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LIVROS: A POETICA DE ANA CRISTINA CESAR, TRINTA ANOS DEPOIS PEREIL: A Mrs y AAU YW eos) >) te REINALDO MORAES ENTREVISTA:ARNALDO ANTUNES, DO ROCK PESADO A SONORIDADE LEVE ™ O |" Mm ra . ee le @™seee-- 2 se2e822 a a a ee ae ee a a ee et oe >) a — < Les ae DA PSIG as bf a = O QUE ESTA POR TRAS DA PSIQUIATRIZAGAO = + @ @& :DAVIDACOTIDIANA a tw ] Pree M eto) ym Pree eco) Cae eae Ss pela Associagao Psiquiatrica Norte- PERU mT cece cadeou uma série de artigos e livros Perot Reece ERTL Pees Cnt eC umtritte Carat Onan SCR ORES Sonera ten eon este mal-estar subjetivo”, como bem definem, neste dossié, o filsofo Gilson Iannini e 0 psiquiatra Antonio Teixeira. PST ecm sc To TES SN Ee Cee eR RI ony ' disturbios mentais e oferece parametros Pere eterna een ones Prete rie tetr cee a orerca tegorias de doéngas e altera diretrizes Pen net ee ements ecm rcs POR oer On ORCC eer recog Beene ore acre Mert nrC nn Prete Rect ee eka sc Tic rica _ psicdlogos e psicanalistas. ‘Mesmo sendo um assunto que poderia ficar i Perey echt ssh 4 f tem envolvido profissionais e intelectuais Oar OCU en nome Peerar es OM Er nar Okun PET eS Pree SCTE ae RE ERO Ceca Lee ed cio Peco PERC eee ond Ree de colocar algumas porns Pois, e se categorias como ‘satide’, ‘doen- Rea eee ne error ere eee neuter tics PEC OER Oa IR ate Re meer einircretree tee Perea rece ron tteca Os cinco artigos publicados aqui - escri- Pons uog CO Ooe us eC Ora ssc LCL Seen OCR Cena ee OC eeS “efeitos colaterais” desta quinta edigao do eT ROU ee nice me cd Peer CTR ce UMC ORCL Penner ert ceC CMa okt diana presente na propria base dos DSMs”. See rere teeta cacom Bree at Cos Ty MOU N 7 < |O SEQUESTRO DA H NEUROSE eye E-e Wei) BVT era PSIQUIATRIA COMO SE FATIA UM CORPO Donen eer O poder da O que esta por tras do DSM-5 e sua tentativa de transformar a experéncia Viaoimin Sararce juando confrontados a categorias como “side”, “doenga’, “normal” e“patolégico’, a maioria dos psiquiatras atuais tenderé a acetar que tais definigGes so, basicamente, objetos, de um “discurso ciemtifico” Iso significa, grsso modo, que a pretensa objetividade de suas distingdes deve estar assegurada Por um discurso que privilegia fendmenos mensuraveis, quan- tificveis ¢ claramente diferencidveis através de um conjunto finito eoperacional de caraterstcas de base. Esta seriaa melhor ‘maneira de impedir que tais metaconceitos fossem tragados ‘por uma interminsvel discussdo ideoligica, com suas querclas sem fim de escola a respeto da natureza do que orienta nossa atividade na clinica do softimento psiquico. Foi com essa crenga em vista que a psiquiatria dos iltimos 4quarenta anos desenvolveu um dos mais impressionantes esfor- «50s declassificacio de doengas ehomogeneizacio de diagndst- os que se tem noticia. Desde o advento do DSM-3,a psiquatria teria, enfim, encontrado o caminho em diregio asta seguranca ‘ontolégica, deixando para tris décadas de imprecisio, Uma imprecisio que seria fruto do uso de vocabulérios extrema- ‘mente valorativos, em vez de meramente descritivos, assim como da fascina¢do por etiologias fantasistas. Pois, ao invés, de se preocupar com a definicio de causas difcilmente obser- vveis (como, por exemplo, afirmar que certafobia de animal resultado de confltos inconscientes com a figura paterna), ‘melhor seria prvilegiar um pensamentocategorial que organiza distingoes a partir de uma certa logica de conjuntos no qual o esforgoclinico fundamental conssteem definir sintomas econ- digs que, se colocados em relagio, podem individualizar um ccomportamento patologico. Desa forma, nasceriao milagre de um saber, para além de disputastericas,observivel,imune aos juizos subjetivos do médico-observadore, acima de tudo, eficz. Esta histéria da marcha irresistivel da psiquiatria em dire- <4o a ciéncia € normalmente contada em tons edificantes. A partir do inicio dos anos 1970, varios psiquiatras comegaram. a fazer testes, demonstrando a incrivel variagao de diagnesticos ‘entre 0s profisionais. Por outro lado, a propria psiquiatria era bbombardeada de todos os lados por aquelesirresponsiveis que tentavam demonstrar que categorias linicas eram mitos ou, ‘no mais das vezes, mecanismos de exclusio e controle social ‘Neste ambiente hos, psiquiatras como Robert Spitzer e John. Feighnerteriam sido capazes de tirara psiquiatria da defensiva ‘por meio de uma profunda reforma metodolégica que, em um ccurto esparo de tempo, modificou radicalmente o que enten- diamos até entio por “clinica” Pois al reforma metodologica tera sido acompanhada pelo desenvolvimento exponencial do saber neuroligico, assim co- ‘mo do desenvolvimento de medicamentos capazes de combater com eficécia aquilo que, erroneamente, entendiamos fluida- ‘mente por “impasses existenciais” capazes de afetar nossa per- Jormance no trabalho, nossos papeis socias e nossa autonomia do desejo. A clinica apareceri,entdo,cada vez mais submetida uma farmacologia em via irresistiveis de aprimoramento, Neste sentido, nao haveria razao alguma para se inguietar do fato de que por volta de 70% dos experts que trabalharam para, ‘© DSM-5 terem, em sua carteira recente, vinculos financeiros ‘com a indtistria farmacéutica, A comunidade entre indiistria farmacéutica e comunidad psiquidtrica seria exclusivamente fundada nas promessas abertas pelo progresso da ciénca, ‘Também nio haveria razdo alguma para se perguntar se nao haveria uma articulagao perversa entre o fechamento dos asilos, a redugdo dos gastos puilicos em satide mental € um triplo processo de reforgo da posigio da psiquiatria, Processo triplo marcado pela medicalizacao, pela institucio nalizagao crescente das discussdes através da hegemonia da ‘American Psychiatry Association (APA) e pela tecnicizacio crescente dos diagnésticos. Doenga e politica ‘Tudo isso poderia interessar apenas uma comunidade limitada, composta por todos aquelesprofissionais designados para tratar de problemas de sate mental (psic6logos, psi- uiatras psicanalistas, entre outros) Mas talvez sejao caso de colocar algumas questdes. Poise se categorias como “satide”, “doenga”, “normal” e “patolégico”, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psiquico, nao forem meros conceitos deum discurso cientifico, mas definigbes carregadas de forte poténcia politica? Por um lado, uma sociedade organiza seus modos de intervengio nas populagdes, nos corpos e nos afetos por meio da definicdo do campo das doengas e das patolo- gias. No interior desses modos de intervengio, nao é apenas aexperiéncia subjetiva do sofrimento do paciente que orienta a clinica, mas também padroes esperados de conduta social psiquiatria do sofrimento em patologia a ser tratada de forte conotagdo moral (ou mesmo estética e politica). Por exemplo, quando 0 DSM-4 descrevia o transtorno de per- sonalidade narcisia, ele nao temia descrever tal transtorno, apelando, entre outras coisas, para quadros morais do tipo: “Bles esperam ser adulados e ficam desconcertados ou furio- 808 quando isto nao ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar _quenso precisam esperar na il, que suas prioridades si tio importantes que os outros Ihes deveriam mostrar deferéncia € ficam irvitados quando os outros deixam de auxiliar em ‘seu trabalho muito importante”. © minimo que se pode dizer € que tal quadro nada diz sobre o softimento psiquico, mas diz :uito a respeito dos padres disciplinares e morais que nossa sociedade tenta elevar condigao de normalidade médica, -Exemplo ainda mais caricato sio 0s oito critérios forneci- dos para defniro transtorno de personalidade hstrinic: 1) desconforto em situagdes nas quais nao se €0 centro das aten- .6es;2) comportamento inadequado, sextialmente provocante ‘ou sedutor; 3) superficalidade na expressao das emogbes; 4) constante utilizacao da aparéncia fisca para chamar a atengio sobre si proprio; 5) discurso excessivamente impressionista; 6) teatralidade e expressio emocional exageradas 7) ser facilmente ‘sugestiondvel: 8) considerar os rlacionamentos mais intimos do ‘querealmente do, Em um manual que se vangloriava pela clare- zade seus “critérios especificos’ impressiona exatamentea falta ‘de especificidade de um quadro clinico tio amplo que poderia ‘englobar praticamente qualquer pessoa com 0 minimo de senso de autocritica, Hi de se perguntar se estamos diante de uma falha ou da exposigio sintomstica de uma logica que perpassa, ‘em maior ou menor grau, todo o poder psiqudtrico atual com sua tendéncia muda, como vemos no texto de Gilson laninni e ‘Antonio Teixeira, de “psiquiatrizagao da vida cotidiana’, Senos perguntarmos sobrea natureza de tal ligica, valeriaa pena lembrar como a experiéncia da doenca, ou sea, experién- cia de se compreender como doente nfo ¢ apenas 0 resultado da descricio de variagdes em marcadoresbioligicos espectficos. ‘Nem éa doenga a mera definigio de situagdes de sofrimento. Hi vias experiéncias de sofrimento que no vivenciamos ‘como doenga, mas como contlites reativamente naturais em processos globais de transformagao e de desenvolvimento. Na verdade, ha uma dimenséo na qual estar doente, no que diz respeito satide mental, aparece como o softimento advindo Dos: Tudo pode ser classificado do ponto de vista de uma pratica discursiva, inclusive condutas, posig6es politicas emesmo o amor novas clases diagnésticas a seu bel prazer ou, o que é pio, em ‘conformidade com os langamentos da indiistriafarmactutica ‘ou com as exigéncias dos gestores de satde, ‘Tudo pode ser classiticado do ponto de vista de uma pratica discursiva, inclusive condutas, posigdes politicas e mesmo 0 amor. Que seja. Nada impede, todavia, que tomemos, entdo, ‘para nds, essa mesma liberdade classificatbria e avancemos ficcionalmente até o nivel virtual de um \itimo DSM em que ‘0 catilogo se capilariza. Este titimo DSM deveria, portanto, descrever um transtorno que acomete, preferencialmente, _gestores obcecados com a rentabilidade dos planos de sade, frequentemente vinculados a laboratéios farmacéuticos,as- sim como docentes universitérios financiados por laboratérios, ‘até pouco tempo restritos as universidades norte-americanas, ‘porém com tendénciaa se propagarem para outros territérios. ‘Chamemo-la de “transtorno de compulsio classificatria ava- liativa maniforme” (TCCAM), ou doenga de Simo Bacamarte, ‘em homenagem ao alienista descrito por Machado de Assis, ‘no final do século 19, que em nosso tempo se manifesta co- ‘mo uma necessidade incontrolével de classificar eavaliar todo ‘comportamento observavel, assim como preencher compulsi- ‘vamente espagos de ‘sim’, “nao” e “mais ou menos” em plani- Thas de avaliagio. Alguns desvios caracteriais evidentes dessa sindrome incluem: a incapacidade sistemmtica de questionar a sua propria funeio e a necessidade obsessiva de eliminar todo ce qualquer sofrimento subjetivo. Observa-se ainda, como sinal ppatognoménico desse quadro, uma importante alteragio do |uizo de realidad, manifesta no sentimento delirante de estar no direto de classficare avaliar os demais sem permitir que seja avaliado ou classficado o proprio exercicio de avaliaglo, ‘A.casse dos classficadores, assim consttuida, nao tolera que cla propria sejaclassificada, Em seu delirio, os pacientes aco- ‘metidos pela TCCAM, ou pela doenga de Bacamarte, chegam se arrogaro direito de definir o que ¢ cientifico ou nao, sem, contudo, expor crtérios que possam defini a cientificidade de sua pritica classificatério-avaliaiva. Fssaitima versio paréica do DSM temo interesse de nos apresentar, em seu limite, ocaréter autofigico de uma pritica cdesenfreada de avaliagdo classifcatria. Ebem verdade que, até ‘oatual momento, os lassificadores do DSM nao fazem parte do conjunto dos objetosclassificados, tal como os catélogos do paradoxo de Russell, que ndo contém a si mesmo, Mas quan- do criamos, com a Casa Verde virtual do DSM-11, a classe dos, clasificadores compulsivos que no classificam a eles préprios, ‘© paradoxo é inevitavel: essa classe contém ou nao contém os, classificadores? Ela 0s contém porque nao os contém, io os ccontém porque os contém e dai por diante. Teriamos, entio, chegado a esse feliz momento de ironia suprema, em que 0 clas- sificador enlouquece e decide, tal como o alienista de Machado de Assis, internar-se e deixar-nos finalmente em paz? ‘Mas as coisas nao sio tao simples assim. Sabemos que 0 DSM ~a despeito de sua absoluta indigéncia epistemol6gica = nio seré tio cedo classificado como um caso patolégico de compulsio classificatéria, pois existe uma estrutura exterior sobre a qual ele sesustenta. © DSM permanece coeso,a des- peito de todasas modificagdes que possa sofrer, em razio da triplice aianca de catslogo,pilula ediscursos que o mantém. Em primeiro lugar, o catélogo, enquanto operador da gestio, confere a0 DSM sua forma de lstagem proviséria, que pode ser mudada conforme se modificam 0s arranjos institucionais ddo poder ao qual ele presta servigos. Em segundo lugar, cada classe catalogada serd 0 méximo possivel vinculada a pilula terapéutica, que é a promessa de bem-estar mental em sua forma-mercadoria, sustentada pelas estratégias de marketing dos laboratdrios. Associagdes tais como TDH-Ritalina ou Distimia crénica-Venlafaxina so embleméticas nesse senti- do, Em terceiro lugar, o discurso da tecnociéncia, submetido a légica do capital, organiza a crenga mercantil que associa Dossit citicava seus propros funndamentos clinico-diagnésticos, tanto na psicandlise de Lacan quanto nas pesquisas de Adorno so- brea personalidade autoritaria e, mais adiante, na psicandlise argentina de esquerda. ‘Lembremos que a ttima definigdo remanescente das psico- ‘neuroses, no DSM-2, definia esse grupo clinico pela ansiedadee pelos mecanismos de defesa: a depressao,a conversa eo deslo- camento. Nioé dificil perceber aqui os quatro elementos pelos uaisa neurose sera substituida ata recente revisio imposta no ltimissimo DSM-S: “transtornos de ansiedade”, cujo desenca- deamento depende do objeto (de separacio, mutismo seletivo, fobias especifcas, panico, fobia social), “transtornos depress 0s", cujo modelo €o to (depressdo maior, depressio disrup- tiva, distimia, isforia pré-menstrual),“sintomas somticos’, corganizados a0 modo da conversio (hipocondria, transtorno de conversio, transtornos facticios) e “transtornos obsessivo- -compulsivos", nos quais 0 deslocamento sera a“reagao” fun- damental (transtorno do dismorfismo corporal, acumulago, trocotilomania, transtomo de escoriagao). Acrescentando-se aessas quatro categorias 0s transtomos de trauma-estresse € dissociacdo, os que inibem ou exageram fungoes (alimentagao, sono, excreglo, extalidade) eas dsforias de género, reencon- tramos no DSM-S todos os elementos classicamente descritos pela psicanlise, com sua triade diagnéstica formada por an- ‘istia,sintomase inibigdes neuroticas. 3. Aneurose fragmentada Atéaqui, péde-se ver que, por tris da laminosa nova ciéncia Psiquidtrica do DSM-5, ainda jaz o cadaver psicanalitico da neurose. Eo sinal maior deste desmembramento forrado € que tanto a depressio, antes um subtipo da aposentada categoria dos “transtornos de humor’, quanto a ansiedade slo tidas como situagdes de alta co-morbidade, sendo declaradamente raro encontrar pacientes com apenas um desses dois diagnéstcos. Na discussio sobre epidemia mundial de depressio e ansi. dade, quando pesquisas apontam So Paulo como a capital mundial dos transtornos mentais (com cifras em torno de 25% dda populagdo) preciso observar a total indiferenga deste ins- trumento diagnéstico no que diz respeto & possivel relagdo {ndutora entre os sintomras, Primeiro um periodo de ansiedade, depois de depressio e,finalmente, a emergéncia de uma ideia obsessiva, uma fobia ou uma conversio, seguida de nova onda de ansiedade, Nada mais antigo e constante nos pacientes de Freud do que percursos que intercalam periodos de angista, crises narcisicaseformacio de sintomas. A neurose,e principal- ‘mente a neurose histérica,é uma categoria fundamental para aapsicanzlise,justamente porque permite explicar, por meio de ‘uma hipétese tinica, regras de formacao para a existéncia da variedade extensa de sintomas diferentes em um mesmo cas0. Um paciente como o “homem dos ratos’,atendido por Freud «em 1907, receberia hoje, facilmente sete ou oito diagnésticos sobrepostos, em vez. da tinica e genérica neurose obsessiva. ‘Mas o problema crucial que se perde de vista com o seques- tro da neurose como categoria diagndstica é que os diferen- tes sintomas de um sujeito exprimem ese articulam em uma narrativa de softimento, Eles se embaralham com a historia da vida das pessoas, com seus amores e decepdes, com suas carreiras e mudangas, com seus esiloseescolhas de vida, com, sttas perdas e ganhos. A historia da doenga confunde-se coma historia do doente, sob o qual esta age reage, dizia Karl Jaspers (1883-1968). Desde o DSM.2, tentava-se contornar o critério cde Kurt Schneider (1897-1967), pelo qual a psiquiatria deve se ‘ocupar dos que “sofrem e fazem softer”. Mas 0 arremedo, que parece ter se tornado definitivo para esse problema, é0 da ca- tegoria dos “transtornos de personalidade”, Ela compreende as formas subclinicas de sofrimento, nas quais € dificil dizer ‘onde comega. sintoma ¢ onde termina o eu. No DSM-S, tais transtomos foram agrupados em trés lusters,o dos “estranhos” (personalidade paranoide, esquizoide e esquizo-tipica), a dos “draméticos”(personalidade antssocial, bordering histrifnica eenarcisca) ea dos “intimidados” (personalidad dependente e obsessivo-compulsiva). Ainda que tas agregados ndo tenham sido “consistentemente validados’, segundo o préprio Manual, su fungo denuncia uma espéie ce resgate pago aos psiclogos pela psiquiatria, Definidas como formas inflexiveis, pervasivas ¢€estéveis ao longo do tempo, esses transtornos sio isolados ‘em um grupo separado, embora comparivel com os grandes sintomas esquizofrénicos, paranoides, histéricose obsessivos ‘A excecio digna de nota sio os grupos borderline e narcisico que, mesmo entre os psicanalista, nao so claramente definids nem entre as psicoses, nem entre as neuroses. A dissociagio entre sintomas esuas formas de vida correlatas ¢ ce tal monta ‘que nenhuma palavra é dedicada a uma ocasional relagio entre intomas do espectro “obsessivo-compulsivo”e “personalidade obsessivo-compulsiva”. Ora, 0 narci fuungao que produz unidades, ainda que alienadas de si, do ‘outro edo mundo. A definigao clisica de neurose era sufi cientemente integrativa em psicandlise porque, 20 menos em tese, cla poderia explcar tanto a formagio de sintomas quanto a economia narcisica, ou as transformagbese identificagbes da personalidade, que hes 6 correlata. Ao excluir relagbes entre sintomas e funcionamentos psiquicos,o psiquiatra fica, por assim dizer, desincumbido de fazer apreciagdes sobre a per- sonalidade do paciente. Isso tem trazido um efeito dramitico, estranho e intimidador para os clinicos, que rlatam, frequente- ‘mente, ser negada aces, nas contingéncias reais de sua prtica, a possibilidade de escutar histérias de vidas de seus pacientes, restringindo-se a anamnese do relato sobre osintoma. smo ¢ justamente essa 4. Sofrimento e narrativa ‘Muitos psiquiatras questionam as renovagdesfeitas pelo DSM-5, porque elas nao se apoiam de fato em novas desco- bertas cientificas, mas em redefinigdes nominalistas d tomas e definigdes operacionais de sindromes. Isso valoriza ou sobrevaloriza odiagnéstico mediante exame retrospectivo dos efeitos de medicagbes cujo verdadeiro mecanismo de aco sedesconhece. Ou seja, a unidade perdida com o sequestro da nneurose, como hip6tese que unifica histéria de vida, sintomase personalidade, é reencontrada na unidade de um objeto:ame- dicagio. A hip6tese da recaptura da noradrenalina para explicar ‘o mecanismo da ansiedade, proposta em 1958, foi expandida para a relagio entre a dopamina e a esquizotrenia, nos anos 1960, para a serotonina ea depressio, nos anos 1970, e,final- mente ligand a endorfina aos circuitos do prazer na década de 1980, Observe-se que se trata de uma mesma matriz hipotética ‘que se reaplica em diversos casos. Em todos eles, transtorno é considerado um déficit de substancia neuronal. A medicacao entraria, assim, de modo compensatério,fazendo o que 0 corpo rio consegue fazer por si proprio. Mas tal hipétese deixa de Tado o caso em que certos estados mentais sejam produzidos de forma totalmente inédita na propriocep¢ao, na experiéncia corporal ena economia de significagdo do sujeito, como parece ocorrer com 0 uso continuado do metilfenidado (conhecido popularmente como Ritalina).Ouseja, ha sim um “antes” eum ‘depois’ da medicagio que estabelece uma nova unidade no eu, mas esta écriada pela medicacio e ndo pressuposta por ela O cariter mais ou menos questionvel das descobertas em torno dos neurotransmissores se faz-acompanhar de outro fato mais dificil de entender. Palavras, principalmente meti- foras, narativas ou experiéncias de linguagem em contexto inersubjetivo induzem a receptagao ea distribuigdo de new- rotransmissores como dopaming, serotonina, noradrenalina e endorfina, Palavras mudam o seu cérebro, ¢ 0 seu cérebro muda suas palavras, mas néo da mesma maneira O real prejuizo que temos com o sequestro da nogao de neurose para otratamento de nossos pacientes ndo € que ago. ra les nao querem mais saber da arqueologia infantil, nem das conexdes sexuais e esquecidas na génese historica de ==> A subtragao da psiconeurose no DSM-3 tornou-se 0 simbolo do fim do falido casamento psicopatolégico entre psicanalise e psiquiatria seus sintomas, mas que eles se vejam sancionados por um dlispositivo diagndstico com forga de lei e poder disciplinar na desconexao entre seus préprios sintomas. Ou seja, uma das caracteristicas mais antigas e mais simples da neurose ~ a saber, o fato de que nela o sujeito nao liga (aliena) os pontos que unem sua vida, seus sintomas e sua personali- dade - tornou-se a forma oficial e padronizada de pensar a Joucura. A neurose opera pela desconexao entre contextos harrativos, como que a dizer que a vida sexual é uma coi- sa, a profissional ¢ outra, a familiar uma terceira coisa, os cuidados com o corpo sio algo a parte, as fases da vida um. problema isolado. A vida pessoal apenas “outro setor” desta ‘grande loja de departamentos na qual nos transformamas. Mas todo aquele que se vé diante de uma experiéncia maior de sofrimento sabe que nao é assim. O sofrimento tem uma valéncia politica incontorndvel porque ele liga os assuntos: a alimentagdo com a pobreza, a miséria com a familia, a familia com o Estado, o Estado com a satide, a satide com a rmaneiraestética de viver 0 corpo e assim por diante. O sofri- mento pode ter aestrutura de uma novela, como o Romance Familiar, de uma teoria, como as Teorias Sexuais Infantis (Freud), de um mito, como o Mito Individual do Neurdtico, dda poesia chinesa ou simbolista (Lacan), de uma narrativa (A Ferro) e até mesmo encontrar sua expresso universal na tra ‘gédia (Edipo para Freud, Oresteia para M, Klein, Antigona ou Frlotectes para Lacan). As pesquisas em torno da dissolucio da {forma romance, empreendidas por autores como Becket, Joyce Duras, desafiam o paradigma discursivo no qual a neurose foi descrita a partir da unidade narrativa-narrador, da coe- réncia entre contar (Erzithlen) e descrever (Beschreiben), da progressio articulada de conflitos, da tensio entre diegese da agio e da verticalizaco de personagens, Talvez nao seja ‘uma coincideéncia que os mesmos anos 1950, que presidiriam a emergéncia do DSM-1, tenham assistido, mais uma vez, onda de declaragdes sobre a morte do romance. Mas isso s6 confirma que o tipo de unidade que encontramos na no¢éo deneurose nos leva a sistemas simbélicos como literatura, ‘© mito ou os discursos sociais, e que ela pode ser redescrita consistentemente em fungao destes, tanto em termos semio- légicos quanto diagnésticos. Mas isso exigiria reconhecer 0 mal-estar que preside ainsuficiéncia das articulagées entre soffer eter um sintoma, no interior do sistema DSM. 5.Patologias do social Tradicionalmente, ao final de cada edigdo do DSM, hi tum espaco reservado para as chamadas sindromes cultu- rais especificas, como o Amok (na Malésia) ou 0 Susto (na América Central). Mas 0 DSM-5 surpreende neste quesito ao trazer uma longa lista de “Outras condicoes que podem focar a atengao clinica’ problemas de relacionamento, rom: pimentos familiares, negligéncia on abuso parental, ioléncia doméstica ou sexual, negligéncia ou abuso conjugal, proble ‘mas ocupacionais e profissionais, situagdes de sem-domicilio (homeless), problemas com vizinhos, pobreza extrema, bai x0 saldrio (low income), discriminacio social, problemas religiosos e espirituais, exposigio a desastres, exposicio a terrorismo e “nao aderéncia a tratamento médico”. A lista exprime o interesse contesso do DSM-5 em patologias so: Dossié Uma classificagao diagnostica jamais é politicamente neutra, pois sempre veicula — necessaria e implicitamente - uma visao de homem e de sociedade Quanto mais cegamente mantivermos um acordo tacito quanto a natureza e 0s objetivos da vida humana, mais, forte serd a ilusdo de que as definigées estritamente bio: légicas de transtorno mental repousam sobre um fundo ideologicamente neutro e, portanto, desnecessério para a sta validagao. Para a manutencao dessa ilusio, é indispensdvel que nao se problematize muito radicalmente a “order” que os Psiquiatras sio incitados a restaurar face & “mental disor- der”. & interessante observar que apesar de se servirem decisivamente da nogdo de “mental disorder” (transtorno mental), definida de maneira pragmética, nenhuma edicio do DSM preocupou-se em delinear a order face & qual de- terminado comportamento ou estado mental constituiria ‘uma “disorder”. Contudo, nao é dificil restitur, a partir das pistas fornecidas pelo proprio manual, order referencial so- brea qual o sistema diagndstico proposto pelo DSM se fun. damenta: 0 individuo auténomo, racional responsével por seus atos, tal como concebido pelas sociedades industriais capitalistas ocidentais contemporaneas: participante da ‘competi¢ao e do consumo capitalista, tendo como valores fundamentais a realizacio individual e familiar eo desfrute de bens e de experiéncias prazerosas. Dito em outras pala- vras, uma classificagdo diagndstica jamais é politicamente neutra, pois sempre veicula ~ necesséria e implicitamente = uma visio de homem e de sociedade. Trata-se, portanto, de um instrumento eventualmente itil do ponto de vista pritico, mas que 6 pode ser manipulado em condigées que ppossibilitem a permanente critica de seus a priori ideologi cos, sob pena de provocar efeitos nocivos ainda mais graves ‘queaa simples submissio ingénna a objetivos econémicos de poténcias industriais: a servidao voluntéria a certas visoes {deol6gicas do homem, da sociedade e do mundo. famoso documentério Coragdes e mentes (Hearts and ‘minds, 1974, de Peter Davis, vencedor do Oscar de melhor documentério de 1975) apresenta, jé em suas primeiras, cenas, 0 discurso do presidente norte-americano Lyndon B. Johnson, no qual é enunciada a expressio que da titulo ao filme, Conclamando a populago a apoiar a manutencao das tropas yankees no Vietna, Johnson esclarece: “Nossa visto de progresso nao esta limitada a0 nosso pais. Nés a estendemos a todo o mundo”, E sustenta que os Estados Unidos deveriam continuar a lutar no Vietna, pois a ver- dadeira vitdria nao esté na ocupagdo dos territérios, mas na conquista dos coragdes e mentes das pessoas que neles, vive. A verdadeira dominacio ¢ aquela que se dé na alma do dominado, que passa a subscrever espontaneamente as categoria mentais propostas pelo dominador. Se, no perigoso plano do psiquismo humano ~ palco de todos os sonhos, incoeréncias e rebeldias -, a batalha ‘deol6gica é a da conquista de uma forma ahistorica, des- politizada e dessexualizada pelas quais as pessoas auto. definiriam seus sofrimentos, quem poderia negar que tal objetivo jé esteja sendo amplamente atingido? Assista aos grandes SE SO a A crise interna da psiquiatria, opondo confiabilidade dliagndstica e validade biol6gica, nao implica, de forma alguma, na remtincia a0 estudo das dimensbes biol6gicas implicadas nos fenmenos psicopatolégicos, mas na neces: sidade de se reconhecer 0 estatuto proprio da psicopatolo- gia, enquanto cigncia auténoma dedicada ao estudo do so. frimento e dos transtornos psiquicos enquanto fendmenos humanos irredutiveis a seus componentes naturais, Tome: se, por exemplo, o que se vem observando em uma situa io clinica na qual ninguém ousaria negar a participacdo central de fatores biol6gicos: a sindrome de Down. Apesar do incontestavel papel etiol6gico da trissomia do cromos. soma 21 no aparecimento das manifestagdes clinicas des- sa sindrome, observa-se uma extraordinéria melhora da qualidade de vida, da integracao social, da expectativa de vida e dos ganhos cognitivos desses sujeitos nos tiltimos trinta anos, sem que nenhum novo tratamento biolégico tenha sido, de fato, produzido nesse perfodo para esse tipo de quadro. Transformou-se nosso olhar sobre esses sujet tos, nossa maneira de conceber suas possiveis formas de integragio social, suas modalidades afetivas ¢ cognitivas proprias, nossa capacidade de vishumbré-los como sujeitos organizados em coordenadas biol6gicas muitos singula- res, mas participando de pleno direito ao campo simbéli co humano, Isso os transformou, e vem transformando a Petty Deena ere eas ventirieemniepernapetarholneshinenn prea it Manito sarspeee CTY sociedade, Mesmo que em um futuro, distante ou préximo, ppossamos impedir os efeitos da presenca da trissomia no ‘cromossomo 21, em nada se modifica o fato de que um quadro psicopatologico nao pode ser concebido enquanto tal se abstraimos a dimensio do sujeito ¢ do mundo que Ihe € correlativo. A crise da psiquiatria contempornea talvez nao che: gue, de fato, a se constituir enquanto tal, visto que os fatores econdmicos que sustentam o projeto cientifico ¢ terapéutico dominante continuam a ter necessidade de objetivacéo dos quadros psicopatolégicos ¢ de sua redu io reasseguradora a um registro biolégico moralmente neutro, Contudo, ela evidencia os pontos de clivagem ede fragilidade dessas maneiras ~ pragmitica e/ou estritamente biolbgica - de se conceber uma pritica médico-clinica de- dicada aos padecimentos mentais, E solicita & psiquiatria no apenas uma nova edigao de seus manuais de diagnds: tico, mas uma perpétua renovagio de si mesma enquanto disciplina clinica que se serve da ciéncia ¢ da arte (nao falavam os latinos da Ars Medica para nomear a medicina?) para tratar do sofrimento mental de sujeitos humanos. Mario Eduardo Costa Pereira psicanalistapsiquiatrae professor do Departamentode Psiquiatla da Faculdade de Ciencias Médicas da UNICAMP ot hao porca, 606 segunda, dia 11 de novembro, Pree ie Corey els eed CINEMARK

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