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|:| PLEASE SET CHARACTER ENCODING SYSTEM TO UTF-8
|:| Tycho Brahe Parsed Corpus of Historical Portuguese
|:| Document ID: c_001
|:| Encoding: UTF-8
|:| Last Saved: 31.10.2006
|:| Title: Cartas, Cavaleiro de Oliveira
|:| Author: Cavaleiro de Oliveira
|:| Version: Simple Text, for Automatic Tools
|:| Edition Type: Edited text (from source text with edited orthography)
|:| [END
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[ title ] 1. |
A Mademoiselle de M. *** a qual pediu o retrato do amor
Sim, Senhora, o que Vossa Senhoria ouviu a respeito deste matrimónio é mais
que certo . O noivo não fala 5 tudesco, e a noiva não sabe uma só palavra de
italiano. O negócio parece curioso, porém, perguntando-me Vossa Senhoria o que
penso dele, digo-lhe que o caso para mim tem pouco de extraordinário.
O amor é o pai de todos os homens, e todos os filhos assim o devem
entender. É verdade que o 5 amor ilícito, necessitando nas suas acções de máscara
e de disfarce, necessita ao mesmo tempo de saber a língua do país, ou para melhor
dizer a da pessoa a quem deseja comunicar-se; porém quando o amor é conduzido por
Himeneu, sem cuja 10 companhia é mal recebido das gentes honradas, basta-lhe
deixar-se ver para se fazer entender, e todo o mundo fala por ele. Em qualquer
língua que se explique logo se sabe o que procura, e a mulher mais honesta, logo
que ele se declara sem crime, o 15 entende.
A razão que há para isto é clara. A linguagem do amor é uma tradição
sincera e muito fácil de que a natureza é depositária, e esta não deixa jamais de
revelar às mulheres a inteligência dessa 20 linguagem logo que elas necessitam de
entendê-la. Além disso o matrimónio tem expressões em que são desnecessários os
intérpretes.
Não se admire pois Vossa Senhoria de que duas pessoas estrangeiras e de uma
língua tão diferente se 25 resolvessem a casar, e creia como um artigo de fé
natural que nesta qualidade de mistérios todo o mundo fala a mesma língua. Cuidei
eu que Vossa Senhoria sabia que a gente moça, casada, tem seus modos particulares
de se entender, independentes de toda a 30 qualidade de línguas que há na terra.
Entre todas as divindades o amor é a única que não mudou de serviço: o seu
culto é agora o mesmo que foi no princípio do mundo: ainda se lhe dedicam os mesmos
votos, ainda se lhe fazem os mesmos sacrifícios, ainda se lhe oferecem as mesmas
vítimas, e quando dois amantes querem assistir juntos a estes mistérios ocultos,
cheios do deus que os possui, compreendem em um momento todas as cerimónias 5 e
tudo o mais que se pratica em honra sua.
No presente caso não falta quem argumente dizendo: os nossos casados não
falam a mesma língua, logo não se entendem. Respondo a isto: que, se se não
entendem de dia, se entendem de noite. 10 Dessa forma se entenderão na ametade da
sua vida e isso não é pouco para gente casada. Quantos maridos conheço eu e
quantas mulheres conhece Vossa Senhoria que não desejariam mais? É infinito o
número de casados que, falando a mesma língua, se não entendem 15 em toda a vida.
Tenho para mim que este matrimónio será ditoso para ambos, porém muito mais para o
marido, porque, podendo gozar das carícias da noiva, está livre de ouvir
despropósitos à mulher.
20 Corram críticas sobre o noivado, fervam sátiras sobre o casamento, este
será sempre o meu parecer. Se Vossa Senhoria o não aprova, aprove a firmeza, a
sinceridade e a veneração com que protesto ser de Vossa Senhoria |
Muito venerador
[ title ] 3. |
A Madame de W. F. que estava desesperada porque sua irmã se fez religiosa
Porque sua irmã de Vossa Mercê se fez religiosa, é necessário que Vossa
Mercê se ache desesperada? É possível que se não possa viver contente neste mundo
sem ter nela uma irmã? Cuidava eu que não era 5 desgraça para Vossa Mercê perder o
justo receio de vir a ter um cunhado e que seria do seu interesse não ter com quem
repartir a sucessão paternal. Tanta lágrima, para quê? Vossa Mercê deve saber
que não é permitido chorar sobre a vítima, e que é indecente 10 assistir aos
sacrifícios com vestido de luto. O pranto não pode servir de remédio. As queixas
de Vossa Mercê são faltas de razão. Que agravo fez a Vossa Mercê sua irmã seguindo
cristãmente as vozes de Deus que a chamou? Se Vossa Mercê fica mais rica com a sua
falta, 15 para que se quer tornar menos bela do que é, fazendo-se uma chorona?
Vencer o mundo, fugindo aos deleites, é grande erro da sua irmã na opinião de Vossa
Mercê ? E a culpa de Vossa Mercê não saber governar neste caso a sua paixão como a
chamaremos neste 20 mundo, minha Senhora?
A ausência da Senhora Matilde não deve ser sentida nem chorada. É verdade
que ela morreu para a família, porém de morte voluntária, preciosa diante de Deus,
e reputada civil na opinião dos homens, porque se não pode fazer coisa mais
honesta, nem que obrigue mais aos que ficam do que a acção generosa dos que assim
se despedem deste mundo.
5 Consinta Vossa Mercê em atenção ao Esposo, de que a alma dela se namorou,
na separação ditosa que fez do humano pelo divino. Isso fará que a sua fé, mais
viva do que a nossa, aumente a de Vossa Mercê gozando ela pàcificamente da que a
conduziu a um estado tão 10 perfeito.
É possível que os pesares venham sempre acompanhados e que os desgostos
façam aliança para provarem a paciência de Vossa Mercê ? Como foi esse descuido?
Quem deu ocasião a perder Vossa Mercê outra 15 prenda tão amada? Ainda o não posso
crer. Não me atrevo a pronunciar-me em semelhante desgraça. É verdade que fugiu o
seu papagaio? Será isso certo? Será crível que não vejamos mais o Portugal Real ?
Quem passa ! Que pena! que desconsolação! 20 que saudade! e que pecados! Um
animal cheio de sentimentos e de espírito, um louro que compreendia todas as cores,
um perro que falava tantas línguas, um To-carocha cujo merecimento, se fosse
conhecido, lhe podia dar um lugar na Academia, 25 um bruto tão aplicado que por não
estar ocioso roía os móveis, um feiticeiro tão belo que nos dizia, aqui sem
gazetas, quantas vezes el-rei saía à caça! Fugiu este bem, este tesoiro, este
prodígio? Oh desgraça!
30 Tendo informado da sua ausência a todos os que o conheciam, há muitas
opiniões a respeito da sua retirada. O parecer mais comum me parece o mais
acertado. Assentou-se que o papagaio partiu para a América, a visitar os parentes.
Assim creio, porém temo que a visita seja dilatada. O animal tem muitas
qualidades estimáveis, fará grande figura no país natalício, e não é natural que os
parentes e os amigos o deixem sair outra vez. Uma esperança 5 nos fica, porém, que
pode vir a efectuar-se para nossa consolação. Não há país sem invejosos, pois que
os não há sem ignorantes. Esses, afrontados e ofendidos com os merecimentos do
nosso papagaio, tenho por sem dúvida que o desgostem e que o 10 façam voltar em
bolandas para a nossa companhia. Tudo pode ser.
Observo entretanto em quase todos os amigos de Vossa Mercê uma oculta
alegria maliciosa causada pela fugida do papagaio. Talvez que se julguem muitos 15
deles com as qualidades do pássaro, aspirando a servirem a Vossa Mercê no seu
lugar. Talvez que não tendo até agora descoberto outro amante a quem Vossa Mercê
amasse, se livrem todos do ciúme que ele causava e das invejas que fazia. O certo
é que por causa do 20 bruto tem Vossa Mercê feito muitas injustiças aos racionais
que a idolatram. Estas sem-razões são mui ordinárias no mundo, e deixaria o Amor
de ser monarca se preferisse agora com leis novas a discrição dos beneméritos à
dita dos ignorantes. Não são o amor 25 nem a fortuna os que correspondem aos
merecimentos. Quais são os que podia ter o 5 papagaio para ser o único vivente
que lograva os seus agrados, sendo certo que teríamos a Vossa Mercê por insensível
se não víssemos recompensados os serviços do papagaio, ainda que com grande
injustiça, mercê de afectos e carinhos? Não me meto mais no que me não toca.
Asseguro a Vossa Mercê que sinto a desgraça do papagaio e que estimo a felicidade
da Senhora Matilde. Pela de Vossa Mercê farei eternos votos, sendo da sua 10
amabilíssima pessoa Firmíssimo, venerador
[ title ] 4. |
Ao Reverendíssimo Padre Dom Joseph Augusto, para se fazer por ela uma
tradução italiana
Amigo e meu Senhor. Não há coisa tão fácil como a que Vossa Mercê me
ordena, porém para mim 15 não há coisa que seja mais dificultosa presentemente. Só
o gosto de obedecer-lhe poderia fazer lembrar-me dos termos chúlos, extravagantes e
significativos com que em Portugal nos explicamos. O fim para que Vossa Mercê me
obriga a fazer este papel 20 terá o seu efeito. Esse presumido estrangeirote, que
promete traduzir era italiano todo e qualquer discurso que se fizer em português,
sabe tanto desta língua como eu da alemã, com a diferença que neste caso não sei o
que os brutos podem falar, e ele no mesmo caso ignora o que os homens podem dizer.
Creia Vossa Mercê que o seu compatriota se há-de ver em 5 tremuras com este papel,
porque não é só impossível que o traduza, porém incrível que o entenda. Se o
entender é português, e se o traduzir é o Diabo. Um discurso sem fundamento é uma
miscelânea sem tom nem som e não pode ser senão monstruosa; 10 porém que outra
coisa pode esperar um homem que se resolve a parir sem conceber?
Para dar trela a Vossa Mercê não faço mais do que queimar a minha
paciência, e ainda está em ver vo-lo-emos (sic) o que lhe hei-de dizer. Para lhe
dar 15 notícias do mundo passaram-me por alto as das gazetas. Se as intento ler
agora, lá vão os exdrúxulos com o Demo, com o italiano, e com o francês das mesmas
gazetas. Para dizer a Vossa Mercê o que se passa nesta terra é o mesmo que pôr-me
cachorros na cabeça, 20 porém, a falar a verdade, antes quero este C na minha que o
C que os do país trazem na sua. Informar da cidade de Viena a quem vive nela é o
mesmo que mostrar o lagarto da Penha a quem já o viu. Para contar a Vossa Mercê o
que eu passo é 25 necessário tomar entre dentes um pardal de bico amarelo, que
fazendo-me raivar, anda sofrendo gaifonas a quem me não ganha de mão, mas que me
ganha por unha. Deixemos histórias da carochinha, e entremos verdadeiramente a
discorrer. Aí torce a 30 porca o rabo, dizia o outro, e aqui para nós eu digo o
mesmo. Parece que alguma bruxa feiticeira está dando figas ao meu entendimento.
Ando daqui para lá, dando tratos ao meu juízo, e não posso descobrir um assunto que
tenha dois dedos de propósito para esta carta. Há poucos dias que falámos nos
camarões de Vila Franca, e por eles me estou lembrando da água da Fonte da Pipa.
Vossa Mercê sabe que na minha terra nem uma nem outra coisa é peixe 5 podre. Não
cuide Vossa Mercê que dar agora comigo no Ribatejo, ou que passar-me para a Outra
Banda seja um despropósito; pode ser que a mudança de clima me faça ditoso para
servir a Vossa Mercê mais que seja de narizes. Que galante tradução será a do 10
nosso italiano! Quem me dera já vê-la!
Diz-se que era uma vez Trafaria, lugar coberto de areia, onde andando eu à
caça encontrei uma mocinha, que se chamava Iria, bela como as mesmas rosas,
preciosa como o ouro, e melhor que 15 todas as alemãs, compreendidas as tudescas.
Estes versos prosaicos ou esta prosa de pés quebrados, tortos, cegos, mancos e
estropiados que encerram o seu tanto duma história verdadeira, serão o assunto da
presente carta.
20 O outro dia quando contei a dita história em uma assembleia, de feias,
se levantaram todas nos bicos dos pés em defesa da formosura do país. Foi a
primeira vez que vi executada a generosidade de acudir pelos contrários. Vossa
Mercê sabe de que assembleia lhe 25 falo. Conhece a dona da casa que tem o mono
pregado na sua mesma cara. Conhece a cunhada, que ainda estando nos seus treze não
logra o privilégio dos poucos anos. Conhece a prima, pela qual se pode dizer que
às três o Diabo as fez. Conhece a 30 condessa Arnolda, casada do bico dos pés até
à cabeça com o Crica da Sé, que a tem feito enorme chegando-lhe a roupa ao couro
infinitas vezes, não porque ela o mereça, mas porque ele se diverte nisso tomando a
gaita. Conhece a condessa de Laval, que sem embargo de andar com os pés para a
cova, se mete de réstia com a mocidade, e se lhe tocam na tecla da velhice, meninas
de Montemor vinde abaixo falar-nos. Esta dama tem espírito, porém não pode 5
remediar com ele o espírito maligno da sua figura. Conhece a baronesa Niberga, de
quem dizem que foi ao Jordão, por conservar na idade que tem muitos laivos da pouca
beleza que tinha. Nunca fui amigo de mulher gorda, e uma senhora tão grossa 10 ou
tão grosseira, que se não pode meter em camisa de onze varas, é um medo para mim e
uma coca para as crianças. Não sei que a formosura seja sebo, e sei que isto é
sòmente o que a gordura produz. Esta dama é um pouco fedorenta, e eu tenho 15
antipatia natural pelos maus cheiros. Conhece a baronesa de Angomar, verdadeira
Cirínico de penedo, que repotreada no canapé parece a morte do adro ou o mirrado de
Santos. Não há dama que meta mais à bulha o bom recebimento 20 que deve a política
aos estrangeiros de condição. Cada roca tem seu uso, e cada porca seu parafuso.
Não há panela sem testo. Conhece Madame Charpel, a quem os males de seu marido ou
os que lhe vieram por outras vias têm posto à dependura, e que parecendo a preguiça
do Brasil anda sempre fazendo 5 mesurinhas à Serpe, recuando para trás como o
caranguejo. Esta dama faz belas partidas. Além de poder pregar a partida na
cabeça dum tinhoso, tem boca de praga, e em matéria de honra e crédito das suas
amigas nos faz estalar de riso, fazendo-se-lhes 10 ver a elas o sete-estrelo.
Presume graça, porém tem pouca que não seja carvão de sacaria. Conhece a condessa
de la Fuensilla, e para aqui é que eu não peço lágrimas, porque a sua cara de
choramingas é das caras que defendem as suas pousadas, ou 15 daquelas por quem se
disse: por esta não desejarás a mulher do teu próximo. Este que é, se não estou em
erro, um marido que foi a Lisboa, sei que sabe português. Não lhe mostre Vossa
Mercê esta carta se me quer livrar de que ele me deite alguma pulha. Veio 20 muito
de asa caída, e parece-me que anda fazendo aqui carrapato. Já ouvi que quisera
fazer um calvário, porém não me lembra a razão por que deixou de pregar o calote.
Que bela tradução será a do italiano?
25 Todas estas Senhoras, meu senhor, se achavam na Assembleia quando
contei a minha bela história de Trafaria. Oh boca que tal disseste! Se Vossa
Mercê visse como as deidades gordas, macilentas, velhas e fracas tomaram o remoque,
havia de julgar como eu 5 julguei que quem se queima alhos come. Se ali não havia
cruz nem água benta, confesso que desejei ver-me uma e outra coisa, para me livrar
daqueles Demónios.
- Acaso não há formosura senão em Portugal, 10 senhor Cavalheiro? - me
dizia a condessa de Laval.
- Vous devez être aveugle - me dizia a baronesa Niberga, abafando mais que
de raiva na sua própria gordura.
- Vostra Signoria doveva portare seco 15 una belta dil suo paese - me
dizia Madame Charpel.
- Usted no es mucho civil para damas estrangeras - me dizia a condessa de
la Fuensilla.
Finalmente este ruído de alhos misturados com bugalhos em francês, em
italiano, e em espanhol era 20 uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma à
vista do bárbaro estrondo, que sobre a mesma matéria se fazia em alemão, língua de
que por altíssimas mercês de Deus não posso entender uma só palavra. Vossa Mercê
cuidará que zombo e dirá que tudo 25 isto seria bulha e mais nada: pois convença-se
que foi uma de todos os Diabos, porque, arreganhando-me as damas muito bem os
dentes, me quiseram levantar os da minha boca e por uma unha negra que estive para
me ver em calças pardas.
30 A algazarra que faziam era ainda maior do que aquilo a que chamamos
bulha suja; eu via-me metido na barafunda, desejava tirar as barbas de vergonha
sem dar patacoada, porém, não achando remédio para levar as coisas por bem, foi-me
necessário respingar vendo que vertiam água fora dos 5 testos, e disse:
- Não, Senhoras, não sou cego, nem incivil, nem apaixonado; sou verdadeiro:
e se Vossas Senhorias ou Mercês se quiserem pôr de pachorra e deixar passar esta
trabuzana, ouvindo fazer o retrato de 10 Iria da Outra Banda, veriam que lhes
provava sem ter pevide na língua que não sou dos que vendem gato por lebre. Iria
da Caparica é uma moça tão formosa que, deixando o sol às boas noites, pode fazer
tremer a passarinha às belas deste país. 15 Não nego que a fealdade é comum em
toda a parte, porém mais lindeza do que em Portugal em parte alguma se acha.
- Vossa Mercê nos corta como navalhas - me disse a dona da casa.
20 - Monsieur de Oliveira nos traz já de olho - acrescentou a condessa de
la Fuensilla.
- Isso é já nele manha velha - disse uma das baronesas.
- Que vá brincar para o adro - disse a outra.
25 - Bem aviado estava eu, minhas Senhoras - respondi a todas - se eu
falasse com Vossas Senhorias. As pedras da rua se levantariam contra mim se me
metesse nessa alhada. Referir as perfeições não é o mesmo que comparar as belezas,
e os 30 discursos gerais não podem ofender os particulares que são discretos.
- Vede a lábia - disse às outras a baronesa Niberga - com que nos quer dar,
com o mel pelos beiços depois de nos pôr o sal na moleira.
- Ele é cheio como um ouriço, porém cheio de maldades - disse a cunhada
pela primeira vez que falou, e a prima que até ali estivera calada tomou um pouco
de calor, porém falando por entre dentes 5 não pude perceber o que rosnava.
Disse a condessa de Laval:
- O homem está enfeitiçado com as suas portuguesas e anda de rixa velha com
as mulheres das outras nações; é um mal que vem de longe, e tudo 10 o que diz traz
água no bico.
- Sim, Senhora - disse madame de Charpel - Vossa Senhoria tem razão, e não
há que fiar em cão que manqueja. Monsieur de Oliveira é tão boa caixa de óculos,
que faz narizes de cera para tudo o que 15 quer dizer.
- Vossas Senhorias são parcas em louvores - ia começando a dizer a todas,
quando madame Charpel me interrompeu, protestando que queria pôr na praça as minhas
culpas.
20 - O outro dia - proferiu ela - estava este Cavalheiro, que o não pode
negar, no jardim do Arcebispo de Valença...
- Isso é verdade - disse eu.
- Ali se achavam - prosseguiu a dita madama 25 - a princesa de Valáquia, a
princesa Pórcia e outras Damas da mesma qualidade. Ora não se pode negar que a
princesa de Valáquia é uma deusa na graça, discrição e formosura.
- E diga-me, Vossa Mercê pelas chagas do Duque de 30 Aveiro - respondi eu -
quem é que o negou até agora? Acaso não tem ela uma prova pública: da sua
qualidade no destino com que os fados a submeteram ao poder dum sátiro? Estamos
frescos! Porém que é o que Vossa Mercê quer dizer?
- Quero dizer - continuou ela - que na presença dessa mesma formosura que
Vossa Mercê respeita, e sem atenção pela das outras Damas, pespegou Vossa Mercê a
modo de osga mil injúrias nas belezas de 5 Alemanha, dando uma boa lavagem à
formosura tudesca.
- Isso é falso! Não é falso - dizíamos ambos de dois ao mesmo tempo.
Cuidando o dono da casa que queríamos jogar as cristas, saiu do gabinete e
chegando-se a mim com 10 bastantes inguirimanços, depois de fazer a sua costumada
caramunha, se meteu de gorra onde não era chamado.
- Tenha Vossa Mercê mão desse canto - me disse o conde.
15 - Ponha-se Vossa Senhoria aqui e verá Palmela - lhe disse eu.
- Vossa Mercê levanta-se às maiores na minha casa? - me disse ele.
- Cada um chega a brasa à sua sardinha - lhe 20 respondi eu.
- Que histórias são estas, madame Charpel? - lhe perguntou o conde.
- Para onde o frade deita o capelo que eu lhas diga a Vossa Senhoria -
respondeu ela.
25 Continuando ele a bater mato, perguntou a sua mulher de que procediam os
alaridos que tinha ouvido. Sua mulher lhe respondeu que estava sonhando, e o
marido, crente que dormia, voltou para o gabinete como aqueles que quando vêm 30
buscar lã os mandam tosquiados. Verdadeiramente este conde não é tudesco e não sei
como sofre que a condessa jogue às escondidas com ele. Fazer gato sapato dum
marido é pôr uma mulher em pratos limpos a sua pouca vergonha. Que as senhoras,
alemãs andem fora da ordem nesta matéria, tranca pro transeat; porém que as
senhoras das mais nações as imitem pretendendo de seus maridos o tributo de pagar a
cabra, é para mim pancada de cego que me 5 faz ver as estrelas no meio-dia.
Ninguém diga desta água não beberei, porém, se temos de dar em droga, antes morte
que vergonha. Parece-me que estou já vendo a tradução do italiano!
Apenas o conde se retirou, eis senão quando que 10 madame Charpel me dizia
pegando-me pelo canhão da casaca:
- Senhor Cavaleiro, as damas como eu não mentem.
- O homens como eu crêem outra coisa, minha 15 Senhora - lhe respondi.
- Os homens como Vossa Mercê também cospem para o céu, também dão com os
bodes na areia - continuou ela, fazendo e dizendo muitos despropósitos - também
podem dar com os narizes em um sedeiro. 20 Que as mulheres sejam verdadeiras ou
falsas no conceito de Vossa Mercê é uma coisa que as não põe por portas e é coisa
que a mim nada me importa, porém desmentir-me Vossa Mercê e negar o que disse no
Jardim do Arcebispo é coisa que me dá com um pau na 25 paciência e me faz perder a
estribeira. É negócio que não deitarei para trás das costas, porque a minha honra
andou sempre mui claramente à vista de todos e antes comerei os dedos do que passar
por uma embusteira na opinião destas Senhoras.
30 - Contanto que Vossa Mercê as não exceda - disse eu - asseguro-lhe que
nenhuma se ofenderá de que as imite. Vossa Mercê me quer tirar do bico uma
confissão que lhe não posso fazer. Acuso-me do pecado em que actualmente vivo
murmurando das virtudes das 5 senhoras alemãs, porém digo a Deus minha culpa e digo
a Vossa Mercê que no Jardim do Arcebispo não pronunciei uma só palavra contra as
formosuras de Viena, nem contra as belezas de Áustria.
- É possível - me disse então - que Vossa Mercê se 10 não lembre daqueles
pés com os quais comparou os pés das damas deste país?
Respondi-lhe prontamente:
- Estamos em outros pontos, minha Senhora. - Ainda que eu corresse Ceca e
Meca e Olivais 15 de Santarém, não seria possível cair em que tinha caído à perna
da formosura, tendo-lhe pegado uma vez pelos calcanhares. Agora me lembra, e é
verdade que estando a princesa Pórcia esgaravatando os dentes depois de comer
certos farelórios no jardim 20 de que Vossa Mercê fala, disse entre outras coisas,
em que a sua malícia compete sempre com a sua graça, que não havia fortuna tão
sublime como a de estar aos pés da princesa de Valáquia. Eu me achava justamente
nesse lugar, estendido por terra junto à cadeira 25 em que a dita senhora se
sentava. Mau grado a quem pesar esta felicidade, não sei verdadeiramente o que
respondi à princesa Pórcia, porém como ela é daquelas que nos podem enfiar pelo
fundo duma agulha, fui metendo agulhas por 30 alfinetes, e avivou-se um discurso da
sua parte tão discreto que me vi abarbado para poder tirar nele o pé do lobo.
Lembra-me, como se fosse hoje, que a princesa Pórcia se admirou de que os átomos de
jasmim ou os escrúpulos de neve de que a princesa 5 de Valáquia se sustentava eram
raridades tão preciosas que a subtileza do cristal teria dúvidas para as formar.
Fiz-me moita, porque o culto destas explicações me metia num chinelo e,
como nunca fui amigo 10 de jogar de lombos, estava vendo-me e desejando-me e
pedindo às almas santas que a princesa Pórcia se calasse. Quando Deus não quer,
santos não rogam. A princesa foi batendo o ferro, e eu deixava malhar como se
fosse em ferro frio.
15 Finalmente, descendo a sua locução a certos termos que me foram mais
inteligíveis, disse que os pés da princesa de Valáquia não pareciam pés de Viena.
Eis aqui o que me fez saltar, e caindo na ratoeira lhe respondi que tinha muita
razão 20 adivinhando, pois que os pés da princesa de Valáquia não podiam ser feitos
em Viena tendo ela sido formada em Moscóvia.
- Viu Vossa Mercê nascer esta deidade? - me perguntou a princesa Pórcia.
Já os judeus não estavam todos na Rua Nova quando eu conheci o vidonho da
investida. Foi esta a ocasião em que desejei pôr-me em polvorosa.
- Sim Senhora - respondi.
- Estava Vossa Mercê em Moscóvia? - voltou ela.
30 - Não Senhora - tornei a responder.
Disse-me a princesa que as duas respostas implicavam contradição, e eu
sòmente para tapar a jeira estive para lho negar, porém vendo que deitava tudo de
pernas arriba tomei fôlego e, por não me deixar ir de unhas abaixo, dei mão a tudo
o que me podia deixar insosso. Resolvendo atirar-me ao pego me fiz vivo como um
azougue e, indo responder à princesa a respeito da contradição 5 implicada,
esqueceu-me o recado que levava e, fazendo-me mais branco do que uma parede, vi que
tinha dado com toda a minha discrição em pantanas. Eis aqui uma figura que será
muito bem traduzida em italiano! Quem me dera já ver a tradução.
10 Vendo-me ir como um passarinho e vendo-me perdido como um garraio, fiz
pé atrás e, metendo a mão na algibeira como quem mete mão, ao ferrolho, achei por
acaso a minha folhinha. Ora quem é que diria que nela estava a resposta? 15
Entregando-a à princesa Pórcia lhe disse que não era necessário assistir aos
nascimentos dos príncipes soberanos para sabermos onde e quando tal sucedia, e que
sendo felicidades públicas o que as mesmas folhinhas nos anunciavam podíamos dizer
sem contradição 20 que estávamos ou que não estávamos nos lugares em que eles
vinham ao mundo.
- Vossa Mercê é fino como um coral - me disse a princesa.
- A minha folhinha é a que merece esse louvor 25 - respondi.
- Vossa Mercê é um maganão de esguicho - me tornou a dizer.
- Não o posso negar, minha Senhora - lhe respondi.
30 Em nos vendo fora dumas, somos costumados a rogar a Deus por outras.
Vendo-me são como um pêro, comecei a deitar carapuças à Serpe, e metendo-se-me na
cabeça que a folhinha me serviria de saia de malha em qualquer ocasião perigosa,
meti-me na mais arriscada, entretanto a fazer comparações, porém saí venturoso em
muitas delas, sem saber dizer até agora se foi a fé do pau da barca que me salvou
ou foi alguma varinha do condão 5 que me assistiu. A princesa Pórcia me pôs a
assar, querendo-me fazer deitar os bofes pela boca fora, porém como eu vi que a
princesa Valáquia gostava do debate, tomei a peito a obrigação de diverti-la e a
trouxe-mouxe fui dando conta de mim, 10 considerando sempre em que tinha bem para
pêras.
Perguntou-me a princesa Pórcia onde tinha eu visto os pés da princesa de
Valàquia?
Disse-lhe que os estava vendo pegado às suas pernas.
15 - É bom adivinhar - me disse ela chamando-me traquinas - porém não é
isso o que eu pergunto. Onde viu Vossa Mercê outros pés como os seus é que desejo
saber.
- Em mim e em todos os mais humanos - lhe respondi.
- Maus cães o comam - me disse ela. - Diga-me onde viu mimos tão delicados
e bocadinhos tão doces como os da nossa princesa?
Respondi:
25 - Mimos e bocados doces os das freiras de Lisboa, e para melhores os das
freiras de Santa Mónica. - Assim têm tão belos pés essas senhoras? - me perguntou
a princesa.
- Eu não falo dos pés de freiras, minha Senhora, 30 falo de mimos.
- Ora diga-me, sem zombar, se viu mulheres em algum país com os pés tão bem
feitos, tão pequenos e tão engraçados como os da princesa de Valáquia?
- Sim Senhora - lhe respondi - na minha terra não há coisa que seja mais
comum. A graça, a pequenez, o efeito e depois disso a compostura dos pés das
minhas portuguesas, não é coisa a que eu tenha achado comparação. Uma mulher que
se serve 5 lá do pau e da vassoira tem algumas vezes os pés tão lindos, que as
primeiras Senhoras daqui lhe não podem chegar aos calcanhares.
- É muito isso - me respondeu a princesa - porém saiba que todas essas
mulheres de pé 10 pequenino são inconstantes, mudáveis, cruéis e falsas. Digo-o
diante da princesa Valáquia e não se fie Vossa Mercê em nenhuma.
Como eu vi que a nossa arenga de pés se ia pondo em pés de verdade, fora
machinho que a 15 duvidasse. Quem tem visto flamengos à meia-noite, e quem
aprendeu a jogar a cabra-cega, deve andar com pés de lã nesta matéria da fidelidade
feminina. Que as mulheres tenham pés grandes ou pequenos, isso é outro cantar, mas
que sejam firmes ou 20 variáveis isso são outros quinhentos em que eu não quero
meter-me. Ninguém as calçou que as não borrasse, e os males dos meus burricos me
fizeram alveitar. O gato escaldado da água fria há medo. Queira Deus que ainda
seja viva em Lisboa alguma 25 das que me deram razão para eu dizer tudo isto. Não
há espadana nem casquilho, conde nem duque, taralhão nem milhafre, mecânico nem
fidalgo, come-em-vão nem gato-pingado, que ou por bem ou por mal não tenha recebido
seus carolas da inconstância 30 do sexo, ou que saia, escapulindo-se, do comércio
amoroso sem algum galo na testa, ou pelo menos sem alguns penduricalhos ao pescoço.
Tenho ouvido dizer a tanta gente: babau! e adeus luzes nesta matéria, que fiquei
muito atado, e não quis retrucar ao que a princesa me disse. Vale mais perder por
carta de menos. Muitas vezes se quebram os narizes dando sempre com a testa para a
porta. Como cairá isto bem na língua italiana! Oh, quem pudera já ver a 5
tradução!
Perguntou-me ùltimamente a princesa Pórcia com que é que se pareciam os pés
das senhoras alemãs.
- Aos dos maridos da alfândega - lhe disse logo.
10 - E que animais são esses? - me perguntou ela?
- É gente, minha Senhora, de muita firmeza e de igual peso, e incapaz de
dar com carga no chão por muito grande que seja.
Perguntou-me se não tinha eu outra comparação 15 do seu conhecimento.
Então lhe disse que os pés das damas alemãs e os pés de vento de Viena não tinham
para mim diferença alguma, e que desta forma sendo como as léguas da Alemanha os
pés maiores do mundo, que nem por isso se podia fazer 20 finca-pé em quem os
lograva. Que todas as mulheres, tantas quantas eram, faziam andar os homens em
corropio, os amantes em dobadoira, e os maridos em roda-viva, reservando elas para
si andar como as carapetas. Não sei a graça que a princesa Pórcia 25 achou nestas
palavras, porém sei que às suas gargalhadas fugiu o pesadelo que se tinha
introduzido na princesa de Valáquia desde o meio da nossa conversação, que
certamente era digna de fazer sono.
- Eis aqui a culpa que me acusa madame de 30 Charpel - disse eu depois de
contar toda a história às senhoras da Assembleia - e eis aqui a confissão da mesma
culpa em abono da verdade. Porém a crítica dos pés parece-me que não tem coisa
alguma com as caras ou com os corpos. O pavão é a mais formosa das aves e deu-lhe
a natureza os pés mais horrendos dos animais.
- As senhoras alemãs podem ser belas na sua opinião, sem embargo dos
efeitos que mostram 5 aos nossos olhos. Ora peguem-lhe com um trapo quente, e
vejam como o malicioso se está nas tintas, não dando ponto sem nó, para nos
descoser os negalhos!
Esta foi a exclamação em que rompeu a 10 baroneza Niberga, fazendo duas ou
três cabriolas.
- O melhor de tudo - disse a condessa de Laval - é não bulir mais com a
maça do escaravelho. Sabe-se muito bem que há coisas em que quanto mais se mexe
mais fedem.
15 A condessa não explicou esta coisa, em francês. Oh quem te dera já ver,
ó tradução!
Sendo horas de começar o jogo na Assembleia, se recebeu fàcilmente o
conselho da condessa de Laval, tanto mais que estavam a entrar os 20 cavalheiros.
O primeiro que apareceu foi aquele das pernas de aranha com o nariz de cavalete, de
quem se diz que, tem feito a muita gente o C à unha. O que sei é que tendo muito
bom coscorrinho, joga com tanto medo a arrenegada de vintém como se 25 não tivesse
cinco réis de seu. Este senhor é miserável. Seguiu-se o senhor barão Unhas-de-
fome, que parecendo um santo não é mais que pau carunchoso. Acabava de passar pelo
seu jardim e este ve-nos contando pelos dedos as obras que fazia nele. 30 Este
cavalheiro com todo o seu juízo não deixa de ser impertinente. O outro barão, que
dá sempre com o pé na peia, entrou acompanhado do conde a quem estas senhoras dizem
que deu olhado. Eu o creio porque este fidalgo jamais me parece que foi bem visto
das gentes. O nariz de cavalete assim que o viu lhe pôs a mão pela cabeça,
tratando-o de querido como de costume. O conde lambe os dedos e estas finezas, e
verdadeiramente estes dois homens 5 sós divertem-me mais que a comédia toda junta.
Chegou o nosso pequeno, todo o cheiinho da panela, e já pela escada acima vinha
cantando um menuete novo, a modo de quem assobia às botas. Este pau de cabeleira é
o homem mais polvilhado que vi na 10 minha vida. Com as manhas que tem fará bem de
não tornar a Portugal, porque ainda que ele nos diz que se sabe sacudir muito bem,
creio que lá lhe sacudiriam o pó muito melhor. É um homem que, sem tirte-nem-
guarte, beija por força a mão a 15 todas as damas, e se alguma lha nega deita isso
para trás do cachaço, que é mais para a canga que merece do que para a Ordem que
traz. Ao amigo que prega os guardanapos grandes, sucedeu-lhe neste dia uma
desgraça. Vindo da Favorita para a 20 Assembleia, quebrou-se-lhe o coche e chegou
a pé. Vinha com a boca aberta, não podendo crer o sucesso, porém em pouco tempo se
esqueceu dele começando a dizer as suas costumadas e mal aceitas chularias.
Não se esperava nesta noite o Boca-de-Serpe, por 25 se saber que estava
curando as mazelas, porém ele chegou com o irmão do Enviado, em que não acha outra
imperfeição que a de gostar de bocarras. Não só o amigo que tem, porém a amiga que
adora são as maiores bocas que conheço. A da Barra e a de 30 Sacavém são um
cominho à vista destas. O homem do pão-por-Deus e da consoada chegou com a ranhosa
da mulher, e assim que leu a gazeta sentou-se em uma cadeira, onde dorme todas as
noites como pedra em poço. A mulher é daquelas que não sabendo o que dizem sabem
muito bem o que fazem. Joga com perfeição e não sei que a tenha em outra coisa.
Ganhar eu só ou com outro é o mesmo que buscar agulha no palheiro, porém em me
caindo 5 por sorte a sua praçaria, certos são os touros. Chegou o senhor das boas-
noites, que aconselha a todos que se deitem sem ceia para viver. Dizem muitos que
ele pratica isso mesmo para poupar; não o creio, porque vejo em todas as suas
acções muita 10 generosidade e grandeza e, aqui para nós coscós, também lhe vejo
muita vaidade. Os homens deste carácter não são avarentos. Ser amigo da saúde não
é pecado, comer só uma vez ao dia é abstinência. Quem lhe seguir o rasto pode ser
que venha 15 a dar em santo, ainda que seja por suas mossas de pau.
Faltou o senhor conde de Açorda, o barão de Maçamorda, e também faltou
aquele cavalheiro que quando chega é o mesmo que fazer vir a coca. O 20 conde da
Choraça, que é aquele que acudiu com o baracinho logo que lhe deram o porquinho,
está com as costas quentes e há dias que não sai de noite por não apanhar algum
resfriado. Gosto muito deste velho, tem honra e capacidade, e não sei como 25 pode
ajuntar a estas duas inimigas do dinheiro o dinheiro que tem.
Ferveu a obra, principiou o jogo, calaram-se as damas, e fiquei descansado.
Vossa Mercê sabe que eu jamais jogo naquela Assembleia, quando se não acha 30
presente a princesa de Valáquia. Esta chegou depois das nove horas e, porque era
já tarde, não quis fazer partida de quadrilha. Pediu uma mesa pequena e fez a
honra de eleger-me para jogar com ela os centos. A condessa de Laval que estava
mui 5 perto de nós me esteve sempre tirando a terreiro, tirando-me com a mão de
gato muitos toques e remoques a respeito da contenda que tínhamos tido depois de
jantar. Esta senhora é amiga de fazer fogo de palha e, tanto fez, que me fez
perder 10 catorze catorzadas que me vieram nesta noite à mão. Finalmente a
princesa de Valáquia ganhou e eu também perdendo com ela.
Às onze horas e meia, bolaverunt galhetas para a mesa dos donos da casa,
cada e cada um a modo de 15 quem se põe a seguro se foi pondo na sua. O pequeno
foi-se como costuma despedindo-se em latim. A condessa de Laval deu as suas mãos
de gafanhoto ao Unhas-de-fome, que a acompanhou até ao coche onde ela deu com a
ossada, que vai levando para a 20 sepultura mais alegre do que ninguém. Todos os
outros se foram indo como um saco roto, é como eu também devia passar pelas idas,
pois que tinha entrado nas avenidas, pareceu-me dar uma satisfação à dona da casa
sobre a bulha que tínhamos 25 tido. Ela que ainda estava como uma víbora, sendo
sempre má como as cobras, conheceu que eu me queria desculpar e disse-me em voz
alta:
- Que é o que Vossa Mercê me quer agora cá meter a queima-roupa?
30 - Nada, minha senhora - lhe respondi - o que eu quero, ainda que a
furta-lhe o fato, é que Vossa Senhoria me perdoe se no discurso de hoje me meti em
alguns debuxos de pouco gosto.
- Vossa Mercê é mui cabeçudo - me disse a condessa.
- Votre très humble serviteur - respondi para o lado, onde ainda havia
gente que ria tanto como os que vêem touros de palanque.
- Adieu madame la comtesse - lhe disse a 5 princesa de Valáquia.
- Très humble servante de votre Altesse - lhe respondeu o Diabo em muletas.
Eu vi a Deus pelos pés, quando vi que a princesa me dava a mão para a
conduzir ao coche. Isso 10 fiz, e acompanhando-a até casa, tive a honra de cear
com ela, contando-lhe isto mesmo que refiro a Vossa Mercê O príncipe não se achou
presente. Anda mui cabisbaixo com uma das suas palhadas, ou alhadas, que temo lhe
venham a pôr uma mão atrás, outra 15 adiante.
Acabou-se a carta, meu Senhor. Pela alma lhe preste ao italiano que der na
trilha de fazer a tradução. Oh tradução desejada quem já te vira! Não ma retarde
Vossa Mercê ; mande-ma logo que estiver feita. 20 E no entanto, que será por muito
tempo, guarde Deus a Vossa Mercê por muitos anos, etc.
[ title ] 6. |
Ao reverendo Padre Frei Henrique de * * * sobre um reparo de retórica
Serve esta de coberta não ao conhecimento mas ao seguro que devo fazer a
Vossa Paternidade Reverendíssima. Consiste em que, se me visse obrigado a mudar de
confessor não escolheria a Vossa Paternidade para lhe delatar as minhas culpas.
Pesam-me porque são grandes, porém seriam muito maiores se dessem em poder de Vossa
Paternidade A mesma autoridade com que Vossa Paternidade intitula erro um
descuido que achou na minha carta, 5 faria talvez mortais as venialidades que
encontrasse na minha consciência, e eu não sou escrupuloso nem amigo de
escrupulosos. Vamos ao ponto. Que Vossa Paternidade sabe muito pouco, isso
sabemos também, porém que saiba português sempre o neguei, e agora mais 10 do que
nunca. Para Vossa Paternidade provar o contrário diz-me que achou uma cacofonia no
escrito que lhe mandei tendo escrito nele: este esteve muitos anos . Confesso que
nos discursos se devem evitar diligentemente os sons desagradáveis, porém sem
empregar 15 escrúpulos tiranos para alcançar a perfeição da frase. Lembra-me que o
senhor da Motha le Vayer não sòmente fala, porém ri nas suas obras, dum especioso
escritor francês, que para se livrar de dizer ce serait , pela semelhança que
achava nas 20 duas primeiras sílabas, estudou vinte e quatro ou mais horas. Aqui
temos justamente o meu este esteve de que Vossa Paternidade diz que Deus nos
guarde. Deus me livre a mim de Vossa Paternidade e de outras Paternidades como sua
Paternidade (veja que cacofonia) que, 25 indo a Portugal e entendendo que tinha
aprendido a língua do país, chegou aqui sòmente com a presunção de sabê-la. Se a
delicadeza que Vossa Paternidade procura nas línguas tivesse lugar, não poderíamos
dizer nem escrever coisa alguma com segurança. 30 Podíamos dizer com Quintiliano:
Quid si recipias, nihil loqui tutum est . O encontro das letras vogais nas
palavras não é crime que nos deva causar horror. O mesmo Quintiliano, que foi
retórico famoso, não quis decidir qual das duas culpas é mais viciosa nesta
matéria, se a negligência voluntária ou se a delicadeza afectada. Verdadeiramente
uma e outra creio que fazem as duas extremidades perigosas. Tenho para mim que se
deve evitar com cuidado 5 todo o defeito que interrompe o sentido dos pensamentos e
das expressões, porém esse mesmo cuidado seria impertinente se se determinasse a
apurar as negligências que não tiram a força nem a formosura aos discursos. Esta
qualidade de 10 imperfeições na opinião de Cícero tem uma galanteria, e é a de
mostrar o carácter dum homem, que cuida mais nas coisas que diz do que nas palavras
com que as escreve. Diz Vossa Paternidade que para embaraçar semelhantes
negligências é necessário ler os escritos 15 depois de feitos, e que se eu lesse o
meu que não deixaria passar aquela imperfeição. Sou do mesmo parecer, e assento em
que é regra admirável ler os discursos em voz alta depois de feitos, consultando os
ouvidos sobre aquilo que os olhos já aprovaram. 20 O ouvido é o juiz natural dos
tons e é o que conhece das cacofonias que a pena deixa passar mui fàcilmente.
Porém para ter bom ouvido dizemos que é necessário ter boa orelha, e esse
privilégio concedido a Vossa Paternidade nem todo o mundo o logra.
25 Diz outra vez Quintiliano que não é permitido a todos os homens julgar
da harmonia das palavras, nem também da dos instrumentos. Se eu lesse o meu
escrito antes de o enviar a Vossa Paternidade pode ser que este esteve me não
obrigasse à ociosidade de fazer 30 outra cópia em que mudasse o defeito. Nem ele
nem Vossa Paternidade , me pareceriam merecedores desse trabalho. Quanto mais que,
a cacofonia podia ser muito maior, e podia ser desculpada com as que deixaram
passar homens que foram maiores nas suas obras do que Vossa Paternidade é grande
nos seus reparos. Por mais delicada que seja a sua orelha, não excederá a sua
perfeição à subtileza do bom ouvido de Cícero. Vemos sem embargo disso, que deixou
passar, O fortunatam natan 5 me Consulem Roman . Escrevendo em verso e na mesma
prosa em que foi o primeiro ou o singular mestre da retórica, também lhe escapou
outra cacofonia dizendo em uma das suas cartas: Res mihi invisae visae sunt Brute .
Não digo a Vossa Paternidade que 10 imitei de propósito semelhantes negligências,
porém quero-lhe dizer que não há ouvido tão severo e tão atento que se não deixe
enganar. Conhecendo a fraqueza com que os meus se começam a debilitar, não fio
nada deles. Este escrito também não foi 15 registado senão pelos olhos. Se
escapou outra cacofonia, peça Vossa Paternidade ao secretário milanês que lha
emende em língua de preto, que é o português que ele aprende aqui, e mui semelhante
ao que Vossa Paternidade aprendeu em Lisboa.
20 A bons entendedores poucas palavras. As minhas são claras e não
necessitam de comento. Guarde-me Deus de Vossa Paternidade , etc.
[ title ] 7. |
A Monsieur de M. *** sobre a vingança das mulheres
Amigo do coração. Dizeis no vosso discurso que tendo as mulheres o
entendimento muito mais débil que o nosso, são as que pela maior parte cometem o
erro de descarregar os efeitos da sua cólera sobre 5 as coisas inanimadas, e que
são as únicas pessoas que, sempre que podem executar a vingança, não reparam em que
o objecto dela seja capaz ou incapaz de sensibilidade. Não há coisa alguma que
denote maior fraqueza nos espíritos humanos do que 10 as acções desta natureza, e,
se vos hei-de falar verdade, seria mais próprio dizer que faz injúria a si própria,
e não faz erro sòmente, aquela pessoa que pretende tirar vingança do insensível.
Depois de vos dizer que o vosso papel é daqueles que 15 assinariam com grande honra
os escritores mais famosos dos séculos, podendo-se gloriar com muita razão de o
terem feito, vos digo sinceramente que lhe acho duas circunstâncias que eu mudaria,
ou que vós deveis emendar se achásseis justos os meus reparos 20 e acertados os
meus conselhos.
A primeira é que ainda se encontra nele a própria paixão do autor contra o
sexo, a qual seria conveniente adoçar com o uso da imparcialidade, que é virtuosa
em todas as ocasiões e em todas as matérias 25 semelhantes. A segunda é dizerdes
absolutamente que as mulheres são as únicas que empregam a vingança na
insensibilidade. Lembro-vos que el-rei Xerxes, que pelo grande poder e pela sua
bela presença foi respeitado como o próprio Júpiter, vendo arruinar-se pelo ímpeto
das ondas a famosa ponte que tinha mandado fabricar sobre o estreito do Helesponto,
para se comunicarem Ásia com Europa, determinou vingar-se das ondas e ordenou 5 por
sentença do seu Conselho que as águas do mar fossem castigadas com um cento de
açoites, os quais efectivamente se lhes deram em sua presença, ajuntando ele ao
suplício as muitas injúrias que disse às mesmas águas. Se um erro se pode escusar
com 10 outro maior, a ridícula execução desta vingança se pode desculpar dizendo
que a intenção de Xerxes não foi a de castigar as águas, mas a de afrontar nelas o
deus Neptuno. Neste caso não sei qual das coisas seria a mais ridícula, se a de
vingar-se no 15 insensível, se a de injuriar a divindade dos deuses, que lhe eram
superiores. O que sei é que este erro, sendo de um homem, vale por todos os que as
mulheres podem ter praticado neste sentido, e que à vista dum tal exemplo, não
podereis dizer, nem 20 assegurar, que elas são as únicas em que se acham fraquezas
e debilidades desta natureza. Espero que não recebais a minha advertência como
crítica, e espero que mostreis esta carta a Mademoiselle Genoveva, para que se
persuada, como sempre lhe 25 digo, que defendo no que sei a igualdade que se
encontra nos defeitos de ambos os sexos. Como sei que vos hei-de ver na Ópera
ainda hoje, irei ouvir a repetição das duas do Cres Pro Cras, que verdadeiramente
me atemorizam. Agora, e então vos 30 assegurarei, como sempre que sou
Vosso amigo do coração
[ title ] 8. |
A Madame de Klembach. Sobre a liberdade e a infelicidade do homem
[ title ] 9. |
Ao Príncipe de Valáquia sobre um convite, e outras matérias diferentes
Beijo a mão a Vossa Alteza pelos dois favores que me faz, e agradecendo
ambos aceito um só. Não posso ter a honra de jantar hoje com Vossa Alteza sabendo
que se acha na sua mesa o barão Polaco. Disse 5 Pitágoras que as almas dos homens
depois de mortos entravam nos corpos dos animais, e se vira este barão diria sem
dúvida que as almas dos animais entram nos corpos dos homens. O vinho não só é
amigo do corpo, mas é a alegria do coração do 10 homem. O vinho porém que este
polaco bebe e que obriga a beber a todos os que se acham na sua companhia, além de
ser o inimigo do entendimento, é a ruína da fábrica dos mortais. Temo que este
homem é um daqueles que hão-de morrer queimados 15 em algum dos incêndios naturais
e interiores que se têm observado em muitas pessoas, que cometeram no uso do vinho
os seus excessos. O que ele me fez beber quinta-feira é vinho que ainda me dura e,
como Vossa Alteza legislou naquela ocasião que as saúdes 20 se haviam de fazer em
roda com a mesma quantidade e com a mesma qualidade de vinho com que o barão as
principiasse, seguiu-se daí que satisfiz por força e por política às ordens que nem
por serem de Vossa Alteza deixaram para mim de ser tiranas. 25 Eis aqui o que
sucede às leis injustas, e aos príncipes que as fazem. Os vassalos mais amantes e
os súbditos mais fiéis, se não detestam, fogem ao menos quanto podem dos seus
domínios. Seja hoje o deus Baco muito bem louvado na mesa de Vossa Alteza porém
sem mim. Bem haja, o barão de Beaufremont que ama o vinho pouco, bom, e velho, e
tão velho que pareça daquele que se começava já a azedar no tempo de Pompílio: sub
rege Numa, condita vina5 bibis , se pode dizer de um homem deste bom gosto. Se eu
fosse privilegiado como o Barão de Beaufremont, para não seguir furiosa bebedeira
do barão Polaco, é certo que não recusaria a honra que Vossa Alteza me oferece da
sua companhia, porém sendo eu 10 daqueles sobre que caiu a força da lei, não me
sujeitarei outra vez a uma crueldade, que me põe em perigo de perder em um instante
o pouco juízo que tenho adquirido e com grande trabalho, desde que nasci.
Entendendo que nestas galhofas só entram 15 os que têm muito ou os que nenhum têm
para perder. O amigo Dom Florêncio será sem dúvida da partida, e tenho para mim
que em breve tempo fará alguma de repente para o outro mundo. Quanto ao Polaco,
diz a senhora condessa de la Bourlie, 20 com muita graça, que está livre de ir para
lá, porque não há no outro mundo quem o queira.
Já disse a Vossa Alteza que aceitava o segundo favor, que é o de ir ver na
sua companhia o regimento dos hussares, que há-de passar pelo arrebalde de 25
Rossau. Certamente me dará gosto, pois que é o primeiro que vejo na minha vida.
Às seis horas me acharei em casa de Calamati, onde terei o gosto de ver a cópia do
mesmo original que admiro. É certo que este homem trabalha com perfeição, 30
encontrando os objectos com felicidade. Ainda ontem vi um retrato da condessa
Aurora feito por ele, ao qual não falta mais do que a fala e do que a razão. Como
Vossa Alteza me diz que em casa de Calamati se há-de também achar o prelado de
Bresla, peço a Vossa Alteza que me não deixe muito tempo só com ele. Há muita
gente cujo entendimento é semelhante à cauda do pavão, a qual todas as vezes que se
move muda. Toties denique mutanda, quoties movenda. 5 Este bom eclesiástico em
um quarto de hora toma mais resoluções do que muitos homens juntos podem tomar em
toda a vida. É coisa admirável que ainda não achei nos seus discursos uma opinião
firme que siga duas vezes, sendo as suas palavras 10 uma sucessão continuada de
pensamentos diferentes e todos contrários uns aos outros.
Assim como não quero que o polaco me embebede, também não quero que o
prelado me enlouqueça. Cá do meu cantinho, com um copinho do 15 velho, pouco e bom
vinho beberei à saúde de Vossa Alteza que Deus guarde muitos anos.
[ title ] 10. |
A Madame de Klembach. A respeito do amor, dos encantos e dos feitiços
O caso, minha Senhora, é geral e tão natural ao 20 mesmo tempo que até me
parece que me tendes amor determinando agora que vos fale nele. Chamais-me velho e
dais-me uma ocupação de criança obrigando-me a falar em encantos e feitiços. Ei-lo
ai vai: Como me dizeis que a minha carta há-de ser vista por homens que vos têm
dito muita coisa nesta matéria, acrescento algumas coisas que sei, para prova de
que, sendo velho ou sendo menino, 5 também fui homem. Presentemente não se sabe
nem eu mesmo sei o que sou.
O amor é a pele de todos os diabos. Ter mão. Agora me lembra que me
dissestes que queríeis uma resposta séria, e para isso é necessário tomar 10 outro
caminho. Diabo, pele e amor em quatro palavras são verdadeiramente um princípio
mui jocoso para papel que há-de ser grave. Eu me meterei no sisudo, minha Senhora,
queira o deus Amor, que desejo tratar bem, conservar-me no bom estilo. 15 Não há
pessoa que ignore o império deste monarca. Não se conhece domínio mais dilatado,
nem mais absoluto. A lei que a ele nos sujeita liga e compreende igualmente todos
os viventes. Por isso reputo como monstros aqueles corações insensíveis, 20
capazes de resistir aos efeitos do seu poder, ou como doentes atacados dum letargo,
os quais sem receberem a morte estão privados de todos os prazeres da vida. É
verdade que, fazendo muitas vezes reflexões quanto a esta qualidade de homens, me
25 parecem alguns, e pode ser que sejam todos, daqueles célebres orgulhos que têm o
segredo de mascarar o génio natural com o exterior duma indiferente hipocrisia.
Não cuideis que falo daqueles que declamam contra o amor porque ele os riscou do 30
número dos seus vassalos, e que dispensados do juramento de fidelidade, a que se
ligaram desde que nasceram, praticam a liberdade de murmurar continuamente do seu
soberano originário. Não lhes invejo a satisfação nem a consolação que acham em
tal exercício; e como eu não tenho razões, ou se as tenho não me quero lembrar
agora delas para me queixar do Amor, entendo que não há coisa que mais satisfaça
como a harmonia de duas pessoas 5 que, vendo-se sem descanso e sem fastio, se não
apartam senão por força, fazendo então propósitos de se unirem o mais que lhes for
possível, e que, adiantando-se a tudo o que pode fazer contentamento ao objecto da
sua ternura, a acham tão 10 grande quanta é a ocasião que têm de lhe sacrificarem
os gostos mais queridos. Nestas condições é que digo, e não deixarei ainda de o
repetir, a alma nada em uma alegria inefável, perdendo-se na bebedice dos prazeres,
os quais só são grandes 15 e verdadeiros se a inocência do estado em que se logram
apartam de si o temor dos escrúpulos e dos remorsos que se seguem em outros casos.
Deveis de observar que a pintura que Vos faço do amor em suas grandezas e
bondades não teve 20 por objecto aquele que é nascido da impressão única dos
sentidos: haveis de crer por consequência, que só vos falo daquele que procede dos
movimentos da alma. Só deste é que se pode dizer que, incendiado e entretido por
uma substância que imagina e que arrazoa, não está sujeito a nenhum dos
inconvenientes que se seguem 5 inevitàvelmente ao outro, pois que tira a essa mesma
substância, que nos deve conduzir, a liberdade dos movimentos e das operações.
Que diferença entre o amor que defendo e o amor que abomino! Este é o pai
do ciúme, da cólera, 10 do furor e da vingança, a quem não só persegue o temor das
leis que o proscrevem, como o avilta a companhia de desgostos, de escrúpulos e de
tristezas que recebe por milhares: Não acha descanso senão na posse e no logro;
porém este 15 descanso é perturbado muitas vezes pela apreensão de perder o objecto
dos seus empenhos, se é que estes se não fazem instantâneamente insípidos pelo
desgosto ou pela inconstância natural. Perde o amor da glória o melhor soldado em
se entregando 20 a esta paixão, o espiríto mais agudo se entorpece, o juízo mais
alto cai em delírio, o mais prudente em loucura, e o mais moderado no desprezo da
razão. Chega o homem a fazer-se neste caso de pior condição que as feras. Não
sabemos que esta 25 paixão as obrigasse até agora a imitarem homens que apagam no
próprio sangue a violência do fogo que os devora. Estas observações que aqui faço
são ideias mui ligeiras dos males a que o amor desregrado expõe a todos os que o
seguem. A 30 confusão que introduz nas almas é um suplício tão horrível que eu me
livrarei bem de a descrever, depois das pinturas vivas que muitos homens insignes
fizeram dela. Não teria aliás mais trabalho que o de copiar de Virgílio o retrato
da alma de Dido, ou o da alma da desgraçada Fedra, delineada por Monsieur Racine.
Os originais destes mestres perderiam o valor copiados por um aprendiz como eu.
Tende a bondade de os examinar nos próprios autores, os 5 quais nestes dois lugares
têm o privilégio de serem sempre lidos sem fastio.
Quantas provas históricas quereis vós das desordens que tem causado no
mundo esta espécie de amor? Medeia sacrificou a semelhante paixão as 10 riquezas
dos estados de seu pai, a vida dos filhos e a do irmão Absirto, ao qual fez em
pedaços para poder lograr a fugida com Jasão, que amaldiçoou depois muitas vezes.
Apesar das experiência que lhe tinha custado um amor legítimo, se determinou 15
Dido a ser vítima dum amor pouco honesto. Hércules mudou a maça em roca e aprendeu
com Ônfala a governar um fuso com aquelas mesmas mãos que, empunhando uma clava,
faziam tremer os leões e as hidras, escurecendo com baixezas 20 infinitas a glória
de acções imortais. Aquiles, que servia de terror ao mundo vestido de armas
brancas, foi o riso de todos os homens que o viram e consideraram, ornando-se com
justilhos e saias. Sardanápalo trocou a coroa imperial por um 25 toucado e o
ceptro por uma cana. Milo Crotoniato, mais do que homem nas forças do corpo, era
menos do que mulher na debilidade da alma. Sendo aquele a quem o valor humano não
podia arrancar da mão o pomo que nela tinha fechado, era o mesmo 30 que se deixava
inteiramente arrastar pelo melindre da mulher mais fraca. El-rei Ciro, dando lugar
no tróno a Ápama, esta lhe tirava a coroa da cabeça com uma mão, com a outra dando-
lhe bofetadas. Marco António, persuadido por Cleópatra a divertir-se pescando os
peixes com anzóis de oiro, deixou que Augusto lhe tomasse os reinos com o ferro da
espada, Cila entregou traidoramente Niso, seu pai, a um princípe que lhe fazia
guerra e de 5 quem ela se enamorou sem ter a certeza de ser amada. Lucrécia,
violada, causou uma revolução em Roma que extinguiu os reis. Roubada Virgínia, com
perda da vida, à brutalidade de Ápio Claúdio, exilou do Estado um decenvirato de
tiranos. 10 Júpiter, a quem, como diz São Jerónimo, chamaram o rei dos Céus pelas
eminentes prendas que o enobreciam, viu-se obrigado a brutalizar-se para satisfazer
à torpeza dos seus intentos. Bramando como touro por Europa, voou como cisne por
Leda, 15 desfez-se em chuva de oiro por Dánae, e transformou-se em outras
mosntruosidades que até a acção de referi-las é vergonhosa. Xerxes ocupou-se em
enriquecer de jóias, respeitando como sua rainha e servindo como sua senhora, a uma
árvore. Crispo 20 Passieno, depois de ser duas vezes cônsul, viu-se amarrado a
outro tronco por força duma paixão cega e igualmente louca. Um mancebo ateniense,
nobre, galã e rico, se condenou por desatino a requebrar uma estátua, pela qual
bárbara e 25 violentamente se matou. Viu-se Faustina tão perdida por um infame
gladiador que, para curar-se do seu frenesi, foi necessário tirar-lhe a ele a vida
e a ela dar-lhe o sangue a beber. Poucos dias depois de namorado el-rei Nino da
Babilónia, não só lhe 30 não ficou a coroa, como nem a cabeça lhe deixou Semíramis
para a suster. Ovídio, que foi bom profeta na Arte de amar , perdeu-se porque a
seguiu. Catilina matou um filho porque Aurélia Orestila o determinou.
Clitemnestra, para se gozar de 5 Egisto, matou seu marido Agamémnon, rei vitorioso
de Tróia, e intentou executar a mesma crueldade com seu filho Orestes. Fábia,
romana, por amor de Petrónio tirou a vida a seu marido Fabriciano. Lenila, senhora
de grande família, 10 para se gozar livremente dum escravo, acusou os filhos de
traição, não sossegando a sua maldade enquanto não viu o cadafalso tinto com o
sangue inocente. A condessa Dona Sancha intentou dar veneno a seu filho, o conde
Dom Sancho de Castela, 15 para casar com um rei moiro, a quem determinou entregar
os senhorios e a liberdade dos seus Estados. Márcia causou a morte de Cómodo;
Romilda, por amor de Câncano, da Baviera, causou a do duque Sisulfo, seu esposo.
Houve um rei que introduziu 20 no trono da Fé a heresia por amor duma mulher que se
pode ter como sua filha, cunhada e amiga. Ordenando Adrino, no Egipto, que se
adorasse Antínoo, a quem amou lascivamente, eregiu a si próprio o afrontoso padrão
da infâmia. Entregue25 ao amor das concubinas passou Baltasar das mãos de Dario
para as de Alexandre, dando-se o governo dos babilónios aos assírios. O roubo
duma mulher tebana acendeu a guerra sacra, que durou dez anos entre os tebanos e os
focenses. Outro insulto semelhante causou as guerras dos Messénios com os 5
Lacedemónios. A dos Troianos e dos Gregos também se não originaria se se não
roubasse a formosa Helena. O próprio Marte se viu cativo naquele dia em que foi
amante, caindo nos laços que lhe armou o injuriado Vulcano. Só foi formidável o
valor de 10 Lúcio Sila enquanto as delícias da Ásia o não afeminaram. Deslustrou a
Júlio César o louco amor de Servília, fazendo-se o dia do seu triunfo o mais
plausível para o pasquim. Sendo Vitorino nobremente adornado das prendas que se
desejam em 15 um grande príncipe, ninguém se atreve a recomendá-las na História,
onde só se acha abominada a dos seus amores desordenados. Sansão confiou a sua
vida e o seu segredo a uma Dalila infiel; Acab a Jesabel; Herodes a Herodias; o
sábio Salomão a 20 tantas moabitas depois de sacrificar à rainha de Sabá a mais
brilhante parte das grandezas com que Deus premeia os homens. A mulher do príncipe
Pútifar desceu da grandeza de senhora ao estado de escrava dum cativo. David
chorou todos os dias 25 e todas as noites da sua vida ter visto Bersabé. Perdeu-se
Siquém e toda a sua cidade pela formosa Dina. Furor e desesperação causaram os
desdéns de Susana aos velhos lascivos e a Fedra os desprezos de Hipólito. David
pagou o adultério na 5 desobediência de seu filho Salomão, vendo dividido seu reino
por causa das suas torpezas. Às de Holofernes cortou a cabeça a castidade de
Judite. Não perecera do convite Amon, se Tamar não fosse violada. Antíoco, rei da
Síria, chamado o Deus, perdeu a 10 vida nas mãos de Laodiceia por zelos de
Berenice. O imperador Antonino Vero a perdeu por outros ciúmes, bebendo o veneno
que lhe deu Lucila, sua mulher. Fredegonda, manceba de el-rei Quilperico, castigou
com a morte os seus adultérios. Arsínoe a 15 deu a Agátocles, seu enteado, porque
não quis condescender na depravação do seu desejo. Não podendo el-rei Balac vencer
com as armas a Israel, determinou Balan derribá-lo com as do amor e conseguiu-o. O
amor desordenado dos soldados formou 20 as Vésperas Sicilianas. Não se rendera
Espanha aos bárbaros nem choraríamos ainda hoje a perda de el-rei Rodrigo, se na
Espanha não houvesse aquele vício. Acabando finalmente esta confusa miscelânea de
erros dum desordenado amor, achados na 25 história antiga, sagrada e profana, que
exemplos vos não daria da moderna, se julgasse que para crer as catástrofes dos
nossas dias era necessário mais prova do que vê-las? Qual é agora o Hércules que
se não mete debaixo dos pés a que chame donairosos? Qual 30 o Ciro que se não
deixe ultrajar duma mão fraca, se é bela? E qual é ùltimamente o homem que resista
e que se defenda de ser arrastado, não digo pela formosura, mas pela mulher que
adora? Contentai-vos com a numeração dos funestos exemplos dos séculos passados e
com a experiência dos efeitos no presente. Pelo que toca aos futuros suponde
comigo que ainda serão mais abundantes e pode ser que ainda mais horrorosos pelos
danos deste amor 5 desordenado.
Convenho em que o número de semelhantes erros se poderia muito diminuir, se
o amante fosse amado sempre do objecto da sua paixão ou se fosse correspondido
constantemente; porém, como o amor 10 que temos a uma pessoa não basta para
determinar o seu e como sabemos, há muito tempo, que as correspondências não são
eternas, é necessário que vejamos todos os dias os excessos do ciúme, do desprezo e
da tristeza que conduzem os homens a 15 loucuras extraordinárias. Deixando os
furores e os efeitos trágicos a que a força destes movimentos deu princípio, passo
a referir-vos as ridicularias ou as puerilidades que os mesmos efeitos inventaram,
obrigando os homens a que as cressem e praticassem. 20 Imaginaram nossos avós um
erro, cujas partes têm chegado aos nossos dias e creram que havia meios seguros
para obrigar uma pessoa a amar. Estes meios empregavam-se de duas sortes e tinham
dois nomes. Uns eram encantos e outros feitiços. Os 25 primeiros pediam muito
aparato. Armava-se um altar ornado à roda dum frontal. Queimava-se nele incenso
macho e outros perfumes. A uma pequena estátua de cera, que se punha sobre o
altar, se pegavam seis pontas de fita de três cores diversas 30 e fazendo andar a
figura três vezes à roda do mesmo altar se davam três nós em duas pontas das fitas
que tivessem a mesma cor, dizendo-se que se davam nós no amor. Haveis de saber que
o número de três foi sempre de muita energia nesta qualidade de encantos amorosos.
Além desta figura, de que tenho falado, havia sobre o mesmo altar outra de barro e,
ao tempo que com fogo se endurecia uma e se derretia a outra, conjurava-se o
objecto amado para 5 que sentisse as mesmas alterações endurecendo-se para todas as
outras pessoas e derretendo-se pelo encantador ou pela pessoa por cuja intenção se
praticava o encanto. Punha-se depois sobre o altar uma torta, porém não sei se se
comia dela. 10 Queimava-se louro com certos betumes odoríferos e dizia-se que o
amante ardia no mesmo incêndio em que aquelas matérias se inflamavam. Finalmente,
tirando-se as cinzas do altar, lançava-as o amante a um rio atirando com elas para
trás das costas sem 15 que nessa acção se voltasse, pretendendo-se que estas cinzas
eram as que faziam maior efeito nas vitórias dos corações rebeldes. Quando a cinza
se acendia por si própria no altar, era sinal infalível do bom sucesso do encanto.
Todas estas cerimónias se 20 acompanhavam dum formulário de orações, que se
repetiam muitas vezes, com as quais se pedia a ternura e a brandura do objecto por
que elas se faziam. Tenho escrúpulo em repetir as orações porque entendo que se as
ajuntasse aqui que não 25 faltaria ainda hoje quem as rezasse fazendo a experiência
com as mais cerimónias. O sacrifício, que nesta corte se viu há tão pouco tempo
executado, prova que entre nós se conserva ainda a raça dos amantes pagãos. Não
sois vós a única a 30 entender-me e isso basta.
Eis aqui pouco mais ou menos o ritual dos encantamentos amorosos de cujos
efeitos vejo que duvidais. Os mais discretos pagãos os praticaram, tomando-os por
puerilidades. As razões que dá Ovídio bastariam para nos persuadirem, quando
tivéssemos disposições para julgar o contrário. É grande erro , diz Ovídio,
recorrer aos encantos para nos fazermos amar, ou empregar para o 5 mesmo fim
bebidas amorosas a que chamam filtros . Todas as ervas que tornaram célebre o
nome de Medeia, acompanhadas de invenções e formulários usados pelos mágicos, não
poderiam fazer com que o amor fosse eterno . Se estes meios tivessem alguma 10
eficácia, Jasão não seria infiel a Medeia e Circe prenderia a Ulisses nos seus
ferros . Desta forma, tudo leva a crer que não falou sèriamente o mesmo poeta, mas
que escarneceu de tais encantamentos quando, para se justificar com Corina, se
serviu 15 das seguintes escusas: Será algum veneno frio o que me gela o sangue ?
Terá alguma feiticeira pegado o meu nome a alguma estátua de cera e trespassado com
alguma agulha o meu coração ? Corina, que se sabia bastantemente bela para
comunicar ao 20 amante os movimentos que sentia, lhe disse: Que se alguma
feiticeira lhe tinha passado as lãs duma à outra parte do corpo, então outra
formosura lhe tinha roubado o coração , mostrando que se inclinava mais a crer na
segunda causa do que na 25 primeira.
As bebidas amorosas chamadas filtros, duma palavra grega que significa
amar, eram os feitiços que se davam às pessoas de quem se queria violentar a
natureza obrigando-as à ternura. 30 Oferecendo-se-me bastantes reflexões quanto a
esta matéria, permiti que divida a minha carta em duas partes e, dando-vos tempo
para criticardes esta primeira que vos envio, pouco tomarei para fazer a segunda,
que vos mandarei depois de amanhã. Estimarei que o estilo não vos pareça
burlesco, parecendo-me a mim a matéria de que vos escrevo tão pouco séria que o
merecia. Deus vos guarde muitos anos.
5 Muito vosso venerador
Viena de Áustria, 20 de Setembro de 1736.
Ignorando eu qual era a verdadeira composição dos filtros, sei sòmente que
nela entravam algumas ervas misturadas com hipómanes, em que residia 10 a virtude
principal destas bebidas. Hoje haveria grande embaraço para os compor, sendo o
hipómanes nelas tão necessário, porque depois que os homens se aplicaram sèriamente
ao estudo da história natural desapareceu deste mundo a dita 15 maravilhosa
excrescência. Consistia esta, se havemos de dar crédito aos antigos, em um tumor
que os potros traziam sobre a cabeça, quando vinham ao mundo, o qual as éguas
devoravam no mesmo instante em que pariam, sendo essa a razão que se 20 dava para
explicar o amor que elas tinham e que ainda conservam aos seus potros. Como as
éguas deste tempo estão sujeitas às mesmas leis do passado, é muito natural que o
admirável hipómanes não tivesse jamais existência senão na falsidade dos mágicos
presumidos, os quais, para venderem as bebidas muito caras, se autorizavam com a 5
dificuldade que havia a supor necessàriamente na aquisição do hipómanes. Seja o
que for, o certo é que o dito hipómanes foi uma das coisas mais celebradas da
antiguidade. Como é possível que causando ele às éguas tanta ternura pelos potros,
não faça 10 o mesmo efeito nas pessoas se o usarem, diziam os antigos?
Presentemente, podia-se concluir desta observação que todos aqueles que usassem de
semelhante bebida não conseguiam outra coisa senão o prejuízo dos potros, os quais
ficariam 15 privados do amor materno pela subtracção do hipómanes. Parece-me que
esta consequência seria a mais justa, e a mais conforme às leis da boa física,
porém não temos o direito de ser tão rigorosos com a antiguidade como ela merecia
que fôssemos em 20 certas coisas.
Uma das mais desumanas e dignas de toda a severidade das leis servirá de
prova ao meu asserto, se é que necessita dalguma. Não sou eu que a invento, tendo
sido Horácio quem a contou. 25 Enterravam os antigos um menino até à barba e
apresentavam-lhe muitas vezes ao dia diferentes qualidades de alimentos sem que
lhos deixassem tocar. No meio deste bárbaro suplício morria o menino, e logo no
instante em que expirava empregavam o 30 fígado e a moela na composição e na
confeição dos filtros, como se os desejos que o desgraçado menino sofreu ao provar
os manjares tivesse comum correspondência com a vontade dos amantes. Não sei o que
se deva julgar de semelhante história; acho-me muito disposto a crer que,
aborrecendo Horácio a Canídia, confirmou este ruído popular para fazer que ela
fosse tão odiosa aos outros como era a ele próprio. É de supor que, se este caso
fosse 5 verdadeiro, não ficasse sem ser punido como um crime por todos os
princípios abominável.
Seria bem admirável que as bebidas desta natureza pudessem causar amor e
principalmente a um objecto determinado! Para amar é necessário 10 conhecer e os
filtros não fazem conhecer as pessoas que os dão. Assim como há remédios que
amortecem e que destroem inteiramente o amor, assim os pode haver para dispor as
pessoas que os tomam a senti-lo; porém que esses remédios sejam capazes de obrigar
15 a amar objectos determinados tenho-a por coisa impossível e absolutamente
contrária à razão. Poderia suceder que ao tempo da operação, apresentando-se o
amante a dar à pessoa amada a bebida amorosa, com seus discursos e graças
insinuantes 20 contribuísse do mesmo passo a tornar eficaz o filtro, mas já neste
caso não se poderá dizer que o agente seja a droga e não o indivíduo.
O único efeito que se tem observado como certo é que estas qualidades de
bebidas arruínam o entendimento causando grandes furores a muitos a quem se deram.
Escutai Ovídio. Não creiais, diz ele, determinar uma mulher a que vos ame dando-
lhe um filtro . Estas bebidas tiram o juízo, e 5 produzem a loucura . Apartai
de vós toda a acção criminosa . Se quereis ser amado, sede amável e isto é o que
o talhe e a fisionomia não podem por si só conseguir .
Olímpia, rainha da Macedónia, parece que 10 estava ìntimamente persuadida
desta verdade. Dizendo-lhe alguns senhores que certa moça tinha roubado o coração
a Filipe, seu esposo, por meio duma bebida que lhe dera, ordenou Olímpia que viesse
a dita moça à sua presença, porém 15 examinando os seus agrados e a excelência do
seu carácter conheceu e disse a todos que aquela mulher tinha o filtro na sua
própria pessoa.
Juvenal foi do mesmo parecer de Ovídio. Eis os termos em que trata esta
matéria. Um vos vende 20 encantos o outro vos vende filtros para arruinar as
cabeças dos maridos... Estes remédios, em consequência, produzem as trevas do
entendimento e a perda da memória para todas coisas que fazem. Ditosos serão
aqueles que tomando estas bebidas 25 não entrarem em furor semelhante ao de
Calígula, a quem Cesónia fez engolir um hipómanes inteiro. Causar semelhante
furor é acção que verdadeiramente se não pode conter na galantaria. Pede, diz o
mesmo Juvenal, ferro, fogo e tratos. Acaba por inundar a cidade com o sangue dos
senadores e dos cavaleiros. Aqui está no que pode redundar um filtro e uma
feiticeira.
Os historiadores concordam plenamente com os 5 dois poetas já citados.
Eusébio diz que Cornélio Galo, governador do Egipto, enfureceu e perdeu
inteiramente o entendimento depois de beber um filtro. Plutarco conta que L
Lúculo, general romano; entrou pelo mesmo principio em tal 10 loucura que perdeu a
vida. Lucila, mulher do poeta Lucrécio, suspeitando que ele lhe era infiel, lhe
deu uma bebida que depois de lhe fazer perder o juízo fez com que ele se matasse,
sendo este um raro e funesto exemplo de ternura conjugal, o qual 15 os maridos não
devem temer que se renove no tempo presente. Depois de muitos anos de loucura,
morreu na cidade de Vitemberga um sapateiro que também tomou um filtro.
Se depois dos referidos exemplos se pudesse 20 ainda duvidar dos
perniciosos efeitos dos filtros, chamaria em meu socorro a autoridade dos Gregos
que lhes dão o nome de veneno e a confirmaria com as leis romanas que pronunciam
penas capitais contra aqueles que os ministram. É certo que 25 as leis precedem ao
conhecimento do crime, porém não sei se a nossa jurisprudência é conforme neste
ponto com a romana, ainda que não duvide de que as leis que temos contra os
envenenadores podem receber aqui uma aplicação mui natural.
Eis aqui três segredos para obrigar a amar, os quais me parece que se
podem pôr em prática sem que a curiosidade interesse a consciência. O primeiro
consiste em uma pessoa trazer consigo o 5 coração duma andorinha, por efeito do
qual, dizem muitos, se fará estimar de toda a gente. O segundo não é tão
universal, porém é próprio ao nosso intento: Haver à mão dois anéis de oiro e de
prata, metê-los no ninho duma andorinha, onde se 10 deixam estar nove dias; ao cabo
tiram-se, ficando-se com um e dando outro à pessoa amada. Dizem muitos que essa
pessoa amará por força; quanto a mim, entendo que amará se quiser. O terceiro é o
mais singular. Raspam-se as asas duma cigarra, 15 apanhada na lua nova de janeiro
entre as dez e onze horas duma noite em que faça bem escuro, ao tempo que esteja a
cantar; coa-se esse pó por um ralo muito fino e dá-se a beber à pessoa amada numa
lágrima de vinho Tokai, por um dedal de 20 Tambaca do Peru. Ora, é coisa que faz
chorar, abrandar e estalar as próprias pedras! Tenho dado esta receita a muitas
pessoas do meu conhecimento e porque em todas tem feito maravilhas, julgo que não
há outro remédio que obrigue a amar com tanta eficácia, ou que seja mais verdadeiro
do que este.
Eu não duvido de que os ninhos das rolas façam, 5 como pretendem alguns, o
mesmo e ainda melhor efeito com os anéis que os ninhos das andorinhas; porém uma
bolsa cheia de boas moedas, quando se não quer usar a raspadura das asas das
cigarras, creio que na maior parte das ocasiões e com 10 a maior parte das pessoas,
de que é necessário examinar as circunstâncias, há-de ser de virtude mais
específica e mais efectiva que a dos anéis, saiam eles da quentura das rolas, ou do
bafo das andorinhas, onde já disse que devem estar nove dias.
15Sendo este também um dos meios de conciliar o amor, confirma a observação
que já fiz a respeito do número três. O nove, que é o quadrado de três, ou por
outra o produto do número três multiplicado por si próprio, não é menos eficaz
seguindo-se a 20 douta reflexão de Cornéio Agripa.
Acabaria aqui esta carta, dizendo-vos, numa palavra, que há malefícios que
danam, que prejudicam e que matam, e que não há feitiços que obriguem, constranjam
ou violentem a amar; porém como me meti a caminho de vos falar nas desordens do
amor, quero notar que este, desprovido de encanto, produz muitas vezes melancolias
5 tão fatais, que conduzem à morte os que as sofrem. Neste termo desgraçado se
achava Seleuco, o qual sem ousadia para descobrir o amor excessivo que tinha a
Estratónica, manceba del-rei seu pai, entrou em uma tristeza tão profunda que, 10
reduzindo-se a doença perigosa, a tinham já suposto sem remédio. Suspeitando
Erasístrato, que era o médico que lhe assistia, que alguma paixão da alma
entretinha o mal, disse claramente o seu parecer a el-rei Antíoco. Concordaram
ambos que, a pretexto de 15 divertir o príncipe, viessem sucessivamente à sua
câmara todas as damas da corte. Observava Erasístrato sempre que alguma delas
entrava na Câmara, assim na vista como no pulso do príncipe, a alteração que lhe
causava tal presença. Foi tão 20 sensível e tão duradoira a sua alteração quando
Estratónica apareceu que Erasístrato não duvidou assegurar logo que esta era a
causa do mal. O rei, preferindo antes sacrificar uma concubina do que um filho
único, cedeu Estratónica a Seleuco, e 25 Seleuco recuperou a saúde.
Semelhante caso sucedeu a Hipócrates, se quereis dar crédito a Sorano, que
o refere na Vida de Pérdicas, Rei da Macedónia . Mercê da sua reputação, aconteceu
que este pai da medicina fosse 30 chamado à presença daquele príncipe, combatido
desde muito tempo por uma doença mui grave. Conheceu Hipócrates por sinais
evidentes que essa doença era causada e entretida por agitação da alma. A fraqueza
e a debilidade que observou no pulso do doente à vista de Fila, concubina del-rei
seu pai, a quem ele não podia, obrigado pelo respeito, declarar a paixão violenta
que lhe inspirava, o determinou a concluir que esta era a verdadeira 5 causa de
toda a desordem. Declarando-se Hipócrates a Fila e persuadindo-a a lisonjear o
amor e esperanças do príncipe, conseguiu restabelecer-lhe completamente a saúde.
Não cuideis que foi este o último doutor alcoviteiro, porém não é aqui o lugar 10
de vos falar desta matéria.
Galeno descobriu outra paixão semelhante em uma mulher que tratava. Não
vos direi como terminou a sua doença porque me esqueci da história, porém contarei
em seu lugar outra dum doente que 15 melhorou por modo extraordinário.
Havia em Atenas uma moça chamada Hipácia, de entendimento tão superior que
ensinava retórica publicamente. Conheceu Hipácia que um dos seus discípulos se
achava perdidamente enamorado 20 dela, porém que o respeito lhe impedia que se
explicasse. O estado a que ele chegou lhe fez compaixão, vendo que ameaçava
trágico fim. Chamou-o Hipácia particularmente a sua casa e depois de lhe dizer com
toda a doçura que ela tinha 25 adivinhado o segredo do seu mal, no que ele logo
consentiu, lhe descobriu o seu corpo em hora que as mulheres têm o maior cuidado de
ocultá-lo e disse-lhe: Aqui tendes, meu filho, o horror que vós amais . O
discípulo, interdito e confuso, se lançou 30 aos seus pés, e pedindo-lhe perdão
prometeu emendar-se da sua paixão e assim o fez.
Raimundo Lúlio curou-se do amor violento que lhe inspirou uma mulher
formosa por um modo que tem alguma semelhança com o precedente. Perseguia-a ele,
havia muito tempo, para que lhe concedesse os últimos favores. Fingindo ela por
fim que se rendia aos seus excessos, lhe determinou hora particular e secreta para
se avistarem. Não 5 faltou Lúlio, porém assim que este chegou, descobrindo ela o
seio, lho mostrou quase roído dum cancro. O horror que o espectáculo lhe causou
extinguiu prontamente a flama impudica. Uma generosa piedade, ocupando o seu
lugar, obrigou-o 10 a partir para os países estrangeiros determinado a consultar os
homens doutos e a estudar com eles o remédio da cruel doença da sua amada.
Raimundo Lúlio inclinou-se à química e fez tais progressos que foi um dos que
adquiriram grande 15 reputação no segredo de fazer oiro. Voltou à pátria depois de
muitos anos, achou ainda viva a causa do seu amor, curou-a da sua enfermidade e
curou-se da sua paixão, contentando-se com ser sòmente bom amigo daquela de quem
tinha sido louco 20 amante.
Nem sempre sucedeu que os furores amorosos se curassem tão prontamente.
Quando o mau temperamento se ajunta à desordem da imaginação, aumentam-se de tal
forma que nem a razão nem a 25 honestidade têm forças para os rebaterem. Degeneram
neste caso em uma mania verdadeira, que é doença conhecida dos médicos com
diferentes nomes. Nesta conformidade todos os movimentos e todos os pensamentos do
doente respiram 30 lascívia. As suas acções, semelhantes aos seus discursos, fazem
pejo às pessoas mais dissolutas.
Foi já necessário atar alguns destes doentes com cordas para os embaraçar
que fossem buscar algures os remédios que com muito trabalho se lhes procuravam
por meios que a honra e a religião não proíbem.
Se devemos crer certos autores, era este o estado 5 em que se achava aquela
imperatriz a quem as desordens lascivas deram um nome que incarna hoje a sátira
completa da degradação. Falo de Messalina, cuja lubricidade foi tão grande que ela
própria não a sabia satisfazer.
10 Esta doença foi já algumas vezes epidémica. Refere Plutarco que as
filhas de Mileto, sem ninguém lhes poder acudir, se enforcavam em bandos, nos
acessos desta violenta enfermidade. Se soubessem que há três remédios para o amor,
o tempo, a 15 fome e a morte, decerto não escolheriam o terceiro antes de
experimentar os outros. Dizem que as mulheres da cidade de Lião se deitavam em
monte nas ribeiras e nos poços, não podendo resistir à fúria de desejos que não
queriam descobrir. Não 20 vos saberei dizer em que tempo foram as lionesas tão
lascivas. O mesmo autor francês que escreveu esta história o ignorava, ou teve
razões particulares para ocultá-lo.
Nesta e na última carta que vos mandei vos 25 tenho feito uma história mal
ordenada a respeito das desordens do amor. Se me perguntais agora quais são os
remédios para as desta última qualidade, direi que os peçais aos médicos que
pretendem tê-los não só para mitigar, mas para extinguir 30 inteiramente os seus
fogos. Nesta conta entram as folhas do Vitex ou Agnus Castus , que servindo de
cama às virgens vestais, as preservavam da tentação de perder aquela flor que
deviam conservar sob pena de serem enterradas vivas. Na mesma conta entra a erva
chamada menta , a qual se não deve semear, nem comer em tempo de guerra, conforme
um provérbio referido por Aristóteles, porque, assim como apaga os incêndios do
amor, 5 assim embaraça a restituição que o Estado pede dos vassalos que a guerra
lhe arrebatou. Dizem ainda os médicos que há mais remédios semelhantes de natureza
interna e outros que se podem aplicar com bom efeito externamente. Não metamos a
10 nossa foice na seara alheia. Os médicos sabem muito bem o que dizem, porém,
pelo que me toca, tenho mui pouca fé nestes remédios e julgo os preservativos muito
mais úteis e eficazes. Um dos melhores princípios é: oponde-vos a eles a tempo ,
15 diz o grande mestre da Arte de amar, porque é tarde para dar o remédio quando o
mal lhe tirou as forças todas . É necessário evitar a solidão, onde a alma padece
por falta de objectos que a divirtam. Não é menos conveniente fugir das lições,
das 20 companhias e dos alimentos que incitam paixões amorosas. O caminho mais
seguro para fugir delas é o de ocupar-se uma pessoa em coisas úteis. Deixai de
ser ocioso , diz Ovídio, e não só quebrareis o arco, mas extinguireis os incêndios
do Amor . É quase 25 impossível empregar-se o homem em muitos objectos ao mesmo
tempo, o que predomina destruindo todos os outros. Parece-me que por esta razão
disseram todos os poetas que há três deusas impenetráveis aos tiros do amor:
Minerva, Diana e Vesta. Se tendes necessidade de vos alistar, podeis escolher a
bandeira que quiserdes servir. Mil coisas vão ocorrendo, porém cantar mal e
ateimar é o mesmo 5 que escrever muito e dizer pouco. Já sabeis que assim como no
saber está raras vezes o poder, assim no poder está jamais o saber. Não está na
minha mão, minha senhora, saber o pouco que sei. Por isso não esteve nela ser tão
sério neste papel como 10 mandastes. Deus vos guarde muitos anos.
Amigo do coração. Não há coisa mais certa que a que me dizeis. Sócrates
amava muito mais imprimir 15 os seus pareceres sobre os corações dos homens do que
sobre as peles dos animais. Se eu tivera pareceres para imprimir, confesso-vos que
também seria da mesma opinião. Deixar porém de imprimir no papel os pareceres que
por esse meio se podem 20 imprimir no coração dos homens não seria acertado, por
mais certo que fosse o parecer de Sócrates. Desta forma não poderiam os sábios
ser úteis que aos seus vizinhos sòmente. Parece-me que todos os filósofos e homens
doutos devem trabalhar igualmente para a instrução do seu século e para a da 5
posteridade, e que devem escrever e imprimir as suas sentenças, as suas opiniões, e
as suas doutrinas, para as fazer passar desta forma dos corações dos homens
presentes aos dos ausentes e aos do futuro. Será possível que mostrásseis o
exemplo de 10 Sócrates para culpardes ainda a opinião que tenho, e que vos escrevi,
de Frei Henrique? Não o creio, porém se inquietasses o filósofo por esta razão,
digo-vos que já que eu o não posso imitar nos pareceres o imito justamente nos
desejos. A intenção com 15 que vos escrevi o conceito que faço dos religiosos e
dos frades é para o imprimir no vosso coração, mas não na pele de Frei Henrique.
Imitai ao filósofo no mais, porque eu só no que é menos o poderei seguir. Se sois
meu amigo não me faleis mais em 20 frades. Em religiosos falemos sempre. Nas
freiras e nas religiosas desta terra também me podeis falar, porque as tenho por
muito boa gente. Pelo que toca às freiras de Lisboa, é melhor falar com elas do
que falar nelas. As religiosas do meu país são 25 igualmente virtuosas como as do
vosso. Se vós pudésseis ver agora Carnide, eu vos asseguro que ficaríeis
arrebatado, e se eu pudesse ver agora a Madre Deus, juro-vos que estaria como na
glória. Eis aqui uma opinião que Sócrates não teve nem 30 escreveu; e eu não só a
escrevo, mas sou muito capaz de a imprimir, desejando vê-la mais no coração dos
homens do que no papel. Ver a Madre Deus, e estar na glória é o mesmo. Ver
Carnide é estar com os anjos. Para ver o Sacramento é 5 necessário tremer de
respeito. Ver o Crucifixo não se faz sem profunda devoção. A ver as Francesinhas,
e as Inglesinhas todos dirão que são coisas raras, estrangeiras e peregrinas. Ver
as Bernardas e ver as flores que elas fazem, tudo parecerá jardim onde 10 tudo são
flores. Não cuideis que vos falo de duas léguas fora de Lisboa; tudo o que vos
digo é do Mocambo. Na minha terra há muita diferença entre as freiras que vendem
bonecas e entre as freiras que os fazem ainda que sejam da mesma Ordem. Em 15
todas as Ordens há bom e mau; e a maior prova dessa desordem é a minha mesma Ordem,
na qual havendo uns que fazem figura, há outros que a desfiguram. Aqui está uma
opinião, meu amigo, em como Sócrates e todos os mais filósofos foram 20
ignorantíssimos, ou pelo menos o mostraram, não escrevendo uma só palavra nesta
matéria. Quarta-feira de Trevas deste ano assisti ao Ofício da igreja das Portas
do Céu desta cidade. As lamentações das senhoras que habitam aquele mosteiro foram
as 25 primeiras que me fizeram chorar. O Diabo que também entra na igreja me meteu
ali na cabeça que as minhas lágrimas procediam de devoção, porém, vendo que me não
podia ter com riso do muito mal que cantavam, julguei que estava tentado e assentei
em que rir muito acaba sempre em chorar. Quinta-feira Santa estive em Renweg, e
seria 5 necessário deixar de ser cristão para deixar de me mostrar devoto. Solene
e perfeitamente se executaram as cerimónias do dia na igreja do mosteiro, às quais
assistiu a imperatriz Amália, aumentando com o esplendor da sua virtude a nobreza
de tantas que 10 ali se encerram. Agora me direis que em tudo acho defeito. Tive
para mim que o era andar nesta mesma igreja um sacristão com sobrepeliz e com o
cabelo metido em um pente à moda do país. No meu não seria certamente um bom
costume. Para 15 nos livrarmos de frades basta de freiras. Falei-vos nelas por me
fazer entendido do remoque de Sócrates a respeito de Frei Henrique. Perdeis o
vosso tempo e a vossa filosofia empregando uma ou outra coisa nesta matéria, à qual
sempre vos 20 responderei, porém de chança. Tenho sono porque é tarde, e isso
mesmo sucedia a Sócrates quando se levantava cedo. Com bem passe Vossa Mercê a
noite, se diz na minha terra, porém não sei se Sócrates saberia dizer isso para
acabar uma carta. Adeus.
[ title ] 17. |
A mademoiselle Galetti. cantatriz da ópera de Viena
[ title ] 18. |
A Senhora condessa de la Bourlie de Guiscard, marquesa de Laval
[ title ] 19. |
A uma de duas Senhoras desconhecidas com uma declaração de amor
[ title ] 20. |
Ao senhor Luís de Mo...r... i. Aconselhando-o a não aceitar um duelo, e
escusando e criticando a sua fraqueza
Vossa Mercê sabe que sou muito pacífico para o persuadir a que aceite um
duelo. Por essa razão lhe direi no presente caso o meu parecer, o qual espero que
é conforme com a resolução que Vossa Mercê sem 5 dúvida terá tomado seguindo o seu
génio. É verdade que o tenente-coronel Marfísio chamou a Vossa Mercê besta e que
teve a ousadia de lhe dar uma bofetada na sua própria presença, achando-se Vossa
Mercê em uma companhia mui numerosa e mui honrada. Dizem 10 certos estúpidos que
sem sangue não se lava a honra quando é manchada, e prezando-se estas tais gentes
de aconselharem em matéria de desafios, dizem que é preciso que Vossa Mercê pereça
ou que se vingue. Já disse a Vossa Mercê que sou pacífico e incapaz de 15 incitar
os meus conhecidos a acção alguma que seja cruel. Entendo que, achando-se Vossa
Mercê tão mal-tratado da língua e da mão de Marfísio, não é conveniente que cuide
em irritar também a sua espada, porque ainda que Vossa Mercê se ache aflito pelo 20
título que recebeu de besta, parece-me que ficará muito mais magoado se se vir
metido no número dos defuntos. Se Vossa Mercê se encerra na sepultura, então
poderá o contrário, fàcilmente e com toda a segurança, murmurar do seu valor. Será
muito 25 melhor que Vossa Mercê se deixe estar no mundo e que esteja sempre
presente para castigar o seu inimigo quando a sua temeridade lhe der bastante causa
para isso. É infalível que os que persuadem a Vossa Mercê a entrar na tragédia
não advertem em que, se Vossa Mercê fizer a catástrofe, Marfísio rirá e zombará da
valentia de Vossa Mercê . Se Vossa Mercê o mata no duelo, que há-de dizer o mundo?
Dirá que Vossa Mercê o lançou 5 fora da terra, porque não ousava viver naquela que
ele pisava. Se Vossa Mercê o desarma, também se dirá que Vossa Mercê o temia com a
espada na mão, e que por esse princípio lha lançou fora. Se Vossa Mercê fica igual
no combate, qual será a prudência que o 10 obrigue a expor-se à maior de todas as
desgraças, que é a morte, sem decidir o negócio? Quando Vossa Mercê tivesse um
seguro do Deus Marte para sair do duelo com honra e com felicidade, sempre o
contrário se poderia gabar de que tinha obrigado 15 a Vossa Mercê a cometer uma
loucura insigne. Não cedo por ora do meu parecer, e julgo que teme muito o inimigo
aquele que por meio da morte pretende apartá-lo de si ou apartar-se dele. Vossa
Mercê não deve temer achar-se onde ele se ache. Dizem que Marfisio 20 faz glória
em não respeitar as Parcas. Se ele quer que Vossa Mercê o creia, que se mate.
Depois irá Vossa Mercê consultar os sábios por espaço de sessenta ou oitenta anos
quanto a saber se ele obrou bem, e se os sábios disserem que sim, nesse caso deve
Vossa Mercê fazer todas 25 as diligências para viver outros sessenta ou oitenta
anos a fim de fazer neles penitência para morrer bem arrependido da sua cobardia.
Sendo Vossa Mercê um homem que tem coração e fígados, achará muito estranho este
conselho, porém falo com lisura 30 e com clareza, e digo a Vossa Mercê que, no
presente jogo, cuide muito bem em guardar a carta que lhe deram, porque se quiser
embaralhar poderá achar outra que seja muito pior. Marfísio deve talvez querer
morrer depressa para se livrar do temor que causa sempre 5 a própria morte; porém,
Vossa Mercê , para ser mais generoso do que ele, deve fazer por viver muito para
mostrar largo tempo que se acha sempre em estado de morrer. Cuida Marfísio que se
faz recomendável procurando voltar apressadamente para a escura 10 noite da sua
primeira habitação. Este homem deve sem dúvida alguma ter medo de ver o Sol. Se
ele soubesse bem o que é ser defunto pode ser que se não fatigasse tanto para
morrer. Não é acção ilustre arriscar um homem a vida antes dos trinta anos de 15
idade, porque nesse caso expõe-se à perda dum bem que não conhece; e, se a arrisca
depois de ter a dita idade, sou de parecer que o faz bem contra seu gosto
conhecendo o que se expõe a perder. Vossa Mercê deve amar o dia, e deve aborrecer
dormir debaixo 20 da terra, onde é tal a escuridade que se não vê pataca. Marfísio
não pode blasonar de que Vossa Mercê recuse o desafio. Toda a gente sabe que Vossa
Mercê é destro e que tem venidas capazes de derrubar com elas um gigante, e assim
será fácil de persuadir o 25 mundo inteiro que se Vossa Mercê não combate é sòmente
por medo de que lhe não aprendam as ditas venidas. Ainda descubro outras razões
que obrigam a Vossa Mercê a que evite o duelo. Se Vossa Mercê executasse a loucura
de ir ao lugar do desafio embarcar-se para o outro mundo fazendo a viagem por
terra, os seus credores o acusariam infalivelmente de ter feito bancarrota.
Cuidará Marfísio que humilha a Vossa Mercê tirando-lhe a vida. Engana-se, porque
Vossa Mercê depois de morto 5 será ainda mais terrível, e atrevo-me a assegurar que
Marfísio, quinze dias depois de matar a Vossa Mercê ,o não poderia ver diante de
si, sem medo e sem horror. Se ele aspira à glória de lhe cortar a cabeça, contanto
que Vossa Mercê viva e tenha saúde, dê-lhe de 10 barato que ele se gabe em toda a
parte que podia, se quisesse, ser o seu algoz. Se Marfísio tirasse efectivamente a
vida a Vossa Mercê a vantagem nunca era grande. Um só grão de rosalgar podia fazer
isso mesmo. Pode ser que ele imagine que a natureza 15 foi escassa com Vossa Mercê
negando-lhe o valor, porém Vossa Mercê lhe ensina a fazer reflexões nesta matéria,
que o persuadam inteiramente a que um mosquito vivo vale muito mais que Alexandre
Magno depois de morto. Vossa Mercê recusando o duelo não só se mostra 20 humilde
mas piedoso, querendo poupar as lágrimas que chorariam as tochas sobre o seu
sepulcro. Vossa Mercê deve amar que o lisonjeiem atribuindo-lhe todas as
qualidades dum bom entendimento sem que se lhe ajunte a duma feliz memória, que é
verdadeiramente 25 coisa insuportável. Ainda há outra razão que por interesse
próprio me obriga não só a dizer, mas a pedir, que não vá Vossa Mercê ao desafio.
Tenho composto o seu epitáfio, e tenho dito nele com graça e agudeza que Vossa
Mercê morreu de velho, e se agora se dispuser a morrer moço arruinará a bondade do
epitáfio que lhe dá pelo menos cento e cinquenta 5 anos de vida. Vossa Mercê me
disse uma vez, se me não engano, que tem ódio mortal às enfermidades, e assim deve
aborrecer a morte naturalmente, pois que não há coisa mais contrária à vida e à
saúde. Empregue Vossa Mercê todo o seu valor em ser poltrão. 10 Diga a Marfísio
que ronque como se diz ao mar. Se ele chamou tolo a Vossa Mercê é sem dúvida que o
deixou muito bem avisado ao mesmo tempo. Fique uma coisa por outra e fique Vossa
Mercê como está, não porque esteja bem, mas pode ficar pior. Duobus 15 malis
minus est, etc. Guarde Deus a Vossa Mercê de Marfisio por muitos anos.
Quando eu digo à senhora condessa Fabrícia que 20 também o lobo lhe há-de
aparecer no mato não é sem razão. Como conheceis o seu génio ouvi o caso seguinte
e vede se tenho bastante fundamento para esperar que suceda à bela condessa o mesmo
que experimentou a formosa Margarida.
Era Tálano de Molla um honrado homem que 5 casou com uma moça formosíssima,
chamada Margarida, de espírito tão bizarro, de génio tão caprichoso e tão inclinada
às contestações que ninguém fazia coisa alguma a seu gosto, e aconselhar-lhe
qualquer acção era o mesmo que obrigá-la a 10 executar o contrário. Era
finalmente, como a senhora condessa, da qualidade daquelas mulheres que parece que
só nasceram para fazerem desesperar o género humano, sendo engenhosas em se
atormentarem e em atormentarem a todos os que vivem 15 com elas. Falo das que têm
sempre a cabeça cheia de visões e de fantasias, antes efeito dum coração enfermo
que dum espírito mal disposto, e que são ordinàriamente as vítimas da sua própria
extravagância e obstinação.
20 Muito embaraçado se achava Tálano com uma mulher de semelhante humor,
porém como lhe não descobria remédio, via-se obrigado a sofrê-la do melhor modo que
podia. Estando numa casa de campo, sonhou Tálano uma noite que via passear 25 a
mulher dentro dum bosque e que, acometida por um lobo, se não podia defender de ser
arrastada e mordida por aquela fera, a qual, deixando a presa mui ferida no rosto e
na garganta, se retirou à vista duns pastores que apareceram.
30 Acorda Tálano, e diz à sua mulher:
- Ainda que não tive até agora convosco um só instante de descanso,
confesso-vos que me faria muito desgosto se vos visse algum mal. Se me quereis
crer não saiais hoje de casa.
Pergunta ela a razão, conta Tálano o seu sonho, e responde Margarida com
grande desprezo:
- Meu marido, quem mal quer, mal sonha. Vós sonhastes o mesmo que veríeis
com muito 5 contentamento, sem embargo da compaixão aparente que mostrais. Eu
farei de sorte que vos não dê semelhante alívio nem hoje nem outro dia.
- Bem esperava esta resposta - disse o marido - e grande admiração seria se
me desses outra mais 10 graciosa, porque sei muito bem que a recompensa dos que
penteiam os tinhosos é a de perderem o seu tempo. Crede e fazei o que quiserdes,
porém outra vez vos aconselho de não sair hoje de casa, e pelo menos se quereis
sair peço-vos que não vades15 ao bosque.
Prometeu Margarida que assim faria, porém como tinha a indústria de deitar
peçonha nas melhores coisas e de fazer uma culpa da acção mais inocente, entendeu
que o marido lhe proibia entrar no bosque, 20 porque teria ali alguma companhia de
seu gosto, de que queria gozar sem embaraços. Neste caso dizia Margarida a si
própria: Eu juro que não será como vós quereis. Não sou tão negligente como
cuidais, e eu saberei ver o que se passa ainda que 25 cuide de estar todo o dia no
bosque.
Apenas o marido saiu de casa correu ela para o mato e, escondendo-se no
lugar mais cerrado, olhava para todas as partes a ver se descobria o que
suspeitava. Descobriu um lobo ao pé de si quando menos o cuidava, e este sem lhe
dar tempo nem sòmente para se encomendar a Deus se lançou contra ela e, prendendo-a
pela garganta, a 5 arrastou como se fosse um cordeiro, sem que Margarida pudesse
gritar nem defender-se, e seria sem dúvida afogada pela fera, se esta não fosse
obrigada a fugir por certos camponeses que a fortuna encaminhou então àquele sítio.
Reconhecendo 10 Margarida, ainda que desfigurada, a levaram a casa. Esteve muito
tempo enferma e seu marido lhe assistiu com grande cuidado e com os médicos e
cirurgiões mais hábeis que se conheciam. Melhorou finalmente, porém a garganta e a
cara (graças a Deus que o 15 permitiu assim para exemplo) foram de tal forma
assinaladas, que de formosa que era antecedentemente ficou depois não só feia, mas
tão medonha, que não teve mais resolução de aparecer. Chorou a sua desgraça, e
arrependeu-se da sua obstinação, 20 porém duvido que se emendasse dela, porque
estou mui persuadido que esta qualidade de doenças é incurável nas mulheres.
A senhora condessa Fabrícia merece encontrar o lobo, pois que vai tantas
vezes ao bosque contra o conselho do seu marido.
Outras muitas conheço às quais o lobo pode deitar 5 a cara abaixo sem fazer
grande pecado, e sem que isso nos faça compaixão alguma.
- Não vades hoje à comédia - disse há poucos dias o conde Servílio a sua
esposa Dominária. Olhai que chove muito, e certamente se perderão as librés 10 dos
nossos criados. São belas e mui custosas, saíram hoje pela primeira vez e parece
razoável não as destruir no mesmo dia.
- Mais que razoável - respondeu a condessa Dominária a seu marido. - Estai
descansado que 15 não irei à Comédia.
Retira-se Servílio para o seu quarto, faz-se noite, continua a chover
imensidade de água, manda Dominária pôr o coche, proíbe aos criados de levarem
capotes, e saindo não para a Comédia, mas para o 20 passeio, ordena ao cocheiro que
faça dez ou doze giros na esplanada. Voltando para casa mui satisfeita, ordena
aos criados que, assim ensopados, sirvam à mesa, onde o marido acabou por conhecer
a extravagante bizarria da sua querida e formosa esposa. Ora dizei-me pelo amor de
Deus; não seria 5 bem feito que, quando esta senhora andava na esplanada passeando
à chuva pelas onze horas da noite, encontrasse, não digo um lobo que a mordesse,
mas um urso que a comesse toda? Respondei que sim e Deus vos guarde por muitos
anos.
[ title ] 23. |
Ao senhor conde Claravino Basso, respondendo a um reparo
[ title ] 24. |
Ao senhor D. Florêncio Henriques Maldonado. Sobre a facilidade e a
dificuldade dos favores
Tenho assentado em que nesta matéria de favores tanto enfastia a muita
facilidade, como desgosta a grande dificuldade. Serve-se Ausónio duma expressão de
que gosto e pode ser que pareça bem a 5 Vossa Mercê . A nudez de Vénus, diz ele,
desagrada muito, e o cinto dobrado de Diana agrada pouco. Não é necessário que a
dama seja pródiga dos seus favores, porém é necessário que saiba dispensá-los ao
amante como se os deixasse roubar. Nec volo quam cruciat, 10 nec volo quam
satiat, digo com Marcial, e se quiser dizer com Petrónio: Nec victoria mi hi placet
parata, também direi bem. Vossa Mercê pode dizer o que quiser e entender o que
lhe apetecer, porém se o amor não tem mais alimentos que o dos favores, como Vossa
Mercê 15 julga, para sustentar-se, também creio que não tem outro alicerce que o da
dificuldade para suster-se. Além disso, o amor quanto a mim é um incêndio que se
apaga logo que cessa de esperar ou de temer, e sempre ouvi que a posse e a
segurança 20 sufocam nele os mais ardentes desejos. Os meus são de servir a Vossa
Mercê que Deus guarde muitos anos.
[ title ] 25. |
À princesa de Valáquia. Com uma história verdadeira em que dois amantes
mostraram a sua constância
Quer Vossa Alteza que lhe escreva a história de Madame de Fayel, e ordena-
me que lhe diga a verdade, como se eu estivesse acostumado a escrever ou dizer
outra coisa. Sinto que Vossa Alteza me não dê outra qualidade de 5 ordens, em que
eu pudesse fazer algum sacrifício, porque executar a de dizer a verdade, além de
ser a minha obrigação, é o meu costume.
Há-de Vossa Alteza saber que a dita história se passou pouco mais ou menos
- quero dizer, sem tirar nem 10 pôr - da forma seguinte: O senhor de Couci amava a
senhora de Fayel, da qual era correspondido. O desejo de se distinguir o obrigou a
ir à Terra Santa, que era naquele tempo o lugar próprio em que ele podia mostrar
valentia. Conseguiu o seu desejo, 15 adquiriu muita glória, e conservou sempre o
seu amor. Estando para voltar carregado de louros e de constância, achou-se em um
sítio onde desgraçadamente foi ferido no lado. Julgou-se mortal a ferida, não se
intimidou com a sentença, e dedicou os últimos momentos da vida à sua amada.
Escreveu à senhora de Fayel, encerrou a carta em 5 uma pequena caixa com todas as
que ela lhe tinha escrito e com todas as prendas que lhe tinha dado ou mandado,
chamou ao estribeiro e, depois de o obrigar de fazer juramento de cumprir
inteiramente o que ele dispusesse, lhe ordenou que abrindo o seu 10 corpo depois de
morto lhe tirasse o coração; que o salgasse, o metesse na mesma caixa, entregando-a
à senhora de Fayel. Faleceu pouco tempo depois, tendo conservado sempre na boca o
nome da querida senhora. O estribeiro executou a promessa e 15 veio a França com o
coração do seu amo e com a caixa das cartas. Escondeu-se em um bosque junto da
casa do senhor de Fayel, buscando ocasião de entregar a dita encomenda à esposa.
Entrando por desgraça no bosque o senhor de Fayel, encontrou 20 e conheceu o
estribeiro do senhor de Couci. O ciúme, que o pungia havia muito tempo por motivo
do comércio que a mulher tinha com ele, o enfureceu de tal forma que lançando uma
mão ao estribeiro lhe mostrou a morte com a outra, se ele lhe 25 não confessasse a
causa que o trouxera àquele lugar. O estribeiro preferiu o bem da vida à honra de
ser vítima da paixão amante do amo, e contou o caso todo, justamente, ao cioso
marido, o qual voltando para casa não cuidou em coisa outra senão no género 30 de
vingança com que havia de castigar a mulher. Mandou guisar o coração do senhor de
Couci, e ordenou que se apresentasse este prato à mesa. Assim se fez, e a senhora
de Fayel achou este guisado tão excelente que o comeu todo. Disse-lhe então o
marido por ironia que ela tinha achado aquele pratinho tão gostoso que bem parecia
composto de carne que ela amava. Pouco depois se explicou, e declarando-lhe que
tinha comido o 5 coração do amante lho provou com as cartas e com as prendas da
caixinha. Consta que se não inquietou esta senhora exteriormente. Respondeu ao
marido que confessava que o manjar que tinha comido fora o mais gostoso que provara
na sua vida e que o 10 achara em tal forma esquisito e saboroso que, não havendo
bocado digno de ser saboreado depois daquele, não só tinha assentado, mas jurado,
de não comer outro algum. Disse e fez, sendo esta uma das senhoras que soube fazer
o que disse. Levantou-se 15 da mesa, fechou-se no gabinete e ali morreu de fome
poucos dias depois, tendo sempre diante dos olhos a ideia do amante. Constando a
sua morte aos parentes, estes a quiseram vingar, e causando muitos pesares ao
senhor de Fayel lhe fizeram tão 20 viva e tão forte guerra que foi necessário
interpor o soberano a sua autoridade para que lhe pusessem cobro.
Tomara eu que os senhores Franceses me dissessem com que direito e com que
razão se riem dos excessos e finezas dos Portugueses em matéria de amor, porque,
caso negado que esses 25 excessos e essas finezas fossem culpas e vícios
repreensíveis, é certo que se descobrem semelhantes acções de franceses que não
desmerecem, como esta, de serem contadas na 30 primeira ordem e na primeira
hierarquia das famosas constâncias ou extravagâncias do amor. Quanto a mim, não
acho diferença nas nossas finezas e nas deles que não seja na circunstância
seguinte: as finezas lusitanas são excessos muito sãos e os excessos gauleses são
finesas muito enfermas, porém na 5 qualidade de excessos e de finezas tudo são
crimes ou ridicularias.
Nós temo-nos emendado da extravagante constância dos nossos antepassados.
Muito mais finos ou muito mais refinados do que eles, sabemos gozar 10 dos prazeres
sem sentirmos os tormentos do amor. No seu tempo bastava que uma mulher fosse
bonita, que tivesse fidelidade e boa fé - se acaso isso se achava - para obrigar um
homem a que a amasse até o último suspiro. A inconstância era rara no 15 seu
século, e reputava-se como um crime injurioso. A formosura e o agrado duma mulher
eram então coisas que como agora se podiam destruir, porém o amor do amante não se
podia desvanecer. Finalmente, estimava-se a constância como a 20 virtude principal.
Porém, vendo os homens que desta virtude, que começaram a chamar loucura, se tinham
seguido muitos efeitos desgraçados e funestos, foram-se emendando pouco a pouco em
exercê-la, e aperfeiçoaram-se de tal forma no sistema contrário 25 que hoje tem a
inconstância moderna o mesmo lugar, estimação e uso que teve já a firmeza antiga.
Ainda que falo sòmente da instabilidade dos homens em matéria de amor, não imagine
Vossa Alteza que as senhoras mulheres são nele muito mais fixas do que nós que as
culpamos incessantemente de infidelidade nas suas correspondências e amizades, sem
5 mostrarmos porém o direito que temos para querermos usar sòmente desse
privilégio. Quanto a mim - enfadem-se muito embora os senhores homens - tenho
assentado em que devemos ser constantes e fiéis, ou permitir às mulheres que sejam
instáveis 10 e ligeiras sicut andorinha no Verão. A lei e o uso é necessário que
sejam recíprocos.
] Depois de contar a Vossa Alteza a história da senhora de Fayel não sei
verdadeiramente em que contos me tenho metido. Dizem, senhora, na minha terra, 15
que se dá o pé ao vilão e que ele toma a mão. Se tomei mais liberdade que a que me
foi dada escrevendo, creia Vossa Alteza que a não saberei tomar em alguma outra
acção e isso provo com toda a humildade e com todo o respeito, porque sendo 20
Vossa Alteza servida de me dar a mão por grandeza sua, eu não intento nem pretendo
mais licença que de poder beijar-lhe os pés. A pessoa de Vossa Alteza guarde Deus
por muitos anos.
[ title ] 26. |
A Soror Maria da Cruz, religiosa no convento das Portas do Céu de Viena,
remetendo-lhe um pintassilgo
Por mais resoluções que tomemos contra o sexo feminino, e por mais
conhecimentos que tenhamos 25 dos seus defeitos, creia Vossa Senhoria que não está
na nossa mão aborrecê-lo totalmente. Temos no coração um certo amor natural pelas
mulheres que cedo ou tarde vence e destrói toda e qualquer paixão que contra elas
formemos. O mesmo Pigmalião, concebendo ódio tão forte contra o sexo que
determinou passar toda a sua vida no celibato, ocupava-se em formar excelentes
estátuas de mulheres, divertindo-se inteiramente em dar-lhes os mesmos agrados de
que a 5 natureza as dotou. O seu coração falava nas suas obras sem que ele o
imaginasse, parecendo que a natureza se divertia em confundi-lo, obrigando-o a
buscar na arte um contentamento de que ele tinha resoluto privar-se inùtilmente.
10 Esta razão e outras semelhante que Vossa Senhoria me ouviu não são nem
podem ser constantes provas de que as mulheres são os meus ídolos. Dando-me a
assistência do campo um pouco daquele génio a que chamamos pachorra, direi a Vossa
Senhoria alguma coisa 15 nesta matéria. É verdade, meu senhor, que me prezo de ser
Pigmalião, homem que por fugir das mulheres tem quase o nome de besta, sendo metade
o de fera. Amo e respeito o sexo, porém não deixo de conhecer e de ponderar os
seus defeitos e as suas 20 imperfeições. Se o idolatro é com erro, porém como quer
Vossa Senhoria que haja idolatria sem culpa? Seguir o natural não é desdoiro da
razão. Render-se esta às paixões é no que consiste o descrédito do entendimento.
Estimar o sexo não é culpa sendo natureza, 25 porém elevar a sua qualidade ao termo
duma perfeição completa seria erro, porque é mentira.
Diga-se tudo quanto se puder dizer em seu louvor. Respeitem-se as mulheres
como quinta-essência das obras da natureza; reputem-se mais brilhantes que os
astros; creia-se que à vista dos seus bons olhos perdem os raios do sol o
esplendor; levantem-se altares aos seus merecimentos, perante os quais se prostrem
a que se prostrem e em que se sacrifiquem todos 5 os dias tropas de amantes e
bandos de adoradores que esperam do menor dos seus agrados a sentença dos destinos.
Tudo isto não é capaz de desfazer a ideia de imperfeição do sexo. Não falo
consoante a nossa ideia, mas consoante a delas Não falo da nossa ideia, da sua
mesma . Qual a deusa Qual destas a deusa 10 que não trocasse voluntàriamente a
divindade, os templos e os altares, para se ver no lugar de qualquer dos seus
amantes?! Qual a mulher que não seja capaz de fazer do fundo do coração a rogativa
que fazia Cénis a Neptuno? Se me quereis dar tudo, 15 fazei que eu não seja
mulher.
Como ainda quem não é amante deve ser caritativo, e como fazer bem ao
próximo em tudo o que se pode é obrigação imposta a todos, quero revelar a Vossa
Senhoria um segredo admirável que pode comunicar 20 a todas as que quiserem mudar
de sexo, indo Vossa Senhoria extinguindo pouco a pouco este género feminino que
mostra aborrecer, parece-me porém que sòmente no exterior. Toda a mulher que
quiser ser homem não tem mais do que tocar com uma vara em duas 25 cobras que
estejam enrodilhadas uma na outra. Instantâneamente verão o seu desejo cumprido.
Não seria, Vossa Senhoria nem as senhoras mulheres cuidando que zombo. A receita é
verdadeira e é dum homem que compôs muitos tratados sobre a mentira. É de Ovídio
e isso basta, pois que nos segura no livro III das Metamorfoses que Tirésias mudou
duas vezes de sexo com este remédio.
5 Tornando ao nosso caso, digo a Vossa Senhoria que, sendo os defeitos do
sexo conhecidos pelas mesmas mulheres, não há homem tão amante delas que lhos não
note. A cegueira não me parece que consista, como Vossa Senhoria diz, em buscá-las
e querê-las com os 10 mesmos defeitos que lhes consideramos. Quem ama Beltrão ama
o seu cão. Quem gosta de cerejas come as verdes e as maduras sem reparar em que
todas elas são danosas. Em Holanda vendem-se pùblicamente as laranjas podres, e
quem ali gosta 15 delas compra-as e come-as com esse grande defeito. O pão de
ervilha, o azeite de saibo, e o tabaco de ranço não se deitam na rua nem no mar.
Entram na boca e no nariz de muita gente boa, e há gente que gosta muito mais
dessas coisas quando têm 20 saibo, ervilha e ranço. O queijo com bichos é a
delícia de muitas pessoas e, finalmente, a mulher com todos os seus podres é
necessária e é boa à companhia do homem desde o princípio do mundo, por juízo e por
disposição do Supremo Criador de 25 todas as coisas.
No que consiste a meu ver a nossa cegueira, o nosso erro e a nossa
ignorância é em que cheguemos a estimar a mulher de tal forma que lhe consintamos a
autoridade de nos governar. O matrimónio por 30 mais que Vossa Senhoria o tenha
por monstruoso, é um sacramento respeitável que veneramos, porém não duvido que
pareça corpo disforme logo que a cabeça do marido se deixe governar ou arrastar
pela cauda da mulher. Desta debilidade, achada nos maridos, se segue a desordem, o
engano e o desgoverno que se observa nas mulheres procedendo 5 desse desmancho o
descrédito, a ruína e a perdição de uns e outros. Tenha Vossa Senhoria a paciência
de ouvir uma invenção, e verá que provo com ela a verdade do que lhe digo:
Tem a cobra duas partes inimigas do género 10 humano. Uma é a cabeça e
outra a cauda. Ambas adquiriam grande nome no tribunal das Parcas pelas qualidades
mortíferas que possuem. Houve um tempo em que estas duas partes debateram sobre a
preferência. A cabeça tinha andado sempre 15 adiante da cauda. Queixou-se esta e
disse: que tinha feito muitas léguas de caminho por disposição da cabeça; que era
injusto que fosse o mesmo toda a vida; que ela era irmã e companheira e não escrava
da cabeça; que tinham ambas o mesmo sangue e 20 que, logrando as mesmas qualidades,
se deviam tratar com igualdade; que ela queria governar a cabeça por algum tempo,
achando-se muito capaz de a conduzir com tanto acerto que não teria razão para
queixar-se. Consentindo a cabeça com cruel 25 bondade na pretensão, concedeu à
cauda a preferência que pedia. Começou esta a fazer um caminho tão cego e tão
errado que, dando umas vezes contra os penhascos, molestando-se outras contra os
troncos, e escapando em algumas dos pés dos 30 passageiros, debaixo dos quais se
metia imprudentemente, deu consigo e com a pobre cabeça, depois de cometer mil
desatinos sobre a terra, não menos que na Lagoa Estígia, que é um dos rios
infernais, onde acharam a morte, a sepultura e a perdição a que corria um tal
governo. Desgraçada cabeça que cai e que se sujeita a semelhante erro! Este é o 5
único que acho no estado que Vossa Senhoria condena e que eu me não fartarei jamais
de louvar. Basta de carta, e basta que tenhamos os nossos pareceres livres para
andarmos sempre nestas disputas. Perguntou-se uma vez por que razão o corvo é
negro? Respondeu 10 um sábio: - porque nenhum homem quis dizer até agora a loucura
de que era branco - dando a atender que, se houvesse um que a proferisse, não
faltariam muitos que a cressem. E se na candidez do santo estado do matrimónio tem
15 havido tantos homens que deitaram nódoas e fizeram tachas cegamente, que milagre
é vermos muitos de olhos fechados seguirem as mesmas pisaduras ou pisadas? Deus
guarde a Vossa Senhoria de andar no 20 estado em que se acham quase todos os seus
contrários, porque o entendimento, a lei e a religião nos dizem e nos obrigam a
crer que é muito pior. Monsieur de M dirá a Vossa Senhoria coisas muito diversas
nesta matéria. Eu sei, porém sei que nem a sua 25 amizade, nem a veneração que
tenho a Vossa Senhoria , sendo duas coisas ambas grandes, me farão mudar de juízo,
se ele não dá volta por outro princípio. Guarde Deus a Vossa Senhoria .
[ title ] 28. |
Ao príncipe Rodolfo Cantacuzeno, duque de Bessarábia, etc., recomendado-lhe a
senhora baronesa de Colmar
Se a baronesa de Colmar o permitisse, eu mesmo iria a Viena solicitar para
ela o favor de Vossa Alteza .
Como ela não quer usar de todo o poder que tem em mim, contenta-se com uma
carta de 5 recomendação. Eu lha dou como uma graça que me faz em recebê-la, e
escrevo a Vossa Alteza com tanto empenho a seu respeito, como se toda a minha
fortuna dependesse do sucesso que ela espera da equidade de 10 Vossa Alteza . Não
é o seu negócio o que eu recomendo; são os meus próprios interesses que ponho nas
mãos de Vossa Alteza a quem, de todas as obrigações que devo, esta será sem dúvida
a mais considerável. Guarde Deus a Vossa Alteza muitos anos
[ title ] 29. |
A Mademoiselle de M.*** Sobre a afectação e fereza das formosas
[ title ] 30. |
Ao senhor Dom Fernando P. de M. inimigo declarado do Matrimónio. Com a cópia
do que deve responder ao senhor C. de P. * * * que lhe propôs um casamento
[ title ] 31. |
À senhora Condessa de Roccaberti. Com a notícia dos amores de Filandro e de
Aspásia
Quer Vossa Excelência saber o princípio que houve para fim duma tão grande
afeição, copiarei aqui a carta que me escreveu nesta matéria o mesmo Filandro:
"Confidente do injusto desejo com que me 10 apartei de vós para ir visitar Alcandro
à sua casa de campo contra os muitos conselhos que me destes, tendes razão para
esperardes que vos comunique o sucesso que se seguiu ao meu intento.
Tinha eu, como sabeis, secreta e mui ardente 15 inclinação por Aspásia
antes que ela se unisse a este galhardo e amável homem que é presentemente seu
marido. Lisonjeava-me naquele tempo, e não sei se com razão, que Aspásia não
ignorava nem desprezava os meus afectos.
20 Sabeis que em todas as minhas acções cuidei sempre em me conduzir com
tanta prudência e discrição que, dissimulada e industriosamente, conservei a
reputação de homem sábio e virtuoso. Por este meio me foi muito fácil conseguir
que Alcandro, 25 à imitação de outros muitos, se enganasse comigo. A virtude
sincera e a integridade perfeita de que ele se orna o não encaminhavam a desconfiar
dos meus artifícios. Meu pai foi o único homem a quem as aparências da minha
virtude não puderam jamais 5 enganar. A sua grande penetração descobria o meu
natural debaixo de todos os disfarces com que eu o queria mascarar. O seu
carácter, naturalmente franco e sincero, lhe inspirava horror da hipocrisia com que
eu me livrava das censuras públicas. 10 Instruído duma das mais criminosas das
minhas extravagâncias, me favoreceu com repreensões e com documentos, porém
achando-me surda a toda a qualidade de exortações determinou deserdar-me deixando
os bens a um irmão que, realmente, 15 possui as virtudes que eu afectava com odiosa
ostentação.
Desde que meu irmão alcançou a intenção de meu pai, me deu a conhecer com
uma generosidade que eu não posso louvar bastantemente a infelicidade 20 que me
ameaçava, aconselhando-me que empregasse algum amigo que o dissuadisse de me tratar
tão severamente.
Achando-me na Quinta de Alcandro quando recebi estas notícias, apenas lhas
comuniquei se 25 ofereceu para mediar na reconciliação e persuadido eu que não
havia pessoa mais própria para este fim, aceitei com gosto os seus preciosos
oferecimentos.
Determinou Alcandro fazer uma visita a meu pai, e resolveu ficar três dias
na sua companhia para 30 poder insinuar insensìvelmente no seu espírito a
negociação. Esta ausência me facilitou as ocasiões de me explicar com a formosa
Aspásia e por um artifício digno da maior infâmia consegui dela a criminosa
promessa de nos encontrarmos secretamente no lugar mais oculto do seu jardim. 5
Era isto no segundo dia da ausência de seu marido. Chegou a hora determinada a que
a minha loucura chamava hora ditosa. Saí a esperar os meus amores, porém antes de
chegar a um pavilhão escuro do jardim, que era o lugar destinado para o 10
encontro, me encontrou um criado de Alcandro, o qual, despachado pela posta, me
trazia a alegre notícia de terem conseguido os seus bons ofícios com meu pai o
efeito desejado. O gosto, que Alcandro me testemunhava numa carta, de me ter
procurado 15 semelhante favor e o interesse que mostrava pelas minhas próprias
conveniências produziram instantâneamente no meu coração pareceres honrados e
virtuosos. Li muitas vezes a sua carta, e em cada regra achava uma expressão
generosa a meu 20 respeito. Aumentando-se o meu crime à vista da sua virtude, se
me apresentou com todas as circunstâncias agravantes, fazendo-se a minha
infidelidade mais odiosa, acusada pela vivacidade com que este generoso amigo se
empregava em meu favor. 25 Finalmente, vendo em mim mesmo a minha perfídia vendo
em mim a perfídia vendo em mim mesmo a minha perfídia com toda a sua infâmia, e
reflectindo, fiquei confuso de forma que não acertava a sair da minha perplexidade.
Como é possível, dizia eu, perder uma ocasião que solicitei com tanto
excesso! Será crível que 30 despreze a correspondência duma formosura que vem por
sua vontade entregar-se nos meus braços!? Temia com fundamento incorrer na sua
indignação e no seu ódio, obrando duma forma tão contrária às máximas que se acham
estabelecidas neste 5 mundo. Eram necessários combates mui violentos para me não
deixar vencer destas razões, que se faziam muito mais poderosas achando-se ainda
acompanhadas dum resto de minha própria paixão. Via de outra parte que enganava
pèrfidamente um 10 amigo, ao mesmo tempo que tinha nas mãos uma prova
inconstestável da sua fidelidade. Cada letra da sua carta repreendia vivamente o
meu intento. Parecia-me que Alexandre e Cipião, com outros, pagãos ilustres, se
erigiam em juízos contra mim, 15 mostrando-me que tinham sabido vencer nos
ferventes desejos da sua mocidade os encantos e as forças de semelhantes paixões
abomináveis.
Consistiu a minha felicidade em ter tempo para discorrer, não me podendo
seguir Aspásia no termo 20 que estava determinado. Longe de me impacientar com a
sua tardança, louvava a Deus e, cuidando nos meios de evitar o seu encontro, vi que
ela tinha entrado no jardim.
Achava-me pouco costumado a elevar ao Céu os 25 meus pensamentos, porém
atemorizado de me ver tão perto do precipício implorei o socorro do Criador.
Devendo voar para receber a minha amada, marchei com passos lentos e
repugnantes ao seu 30 encontro e, antes de pronunciar uma só palavra, lhe entreguei
a carta de seu esposo.
Logo que ela a leu me disse assim:
- Estou persuadida que todas estas expressões de meu marido são verdadeiras
e sou obrigada a confessar-vos que uma parte da boa opinião que faço da vossa
pessoa procede dos elogios que ele me faz contìnuamente do vosso carácter.
- Se devo parte da vossa estimação, disse eu, 5 a homem tão generoso, será
justo que pague a bondade com a falsa moeda de ingratidão?
Calei-me e fiquei firme, à mesma distância respeitosa, onde tinha proferido
estas palavras.
Confundiu-se Aspásia, fixou os olhos em terra, e 10 guardou profundíssimo
silêncio. Fatais combates foram os que provei neste momento crítico. Eu tinha
falado sem dúvida pela última vez, e um silêncio eterno se seguiria se a bela
Aspásia, conhecendo a minha dor e fazendo a minha apologia, me não 15 tirasse do
cruel estado em que me achava.
- Vejo, me disse ela, a desordem e o tormento. Uma acção tão honrada vos
engrandece, juro-vos sinceramente que desejo ter sido, como devia, autora dela,
porém, já 20 que fostes vós quem me mostrou o caminho, recebei a glória e o
contentamento de verdes que devo a vossa prudência a cobrança da minha virtude.
- Persuasões minhas, respondi, vos obrigaram a consentir no delito que não
executais; redundando 25 este todo contra mim, sou obrigado a castigar-me com uma
pena tão cruel como será a de vos não ver jamais na minha vida.
- Essa é a mesma resolução que eu começava a tomar neste momento, me disse
a nova e belíssima 30 penitente, porém vós vos avançais sempre em todo o caminho
virtuoso. Sem dúvida que não devemos tornar a ver-nos. O estado em que me acho me
obriga a retirar-me prontamente para a minha câmara, e devendo nós partir para a
cidade sem 5 demora, vos não será difícil achar pretexto legítimo para o fazer sem
vos despedirdes de mim.
Debaixo da agradável sombra dum jasmineiro me parecia Aspásia muito mais
bela que a mesma deusa dos amores. Começava a minha filosofia a titubear, 10
porém, separando-se Aspásia precipitadamente, me deixou acompanhado duma tão grande
tristeza que não pode ser explicável. Alcancei bastante império em mim mesmo para
a não seguir. Armou-se a minha razão neste instante de todas as suas faculdades.
15 Parece que a Divindade falava ao meu coração, impondo silêncio às minhas paixões
desordenadas. Obedeci às inspirações secretas e consegui que a verdade e a amizade
governassem plenamente o meu coração. Deixei o lugar funesto, parti para a cidade,
20 e juro-vos que esta acção me tem satisfeito interiormente de tal forma como
nunca os prazeres sensitivos me contentaram".
Se não há neste mundo, como digo a Vossa Excelência quem possa conhecer
Filandro nem Aspásia, também me 25 parece que não há quem os possa imitar. Uma
acção semelhante em matéria de vencimento próprio tem tão poucos exemplos que será
rara em muitos séculos. É certo que Filandro se determina a ir ver Paris, e
Aspásia sem dúvida que fez juramento de não vir mais a esta Corte.
[ title ] 32. |
Ao Reverendíssimo Padre Dom José Augusto, Clérigo Regular da Divina
Providência e Conselheiro da Consciência do Imperador Carlos VI. A respeito do
conhecimento dos homens pelas suas figuras
[ title ] 33. |
A Belisa, em resposta à sua primeira resposta
Tenho feito todo o possível, minha Senhora, para me esquecer de vós, porém
vejo que ainda 10 não aprendi coisa mais dificultosa, nem em que fosse mais mal
sucedido. Tudo o que me passa de amável pela imaginação chama à minha lembrança os
vossos agrados, que são igualmente honestos e feiticeiros. Acho-me doente, como
sabeis, porém 15 as poucas palavras que me escrevestes ou me melhoraram
inteiramente ou pelo menos me obrigam a não querer morrer.
Um homem que tivesse bastante moderação para vos amar sòmente como vós
quereis, seria sem 20 dúvida ditoso a vosso respeito. Poderia admirar a mais
agradável e a mais generosa beleza gozando tranquilamente da sua amizade. É porém
impossível, ou assim parece, que o desejo se encerre neste limite quando tem o
conhecimento e o verdadeiro gosto do que agrada. Em toda a vossa carta, assim
como nos vossas mínimas acções, há muitas graças que encantam. Elas me
enfeitiçaram de novo, e elas são que me fazem dizer-vos: adeus querida e ainda 5
mais querida do que vós imaginais.
[ title ] 34. |
A Belisa, estando para se ausentar
[ title ] 35. |
A Madame ... estando ausente dela
15 Quem é que me meteu na cabeça fazer jornadas se eu sabia muito bem que a
ausência havia de ser contrária à tranquilidade do meu coração? Jamais me vi tão
penetrado do vosso amor, e para contentar o meu busco por todo o caminho alguma
pessoa que vos conheça para poder com ela falar em vós. No dia em que saí de Viena
não encontrei quem me parecesse capaz de lograr tanta felicidade e assim não fiz
outra coisa mais do que semear5 suspiros por toda a estrada. No dia seguinte achei
em Melck um cavalheiro, cujo tratamento e postura me fizeram esperar que sem dúvida
vos conhecesse. Depois de nos falarmos com a prática comum e usada entre
viajantes, lhe perguntei logo donde 10 vinha. Disse-me que de Viena. Aumentando-
se as minhas esperanças, comecei a tratar em termos gerais sobre o capítulo das
damas da Corte e da cidade, e queixei-me de propósito que não há ali uma só que me
mereça o nome de formoso, para o 15 obrigar a que me dissesse o contrário,
nomeando-vos. O meu cavalheiro não entrou em dúvida, nem disputou o que eu lhe
disse; respondeu-me a tudo mui agradável e mui polìticamente. Cheio de impaciência
de querer falar de vós, lhe nomeei como uma 20 das senhoras, mais belas a Condessa
de M e lhe perguntei se a conhecia. Disse-me que a tinha visto e, lisonjeando-me
novamente a esperança, nomeei-vos também, e respondeu que vos não conhecia, dando-
me por causa que só uma vez estivera na 25 Ópera, e que ali tinha visto por acaso a
Condessa M... Parti no mesmo instante e deixei-o; e ainda que ele veio jantar à
mesma Hostiaria em que eu o fiz, o não quis ver. Sendo tão agradável a sua
conversação, como já vos disse, de que me serviriam 30 os seus discursos se neles
se não havia de tratar da vossa pessoa? Perdendo enfim toda a esperança de
encontrar alguém que vos conhecesse, dispus-me, para ter continuadas ocasiões de
falar de vós, a meter na cabeça do marquês, meu companheiro, 5 que ele vos amava.
Ele vai-se persuadindo que é verdadeira a minha ideia, e aceitei com sorrisos
engraçados as saúdes que eu vos faço à mesa com sorrisos maliciosos. confesso que
compro caro o gosto de falar de vós porque, consistindo a ciência 10 e a prática do
marquês na genealogia e grandeza dos seus antepassados tenho muito trabalho para
mudar os discursos que me faz nesta matéria em práticas que vos respeitem. Não
pretendo que me responda sempre ao que lhe digo, contento-me com 15 que me escute
e, por pouco que o marquês valha, sempre o estimo mais do que um eco e do que um
surdo, ainda que algumas vezes me parece morto, dormindo na carroça, com a mesma
quietação e majestade com que os senhores seus avós repousam 20 nos túmulos.
Quando atravesso algumas aleias, que são lugares mui saudosos para os amantes, é
quase mortal a lembrança que tenho da vossa formosura, a qual parece que se
fortifica com a dureza dos próprios troncos. Encontro algumas vezes rouxinóis 25
com os quais entendo que vos correspondeis, tendo-lhes ordenado que me penetrem o
coração com a ternura dos seus cantos, tão doces e tão engraçadamente executados,
que provam serem verdadeiramete vossos discípulos. Finalmente, a minha saudade, ou
outra coisa semelhante, me tem debilitado de tal forma que não posso ouvir o ruído
das 5 ribeiras, nem o sussurro dos regatos sem delíquios do coração. Olhando
muitas vezes para trás, digo cuidando que vos vejo: Me amareis vós para sempre?
Cras, cras, me respondeu hoje um corvo. Se eu entendesse a língua destes pássaros,
poderia 10 formar bom ou mau agoiro de sua resposta. Ainda que muitas pessoas têm
assentado de que todos os corvos usam deste vocábulo latino querendo com ele
explicar o dia de amanhã, tendo assentado em não dar crédito a essas opiniões sem
que saiam 15 confirmadas no dicionário que os animais estão compondo da sua língua,
no qual temo que o cras dos corvos signifique outra coisa mais diferente da que
suposeram até agora os mesmos sábios, mas não prudentes, que querem interpretar a
língua dos 20 brutos prezando-se muito de se entenderem com eles. Digo-vos que não
me entendo a mim mesmo, e se isto que padeço é saudade, juro-vos que não há nome no
mundo mais suave e que tenha efeitos tão penosos. Parto e fico, se é que pode
ficar quem 25 vai correndo a posta. Deus, que ùnicamente é e conhece a verdade,
vos guarde por muitos anos.
[ title ] 36. |
À senhora condessa de la Bourlie de Guiscard, marquesa de Laval, &c. com a
desculpa de lhe não dizer adeus
Pela minha saúde lhe digo a Vossa Mercê que teve muita razão, sendo certo
que se não pode achar gosto no gosto que é necessário comprar-se caro. Quando um
homem tem dado o coração a alguma 10 Clóris, parece justo que ela lhe não peça a
bolsa. A respeito dos serviços que se fazem, o criado é que deve ser pago e não a
senhora. Muito bem lho tinha eu dito a Vossa Mercê , se lhe não esquece, que não
era pelos seus olhos belos que esta bela lhe mostrava 15 tanta doçura. Para outra
vez Vossa Mercê me crerá livrando-se para sempre de se empenhar em amores de que
saia vergonhosamente rejeitado. Console-se Vossa Mercê e saiba que não é o
primeiro a quem esta desgraça sucedeu. A maior parte das mulheres 20 sempre amou
mais que lhe contassem dinheiro do que lhe dissessem finezas. O provérbio que diz:
se não há dinheiro, não há suisso , é certo, porém seria certíssimo se dissesse
também que não há Clóris nem Fílis se não há dinheiro. Este maldito costume é
velho e tem criado fortes raízes. Para o provar e para consolar a Vossa Mercê lhe
contarei uma pequena história, e se Vossa Mercê já a sabe não a leia.
5 Suponho que se lembra Vossa Mercê , ou pelo menos se deve lembrar dum
certo grande falador chamado Demóstenes, que com a sua lábia se fazia respeitar dos
povos e da nobreza, e com os seus ralhos fazia enraivecer o rei da Mecedónia. No
tempo em que 10 este arengador florescia em Atenas, vivia uma certa mulher chamada
Lais em Corinto, cuja formosura está em igual crédito com a retórica de Demóstenes.
Não havia coração que resistisse aos feitiços da beleza de Lais, nem que deixasse
de se render à 15 eloquência de Demóstenes. Ambos de dois eram comuns em trabalhar
para o público ainda que com suas diferenças. De Demóstenes não sei dizer como era
recompensado, porém pelo que pertence a Lais, sem dúvida que usava pagar-se muito
bem das suas 20 obras. Não estavam as suas graças expostas ao primeiro lançador,
os seus favores eram taxados porém em tão alto preço que ele deu origem a um
provérbio que dizia: não era permitido a toda a gente todo o mundo ir a Corinto .
Tendo a fama mostrado a 25 Demóstenes a formosura de Lais, creu que o provérbio se
não entendia com ele, julgando que esta famosa dama não poderia resistir ao encanto
das suas palavras. Neste caso escreveu uma carta a Lais, a qual, ainda que só
amava a prática, lhe respondeu. 30 Acelerou-se Demóstenes, deixou Atenas e chegou
a Corinto. Não alcanço nos historiadores daquele tempo de que modo ele fez a
jornada, porém um amante como Demóstenes é certo que foi pela Posta, ainda que
então não a houvesse. Entrando em 5 Corinto, fez encrespar e polvilhar muito bem
os seus cabelos, vestiu camisa lavada, cortou os cairéis às unhas, dizem muitos que
lavou as mãos, e julgando-se assim melhor do que Adónis, fez a sua primeira visita
àquela que imaginava mais bela que 10 a mesma Vénus. Achando que lhe excedia em
graças e em feitiços, inflamou-se, outros nos asseguram que se esquentara na sua
presença, e começando a batalhar com os seus lugares comuns empregou neles todas as
finezas, perfeições e forças da sua 15 eloquência. Disse-lhe mil sentenças sobre
um milhão de agudezas e de subtilezas discretíssimas. Nada disto foi oiro na
estimação de Lais, e entrando Demóstenes na questão de concluir o negócio pediram-
se-lhe dez mil dracmas, que eram na nossa 20 moeda uns tantos e quantos a que não
posso fazer a conta, sabendo porém que era uma grandíssima soma. Confundiu esta
proposição de tal forma a Demóstenes que ficou muito tempo sem dizer palavra, sendo
a primeira vez que se lhe secou a 25 boca. Finalmente, ganhando ele como Vossa
Mercê os movimentos do seu amor, respondeu fugindo: Não permita Deus que eu compre
tão caro um arrependimento . Furiosamente se tem filosofado sobre esta palavra de
arrependimento. O que entendo ao pé 30 de letra é que Demóstenes quis dar a
entender por arrependimento o mal gálico ou mal de França, a que os franceses
chamam mal de Nápoles, e a que naquele tempo se chamava em Atenas mal de Corinto.
Se Demóstenes se achava com as dez mil dracmas de seu para pagar o arrependimento,
é também circunstância de que muito duvido em honra do seu merecimento, porque, se
ele o tinha tal como nos afirmam as suas obras e os seus 5 panegiristas, como é
crível que possuísse um capital tão grande? As dracmas, e todas as mais espécies
semelhantes de moeda que correm pelo mundo com nome de dinheiro, fogem dos
oradores, dos poetas e dos retóricos como dos mesmos demónios. Isto é 10 tão
verdade como foi grande a confusão com que o nosso amante voltou da viagem.
Chegando a Atenas começou a declamar com toda a força contra os vícios do sexo, que
não se emendou.
Parece-me que Vossa Mercê se deve satisfazer com este 15 exemplo, porque
acho no sucesso de Demóstenes muitas circunstâncias com que se consolam as do seu.
Não é de agora que as damas vendem os seus favores. Há anos que entrei no
conhecimento do seu trato e posso jurar a Vossa Mercê que não recebi um 20 só que
não pagasse. Os Narcisos lambareiros, que se gabam de que não há beleza que não
prostrem aos seus ralhos e às suas bonitezas, não são mais do que uns loucos,
presumidos de retórica, que existem no mundo para riso dos que seguem as opiniões
25 contrárias. Trinta ducados deste país e dez moedas do meu têm obrado muito
maior efeito sobre o coração das formosas em um instante do que mil conceitos e
sentenças podem fazer em um século. Eloquência, merecimento, boa presença e outras
prendas semelhantes, são moedas que as mulheres já não recebem por dinheiro
corrente. Este é o meu parecer, e Vossa Mercê mandará o que for servido contando
que me não mande à fava em companhia de Clóris. 5 Guarde Deus a Vossa Mercê muitos
anos.
[ title ] 39. |
A mademoiselle P.* J.* G. * P.* repreendendo e criticando a sua avareza
[ title ] 40. |
Ao senhor cavaleiro de Belle-Ille, com a desculpa da mesma culpa que ele
tinha em matéria de correspondência
É verdade que não escrevi a Vossa Senhoria desde que saiu de Viena, porém
também é verdade que me 20 sobreveio um acidente que me tem embaraçado. Caí sem
saber como em uma preguiça tão preguiçosa, que não tenho coração para fazer coisa
alguma em que se considere o mínimo trabalho. Esta é a minha razão, porém qual é
a que Vossa Senhoria pode ter sendo um homem que escreve com tanta facilidade, que
faz cartas, bilhetes, elegias, sonetos, canções, endechas, silvas, bosques,
florestas, jardins, hortas, pomares, vinhas e palácios, duma mão para a 5 outra?
Porque me não escreveu Vossa Senhoria , e porque me não mandou alguma destas coisas
para aqui? Digo-lhe e redigo-lhe que é uma espécie de rico avarento que me tem
desprezado como um pobre Lázaro. Quando Vossa Senhoria me tivesse mandado duas ou
três 10 cartas com alguns versos por caridade, não se arruinariam por princípio os
seus tesoiros, e quando eu não tivesse bastante espírito para pagar a Vossa
Senhoria a esmola neste mundo, teria bastante consciência para pedir instantemente
a deus Apolo que desse 15 muita da sua graça a Vossa Senhoria no seu Paraíso ou no
seu Parnaso. Creio que Vossa Senhoria se não acha em estado de dispor de si mesmo,
e que entregou sem dúvida o seu coração àquela formosa de quem me disse tanto bem,
e que eu não pude conhecer antes 20 de sair desta Corte. Se assim é, perdoo a
Vossa Senhoria por amor dela, e se não é assim eu lhe perdoo por amor de mim mesmo
para lhe mostrar que estou tão preguiçoso que teria muita pena se quisesse fazer
qualquer estudo para vingar-me. 25 Guarde Deus a Vossa Senhoria muitos anos
[ title ] 41. |
À Excelentíssima Senhora Condessa de Roccaberti, com a história moral de
Natan e Mitridates
Ainda que não sou vosso pai, e ainda que graças a Deus não posso ser vossa
mãe, dizem-me que temos fraternidade contraída desde o tempo de Adão, e sobre ela
um conhecimento tão bem estabelecido 10 que por força está reduzido a amizade, se é
que há verdade nas cartas. Parece que estas qualidades havidas e por haver eram
bastante instrumento para fazer operar a caridade, advertindo-vos a respeito do mau
caminho em que andais, e do miserável 15 estado e estudo em que vos vemos.
Contudo se não fosse a ordem que me dais para que diga o meu parecer sobre
os vossos escritos, parece-me que ainda continuaria a mostrar que os ignoro, e que
me calaria nesta matéria para todo o 20 sempre, se é que há paciência que pudesse
bastar para cumprir um tal propósito.
Tenho conhecido que empreendestes imitar Gôngora, porém vejo que o não
conseguistes com felicidade, porque não há aqui homem nem mulher de bom juízo que
entenda o espanhol que não julgue pelos vossos versos que alguma enfermidade ou
outro acidente oculto desconcertaram os órgãos da vossa razão muito mais do que se
podia desconcertar o relógio da Torre de Santo Estêvão, se caísse 5 daquela
grandíssima altura em que se acha. Como me pedis que vos diga a verdade, isso
costumo e isso faço.
A respeito de Gôngora, haveis de crer que há um espaço infinito entre o
menos bom dos seus 10 versos e entre o menos mau dos vossos, de tal forma que no
mundo razoável se pode muito bem dizer sem afrontar-vos que vós e ele sois dois
antípodas.
O vosso estilo é justamente um dos mais estranhos que jamais se viu entre
os idiomas de que se 15 compõe a terra. Parece que escreveis sòmente com o fim de
dar tratos ao entendimento. A vossa intenção não se pode descobrir, e, por mais
que se trabalhe para adivinhá-la, não é possível que se consiga. Comentários,
glosas, interpretações e 20 conjecturas tudo é nada. Tudo é zombaria à vista das
vossas obras. Vê-se cada um dos vossos versos à parte sem se misturar com o seu
vizinho, e nesse caso tem sua espécie de significação, porém, se se cuida em
ajuntar dois, perde-se o Norte, dá-se com 25 a cabeça pelas paredes, e ninguém sabe
onde está o seu sentido. Algumas vezes me persuado que pode haver extravagância ou
galantaria encoberta nos ditos versos, porém aí é que está o diabo, sendo a que
mais me pica não poder chegar a conhecer que 30 qualidade de galantaria ou de
extravagância seja a vossa. Confesso que faríeis muito bem serdes tão escuro como
sois quando alguém vos obrigasse a escrever, porque nesse caso vos seria vantajoso
que se ignorasse o que queríeis dizer; porém se não gostais de serdes entendido,
quem é que vos impede que vos caleis? Há necessidade alguma neste mundo que vos
constituais nele importuno público, e que cuideis em nos romper a cabeça todos os
dias 5 porque a nossa civilidade nos embaraça de vos impor silêncio?
Porque não escolheis outra ocupação? Muitas vezes vos ouvi dizer que
caçais excelentemente. Por que razão vos não empregais neste nobre e 10 honrado
exercício? Juro-vos que não encontrareis fulosa que pese menos do que a vossa
prosa, e que não vereis alvéloa mais ligeira do que a vossa poesia. Que mal vos
fez a razão para quererdes afogá-la por todas as formas? Não bastava que fósseis
15 incompreensível na prosa? É possível que tenhais também de ser ininteligível em
verso? Creio que ouvindo dizer que a poesia é a linguagem dos deuses, vos
persuadistes que é necessário falá-la de sorte que os homens a não entendam, e isto
porque 20 não sabeis que a primeira qualidade dum bom escritor é a de ser
inteligível.
Quereis saber o que sucede a quem não quer falar como os outros falam?
Sucede que os homens entendidos o criticam, que os prudentes se 25 compadecem dum
espírito a que chamam perdido, e que apenas se encontram quatro estudantes, dois
frades e algumas mulheres loucas, que estimem os seus escritos.
É pena, vos confesso, que não vivêsseis no tempo 30 das sibilas e no dos
filósofos egípcios. Que dificultosos enigmas, que escuros logogrifos, que
misteriosos discursos e que incompreensíveis hieróglifos não faríeis? O admirável
dom que tendes da escuridade é certo que então vos daria grande esplendor. Agora
não tem algum. Já se não encontram adivinhadores, o nosso século é grosseiro, e
não se sabe 5 estimar nele a vantagem que lograis. Os homens do tempo presente
querem compreender com facilidade tudo o que ouvem e tudo o que lêem. Julgo que há
certos modos de escrever e de falar, aos quais se pode dar mais de um sentido
contendo 10 pensamentos ocultos, escuros e engraçados, porém o vosso escuro é duma
cor tão fechada que, passando todos os limites, parece que está fazendo figas a
dons mais preciosos que o da fala, dom que Deus nos deu para nos podermos exprimir,
fazendo 15 entender os nossos conceitos uns aos outros.
O que mais me desespera ou me confunde é a advertência, que fazeis nas
vossas obras ao público, de que cuidastes e trabalhastes para as pôr em limpo.
20 Chamais a estas obras postas em limpo, e como é que elas podiam ser
antecedentemente? Mostrai-nos, pelo amor de Deus, quais são as expressões e os
pensamentos que reprovastes. Se os que publicais limpos e claros são tais, como é
possível que os 25 outros fossem mais sujos e escuros? Creio que tendo expressado
o vosso pensamento como fazem os outros homens, achastes o estilo muito comum e
muito fácil à vossa fantasia e, para a satisfazer, julgo que vos traduzistes a vós
mesmo em tenebroso.
30 Isto é pelo que nos pertence, porém pelo que vos toca, confesso-vos que
tenho grande curiosidade de saber se vos entendeis a vós mesmo. Se me respondeis
que sim, dou-vos um conselho, e queira Deus que o acheis tão acertado como eu o
reputo proveitoso. Encaminhai-vos aos ministros de Estado desta ou de outra
qualquer Corte, e asseguro-vos que em lhe descobrindo o segredo da vossa cifra que
ela fará a vossa fortuna.
5 Tendes um grande defeito não distinguindo as coisas tristes das alegres,
e dando um mesmo tom aos epitáfios e aos epitalâmios. Parece-me que seria
conveniente seguirdes a vida eclesiástica, porque devendo pregar mui maviosamente
conforme o 10 vosso génio, nos excitaríeis todos à compaixão. Tenho, porém, um
aviso para vos dar neste caso e é que vos não encarregueis jamais, nem por zelo nem
por devoção, de acompanhar pacientes ao suplício. Estai certo que, com o acento
lúgubre de que 15 vos servis, os faríeis desesperar com as vossas consolações, e
tenho para mim que não haveria criminoso de tão mau gosto que não quisesse antes
morrer queimado vivo com outro confessor do que ser enforcado em vossa companhia.
20 Espero que vos não lisonjieis de que é a inveja a que me faz falar
assim. Seria o mesmo que correr contra um homem coxo ser invejoso da vossa
reputação. Há muitas coisas de que pedimos a Deus que nos guarde, e é certo que me
seria muito mais 25 conveniente ser falto de reputação do que ter a vossa em
matéria de escrever. Tudo o que digo, ainda que com pouca esperança, é sòmente
para reformar o vosso estilo. Pode ser que me fosse muito mais fácil empreender a
conversão de dez turcos. 30 O que vos tem posto como doido arrebatado é que muitas
pessoas ilustres, principalmente algumas mulheres e alguns frades maliciosos, vos
têm dito que as vossas obras são inimitáveis. Haveis de saber que todas essas
pessoas têm razão, porém vós não tomais as suas palavras no verdadeiro sentido que
elas têm. Observei que todo o mundo põe grande gosto em deitar a sua pedra sobre
um cão que se afoga.
5 Finalmente o que me parece mais acertado, no caso que não queirais
emendar o vosso estilo, é que renuncieis inteiramente a tudo o que se chama pena,
tinta e papel, empregando o dinheiro que nisso dispendeis em outras obras que vos
possam ser 10 meritórias. Se vos obstinais a escrever, persuadi-vos absolutamente
que não há pessoa que escreva como vós, porque ainda os autores menos hábeis não
deixam de lograr o sentido comum, que Deus foi servido dar a Adão e aos seus
descendentes, 15 para que falassem a fim de que se entendessem. Eu mesmo vos
servirei de exemplo.
Sabeis que me não prezo de escrever, e que me faltam todas as
circunstâncias necessárias para me poder jactar de tão nobre profissão. Contudo,
20 quando lerdes esta carta, haveis de achar clara, distinta e inteligìvelmente que
não vos tenho por um bom poeta ou por um grande orador, mas que também duvido de
que sejais um gramático suportável.
25 Eis aqui a verdade posta em pratos limpos. Pesa-me descompô-la, sendo
necessário mandá-la nua à vossa presença. Se, por falta de farda, se não parece
com as vossas obras, vesti-a ao vosso modo, e eis aí o maior castigo que podeis dar
à verdade 30 pela resolução de aparecer aos vossos rogos.
Remeto-vos outra vez o Epitalâmio, porque não me atrevo a guardar em minha
casa coisa tão infeccionada, em tempos em que todos fazem tantas prevenções contra
a peste. Guardai-o em vosso poder. O veneno natural não mata a quem o logra, e é
tirania comunicá-lo aos amigos, ou seja em verso ou seja em prosa, recipe e
requiesce .