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RETRATO....

INACABADO

“Já conheço os passos desta estrada sei que vai dar em nada seus segredos sei de cor.
Já conheço as pedras do caminho e sei também que ali sozinho eu vou ficar, tanto pior.
O que eu posso contra o encanto deste amor que eu nego tanto
Evito tanto e que no entanto volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes, velhos fatos que num álbum de retratos eu temo em colecionar”

Prestíssimo...
Quinta-feira já! E onze horas! O banco! Meu Deus, o banco! Mamãe não esta bem, preciso
levá-la ao medico... Contas, mais contas! Água, luz , telefone, celular, Internet.
Supermercado, a escola do menino, oh que vida de merda! E essa puta da mãe dele que não
vem vê-lo... quem pensa que ela é... mês e meio! Merda! O dinheiro não vai dar... preciso
organizar a aula da noite... difícil trabalhar com ele, um cara legal, é verdade, mas
indisciplinado ... o banco ... preciso ir ao banco.

Presto
O telefone... não agüento mais...quem, agora? Horas pendurado nele... a orelha fervendo...
tudo ou nada, agora! Dividido... sim dividido... meu coração em praça de guerra... Rio, São
Paulo... e em São Paulo quem? Qual? Ah! Preciso de uma trincheira, esconder-me, escapar
enquanto zunem todas essas emoções-bala, perdidas... Regime...preciso fazer um regime...
o mundo, as oportunidades, os amores exigem um estereótipo ... estou fora dele...um
pouco... ok, merda de grilo falante... muito, muito fora de forma... eta consciência, larga do
meu pé... quem será ? Alô !

Rallentando
Verão... 35ºC no parque da Água Branca... imagine nas calçadas da Paulista então... nem
uma brisa, velhas casas, prédios, edifícios, arranha-céus... o Masp, majestoso...
Maspjestoso....heheheheheh o verde solitário do Trianon a quebrar-lhe a fria disposição
árida ... Meu coração, um pandeiro... minha respiração uma cuíca... O calor infernal... e tua
voz... é frio o suor que se esconde no rosto... e a mancha molhada no aparelho, rocha-bóia
que aperto.

Allegro maestroso
Tua voz... palavras, palavras, sons, gestos imaginados.... melíflua um pouco, súbito dura, o
ritmo conhecido, entusiasmado... melodiosa, fremente, insidiosa, carente, poderosa,
demente. Teu rosto belo, quase um arquétipo... e a tatuagem. Sinal... sina dos tempos.
Talvez eu faça uma também... quando me sentir pronto e desejável... dedicação... pequena,
negra... uma tatuagem no peito... pare que se aviste o que lhe vai dentro. Nos vemos... sim...
realmente... gostei muito. Avise-me. Obrigado. Tchau.

Allegro vivace
O banco! Preciso ir no Banco.... almoçar, também... dieta já! O primo, o preguiça! Como
faze-lo participar do ritmo da casa? Bom, pelo menos ele foi buscar meu menino na
escola... preciso concentrar-me... os estudos no computador... as formas e a paleta de cores,
definida... encomendas... ah! Vão salvar-me a pátria... e a pele. Concentrar-me agora. Ah!
Lógico .... dimensões das telas.... creio que 1.10m x 1.30m
Sim, ficarão perfeitas... mas preciso terminar o retrato... terminar é mera expressão... como
gosto desta palavra... mera!... mera, quimera, temera.... do simples evoluo – será? – para o
medo.... não ser capaz, de não atingir meus objetivos, de não ser merecedor de que me ame.
Minha dieta... preciso, preciso, preciso.

Com anima
Ah ! o retrato! Concentro-me no esboço de linhas negras... mal posso toca-lo tanto o amor
que sinto... meu coração dispara... do fundo branco a silhueta desprende-se... caminha...
achega-se e me abraça... como eu te amo! Desvencilho-me da emoção e escolho-espalho a
tinta sobre a paleta... pinceis. Um frenesi. Amarelos, azuis, verdes, brancos, negros... não
sinto o tempo, não há fome, não há nem calor nem frio... apenas a tua imagem que, a cada
momento, se intensifica... sim, violeta... huuummmm... combinação bem interessante...
como mudou minha paleta! Não, não trabalhava assim... não com essas cores! A cada
passada, toque... como se fora tua pele a tela sensível em que me projeto... tua pele... minha
tela... minha verdadeira tela.. para meus lábios-pincel. Meu ritmo se faz menos intenso...
mas não há cansaço... já é madrugada. Uma ultima passada... e a tatuagem negra ressalta na
espádua nua.

Adágio
Absorto, vazio, concentro-me na obra que te dediquei. Sim... não há paralelo com meus
trabalhos passados. Fase de Regina, Abandonada, um punhal frio a rasgar-me as entranhas..
Agora não... sim, é outro o meu mister, encantamento, razão de existir e seguir avante.
Vazio... Exausto. O corpo magnífico que emerge da tela cumpre seu destino... protoplasma
colorido de um médium desavisado.

Coda
Distraído.
“Lá vou eu de novo, como um tolo procurando o desconsolo
Que cansei de conhecer... novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara ainda volto a lhe escrever
Pra dizer que isso é pecado, eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado e você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto, outro retrato em branco e preto a maltratar meu coração...”
As palavras de Jobim... coincidência-pontual-pressagio de um amor sem limites. E de uma
noite insone. Como se eu não soubesse!

O banco! Esqueci o banco!


Ora, foda-se o banco!
Todos os Bancos

(este texto não foi escrito por mim, mais foi escrito tendo a mim como protagonista desta
historia que foi real, só posso agradecer a grande sensibilidade de um doce amigo que
conseguiu captar tão perfeitamente a mim no momento dos fatos narrados, até hoje me
pergunto, visto que terminei o retrato se o retrato inacabado não é o meu próprio).

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