercê se deixe estar no mundo e que esteja sempre
presente para castigar o seu inimigo quando a sua temeridade lhe der bastante causa
para isso. É infalível que os que persuadem a Vossa Mercê a entrar na tragédia
não advertem em que, se Vossa Mercê fizer a catástrofe, Marfísio rirá e zombará da
valentia de Vossa Mercê . Se Vossa Mercê o mata no duelo, que há-de dizer o mundo?
Dirá que Vossa Mercê o lançou 5 fora da terra, porque não ousava viver naquela que
ele pisava. Se Vossa Mercê o desarma, também se dirá que Vossa Mercê o temia com a
espada na mão, e que por esse princípio lha lançou fora. Se Vossa Mercê fica igual
no combate, qual será a prudência que o 10 obrigue a expor-se à maior de todas as
desgraças, que é a morte, sem decidir o negócio? Quando Vossa Mercê tivesse um
seguro do Deus Marte para sair do duelo com honra e com felicidade, sempre o
contrário se poderia gabar de que tinha obrigado 15 a Vossa Mercê a cometer uma
loucura insigne. Não cedo por ora do meu parecer, e julgo que teme muito o inimigo
aquele que por meio da morte pretende apartá-lo de si ou apartar-se dele. Vossa
Mercê não deve temer achar-se onde ele se ache. Dizem que Marfisio 20 faz glória
em não respeitar as Parcas. Se ele quer que Vossa Mercê o creia, que se mate.
Depois irá Vossa Mercê consultar os sábios por espaço de sessenta ou oitenta anos
quanto a saber se ele obrou bem, e se os sábios disserem que sim, nesse caso deve
Vossa Mercê fazer todas 25 as diligências para viver outros sessenta ou oitenta
anos a fim de fazer neles penitência para morrer bem arrependido da sua cobardia.
Sendo Vossa Mercê um homem que tem coração e fígados, achará muito estranho este
conselho, porém falo com lisura 30 e com clareza, e digo a Vossa Mercê que, no
presente jogo, cuide muito bem em guardar a carta que lhe deram, porque se quiser
embaralhar poderá achar outra que seja muito pior. Marfísio deve talvez querer
morrer depressa para se livrar do temor que causa sempre 5 a própria morte; porém,
Vossa Mercê , para ser mais generoso do que ele, deve fazer por viver muito para
mostrar largo tempo que se acha sempre em estado de morrer. Cuida Marfísio que se
faz recomendável procurando voltar apressadamente para a escura 10 noite da sua
primeira habitação. Este homem deve sem dúvida alguma ter medo de ver o Sol. Se
ele soubesse bem o que é ser defunto pode ser que se não fatigasse tanto para
morrer. Não é acção ilustre arriscar um homem a vida antes dos trinta anos de 15
idade, porque nesse caso expõe-se à perda dum bem que não conhece; e, se a arrisca
depois de ter a dita idade, sou de parecer que o faz bem contra seu gosto
conhecendo o que se expõe a perder. Vossa Mercê deve amar o dia, e deve aborrecer
dormir debaixo 20 da terra, onde é tal a escuridade que se não vê pataca. Marfísio
não pode blasonar de que Vossa Mercê recuse o desafio. Toda a gente sabe que Vossa
Mercê é destro e que tem venidas capazes de derrubar com elas um gigante, e assim
será fácil de persuadir o 25 mundo inteiro que se Vossa Mercê não combate é sòmente
por medo de que lhe não aprendam as ditas venidas. Ainda descubro outras razões
que obrigam a Vossa Mercê a que evite o duelo. Se Vossa Mercê executasse a loucura
de ir ao lugar do desafio embarcar-se para o outro mundo fazendo a viagem por
terra, os seus credores o acusariam infalivelmente de ter feito bancarrota.
Cuidará Marfísio que humilha a Vossa Mercê tirando-lhe a vida. Engana-se, porque
Vossa Mercê depois de morto 5 será ainda mais terrível, e atrevo-me a assegurar que
Marfísio, quinze dias depois de matar a Vossa Mercê ,o não poderia ver diante de
si, sem medo e sem horror. Se ele aspira à glória de lhe cortar a cabeça, contanto
que Vossa Mercê viva e tenha saúde, dê-lhe de 10 barato que ele se gabe em toda a
parte que podia, se quisesse, ser o seu algoz. Se Marfísio tirasse efectivamente a
vida a Vossa Mercê a vantagem nunca era grande. Um só grão de rosalgar podia fazer
isso mesmo. Pode ser que ele imagine que a natureza 15 foi escassa com Vossa Mercê
negando-lhe o valor, porém Vossa Mercê lhe ensina a fazer reflexões nesta matéria,
que o persuadam inteiramente a que um mosquito vivo vale muito mais que Alexandre
Magno depois de morto. Vossa Mercê recusando o duelo não só se mostra 20 humilde
mas piedoso, querendo poupar as lágrimas que chorariam as tochas sobre o seu
sepulcro. Vossa Mercê deve amar que o lisonjeiem atribuindo-lhe todas as
qualidades dum bom entendimento sem que se lhe ajunte a duma feliz memória, que é
verdadeiramente 25 coisa insuportável. Ainda há outra razão que por interesse
próprio me obriga não só a dizer, mas a pedir, que não vá Vossa Mercê ao desafio.
Tenho composto o seu epitáfio, e tenho dito nele com graça e agudeza que Vossa
Mercê morreu de velho, e se agora se dispuser a morrer moço arruinará a bondade do
epitáfio que lhe dá pelo menos cento e cinquenta 5 anos de vida. Vossa Mercê me
disse uma vez, se me não engano, que tem ódio mortal às enfermidades, e assim deve
aborrecer a morte naturalmente, pois que não há coisa mais contrária à vida e à
saúde. Empregue Vossa Mercê todo o seu valor em ser poltrão. 10 Diga a Marfísio
que ronque como se diz ao mar. Se ele chamou tolo a Vossa Mercê é sem dúvida que o
deixou muito bem avisado ao mesmo tempo. Fique uma coisa por outra e fique Vossa
Mercê como está, não porque esteja bem, mas pode ficar pior. Duobus 15 malis
minus est, etc. Guarde Deus a Vossa Mercê de Marfisio por muitos anos.

[ signed ] Servidor de Vossa Mercê .

Viena de Áustria, 26 de Novembro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 21. A Madame de Klembach, com a história de uma mulher teimosa e


desconfiada

Quando eu digo à senhora condessa Fabrícia que 20 também o lobo lhe há-de
aparecer no mato não é sem razão. Como conheceis o seu génio ouvi o caso seguinte
e vede se tenho bastante fundamento para esperar que suceda à bela condessa o mesmo
que experimentou a formosa Margarida.
Era Tálano de Molla um honrado homem que 5 casou com uma moça formosíssima,
chamada Margarida, de espírito tão bizarro, de génio tão caprichoso e tão inclinada
às contestações que ninguém fazia coisa alguma a seu gosto, e aconselhar-lhe
qualquer acção era o mesmo que obrigá-la a 10 executar o contrário. Era
finalmente, como a senhora condessa, da qualidade daquelas mulheres que parece que
só nasceram para fazerem desesperar o género humano, sendo engenhosas em se
atormentarem e em atormentarem a todos os que vivem 15 com elas. Falo das que têm
sempre a cabeça cheia de visões e de fantasias, antes efeito dum coração enfermo
que dum espírito mal disposto, e que são ordinàriamente as vítimas da sua própria
extravagância e obstinação.
20 Muito embaraçado se achava Tálano com uma mulher de semelhante humor,
porém como lhe não descobria remédio, via-se obrigado a sofrê-la do melhor modo que
podia. Estando numa casa de campo, sonhou Tálano uma noite que via passear 25 a
mulher dentro dum bosque e que, acometida por um lobo, se não podia defender de ser
arrastada e mordida por aquela fera, a qual, deixando a presa mui ferida no rosto e
na garganta, se retirou à vista duns pastores que apareceram.
30 Acorda Tálano, e diz à sua mulher:
- Ainda que não tive até agora convosco um só instante de descanso,
confesso-vos que me faria muito desgosto se vos visse algum mal. Se me quereis
crer não saiais hoje de casa.
Pergunta ela a razão, conta Tálano o seu sonho, e responde Margarida com
grande desprezo:
- Meu marido, quem mal quer, mal sonha. Vós sonhastes o mesmo que veríeis
com muito 5 contentamento, sem embargo da compaixão aparente que mostrais. Eu
farei de sorte que vos não dê semelhante alívio nem hoje nem outro dia.
- Bem esperava esta resposta - disse o marido - e grande admiração seria se
me desses outra mais 10 graciosa, porque sei muito bem que a recompensa dos que
penteiam os tinhosos é a de perderem o seu tempo. Crede e fazei o que quiserdes,
porém outra vez vos aconselho de não sair hoje de casa, e pelo menos se quereis
sair peço-vos que não vades15 ao bosque.
Prometeu Margarida que assim faria, porém como tinha a indústria de deitar
peçonha nas melhores coisas e de fazer uma culpa da acção mais inocente, entendeu
que o marido lhe proibia entrar no bosque, 20 porque teria ali alguma companhia de
seu gosto, de que queria gozar sem embaraços. Neste caso dizia Margarida a si
própria: Eu juro que não será como vós quereis. Não sou tão negligente como
cuidais, e eu saberei ver o que se passa ainda que 25 cuide de estar todo o dia no
bosque.
Apenas o marido saiu de casa correu ela para o mato e, escondendo-se no
lugar mais cerrado, olhava para todas as partes a ver se descobria o que
suspeitava. Descobriu um lobo ao pé de si quando menos o cuidava, e este sem lhe
dar tempo nem sòmente para se encomendar a Deus se lançou contra ela e, prendendo-a
pela garganta, a 5 arrastou como se fosse um cordeiro, sem que Margarida pudesse
gritar nem defender-se, e seria sem dúvida afogada pela fera, se esta não fosse
obrigada a fugir por certos camponeses que a fortuna encaminhou então àquele sítio.
Reconhecendo 10 Margarida, ainda que desfigurada, a levaram a casa. Esteve muito
tempo enferma e seu marido lhe assistiu com grande cuidado e com os médicos e
cirurgiões mais hábeis que se conheciam. Melhorou finalmente, porém a garganta e a
cara (graças a Deus que o 15 permitiu assim para exemplo) foram de tal forma
assinaladas, que de formosa que era antecedentemente ficou depois não só feia, mas
tão medonha, que não teve mais resolução de aparecer. Chorou a sua desgraça, e
arrependeu-se da sua obstinação, 20 porém duvido que se emendasse dela, porque
estou mui persuadido que esta qualidade de doenças é incurável nas mulheres.
A senhora condessa Fabrícia merece encontrar o lobo, pois que vai tantas
vezes ao bosque contra o conselho do seu marido.
Outras muitas conheço às quais o lobo pode deitar 5 a cara abaixo sem fazer
grande pecado, e sem que isso nos faça compaixão alguma.
- Não vades hoje à comédia - disse há poucos dias o conde Servílio a sua
esposa Dominária. Olhai que chove muito, e certamente se perderão as librés 10 dos
nossos criados. São belas e mui custosas, saíram hoje pela primeira vez e parece
razoável não as destruir no mesmo dia.
- Mais que razoável - respondeu a condessa Dominária a seu marido. - Estai
descansado que 15 não irei à Comédia.
Retira-se Servílio para o seu quarto, faz-se noite, continua a chover
imensidade de água, manda Dominária pôr o coche, proíbe aos criados de levarem
capotes, e saindo não para a Comédia, mas para o 20 passeio, ordena ao cocheiro que
faça dez ou doze giros na esplanada. Voltando para casa mui satisfeita, ordena
aos criados que, assim ensopados, sirvam à mesa, onde o marido acabou por conhecer
a extravagante bizarria da sua querida e formosa esposa. Ora dizei-me pelo amor de
Deus; não seria 5 bem feito que, quando esta senhora andava na esplanada passeando
à chuva pelas onze horas da noite, encontrasse, não digo um lobo que a mordesse,
mas um urso que a comesse toda? Respondei que sim e Deus vos guarde por muitos
anos.

[ signed ] 10 Muito vosso venerador

[ date ] Viena de Áustria, 4 de Dezembro de 1736.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 22. Ao senhor abade Ludovico Felix Romani, cónego de Aquileia

Houve um cavalheiro, tolo ou toleirão como outros muitos que há agora, o


qual vendo comer a certo filósofo uns bocados de doce lhe perguntou:
15 - Como é isso, também os filósofos são gulosos?
- Respondeu o filósofo:
- E porque não? Cuida Vossa Excelência que só para os ignorantes se
fizeram as coisas boas?
Temos nesta terra um cozinheiro filósofo, e hoje 20 se lhe ouviu uma
resposta semelhante, com a diferença sòmente que foi dada a um cavalheiro discreto,
mas imprudente.
Saindo ontem o conde de Vocrata de casa do conde Harrach, ao anoitecer,
encontrou um dos cozinheiros a passear com certa moça que eu conheço e que é uma
das mais lindas desta terra. Para o dizer claramente: encontrou-o com a Luterana.
5 Passando esta manhã por ele lhe perguntou o conde:
- É possível que também os cozinheiros tenham moças bonitas?
- E porque não? - respondeu o cozinheiro. Cuida Vossa Excelência que elas
nasceram sòmente para as 10 perderem os fidalgos?
Dizem que não gostou da resposta e disse-me o Susanário ou mo deu a
entender, porque ele não sabe dizer isto, que o cozinheiro não andara bem em se
meter nestes assados. Não escrevo a Vossa Mercê 15 para lhe dar esta novidade,
porém ajunto-a às que contêm as Gazetas que lhe remeto, e que se adiantaram
chegando na posta de hoje pelas três horas. Vossa Mercê as restitua como costuma
e tenha-me na sua graça como lhe mereço. Guarde Deus a Vossa Mercê 20 muitos anos

[ signed ] Amigo e criado de Vossa Mercê .

[ date ] Viena de Áustria, 28 de Janeiro de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 23. |
Ao senhor conde Claravino Basso, respondendo a um reparo

A culpa que Vossa Mercê me faz é verdadeira. Eu a conheço, porém em vez de


prometer emenda, nela me obstino a segui-la. Somos teimosos e ignorantes, e é
achaque a que se nos não tem achado remédio 5 até o presente. Quando escrevo e a
matéria o pede, digo meteoro, eolípilo,calamita, etc , com a mesma facilidade com
que digo Homero, Sócrates e Temístocles, ou com a mesma sinceridade com que digo
pão, queijo e manteiga. Entende Vossa Mercê que os meus 10 escritos são escuros e
dificultosos por esse princípio. Eu tenho-me aplicado quanto posso a escrever e a
falar claro, e se não tenho tirado proveito no estudo é por destino que se não pode
vencer com a inteligência. Há poucos dias que disse a Vossa Senhoria que nos 15
dicionários se achava ostracismo e parece-me supérfluo dizer-lhe agora que neles se
acha calamita, eolípilo e meteoro, e todas as mais palavras desta qualidade claras
como a água, em se dando um trago nos lugares que as explicam.
20 Sempre que traduzo um vocábulo grego ou romano, julgo que aumento o
catálogo dos despropósitos. Essa é a razão por que não escrevo os que Vossa
Senhoria me aconselha, deixando passar os eolípilos de boa mente com a sua mesma
figura, sem me atrever a tirar-lhe a crédito, pondo-lhe a máscara do lambique ou
vaso purificante em que se rarificam os licores e em que se apuram os espíritos.
Se Vossa Senhoria 5 entende que os meus papéis merecem comentos e notas, esse
castigo é muito nobre e muito mais desejado que o de buscar censuras e críticas bem
merecidas.
Meu senhor, os nomes gregos, romanos, hebreus, 10 etc , traduzidos em
idiomas vulgares cheiram a ridicularias e sabem a ignorância. Vi uma tradução das
epístolas de Cícero a Ático, impressas na oficina de Thiboust no ano de 1666, onde
o autor cai na seguinte falta que Vossa Senhoria não pode aprovar. 15 Traduzindo
Pridie autem apud me Crassipes fuerat , diz assim: No dia antecedente esteve o Pé-
Gordo em minha casa. Verdadeiramente Crassipes também quer dizer pé gordo, porém
Pé-Gordo por Crassipes também pode ser tomado verdadeiramente por 20 uma
ridicularia.
Que os nomes próprios façam um bom ou mau efeito na nossa língua, o melhor
de tudo é não contender com eles nem com os seus significados. Quem compõe grandes
tratados costuma aclará-los 25 em notas, porém em cartas não se usa isso, e eu
quando escrevo alguma com semelhantes palavras, já sei que as entende a pessoa para
quem faço a carta. Mais dum tradutor francês tem feito dizer a Cícero nas
Epístolas: Mademoiselle vossa filha, 30 Madame vossa mulher , ao mesmo tempo que
Madame e Mademoiselle foram palavras ignoradas na sua eloquência. Não me lembra
agora de outro autor que chama a Bruto e a Colatino Burgomestres da cidade de Roma.
Quanto à segunda falta que Vossa Senhoria acha nos meus escritos tenho
pouco a responder. Se é certo que em alguns se descobrem dois sentidos, lisonjeio-
me de cometer um erro que foi sempre tido por misterioso 5 nas composições. Os
meus sentidos se acham tão repartidos e os tenho às vezes em tantas partes, que não
duvido de que me entreguem o pensamento fazendo-lhe dizer uma coisa por outra, e
dizer outras em que se entendam diversas coisas. As 10 palavras e as frases são
uma espécie de maná em que muitas vezes se distinguem muitos gostos, e as
escrituras com diversos sentidos são as menos reprovadas. Não se meta Vossa
Senhoria a interpretar os meus discursos, porque me parecerá que estou já morto.
15 Os comentos e as interpretações são sufrágios que se fazem aos autores defuntos
e honras de que se pagam pouco os que estão vivos. Não cuide Vossa Senhoria que me
enfado, porém imagine que há muitas coisas de que não gosto. Uma delas é o verbo
parafusar 20 que tem acusativo quando se emprega como esquadrinhar os casos que lhe
não tocam.
Guarde Deus a Vossa Senhoria muitos anos

[ signed ] Amigo e criado de Vossa Senhoria .

[ date ] Viena de Áustria, 7 de Fevereiro de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 24. |
Ao senhor D. Florêncio Henriques Maldonado. Sobre a facilidade e a
dificuldade dos favores
Tenho assentado em que nesta matéria de favores tanto enfastia a muita
facilidade, como desgosta a grande dificuldade. Serve-se Ausónio duma expressão de
que gosto e pode ser que pareça bem a 5 Vossa Mercê . A nudez de Vénus, diz ele,
desagrada muito, e o cinto dobrado de Diana agrada pouco. Não é necessário que a
dama seja pródiga dos seus favores, porém é necessário que saiba dispensá-los ao
amante como se os deixasse roubar. Nec volo quam cruciat, 10 nec volo quam
satiat, digo com Marcial, e se quiser dizer com Petrónio: Nec victoria mi hi placet
parata, também direi bem. Vossa Mercê pode dizer o que quiser e entender o que
lhe apetecer, porém se o amor não tem mais alimentos que o dos favores, como Vossa
Mercê 15 julga, para sustentar-se, também creio que não tem outro alicerce que o da
dificuldade para suster-se. Além disso, o amor quanto a mim é um incêndio que se
apaga logo que cessa de esperar ou de temer, e sempre ouvi que a posse e a
segurança 20 sufocam nele os mais ardentes desejos. Os meus são de servir a Vossa
Mercê que Deus guarde muitos anos.

[ signed ] Muito amigo e servidor de Vossa Mercê

[ date ] Viena de Áustria, 13 de Março de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 25. |
À princesa de Valáquia. Com uma história verdadeira em que dois amantes
mostraram a sua constância

Quer Vossa Alteza que lhe escreva a história de Madame de Fayel, e ordena-
me que lhe diga a verdade, como se eu estivesse acostumado a escrever ou dizer
outra coisa. Sinto que Vossa Alteza me não dê outra qualidade de 5 ordens, em que
eu pudesse fazer algum sacrifício, porque executar a de dizer a verdade, além de
ser a minha obrigação, é o meu costume.
Há-de Vossa Alteza saber que a dita história se passou pouco mais ou menos
- quero dizer, sem tirar nem 10 pôr - da forma seguinte: O senhor de Couci amava a
senhora de Fayel, da qual era correspondido. O desejo de se distinguir o obrigou a
ir à Terra Santa, que era naquele tempo o lugar próprio em que ele podia mostrar
valentia. Conseguiu o seu desejo, 15 adquiriu muita glória, e conservou sempre o
seu amor. Estando para voltar carregado de louros e de constância, achou-se em um
sítio onde desgraçadamente foi ferido no lado. Julgou-se mortal a ferida, não se
intimidou com a sentença, e dedicou os últimos momentos da vida à sua amada.
Escreveu à senhora de Fayel, encerrou a carta em 5 uma pequena caixa com todas as
que ela lhe tinha escrito e com todas as prendas que lhe tinha dado ou mandado,
chamou ao estribeiro e, depois de o obrigar de fazer juramento de cumprir
inteiramente o que ele dispusesse, lhe ordenou que abrindo o seu 10 corpo depois de
morto lhe tirasse o coração; que o salgasse, o metesse na mesma caixa, entregando-a
à senhora de Fayel. Faleceu pouco tempo depois, tendo conservado sempre na boca o
nome da querida senhora. O estribeiro executou a promessa e 15 veio a França com o
coração do seu amo e com a caixa das cartas. Escondeu-se em um bosque junto da
casa do senhor de Fayel, buscando ocasião de entregar a dita encomenda à esposa.
Entrando por desgraça no bosque o senhor de Fayel, encontrou 20 e conheceu o
estribeiro do senhor de Couci. O ciúme, que o pungia havia muito tempo por motivo
do comércio que a mulher tinha com ele, o enfureceu de tal forma que lançando uma
mão ao estribeiro lhe mostrou a morte com a outra, se ele lhe 25 não confessasse a
causa que o trouxera àquele lugar. O estribeiro preferiu o bem da vida à honra de
ser vítima da paixão amante do amo, e contou o caso todo, justamente, ao cioso
marido, o qual voltando para casa não cuidou em coisa outra senão no género 30 de
vingança com que havia de castigar a mulher. Mandou guisar o coração do senhor de
Couci, e ordenou que se apresentasse este prato à mesa. Assim se fez, e a senhora
de Fayel achou este guisado tão excelente que o comeu todo. Disse-lhe então o
marido por ironia que ela tinha achado aquele pratinho tão gostoso que bem parecia
composto de carne que ela amava. Pouco depois se explicou, e declarando-lhe que
tinha comido o 5 coração do amante lho provou com as cartas e com as prendas da
caixinha. Consta que se não inquietou esta senhora exteriormente. Respondeu ao
marido que confessava que o manjar que tinha comido fora o mais gostoso que provara
na sua vida e que o 10 achara em tal forma esquisito e saboroso que, não havendo
bocado digno de ser saboreado depois daquele, não só tinha assentado, mas jurado,
de não comer outro algum. Disse e fez, sendo esta uma das senhoras que soube fazer
o que disse. Levantou-se 15 da mesa, fechou-se no gabinete e ali morreu de fome
poucos dias depois, tendo sempre diante dos olhos a ideia do amante. Constando a
sua morte aos parentes, estes a quiseram vingar, e causando muitos pesares ao
senhor de Fayel lhe fizeram tão 20 viva e tão forte guerra que foi necessário
interpor o soberano a sua autoridade para que lhe pusessem cobro.
Tomara eu que os senhores Franceses me dissessem com que direito e com que
razão se riem dos excessos e finezas dos Portugueses em matéria de amor, porque,
caso negado que esses 25 excessos e essas finezas fossem culpas e vícios
repreensíveis, é certo que se descobrem semelhantes acções de franceses que não
desmerecem, como esta, de serem contadas na 30 primeira ordem e na primeira
hierarquia das famosas constâncias ou extravagâncias do amor. Quanto a mim, não
acho diferença nas nossas finezas e nas deles que não seja na circunstância
seguinte: as finezas lusitanas são excessos muito sãos e os excessos gauleses são
finesas muito enfermas, porém na 5 qualidade de excessos e de finezas tudo são
crimes ou ridicularias.
Nós temo-nos emendado da extravagante constância dos nossos antepassados.
Muito mais finos ou muito mais refinados do que eles, sabemos gozar 10 dos prazeres
sem sentirmos os tormentos do amor. No seu tempo bastava que uma mulher fosse
bonita, que tivesse fidelidade e boa fé - se acaso isso se achava - para obrigar um
homem a que a amasse até o último suspiro. A inconstância era rara no 15 seu
século, e reputava-se como um crime injurioso. A formosura e o agrado duma mulher
eram então coisas que como agora se podiam destruir, porém o amor do amante não se
podia desvanecer. Finalmente, estimava-se a constância como a 20 virtude principal.
Porém, vendo os homens que desta virtude, que começaram a chamar loucura, se tinham
seguido muitos efeitos desgraçados e funestos, foram-se emendando pouco a pouco em
exercê-la, e aperfeiçoaram-se de tal forma no sistema contrário 25 que hoje tem a
inconstância moderna o mesmo lugar, estimação e uso que teve já a firmeza antiga.
Ainda que falo sòmente da instabilidade dos homens em matéria de amor, não imagine
Vossa Alteza que as senhoras mulheres são nele muito mais fixas do que nós que as
culpamos incessantemente de infidelidade nas suas correspondências e amizades, sem
5 mostrarmos porém o direito que temos para querermos usar sòmente desse
privilégio. Quanto a mim - enfadem-se muito embora os senhores homens - tenho
assentado em que devemos ser constantes e fiéis, ou permitir às mulheres que sejam
instáveis 10 e ligeiras sicut andorinha no Verão. A lei e o uso é necessário que
sejam recíprocos.
] Depois de contar a Vossa Alteza a história da senhora de Fayel não sei
verdadeiramente em que contos me tenho metido. Dizem, senhora, na minha terra, 15
que se dá o pé ao vilão e que ele toma a mão. Se tomei mais liberdade que a que me
foi dada escrevendo, creia Vossa Alteza que a não saberei tomar em alguma outra
acção e isso provo com toda a humildade e com todo o respeito, porque sendo 20
Vossa Alteza servida de me dar a mão por grandeza sua, eu não intento nem pretendo
mais licença que de poder beijar-lhe os pés. A pessoa de Vossa Alteza guarde Deus
por muitos anos.

[ signed ] Criado, compadre e venerador de Vossa Alteza

[ date ] Viena de Áustria, 15 de Março de 1737.


[ letter (author: CO)]

[ title ] 26. |
A Soror Maria da Cruz, religiosa no convento das Portas do Céu de Viena,
remetendo-lhe um pintassilgo

Desde a semana passada teria este pintassilgo a honra de ser vosso, se a


senhora baronesa de Colmar lhe quisesse dar um lugar na sua carroça. Não só o
recusou quando eu lho pedi, mas jurou sobre 5 palavra que se eu lho entregasse que
o deitaria a voar. Quando o pintassilgo, que estava para partir, ouviu a senhora
baronesa, disse-me logo: Que importa? Envia-me sempre, e que me entreguem ou não
me entreguem à pessoa a quem me tendes destinado, 10 a vossa promessa será
satisfeita e nunca será vossa a culpa da liverdade que se me der. Ah, inocente
pintassilgo! lhe respondi. Que enganosas são as ideias que fazemos da felicidade
futura! Quanto perdiríeis, meu passarinho se vós fôsseis o senhor 15 da vossa
sorte, pois que tanto vos enganais com a ideia de liberdade? Se conhecêsseis a
bela freirinha para que estais destinado, creio que falaríeis de outra maneira. É
uma senhora tão loira, tão branca, tão delicada, e cujos olhos cheios duma 20
doçura feiticeira são tão bons, tão bons, tão bons que quando vós os vísses
juraríeis sem dúvida alguma que éreis de todos os passarinhos o passarinho mais
ditoso. Sendo tudo isto verdade, respondeu ele, é necessário esperar por melhor
ocasião. Se eu pudesse voar, seguiria a carroça da baronesa a seu pesar, porém
como me acho na muda, e me faltam muitas penas e como desde que nasci me vejo
preso, tenho dado tão pouco uso às minhas 5 asas que não poderia andar em seis dias
as seis léguas que há daqui a Viena. Diferindo eu a sua partida para outra
ocasião, se me ofereceu presentemente, prometendo-me o senhor Dom Florêncio
Henriques conduzir o pintassilgo e metê-lo na vossa 10 mão. Vai o passarinho com
as informações que lhe dei, contentíssimo de ser vosso, e seria infinita a sua
alegria, se não temesse parecer-vos mal pelo estado a que o tem reduzido a muda,
tirando-lhe por algum tempo a púrpura de que se lhe ornava a 15 cabeça. Eu lhe
assegurei que vós não sois daquelas pessoas que se preocupam sòmente com as
aparências, e disse-lhe que era muito mais nobre começar a agradar no estado de
pouca fortuna que no pináculo da prosperidade. Também lhe 20 assegurei que vós lhe
assistiríeis na pena que ainda lhe há-de dar a muda, tendo cuidado de deitar um
pouco de açúcar na água do bebedoiro. Jurou-me pelo seu bom sucesso que faria todo
o possível para vos divertir e contentar, e eu juro-vos pela sua 25 fortuna que o
creio, porque sei que é mui capaz de dar mui boa conta de si. Como há muito tempo
que somos amigos, não pudemos deixar de dar provas disso na despedida. Eu me pus a
chorar de saudade e ele se pôs a cantar por partir. Como o passarinho 30 também
tem seus princípios de filósofo, não faço escrúpulo de vos dizer que nos parecíamos
nesta ocasião com Heraclito e com Demócrito. Finalmente, quando lhe disse o último
adeus lhe pedi que se não esquecesse de mim quando se visse no vosso poder.
Respondeu-me com uma letrinha que compôs de repente a este respeito e dela vos
mando a tradução, porque, ainda que sabeis bastante letra, duvido que entendais a
língua pintassilga e por isso 5 vos parecerá que o passarinho perdeu a fala
entrando na vossa mão. Crede que é engano e crede que eu farei com que ele não só
fale, mas discorra, todas as vezes que vós queirais ter esse divertimento,
escolhendo-me para companheiro do vosso 10 gosto. O pintassilgo defunto não tornou
a aparecer. Digo-vos que não há que fiar em mortos e este passarinho me acabou de
persuadir a que não há gente de menos palavra. Como eu não estou certo se também
me faltará quando morrer, digo-vos sòmente 15 que enquanto vivo serei.

[ signed ] Muito amante e criado vosso

[ date ] Neustadt, 20 de Março de 1737.


[ letter (author: CO)]

[ title ] 27. Ao senhor Conde Claravino Basso. Discursando a respeito das


mulheres e do matrimónio

Por mais resoluções que tomemos contra o sexo feminino, e por mais
conhecimentos que tenhamos 25 dos seus defeitos, creia Vossa Senhoria que não está
na nossa mão aborrecê-lo totalmente. Temos no coração um certo amor natural pelas
mulheres que cedo ou tarde vence e destrói toda e qualquer paixão que contra elas
formemos. O mesmo Pigmalião, concebendo ódio tão forte contra o sexo que
determinou passar toda a sua vida no celibato, ocupava-se em formar excelentes
estátuas de mulheres, divertindo-se inteiramente em dar-lhes os mesmos agrados de
que a 5 natureza as dotou. O seu coração falava nas suas obras sem que ele o
imaginasse, parecendo que a natureza se divertia em confundi-lo, obrigando-o a
buscar na arte um contentamento de que ele tinha resoluto privar-se inùtilmente.
10 Esta razão e outras semelhante que Vossa Senhoria me ouviu não são nem
podem ser constantes provas de que as mulheres são os meus ídolos. Dando-me a
assistência do campo um pouco daquele génio a que chamamos pachorra, direi a Vossa
Senhoria alguma coisa 15 nesta matéria. É verdade, meu senhor, que me prezo de ser
Pigmalião, homem que por fugir das mulheres tem quase o nome de besta, sendo metade
o de fera. Amo e respeito o sexo, porém não deixo de conhecer e de ponderar os
seus defeitos e as suas 20 imperfeições. Se o idolatro é com erro, porém como quer
Vossa Senhoria que haja idolatria sem culpa? Seguir o natural não é desdoiro da
razão. Render-se esta às paixões é no que consiste o descrédito do entendimento.
Estimar o sexo não é culpa sendo natureza, 25 porém elevar a sua qualidade ao termo
duma perfeição completa seria erro, porque é mentira.
Diga-se tudo quanto se puder dizer em seu louvor. Respeitem-se as mulheres
como quinta-essência das obras da natureza; reputem-se mais brilhantes que os
astros; creia-se que à vista dos seus bons olhos perdem os raios do sol o
esplendor; levantem-se altares aos seus merecimentos, perante os quais se prostrem
a que se prostrem e em que se sacrifiquem todos 5 os dias tropas de amantes e
bandos de adoradores que esperam do menor dos seus agrados a sentença dos destinos.
Tudo isto não é capaz de desfazer a ideia de imperfeição do sexo. Não falo
consoante a nossa ideia, mas consoante a delas Não falo da nossa ideia, da sua
mesma . Qual a deusa Qual destas a deusa 10 que não trocasse voluntàriamente a
divindade, os templos e os altares, para se ver no lugar de qualquer dos seus
amantes?! Qual a mulher que não seja capaz de fazer do fundo do coração a rogativa
que fazia Cénis a Neptuno? Se me quereis dar tudo, 15 fazei que eu não seja
mulher.
Como ainda quem não é amante deve ser caritativo, e como fazer bem ao
próximo em tudo o que se pode é obrigação imposta a todos, quero revelar a Vossa
Senhoria um segredo admirável que pode comunicar 20 a todas as que quiserem mudar
de sexo, indo Vossa Senhoria extinguindo pouco a pouco este género feminino que
mostra aborrecer, parece-me porém que sòmente no exterior. Toda a mulher que
quiser ser homem não tem mais do que tocar com uma vara em duas 25 cobras que
estejam enrodilhadas uma na outra. Instantâneamente verão o seu desejo cumprido.
Não seria, Vossa Senhoria nem as senhoras mulheres cuidando que zombo. A receita é
verdadeira e é dum homem que compôs muitos tratados sobre a mentira. É de Ovídio
e isso basta, pois que nos segura no livro III das Metamorfoses que Tirésias mudou
duas vezes de sexo com este remédio.
5 Tornando ao nosso caso, digo a Vossa Senhoria que, sendo os defeitos do
sexo conhecidos pelas mesmas mulheres, não há homem tão amante delas que lhos não
note. A cegueira não me parece que consista, como Vossa Senhoria diz, em buscá-las
e querê-las com os 10 mesmos defeitos que lhes consideramos. Quem ama Beltrão ama
o seu cão. Quem gosta de cerejas come as verdes e as maduras sem reparar em que
todas elas são danosas. Em Holanda vendem-se pùblicamente as laranjas podres, e
quem ali gosta 15 delas compra-as e come-as com esse grande defeito. O pão de
ervilha, o azeite de saibo, e o tabaco de ranço não se deitam na rua nem no mar.
Entram na boca e no nariz de muita gente boa, e há gente que gosta muito mais
dessas coisas quando têm 20 saibo, ervilha e ranço. O queijo com bichos é a
delícia de muitas pessoas e, finalmente, a mulher com todos os seus podres é
necessária e é boa à companhia do homem desde o princípio do mundo, por juízo e por
disposição do Supremo Criador de 25 todas as coisas.
No que consiste a meu ver a nossa cegueira, o nosso erro e a nossa
ignorância é em que cheguemos a estimar a mulher de tal forma que lhe consintamos a
autoridade de nos governar. O matrimónio por 30 mais que Vossa Senhoria o tenha
por monstruoso, é um sacramento respeitável que veneramos, porém não duvido que
pareça corpo disforme logo que a cabeça do marido se deixe governar ou arrastar
pela cauda da mulher. Desta debilidade, achada nos maridos, se segue a desordem, o
engano e o desgoverno que se observa nas mulheres procedendo 5 desse desmancho o
descrédito, a ruína e a perdição de uns e outros. Tenha Vossa Senhoria a paciência
de ouvir uma invenção, e verá que provo com ela a verdade do que lhe digo:
Tem a cobra duas partes inimigas do género 10 humano. Uma é a cabeça e
outra a cauda. Ambas adquiriam grande nome no tribunal das Parcas pelas qualidades
mortíferas que possuem. Houve um tempo em que estas duas partes debateram sobre a
preferência. A cabeça tinha andado sempre 15 adiante da cauda. Queixou-se esta e
disse: que tinha feito muitas léguas de caminho por disposição da cabeça; que era
injusto que fosse o mesmo toda a vida; que ela era irmã e companheira e não escrava
da cabeça; que tinham ambas o mesmo sangue e 20 que, logrando as mesmas qualidades,
se deviam tratar com igualdade; que ela queria governar a cabeça por algum tempo,
achando-se muito capaz de a conduzir com tanto acerto que não teria razão para
queixar-se. Consentindo a cabeça com cruel 25 bondade na pretensão, concedeu à
cauda a preferência que pedia. Começou esta a fazer um caminho tão cego e tão
errado que, dando umas vezes contra os penhascos, molestando-se outras contra os
troncos, e escapando em algumas dos pés dos 30 passageiros, debaixo dos quais se
metia imprudentemente, deu consigo e com a pobre cabeça, depois de cometer mil
desatinos sobre a terra, não menos que na Lagoa Estígia, que é um dos rios
infernais, onde acharam a morte, a sepultura e a perdição a que corria um tal
governo. Desgraçada cabeça que cai e que se sujeita a semelhante erro! Este é o 5
único que acho no estado que Vossa Senhoria condena e que eu me não fartarei jamais
de louvar. Basta de carta, e basta que tenhamos os nossos pareceres livres para
andarmos sempre nestas disputas. Perguntou-se uma vez por que razão o corvo é
negro? Respondeu 10 um sábio: - porque nenhum homem quis dizer até agora a loucura
de que era branco - dando a atender que, se houvesse um que a proferisse, não
faltariam muitos que a cressem. E se na candidez do santo estado do matrimónio tem
15 havido tantos homens que deitaram nódoas e fizeram tachas cegamente, que milagre
é vermos muitos de olhos fechados seguirem as mesmas pisaduras ou pisadas? Deus
guarde a Vossa Senhoria de andar no 20 estado em que se acham quase todos os seus
contrários, porque o entendimento, a lei e a religião nos dizem e nos obrigam a
crer que é muito pior. Monsieur de M dirá a Vossa Senhoria coisas muito diversas
nesta matéria. Eu sei, porém sei que nem a sua 25 amizade, nem a veneração que
tenho a Vossa Senhoria , sendo duas coisas ambas grandes, me farão mudar de juízo,
se ele não dá volta por outro princípio. Guarde Deus a Vossa Senhoria .

[ signed ] Amigo e criado de Vossa Senhoria .

[ date ] 30 Neustadt, 24 de Março de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 28. |
Ao príncipe Rodolfo Cantacuzeno, duque de Bessarábia, etc., recomendado-lhe a
senhora baronesa de Colmar
Se a baronesa de Colmar o permitisse, eu mesmo iria a Viena solicitar para
ela o favor de Vossa Alteza .
Como ela não quer usar de todo o poder que tem em mim, contenta-se com uma
carta de 5 recomendação. Eu lha dou como uma graça que me faz em recebê-la, e
escrevo a Vossa Alteza com tanto empenho a seu respeito, como se toda a minha
fortuna dependesse do sucesso que ela espera da equidade de 10 Vossa Alteza . Não
é o seu negócio o que eu recomendo; são os meus próprios interesses que ponho nas
mãos de Vossa Alteza a quem, de todas as obrigações que devo, esta será sem dúvida
a mais considerável. Guarde Deus a Vossa Alteza muitos anos

[ signed ] 15 Compadre, criado e venerador de Vossa Alteza .

[ date ] Neustadt, 26 de Março de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 29. |
A Mademoiselle de M.*** Sobre a afectação e fereza das formosas

Antes de discursar nesta matéria vos contarei, querida Genoveva, uma


história moderna, que vos persuadirá muito melhor daquilo que do que depois vos
direi. Tem um homem que conheço duas filhas a que 5 chamarei Beleza e Discrição ,
não sendo preciso que declare os seus nomes verdadeiros. A primeira é uma das
maiores formosuras do século em que vivemos, a outra se pode dizer que é uma mulher
feia, não tendo mais formosura que a dos seus 10 agrados. Parece que a sua boa e
má fortuna dependia nesta vida das ditas circunstâncias exteriores. Beleza que
desde o berço ouviu e escutou os elogios das suas prendas ficou da mesma forma que
a natureza a fez, sendo um dos melhores objectos 15 que os olhos podem encontrar.
Fiada nas suas prendas é tão orgulhosa e insolente que se faz insuportável aos
mesmos que a amam. Discrição , a quem até a idade de vinte anos se não tinham
feito civilidades algumas, viu-se obrigada a aperfeiçoar os 20 talentos naturais
para suprir ao defeito em que se achava de tantas prendas, quais eram as que
observava em sua irmã. A pobre Discrição jamais ganhou a sua causa nas disputas em
que se interessava, ainda que o bom juízo, que dominava nela, lhe 25 fazia pesar
muito bem todas as coisas que dizia antes de abrir a boca. Não sucedia o mesmo a
Beleza , ouvindo-a todos favoràvelmente e aprovando os seus discursos ainda antes
que ela formasse as palavras. Estas diferenças produziram efeitos 5 proporcionados
às suas causas, sendo a conversação de Beleza tão insípida como é agradável a de
Discrição . Estando a primeira segura do favor dos outros, não estudou a arte de
comprazer; incerta a segunda de conseguir a mesma vantagem, contou 10 inteiramente
sobre o seu merecimento. Observa-se sempre alguma aparência grave, melancólica e
triste no semblante de Beleza , e ao mesmo tempo se vê sempre de Discrição um ar
alegre, franco e tranquilo. No Inverno passado viu um moço cavaleiro 15 na Comédia
a Beleza , e no momento em que a viu foi seu amante. Como, além de ser fidalgo,
era bastantemente rico, não teve necessidade de introdutor para entrar na casa do
pai da sua adorada. Efectivamente bastou a circunstância de lhe falar uma só 20
vez para admitir as suas visitas com toda a liberdade possível; porém, acções
cerimoniosas, vistas severas e civilidades desdenhosas foram os maiores favores que
pôde alcançar da amada. Discrição o recebia, pelo contrário, com todo o agrado e
com 25 toda a inocente familiaridade que se pode julgar permitida a uma irmã.
Exclamava muitas vezes o cavaleiro e dizia: Oh querida Discrição! quem te pudera
fazer tão linda como Beleza! Recebia ela esta apóstrofe com alegria ingénua e
ordinária em 30 uma mulher que procede sem intenção particular. Suspirava
entretanto o cavaleiro sempre em vão pela sua formosa, porém onde achava a
consolação do seu sofrimento era sempre na companhia da agradável irmã. Desgostado
finalmente da louca fereza duma e enfeitiçado da afabilidade e da 5 meiguice da
outra, disse um dia a Discrição que queria comunicar-lhe uma notícia que esperava
fosse do seu gosto; e, rompendo, em poucas palavras lhe declarou o seguinte: De boa
fé te juro, oh Discrição, que sou teu amante, achando-me cheio de desprezo 10 por
tua irmã . A forma em que fez esta declaração deu causa à sua nova amada para lhe
responder deu causa à sua nova amada lhe responder com grandes risadas, entendendo
que o cavaleiro zombava dela. Bem persuadido estava eu , continuou o cavaleiro,
que tu me não darias crédito , Discrição, mas 15 para que vejas a verdade, neste
mesmo instante te vou pedir a teu pai . Não faltou à sua palavra, e gostosíssimo o
pai, vendo com esta mudança que só ficava encarregado de Beleza a que podia dar
saída todas as vezes que quisesse, recebeu a proposição 20 com tanta alegria como
interesse. Quanto a mim não tenho achado coisa alguma tão divertida como a
conquista de Discrição , felicitando-a todos os seus conhecidos da fortuna
imprevista pela fortuna imprevista e escarnecendo da afectação singular de Beleza .
25 Eis aqui a história que vos prometi, a qual vos há-de agradar pela
matéria em que me falais, podendo ser que nela vos não satisfaça igualmente o
discurso que agora farei. Se é prova de ninharia de espírito atacarem-nos por
alguns defeitos que temos 30 recebido da natureza, é também coisa indigna que nos
enchamos de orgulho pelas vantagens que alcançamos da sua liberalidade. Parece-me,
se me é permitido declarar o meu juízo, que as senhoras mulheres são incorrigíveis
nesta matéria. Direi porém 5 a seu favor o que entendo a respeito das formosuras
de profissão, que são verdadeiramente tão insuportáveis como os homens que se picam
ou se prezam da profissão de discretos.
Os últimos suspiros duma mulher formosa não se 10 devem entender tanto pela
perda da sua vida como pela sua beleza. Pode ser que vos pareça que adianto muito
o pensamento, porém eu o fundo sobre uma observação indubitável, sendo certo que a
mais violenta paixão do sexo feminino tem por objecto 15 a formosura, fazendo dela
a distinção mais válida. Desse princípio procede que todos os artifícios
inventados para aumentar e para entreter a beleza são recebidos geralmente com os
braços abertos. Não querendo falar em todas as ridículas mercadorias de 20
contrabando que têm as referidas serventias, das quais, não sòmente esta Corte,
porém todas as outras estão providas, direi ùnicamente que em Viena e em Lisboa,
que são as duas Cortes que mais conheço, não há moça alguma de boa família que 25
não saiba pelo menos das virtudes da primeira Água de Maio , ou que não possua
alguma receita semelhante para conservar a formosura. Conheci um médico, homem de
bom juízo, que depois de estudar oito anos em Inglaterra e depois de viajar em 30
muitos estados da Europa, cobrou grande fama e grande dinheiro por meio da água
artificial que compôs e que vendia para conservar a delicadeza e a frescura dos
rostos.
Esta propensão quase natural das senhoras 5 mulheres, nascida do louvável
motivo ou da inveja que elas têm de agradar, sendo fundada sobre a opinião mui
justa de que a arte pode bem ajudar a natureza, me obriga a reflectir sobre os
meios que pode haver para que sua propensão lhe seja 10 proveitosa. Parece-me que
lhe farei um serviço muito agradável se, tirando-as das mãos dos charlatães e
livrando-as do poder de falsos e enganadores, lhes descobrir por vossa via o
verdadeiro segredo para entreterem a formosura e para 15 aumentarem a graciosidade.
Antes de tratar directamente este artigo, é conveniente mostrar-lhes um pequeno
número de máximas fundamentais.
Primeiro Não bastam as prendas só por si para fazer a formosura de uma
mulher, assim como as palavras 20 sòmente não bastam para lhes dar entendimento.
Segundo O orgulho e a soberba destróem toda a simetria e toda a boa graça,
e a afectação faz maior dano às boas caras do que lhe fazem as bexigas.
Terceiro Nenhuma mulher pode ser bela enquanto não 25 é incapaz de ser
falsa.
Quarto Tudo o que é odioso na cara duma conhecida é certamente disforme na
da amada.
Nasce destes princípios a facilidade de provar que o verdadeiro modo de dar
assistência à 30 formosura consiste em ornar toda a pessoa ornar qualquer pessoa
com todas as circunstâncias que sendo virtuosas são dignas dos nossos elogios. É
desta forma, sòmente, que aquelas obras que são favorecidas da natureza ou que são
compostas da qualidade mais fina da porcelana do género humano se podem animar,
pondo-se em 5 estado de fazer resplandecer as suas prendas. Também é desta mesma
forma que as outras mulheres de quem a natureza teve cuidado, deixando-as como
obras imperfeitas trabalhadas à pressa, podem remediar em muita parte a quantidade
e a qualidade 10 de circunstâncias que lhes faltam.
Não foram as mulheres criadas para apurar a alegria e para adoçar o
amertume da vida humana? É certo. Seria logo uma ideia baixa e indigna a de
estimá-las como objectos, próprios sòmente para 15 satisfazer a vista. Despojando-
se assim da grandeza natural do seu poder, as meteríamos ao nível das suas figuras
pintadas. A formosura que acompanhada pela virtude, cativa o entendimento e o
coração forma outro objecto que é infinitamente mais 20 nobre. As prendas duma
mulher viciosa, por grandes que sejam, são insípidas e desengraçadas, se se
comparam com os agrados reais da inocência, da piedade, da modéstia e da
sinceridade de Discrição . Estas e outras virtudes ajuntam nova doçura à que 25 é
natural ao sexo e adornam e conservam, para o dizer claramente, a formosura.
Espalhadas as, cores com arte mas com desordem, em um painel, podem
divertir os olhos sem tocar o coração; assim a mulher que não emprega o 30 cuidado
em ajuntar as boas qualidades da alma às graças naturais da sua pessoa poderá muito
bem agradar aos espectadores como um bom quadro, porém jamais triunfará como uma
perfeita formosura.
No poema intitulado Paraíso Perdido , de Milton, 5 observo que Adão, ao
descrever ao Anjo as impressões que sentira à primeira vista de sua mulher Eva, a
não considerava uma Vénus da Grécia e, sem lhe louvar o talhe ou as perfeições do
rosto, insiste sòmente sobre o brilhante esplendor do seu espírito, 10 que era o
que lhe dava o poder de enfeitiçar. Sendo outras muitas as bondades do poema de
Milton, confesso-vos que estimo esta como uma das superiores.
Que mais quereis que vos diga nesta matéria? 15 Digo-vos, pois que me
obrigais a discorrer nela seriamente, que é necessário que toda a formosura por
mais altiva que seja saiba, apesar de tudo quanto lhe pode dizer o seu espelho, que
as suas prendas mais regulares não terão força nem vida 20 em não sendo animadas
pelo divino raio da virtude. Conservai a vossa, e sereis contada sempre como agora
no número das mais belas, ainda não sendo das mais formosas. De formosura sem alma
e de corpo sem virtude Deus vos guarde e seja por 25 muitos anos.

[ signed ] Vosso venerador

[ date ] Viena de Áustria, 12 de Abril de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 30. |
Ao senhor Dom Fernando P. de M. inimigo declarado do Matrimónio. Com a cópia
do que deve responder ao senhor C. de P. * * * que lhe propôs um casamento

Parecia-me a mim que se semelhante caso me sucedesse podia recorrer a Vossa


Senhoria pois acèrrimamente se obstina a entender com Monsieur de M que do estado
do matrimónio se seguem muito mais males 5 do que bens. Quer Vossa Senhoria
responder à proposta do C de P e determina lhe faça eu a cópia da resposta. Como é
possível que eu acerte com o gosto de Vossa Senhoria reprovando um estado que todos
sabem que produz o ornamento do Universo, e de que eu 10 digo que constitui todas
as delícias dos meus semelhantes? Vossa Senhoria tem verdadeiramente curiosidade
mui singular, porém esta de querer que eu critique o mesmo objecto que venero não
deixa de ser extravagância por mais que Vossa Senhoria lhe chame curiosidade. 15
Como Vossa Senhoria é o que há-de escrever, é justo que se suponha que Vossa
Senhoria foi o que discorreu, e como Vossa Senhoria discorre sempre nesta matéria
pelo mesmo estilo com que nela escrevem os tímidos e os desgraçados, diga Vossa
Senhoria pouco mais ou menos o seguinte 20 ao C P
"Guardai, meu amigo, os vossos conselhos com o mesmo cuidado com que
guardais o dinheiro e ide persuadir e inculcar casamentos aos loucos do hospital de
São Marcos, ou aos miseráveis forçados das 5 Galés. Eu amo a solidão e a
companhia, porém uma e outras me seriam penosas logo que fossem perpétuas. Se meu
pai fosse do meu parecer, ainda agora eu seria o mesmo que era quando não era.
Ainda que a mulher que me quereis dar é mui formosa, 10 julgo que não será por
muito tempo. Não é tola, porém temo que saiba muito mais do que convém ao seu
estado. É rica, mas a minha liberdade me é mais preciosa que todos os bens.
Finalmente, a esta senhora sobejam-lhe as prendas e a mim 15 faltam-me os desejos
de casar-me, sendo certo que para mudar de intenção seria necessário um mandamento
expresso que me propusesse a mulher ou a morte. As senhoras donzelas deste tempo
não aprendem ordinàriamente cousa alguma de novo 20 no dia do seu noivado, e como
elas têm as mesmas qualidades da febre, da guerra e da pobreza para fazerem homens
miseráveis e desgraçados por todo o mundo, quero em toda a minha vida sonhar, mas
não cuidar em casar-me. Sou cioso e não desejo 25 entrar no trabalho de contar
todos os dias os cabelos da cabeça de minha esposa, com medo de que ela dê algum
por prenda ao seu amante; e, depois disso, como poderia eu examinar todas as
senhoras que a viessem visitar, para ficar certo em que não 30 eram homens
disfarçados com vestidos de mulheres? Sou colérico, e ficaria desesperado se
soubesse que ela tinha um chischisbéu, para se conformar com a moda quanto mais não
fosse, e que na minha ausência bebiam ambos de dois à saúde do cioso, do
impertinente e do galante marido. Direis que a minha senhora noiva, por este
escrito repudiada, é casta, honesta e virtuosa. Tanto pior para mim 5 porque é
muito má casta de mulher. Teria de dia e de noite um inimigo à vista que me faria
guerra e me meteria a casa a saco com o seu bom procedimento e a sua grande
virtude. Estou para vos dizer que amo muito mais o vício sendo dócil do que a
virtude 10 sendo feroz.. A virtude indiscreta é mais que vício. O exemplo do
barão Brutzen é o que me mete mais medo. Tem este fidalgo enchido o mundo de
tantos mudos, de tantos corcovados e de tantos coxos que só para os seus filhos é
necessário um hospital. Eu 15 não quero ser obrigado a amar monstros sòmente por
tê-los feito pelos ter feito. Suponhamos que me dá Deus filhos de specie virili .
Um travesso desejará a minha morte, um sábio a 20 esperará sem desejá-la, e o mais
honrado deles sonhará com ela sem a desejar nem a esperar. Onde é que vai aqui a
galantaria? Direis que se a minha resolução fosse seguida, se veria o mar deserto
e a terra despovoada. Assim é, dizeis verdade, porém se o mundo não há-de durar
para sempre, não seria melhor acabar por virtude do que 25 destruir-se por vício?
Parece-me que não podia ter fim mais glorioso.
É possível que Vossa Senhoria se contente com este retrato dos danos do
Matrimónio. Se o Conde Claravino Basso soubesse o que diz, seria grande autor
nesta matéria. Não deixe Vossa Senhoria de o consultar; pode ser que entre a sua
provisão de despropósitos se encontre para o assunto algum acerto errado ou algum 5
erro discreto. Se Vossa Senhoria lhe falar hoje, diga-lhe que ontem vi as suas
Décimas contra os loucos de que ele pretende ser confrade, quero dizer, contra a
religião dos poetas de que ele será eternamente irmão leigo. Diz o Conde
Claravino, e eu também já o 10 disse algumas vezes, que todos os poetas são doidos.
Tem razão, e eu à vista das suas décimas me não desdigo, mas direi outra coisa.
Todo o poeta é louco, isto é verdade; porém nem todo o louco é poeta, isto é
evangelho, e é o que o Conde deve 15 crer como um artigo da Fé. Desejo já
encontrá-lo para dizer-lhe:
Je suis d'accord avec vous Que tous les poètes sont fous: Mais parce que
poète vous n'êtes 20 Tous les fous ne sont pas poètes.
Eu me haverei com eles, haja-se Vossa Senhoria com a sua resposta, e, pois
que assim o quer, permita Vossa Senhoria que eu lhe não diga aqui por fim de carta
que se conserve por muitos anos. Isto seria o mesmo que 25 casá-lo com a vida, e
eu não sei se Vossa Senhoria quer fazer essa graça a uma dama que tem conduzido não
sei quantos milhões de maridos ao matadouro.. Statutum hominibus semel mori , e
Deus por mais que eu lho peça não há-de livrar Vossa Senhoria deste lugar. O meu
é aos pés de Vossa Senhoria , rompante a que devo ajuntar o nobre título de seu |
[ signed ] Amigo e criado

[ date ] 5 Viena de Áustria, 21 de Abril de 1737."

[ letter (author: CO)]

[ title ] 31. |
À senhora Condessa de Roccaberti. Com a notícia dos amores de Filandro e de
Aspásia

Quer Vossa Excelência saber o princípio que houve para fim duma tão grande
afeição, copiarei aqui a carta que me escreveu nesta matéria o mesmo Filandro:
"Confidente do injusto desejo com que me 10 apartei de vós para ir visitar Alcandro
à sua casa de campo contra os muitos conselhos que me destes, tendes razão para
esperardes que vos comunique o sucesso que se seguiu ao meu intento.
Tinha eu, como sabeis, secreta e mui ardente 15 inclinação por Aspásia
antes que ela se unisse a este galhardo e amável homem que é presentemente seu
marido. Lisonjeava-me naquele tempo, e não sei se com razão, que Aspásia não
ignorava nem desprezava os meus afectos.
20 Sabeis que em todas as minhas acções cuidei sempre em me conduzir com
tanta prudência e discrição que, dissimulada e industriosamente, conservei a
reputação de homem sábio e virtuoso. Por este meio me foi muito fácil conseguir
que Alcandro, 25 à imitação de outros muitos, se enganasse comigo. A virtude
sincera e a integridade perfeita de que ele se orna o não encaminhavam a desconfiar
dos meus artifícios. Meu pai foi o único homem a quem as aparências da minha
virtude não puderam jamais 5 enganar. A sua grande penetração descobria o meu
natural debaixo de todos os disfarces com que eu o queria mascarar. O seu
carácter, naturalmente franco e sincero, lhe inspirava horror da hipocrisia com que
eu me livrava das censuras públicas. 10 Instruído duma das mais criminosas das
minhas extravagâncias, me favoreceu com repreensões e com documentos, porém
achando-me surda a toda a qualidade de exortações determinou deserdar-me deixando
os bens a um irmão que, realmente, 15 possui as virtudes que eu afectava com odiosa
ostentação.
Desde que meu irmão alcançou a intenção de meu pai, me deu a conhecer com
uma generosidade que eu não posso louvar bastantemente a infelicidade 20 que me
ameaçava, aconselhando-me que empregasse algum amigo que o dissuadisse de me tratar
tão severamente.
Achando-me na Quinta de Alcandro quando recebi estas notícias, apenas lhas
comuniquei se 25 ofereceu para mediar na reconciliação e persuadido eu que não
havia pessoa mais própria para este fim, aceitei com gosto os seus preciosos
oferecimentos.
Determinou Alcandro fazer uma visita a meu pai, e resolveu ficar três dias
na sua companhia para 30 poder insinuar insensìvelmente no seu espírito a
negociação. Esta ausência me facilitou as ocasiões de me explicar com a formosa
Aspásia e por um artifício digno da maior infâmia consegui dela a criminosa
promessa de nos encontrarmos secretamente no lugar mais oculto do seu jardim. 5
Era isto no segundo dia da ausência de seu marido. Chegou a hora determinada a que
a minha loucura chamava hora ditosa. Saí a esperar os meus amores, porém antes de
chegar a um pavilhão escuro do jardim, que era o lugar destinado para o 10
encontro, me encontrou um criado de Alcandro, o qual, despachado pela posta, me
trazia a alegre notícia de terem conseguido os seus bons ofícios com meu pai o
efeito desejado. O gosto, que Alcandro me testemunhava numa carta, de me ter
procurado 15 semelhante favor e o interesse que mostrava pelas minhas próprias
conveniências produziram instantâneamente no meu coração pareceres honrados e
virtuosos. Li muitas vezes a sua carta, e em cada regra achava uma expressão
generosa a meu 20 respeito. Aumentando-se o meu crime à vista da sua virtude, se
me apresentou com todas as circunstâncias agravantes, fazendo-se a minha
infidelidade mais odiosa, acusada pela vivacidade com que este generoso amigo se
empregava em meu favor. 25 Finalmente, vendo em mim mesmo a minha perfídia vendo
em mim a perfídia vendo em mim mesmo a minha perfídia com toda a sua infâmia, e
reflectindo, fiquei confuso de forma que não acertava a sair da minha perplexidade.
Como é possível, dizia eu, perder uma ocasião que solicitei com tanto
excesso! Será crível que 30 despreze a correspondência duma formosura que vem por
sua vontade entregar-se nos meus braços!? Temia com fundamento incorrer na sua
indignação e no seu ódio, obrando duma forma tão contrária às máximas que se acham
estabelecidas neste 5 mundo. Eram necessários combates mui violentos para me não
deixar vencer destas razões, que se faziam muito mais poderosas achando-se ainda
acompanhadas dum resto de minha própria paixão. Via de outra parte que enganava
pèrfidamente um 10 amigo, ao mesmo tempo que tinha nas mãos uma prova
inconstestável da sua fidelidade. Cada letra da sua carta repreendia vivamente o
meu intento. Parecia-me que Alexandre e Cipião, com outros, pagãos ilustres, se
erigiam em juízos contra mim, 15 mostrando-me que tinham sabido vencer nos
ferventes desejos da sua mocidade os encantos e as forças de semelhantes paixões
abomináveis.
Consistiu a minha felicidade em ter tempo para discorrer, não me podendo
seguir Aspásia no termo 20 que estava determinado. Longe de me impacientar com a
sua tardança, louvava a Deus e, cuidando nos meios de evitar o seu encontro, vi que
ela tinha entrado no jardim.
Achava-me pouco costumado a elevar ao Céu os 25 meus pensamentos, porém
atemorizado de me ver tão perto do precipício implorei o socorro do Criador.
Devendo voar para receber a minha amada, marchei com passos lentos e
repugnantes ao seu 30 encontro e, antes de pronunciar uma só palavra, lhe entreguei
a carta de seu esposo.
Logo que ela a leu me disse assim:
- Estou persuadida que todas estas expressões de meu marido são verdadeiras
e sou obrigada a confessar-vos que uma parte da boa opinião que faço da vossa
pessoa procede dos elogios que ele me faz contìnuamente do vosso carácter.
- Se devo parte da vossa estimação, disse eu, 5 a homem tão generoso, será
justo que pague a bondade com a falsa moeda de ingratidão?
Calei-me e fiquei firme, à mesma distância respeitosa, onde tinha proferido
estas palavras.
Confundiu-se Aspásia, fixou os olhos em terra, e 10 guardou profundíssimo
silêncio. Fatais combates foram os que provei neste momento crítico. Eu tinha
falado sem dúvida pela última vez, e um silêncio eterno se seguiria se a bela
Aspásia, conhecendo a minha dor e fazendo a minha apologia, me não 15 tirasse do
cruel estado em que me achava.
- Vejo, me disse ela, a desordem e o tormento. Uma acção tão honrada vos
engrandece, juro-vos sinceramente que desejo ter sido, como devia, autora dela,
porém, já 20 que fostes vós quem me mostrou o caminho, recebei a glória e o
contentamento de verdes que devo a vossa prudência a cobrança da minha virtude.
- Persuasões minhas, respondi, vos obrigaram a consentir no delito que não
executais; redundando 25 este todo contra mim, sou obrigado a castigar-me com uma
pena tão cruel como será a de vos não ver jamais na minha vida.
- Essa é a mesma resolução que eu começava a tomar neste momento, me disse
a nova e belíssima 30 penitente, porém vós vos avançais sempre em todo o caminho
virtuoso. Sem dúvida que não devemos tornar a ver-nos. O estado em que me acho me
obriga a retirar-me prontamente para a minha câmara, e devendo nós partir para a
cidade sem 5 demora, vos não será difícil achar pretexto legítimo para o fazer sem
vos despedirdes de mim.
Debaixo da agradável sombra dum jasmineiro me parecia Aspásia muito mais
bela que a mesma deusa dos amores. Começava a minha filosofia a titubear, 10
porém, separando-se Aspásia precipitadamente, me deixou acompanhado duma tão grande
tristeza que não pode ser explicável. Alcancei bastante império em mim mesmo para
a não seguir. Armou-se a minha razão neste instante de todas as suas faculdades.
15 Parece que a Divindade falava ao meu coração, impondo silêncio às minhas paixões
desordenadas. Obedeci às inspirações secretas e consegui que a verdade e a amizade
governassem plenamente o meu coração. Deixei o lugar funesto, parti para a cidade,
20 e juro-vos que esta acção me tem satisfeito interiormente de tal forma como
nunca os prazeres sensitivos me contentaram".
Se não há neste mundo, como digo a Vossa Excelência quem possa conhecer
Filandro nem Aspásia, também me 25 parece que não há quem os possa imitar. Uma
acção semelhante em matéria de vencimento próprio tem tão poucos exemplos que será
rara em muitos séculos. É certo que Filandro se determina a ir ver Paris, e
Aspásia sem dúvida que fez juramento de não vir mais a esta Corte.

[ signed ] Criado de Vossa Excelência .

[ date ] 5 Viena de Áustria, 21 de Maio de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 32. |
Ao Reverendíssimo Padre Dom José Augusto, Clérigo Regular da Divina
Providência e Conselheiro da Consciência do Imperador Carlos VI. A respeito do
conhecimento dos homens pelas suas figuras

Se tenho alcançado, como Vossa Mercê me disse, a ciência de conhecer os


homens pelos seus modos, meu trabalho me tem custado. Não presumo porém tanto de
mim que julgue infalíveis os meus juízos, 10 principalmente quando a experiência me
mostra todos os dias que, se eu me não engano com os homens, eles me enganam mil
vezes e, pelo que respeita às mulheres, não falemos nisso. Nas horas em que me
acho pouco disposto para os estudos e 15 para o trabalho fecho os meus livros e,
para me distrair totalmente de toda a ocupação séria, saio da minha câmara ou desço
do meu castelo e vou observar o que se passa pela cidade. Passeio as suas ruas ou
as dos arrebaldes, e acho mil ocasiões 20 que me divertem agradàvelmente, fazendo
certas pequenas reflexões em muitas das pessoas que encontro. Os seus modos, o
seu andar, e os seus vestidos, me servem para formar diversas conjecturas a
respeito do seu humor, do seu génio e do seu 5 entendimento. Começando-me a
aplicar a este exercício há muitos anos, acho-me sem dúvida alguma com bastante
esperteza nesta dita ciência, a qual não tendo ainda nome consiste em julgar do
carácter e em conhecer as diferentes inclinações dos homens 10 não pelas suas
poucas acções magníficas, mas por um grande número de bagatelas que se não podem
escrever e nas quais a maior parte da gente não faz reparo. Uma reverência ou
cortesia, daquelas a que chamam profundas, me assegura algumas vezes da 15 fereza e
da insolência de que está cheio o coração da pessoa que a faz. Um sorriso me
anuncia uma maligna intenção. Descubro a inveja e o ciúme nos louvores mais
delicados. Em um movimento de cabeça se me mostra a vaidade. Um grande riso me 20
justifica a loucura própria ou o desprezo alheio. Às cabriolas com que uma pessoa
se apresenta, conheço a alta ideia que forma de si mesma. A sua postura mostra
claramente se o espírito é quieto ou se o temperamento é vivo e apaixonante, e os
seus passos 25 ou passeios me dizem quase sempre se é ou não tolo. Algumas vezes
vejo se um homem é generoso ou avarento, quando me dá uma pitada de tabaco. Um dar
de cabeça, um levantar de braço e um pegar da mão bastaram já para me fazer julgar
se 30 uma pessoa é séria ou ridícula. Também já notei a loucura no modo de manejar
uma cana, e já desencantei a extravagância (quem tal diria!) dentro das presilhas
e do laço dum chapéu. O que porém me faz decidir com maior segurança do carácter
dum homem é o seu modo de vestir. Raramente me 5 enganei julgando do entendimento
duma pessoa, pela medida dos seus ornatos. Sem maior exame disse muitas vezes sem
escrúpulo, e acertei se a pessoa que os trazia era vaidosa ou prudente. Um
patarata afidalgado, a que outros corruptamente chamam 10 casquilho é coisa que
também conheço logo pela pinta, pelas caixas de tabaco, pelos laços e borlas do
espadim, pelo perpétuo movimento da cabeleira, pelo acento agudo do calçado, pela
inclinação às novas modas, pelas confianças, lhanezas, 15 distracções, gestos
afectados, risadas sem motivo, discurso de bacharel sem suco algum, palavras
escolhidas, fora do lugar, e finalmente pela pretensão de se fazer conhecer por
homem sábio e de importância, de bom gosto e de grandes intrigas amorosas. Este 20
conhecimento não é difícil, porque o entendimento se acha pintado naturalmente na
escolha dos ornatos e no jeito que se dá ao corpo. Neles se descobre a capacidade,
o humor e a constituição de cada um com tanta clareza, como se poderia alcançar
pelos 25 discursos, e, falando geralmente, posso dizer que ainda as pessoas mostram
melhor o que são nos seus vestidos do que nas suas palavras. As pessoas menos
atentas pesam muitas vezes o que dizem; ocultam quanto podem as suas secretas
inclinações nas suas palavras; e os entendimentos mais industriosos seguem ao
contrário o seu gosto nos seus ornatos, sem cuidarem no mínimo disfarce a este
respeito. Para amar uma pessoa dizem que é necessário vê-la, 5 e eu digo que para
a não amar também não é necessária outra coisa. Quantas vezes descobri eu o
coração duma destas tais e quais mulheres, chamadas falsas e inconstantes e que
amam todo o mundo, pelo lugar em que trazia um sinal, pela 10 palatina fora do
lugar ou pelos lugares de bordadura da sainha debaixo, ao mesmo tempo que a dita
formosa-insensível se esforçava por persuadir com os seus discursos que, isenta da
admiração dos homens, eram eles criaturas em que não cuidava. 15 O mesmo me sucede
com pessoas do nosso sexo. A bordadura dum vestido, os penduricalhos duma veste,
as franjas dumas luvas, os quadrados dumas meias, o topete, ou a bolsa duma
cabeleira, a postura baixíssima duma fivela de sapato, e o feitio 20 exquisito duma
caixa de tabaco, são coisas que raramente deixam de me dar com a última exactidão a
largura, o comprimento, altura, e fundo do entendimento e as habilidades dum
cavalheiro moço ou dum velho ridículo. Conheci mui particularmente 25 um médico
que vivia em Londres, o qual sabia com perfeição desta ciência e habilidade, que
foi a única causa da considerável fortuna que fez, executando curas tão
maravilhosas que lhe deram grandíssima reputação. Logo que queria conhecer 30 o
temperamento, a constituição e a enfermidade do seu paciente, era o exame do pulso
o menos em que cuidava, dando a maior atenção aos seus ornatos e enfeites. Tinha
tal penetração nesta matéria, que um curset , uma corneta ou umas fitas com que 5
as mangas da camisa do doente estavam atadas, eram bastante indício para descobrir
plenamente a causa do seu mal e os remédios próprios para ele. Pasmavam os
companheiros, a Faculdade se admirava das curas e, como se ignoravam totalmente os
10 princípios sobre que assentava os juízos, não se compreendia coisa alguma do seu
método. Creio que foi ele o primeiro que inventou meter alguns fios de seda cor de
cereja nos cordiais de pérola, empregando com bom sucesso esse remédio numa senhora
15 de setenta anos, a qual, ainda que moribunda, se achou imediatamente aliviada.
Recuperando depois a saúde, lhe aconselhou o médico que usasse no resto da vida, em
qualidade de preservativo, fitas desta cor juvenil e menineira nas cornetas . Este
mesmo 20 médico foi o que introduziu a moda ou o costume de doirar as pílulas e de
as fazer aviar na botica em papel branco, limpo e cortado em diversas figuras.
Quantidade de bagatelas desta espécie, que hoje se praticam, se devem à sua
imaginação, 25 empregando-se agora indiferentemente porque se ignoram as suas
virtudes maravilhosas. Um fidalgo moço, dos que chamamos bem-feitos, deu sinais
desgraçadamente foi atacado desgraçadamente duns certos sintomas que anunciam
febre. Incontinentemente se mandou chamar o nosso doutor. Chegando este com
prontidão, e não estando vestido o paciente, se lhe mandou dizer que esperasse um
momento na antecâmara, onde se ocupou 5 em examinar um objecto que descobriu. Era
um chapéu ornado de muitas ordens de cordões de prata que cobria a copa toda em
volta. A moda naquele tempo era de trazer nos chapéus alguns cordões daquela
qualidade; porém os cordões que 10 se viam neste chapéu eram em quantidade
excessiva. Vindo um criado dizer ao médico que entrasse, este lhe perguntou a quem
pertencia o dito chapéu encordoado.
- Pertence a meu amo, disse o criado.
15 - Sim? - respondeu o doutor - Pois é absolutamente inútil que eu o veja.
Fazei meus cumprimentos à senhora sua Mãe a quem estimo infinitamente, e dizei-lhe
de minha parte que é necessário que ela faça preparar para seu filho uma câmara 20
no hospital dos doidos, visto que a sua enfermidade não consiste mais do que em
loucura arrebatada. Lá achará sem dúvida os remédios que lhe convêm.
E sem esperar resposta desceu a escada, pôs-se na rua e foi para sua casa.
Não sei certamente se lhe 25 sucedeu este caso em França ou em Paris. Não houve
ninguém que não achasse mui estranho o procedimento do médico. Muitos o condenaram
neste caso como ignorante, ou demasiado gracejador, porém poucos dias depois houve
ocasião para 30 se acreditar novamente a ciência com que deu um conselho tão
extraordinário, pois que o senhor do chapéu enlouqueceu realmente, e não se dando
execução ao remédio o viu sua mãe expirar neste miserável estado com grande dor.
Quando este 5 médico foi a Portugal no fim do século passado, havia em Lisboa um
doutor mui hábil que, penetrando ou adivinhando o seu método, o quis imitar curando
por conjecturas. Sendo chamado para ver um homem robustíssimo a quem doía a
garganta, 10 chegou o dito doutor a sua casa a tempo que na câmara do doente se
despejava uma canastra de ovos de que lhe tinham feito presente. Recolheu-se esta
debaixo do leito para entrar o médico, ficou espalhada alguma palha pela câmara.
Tomando o doutor 15 o pulso ao seu doente lhe disse querendo-se prevalecer dos
indícios:
- Meu senhor, Vossa Mercê comeu hoje palha.
- Palha comeria ele - retrucou o enfermo.
- Palha comeu Vossa Mercê lhe digo eu. Esculápio e 20 Avincena não
enganam neste caso - disse o doutor.
- Se esses senhores se não enganam, - disse o enfermo, - engana-se você -
e levantando-se colèricamente da cama mostrou ao médico que era besta fazendo
verdadeiro o seu dito: pregando-lhe dois 25 couces na boca do estômago.
É necessário que Vossa Mercê saiba que o dito enfermo melhorou da
esquinência com a raiva.
Dizem que por umas coisas passam as outras, porém tornemos outra vez ao
nosso assunto. Se os 30 enfeites e os ornatos servem, por uma parte, a mostrar as
paixões e os temperamentos dos homens, não é menos verdade que, por outra parte,
influem prodigiosamente sobre os espíritos e sobre a saúde. Já fui testemunha de
que um afogador de diamantes sarou um obstinado mal do coração que tinha resistido
a toda a qualidade de remédios. Um assopro indiscreto sobre uma cabeleira
artificiosamente penteada e polvilhada tem produzido muitas vezes uma 5
inquietação, um desgosto e uma mortificação inexprimível. Quem é que poderá pintar
os cuidados, as perplexidades e as angústias que produz o temor de ver a menor
porcaria, em um sapato feito pelo modelo de servilha e quem poderá deixar de 10
admirar-se das diligências trabalhosas que se executam para meter pelos olhos de
todos a ideia e a formosura dum laço de espadim do último gosto? Não falamos aqui
do espadim de oiro do Conde Andeler, porque, se o mostra três e quatro vezes a uma
15 mesma pessoa, não há nenhuma que não saiba que está já mui gasto por causa das
vistas e revistas em que ele o mete, como livro que quer tirar as aprovações. Se é
vaidade gastar o oiro, também é generosidade. Vamos a outra coisa. Conheço
algumas 20 vezes a felicidade ou a infelicidade dum daqueles homens, em que Narciso
se retrata, pelo ponto de Espanha do seu chapéu ou pela qualidade do brocado da sua
veste. Vossa Mercê sabe que frequento as assembleias públicas e que nelas me não
há-de 25 faltar matéria para as minhas observações. Anteontem me conduziu a minha
curiosidade a um círculo, onde vi entre outros um patarata com uma veste de seda
branca bordada de oiro. Este moço me pareceu mais satisfeito de si mesmo do que 30
mostrava estar de todo o resto da companhia, examinando todos os seus enfeites com
tal atenção e satisfação que a não podia dissimular. Estava a pequenez da sua alma
como em êxtase à vista do seu anseio e parecia-me que olhava para todos os 5 mais
que estavam à roda com olhos de compaixão ou de desprezo. Voltava-se
continuadamente para uma e para outra parte e julguei que era para receber o
tributo de admiração que ele cria merecer a todo o mundo. Olhava para uma dama e
ao mesmo 10 tempo para uma fraile, e pareceu-me que lhes dizia com as suas olhadas
que tivessem entendido que lhes era impossível recusarem-lhe favor algum. Falava,
dançava e ria ao mesmo tempo com um ar de tanta superioridade que eu não me cansava
de o 15 considerar. Finalmente por tempo duma hora larga, foi este sem-sabor
naquele lugar a criatura mais afortunada do mundo. Mas felicidade dos mortais que
sois tão curta e tão ligeira! Chegou desgraçadamente um dos meus amigos com uma
bordadura na 20 veste dois dedos mais largos do que a sua. O meu patarata
observou-lhe prontamente a superioridade, tremeu, os músculos do rosto se lhe
abateram, fez-se branco, e todo o seu espírito o desamparou. Imóbil por algum
tempo, olhava primeiro para a sua veste, 25 depois para a do seu amigo ou inimigo.
Não se podia conter, a sua inferioridade era mui constante para que a pudesse
dissimular. Quanto mais examinava a maldita grandeza da bordadura contrária,
quanta mais mortificação pintava em todo o seu débil exterior. Posso dizer a Vossa
Mercê finalmente que o pobre patarata não só se encheu de inveja, mas de ódio
contra o seu amigo, o qual da sua parte 5 fazia toda a diligência possível por
triunfar. Por último parou com a dança e, não podendo disfarçar o seu pesar, saiu
da câmara com o pretexto duma grande dor de cabeça, despedindo-se com efeito para
ir dar alívio à sua dor, lamentando-se em segredo 10 da triste sorte de lhe ficarem
tão grandes vácuos na sua magnífica veste. Em todo este tempo estive lendo nos
seus olhos que estava resoluto a procurar, fosse por que preço fosse, para a
Primavera futura uma veste cuja bordadura fosse tão longe como é 15 a consciência
no tempo presente. O outro cavalheiro soube aproveitar-se da retirada do inimigo
e, como ficou no campo, toda a noite esteve como despojando-se da casaca para
mostrar melhor o triunfo da gloriosa vitória da sua veste. Muito de propósito 20
deixo de nomear a Vossa Mercê estes dois fidalgos, para ver se adivinha que o da
veste branca era o Barão de Mons, e que o da larga bordadura era o tenente-coronel
Vassor. Assim que vejo uma pessoa que despreza bastantemente os ornatos, usando de
25 composturas inferiores às que parece que lhe são dadas, decido sem mais exame
que é um homem de juízo e de merecimento; e quando me aparece uma figura ruidosa,
revestida de todas as peças e de todas as partes que a habilidade dum alfaiate, dum
30 bordador, dum sapateiro, dum mercador, ou dum chapeleiro pode inventar, também
não duvido um só instante que tenho diante de mim um homem de fortuna e do mesmo
merecimento do seu dinheiro, explicado no oiro, no veludo, nas bordaduras e nos
galões que traz, se é que também os não dá. Lembro-me agora dum inglês de primeira
qualidade que, sendo dum carácter irrepreensível carácter sem nota, gozava de
imensas rendas. Os seus vestidos eram sempre chãos, 5 ao mesmo tempo que a sua
numerosa família e criados se ornavam e se enfeitavam duma maneira tão rica que
podia excitar a inveja dos cavaleiros mais guapos do nosso tempo. Um milorde lhe
perguntou um dia a razão desta extravagância, e ele 10 respondeu: - Amigo,
lisonjeio-me que a memória dos meus antepassados, o lugar que ocupo e as minhas
próprias acções me possam aquirir algum respeito. Se me engano, então é porque me
falta realmente o merecimento que as galas certamente me não darão. 15 Pelo que
respeito aos meus criados é diferente, não havendo mais que os vestidos que possam
distingui-los e dar-lhes estimação. Para vos declarar naturalmente o meu
pensamento, digo-vos que amo mais presidir e governar a homens bizarros do que ser
20 bizarro eu próprio.
Eis aqui quase esse mesmo carácter que todos admiram, e que eu não posso
bastantemente louvar, no Sereníssimo e Modestíssimo Príncipe Eugénio.
Há algumas pessoas que fazem tão pouco caso dos ornatos, dos enfeites e
das modas, como há outras que têm essas coisas como as mais importantes, dando-se
continuados tratos e tormentos para as 5 inventar, aperfeiçoar e requintar. Acham
estas últimas pessoas tão gloriosa a acção de introduzir o novo feitio duns canhões
de casaca ou a nova ideia dumas fivelas de sapatos, como a de se distinguirem nas
mais nobres ciências, terem civilizado com a 10 sua doutrina as nações bárbaras e
ignorantes, ou terem com o seu valor salvado reinos e derrotado inimigos.
Monsieur le Clair, que inventou a moda de empastar os cabelos e as cabeleiras com
farinha e com pomada, chora continuadamente a pouca 15 fortuna de não ter nascido
entre os Gregos ou entre os Romanos, nações que respeitam o verdadeiro merecimento
e habilidade. Persuade-se, e dirá ele próprio que com muita razão, que se tivesse
vivido há dois mil anos teria o gosto de ver levantar 20 estátuas em honra sua.
Toda a sua consolação é a esperança que tem de que a posteridade lhe fará justiça,
e que se presentemente se acha, como os mais heróis e sábios, desatendido do
século, será com eles famoso nos séculos futuros, e tão nomeado 25 como os
Alexandres, Aristóteles e Césares. Como a ciência de conhecer pelo rosto quem tem
lombrigas é a mesma que a de julgar o gigante pelo dedo e a de descobrir Hércules
pelo pé ex pede Herculem , tinha ainda muito que dizer a Vossa Mercê nesta matéria,
30 porém entendo que basta o referido para satisfação do que lhe prometi. Paro
aqui contente com o gosto de o ter servido, mas não orgulhoso com a vaidade de que
das minhas criticas se podem aproveitar, como Vossa Mercê diz, os pregadores para
os sermões doutrinas. Não aconselharei a nenhum que represente no púlpito os meus
papéis, se se não quer ver perdido. Peleje cada um com as suas armas e deixem-me
as minhas pelo amor de Deus, 5 que guarde a Vossa Mercê muitos anos como desejo.

[ signed ] Amigo e servidor de Vossa Mercê .

[ date ] Viena de Áustria, 4 de Junho de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 33. |
A Belisa, em resposta à sua primeira resposta

Tenho feito todo o possível, minha Senhora, para me esquecer de vós, porém
vejo que ainda 10 não aprendi coisa mais dificultosa, nem em que fosse mais mal
sucedido. Tudo o que me passa de amável pela imaginação chama à minha lembrança os
vossos agrados, que são igualmente honestos e feiticeiros. Acho-me doente, como
sabeis, porém 15 as poucas palavras que me escrevestes ou me melhoraram
inteiramente ou pelo menos me obrigam a não querer morrer.
Um homem que tivesse bastante moderação para vos amar sòmente como vós
quereis, seria sem 20 dúvida ditoso a vosso respeito. Poderia admirar a mais
agradável e a mais generosa beleza gozando tranquilamente da sua amizade. É porém
impossível, ou assim parece, que o desejo se encerre neste limite quando tem o
conhecimento e o verdadeiro gosto do que agrada. Em toda a vossa carta, assim
como nos vossas mínimas acções, há muitas graças que encantam. Elas me
enfeitiçaram de novo, e elas são que me fazem dizer-vos: adeus querida e ainda 5
mais querida do que vós imaginais.

[ date ] Viena de Áustria, 6 de junho de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 34. |
A Belisa, estando para se ausentar

Restituí-me, Senhora, a minha palavra. É verdade que vos prometi o outro


dia, sem consideração, que vos traria e vos amaria com uma daquelas 10 amizades
sábias que não alteram a tranquilidade. Não sei executar o que disse e confesso
que medi muito mal as vossas forças e as minhas. Por muitas diligências que tenho
feito, não é possível defender-me das inquietações que acompanham 15 ordinàriamente
o amor. Há três dias que o combato, e a vitória que alcancei foi a de ficar mais
rendido. Perdoai-me se não cumpro a promessa que vos fiz. Em tudo o mais me
achareis verdadeiro, e se hoje vos engano nesta circunstância, permiti que vos diga
20 que vós fostes a que me enganastes primeiramente. Quem diria que parecendo-me
vós uma das mais belas pessoas que vivem no universo, que havíeis de ser ao mesmo
tempo o castigo dum coração como o meu que, detestando a escravidão do amor, é 25
naturalmente rebelde? Quem me diria que encontrava na mesma pessoa poderem formar
as delícias da vida os tormentos da morte? Vós ma dais e eu vos perdoo
voluntàriamente. Adeus, querida. Peço ao Céu que se não encontrem os
divertimentos, que 5 ides lograr ao campo, com os remorsos que vos deve causar a
culpa de matardes um homem que nunca vos ofendeu.
Lembrai-vos pelo menos, Que se morro sem vos ver 10 Não é por falta minha.
A poesia não é grande coisa não é coisa , porém à hora da morte cuida-se
mais de morrer do que de rimar.

[ signed ] Adeus outra vez

[ date ] Viena de Áustria, 12 de junho de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 35. |
A Madame ... estando ausente dela

15 Quem é que me meteu na cabeça fazer jornadas se eu sabia muito bem que a
ausência havia de ser contrária à tranquilidade do meu coração? Jamais me vi tão
penetrado do vosso amor, e para contentar o meu busco por todo o caminho alguma
pessoa que vos conheça para poder com ela falar em vós. No dia em que saí de Viena
não encontrei quem me parecesse capaz de lograr tanta felicidade e assim não fiz
outra coisa mais do que semear5 suspiros por toda a estrada. No dia seguinte achei
em Melck um cavalheiro, cujo tratamento e postura me fizeram esperar que sem dúvida
vos conhecesse. Depois de nos falarmos com a prática comum e usada entre
viajantes, lhe perguntei logo donde 10 vinha. Disse-me que de Viena. Aumentando-
se as minhas esperanças, comecei a tratar em termos gerais sobre o capítulo das
damas da Corte e da cidade, e queixei-me de propósito que não há ali uma só que me
mereça o nome de formoso, para o 15 obrigar a que me dissesse o contrário,
nomeando-vos. O meu cavalheiro não entrou em dúvida, nem disputou o que eu lhe
disse; respondeu-me a tudo mui agradável e mui polìticamente. Cheio de impaciência
de querer falar de vós, lhe nomeei como uma 20 das senhoras, mais belas a Condessa
de M e lhe perguntei se a conhecia. Disse-me que a tinha visto e, lisonjeando-me
novamente a esperança, nomeei-vos também, e respondeu que vos não conhecia, dando-
me por causa que só uma vez estivera na 25 Ópera, e que ali tinha visto por acaso a
Condessa M... Parti no mesmo instante e deixei-o; e ainda que ele veio jantar à
mesma Hostiaria em que eu o fiz, o não quis ver. Sendo tão agradável a sua
conversação, como já vos disse, de que me serviriam 30 os seus discursos se neles
se não havia de tratar da vossa pessoa? Perdendo enfim toda a esperança de
encontrar alguém que vos conhecesse, dispus-me, para ter continuadas ocasiões de
falar de vós, a meter na cabeça do marquês, meu companheiro, 5 que ele vos amava.
Ele vai-se persuadindo que é verdadeira a minha ideia, e aceitei com sorrisos
engraçados as saúdes que eu vos faço à mesa com sorrisos maliciosos. confesso que
compro caro o gosto de falar de vós porque, consistindo a ciência 10 e a prática do
marquês na genealogia e grandeza dos seus antepassados tenho muito trabalho para
mudar os discursos que me faz nesta matéria em práticas que vos respeitem. Não
pretendo que me responda sempre ao que lhe digo, contento-me com 15 que me escute
e, por pouco que o marquês valha, sempre o estimo mais do que um eco e do que um
surdo, ainda que algumas vezes me parece morto, dormindo na carroça, com a mesma
quietação e majestade com que os senhores seus avós repousam 20 nos túmulos.
Quando atravesso algumas aleias, que são lugares mui saudosos para os amantes, é
quase mortal a lembrança que tenho da vossa formosura, a qual parece que se
fortifica com a dureza dos próprios troncos. Encontro algumas vezes rouxinóis 25
com os quais entendo que vos correspondeis, tendo-lhes ordenado que me penetrem o
coração com a ternura dos seus cantos, tão doces e tão engraçadamente executados,
que provam serem verdadeiramete vossos discípulos. Finalmente, a minha saudade, ou
outra coisa semelhante, me tem debilitado de tal forma que não posso ouvir o ruído
das 5 ribeiras, nem o sussurro dos regatos sem delíquios do coração. Olhando
muitas vezes para trás, digo cuidando que vos vejo: Me amareis vós para sempre?
Cras, cras, me respondeu hoje um corvo. Se eu entendesse a língua destes pássaros,
poderia 10 formar bom ou mau agoiro de sua resposta. Ainda que muitas pessoas têm
assentado de que todos os corvos usam deste vocábulo latino querendo com ele
explicar o dia de amanhã, tendo assentado em não dar crédito a essas opiniões sem
que saiam 15 confirmadas no dicionário que os animais estão compondo da sua língua,
no qual temo que o cras dos corvos signifique outra coisa mais diferente da que
suposeram até agora os mesmos sábios, mas não prudentes, que querem interpretar a
língua dos 20 brutos prezando-se muito de se entenderem com eles. Digo-vos que não
me entendo a mim mesmo, e se isto que padeço é saudade, juro-vos que não há nome no
mundo mais suave e que tenha efeitos tão penosos. Parto e fico, se é que pode
ficar quem 25 vai correndo a posta. Deus, que ùnicamente é e conhece a verdade,
vos guarde por muitos anos.

[ signed ] Vosso até mais ver.

[ date ] Passau, 29 de Junho de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 36. |
À senhora condessa de la Bourlie de Guiscard, marquesa de Laval, &c. com a
desculpa de lhe não dizer adeus

Estimo muito ter cometido nesta ocasião uma incivilidade que me dá a


conhecer que valho mais do que eu cuidava. Não foi preguiça, nem esquecimento como
Vossa Senhoria imagina a causa dela. A minha 5 cobardia me embaraçou de despedir-
me de Vossa Senhoria crendo que me não devia julgar homem de importância, ou
daqueles que devem dar aviso das suas partidas, contando-se por alguma coisa as
suas ausências. Agora que tenho melhor opinião de mim, 10 terei melhor
procedimento de futuro, e pois que Vossa Senhoria me faz a honra de sentir que eu
lhe não dissesse adeus quando saí de Viena, prometo que será Vossa Senhoria a
primeira a quem o diga logo que chegar a esta Corte.

[ signed ] 15 Guarde Deus a Vossa Senhoria muitos anos

[ date ] Amsterdam, 30 de Junho de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 37. Ao Reverendíssimo Padre Dom José Augusto, Clérigo Regular da


Divina Providência e Conselheiro de Consciência do Imperador Carlos VI, a respeito
de Modéstia e de Audácia

Audentes fortuna juvat . Se eu não soubesse que este lugar é de Virgílio,


diria certamente a Vossa Mercê que era do Evangelho. No tempo em que era rapaz,
haverá trinta anos pouco mais ou menos, 5 imaginava-se commumente que a modéstia
era uma qualidade perfeita e uma virtude recomendável. Todos os que tiveram
cuidado da minha educação, me meteram em tal forma este princípio na cabeça, que
tenho tido bastante trabalho para me despojar 10 dele sem o poder conseguir. Para
me formarem o coração e o espírito me ensinavam as ciências mais dificultosas,
obrigando-me a distinguir as coisas e a fazer juízos sobre elas; e arrancando do
meu coração as sementes igualmente úteis e férteis do 15 orgulho, da vaidade e da
presunção, me advertiam de desconfiar das minhas próprias forças, da minha
habilidade, e dos meus conhecimentos. Com este método descobriram o segredo de
darem a si mesmos muito trabalho e de mo causarem maior, 20 impedindo a minha
elevação e a minha fortuna. Se me tivessem dado menos ensino, vejo-me persuadido a
que seria hoje um membro mui considerado da sociedade civil. Oh, quanto as coisas
têm mudado! Os homens de hoje são mais sábios, e têm 25 descoberto ditosamente por
uma dilatada experiência que a audácia vale muito mais para formar um moço
perfeito do que a modéstia. Ajudada desta primeira qualidade, uma pessoa que tem
apenas o juízo natural pode esperar elevar-se às grandezas, às riquezas e à
reputação, que são os três grandes 5 fins para que todo o homem caminha e trabalha
neste mundo, sendo certo que se não deve lisonjear de chegar a eles pelo meio da
modéstia. Não há coisa mais fácil do que provar o que digo em olhando para as
pessoas que brilham nas Cortes, 10 ou que presidem nas maiores Assembleias, e
examinando os que ajuntam bens imensos e os que logram a estimação e a aprovação da
maior parte das gentes. Acharemos seguramente no exame que estas pessoas não são
as mais distintas pelos seus 15 talentos, nem pela sua capacidade, nem pelas suas
notícias e que todas as suas qualidades se limitam ao uso fácil da audácia. Ela é
a que os põe no estado de exercerem todos os grandes cargos que se apresentam. É
verdade que se acham sem 20 habilidade e sem juízo, porém a excelente audácia tem o
lugar de tudo. Encarregam-se estas pessoas das funções mais dificultosas sem
duvidar e sem ter o mínimo receio do sucesso. Pode-se exaltar bastantemente uma
virtude tão proveitosa! Não há 25 dificuldades que atemorizem os que são ornados
dela. A razão se vê ordinàriamente enganada neste caso, e dizendo-nos que nem
sempre se poderão vencer os obstáculos que se oferecem às pretensões dos
audaciosos, estes senhores vão fazendo sempre o seu 30 caminho sem pavor e alcançam
o que desejam sem contradição. Um exemplo que escolho entre muitos servirá de
prova. Achava-se vago em certa Corte um regimento de cavalaria. Havia muitos
pretendentes que o pediam e alguns entre eles que o mereciam. Um meu amigo, com
grande admiração minha, se meteu no número dos opositores. Sabendo eu que até
então se não tinha aplicado senão a ocupações diferentes e contrárias das que pede
o 5 exercício a que aspirava, julguei com muitos dos seus e dos meus amigos que ele
não retiraria nenhuma outra vantagem além da confusão do seu desejo. Dizia o
general De La Cerda, neste caso, que só se o Soberano fizesse algum dia formar um
10 regimento de mosquitos poderia ser coronel o dito pretendente. O certo é que
sendo ele um cavaleiro de grande e ilustre nascimento não tinha nunca montado a
cavalo, e tinha grande medo duma espada nua.
15 Falando-me muitas vezes nesta matéria tive a liberdade de lhe perguntar
um dia se havia muito tempo que ele se exercitava nos estudos da profissão militar.
Respondeu-me, palavras formais: - Meu amigo, é verdade que até ao presente me não
20 apliquei a este género de vida, porém se alcanço o regimento e sou coronel estou
disposto a aprender a ser soldado por todas as formas. Era eu então tão ignorante
que recebi esta resposta como ridícula, porém o sucesso me convenceu de que o
futuro 25 coronel conhecia muito melhor o mundo do que eu cuidava. Foi nomeado e
alcançou o regimento, preterindo a diversas personagens que tinham consagrado e
sacrificado toda a vida à arte de Campanha. Dá-me vontade de rir e de chorar ao
mesmo 30 tempo uma acção do dito coronel, que é a única de que falei em honra sua,
sendo a maior a de encobrir aqui o seu nome à posteridade. Determinando-se ele a
montar a cavalo, o acompanhei muitas vezes no exercício. Saindo um dia a campo
ele, eu, e sua esposa que montava perfeitamente, sucedeu acharmos um cão morto na
estrada. Duvidando o meu cavalo passar por ele, o forcei contra seu gosto, a dama
executou o mesmo com arte e desembaraço 5 varonil, porém o senhor coronel pôs-se a
pé, ordenou a um lacaio que fizesse passar o cavalo à mão, e ensinou-nos depois que
todos os que queriam ensinar brutos eram mais brutos do que eles. A amável esposa
disse-lhe mil engraçadas injúrias a este 10 propósito, os criados riram e eu fiz
que não via por lhe não dizer o que entendia.
Creio que é evidente, à vista deste exemplo, que a audácia é uma virtude
mui própria para conduzir à fortuna e que é um meio muito fácil e muito mais 15
certo que o de emagrecer tristemente sobre os livros cheios de mofo, lendo autores
graves, estudando línguas pagãs, e enchendo a cabeça do inútil embaraço das
ciências. Estas e os bons discursos servem muitas vezes de razão bastante para que
um homem 20 não consiga empregos, tenças ou pensões. O que tem ornado o seu
espírito com conhecimentos nobres e verdadeiros poderá deixar de rir da ignorância
e da loucura dum competidor em que todo o merecimento consiste na audácia? Poderá
o sábio 25 resolver-se a lisonjear um rico ou um grande? Não, e por isso não
prospera, para aproveitar era necessário arrastar-se e executar mil baixezas.
Conhece-se hoje, pela forma como a audácia é o caminho verdadeiro que conduz a
vantagens de toda a espécie, 30 que a modéstia, desterrada das cortes, não acha
protecção senão num pequeno número de pessoas que, por serem excessivamente
tímidos, se igualam na inferioridade dos seus pareceres com a dos seus
merecimentos. A audácia, pelo contrário, marchando com todo o desembaraço procura
atenções, faz 5 ruído, e consegue os louvores de todo o mundo. Se o homem possui
com a audácia qualquer outra prenda recomendável, a fará certamente brilhar com
todo o lustre, e se possui só a audácia, com ela é capaz de não dar a conhecer que
se acha destituído 10 de todas as virtudes. Este homem não sabe perder ocasião
alguma de ostentar os seus talentos, coisa nenhuma o prende e coisa nenhuma deixa
de lhe vir à mão por que ele deixe de pedir. O homem modesto, por muito
merecimento que tenha, 15 parece-se com um diamante bruto, cujo valor é conhecido
de poucos; e muito longe de aproveitar, deve esperar ver-se desprezado e
desatendido em todas as coisas que ambicionar deste mundo. Não se pode reflectir
sem admiração nos trabalhos e nas 20 penas que tomavam os antigos para conseguirem
as emsmas coisas que se podem alcançar hoje mui fácil e seguramente graças às
ditosas descobertas dos engenhos modernos, achadas na educação que se dá a um
fidalgo moço. Em outro tempo havia o 25 costume de provê-lo de bons mestres,
fazendo-lhe colecções de livros e obrigando-o a que lesse por eles muitos anos. A
que fim, pergunto agora, se encaminhavam estas diligências e despesas, se a
experiência tinha mostrado que com elas se não 30 adquiria outra coisa além duma
ciência cheia de nomes fastosos e de efeitos inúteis? Com esta doutrina ficava um
homem incapaz de gostar dos divertimentos dos outros; e se um sábio se atrevesse a
aparecer hoje em uma assembleia de gentes da moda, apesar dos perfeitos
conhecimentos dos seus estudos, estou certo que se veria perdido e envergonhado com
os discursos de qualquer rapaz educado à moderna. Creio que será conveniente e 5
estimável apontar aqui o método que se deve seguir para inspirar o excelente
princípio da audácia, sendo ele o que basta só por si para constituir perfeito
qualquer homem. Eis aqui a regra.
Mandai vosso filho à escola enquanto rapaz para 10 que aprenda a conhecer
todas as letras e para que saiba soletrar e ajuntar algumas delas, porém tendo
cuidado em que não embrulhe o espírito em algumas regras de gramática. Logo que
sair da escola é necessário impedir-lhe absolutamente que se aplique 15 à leitura.
Poucos temperamentos há que possam suportar esta fadiga. Incomoda
consideràvelmente os olhos das pessoas mais robustas e deita a perder boa parte da
vivacidade dos meninos. Em lugar duma ocupação tão perniciosa, consenti ao senhor
o 20 vosso filho que se divirta com os criados e com as criadas da casa, e isto
pelo menos até chegar à idade de quinze anos. Este comércio lhe procurará sem
dúvida a audácia necessária, para entrar na prática do mundo, onde é preciso
introduzi-lo em 25 chegando à dita idade. Não apareça porém no mesmo mundo sem um
grande e dobrado topete da última moda, empastado com polvilhos e com pomada, e sem
uma larguíssima fita que lhe rodeie o pescoço e lhe faça uma formosa rosa debaixo
da 30 barba. Haja cuidado em que tenha mais pó sobre os ombros do que miolos
dentro da cabeça, e em que traga um bom espadim, ainda que possa passar mui bem sem
o ornamento da espada. Encubram-se os copos e punho deste espadim com um soberbo
laço em que haja borlas, cordões e canotilhos de muita diversidade. Não seja o seu
chapéu muito maior que uma escumadeira, ainda que ele seja de grandíssima estatura,
e é essencial que se veja 5 guarnecido dum ponto de prata ou de oiro, porém
larguíssimo, de sorte que confundindo à vista pareça que traz o chapéu embrulhado
numa venda. Use uma cana ou uma bengala retorcida em cajado, e tenha o cajadinho
seis polegadas pelo menos. Pelo 10 que respeita aos vestidos, é preciso que sejam
bordados ou agaloados conforme a fantasia do alfaiate, que será sempre o mais
nomeado. Se os quadrados das meias forem de oiro ou de prata, isso dará ao seu
merecimento mais um grau grão que não é para 15 desprezar. Há quadrados que têm
vergonha de saírem fora dos sapatos, e há outros tão altivos que vão fazer foscas
às ligas dos calções. Parece-me que deve usar destes, que julgo são os mais
praticados. Parece-me também que a antiga moda de 20 fazer rolos com as meias se
renova e se estabelece; é preciso não desprezar este ornato, que se tinha cedido
aos velhos mal a propósito. Os sapatos sejam excessivamente abertos, rasos e
redondos, porque não há coisa mais própria para fazer os pés 25 pequeninos como as
cabeças. As fivelas, sejam de prata, de oiro ou de pedraria, é necessário que
sejam da mesma grandeza das que se usam nos arreios dos cavalos. As fivelas das
ligas sejam feitas à proporção, e a do cós dos calções e a da gravata como der e
vier, porém sempre grandes. 5 Ainda que o vosso filho aborreça o tabaco traga
sempre uma ou mais caixas de diferentes gostos e feitios. Um sinal em certas
partes da cara dizem que produz um efeito maravilhoso e sobretudo se se põem em
cima dum olho, ou quase dentro da 10 boca, lugares em que este enfeite denota maior
afectação.
Tais são as principais qualidades que devem brilhar num cavalheiro, para
ser admirado na ordem da bizarria moderna. Se além disto frequenta as 15
assembleias, as óperas, as comédias, os bailes, as máscaras e os lugares públicos,
em breve tempo se desfará da modéstia que conservar ainda, chegando ao ponto
necessário de se não envergonhar de coisa alguma. Se ao mesmo tempo se puder
introduzir na 20 amizade de alguma comediante, ou de alguma operista de espírito,
obrará discretamente se se aproveitar a ocasião. Não há coisa mais adequada para
formar um perfeito moço em pouco tempo que semelhantes comércios, nos quais se
aprende a olhar 25 para a gente com desenvoltura e com trejeitos animados.
Finalmente, com pouca prática do mundo saberá em quatro dias que uma gargalhada de
riso supre em muitas ocasiões a falta de entendimento, que os ralhos agradam muito
mais do que as 30 ciências e que não tem necessidade alguma de polícia, nem de bom
discurso quando tem bons vestidos e quando lhes sabe dar um bom ar. Passados seis
meses, tempo que basta para desfazer-se de toda a espécie de desconfiança de si
mesmo, entendo que se achará perfeitamente qualificado para frequentar as melhores
companhias e para brilhar em todas as assembleias. É quase inútil, depois do que
tenho dito, declarar que é preciso que este fidalgo moço 5 saiba dançar, ao que
ajunto que, se a sua voz lho permitir, deve também cantar. Se contudo lhe faltasse
absolutamente o gosto e as disposições para se empregar neste amável passatempo,
não deve porém dispensar-se de assistir continuadamente à 10 ópera. Mais vale que
se mortifique duas horas, vendo uma representação que não entende, do que deixar de
representar o seu papel naquele útil lugar. Se quiser frequentar as assembleias
mais sisudas é preciso que saiba jogar e que seja capaz de se 15 conduzir em um
enredo amoroso. Estas duas qualidades, melhor do que as mais, lhe darão entrada
livre por toda a parte.
Aposto presentemente com os mais zelosos prelectores dos antigos, ainda
quando unissem todas as 20 suas doutrinas, que não dariam hoje um plano de educação
tão útil, tão fácil, e tão proporcionado à capacidade de quase todos os homens.
Apostaria, sobretudo, que eles não poderiam todos juntos prescrever um método mais
conveniente para se criarem 25 os morgados, os quais são ordinàriamente de
constituição mui delicada para se aplicarem aos estudos. Este é o melhor modo
para se lhes dar a conhecer o mundo com facilidade, não pelo meio das máximas
estéreis dum autor, mas pelo da sua própria experiência, entrando a representar no
teatro 5 universal naquela mesma idade em que outros não alcançam ainda o papel que
devem algum dia fazer nele. Será causa supérflua dilatar-me mais sobre a utilidade
da audácia. Todos os dias e em todos os acidentes da vida se oferecem ocasiões que
nos 10 persuadem da sua excelência. Quantas pessoas vemos nós brilhar com
equipagens pomposas, possuindo rendas imensas e exercitando os primeiros cargos de
honra, que devem tudo o que são à audácia, e que sem ela apodreceriam 15
miseràvelmente na escuridade, que é o triste domicílio dos modestos! A audácia
encerra um merecimento real, e à semelhança das riquezas serve de virtude, de
ciência, de espírito e de bom discurso. O que se acha revestido dela possui a
quinta-essência de 20 tudo aquilo que no mundo mais se estima, e acha-se em estado
de fazer, figura por si mesmo, por uma qualidade do seu próprio natural, sem
necessitar de se servir de outras emprestadas.
Disse no princípio deste discurso, conformando-me 25 com a prática moderna,
que um fidalgo moço se deve tirar da escola logo que sabe soletrar. Reflectindo
porém nesta matéria parece-me justo que ele aprenda até que possa ler pelo menos os
editais das comédias. Tenho muitas razões e mui fortes para 30 aconselhar esta
ligeira mudança no método da educação presente, desejando também persuadir que o
deixem aprender a escrever o que baste para que possa assinar com a sua própria
mão. É tão tentador o dinheiro e é tão fácil imitar a marca de que alguns
senhores se servem para firmarem o seu nome que se pode contrafazer e furtar com
muito prejuízo. Eis aqui o fim porque me atrevo a dar semelhante parecer, sabendo
muito bem que, 5 examinada a coisa em si mesma, nenhum destes senhores tem
necessidade de saber ler nem escrever. Sem estas artes podem adquirir todas as
ciências de que se ornam presentemente. A melhor lógica que podem possuir é a de
serem capazes de decidir com 10 ousadia e de afirmarem todas as coisas com
confiança. Neles as mais belas flores de retórica são os juramentos de que usam e
as risadas dobradas que sabem dar. Não há lugar em que se possam aperfeiçoar tanto
nas matemáticas como em uma mesa 15 de jogo. Pelo que respeita à física, eles a
aprendem por força ou por vontade entre as mãos dos cirurgiões em que caem
fàcilmente. O moral lho ensinam as damas com o amor, e a teologia não é coisa de
que se fale, achando-se absolutamente 20 desterrada do mundo galante e moderno. A
história eles mesmo a fazem.
Eis aqui um grande pedaço de moral com figura de doutrina perversa. Sendo
tão grande o número dos audaciosos não me atrevi a combater a sua 25 qualidade
directamente, deixando o campo aberto aos discursos para entenderem que o meu é
crítica ou elogio e ficando certo em que haverá muitas pessoas que o tomem à melhor
parte, achando-se persuadidas com a experiência própria que a audácia é uma
virtude de que se não pode dizer mal. Recomendo-me aos modestos e mui
particularmente a Vossa Mercê a quem Deus guarde muitos anos.

[ signed ] Amigo e servidor de Vossa Mercê .

[ date ] 5 Viena de Áustria, 29 de Agosto de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 38. Ao senhor D. Florêncio Henriques Maldonado, a respeito do génio


interesseiro das mulheres

Pela minha saúde lhe digo a Vossa Mercê que teve muita razão, sendo certo
que se não pode achar gosto no gosto que é necessário comprar-se caro. Quando um
homem tem dado o coração a alguma 10 Clóris, parece justo que ela lhe não peça a
bolsa. A respeito dos serviços que se fazem, o criado é que deve ser pago e não a
senhora. Muito bem lho tinha eu dito a Vossa Mercê , se lhe não esquece, que não
era pelos seus olhos belos que esta bela lhe mostrava 15 tanta doçura. Para outra
vez Vossa Mercê me crerá livrando-se para sempre de se empenhar em amores de que
saia vergonhosamente rejeitado. Console-se Vossa Mercê e saiba que não é o
primeiro a quem esta desgraça sucedeu. A maior parte das mulheres 20 sempre amou
mais que lhe contassem dinheiro do que lhe dissessem finezas. O provérbio que diz:
se não há dinheiro, não há suisso , é certo, porém seria certíssimo se dissesse
também que não há Clóris nem Fílis se não há dinheiro. Este maldito costume é
velho e tem criado fortes raízes. Para o provar e para consolar a Vossa Mercê lhe
contarei uma pequena história, e se Vossa Mercê já a sabe não a leia.
5 Suponho que se lembra Vossa Mercê , ou pelo menos se deve lembrar dum
certo grande falador chamado Demóstenes, que com a sua lábia se fazia respeitar dos
povos e da nobreza, e com os seus ralhos fazia enraivecer o rei da Mecedónia. No
tempo em que 10 este arengador florescia em Atenas, vivia uma certa mulher chamada
Lais em Corinto, cuja formosura está em igual crédito com a retórica de Demóstenes.
Não havia coração que resistisse aos feitiços da beleza de Lais, nem que deixasse
de se render à 15 eloquência de Demóstenes. Ambos de dois eram comuns em trabalhar
para o público ainda que com suas diferenças. De Demóstenes não sei dizer como era
recompensado, porém pelo que pertence a Lais, sem dúvida que usava pagar-se muito
bem das suas 20 obras. Não estavam as suas graças expostas ao primeiro lançador,
os seus favores eram taxados porém em tão alto preço que ele deu origem a um
provérbio que dizia: não era permitido a toda a gente todo o mundo ir a Corinto .
Tendo a fama mostrado a 25 Demóstenes a formosura de Lais, creu que o provérbio se
não entendia com ele, julgando que esta famosa dama não poderia resistir ao encanto
das suas palavras. Neste caso escreveu uma carta a Lais, a qual, ainda que só
amava a prática, lhe respondeu. 30 Acelerou-se Demóstenes, deixou Atenas e chegou
a Corinto. Não alcanço nos historiadores daquele tempo de que modo ele fez a
jornada, porém um amante como Demóstenes é certo que foi pela Posta, ainda que
então não a houvesse. Entrando em 5 Corinto, fez encrespar e polvilhar muito bem
os seus cabelos, vestiu camisa lavada, cortou os cairéis às unhas, dizem muitos que
lavou as mãos, e julgando-se assim melhor do que Adónis, fez a sua primeira visita
àquela que imaginava mais bela que 10 a mesma Vénus. Achando que lhe excedia em
graças e em feitiços, inflamou-se, outros nos asseguram que se esquentara na sua
presença, e começando a batalhar com os seus lugares comuns empregou neles todas as
finezas, perfeições e forças da sua 15 eloquência. Disse-lhe mil sentenças sobre
um milhão de agudezas e de subtilezas discretíssimas. Nada disto foi oiro na
estimação de Lais, e entrando Demóstenes na questão de concluir o negócio pediram-
se-lhe dez mil dracmas, que eram na nossa 20 moeda uns tantos e quantos a que não
posso fazer a conta, sabendo porém que era uma grandíssima soma. Confundiu esta
proposição de tal forma a Demóstenes que ficou muito tempo sem dizer palavra, sendo
a primeira vez que se lhe secou a 25 boca. Finalmente, ganhando ele como Vossa
Mercê os movimentos do seu amor, respondeu fugindo: Não permita Deus que eu compre
tão caro um arrependimento . Furiosamente se tem filosofado sobre esta palavra de
arrependimento. O que entendo ao pé 30 de letra é que Demóstenes quis dar a
entender por arrependimento o mal gálico ou mal de França, a que os franceses
chamam mal de Nápoles, e a que naquele tempo se chamava em Atenas mal de Corinto.
Se Demóstenes se achava com as dez mil dracmas de seu para pagar o arrependimento,
é também circunstância de que muito duvido em honra do seu merecimento, porque, se
ele o tinha tal como nos afirmam as suas obras e os seus 5 panegiristas, como é
crível que possuísse um capital tão grande? As dracmas, e todas as mais espécies
semelhantes de moeda que correm pelo mundo com nome de dinheiro, fogem dos
oradores, dos poetas e dos retóricos como dos mesmos demónios. Isto é 10 tão
verdade como foi grande a confusão com que o nosso amante voltou da viagem.
Chegando a Atenas começou a declamar com toda a força contra os vícios do sexo, que
não se emendou.
Parece-me que Vossa Mercê se deve satisfazer com este 15 exemplo, porque
acho no sucesso de Demóstenes muitas circunstâncias com que se consolam as do seu.
Não é de agora que as damas vendem os seus favores. Há anos que entrei no
conhecimento do seu trato e posso jurar a Vossa Mercê que não recebi um 20 só que
não pagasse. Os Narcisos lambareiros, que se gabam de que não há beleza que não
prostrem aos seus ralhos e às suas bonitezas, não são mais do que uns loucos,
presumidos de retórica, que existem no mundo para riso dos que seguem as opiniões
25 contrárias. Trinta ducados deste país e dez moedas do meu têm obrado muito
maior efeito sobre o coração das formosas em um instante do que mil conceitos e
sentenças podem fazer em um século. Eloquência, merecimento, boa presença e outras
prendas semelhantes, são moedas que as mulheres já não recebem por dinheiro
corrente. Este é o meu parecer, e Vossa Mercê mandará o que for servido contando
que me não mande à fava em companhia de Clóris. 5 Guarde Deus a Vossa Mercê muitos
anos.

[ signed ] Muito amigo e servidor de Vossa Mercê .


[ date ] Viena de Áustria, 10 de Setembro de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 39. |
A mademoiselle P.* J.* G. * P.* repreendendo e criticando a sua avareza

Se todo o mundo se visse obrigado como eu a dar dinheiro para facilitar a


leitura das suas cartas, 10 muitos autores não teriam escrito uma linha e os cegos
saberiam já ler. Estou certo que, quando não alumio as minhas cartas com o reflexo
de alguns ducados, não vedes nelas conceito que vos não pareça um borrão, nem
finezas que vos pareçam mais 15 que rabiscos. Se eu neste caso as copiasse das de
Polexandro, estou persuadido que seria o mesmo que escrever-vos em hebreu. Abrir a
boca e mover os beiços, usando de todos os modos necessários para me exprimir na
vossa língua, é o mesmo que 20 falar-vos em arábigo. Para vos falar em francês é
necessário abrir a mão, não conhecendo outro órgão pelo qual vos possa mostrar as
dificuldades da Bíblia e explanar-vos as Centúrias de Nostradamus, tão fáceis como
o bê-á-bá e tão inteligíveis como o padre-nosso. Finalmente vós sois aquela por
quem se pode dizer com verdade: Point d'argent, point de suisse .
5 Haveis de saber que gosto muito do vosso humor, porque enquanto o
conservardes tenho a certeza de que, com as cruzes dalgumas moedas, poderei lançar
fora o demónio da avareza mais facilmente do que com água benta, ou com exorcismos.
10 Parece-me que cometeria erro se vos estranhasse uma tão grande baixeza, quando
imagino que serão talvez motivos de virtude os que vos fazem proceder desta
maneira. Se caís nas cruzes ainda mais ordinàriamente do que os malfeitores da
Judeia, é 15 porque credes piamente que os justos vos não saberão pedir coisa
alguma com injustiça e que o ouro, sendo o símbolo da pureza, se vos não daria com
intenções que a ofendessem.
Vós sois boa cristã e melhor francesa e assim 20 julgo que, costumada a
prostrar-vos a todos os que vos mostram as imagens dos vossos reis, tendes uma
probidade tão exemplar que da mesma forma vos lançais por terra à vista das figuras
e dos retratos de todos os soberanos do mundo. Observo com 25 muita edificação que
sois escrupulosa na distribuição dos vossos favores, tendo muitas experiências de
que os conceitos mais fàcilmente à fineza de três pistolas que à de duas. (sic)
Esta economia me agrada muito, porque me persuado como coisa infalível 30 que
quando tenho a minha bolsa numa mão tenho na outra o vosso coração.
O que ùnicamente me desagrada é que, tendo-me vós dito tantas vezes que o
meu amor morava na vossa alma, sejais capaz de pôr este mesmo amor no meio da rua
se ele quiser viver convosco vinte e quatro horas sem pagar o aluguer.
Creio que não sabeis, ou que vos esqueceis da definição do homem, visto que
me provais por todas 5 as vossas acções que me tendes por um animal somente.
Julgava eu, seguindo a opinião de Aristóteles e de outros, que além de animal era
racional, porém vejo muito bem que é necessário cessar de ser o que sou logo que
cesso de coçar as algibeiras. 10 Só uma razão me ocorre para vos persuadir a que
faríeis bem de emendar o vosso génio, contrário à mocidade de que ides perdendo os
princípios, e é que deveis ter por causa mui vergonhosa quererdes viver às mesadas
do mesmo homem que é e quer 15 ser sempre |

[ signed ] Vosso criado

[ date ] Viena de Áustria, 15 de Agosto de 1737.


[ letter (author: CO)]

[ title ] 40. |
Ao senhor cavaleiro de Belle-Ille, com a desculpa da mesma culpa que ele
tinha em matéria de correspondência

É verdade que não escrevi a Vossa Senhoria desde que saiu de Viena, porém
também é verdade que me 20 sobreveio um acidente que me tem embaraçado. Caí sem
saber como em uma preguiça tão preguiçosa, que não tenho coração para fazer coisa
alguma em que se considere o mínimo trabalho. Esta é a minha razão, porém qual é
a que Vossa Senhoria pode ter sendo um homem que escreve com tanta facilidade, que
faz cartas, bilhetes, elegias, sonetos, canções, endechas, silvas, bosques,
florestas, jardins, hortas, pomares, vinhas e palácios, duma mão para a 5 outra?
Porque me não escreveu Vossa Senhoria , e porque me não mandou alguma destas coisas
para aqui? Digo-lhe e redigo-lhe que é uma espécie de rico avarento que me tem
desprezado como um pobre Lázaro. Quando Vossa Senhoria me tivesse mandado duas ou
três 10 cartas com alguns versos por caridade, não se arruinariam por princípio os
seus tesoiros, e quando eu não tivesse bastante espírito para pagar a Vossa
Senhoria a esmola neste mundo, teria bastante consciência para pedir instantemente
a deus Apolo que desse 15 muita da sua graça a Vossa Senhoria no seu Paraíso ou no
seu Parnaso. Creio que Vossa Senhoria se não acha em estado de dispor de si mesmo,
e que entregou sem dúvida o seu coração àquela formosa de quem me disse tanto bem,
e que eu não pude conhecer antes 20 de sair desta Corte. Se assim é, perdoo a
Vossa Senhoria por amor dela, e se não é assim eu lhe perdoo por amor de mim mesmo
para lhe mostrar que estou tão preguiçoso que teria muita pena se quisesse fazer
qualquer estudo para vingar-me. 25 Guarde Deus a Vossa Senhoria muitos anos

[ signed ] Amigo e criado de Vossa Senhoria .

[ date ] Viena de Áustria, 28 de Setembro de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 41. |
À Excelentíssima Senhora Condessa de Roccaberti, com a história moral de
Natan e Mitridates

Já tive a honra de dizer a Vossa Excelência que na minha pátria aprendi


para ser contador dos contos e que, não me bastando a prática de dezasseis anos
para ser ao menos escrivão deles, me serve de muita 5 vaidade dar-me Vossa
Excelência o emprego de contador de histórias, que sendo exercício que deixei na
idade de dez anos pouco mais ou menos, desprezando-o como ofício de criança, me
enobrece agora com o título de grande homem que Vossa Excelência é servida 10
conferir-me nesta matéria. A história de Natan e Mitridates também é grande e é a
seguinte:
Dizem todos os que viajaram no país de Catai - e por isso o têm escrito
assim alguns autores como coisa indubitável - que houvera nele um homem 15 de
nascimento mui ilustre chamado Natan, o qual tinha grandes bens e possuía muitas
terras no caminho por onde eram obrigados a passar todos os que iam e vinham do
Levante ao Poente. Natan era um homem benfeitor de seu próprio génio e, desejando
20 dar a conhecer a grandeza do seu coração por meio de acções brilhantes, mandou
edificar nesta estrada um dos melhores e dos maiores palácios que se tinham visto.
Fazendo-o ornar de tudo o que era necessário, fez também com que a riqueza dos
móveis 25 correspondesse inteiramente à magnificência do edifício e, tendo um
número muito grande de criados, determinou receber em sua casa todos os
passageiros, tratando-os com grandeza igual aos seus bens e digna da generosidade
do seu ânimo. Continuando esta mesma prática por muito tempo, se espalhou a fama
da sua liberalidade desde aquelas terras em que dizem que a Aurora chora até às
outras em 5 que se assenta que o Sol desmaia. Sendo Natan já velho, porém sempre
liberal, chegou a notícia da sua virtude e da sua magnanimidade a um homem moço
chamado Mitridates, morador em certo país pouco separado do de Natan. Sendo este
moço 10 riquíssimo e fastosíssimo, não pôde ouvir sem ciúme os louvores de Natan e
determinou escurecer o seu nome pondo em exercício acções ainda mais liberais,
maiores e mais famosas do que as suas. Para este efeito mandou fabricar um palácio
semelhante 15 ao de Natan, e começou a dispender tantos bens com os passageiros que
alcançou em pouco tempo grandíssima reputação. Achando-se Mitridates um dia só às
portas do palácio, chegou uma pobre mulher a pedir-lhe a esmola, que recebeu.
Saindo por 20 uma porta, entrou por outra, e pediu novamente esmola, que alcançou.
Repetindo esta mesma diligência treze vezes, lhe disse por último Mitridates,
dando-lhe sempre esmola, que ela abusava do benefício. Ouvindo a pobre estas
palavras se retirou, 25 e disse: A liberalidade de Natan é muito mais prodigiosa;
entrei no seu palácio por trinta e duas diferentes portas, pedi-lhe esmola outras
tantas vezes, e ele ma deu sempre sem mostrar que me reconhecia . Aqui só treze
vezes a pedi e não só fui conhecida, mas repreendida . Foi-se, e não voltou mais.
Mitridates, que tinha o ouvido muito fino, percebendo distintamente todas estas
palavras, ficou tristíssimo, crendo que toda aquela glória que se dava a Natan
diminuía a que ele fazia por merecer. - Desgraçado que sou! - dizia ele. -
Inùtilmente procuro exceder nas grandes coisas a Natan, pois que me vejo inferior
na prática duma acção tão pequena! Enquanto este homem viver não terão 5 efeito os
meus desejos, e pois que a sua velhice o não quer tirar deste mundo, é necessário
que eu o faça pelas minhas próprias mãos.
Entrando neste movimento de furor montou a cavalo, e acompanhado de dois
criados a quem 10 comunicou o intento, chegou três dias depois às terras de Natan.
Separando-se da sua gente lhes ordenou que o não dessem a conhecer, e se alojassem
como lhes fosse possível até nova ordem. Perto da noite chegou ele só ao palácio
de Natan, o qual 15 vestido mui honestamente passeava à roda dele. - Perguntou-lhe
Mitridates se poderia ver a Natan. -Ninguém melhor do que eu - lhe respondeu Natan
- vos poderá facilitar esta ocasião se a desejais. - Muito me obrigarias - disse
Mitridates - porém 20 desejaria, se é possível, não ser visto nem conhecido de
Natan. - Também vos posso fazer esse serviço, pois que o pretendeis - respondeu
Natan.
Apeando-se então Mitridates, e marchando ambos para o palácio, chamou Natan
um criado a 25 quem entregou o cavalo de Mitridates, e por quem mandou ordenar a
toda a sua família que não declarasse a Mitridates que ele era o mesmo Natan.
Entrou Mitridates em uma belíssima câmera, onde só vinham as pessoas destinadas
para o servirem, 30 sendo uma delas Natan, que muitas vezes lhe fazia companhia
tratando-o com toda a qualidade de distinções. Mitridates, que respeitava a Natan,
desconhendo-o, como a um velho venerável, lhe perguntou quem ele era. - Sou -
respondeu o sábio velho - um humilde criado de Natan, ao qual sirvo desde os
primeiros anos, sem lhe merecer que me tenha levado a outro exercício que ao que me
vedes praticar. Toda a gente se acha satisfeito com 5 ele, porém pelo que me toca
não tenho a mesma razão.
Destas palavras concebeu Mitridates muita esperança para executar o seu
maligno intento com mais precaução e certeza. Natan lhe perguntou 10 também mui
civilmente quem ele era, e o motivo que o obrigava a viajar. Mitridates depois de
se suspender um pouco lhe perguntou se se podia fiar nele, e recebendo resposta com
a qual se contentou, lhe fez um largo discurso que não teve outro fim 15 senão o de
segurar-se da sua fidelidade, pedindo-lhe o seu conselho e a sua ajuda depois de o
informar exactamente das suas intenções. Admirou-se Natan à vista duma resolução
tão estranha, porém sabendo disfarçar o seu sobressalto e a sua 20 confusão lhe
respondeu com valor e com firmeza. - Vosso pai, Mitridates, era ilustre pela
elevação do seu nascimento e pela grandeza do seu ânimo, e vejo que vós não quereis
degenerar, pois que formastes uma empresa tão alta. Em tudo quanto me 25 foi
possível gostei sempre de dar gosto a toda a gente. Serei sempre o mesmo e louvo
muito a justa inveja que tendes à virtude de Natan. Se houvesse grande número de
pessoas do seu carácter, é certo que não seria tão grande a corrupção do mundo. 30
Podeis estar seguro que tudo o que me comunicastes ficará secreto e em que eu vos
posso servir e aconselhar nesta acção melhor do que ninguém. Daqui podeis observar
um pequeno bosque, onde Natan vai passear pela manhã ficando todos os dias ali
algumas horas. Naquele lugar assim como vos é fácil encontrá-lo, assim vos será
também dispordes da sua vida. Se o matardes podeis retirar-vos com toda a
segurança e, para o conseguirdes com maior 5 diligência, advirto-vos que não sigais
o caminho por onde viestes, porém que tomeis o outro que se acha à mão esquerda, e
que conduz por fora da floresta. É menos praticado, porém é o mais curto e o mais
seguro para vossa casa. Sendo Mitridates 10 instruído desta forma, fez saber aos
seus criados que se achavam recolhidos no mesmo palácio de Natan o lugar onde ele
queria que o esperassem no dia seguinte. Logo que amanheceu, Natan, sempre o
mesmo, saiu só do seu palácio a esperar a 15 morte no bosque, onde costumava
passear. Mitridates montou a cavalo ao mesmo tempo, e encaminhando-se para o dito
lugar avistou Natan que marchava diante dele. Chegando-se perto, e querendo vê-lo
e ouvi-lo antes de o matar, o segurou 20 pela cabeça e disse-lhe: - Velho, é
necessário que morras. - É preciso que eu o tenha merecido - respondeu Natan.
Conhecendo Mitridates que este era o mesmo homem que tão civilmente o tinha
recebido, tão 25 familiarmente tratado e tão fielmente instruído, mudou em pejo o
seu furor e em confusão o seu intento. Lançando por terra a espada com que estava
já para descarregar o golpe mortal sobre Natan, desceu do cavalo e postrando-se aos
seus pés lhe 30 disse desfazendo-se em lágrimas: - Não posso, venerável e generoso
Natan, deixar de reconhecer a grandeza da vossa alma. Quando eu dela não tivesse
outra prova, a sinceridade e a firmeza com que aqui viestes para me dar a vossa
vida me convenceria suficientemente. Não tenho direito algum para vos privar
dela, tanto mais que me vali de vós mesmo para efectuar a execução de tão injusto
desejo. Deus, misericordioso e cuidadoso da minha 5 obrigação mais do que eu
próprio, foi servido abrir-me os olhos que a inveja tinha fechado. O agrado e a
bondade que mostrastes a meu respeito me fazem conhecer melhor a enormidade do meu
crime. Vingai-vos, aqui me tendes a vossos pés, fazei com 10 que o castigo seja
proporcionado à minha culpa.
Levantando Natan a Mitridates, o abraçou carinhosamente dizendo-lhe: - A
vossa culpa, meu filho, pois que vós lhe quereis dar esse nome, é do número
daquelas que fazem sempre honra aos que 15 as cometem, e por consequência não
tendes necessidade de pedir perdão para ela. Não era um motivo de ódio o que vos
obrigava a tirar-me a vida, era um princípio de virtude com o desejo de conseguir a
glória de passar neste mundo pelo mais liberal. 20 Não temais coisa alguma pelo
que intentastes, persuadi-vos ao contrário que não há pessoa no mundo que mais vos
ame do que eu próprio. O vosso coração é verdadeiramente grande, pois que não
consiste vosso cuidado em adquirir as riquezas para as 25 guardar como os
miseráveis, mas para as dispender como os generosos. Quisestes-me matar, porém sem
outro fim que o de tornar-vos famoso. Não há coisa alguma nessa acção que não seja
gloriosa, e que eu não penetre admiràvelmente. Este é o meio 30 pelo qual muitos
príncipes, reis e imperadores engrandeceram os seus Estados e imortalizaram a sua
memória, e não se contentando para isso de matar um homem só como vós queríeis
fazer, imolando milhões de pessoas; destruindo infinitos países, e queimando
inumeráveis povoações. O que vós determináveis fazer é uma acção que se pratica
quotidianamente.
Mitridates não pôde cuidar de desculpar-se vendo 5 que o mesmo Natan
procurava escusar o seu crime, porém disse-lhe sòmente que se não admirava tanto da
resolução que ele mostrara de se deixar matar, mas da tranquilidade com que
ensinara os meios e dera conselhos para esse efeito. - Não vos 10 admirareis nem
duma nem doutra coisa - respondeu Natan - sabendo que sou senhor de mim próprio,
jamais pessoa alguma se chegou a mim a quem eu não satisfaça, só se de todo não for
possível, em tudo quanto me venha a pedir. Chegastes vós também 15 e declarastes-
me que queríeis a minha vida, e como eu vo-la queria dar sinceramente, vos ensinei
os melhores meios de ma tirardes sem perigo vosso. Ainda vos digo que, se não
tendes mudado inteiramente de desejo, que o satisfaçais, porque 20 certamente não
tenho mudado de palavra, nem da vontade com que a dei. Parece-me que não poderia
empregar melhor a minha vida. Oitenta e quatro anos há que a guardo. Passei-a em
gostos e em delícias, e vejo muito bem que conforme os estatutos 25 ordinários da
natureza hei-de ser privado dela bem depressa. Dei todos os meus bens com boa
vontade; e creio que faria também melhor em dar a minha vida de boa mente de boa
graça , do que esperar que a natureza ma venha tirar por força. Cem anos é uma
vida medíocre para que se possa estimar. Que acaso se pode logo fazer de três ou
quatro anos que poderei 5 viver? Ainda a ofereço com maior alegria porque não
achei até aqui pessoa alguma que a quisesse, e não sei se encontrarei outra no
futuro que ma peça, e que efectivamente a queira receber com menos estimação, pois
que não ignoro que é um bem que 10 quanto mais guardo menos vale; e assim outra vez
vos digo que a recebais, se vos agrada, antes que ela venha a ser mais desprezível.
- Não queira Deus - disse Mitridates inteiramente atónito - que eu vos tire
um bem tão 15 precioso. Crede que agora estimo como devo a vossa vida, e que longe
de vos privar dela, quisera aumentar o seu curso se pudesse à custa da minha
própria.
- Se vós pudésseis ajuntar os vossos anos aos 20 meus - disse
incontinentemente Natan - faríeis o que jamais pessoa alguma pôde fazer, porque me
faríeis receber de vós alguma coisa, que é o que até agora ninguém fez. Outra
acção é a que podeis executar, se quereis seguir o meu conselho. Recebei o 25 meu
palácio com tudo o que nele se acha; ficai nele; tomai o meu nome e permiti-me que
tomando também o vosso vá viver no vosso palácio.
- Se eu me julgasse - respondeu Mitridates - capaz de imitar as vossas
acções, poderia nesse caso aceitar os vossos oferecimentos, porém como estou já
certo de que as minhas obras diminuiriam a vossa reputação, não devo deslustrar na
vossa pessoa o que não praticar com a minha.
5 Depois deste e de muitos discursos que me não constam, se encaminharam
ambos para o palácio, onde Mitridates recebeu grandes honras, sendo exortado por
Natan a perseverar no exercício da generosidade que praticava. E mostrando-lhe por
10 outras muitas novas e diferentes acções magnânimas que não era possível que o
excedesse, lhe permitiu que se retirasse para o seu país acompanhado dos dois
criados com que ele tinha saído.
O carácter de inveja traçado na pessoa de 15 Mitridates, e o do desprezo da
vida humana delineado na de Natan, são ambos de dois originais antigos, porém temos
a desgraça de que Natan nos não deixou cópias suas, ao mesmo tempo que Mitridates
se fez retratar em toda a gente e por autores que a 20 representam tão insignemente
que parecem o mesmo Mitridates em corpo, mas sem alma. Quando alguém me
perguntasse qual é o retrato mais parecido que tenho visto com estes invejosos,
juraria (e é de advertir como Vossa Excelência sabe que não sou costumado a 25
isso) que é o que se conserva na baixíssima pessoa da Alteza que retrato sem
nomear.
Tudo tem fim, e esta história também o tem. Vossa Excelência se dignou de a
querer ouvir, e agora se indignará de a ver mal contada. Daí se seguirá que 30
tirarei tão boas certidões das histórias como dos contos, e que não só morrerei
praticante, porém riscado do número dos bons escrivães. Se eu viver sempre com
fortuna bastante para merecer o título de criado de Vossa Excelência , será boa
história. Isso são outros contos, e eu conto não como história mas protesto como
coisa verdadeira, segura e infalível que sou e serei
Eterno venerador de Vossa Excelência .
5 Viena de Áustria, 16 de Outubro de 1737.

[ letter (author: CO)]

[ title ] 42. Ao senhor F. Tasso Diaxo, a respeito do estilo e dos seus


escritos

Ainda que não sou vosso pai, e ainda que graças a Deus não posso ser vossa
mãe, dizem-me que temos fraternidade contraída desde o tempo de Adão, e sobre ela
um conhecimento tão bem estabelecido 10 que por força está reduzido a amizade, se é
que há verdade nas cartas. Parece que estas qualidades havidas e por haver eram
bastante instrumento para fazer operar a caridade, advertindo-vos a respeito do mau
caminho em que andais, e do miserável 15 estado e estudo em que vos vemos.
Contudo se não fosse a ordem que me dais para que diga o meu parecer sobre
os vossos escritos, parece-me que ainda continuaria a mostrar que os ignoro, e que
me calaria nesta matéria para todo o 20 sempre, se é que há paciência que pudesse
bastar para cumprir um tal propósito.
Tenho conhecido que empreendestes imitar Gôngora, porém vejo que o não
conseguistes com felicidade, porque não há aqui homem nem mulher de bom juízo que
entenda o espanhol que não julgue pelos vossos versos que alguma enfermidade ou
outro acidente oculto desconcertaram os órgãos da vossa razão muito mais do que se
podia desconcertar o relógio da Torre de Santo Estêvão, se caísse 5 daquela
grandíssima altura em que se acha. Como me pedis que vos diga a verdade, isso
costumo e isso faço.
A respeito de Gôngora, haveis de crer que há um espaço infinito entre o
menos bom dos seus 10 versos e entre o menos mau dos vossos, de tal forma que no
mundo razoável se pode muito bem dizer sem afrontar-vos que vós e ele sois dois
antípodas.
O vosso estilo é justamente um dos mais estranhos que jamais se viu entre
os idiomas de que se 15 compõe a terra. Parece que escreveis sòmente com o fim de
dar tratos ao entendimento. A vossa intenção não se pode descobrir, e, por mais
que se trabalhe para adivinhá-la, não é possível que se consiga. Comentários,
glosas, interpretações e 20 conjecturas tudo é nada. Tudo é zombaria à vista das
vossas obras. Vê-se cada um dos vossos versos à parte sem se misturar com o seu
vizinho, e nesse caso tem sua espécie de significação, porém, se se cuida em
ajuntar dois, perde-se o Norte, dá-se com 25 a cabeça pelas paredes, e ninguém sabe
onde está o seu sentido. Algumas vezes me persuado que pode haver extravagância ou
galantaria encoberta nos ditos versos, porém aí é que está o diabo, sendo a que
mais me pica não poder chegar a conhecer que 30 qualidade de galantaria ou de
extravagância seja a vossa. Confesso que faríeis muito bem serdes tão escuro como
sois quando alguém vos obrigasse a escrever, porque nesse caso vos seria vantajoso
que se ignorasse o que queríeis dizer; porém se não gostais de serdes entendido,
quem é que vos impede que vos caleis? Há necessidade alguma neste mundo que vos
constituais nele importuno público, e que cuideis em nos romper a cabeça todos os
dias 5 porque a nossa civilidade nos embaraça de vos impor silêncio?
Porque não escolheis outra ocupação? Muitas vezes vos ouvi dizer que
caçais excelentemente. Por que razão vos não empregais neste nobre e 10 honrado
exercício? Juro-vos que não encontrareis fulosa que pese menos do que a vossa
prosa, e que não vereis alvéloa mais ligeira do que a vossa poesia. Que mal vos
fez a razão para quererdes afogá-la por todas as formas? Não bastava que fósseis
15 incompreensível na prosa? É possível que tenhais também de ser ininteligível em
verso? Creio que ouvindo dizer que a poesia é a linguagem dos deuses, vos
persuadistes que é necessário falá-la de sorte que os homens a não entendam, e isto
porque 20 não sabeis que a primeira qualidade dum bom escritor é a de ser
inteligível.
Quereis saber o que sucede a quem não quer falar como os outros falam?
Sucede que os homens entendidos o criticam, que os prudentes se 25 compadecem dum
espírito a que chamam perdido, e que apenas se encontram quatro estudantes, dois
frades e algumas mulheres loucas, que estimem os seus escritos.
É pena, vos confesso, que não vivêsseis no tempo 30 das sibilas e no dos
filósofos egípcios. Que dificultosos enigmas, que escuros logogrifos, que
misteriosos discursos e que incompreensíveis hieróglifos não faríeis? O admirável
dom que tendes da escuridade é certo que então vos daria grande esplendor. Agora
não tem algum. Já se não encontram adivinhadores, o nosso século é grosseiro, e
não se sabe 5 estimar nele a vantagem que lograis. Os homens do tempo presente
querem compreender com facilidade tudo o que ouvem e tudo o que lêem. Julgo que há
certos modos de escrever e de falar, aos quais se pode dar mais de um sentido
contendo 10 pensamentos ocultos, escuros e engraçados, porém o vosso escuro é duma
cor tão fechada que, passando todos os limites, parece que está fazendo figas a
dons mais preciosos que o da fala, dom que Deus nos deu para nos podermos exprimir,
fazendo 15 entender os nossos conceitos uns aos outros.
O que mais me desespera ou me confunde é a advertência, que fazeis nas
vossas obras ao público, de que cuidastes e trabalhastes para as pôr em limpo.
20 Chamais a estas obras postas em limpo, e como é que elas podiam ser
antecedentemente? Mostrai-nos, pelo amor de Deus, quais são as expressões e os
pensamentos que reprovastes. Se os que publicais limpos e claros são tais, como é
possível que os 25 outros fossem mais sujos e escuros? Creio que tendo expressado
o vosso pensamento como fazem os outros homens, achastes o estilo muito comum e
muito fácil à vossa fantasia e, para a satisfazer, julgo que vos traduzistes a vós
mesmo em tenebroso.
30 Isto é pelo que nos pertence, porém pelo que vos toca, confesso-vos que
tenho grande curiosidade de saber se vos entendeis a vós mesmo. Se me respondeis
que sim, dou-vos um conselho, e queira Deus que o acheis tão acertado como eu o
reputo proveitoso. Encaminhai-vos aos ministros de Estado desta ou de outra
qualquer Corte, e asseguro-vos que em lhe descobrindo o segredo da vossa cifra que
ela fará a vossa fortuna.
5 Tendes um grande defeito não distinguindo as coisas tristes das alegres,
e dando um mesmo tom aos epitáfios e aos epitalâmios. Parece-me que seria
conveniente seguirdes a vida eclesiástica, porque devendo pregar mui maviosamente
conforme o 10 vosso génio, nos excitaríeis todos à compaixão. Tenho, porém, um
aviso para vos dar neste caso e é que vos não encarregueis jamais, nem por zelo nem
por devoção, de acompanhar pacientes ao suplício. Estai certo que, com o acento
lúgubre de que 15 vos servis, os faríeis desesperar com as vossas consolações, e
tenho para mim que não haveria criminoso de tão mau gosto que não quisesse antes
morrer queimado vivo com outro confessor do que ser enforcado em vossa companhia.
20 Espero que vos não lisonjieis de que é a inveja a que me faz falar
assim. Seria o mesmo que correr contra um homem coxo ser invejoso da vossa
reputação. Há muitas coisas de que pedimos a Deus que nos guarde, e é certo que me
seria muito mais 25 conveniente ser falto de reputação do que ter a vossa em
matéria de escrever. Tudo o que digo, ainda que com pouca esperança, é sòmente
para reformar o vosso estilo. Pode ser que me fosse muito mais fácil empreender a
conversão de dez turcos. 30 O que vos tem posto como doido arrebatado é que muitas
pessoas ilustres, principalmente algumas mulheres e alguns frades maliciosos, vos
têm dito que as vossas obras são inimitáveis. Haveis de saber que todas essas
pessoas têm razão, porém vós não tomais as suas palavras no verdadeiro sentido que
elas têm. Observei que todo o mundo põe grande gosto em deitar a sua pedra sobre
um cão que se afoga.
5 Finalmente o que me parece mais acertado, no caso que não queirais
emendar o vosso estilo, é que renuncieis inteiramente a tudo o que se chama pena,
tinta e papel, empregando o dinheiro que nisso dispendeis em outras obras que vos
possam ser 10 meritórias. Se vos obstinais a escrever, persuadi-vos absolutamente
que não há pessoa que escreva como vós, porque ainda os autores menos hábeis não
deixam de lograr o sentido comum, que Deus foi servido dar a Adão e aos seus
descendentes, 15 para que falassem a fim de que se entendessem. Eu mesmo vos
servirei de exemplo.
Sabeis que me não prezo de escrever, e que me faltam todas as
circunstâncias necessárias para me poder jactar de tão nobre profissão. Contudo,
20 quando lerdes esta carta, haveis de achar clara, distinta e inteligìvelmente que
não vos tenho por um bom poeta ou por um grande orador, mas que também duvido de
que sejais um gramático suportável.
25 Eis aqui a verdade posta em pratos limpos. Pesa-me descompô-la, sendo
necessário mandá-la nua à vossa presença. Se, por falta de farda, se não parece
com as vossas obras, vesti-a ao vosso modo, e eis aí o maior castigo que podeis dar
à verdade 30 pela resolução de aparecer aos vossos rogos.
Remeto-vos outra vez o Epitalâmio, porque não me atrevo a guardar em minha
casa coisa tão infeccionada, em tempos em que todos fazem tantas prevenções contra
a peste. Guardai-o em vosso poder. O veneno natural não mata a quem o logra, e é
tirania comunicá-lo aos amigos, ou seja em verso ou seja em prosa, recipe e
requiesce .

[ signed ] Amigo verdadeiro

[ date ] 5 Viena de Áustria, 2 de Novembro de 1737.

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