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Estranhos Anjos

Textualidades
Luis Soares - Mestrado - Ciências da Comunicação
Março 1996

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Epizoo e Four Scenes from a Harsh Life

“Entre as muitas belezas e maravilhas do corpo humano, conta-se um sistema sensorial


extremamente articulado, parte do qual é agredida no processo de tortura com a
intenção deliberada de despoletar mecanismos de dor. A agressão inicial à parte
nervosa do sistema sensorial por intermédio de quaisquer meios de tortura tem como
fim produzir dor intensa.”1

Epizoo é o nome de uma instalação-performance da autoria de Marcel.Li Antunez,


ex-membro do grupo catalão de teatro de vanguarda La Fura dels Baus. Não é apenas
uma instalação porque exige uma actuação humana especializada, isto é, um executante
cujos actos ou simples presença ocupam um lugar específico na criação de sentido. Não
é apenas uma performance porque o sentido não nasce apenas da actuação e/ou presença
física do dito executante, mas sobretudo da intervenção dos espectadores. A faceta de
instalação nasce do facto de incluir um conjunto de dispositivos técnicos exteriores ao
performer, condicionando-o e ocupando lugar central na criação do sentido. É um pouco
de ambas, no lugar indefinido muitas vezes ocupado pela arte tecnológica.
Epizoo é constituído por um conjunto de dispositivos associado à figura humana.
Presos à cintura e à cabeça, mecanismos metálicos movem-se penumaticamente
carregando, puxando ou mexendo em partes várias do corpo seminu do performer. Esses
mecanismos são postos em funcionamento pelos espectadores que utilizam um
computador para os activar, seleccionando as partes do corpo em que desejam intervir
através de um rato que actua sobre um conjunto de imagens trabalhadas de Marcel.Li
Antunez. As ditas imagens apresentam-se numa estética distorcida e exagerada, como se
acentuassem a força do gesto pelo realce da representação da carne no ecrã. O conjunto
é completado por uma instalação sonora que vai acompanhando o processo em
sincronismo com luzes mais ou menos agressivas, de acordo com o que vão sendo as
escolhas dos espectadores. Existe igualmente um ecrã gigante que mostra o que se está a

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passar no ecrã do computador a todos os presentes, para além da pessoa que, no
momento, faz uso do computador. Em actuações mais recentes2, como na antiga
Jugoslávia, por exemplo, o conjunto começou a ser orientado para uma bipartição da
atenção dos espectadores: deixou de haver um centro claro no performer, para haver
aquilo que se adivinhava já, um recentramento na figura do espectador que manipula o
computador. Marcel.Li ganhou uma câmara portátil que pode apontar ao espectador,
sendo essa imagem alternadamente projectada no ecrã gigante para servir de espelho a
quem participa.
A “máquina” de Marcel.Li Antunez provocou sempre reacções diferentes
conforme os diferentes públicos a que se dirigiu: “E no México a actuação durou apenas
cinco minutos, tempo durante o qual duas turistas americanas, segundo ele [Marcel.Li]
«politicamente correctas», tentaram forçar os outros a não jogar e, face à sua falta de
atenção, desligaram elas próprias o computador”3. Se dúvidas houvesse de que a
máquina de Epizoo tem uma dimensão de tortura, elas desapareceriam perante o cansaço
do performer ao fim de uma hora, perante as marcas que os ditos instrumentos metálicos
deixam na sua carne, perante a recusa de parte significativa dos espectadores em
participar no jogo pelo horror da intervenção na carne.
A dimensão lúdica (no sentido puro de jogo) do processo constitui-se pela
conjugação de vários elementos. O primeiro é sem dúvida a presença do computador
como instância de agenciamento do controlo de tudo o que se passa, mesmo que
colocando o comando na mão do espectador. O rato e o ecrã instituem uma interface de
separação entre as escolhas feitas e o mover dos instrumentos de tortura sobre o corpo
de Marcel.Li. É como se espectador e actor mais não fossem do que input e output da
máquina que ocupa o ponto chave. Quanto ao performer, a sua imobilidade total,
exceptuando a movimentação forçada pela máquina, fazem dele um boneco, uma massa
manipulável indiferentemente no ecrã e na carne. O segundo elemento que acentua esta
separação é o facto de o sacudir de orelhas, puxar de nariz, levantar de nádegas, abrir de
boca e todos os outros movimentos possíveis, manipularem a carne mas não infligirem
dor manifesta e/ou visível. Todas as partes metálicas em contacto com o corpo são,
aliás, arredondadas e cobertas de borracha.

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A violência de Epizoo está condicionada no tempo e na profundidade dos seus
efeitos. É igualmente evidente que a pressão está fisicamente sobre Marce.Li, mas
psicologicamente sobre o espectador. A multiplicidade das solicitações sensoriais feitas
ao espectador (ecrãs, luzes, som, presença) criam uma intensidade artificial que tem
como efeito secundário uma ilusão de irrealidade ou impunidade. O computador tem
aqui papel central. Através dele é criado todo o dispositivo de sentido que actua sobre o
performer e não, como encontrávamos tradicionalmente na arte tecnológica, o contrário,
em que o processo de controlo estava inversamente centrado numa figura humana
usando a tecnologia como instrumento. O utilizador do instrumento, aqui, é o
espectador, um instrumento terrível porque instalado como torturador. O momento-
chave em que o espectáculo se perde ou ganha no seu sentido artístico é exactamente
esse ponto em que o espectador percebe a não impunidade do uso do computador, em
que percebe a presença do humano, muito mais forte do que toda a restante sinestesia
multimediática.
Experimentar a relação corpo-tecnologia é aliás tema central de grande parte da
chamada arte tecnológica contemporânea. Mas para percebermos como essas relações
passionais se delimitam hoje e se podem limitar ainda no futuro, temos de perceber de
que falamos quando falamos de corpo. Epizoo instaura a dúvida e o questionamento nas
fronteiras da interacção máquina-corpo. Four Scenes from a Harsh Life radicaliza o
problema do corpo em si e dos limites da violência sobre este.
“Acho que quero, intensamente, desafiar fronteiras, as noções antiquadas do
corpo. Hoje aceita-se a cirurgia plástica, o uso de esteróides, os liftings de pele, mas não
as tatuagens. Toda a gente está a ser impelida a mudar de forma à medida que a
tecnologia avança”4, afirma Ron Athey, autor e principal actor da pequena peça Four
Scenes from a Harsh Life em que põe em palco a história do seu corpo, as suas
fantasias, os seus sofrimentos, o seu fim. Ron é seropositivo, assim como parte do grupo
que o acompanha em palco. O seu corpo está quase integralmente tatuado, o cabelo
rapado, e veste-se com o mínimo de roupa possível de forma a tornar visíveis as ditas
tatuagens.
Todo o espectáculo de Athey gira sobre o choque e o corpo como arma desse
choque. Numa das cenas, Ron espeta agulhas na carne nua de uma das actrizes até esta

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desmaiar. Noutra, espeta agulhas em torno da testa como uma coroa de espinhos. Noutra
ainda, faz vários cortes nas costas de um actor com um bisturi. Depois usa toalhas de
papel para embeber o sangue. Finalmente vai pendurando as ditas toalhas numa corda de
roupa, fazendo-as circular por cima das primeiras filas da plateia.
O elemento fundamental do espectáculo é, sem dúvida o sangue, o sangue real que
brota das feridas dos actores e o sangue como símbolo da doença, como marca de um
corpo doente que usa a sua condição para interrogar os medos e os tabus do público. A
violência não inclui a participação dos espectadores, mas, pelo choque que institui,
torna-se muito mais presente do que em Epizoo. A violência do cruzamento do metal
com a carne é símbolo da violência da tecnologia sobre o corpo.
Este é o símbolo eterno da arma: o choque violento da carne com o metal.
O corpo de Marcel.Li Antunez é assepticamente manipulado através de um
computador. Uma máquina de processamento essencialmente simbólico e abstracto
permite tocar o corpo numa tortura doce, sem sujar as mãos. Os corpos ganham um
lugar singular, o centro é ocupado por aquela máquina que permite ligá-los
virtualmente, manipulá-los sem os tocar, mesmo a uma distância não inferior a dois
metros. Mas não é por isso que é menos tortura.
O corpo de Ron Athey é alvo de mutilação, de exposição, de exibição como marca
de um sofrimento não visível que é o da seropositividade. E o sangue é a garantia da
verosimilhança dessa violência, dos limites do corpo pela intervenção do metal. O
conjunto é bem mais chocante.
Em ambos os casos o jogo é o da tortura como forma mais intensa de realçar a
presença da carne num tempo dominado pelo simbólico em que todas as relações de
sentido, em que o lugar final do “eu” humano se encontra indefinido. A dor intensa
induzida no sistema sensorial, mais ou menos visível, em um ou outro caso, são marcas
de uma humanidade do corpo em mudança de estatuto.

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Intensidade e Interface

“They’re havin’ virtual sex


They’re eatin’ virtual food
No wonder these puppets
Are always in a lousy mood”5

O Multimedia é uma tendência recente no mundo dos computadores assim como a


Interactividade é uma novidade nascente no mundo da televisão. Um e outro têm como
função fundamental ampliar a intensidade da experiência tradicional do contacto
homem-máquina em ambos os casos. Ampliá-la até à fronteira da tortura, mas mantê-la
do lado de cá da intensidade sensorial, aquém da dor.
Derrick de Kerckhove diz, a propósito de uma experiência em que participou
sobre os modos de reacção do ser humano à televisão: “I drew two important
conclusions from that experience. The first is that television talks primarily to the body,
not to the mind. This is something I’d suspected for several years. The second
conclusion was that, if the video screen has sucha a direct impact on my nervous system
and my emotions, and so little effect on my mind, then most of the information-
processing was actually being performed by the screen”6.
Continuamos a falar da forma como as máquinas se dirigem primordialmente à
nossa paixão, à intensidade das nossas emoções vividas no corpo e não aos nossos
processos abstractos de pensamento.
As categorias tradicionais dos media confundem-se e as fronteiras esbatem-se. O
zaping, o simples gesto confortável de trocar de canal compulsivamente, institui uma
nova forma de nos relacionarmos às narrativas audiovisuais, entrecortando-as,
reconstruindo-lhes permanentemente o sentido, de tal forma que hoje o grande desafio
da televisão é prender a atenção do espectador, controlar a concentração dos seus
sentidos antes que estes se sintam tentados a procurar outras sensações. A televisão tem

6
de mudar o plano antes que o espectador o consiga fazer, tem de manter um contínuo de
atracção que impeça o espectador sequer de se levantar. Todo o sentido se dá a um nível
inconsciente de semiose pela sucessão de conjuntos cristalizados de sensações -
imagens. Essas são as regras do espectáculo, hoje.
O mesmo se passa no mundo dos computadores, dominados por categorias do
mesmo tipo. O hipertexto não é mais do que uma alteração do lugar do tempo da leitura.
O tempo deixa de estar inscrito na linearidade corrente de produção significante que é o
texto, para passar para a mão do utilizador que selecciona o ponto de partida, o percurso,
o ponto de chegada, o ponto da atenção. O Multimedia e, com ele, o hipermedia, vêm
baralhar tudo um pouco mais, adicionando a dimensão audiovisual ao hipertexto. E o
jogo continua a ser o mesmo do zaping. A febre de clicar, de actuar permanentemente
por oposição aos processos de recepção e de utilização instrumental da tecnologia
aproximam os processos contemporâneos da informática e do espectáculo. Hoje, o
entretenimento leva o envolvimento do espectador, categoria tradicional de construção
dramática, a novos limiares. Do mesmo modo a imagem do computador como
ferramenta está a alterar-se.
O limite exemplar deste efeito é o dos jogos, onde tudo acontece por acção do
utilizador, todo o movimento, todo o espaço, todo o tempo dentro do programa técnico
instituído e perfeitamente controlado, são ilusoriamente gerados pelo utilizador. É o
limite da Interactividade e do envolvimento.
A Realidade Virtual e os restantes processos tecnológicos conducentes ao
nascimento de um ciberespaço vêm realçar ainda mais estes processo como limite do
Multimedia. O Multimedia acrescenta som, imagem, movimento, penetração sensorial,
ao que era geralmente considerado apenas como a evolução natural das máquinas de
escrever ou das calculadoras. A Realidade Virtual recria um mundo dentro desse mundo
feito apenas de estímulos sensoriais e não de coisas. E estamos de volta ao universo da
televisão, uma sucessão dirigida ao corpo, ao conjunto dos sentidos, à paixão. A questão
da referencialidade perde toda a pertinência. Qualquer análise deve apenas concentrar-se
no processo de feedback homem-máquina, o instante em que a tecnologia ocupa o lugar
central, como actor actuando sobre o nosso corpo, limite último e primeiro da nossa
relação com ela.

7
Qualquer concepção instrumental da tecnologia perde o seu lugar de validade. O
jogo de captura da atenção do utilizador inverte os parâmetros tradicionais meio-fim.
Não usamos o computador para atingir um fim. O computador usa-nos para nos prender
os sentidos, para nos manter ligados. A fronteira entre tornar uma tarefa agradável e
fazê-la apaixonante (no sentido mais radical do termo) é ténue.
Hoje, os jogos que exigem acção mais frenética trazem na embalagem um aviso
quanto à possibilidade de provocarem ataques epilépticos nos utilizadores. Por outro
lado foram já instituídas classificações etárias quanto ao conteúdo e adequação a
diferentes públicos dos jogos de computador. Hoje a violência presente desde os
primeiros jogos (os mais simples resumiam-se a matar os extraterrestres) tornou-se
multimedia: salta sangue de um vermelho vivo, os corpos gritam antes de se
contorcerem, os cadáveres são explorados em detalhe. Esta evolução transformou-os
num objecto de desejo e de perigo, um símbolo da violência mediática. E não
precisamos de falar de combates e extermínios no ecrã, quando falamos de violência.
Um simples jogo de corridas cria uma relação intensa e próxima com o corpo do
jogador, que desvia a cabeça dos obstáculos que surgem no ecrã, inclina-se com as
curvas, etc.. Mesmo nos programas mais simples e longínquos de uma relação com o
corpo como processadores de texto ou folhas de cálculo, os botões animam-se e ganham
uma tridimensionalidade física, sons característicos, um conjunto de pequenos
pormenores destinados a potenciar a sinestesia da relação homem-máquina.
O resultado é simples: o computador aproxima-se da televisão, no sentido em que
apresenta no seu ecrã uma sucessão constante de instantes de intensidade sensorial que
nos condiciona o corpo antes de condicionar a mente. Esse é um dos motivos por que,
por exemplo, a maioria tem tanta dificuldade em ler textos no ecrã. O ecrã não se presta
ao passear do olhar por uma superfície de sentido, presta-se antes a uma percepção
sucessiva de unidades fechadas. E a modificação das interfaces (os dispositivos de
relação homem-máquina: ecrã, teclado, rato, colunas sonoras, etc.) acentuará
precisamente esta evolução conducente à intensificação da nossa experiência de relação
com a máquina. O envolvimento é, portanto, traço fundamental da tecnologia presente.
Nicholas Negroponte afirma uma mudança radical da nossa cultura da deslocação
de átomos para a deslocação de bits7, o mesmo que Paul Virilio descreve como uma

8
passagem “de l’espace de la matière au temps de la lumière”8. É como se se desse uma
desmaterialização na relação homem-máquina, em tudo contrária à nossa visão
tradicional de violência, centrada sobre a carne, sobre o sangue e, no entanto, como
vimos, a tecnologia apela cada vez mais ao envolvimento do corpo e os artistas não
cessam de a empurrar por esse caminho.
Diz Brian Eno: “You’re just sitting there and its quite boring. You’ve got this
stupid little mouse that requires one hand, and your eyes. That’s it. What about the rest
of you? (…) It’s imprisoning”9

9
Os Anjos

“O Virtual seria a sombra da experiência, onde o real pode finalmente aceder


sem terror nem violência”10

A nossa relação com os computadores é, contudo, na maior parte das vezes,


apresentada como sendo essencialmente imaterial, cerebral, uma relação pura de
controlo sem envolvimento do corpo. Em última análise, todos os processos que se dão
dentro de um computador são redutíveis a bits, estados eléctricos e lógicos binários
puros. Hoje, com as redes globais e a realidade virtual, indícios presentes de um
ciberespaço, é acentuada a nascença desse mundo inteiramente imaterial de
comunicação possível, imediata e sem fronteiras, de linguagem pura, de representação
abstracta.
Esta é a representação no senso comum do ciberespaço, como algo de
absolutamente imaterial, exterior, portanto ao corpo. E essa é a forma como a tecnologia
organiza a nossa presença no seu interior. Diz Michel Serres: “É fácil construir objectos
técnicos que cumpram um certo número de funções intelectuais. Mas há um limite para
essas funções. É o corpo.”11
É como se, de repente, a nossa presença nesse ciberespaço, as nossas conversas
virtuais, as nossas mensagens electrónicas, os documentos, sons, fotografias, desenhos,
videos e filmes, as nossas marcas imateriais nesse novo eter fossem inteiramente
desligadas da nossa realidade sensorial complexa e interactiva a que costumamos
chamar mundo real. É como se fosse reinstituída a mais tradicional das separações:
mente-corpo. É como se, no ciberespaço, fossemos anjos, sem costas, porque virados
inteiramente para o ecrã, sem sexo, porque sem interface possível com o complexo
sensorial “corpo”, mensageiros sem lugar, invisíveis, intocáveis, circulando sem destino
aparente, ocultos até à revelação como ponto de chegada.

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A invisibilização dos processos tecnológicos ganha novos foros no contexto
presente em que a naturalização das interfaces homem-máquina, o seu crescente
realismo, a procura da sinestesia como forma de anular a estranheza, acrescentam novas
camadas tecnológicas aos processos de controlo. Isto é. Quanto mais fácil e intuitivo se
torna, hoje, usar um computador, quanto mais recompensante e menos frustrante se
torna essa experiência, mais complexa se torna a tecnologia que a permite e menos
visíveis se tornam, perante o utilizador, os processos que a condicionam. Aqueles que
são capazes de resolver avarias ganham o estatuto de magos, os que conseguem penetrar
no sistema e usá-lo em seu proveito são criminosos, todos os restantes são anjos,
circulando invisíveis num sistema de controlo perfeito, materializados apenas no
instante da presentificação sinestésica.
A figura do anjo é particularmente rica para compreendermos a imagem que a
tecnologia procura hoje dar de si própria através de conceitos como o user-friendly. O
sistema perfeito não incluiria mensagens de erro, não permitiria sequer o erro. O mais
próximo que temos de isso são hoje os jogos. Mas quanto mais aberto o sistema, maior a
possibilidade de erro e eis que surgem as janelas de aviso, os modos de ajuda, os
processos de troubleshooting, os avatares e uma multiplicidade outra de dispositivos
destinados a conduzir-nos a um caminho seguro no ciberespaço. Estes anjos são como
símbolos de um controlo que se apresenta amigável no ciber-espaço. E depois, os
critérios dominantes que associam velocidade e eficiência, perfeição, os valores que são
crescentemente os do espectáculo, os do simulacro, acentuam a dimensão angélica de
um ciber-espaço asséptico e total, funcionando sem lugar para a transgressão, mesmo
porque a inclui e devora. As razões do sucesso da pornografia no ciberespaço devem-se,
sem dúvida ao facto de levarem ao limite a sua dimensão pura de representação
desligada da actualização.
A distinção que falta é entre “virtual” e “ciberespaço”. O virtual representa um
reequacionamento das categorias aristotélicas de potência e actual. O ciberespaço inclui
na sua etimologia a presença do controlo e se observarmos com atenção a forma como o
temos vindo a descrever, estamos perante um espaço perfeitamente fechado em si,
mesmo que desmultiplicável ad infinito, um espaço perfeitamente fechado sobre a sua
natureza essencialmente tecnológica, marcada pela figura do domínio. Se, virtualmente

11
somos anjos, no ciberespaço não nos escapamos a Deus, para prolongar um pouco mais
a metáfora,. Somos anjos ao serviço de um espaço fechado e total de controlo, de
omnipresença e omnisciência.
A única transgressão possível é o momento da desligação homem-máquina, o
momento em que deixamos esse mundo de anjos e voltamos a ter corpo. E é nesse
ponto, nessa fenda entre a nossa presença no virtual controlado (leia-se ciberespaço) e a
nossa existência enquanto carne, que se joga o futuro da tecnologia. É no cruzamento do
corpo, da carne enquanto espaço de fora do ciberespaço, com esse virtual fechado, que
se pode encontrar novas aberturas para a reflexão.
Vimos na primeira parte como a arte está a questionar, hoje, o lugar do corpo
como centro da emoção, da intensidade, da violência, da paixão. Vimos depois como,
materialmente, a ligação homem-máquina interroga igualmente o lugar do corpo,
mesmo sem interfaces mais complexas do que o rato e o ecrã. Nesta terceira parte vimos
ainda como no ciberespaço, o espaço simbólico do computador, o lugar do corpo está
ausente e se constitui em espaço de fora.
Restam algumas questões.

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A paixão simulada

“In the Age of Electricity, we wear all mankind as our skin”12

Estamos, portanto, bem no meio de um mar de contradições. O ciberespaço cria-se


como lugar da ausência do corpo. Esse é, talvez, o seu maior problema no processo de
chegada a um controlo total, a um feedback perfeito entre homem e máquina. Mas essa
ausência é temporária, circunstancial. Não seremos anjos durante muito tempo.
Ou então seremos anjos de um tipo novo.
A figura do ciborg (abreviatura de organismo cibernético), como imagem de um
novo tipo de homem em que o corpo se encontra perfeitamente integrado com a
tecnologia ganha densidade. “The computer, moreso than any other device in history, is
now making possible the augmentation of the human being. For the first time, through
electronic technology, human biology is no longer destiny. Through bionic prostheses,
bio-implants, and bio-chips, electronic technology can be integrated into the human
organism.”13 Esta perspectiva vê a integração da tecnologia no corpo humano como um
melhoramento das suas possibilidades. Levada ao extremo da manipulação, esta tese
defende que a integração orgânica entre biologia e tecnologia é a única maneira de o ser
humano se manter dominante sobre a tecnologia que cria. A tese contrária afirma a
inviolabilidade do corpo como reduto final do eu humano, mas parece desprezar, no
mesmo passo, todos os avanços da medicina moderna que caminham no sentido oposto.
Talvez seja um melhor ponto de partida para esta questão final, o conjunto de
temas que apresentámos anteriormente.
As interfaces caminham para a intensidade e intensidade quer, aqui, dizer
envolvimento, envolvimento total, envolvimento também do corpo e das suas paixões.
William Gibson descreve o ciberespaço como uma alucinação14, como um vício, quase
como uma droga. Os dispositivos de entrada nesse ciberespaço estimulam directamente
o cortex cerebral para simular as sensações de presença. O Ciberespaço define, sem

13
dúvida, um controlo técnico integral e total, um feedback permanente e aprisionante
para quem dele participe. A definição do lugar em que ele decorre, contudo, é mais
problemática porque, afinal, acaba por não ser definida nos parâmetros tradicionais da
paixão: corpo/mente, irracional/racional, etc. O descentramento do eu, sujeito e alvo da
paixão, permite hoje todas as possibilidades de sua recolocação.
“O que é novo é a capacidade de jogar com a razão e a paixão ao mesmo tempo.
Assim, enquanto que anteriormente o espaço diruno da razão estava nitidamente
separado do espaço nocturno do prazer, hoje com o novo espaço eclético essa distinção
começa a esbater-se.”15
A tecnologia perdeu a pureza do seu lado diurno, como realização de um
progresso associado à ciência. A paixão perdeu a pureza do seu lado nocturno, como
oculto da racionalidade abstracta, como irracional expulso para fora do projecto da
modernidade. As fronteiras não estão já na pele, nem no ecrã. A possibilidade que temos
de anular o controlo do virtual está na forma como soubermos posicionar nele o corpo.
Voltemos ao princípio.
Epizoo é uma obra sobre o controlo, a forma como a tecnologia o instituiu, não só
controlo abstracto, nem sequer controlo apenas do nosso pensamento, mas também
controlo das nossas sensações, do nosso corpo, das nossas paixões.
Four Scenes from a Harsh Life é uma obra sobre o corpo e a sua mudança e a
violência de qualquer mudança sobre ele. Por ser uma obra de arte é também uma obra
sobre o controlo, já que os actores auto-infligem a sua tortura, a usam como forma de
mostrar os limites dos seus corpos, das suas paixões.
Os anjos por que passamos no ciberespaço são já hoje uma ilusão. Como anjos, as
nossas paixões estão já presas aos ecrãs, aos ratos. Temos já a percepção de que o nosso
corpo é afectado nessa inteligência colectiva16 em que se transforma o ciberespaço,
mesmo que a tecnologia não entre em simbiose com ele, mesmo precisando de uma
interface visível.
A biotecnologia, a inteligência artificial, a realidade virtual, o projecto do mapa do
genoma são programas conducentes ao nascimento de um novo tipo de utilizador, sem
fronteira definida entre o humano e o tecnológico, sem a tecnologia como interface entre
o real e o virtual, mas sim como contínuo entre ambos.

14
Se a característica dominante da tecnologia é o controlo, se o controlo é um
fenómeno totalitário, por onde se libertarão as nossas paixões? Onde estão as margens?
Onde está a fronteira da simulação quando o simulacro é tão forte como uma
alucinação perfeita?
Perguntas por responder.

15
Notas

1 In “História da Tortura”, Edward Peters, Teorema, Lisboa, 1994 (original 1985) (p. 187)
2 Epizoo é um espectáculo com a duração de uma hora que percorreru já grande parte da Europa e também parte da América
Latina. Em Lisboa foi apresentado na abertura do Festival Atlântico, a 13 de Maio de 1995.
3 In “O Homem de carne e tecnologia”, Catarina Carvalho, Diário de Notícias, 15 de Maio de 1995 (p.35)
4 In “O faquir pós-moderno da Califórnia”, Catarina Carvalho, Diário de Notícias, 22 de Maio de 1995 (p.35)
5 In “The Puppet Motel” incluída no album “Bright Red”, Laurie Anderson, 1994
6 In “The Skin of Culture”, Derrick de Kerckhove, Sommerville House, Toronto, 1995 (p. 8)
7 In “Being Digital”, Nicholas Negroponte, Alfred A. Knopf, New York, 1995
8 In “La Vitesse de Liberation”, Paul Virilio, Galilée, Paris, 1995 (p.30)
9 In “Gossip is philosophy”, Kevin Kelly, in “WIRED”, nº 3.05, São Francisco, Maio, 1995
10 In “O controlo do virtual”, J. A. Bragança de Miranda, in “Tendências XXI: audiovisual - telecomunicações - multimedia”, nº 1,
Lisboa, Março, 1996
11 In “O limite é o corpo”, Catarina Carvalho, entrevista a Michel Serres in “Diário de Notícias”, 24 de Março de 1996 (p. 7)
12 Marshall McLuhan citado por Derrick de Kerckhove em “The Skin of Culture”
13 In “The Ethics of the Cyborg”, Steve Mirzach, disponível online em http://www.clas.ufl.edu/anthro/scholarly/cyborg-ethics.html
14 In “Neuromancer”, William Gibson, Ace Books, Nova Iorque, 1984 (p. 51)
15 In “O controlo do virtual”, J. A. Bragança de Miranda, in “Tendências XXI: audiovisual - telecomunicações - multimedia”, nº 1,
Lisboa, Março, 1996 (p. 55)
16 Ver “L’Intelligence Colective”, Pierre Levy, La Découverte, Paris, 1993

16
Bibliografia

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Maio de 1995
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