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MACONDO, A

DESCOBERTA
DA UTOPIA:
A CRÍTICA DA
HISTÓRIA EM CEM
ANOS DE SOLIDÃO.
Matheus Lenarth Cardozo
INTRODUÇÃO
O romance Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, publicado pela
primeira vez em 1967, conta a história da cidade mítica de Macondo, descoberta e habitada, desde seu
início até o seu desaparecimento total, pelos membros da família Buendía. Mais do que simplesmente
um palco para os acontecimentos do enredo, Macondo pode ser considerada como uma engrenagem que
tanto move as personagens pelas suas peculiaridades, quanto é influenciada e modificada pelos
acontecimentos que nela ocorrem. Eventos esses que não somente têm seus significados próprios dentro
da obra, mas que também aludem para a história da América Latina, com suas muitas repressões,
rebeliões, guerras e batalhas políticas travadas através de seus séculos, sintetizadas na narrativa dentro
do período de cem anos.
Na primeira cena, temos um certo coronel Aureliano Buendía, frente a um pelotão de fuzilamento, relembrando do dia que seu
pai o levou para conhecer o gelo, quando Macondo era então “uma aldeia de vinte casas de pau a pique e telhados de sapé na
beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas, e enormes como ovos pré-
históricos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 [1967], p. 7). Podemos perceber nessa breve descrição que Macondo se encontrava
então num período primordial da civilização, em que “o mundo era tão recente que as coisas careciam de nome, e para
mencioná-las, era preciso apontar com o dedo”. Tudo nesse mundo então era muito novo, aberto para a criação e para os
anseios daquelas viriam a habitar nele.José Arcádio Buendìa, o patriarca fundador de Macondo, não tinha a pretensão de fundar
a cidade onde fundou, e somente teve essa ideia após um sonho na primeira noite em que passou próximo ao rio onde ficavam
as tais pedras polidas.

Naquela noite José Arcádio Buendía sonhou que bem ali erguia-se uma cidade ruidosa com casas de paredes de espelho.
Perguntou que cidade era aquela, e lhe responderam com um nome que nunca havia ouvido, que não tinha significado algum,
mas que teve no sonho uma ressonância sobrenatural: Macondo. No dia seguinte convenceu os seus homens de que jamais
encontrariam o mar. Mandou que derrubassem as árvores para fazer uma clareira junto ao rio, no lugar mais fresco da margem,
e ali fundaram a aldeia (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 [1967], p. 31).
NOVO
MUNDO
Macondo é então o novo mundo, a terra que ninguém prometeu, mas que foi encontrada pela vontade de
alcançar a novidade, o inexplorado, antes mesmo de ser descoberta, assim como a América num todo. Nela
se depositariam as mais diferentes utopias, que invariavelmente entram em choque no momento em que se
encontram, motivados unicamente pelos anseios de homens em fugir de suas antigas vidas.
O objetivo deste trabalho é mostrar como Gabriel García Márquez faz uma ficção crítica da
história da América Latina, criando um espaço de interpretação para que o leitor consiga conectar o que é
narrado em seu romance, em que os acontecimentos valem por si mesmos, com os eventos marcantes da
história latino americana, influenciada pelas disputas de interesses diversos.
O MODO ALUSIVO
Para contar essa história de desejos, de ânsia por um lugar em que a história ainda não estava escrita, como era a
América no início de seus tempos, García Márquez não pretende fazer um registro documental e uma narração
focada em contar os acontecimentos os aproximando da historiografia dos acontecimentos, mas de criar a forma
ficcional do que se passou em Macondo, sem jamais perdê-la de vista, fazendo com que sua semelhança com a
história seja utilizada de maneira alusiva. Eventos envolvendo acontecimentos que podem ser associados ao que
ficou popularmente conhecidos como realismo mágico não usados em seu modo de narração como uma fuga da
realidade. O que ocorre dentro do seu modo de ficção não funciona assim. Sua criação se volta para a realidade de
outra forma, a de uma metáfora num sentido muito singular. Esses elementos, por mais distantes do que
conhecemos da lógica mundana, são utilizados para fazer uma alusão ao real, propondo uma interpretação e uma
nova visão da realidade que antes não era percebida.
ABERTURA
Nesse sentido, o romance se aproxima das obras de autores da primeira metade do
século XX, aquelas que Umberto Eco designou como “obra aberta”. Para Eco, toda
obra de arte está aberta para diversos tipos de interpretação, promovendo uma
liberdade interpretativa para os leitores. Utilizando de aparatos simbólicos, elas
criam o que Eco chama de “abertura”, para adquirirem uma significação própria pelo
intérprete que as recebe.
Esse conceito aparece em uma série de ensaios compilados sob o
nome Obra Aberta, publicado pela primeira vez em 1962, em que Eco argumenta
que as várias criações artísticas de diversas áreas, não somente da literatura, sugerem
significados mais do que os evidenciam, o que chama de “poética da sugestão”,
criando uma fruição de interpretações para serem alcançadas pelo seu receptor.
Nas palavras de Eco:

Com essa poética da sugestão, a obra se coloca intencionalmente aberta à livre


reação do fruidor. A obra que "sugere" realiza-se de cada vez carregando-se das
contribuições afetivas e imaginativas do intérprete. Se em cada leitura poética
temos um mundo pessoal que tenta adaptar-se fielmente ao mundo do texto, nas
obras poéticas deliberadamente baseadas na sugestão, o texto se propõe estimular
justamente o mundo pessoal do intérprete, para que este extraia de sua
interioridade uma resposta profunda, elaborada por misteriosas consonâncias
(ECO, 1991 [1962], p 46).
FRANZ KAFKA
E GARCÍA
MÁRQUEZ
A principal influência artística de García Márquez nesse sentido é de Franz Kafka. A
forma de criação do tcheco no colombiano já foi até mesmo admitida pelo autor de
Cem Anos de Solidão em uma entrevista concedida no ano de 1981 a Paris Review.
Nela, García Márquez revela que não tinha o costume de escrever até sua adolescência,
mas tudo mudou no dia em que um amigo lhe entregou um livro de contos que
continha A Metamorfose.
O COMEÇO DA
ESCRITA
A primeira frase quase me derrubou da cama. Eu fiquei
muito surpreso. Na primeira linha se lia “Quando certa
manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos,
encontrou-se metamorfoseado num inseto monstruoso…”
Ao ler aquilo, pensei comigo mesmo que não sabia que
alguém tinha permissão para escrever coisas assim. Se eu
soubesse, já teria começado a escrever há muito tempo.
Então eu imediatamente comecei a escrever contos.
O modo de criação dos dois escritores foi também aproximado pelo crítico brasileiro Luiz Costa Lima,

LINGUAG em seu livro Redemunho do Horror (2003). Ele percebe essa similaridade e faz uma comparação dos
dois autores sobre o que é chamado por Kafka de “modo alusivo” de se empregar a linguagem. O tcheco

EM apresenta essa ideia em uma carta de 1917 trocada com seu fiel amigo Max Brod, comentando sobre seu
próprio tipo de arte, que embora repleta de acontecimentos estranhos, ainda consegue criar uma ponte

ALUSIVA
para dentro da realidade:

Para tudo que é externo [außerhalb] ao mundo sensível, a linguagem só pode ser empregada de modo
alusivo [andeutungsweise], mas nunca, sequer aproximadamente, de modo comparativo
[vergleichsweise], pois, no que concerne ao mundo sensível, a linguagem só trata da posse e suas
relações (KAFKA, 1917, p. 59, apud COSTA LIMA, 2003, p. 381).
A metáfora, para Kafka, não devia tanger ao mundo sensível,
não poderia ser comparativa a ele, mas uma alusão que nos faz
retornar o olhar para realidade com uma visão renovada. Ou
seja, o modo alusivo indica não para o núcleo, para seu sentido
literal, mas para o que pode ser interpretado para fora de seu
núcleo metafórico. Na impossibilidade da linguagem alcançar o
que é externo ao mundo sensível, o modo alusivo entra para
criar essa relação e torná-las mais próximas, sendo então não
uma comparação, mas um outro modo de explicar o que não
está perceptível em sua superfície.
NA VISÃO DE
RAMA
Os elementos maravilhosos entram na narrativa de García Márquez de modo alusivo, para explicar os dois mundos, o
sensível e o externo. Por isso a narração não deve ser feita criando dúvida dos acontecimentos, eles devem ser narrados com
veracidade, pois para Kafka e García Márquez, o único modo possível de atingir o mundo externo é por essa ponte de
alusões. Esse aspecto também é percebido pelo crítico uruguaio Ángel Rama, seu texto analítico sobre a obra do autor
colombiano, La narrativa de Gabriel García Márquez: Edificación de un arte nacional y popular, escreve:

García Márquez entra directamente a la afirmación de un mundo maravilloso como afirmación categórica. No hay duda
alguna de que Remedios, la bella, asciende al cielo en cuerpo. No hay duda alguna de que las mariposas siguen siempre
rodeando los amores pasionales de Meme y Mauricio Babilonia. Estos son hechos que ocurren en la afirmando la realidad
de los diversos episodios. Claro está que el autor algún momento pudo pensar que era posible presentar, y lo hace, la
realidad instalada dentro de la literatura como suficientemente insólita, para que al acercarse a lo original, lo novedoso, lo
extravagante, pudiera rozar lo fantástico (RAMA, 1985, p. 238-239).
HISTORICIDADE
O acontecimento então não é um fato isolado da narrativa, ele apenas está inserido num
contexto em que é possível de ocorrer dentro de seu mundo, não precisando de mais
explicações exatamente por não ser nele algo que rompa com a sua própria lógica.
Abordada como é a narração desses eventos, ou seja, o modo alusivo, resta
ainda compreender para o que apontam as alusões de Cem Anos de Solidão e o que eles
significam. Nesse sentido, voltando a Costa Lima, ele tanto elucida a diferença para
Kafka como para o que eles apontam:

Em suma, o “modo alusivo” em García Márquez não aponta, como em Kafka, para a
ambição de formular o mundo não sensível, mas sim para o caráter de sua obra: dizer
sobre sua historicidade (geschichtlichkeit) do sensível, sem se prender à
correspondência com o que, de fato, aí é passível de suceder. Em poucas palavras o
episódio destacado e a dificuldade de compreendê-lo remetem à raiz da literatura: seu
caráter de ficcionalidade (COSTA LIMA, 2003, p. 382).
MACONDO,
AMERICA
Se percebermos Macondo como o lugar almejado e construído já com um determinado anseio,
com um desejo de algo novo, então logo não será difícil de tratar de que sua invenção ocorreu
ainda antes de seu descobrimento, assim como a América. A Invenção da América (1958), livro do
historiador e filósofo mexicano Edmundo O’Gorman, trata exatamente da ideia de que a América
foi inventada antes mesmo de ser descoberta.
De acordo com O’Gorman, o mundo em que os europeus - até mesmo os
navegadores e exploradores como Colombo e Vespúcio - viviam era um lugar que acreditavam
estarem presos. Mundo esse criado por Deus, com toda sua benevolência, e que o homem apenas
habitava e o Criador aceitava sua presença. O homem se sentia limitado a um mundo que não
fora criado por ele, que não imaginava poder fazer mais do que por ele vagar. Mas já almejavam
um lugar em que essa visão pudesse ser mudada, um lugar em que o dominante não era a
natureza, mas sim seu poder de modificá-la pela sua vontade e seus desejos. A chegada de
Colombo ao Novo Mundo, que inicialmente acreditou ser a Ásia, seria o ponto de encontro entre a
ideia inventada e a possibilidade de materializa-lá.
Nas palavras de O’Gorman:
Colombo achou um pedaço de terra austral, cuja existência ameaça a antiga visão fechada e
provincialista do mundo. A questão é clara: a partir do momento em que se aceitou que o orbis
terrarum era capaz de ultrapassar seus antigos limites insulares, a arcaica noção do mundo como
circunscrito a uma só parcela do universo, bondosamente destinada por Deus ao homem, perdeu
sua razão de ser e se abriu, em troca, a possibilidade de que o homem compreendesse que no seu
mundo cabia toda a realidade universal de que fosse capaz de se apoderar, para transformá-la em
casa e habitação própria; que o mundo, consequentemente, não era algo dado e feito, mas algo que
o homem conquista e faz, que lhe pertence, portanto, a título de proprietário e amo. [...] É claro que
se o mundo perdeu sua antiga natureza de cárcere para converter-se em casa aberta e própria, é
porque o homem, por sua vez, deixou de imaginar-se a si próprio como um servo prisioneiro para
transfigurar-se em dono e senhor do seu destino. Ao invés de viver como um ente predeterminado
num mundo inalterável, começou a se imaginar como dotado de um ser aberto, habitante de um
mundo construído por ele à sua medida e semelhança (O’GORMAN, 1992 [1958], p. 184-186).
A AMÉRICA
INVENTADA
Podemos perceber pelos estudos de O’Gorman que a América foi inventada para ser não somente um continente
para ser explorado, mas o lugar onde se despejar todos os pensamentos utópicos do homem europeu em criar um
mundo ao seu modo e semelhança. Resumidamente, a Europa fez da América a sua utopia. Mas essa utopia estava
desde de sempre fadada pelo engano criado no anseio de fazer ser a América aquilo que ela não era e jamais
poderia ser.
Muito bem observa Carlos Fuentes em seu ensaio García Márquez e a Invenção da América,
que esse é um dos modo de ver é a constante falha em reproduzir a utopia e os conflitos causados até esse
fracasso:

Um dos modos de ver a história latino-americana, então, é como um peregrinação que vai da fundação da utopia a
uma epopeia cruel que degrada a utopia em se a imaginação mítica não intervier para interromper a investida da
fatalidade e tentar recuperar as possibilidades de liberdade. Um dos aspectos mais extraordinários do romance de
García Márquez é que sua estrutura corresponde a historicidade mais profunda da América Latina: a tensão entre a
utopia, a epopeia e o mito. A fundação de Macondo é a fundação da utopia (FUENTES, 1989, p. 231).
MACONDO O crítico americano Fredric Jameson, em um texto publicado em 2017, também percebe a

PARA JAMESON relação de Macondo como sendo a representação de um mundo novo, ainda intocado pelo
Velho Mundo, coberto ainda pela solidão, como estava a América antes da invasão:

Macondo é um lugar longe do mundo, um novo mundo sem relação com um velho que
nunca vemos. Seus habitantes são uma família e uma dinastia, embora acompanhada por
seus companheiros de expedição fracassada, que apenas aconteceu de terem chegado a esse
ponto. A solidão inicial de Macondo é uma pureza e uma inocência, uma liberdade de seja
lá que misérias mundanas, esquecidas nesse momento inicial, esse momento de uma nova
criação [..] Lembremos que o fundador mítico, José Arcadio, partiu do Velho Mundo
“procurando uma saída para o mar” (desencorajado pela sua descoberta de um pântano
primitivo, ele se assentou na posição a meio caminho de Macondo). O espaço de
independência (e solidão) é, portanto, algo parecido à tentativa de tornar-se uma ilha.
JOSÉ ARCADIO BUENDÍA
Precisamente, a citação de Jameson aponta para José Arcadio Buendía, que, por seu nome, indica alusivamente a sua busca pela criação de
uma utopia, sonhada e almejada antes da própria fundação. O conflito entre a utopia e a utopia e a verdadeira face entra em cena em
diversas cenas do romance, como quando José Arcadio Buendía finalmente compreende o sonho com espelhos que teve antes de fundar
Macondo:

José Arcadio Buendía não conseguiu decifrar o sonho das casas com paredes de
espelhos até o dia em que conheceu o gelo. Então acreditou entender seu profundo
significado. Pensou que num futuro próximo poderiam ser fabricados blocos de gelo
em grande escala, a partir de um material tão cotidiano como a água, e construir com
eles as novas casas da aldeia (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 [1967], p. 31-32).
CIDADE DE ESPELHOS
Inclusive, na cena em que José Arcadio Buendía conhece o gelo, acredita ser diamante, sendo
corrigido apenas pelo cigano que o acompanha.A cidade que almeja é uma de diamantes, espelhos,
mas tudo que existe realmente em possibilidade é o gelo, que ainda assim tenta fazer virar sua
utopia. Voltando ao mesmo livro de Costa Lima, temos a argumentação de que essa miragem de
José Arcadio Buendía está de acordo com o pensamento utópico, assim como das novas ideias da
substituição de Deus:

A ideia que engendra em converter Macondo em uma cidade feita de gelo seria isomórfica a uma
cidade utópica, cujas casas fossem “paredes espelhadas e, simultaneamente, uma cidade em que o
homem é perpetuamente confrontado com uma realidade que é a imagem especular de si próprio,
uma realidade criada por ele mesmo. E com essa realidade ‘externa’ coexiste com ele, torna-se para
sempre inseparável dele; um dualismo de quem não pode escapar” (Merrel, 1974, p. 24) [...] José
Arcadio se converte pois no análogo do “pensamento científico do século XVI”, em que o universo
concebido como uma máquina afasta as ciências da humanidade e Deus passa a ser substituído por
uma razão humana auto-suficiente, sua capacidade de formular as leis físicas. (COSTA LIMA,
2003, p. 390-391).
O FIM DA RAZÃO E O INÍCIO DA
POLÍTICA

As ideias utópicas de José Arcadio Buendía terão seu fim com sua percepção de que jamais
conseguiria burlar o fim da vida, notando que o tempo é sempre igual, e por isso jamais
controlável, o que o leva à loucura. Essa cena decreta o regresso de José Arcadio Buendía ao
tempo mítico, já que a partir dali passa a apenas se comunicar com o morto Prudêncio
Aguilar, homem morto por suas próprias mãos. Macondo é que jamais poderá voltar a ser
outra coisa que não uma utopia, almejada ainda de outras tantas formas. Começa então o que
se pode considerar como o tempo histórico do romance, já que a cidade se tornará alvo de
acontecimentos semelhantes ao do tempo do próprio autor.
Em quase toda essa parte posterior à queda para a loucura de José Arcadio
Buendía, seguimos na leitura o seu filho ajudante no laboratório de alquimia, Aureliano
Buendía. Mas ainda antes da loucura do pai, Aureliano havia se apaixonado por Remedios
Moscote, a filha de Apolinar Moscote, primeira figura política a aparecer em Macondo.
O PRIMEIRO POLÍTICO
Na primeira cena em que Apolinar Moscote aparece, já podemos perceber sua tentativa de moldar Macondo a sua forma de
moldar a cidade com suas burocracias, por querer que sejam pintadas as casas de azul em homenagem à independência
nacional, algo que José Arcadio Buendía se coloca convictamente contrário:
Dom Apolinar Moscote, o alcaide, havia chegado a Macondo sem fazer alarde. Baixou no Hotel do Jacob — instalado por um
dos primeiros árabes que chegaram barganhando bugigangas por araras — e no dia seguinte alugou um quartinho com porta
para a rua, a duas quadras da casa dos Buendía. Montou uma mesa e uma cadeira que comprou do próprio Jacob, pregou na
parede um escudo da república que tinha trazido na bagagem e pintou na porta o letreiro: Alcaide. Sua primeira providência
foi determinar que todas as casas fossem pintadas de azul para comemorar a independência nacional. José Arcádio Buendía,
com a cópia da ordem nas mãos, encontrou-o fazendo a sesta na rede que tinha pendurado no escritório acanhado. “Foi o
senhor que escreveu este papel?”, perguntou. Dom Apolinar Moscote, um homem maduro, tímido, de compleição sanguínea,
respondeu que sim. “E com que direito?”, tornou a perguntar José Arcádio Buendía. Dom Apolinar Moscote procurou um
papel na gaveta e mostrou a ele: “Fui nomeado alcaide deste povoado.” José Arcádio Buendía sequer olhou a nomeação.
— Neste povoado não mandamos com papéis — falou sem perder a calma. — E para que o senhor fique
sabendo de uma vez por todas, não precisamos de nenhum alcaide nem de corregedor nem de nada disso, porque aqui não tem
nada para ser corrigido (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 [1967], p. 65-66.
AS REVOLUÇÕES DE
AURELIANO
Começa a partir daí o período político de Macondo, e a talvez a mais
cheia de claras alusões à historicidade dos eventos vividos pelo autor. Se
inicia também a empreitada do coronel Aureliano Buendía, filho do
patriarca de Macondo, que pela sua proximidade com o sogro Apolinar
Mascote, se coloca na vida política.
A mudança de Aureliano ocorre após a primeira eleição de
Macondo, fraudada pelos conservadores liderados por Apolinar para que
vencessem. Aureliano, inconformado com esse ato, arma uma revolução
que derruba o governo conservador e se torna então coronel Aureliano,
aquele que ainda viria a promover contra o governo “trinta e duas
revoluções armadas e perder todas” (2021 [1967], p. 115).
A FICÇÃO E O REAL
Aureliano viria a se desiludir com a guerra, percebendo que a política era apenas a mesa onde negociavam os cargos de poder. Um
dos eventos destacados aqui sobre essas negociações aparecem de no romance de forma semelhante com o relato colocado na
autobiografia do autor, Viver para Contar, publicada em 2002:

Pouco depois começaram a chegar notícias contraditórias da guerra. Enquanto o próprio governo admitia os progressos da rebelião,
os oficiais de Macondo recebiam informações confidenciais da iminência de uma paz negociada. No começo de abril, um emissário
especial identificou-se perante o coronel Gerineldo Márquez. Confirmou a ele que, realmente, os dirigentes do partido haviam
estabelecido contato com os chefes rebeldes do interior, e estavam às vésperas de chegar a um armistício em troca de três
ministérios para os liberais, uma representação minoritária no parlamento e a anistia geral para os rebeldes que depusessem as
armas (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 [1967], p. 158).

Entre tantas notícias desencontradas, foi anunciado que Guillermo León Valência, o filho do poeta homónimo, fora lapidado e o
cadáver pendurado na Plaza de Bolívar. Mas a ideia de que o governo controlava a situação começara a perfilar-se logo que o
exército recuperou as emissoras de rádio que estavam em poder dos rebeldes. Em vez das declarações de guerra, as notícias
pretendiam então tranquilizar o país com o consolo de que o governo era senhor da situação, enquanto a alta hierarquia liberal
negociava com o Presidente da República metade do poder (GARCÍA MÁRQUEZ, 2002, p. 290).
O MASSACRE EM MACONDO
Outro episódio marcante dessas alusões, sendo também um dos mais fortes e mais importantes do enredo, é da grave dois trabalhadores de Macondo e
o massacre cometido pela indústria bananeira, um clara alusão a empresa estadunidense United Fruit Company, presenciado pelo personagem José
Arcadio Segundo. O acontecimento real também aparece na biografia do autor, mostremos então como as duas acontecem e como se relacionam:
No final de seu grito aconteceu uma coisa que não produziu nele nenhum espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a
ordem de fogo, e catorze ninhos de metralhadoras responderam no ato. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras tivessem sido
carregadas com balas de festim, porque ouvia-se a sua tosse arfante, e viam-se as suas cusparadas incandescentes, mas não se notava a mais leve
reação, nem uma voz, nem mesmo um suspiro, na multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, num
lado da estação, um grito de morte rasgou o encantamento: “Aaaaaai, minha mãe!” Uma força sísmica, um alento vulcânico, um rugido de cataclismo
explodiram no meio da multidão com uma descomunal potência expansiva. José Arcádio Segundo mal teve tempo de levantar o menino, enquanto a
mãe, com o outro, era absorvida pela multidão centrifugada pelo pânico [...]
Quando despertou, José Arcádio Segundo estava deitado de costas nas trevas. Percebeu que ia num trem interminável e silencioso, e
que estava com os cabelos engomados de sangue seco, e que todos os seus ossos doíam. Sentiu um sono insuportável. Disposto a dormir muitas horas,
a salvo do terror e do horror, acomodou-se do lado que doía menos, e só então descobriu que estava deitado sobre os mortos.
O MASSACRE EM MACONDO
Depois da meia-noite desabou um aguaceiro torrencial. José Arcádio Segundo não sabia onde havia saltado, mas sabia que caminhando
na direção contrária à do trem chegaria a Macondo. Depois de mais de três horas de marcha, empapado até os ossos, com uma terrível
dor de cabeça, avistou as primeiras casas na luz do amanhecer. Atraído pelo cheiro do café, entrou numa cozinha onde uma mulher com
um menino nos braços estava inclinada sobre o fogão.
— Deviam ser uns três mil — murmurou. — O quê? — Os mortos — esclareceu. — Acho que todos os que estavam na
estação. A mulher mediu-o com um olhar de lástima. “Aqui não houve mortes”, disse. “Desde os tempos do seu tio, o coronel, não
acontece nada em Macondo.” Em três outras cozinhas por onde José Arcádio Segundo passou antes de chegar em casa disseram a
mesma coisa: “Não houve mortes.” Passou pela praça da estação e viu as barracas de frituras amontoadas umas em cima das outras, e
tampouco ali encontrou nenhum rastro do massacre.
A HISTÓRIA VERDADEIRA
García Márquez revela que, mesmo procurando nos jornais, nunca soube exatamente o
número de mortos exato do massacre semelhante cometido em sua terra natal,
Aracataca, evento qur ficou conhecido como o “massacre das bananeiras”:
Mais tarde, falei com sobreviventes e testemunhas e esgaravatei em coleções de jornais
e documentos oficiais e apercebi-me de que a verdade não estava de nenhum dos lados.
Os conformistas diziam, com efeito, que não houve mortos. Os do extremo contrário
afirmavam sem um tremor na voz que foram mais de cem, que os tinham visto a esvair-
se em sangue na praça, que os levaram num comboio de carga para os lançarem ao mar
como a banana estragada. Assim, a minha verdade ficou para sempre extraviada em
qualquer ponto improvável dos dois extremos. No entanto, foi tão persistente que num
dos meus romances referi a matança com a precisão e o horror com que a incubara
durante anos na minha imaginação (GARCÍA MÁRQUEZ, 2002, p. 65).
A UTOPIA
José Arcadio Buendía, quando abandona a advinhação em favor da ciência, quando abandona o
DEGRADADA E O
conhecimento sagrado pelo exercício da hipótese, abre as portas para a segunda parte do romance:
a parte que pertence ao épico, que é um processo histórico em que a fundação utópica de Macondo FINAL DO
é negada pela necessidade ativa do tempo linear. Essa parte ocorre entre os trinta e dois levantes
armados comandados pelo coronel Aureliano Buendía, a febre da banana e o abandono final de
ROMANCE
Macondo - a utopia fundada, explorada e no final morta pela epopeia da atividade, do crime e do
comércio (FUENTES,.1989, p. 232).

Na final do romance, com Aureliano Buendía decifrando os pergaminhos deixados por Melquíades,
temos o fim da utopia degrada:

[...} antes de chegar ao verso final, já havia compreendido que não sairia jamais daquele quarto,
pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e
desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os
pergaminhos, e que tudo, e que tudo que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para
sempre, porque as estipes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre
a terra (GARCÍA MÁRQUEZ, 2021 [1967] 446).
CONCLUSÃO: A CRÍTICA DA
HISTÓRIA
Nisso, podemos compreender que o romance busca não apenas contar a história oficial, aquela que ficou
nos documentos, mas contar a história que levou aos conflitos pela utopia, pelos sonhos e os
acontecimentos mais fantásticos dos seres que lá passaram e fizeram nela a verdadeira história, que deve
ser contada e decifrada nessas páginas, para nos fazer refletir sobre o que seria a história oficinal. Carlos
Fuentes faz uma observação nessa posição:

Para saber, Macondo precisa contar-se toda a “verdadeira história e toda a história “fictícia”, já que o
tribunal aceita todas as provas, todas as provas recolhidas pelos contadores públicos, mas também todos os
rumores, todas as lendas, todos os mexericos, todas as mentiras piedosas, todos os exageros e todas as
fábulas que ningué escreveu [...]. A saga de Macondo e dos Buendía inclui assim a totalidade do passado
oral, lendário, e juntamente com ele ficamos sabendo que não podemos nos contentar com a história
oficial, documentada, dos tempo: que a história também é todas as coisas que os homens e as mulheres
sonharam, imaginaram e desejaram, todas as coisas a que deram nome.
REFERÊNCIAS
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015 [1962], p 46.

COSTA LIMA, Luiz. Redemunho do Horror: As Margens do Ocidente. São Paulo: Editora Planeta,
2003, p 381, 382, 390-391.

FUENTES, Carlos. García Márquez e a Invenção da América. In: Eu e os Outros: ensaios escolhidos.
Trad. Sergio Flaksman. Rio de Janeiro: Rocco Editora, 1988, p 231, 232.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem Anos de Solidão. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Grupo
Editoral Record, 2021 [1967], p 7, 31-32, 65-66, 115, 158.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver Para Contá-la. Trad. Maria do Carmo Abreu. Lisboa: Dom
Quixote, 2003 [2002], p 65, 290.

JAMESON, Fredric. Cem Anos de Solidão. In: A Terra é Redonda. Trad. Carlos Enrique Pissardo.
Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/cem-anos-de-solidao/. Acesso: 17 mar. 2024.

RAMA, Ángel. La narrativa de Gabriel García Márquez: Edificación de un arte nacional y popular,
p 238-239.

O'GORMAN, Edmundo. A Invenção da América: Reflexão a respeito da estrutura histórica do novo


mundo e do sentido do seu devir. Trad. Ana Maria Martinez Corrêa, Manoel Lelo Bellotto. São Paulo:
Editora Unesp, 1992 [1958], p 184-186.

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