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VEM COMIGO?

Por Ramiro Figueiredo Catelan

Já está anoitecendo, e o frio, aos poucos, começa a me incomodar. Fecho a


janela, acendo a lareira e me sento em minha velha poltrona, já gasta por agüentar meu
peso excessivo por tantos anos. Puxo um cigarro do bolso e procuro meu isqueiro. Sei
que um homem da minha idade deveria se preocupar com a saúde, mas a verdade é que
eu estou pouco me lixando.

Estendo a mão e levo à boca a caneca com o café amargo e frio que eu preparara
uma hora antes, alternando os goles com as tragadas do fumo. Nunca levei jeito para a
cozinha, nem para a maioria das outras coisas. “Que cara chato e deprimente”, você
deve estar pensando. Com toda a razão. Antes, a minha vida até poderia ter algum
sentido, mas não consigo trazer luz aos meus pensamentos, distorcidos por estarem a
tanto tempo vagando nas sombras. Nem sei por qual motivo estou dizendo isto, pois
acho que ninguém pode me ouvir agora. Exceto ele.

É, aquele garoto. Uma presença inconveniente me observando o tempo todo,


sempre a rabiscar num caderno de capa azul. Já nem lembro mais o dia em que apareceu
pela primeira vez, mas jamais consegui me livrar dele. Sempre que tento falar, é como
se ele entendesse cada palavra dita, mas me ignorasse. Devo estar ficando louco. Ou
talvez eu sempre tenha sido, não sei dizer.

Faz anos que não saio dessa cidadezinha para nada. Evito pôr os pés para fora de
casa, e quando o faço, é apenas para ir ao mercado ou pagar as contas. Consigo viver
razoavelmente com a minha aposentadoria – graças a Deus não preciso mais trabalhar.
Minto, não é graças a Deus, é graças a mim, ao meu esforço. Deixei de acreditar numa
força superior há anos, desde que uma febre horrível a levou. Ah, que saudades da
minha querida Elisa. Agora não me resta mais nada... exceto o pivete, que insiste em
olhar para mim e continuar a escrever calado, como se eu fosse a razão pela qual ele
despeja aquelas palavras nas folhas brancas.

– Você está absolutamente certo.

Eu ouvi bem? Ele falou comigo?

– Sim.

– Quem é você? Que está fazendo aqui?

Não obtenho resposta, o que me irrita.

– Por que nunca respondeu às minhas perguntas?

– Calma... eu não preciso responder, pois no fundo o que você procura está
dentro de si.

Dentro de mim? Que raio de papo é este? Será que a minha loucura já chegou ao
extremo?

1
– Não... Já começamos de maneira errada! Primeiro de tudo: pare de dizer que é
louco, porque não é coisa nenhuma!

– Ah, claro... Então, agora você vai me dizer que você é real e isto não é um
pesadelo no qual eu estou preso há 10 anos?

– É necessário mesmo que eu diga?

Chega disso! Levanto e sigo em direção a ele. Observo-o por uns segundos, e,
resolvido a despejar toda a minha frustração, acerto-lhe um tapa no rosto repleto de
espinhas.

Qual não é a minha surpresa ao sentir a dor em minha própria face. Olho do
garoto para o espelho perto dali: a marca do tapa é visível na minha bochecha, vermelha
e penetrante. Que diabos está acontecendo? Se isto é mesmo um pesadelo, por que não
consigo acordar? Caio aos pés do garoto, as lágrimas escorrendo de meus olhos e o peso
da dor desmoronando em mim. Ele larga o caderno e me estuda com os olhos.

– Você não se reconhece mais?

O que ele quer dizer com isto? Espere aí. Eu... Eu sei! Não... Mas isto...

– ... não é impossível. Você esteve olhando para o seu passado durante um
tempo incontável e só agora foi perceber isso.

– Por que eu continuo vivo?

– Vivo, você? Não creio nisso. Acho que está apenas... Existindo, nada mais.

– Não há um jeito de mudar isto?

– Certamente. Você sabe como.

Eu suspiro por um momento, hesitante.

– Será que eu terei força suficiente?

– O que você acha?

– Não sei... Mas, espere... Nós... Somos a mesma pessoa, não?

– Afirmativo.

– Como...

– Você sabe de tudo melhor do que qualquer um. Não vamos mais perder
tempo... Vem comigo?

2
Seguro com firmeza a mão que me é estendida. Juntos, seguimos em direção ao
hall, muito silenciosamente. Abro a porta com cuidado, deixando o frio bater em meu
rosto. Sorrio pela primeira vez em anos.

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