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Estas as últimas palavras de Sócrates, depois da cicuta, no Fédon de Platão. O que a frase-oráculo
instaura é urna rede entre o anúncio da manhã – tarefa do galo; a chegada da luz - tarefa da manhã; a
preservação da saúde – tarefa de Asclépio, deus da saúde; e a busca da lucidez/sabedoria - tarefa da
filosofia. Um ciclo vital.
Pessoa dizia que pensar dói. O galo, uma marca no corpo, pela contundência daquilo que a cabeça
encontra. A solidez das coisas.
O latejar do galo é a ressonância que provoca o pensamento.
Galo galo
de alarmante crista, guerreiro medieval.
(...)
encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa-
Anos depois, de dentro de uma noite que parecera nunca mais acabar(1964), surge um galo que
entende o que precisa fazer. Um galo que estende seu grito num canto coral, um cânone. Este, o galo
de João Cabral.
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E se encorpando, em tela, entre todos,
Se erguendo tenda, onde entrem todos,
Se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
Que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(Tecendo a Manhã/A Educação pela Pedra)
O galo, figura do poeta que canta a palo seco, áspero. Um canto não-afinado, mas afiado. Dispara a
reação em cadeia, atiça noutros o grito (“Um primeiro grito desencadeia todos os outros, o primeiro
grito ao nascer desencadeia uma vida.”Clarice Lispector/GH)
O poeta com seu canto seco de galo quer acordar quem precisa, já avisara noutro poema: “Falo
somente para quem falo:/quem padece sono de morto/e precisa um despertador/acre, como o sol sobre
o olho” JCMN Graciliano Ramos/Serial
O poeta quer transformar o mundo em comunidade criadora de um poema coletivo - uma sociedade
de iguais/diferentes onde ‘entrem todos’. Porque é preciso “poetizar a vida social, socializar a palavra
poética”(Octavio Paz/Arco e Lira). Lembro da Revolução Sandinista: na ilha de Solentiname artistas,
atores, poetas e sacerdotes conviviam com os pescadores e o governo: arte, trabalho e política
tornando-se indiscerníveis. E o poema profetiza dizendo que só seria possível superarmos a ditadura,
juntos, saindo da noite para a manhã. Como fez o povo brasileiro, há 20 anos, vestindo sol e querendo
diretas já. Como fez o povo agora, colocando um conterrâneo pernambucano do poeta pernambucano
na presidência.
Para Cabral, a manhã, o sol, o dia, são o espaço da poesia lúcida contra a ‘poesia dita profunda’ —
que traz miasmas da noite: confessional, sentimentalóide, meditabunda.
É também o espaço da saúde e da vida, contra a noite do fácil, contra a morte na noite inoculadora de
doenças como a inspiração, o espontâneo. A manhã é o espaço do trabalho. O trabalho de Cabral, sua
obra, é uma escola do rigor que não se permite ser incompreendida pelo povo. Quer comunicar seu
grito, fazer-se entender, dar a ver. Tanto que há poemas sofisticados e poemas simples. Mas todos
precisos e exigentes na construção. Não deve haver poesia fácil em nenhuma das ‘duas águas’. Para
nenhum leitor.
E assim, João Cabral realiza o ciclo da frase socrática na poesia. Faz da tarefa da filosofia a sua, na
linguagem. E faz uma micropolítica através da arte.
Essa é a rinha. Aprender deste galo a ter as melhores esporas e unhas. Abrir o bico para ecoar o grito
de antes num próprio, de outra modulação. Fazer as apostas. Porque lutar com as palavras não é uma
luta vã. E, ganhando, se pode pagar a dívida.