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Dinâmica da aula:

1. Considerações iniciais

2. Contexto: etapas históricas da resistência de Loreta

3. Desafios do tempo: resistência feminina à ditadura

militar. Conquistas institucionais dos anos 80 e crise

de identidade dos feminismos.

4. Feminismo emancipacionista, busca da radicalidade nas

ideias e na ação. O feminismo é plural.

5. Desafios e inquietações do feminismo emancipacionista


1. Considerações iniciais (lugar de fala):

Este curso nos dá a oportunidade de partilhar a bandeira

histórica do revezamento geracional na luta pela

transformação radical da sociedade capitalista.

Neste momento somos aprendizes, todas e todos porque estamos

numa mesa virtual onde compartilhamos nossas ideias e nossas

vivências.

Obrigada pelo convite!


Creio que, debater os feminismos a partir

de aulas conceituais e de aulas que

apresentam personagens feministas e suas

contribuições permite dar visibilidade a

muitas mulheres e mais facilmente

apreender as circunstâncias históricas em

que se desenvolveu o feminismo. Uma

dinâmica pedagógica inovadora.


A dinâmica escolhida também reforça a compreensão de que estas

mulheres conseguiram responder a uma necessidade histórica

dada pelo período em que viveram.

É o registro de uma trajetória coletiva, assumida

individualmente naquela concepção de “ser genérico” a que Marx

se referia em seus debates sobre a alienação do trabalho.

Sim, Loreta foi a materialização dessa “consciência da

espécie” que assumiu os desafios de seu tempo histórico.


Se tiver tempo, ao final voltamos ao antigo debate do

papel do indivíduo na história.

As mudanças na sociedade são fruto de um processo

coletivo. Mas é importante interpretar os personagens que

surgem em seu desenvolvimento.

Esta reflexão se faz necessária para entendermos porque o

atual presidente, o tal “mito” chegou à presidência da

república
Revisitando o filósofo e teórico marxista russo Plekhanov:

“Um dado individuo, quaisquer que sejam suas

particularidades, não pode eliminar relações econômicas

determinadas, quando estas correspondem a um determinado

estado das forças produtivas.

No entanto, as particularidades individuais da personalidade

tornam-na mais ou menos apta a satisfazer as necessidades

sociais que surgem em virtude de relações econômicas

determinadas ou para opor-se a essa satisfação.


“Quando eu me for
(se eu me for)
Vão até onde eu não fui
Caminhos do ilimitado QUANDO EU ME FOR
Loreta Valadares
A face inédita do futuro
Sem fronteiras
Sem inimigo
Encontrem
Os meios Quanto possam
Da liberdade Limiares de um outro mundo.
E vão Sem oprimidos
Tão longe Sem classes.
E quando
As novas veredas
Do socialismo
Forem percorridas
Lembrem-se de que
Fui
Até o impossível freio
(Só que me faltou o tempo.)”

(1994, dez anos antes de sua morte)


Loreta Kiefer Valadares nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande

do Sul e mudou para Salvador, Bahia em 1949.

Seu pai, Kurt Kiefer alemão, judeu que chega ao Brasil em fuga

à perseguição nazista e sua mãe, Suely Campomar Kiefer,

brasileira com descendência espanhola.

Por 34 anos Loreta viveu com insuficiência cardíaca que reduzia

em 40% sua capacidade respiratória, portadora que era de

endomiocardiofibrose biventricular.
Apesar da grave limitação, Loreta dedicou toda sua vida a uma

militância revolucionária, apaixonadamente dedicada à

política, ao feminismo, ao amor e à poesia.

Integrou à organização política denominada Ação Popular

originada de setores da juventude católica

Posteriormente integrou-se ao PCdoB, ocupando postos de

direção e atuando na formação da militância até os últimos

dias de vida.
Loreta teve a capacidade de somar

coragem para romper amarras,

indignação contra o mal arbítrio,

inquietação teórica para contribuir

no debate feminista, amor para

partilhar com os que a cercavam e

poesia para registrar dores e

esperanças.
2. Contexto: etapas históricas da resistência de

Loreta Valadares:

a) Período das reformas de base do governo João Goulart - mudança

para a Bahia, na infância ambiente intelectual e cultural

intenso na família; na juventude, lutas por reformas de base,

quando inicia a militância no Centro Acadêmico Ruy Barbosa, na

Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Início da atuação na Organização Ação Popular.


b) Golpe militar de 1964 – resistência estudantil no Centro Acadêmico da

Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia até 1966.

Alteração na natureza da militância com centro no movimento popular e

operário, em São Paulo, e posteriormente em Minas Gerais.

Prisão, tortura em 1969 e diagnóstico de grave doença cardíaca.

Exílio, em 1973, na Argentina e Suécia e atuação em Comitê de Solidariedade

com a Luta dos Povos da América Latina.


c) Etapa da redemocratização, com a conquista da anistia, em 1979.

Retorno ao Brasil em 1980 com intensa militância política e

feminista na Bahia e destacada elaboração teórica.

Primeiros anos dos governos populares.


3. Desafios do tempo:

Resistência à ditadura militar

a) A geração das mulheres dos anos 60 enfrenta um mundo em efervescência,

com modificações estruturais em todos os terrenos, particularmente no

desenvolvimento científico e tecnológico estimulado pela corrida

armamentista e o surgimento da pílula anticoncepcional que provoca

alterações nos costumes. Diz Loreta: “Desejo de experimentação do

novo, sentimento de rebeldia, anseio de liberdade, vontade de mudar:

são os dínamos que movem os jovens do mundo inteiro”.


b) Sem ter adquirido percepção de gênero, ela revela em

sua biografia:

“Não tenho ainda nenhuma consciência formada sobre o papel

da mulher na sociedade, nem muito menos sobre a questão

das relações de gênero. Incorporo sim um sentimento difuso

de que, para a mulher tudo é mais difícil, as restrições

maiores, os espaços reduzidos”.


c) Esse contexto leva-a a radicalizar na sua militância estudantil,

após um ano nos Estados Unidos, em uma bolsa de estudos da American

Field Service. Retorna a Salvador e decide integrar-se ao Centro

Acadêmico Ruy Barbosa da Faculdade de Direito.

Surgem as primeiras pressões familiares e com o golpe militar

enfrenta perseguições políticas que dificultam suas atividades.

Decide avançar na militância deslocando-se para São Paulo e depois

para Belo Horizonte passando a atuar no movimento popular e operário.

É presa em 1969 e torturada junto com várias outras pessoas,

inclusive o seu companheiro, o médico Carlos Valadares com quem havia

casado.
d) A presença feminina na resistência à ditadura militar tem a imprecisão

da recusa dos agentes em assegurar a memória do período, e se soma à

histórica invisibilidade das mulheres em todos os terrenos da vida.

A Professora Olivia Rangel Joffily, em seu livro oferece alguns

indicativos que sugerem serem elas em torno de 20% a 25% dos presos

políticos e 10% dos mortos. Mas é preciso ressaltar seu papel na

resistência democrática. Elas estiveram na clandestinidade como Loreta e

tantas outras e na luta armada. Sem esquecer a participação que, pelas

circunstâncias ainda eram mais invisíveis, os apoios aos filhos, aos país,

aos irmãos, ajudando na infraestrutura, intermediando encontros, como

estafetas.
e) Loreta resgata particularidades da violência do Estado sobre a

mulher: “Fica claro, em todo relato, o tratamento diferenciado dado

à mulher na prisão. A tortura é carregada de conotação sexual,

explora-se o corpo da mulher, seja física ou psicologicamente.

Procuram, de todo o modo, diminuir e humilhar a condição de mulher,

abusam da exploração de sentimentos e emoções, visam destruir a

identidade enquanto mulher e a auto-estima. Utilizam-se dos

atributos de gênero para deles arrancar-lhes a raiz, aniquilando-

os. Abusam dos órgãos sexuais, fazem piadas grosseiras, falam

pejorativamente da aparência, exploram nossa pretensa fragilidade”.


f) O exílio para tratamento da

insuficiência cardíaca e para

articulação da solidariedade

internacionalista, na Argentina e na

Suécia, impacta na construção do

pensamento sobre as questões de

gênero.
“Durante toda a minha experiência de militância, prisão e exílio fui aos

poucos adquirindo uma consciência de gênero a princípio difusa e

inconsistente. Foi no exílio que me tornei feminista, alcançando arguta

consciência da opressão de gênero. Os direitos já conquistados pelas

mulheres na Suécia e em outros países europeus, as lutas e reivindicações

por igualdade nos postos de trabalho, por creches, por cotas de mulheres

nos cargos públicos, por exemplo, e outras bandeiras levantadas por grupos

feministas, elevaram minha percepção da discriminação de gênero e da

necessidade do desenvolvimento de um caminho próprio da mulher dentro da

luta de transformação de toda a sociedade”.


Conquistas institucionais dos anos 80
e crise de identidade do feminismo

a) Os anos 80 foram de luta pela construção democrática no

país, expressa sobretudo na aprovação da Constituição

de 1988 e no reconhecimento parcial, por parte do

estado, das demandas das mulheres, através de respostas

institucionais.
b) Loreta registra:

“É no calor deste desenvolvimento que hoje se pode considerar como

vitórias do movimento a incorporação da agenda feminista em uma miríade

de organizações governamentais e não-governamentais, a assimilação do

conceito de gênero nas proposições políticas, no discurso político, as

tentativas de elaboração de políticas públicas sob a ótica de gênero... É

assim que se tem generalizado projetos de quotas no poder, programas por

igualdade de oportunidades, leis de proteção ao trabalho da mulher,

planos contra a mortalidade materna e pela saúde integral da mulher,

entre outros”.
c) É bom lembrar que o período de redemocratização no Brasil

coincidiu com uma ofensiva neoliberal no mundo, especialmente na

América Latina, com diferentes processos de implementação em cada

país, readequando o estado e suas políticas à lógica do mercado. O

impacto sob o cotidiano das mulheres se expressa, de forma

contundente com a feminização da pobreza, a redução das políticas

sociais e com a perda de direitos conquistados.


d) Esta nova situação exige novas respostas do movimento

feminista. Revisito Loreta:

“Como todo o movimento, sujeito a vitórias e derrotas,

percorrendo caminhos e descaminhos, em marcha plana ou saltando

obstáculos, o feminismo alcança encruzilhadas, em que, como

Ariadne precisa puxar o fio para não perder o rumo. E do

emaranhado das teias que tecem o feminismo, o fio a ser puxado,

desde sua gênese, é o da radicalidade.”


4. Feminismo emancipacionista, busca da radicalidade nas

ideias e na ação. O feminismo é plural.

a) Os anos 80 foram marcados por grande mobilização da sociedade para que

se construísse uma nova institucionalidade democrática, superando a

estrutura do arbítrio herdada da ditadura. As mulheres brasileiras

tiveram papel de destaque nessa movimentação realizando inúmeros

encontros, assembleias, conferências para propor sua plataforma na busca

da igualdade jurídica. Expressão importante dessa pressão foi a conhecida

atuação do Lobby do Batom. A Constituição de 1988 assegurou importantes

avanços para as brasileiras.


b) A partir dos avanços na conquista formal de direitos o movimento

feminista enfrenta impasses sobre a nova agenda em torno de bandeiras

que unifiquem as lutas. É bom ressaltar que a luta feminista sempre

teve várias vertentes que se entrecruzam, se contrapõem e se

complementam num processo tenso de disputa de narrativas.

Este é o movimento real. O feminismo é plural. Mas necessita de somar

forças para garantir conquistas. Lembro aqui uma citação do livro de

Manuela DÁvila, Porque Lutamos, onde ela reproduz uma frase escrita

em cartazes de manifestações: “mulheres são como as águas, crescem

quando se encontram” (importante leitura).


c) Este é o momento em que o feminismo emancipacionista trava

intenso debate para se reposicionar. Procura enfrentar os

desafios teóricos para atualizar e reafirmar sua opção

marxista. E se dedica a reestruturar suas entidades dentro do

novo momento enfrentado pelas brasileiras. Muitas foram as

feministas comunistas que contribuíram nesse debate. Muitas

inclusive passaram por esse curso.


d) Loreta dá as bases do feminismo emancipacionista, nos seus

fundamentos teóricos e na ação das entidades. Recoloca o debate

sobre a controvérsia marxismo versus feminismo apontando-a como

falsa polêmica.

“É preciso enfrentar a pretendida controvérsia entre o feminismo e

o marxismo, resgatando, deste último sua inequívoca e pioneira

contribuição científica sobre as raízes da opressão da mulher e

retomar a perspectiva revolucionária sobre a luta de emancipação da

mulher”.

(Valadares, 2014).
e) Avalia as experiências socialistas em seus grandes avanços

e insuficiências.

Sugere que o Programa Socialista do PCdoB desenvolva mais a

questão de gênero. E apresenta sugestões, cujas medidas

essenciais são:

I. retirar a economia doméstica do confinamento privado;

II. redimensionar o papel da mulher na produção (o trabalho

tem 2 sexos);

III. reconhecer a função social da reprodução, da maternidade;

IV. garantir a real participação política das mulheres.


f) Destaca a mudança de eixo de mobilização da luta feminista que

se desloca para as trabalhadoras. Os sindicatos criam secretarias

da mulher, departamentos femininos. Ao mesmo tempo se dá intenso

debate contra cotas e medidas que ampliam a participação da mulher.

“Hoje, em meio à crise do capitalismo e a tentativa de implantação

do projeto neoliberal, em um mundo unipolar surge uma nova mulher,

fortemente afetada pelas mudanças ocorridas no processo de

desenvolvimento das forças produtivas, pelas inovações introduzidas

no mercado e nas formas de organização do trabalho e pelos atuais

mecanismos adotados para o enxugamento do estado”.

(Valadares,2014)
g) Propõe mudanças: redefinir a própria organicidades das

uniões de mulheres, suas instâncias, seu fóruns

deliberativos, procurando atuar como uma corrente nos

diversos setores sociais.

“E a nossa corrente emancipacionista atuaria como um

rastilho de pólvora que acenderíamos em todas as áreas do

movimento social”.
5. Desafios e inquietações sobre o emancipacionismo

a) A busca de respostas para os desafios teóricos que a luta

transformadora no mundo ainda enfrenta, foi uma preocupação de Loreta até

os últimos dias de sua vida. Ela partiu em novembro de 2004 e em 17 de

março do mesmo ano, próximo à definição sobre o transplante que ela iria

realizar, manda uma mensagem relativa aos limites da formulação teórica

acumulada no debate interno no PCdoB. E provoca: “Aguardo sua

resposta... Acho que estas questões levantadas dão suficiente motivação

para você sentir a "comichão" de garimpar respostas a questões teóricas

que estão ainda incompletas. Beijos, Loreta”.


b) E coloca sua inquietação com as questões levantadas pela Clara Araújo,

professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro:

“As opiniões de Clarinha me suscitaram muitas questões que me levaram a voltar a

perguntar “o que é emancipação?” E partindo do pressuposto de Marx de que a

“formulação de uma questão é a sua resolução” (Marx, A Questão Judaica in

Manuscritos Econômico Filosóficos, Edições 70, Lisboa, s/d pg 30), estamos no

caminho certo para desenvolver nossas ideias. É, Clarinha, suas observações me

obrigaram a recorrer à filosofia e ao pensamento filosófico marxista, que começou

tudo. Talvez tenha ainda que recorrer a origens ainda mais remotas como Spinoza,

Kant, Hegel, para compreender o sentido dado por eles à emancipação (e

liberdade!) e a Rousseau para compreender emancipação do ponto de vista do

liberalismo. Veja você aonde é que eu vou parar!!!!”.


c) O debate final de sua vida foi em torno do conceito de emancipação. -

“quem deve emancipar? quem terá de ser emancipado? que espécie de

emancipação está em jogo? que condições se fundam na essência da emancipação

que se procura?” (Marx, A Questão Judaica, in Manuscritos Econômico-

Filosóficos, Edições 70, Lisboa, s/d pg.39)

- “relação entre emancipação política e emancipação humana”; “confusão

acrítica da emancipação política e da emancipação humana universal” (idem

pg. 40)

- emancipação política e emancipação humana – política é um progresso mas

não a forma final de emancipação humana; é a “forma final de emancipação

humana dentro da ordem mundana até então existente”; (idem, pg 47)


É como se ela tivesse todo o tempo do
mundo pela frente... Oito meses depois
ela partiu.
d) Recolocando essas questões, Loreta contribui na compreensão

dos objetivos estratégicos da luta emancipadora das mulheres. Na

medida em que as sociedades capitalistas modernas lhes dão

relativa emancipação política, isto é, o reconhecimento formal de

direitos, poder-se-ia dizer que a emancipação das mulheres se

daria nos marcos mesmos das sociedades capitalistas. Mas, ao se

referir à distinção que Marx fazia entre “a emancipação política

e a emancipação humana”, ela alerta para que se possa compreender

os limites da primeira, reforçando a luta anticapitalista.


e) O debate continua. Novos aspectos foram colocados.

As feministas emancipacionistas não podem limitar os objetivos de sua luta à

conquista formal de direitos, à emancipação política. Devem ter como

perspectiva a busca de um “novo modo de vida, nos marcos de um novo projeto

de sociedade, o socialismo”, como diria o Professor Milton Barbosa, em sua

aula sobre Fundamentos Filosóficos do Feminismo Emancipacionista, em curso,

na UFBA.

Ressalta o Professor Milton Barbosa: a par da luta por um novo sistema

social – o socialismo – as emancipacionistas defenderão um novo modo de vida

que implica: a) reordenamento das condições de vida (econômicas, sociais e

ambientais); b) reconstrução do estilo de vida (hábitos, rotinas,

tradições); e c) consolidação de uma nova concepção de vida (valores e

ideias).
Continuaremos os caminhos desbravados por Loreta Kiefer Valadares.

E encerro com um poema seu, de 1997:

“Eu mergulhei Do oceano


nas águas vivas Poderosas ondas
de todos os mares E nelas surfei
e queimei minha pele. Meu corpo em choque
O corpo em brasa Revoluteando
Subiu à tona Para atingir
Para navegar As cristas encapeladas
O infinito Viajante que sou
Náufraga que sou Da esperança
Do destino. De todas as eras”.
Recolhi
VIVA A VIDA!

VIVA LORETA, A MENINA


QUE FITAVA OS ANDES!

Jô Moraes
08.06.2020

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