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Estendo a mão e levo à boca a caneca com o café amargo e frio que eu preparara
uma hora antes, alternando os goles com as tragadas do fumo. Nunca levei jeito para a
cozinha, nem para a maioria das outras coisas. “Que cara chato e deprimente”, você
deve estar pensando. Com toda a razão. Antes, a minha vida até poderia ter algum
sentido, mas não consigo trazer luz aos meus pensamentos, distorcidos por estarem a
tanto tempo vagando nas sombras. Nem sei por qual motivo estou dizendo isto, pois
acho que ninguém pode me ouvir agora. Exceto ele.
Faz anos que não saio dessa cidadezinha para nada. Evito pôr os pés para fora de
casa, e quando o faço, é apenas para ir ao mercado ou pagar as contas. Consigo viver
razoavelmente com a minha aposentadoria – graças a Deus não preciso mais trabalhar.
Minto, não é graças a Deus, é graças a mim, ao meu esforço. Deixei de acreditar numa
força superior há anos, desde que uma febre horrível a levou. Ah, que saudades da
minha querida Elisa. Agora não me resta mais nada... exceto o pivete, que insiste em
olhar para mim e continuar a escrever calado, como se eu fosse a razão pela qual ele
despeja aquelas palavras nas folhas brancas.
– Sim.
– Calma... eu não preciso responder, pois no fundo o que você procura está
dentro de si.
Dentro de mim? Que raio de papo é este? Será que a minha loucura já chegou ao
extremo?
1
– Não... Já começamos de maneira errada! Primeiro de tudo: pare de dizer que é
louco, porque não é coisa nenhuma!
– Ah, claro... Então, agora você vai me dizer que você é real e isto não é um
pesadelo no qual eu estou preso há 10 anos?
Chega disso! Levanto e sigo em direção a ele. Observo-o por uns segundos, e,
resolvido a despejar toda a minha frustração, acerto-lhe um tapa no rosto repleto de
espinhas.
Qual não é a minha surpresa ao sentir a dor em minha própria face. Olho do
garoto para o espelho perto dali: a marca do tapa é visível na minha bochecha, vermelha
e penetrante. Que diabos está acontecendo? Se isto é mesmo um pesadelo, por que não
consigo acordar? Caio aos pés do garoto, as lágrimas escorrendo de meus olhos e o peso
da dor desmoronando em mim. Ele larga o caderno e me estuda com os olhos.
O que ele quer dizer com isto? Espere aí. Eu... Eu sei! Não... Mas isto...
– ... não é impossível. Você esteve olhando para o seu passado durante um
tempo incontável e só agora foi perceber isso.
– Vivo, você? Não creio nisso. Acho que está apenas... Existindo, nada mais.
– Afirmativo.
– Como...
– Você sabe de tudo melhor do que qualquer um. Não vamos mais perder
tempo... Vem comigo?
2
Seguro com firmeza a mão que me é estendida. Juntos, seguimos em direção ao
hall, muito silenciosamente. Abro a porta com cuidado, deixando o frio bater em meu
rosto. Sorrio pela primeira vez em anos.