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UMA NOITE EM CLARO COM HARRY POTTER

02-08-2007

NEUROCIÊNCIA

Uma noite em claro com Harry Potter

Suzana Herculano-Houzel
neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "O Cérebro
Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent) e de "O Cérebro em
Transformação" (ed. Objetiva)

A escocesa J.K. Rowling consegue coisas fantásticas: fazer


crianças lerem avidamente livros de 600 páginas, vender 8 milhões
de livros em um só dia, ser lida por milhões de pessoas mundo
afora ao mesmo tempo – e ainda deixar uma boa parcela dessas
pessoas sem dormir para chegar logo ao fim da história, como eu (e
aposto que não fui a única). Como a neurociência explica tamanho
fenômeno?

Com duas palavras: ansiedade e prazer. Seguindo sábios


conselhos do meu marido, fui à livraria na noite em que o livro
começou a ser vendido, em vez de comprá-lo confortavelmente pela
internet. Esperá-lo em casa teria me custado dois ou três dias de
expectativa e o dilema de receber o livro justo no dia em que as
crianças voltariam das férias com o pai; indo à livraria, eu poderia
lê-lo imediatamente e receber as crianças já sabendo o final da
história – e, portanto, com meu tempo de férias disponível
integralmente para elas.

Eu dispunha de três dias para a tarefa, mas o Potter de Rowling fez


um estrago no meu cérebro – no bom sentido – e resolveu o
assunto em uma única noite. Lá pelas duas da manhã, no meio do
livro e na pior das enrascadas em que Potter se mete, meu córtex,
na expectativa de descobrir a saída e o destino final do bruxo,
resolveu ativar ao máximo o "locus coeruleus", fonte de
noradrenalina, que inunda o resto do cérebro e o deixa acordado e
atento, pronto para processar novas informações com rapidez e
precisão. Nesse estado, qualquer sonolência desaparece: como
adormecer requer por definição o desligamento do "locus
coeruleus", não há força de vontade que desfaça o estado fabuloso
de ansiedade, incompatível com o sono, em que a tensão da
expectativa nos mete.

Como se não bastasse deixar o cérebro aceso, o "locus coeruleus"


ativa também a área tegmentar ventral, que, com o aval do córtex
interessado no assunto, distribui dopamina pelas regiões do cérebro
que nos deixam motivados, dão saliência às informações
processadas e ainda tornam o processo prazeroso. Resultado: com
um assunto eletrizante a acompanhar, não só você perde o sono
como acha isso ótimo. E assim eu adormeci feliz e satisfeita... às
oito da manhã.

Se você precisa dormir à noite, portanto, a leitura do último Harry


Potter é altamente desaconselhável. Em compensação, se você
decidir abrir o livro, seu cérebro saberá mantê-lo acordado até a
última linha. A neurocientista de plantão adverte: Harry Potter é
prejudicial à sua sonolência!

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da


UFRJ e autora de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira &
Lent) e de "O Cérebro em Transformação" (ed. Objetiva)
suzanahh@folhasp.com.br

Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq0208200706.htm

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