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SÁBADO, 29 DE MAIO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO

Crítica O GUARDADOR DE SEGREDOS


Autor: Davi Arrigucci Jr.
Editora: Companhia das Letras
O Guardador de Segredos, de Davi Arrigucci Jr., (280 págs., R$ 49,00)
professor da USP, tenta desvendar como prosadores
e poetas vinculam sua experiência pessoal à histórica

UM MESTRE ATRÁS DO ESQUIVO


OBJETO DA OBRA LITERÁRIA
KEINY ANDRADE/AE

“Pensei em estudar três narradores de re- “O que mudou foi essa atitude que eles ado- um poeta radicalmente individualista, um Atenção. Arrigucci
ANTONIO GONÇALVES FILHO giões‘atrasadas’ queestão permeadasde his- taram diante da linguagem oral, penetran- escritor na contramão da história, que viaja- em seu escritório
tória, como o Oeste americano, o pampa ar- do nela de corpo e alma, partindo de dentro vanotempopararesgataruma ouduasmalu- de trabalho: no
gentino e o sertão brasileiro porque nos três da matéria que tinham para narrar”, obser- quices góticas. Satírico, rabelaisiano, o poe- livro, poetas
em vínculo ime- aparece a dicotomia civilização versus bar- va o professor, concluindo que, no caso de ma de Uchoa Leite, segundo o professor, rebeldes, que a

S
diatamentereco- bárie”, justifica Arrigucci, observando que, Guimarães Rosa, o “atrasado” se rege pelo “não se constrói como o espaço em que a academia mal
nhecível,os21en- embora fossem conservadores, homens co- “moderno”. Também no sertão chega o dra- poesia se dá a ver, mas onde ela tende a se analisa; na pauta,
saios de O Guar- mo Ford e Borges “tiveram uma visão aguda ma urbano, numa região em que o arcaico é ocultar”. Com a matéria biográfica, ele aca- ensaio sobre
dador de Segredos, do papel dos vencidos” na constituição de identificado com o Diabo. Nos dois escrito- bou erguendo um monumento à qualidade Rosa, Borges e o
escritos entre suas respectivas nações. O professor, ao tra- res, o conto oral, segundo Arrigucci, “é a literária que em tudo contrasta com a preca- diretor John Ford
1999 e o presente duzir História do Guerreiro e da Cativa, um matriz épica que faz vibrar toda a tradição riedade estética do país em que viveu.
pelo professor dos contos que integram o livro O Aleph, já da vasta poesia narrativa”.
aposentado de havia percebido que Borges reinventava a Na obra de Rulfo, a relação com o mito é Rebelde. Outro poeta pouco compreendi-
teoria literária da nação argentina ao narrar o rapto de uma ainda mais acentuadamente grega. A desci- do tem sua obra analisada por Arrigucci em
USP Davi Arrigucci Jr., têm, no entanto, um criança branca por índios e do guerreiro que da de Pedro Páramo em direção a Comala dois ensaios, o paulistano Roberto Piva,
tema em comum: a ligação da literatura renegou seu exércitopara defenderos inimi- seria o equivalente da descida de Eneias (na cujo “individualismo anárquico” o mante-
com a experiência histórica. O que está por gos que antes atacara. “Borges se declarava Eneida) ao inferno para ouvir os mortos e ve afastado da sala de visitas da crítica literá-
trás de uma obra literária não escapa à rigo- o menos histórico dos homens, mas isso é reencontrar o pai Anquises. Rulfo contem- ria desde que foi publicado por Massao Oh-
rosa análise desse crítico com vocação de uma falácia”, contesta Arrigucci, definindo pla Comala e se pergunta sobre o futuro da no, em 1963. Rebelde com causa, pastor vir-
entomologista – no bom sentido do radical como inconsistentes os estudos que levam terra arruinada (o México). “Equivale a uma giliano em busca de prazeres exóticos na
grego da palavra, aquele do “entomos”, do em conta essa informação. penetração no mito épico, do qual deriva o metrópole, Piva fez poemas de um “erotis-
segmentado. Com lente de aumento eleana- romance, a travessia de um homem em bus- mo desbragado”. A crítica brasileira, lem-
lisa autores que a crítica prefere ignorar ou Faroeste. Ford, diz ele, não era igualmen- ca do seu destino”, explica Arrigucci, identi- bra Arrigucci, “fez que não viu e voltou as
textos que acabam revelando o caráter con- te o reacionário que pintam por ter dirigido ficando tanto em Pedro Páramo como em costas para uma obra poética de quase
flitivo da poesia de Carlos Drummond de John Wayne em inúmeros faroestes sobre a Grande Sertão traços de um Bildungsroman meio século”. Mas, na direção contrária dos
Andrade ou a problemática arquitetura poé- relação conflituosa entre brancos e índios. (romance de formação) subvertido, que iria críticos que analisaram seu trabalho, Arri-
tica de João Cabral de Melo Neto, incapaz “Seu sentido de história é inegável”, justifi- na direção oposta do romance burguês por gucci ousa filiá-lo a uma tradição que inclui
de admitir o convívio das palavras arte e ca. Os filmes de Ford, segundo o professor, “canalizaraépicaoral paracontaruma histó- os nomes de Murilo Mendes e Jorge de Li-
inspiração, sempre em campos opostos na estariam impregnados ria individual”. A histó- ma, mostrando como o surrealismo e o cato-
arena do autor pernambucano. de elementos que rejei- ria de Pedro ou de Rio- licismo deram as mãos para receber o filho
Arrigucci anda tão obcecado pela ligação tam a visão simplista **
“Nosso problema é baldo deixa de ser a da pródigo, cuja “agressividade” e “desregra-
entre criação literária e construção históri- do índio como o selva- travessia de desgarra- mento dos sentidos” o teriam mantido lon-
ca que prepara para breve um outro livro, gem que deve ser des- entender como o dos,adaeducaçãosenti- ge desses visionários poetas. “Pouco se es-
cuja ousadia deverá ser tão grande quanto a terrado. Já o sertão, romance renasce no mental de deserdados, tuda a renovação católica de Jorge de Lima
de O Guardador de Segredos. Nele, vai juntar por ser o lugar do reen- sertão brasileiro pela para sintetizar a histó- e a mistura sui generis da religião com o
o diretor norte-americano John Ford contro do narrador ria de uma nação. Pres- surrealismo de Murilo Mendes, mas ela te-
(1894-1973), o escritor argentino Jorge Luis consigo mesmo – caso narrativa oral” tando tributo ao mes- ve uma importância enorme no contexto
Borges (1899-1986) e o escritor brasileiro de Rosa –, é o lugar em ** tre Antonio Candido, estético e ideológico brasileiro.”
João Guimarães Rosa (1908-1967). O que o que o escritor penetra Arrigucci lembra que, Homem de corrigir injustiças, Arrigucci
trio teria em comum? Um esforço conscien- para refletir sobre a ambiguidade do Brasil. em ambos os casos, a reinvenção do roman- também cruzou fronteiras como paladino
te de refletir sobre a história de seus países “Nosso problema é entender como é que o cepassa pelatentativa de lidarcom umgêne- literário. Idealizador da coleção Prosa do
partindo do território do indiferenciado – o romance de repente renasce no sertão brasi- ro importado, adaptando-o a um terreno Observatório, da editora Cosac Naify, ele pu-
Oeste, no caso de Ford, o pampa, no de Bor- leiro de dentro das formas da narrativa bruto – como o sertão, que tem todos os blicou autores confinados aos sebos, como
ges, e o sertão, no de Rosa. Para quem explo- oral”, observa Arrigucci, aproximando Gui- caminhos e nenhum, onde a sintaxe é o pró- o uruguaio Felisberto Hernández (1902
ra tão bem como Truffaut o universo de Hi- marães Rosa do amigo mexicano Juan Rul- prio labirinto.“Em Grande Sertão: Veredas, a -1964) e o peruano Julio Ramón Ribeyro
tchcock no ensaio extra de O Guardador de fo (1917-1986), autor do clássico Pedro Pára- linguagem instaura o mundo, é uma espécie (1929-1994). Agora, acaba de editar Facun-
Segredos, falar de John Ford vai ser fácil. De mo (1955), filmado este ano pelo diretor Ma- de nebulosa poética com muito arcaísmo e do ou Civilização e Barbárie para a mesma
Borges, então, nem é preciso dizer. Arriguc- teo Gil. Rulfo é contemplado no livro com uma poesia verbal que se impõe à própria editora, a obra máxima do argentino Do-
ci é tradutor do escritor argentino (História um ensaio publicado há seis anos na revista sintaxe, como se fosse o volteio de um rio.” mingo F. Sarmiento (1811-1888) sobre o cau-
Universal da Infâmia) e coordenador da edi- Fragmentos e agora reescrito. O ensaio O Guardador de Segredos, que dá dilho de mesmo nome. Compartilhar bons
ção de sua obra completa pela Companhia Arrigucci destaca a proximidade entre Pe- título ao livro de Arrigucci, trata mesmo do livros é com ele mesmo.
das Letras. De Rosa, uma amostra do que dro Páramo e Grande Sertão: Veredas não ape- caminho espinhoso que os poetas enfren-
poderá ser seu ensaio está página 113 de O nas pelo uso do monólogo interior – distin- tam “para dar forma estética particular a
Guardador de Segredos. Trata-se de um texto to do de Faulkner ou James Joyce. Nas duas uma experiência histórica mais ampla”. No estadão.com.br
escrito para o suplemento especial publica- obras-primas dos escritores, eles se valem caso, ele fala do poetaSebastião Uchoa Leite Leia trecho do livro no site
do em 2006 pelo Estado para marcar os 50 da oralidade do campesino de Jalisco e do (1935-2003), a quem dedica a obra. O curio- estadão.com.br/s8
anos de Grande Sertão: Veredas. jagunço do centro-norte de Minas Gerais . so é que Uchoa Leite sempre foi lido como

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