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Sexta-feira, 1 de Outubro de 2010


YAOHÚSHUA (Jesus) desceu ao inferno ou ao
seol/hades entre a Sua morte e ressurreição? |
ARTE | PREDESTINAÇÂO | RAZÂO | CÉREBRO | POLÍTICA
“DESCENDIT AD INFERNA”:
UMA ANÁLISE DA EXPRESSÃO “DESCEU AO HADES”
NO CRISTIANISMO HISTÓRICO
Heber Carlos de Campos
http://old.thirdmill.org/files/portuguese/13874~9_19_01_1
0-42-34_AM~heber1.htm

A expressão “desceu ao Hades,” com referência a Cristo, não é


encontrada em nenhum lugar das Escrituras. Afirma-se que o
Redentor “desceu às regiões inferiores, à terra” (Ef 4.9),1 mas
não que ele desceu a um lugar chamado Hades depois da sua
morte e sepultamento. Todavia, esta expressão apareceu em dois
credos da igreja cristã antiga, ainda que com palavras
diferentes. A primeira ocorrência está no Credo Apostólico, que
tem a expressão latina “descendit ad inferna” (desceu aos
2

infernos/Hades), e a outra encontra-se no Credo de Atanásio,


com a expressão latina “descendit ad inferos” (desceu às regiões
inferiores).
O estudo desta matéria será desenvolvido abaixo, primeiro
historicamente, depois teologicamente e então biblicamente.
I. ANÁLISE HISTÓRICA DA “DESCIDA AO HADES”
A expressão “desceu ao Hades,” que aparece no Credo Apostólico,
não faz parte das suas formas mais antigas. Ele sofreu
alterações posteriores, uma das quais foi a expressão acima.
Witsius afirma:
É digno de nota que, antigamente, aqueles credos que possuíam o
artigo sobre a descida de Cristo ao inferno, não continham o
artigo relativo ao seu sepultamento, e aqueles nos quais o
artigo com respeito à descida ao inferno foi omitido, de fato
continham o artigo relativo ao sepultamento.2
Rufino, o bispo da igreja de Aquiléia, fez alguns comentários
sobre o Credo Apostólico em sua Expositio Symboli Apostolici,
por volta do final do século IV, dizendo que essa cláusula nunca
foi encontrada nas edições romanas (ou ocidentais) do credo.
Rufinus acrescenta que a intenção da alteração do Credo em
Aquiléia não foi a de acrescer uma nova doutrina, mas a de
explicar uma antiga e, portanto, o credo de Aquiléia omitiu a
cláusula “foi crucificado, morto e sepultado” e a substituiu por
uma nova cláusula, “descendit ad inferna.”3
Portanto, originalmente a expressão descendit ad inferna não
fazia parte do Credo Apostólico. No tempo de Rufino, ela
apareceu inserida no Credo, mas não como um acréscimo ao que
já havia, sendo apenas uma expressão substitutiva de
“crucificado, morto e sepultado.” O Credo de Atanásio4 (escrito
por volta do século V ou VI) segue mais ou menos a mesma ideia
do Credo de Aquiléia, onde a expressão “desceu ao Hades”
substitui a expressão “sepultado,” não sendo um acréscimo a ela.
Até então, não havia nenhuma modificação significativa na
doutrina cristã com respeito à situação da pessoa do Redentor
ao morrer, pelo menos nas traduções mais conhecidas do Credo.
Enquanto houve a omissão da cláusula “sepultado” e o
aparecimento da cláusula substituta “desceu ao Hades,” ou vice-
versa, não surgiu nenhum problema teológico novo. Este
apareceu quando as duas expressões acima apareceram no mesmo
Credo, uma após a outra. Por volta do século VII, a cláusula
descendit ad inferna apareceu em outros credos, mas como um
acréscimo a “crucificado, morto e sepultado,” e não como
expressão substitutiva dessas coisas acontecidas a Cristo. A
partir de então, uma nova doutrina começou a aparecer dentro
3

da igreja cristã, ou seja, a descida de Cristo a um local chamado


Hades, após o seu sepultamento. Daí as várias traduções do
Credo Apostólico aparecerem assim: “Padeceu sob o poder de
Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Desceu ao
Hades. Ao terceiro dia, ressurgiu dos mortos.”
De onde surgiu esta inserção? É difícil identificar a sua
trajetória, mas há alguns indícios. Witsius menciona que, por
volta de 359, “encontraram-se em Constantinopla cerca de
cinquenta pessoas, e lá compilaram um Credo, no qual
professavam que criam em Cristo, que foi morto e sepultado e
que ‘penetrou as regiões subterrâneas, nas quais até mesmo o
Hades foi golpeado com terror’,”5 o que dá a entender um sentido
diferente e que vai além de um sepultamento, contrastando com
o entendimento de Rufino. J. N. D. Kelly também menciona que na
doxologia da Didascalia siríaca, que parecia uma formulação
credal, havia a seguinte expressão: “Que foi crucificado sob
Pôncio Pilatos e partiu em paz, a fim de pregar a Abraão, Isaque
e Jacó e a todos os santos a respeito do fim do mundo e da
ressurreição dos mortos.”6
O descensus (“descida”), como uma atividade de Cristo num
mundo inferior entre a sua morte e a sua ressurreição, não
apareceu, a princípio, nas formulações credais da igreja
ocidental. Porém, sob a influência do pensamento da igreja
oriental desde tempos bem antigos,7 veio a aparecer
posteriormente até mesmo nas formulações ocidentais. Kelly
afirma: “Deveria ser observado que após Santo Agostinho é que
prevaleceu o hábito ocidental de explicar 1 Pedro 3.19 como um
testemunho da missão de Cristo aos contemporâneos de Noé
muito antes de sua encarnação.”8
A doutrina, que usualmente é chamada de “Descida ao Hades,”
desenvolveu-se de forma efetiva na igreja cristã com o passar
dos séculos, numa tentativa de reviver a doutrina pagã do Hades.
Dentro do pensamento grego havia um lugar para onde iam todos
os mortos — o Hades. Este era dividido em dois setores: o Elísio
(para onde iam todos os bons) e o Tártaro (para onde iam todos
os maus). Esta ideia greco-pagã é razoavelmente coerente, pois
pelo menos os maus iam para o lugar chamado inferno, que é uma
das traduções de Tártaro, e os bons iam para o paraíso, que é a
tradução de Elísio.
Alguns cristãos, com base numa análise equivocada do texto de 1
Pedro 3.18-209 e com o apoio da expressão “desceu ao Hades”
inserida no Credo Apostólico, tomando a ideia de Hades do
conceito pagão, acabaram criando um Hades inconsistente,
também com duas divisões: os bons vão para o Paraíso e os maus
4

para o Hades. Isto quer dizer que, se alguém perguntar a estes


cristãos qual é a composição do Hades, a resposta será: Paraíso
e Hades. A visão pagã desta matéria é muito mais consistente
que a dos cristãos, influenciados pelo conceito pagão de Hades.
Do século VII em diante, apareceu uma nova doutrina sobre a
atividade de Jesus Cristo após a sua morte e sepultamento num
outro lugar que não o céu.
Portanto, durante a história da igreja o pêndulo vai oscilar
entre a descida de Cristo ao Hades enquanto esteve entre nós
(especialmente ao ser crucificado e sepultado) e uma descida a
um local chamado Hades, entre a sua morte e ressurreição. Neste
último caso, o grande problema é definir o que ele foi fazer lá. É
disso que trataremos com mais detalhes neste ensaio.
II. ANÁLISE TEOLÓGICA DE VÁRIAS TRADIÇÕES SOBRE
A DESCIDA AO HADES
As várias tradições teológicas mencionadas abaixo, refletindo
os seus pressupostos teológicos, deram as suas próprias
explicações à expressão “desceu ao Hades” na história da igreja.
Houve várias divergências entre os herdeiros da Reforma, que
serão analisadas ligeiramente adiante.
A. Visão da Tradição Católica
O entendimento católico é o de que Cristo, após a sua morte, foi
ao limbus patrum.10 Na teologia católica, esse lugar é para onde
vão os mortos que não são salvos pela graça, mas que não podem
ser classificados como pagãos ou mesmo como pecadores
réprobos. Esse lugar fica nas bordas do inferno e do purgatório;
todavia, não deve ser confundido com eles. O limbus patrum,
segundo a teologia católica, não é um lugar de tormentos. É o
“seio de Abraão,” ao qual Cristo se refere na parábola do rico e
Lázaro. O inferno é o lugar de condenação eterna enquanto que o
purgatório é um lugar temporário de punição purgativa
reservada para os cristãos que morrem com as manchas dos
pecados veniais ou que morrem sem a devida penitência pelos
seus pecados.
No limbus patrum, os santos do Antigo Testamento esperavam a
sua redenção ser consumada por Jesus Cristo, o que se deu em
seu descensus ao Hades. Ali Jesus concedeu às almas dos santos
do Antigo Testamento que haviam morrido os benefícios do seu
sacrifício expiatório, pois eles estavam esperando o anúncio
final da sua salvação. Essa ideia católica desenvolveu-se
principalmente na Idade Média, quando se tornou popular.
Os teólogos escolásticos também ensinaram que, ao mesmo
tempo em que uma descida temporal e espacial ocorreu somente
no limbus patrum, outros efeitos dessa descida estenderam-se a
5

outras regiões do Hades, tais como a manifestação da glória de


Cristo sobre o Diabo e os condenados e o cumprimento da
esperança para os do purgatório.11
Portanto, se esta explicação é a correta, Jesus Cristo teria
descido especificamente a um dos compartimentos do Hades, que
é o lugar dos bons, anunciando-lhes a salvação consumada. Ele
não foi efetivamente ao lugar dos ímpios.
B. Visão da Tradição Anglicana
Por volta de 1537, a teologia anglicana, numa formulação semi-
protestante elaborada no tempo de Henrique VIII, sustentava
uma doutrina sobre a descida de Cristo ao Hades semelhante à
noção católica, mas com alguns aspectos distintos: a alma de
Cristo desceu ao inferno para conquistar a morte e o Demónio e
para libertar as almas “daqueles homens justos e bons, que desde
a queda de Adão morreram por causa de D-us e na fé e na crença
deste nosso Salvador Jesus Cristo, que estava para vir.” A sua
conquista do Demónio destruiu qualquer reivindicação que o
Diabo tinha sobre os homens, e a descida foi parte do “resgate”
pago por Cristo.12
No período do rei Eduardo VI (1547-1553), houve algumas
variações no conceito da descida ao Hades. Thomas Becon
elaborou um catecismo,13 onde pergunta: “Cristo sofreu dores
também no inferno?” Então, ele responde:
De modo algum. Pois quaisquer que tenham sido as dores que
tivesse que sofrer por nossos pecados e impiedades, ele as
sofreu todas em seu bendito corpo sobre o altar da cruz.14
Embora esteja absolutamente certo nisso, Becon também
acrescenta que “ele não desceu ao inferno como uma pessoa
culpada para sofrer, mas como um príncipe valente para
conquistar...”15
Essa concepção trouxe modificações ao pensamento católico,
sendo um pouco mais imaginativa que a tradição anterior. No seu
catecismo, Becon deixou transparecer não somente uma teologia
de pagamento de penalidade no Hades, mas também uma espécie
de teologia do triunfo,16 mesmo estando Jesus Cristo no estado
de humilhação, evidenciando uma ligeira semelhança ao
pensamento do luteranismo influenciado por Melanchton, que
estudaremos adiante.
C. Visão da Tradição da Reforma Radical
Em linhas gerais, há três correntes dentro da reforma radical17
com respeito ao descensus. Por essa razão, a exposição dessa
corrente será um pouco mais longa:
1. O DESCENSUS COMO UM ATO DIVINO
Kaspar Schwenckfeld (1489-1561)18 sustentou que um Jesus
6

divino havia descido ao inferno e este foi um ato unicamente de


seu próprio ser divino. Nada da sua natureza humana foi ao
Hades. O “espírito vivificado” é o Espírito Santo através do qual
a natureza divina foi e pregou no Hades. A ideia é a de um Jesus
celestial descendo ao inferno, estabelecendo um púlpito para
pregar aos mortos do mesmo modo como o fez enquanto pregou
aos vivos: “[Cristo] desceu à prisão [do inferno] e pregou
através do Espírito, proclamando-lhes a salvação e o evangelho
da graça pelo qual eles haviam estado esperando com grande
expectativa.”19 Jesus veio do céu e “tirou todas as suas almas da
masmorra da prisão, e as conduziu consigo para o seu reino
celestial e ao lugar preparado, e deixou vazia a corte exterior
do inferno.”20 Esta última afirmação de Schwenckfeld é
espantosa! O inferno esvaziou-se com a obra de pregação do
Jesus celestial! Não ficou ninguém na condenação. É uma outra
maneira de ensinar um universalismo salvador. Além disso, não
há nada de humano naquilo que Jesus teria feito no inferno. Era
típico do movimento da reforma radical uma espécie de
docetismo, um movimento teológico na história da igreja que
negou a plena encarnação e humanidade de Jesus Cristo. Além
disso, não foi o Jesus divino que pregou, mas a Terceira Pessoa
da Trindade, o Espírito Santo.
2. O DESCENSUS COMO UM ATO HUMANO
Agora é a vez dos anabatistas Johannes Schlaffer e Johannes
Spittelmaier, que ensinaram uma ideia totalmente oposta à
anterior. Quem desceu ao inferno foi um Jesus totalmente
humano. A descida ao Hades foi uma função da natureza humana
do Redentor e é um ritual pelo qual somente o homem deve
passar. “Além disso, foi o Jesus mortal que desceu e o Pai divino
quem o libertou de lá.”21
O descensus foi realizado por um Jesus humano, que carece da
ajuda do Pai para ser resgatado, antes que por um ser divino.
Todavia, o sentido importante do descensus não foi a
encarnação, mas o Madeiro. Este pensamento é bem diferente do
primeiro porque torna o descensus algo que aconteceu neste
mundo, não num mundo inferior, localizado fora de nosso mundo.
O colega de Schlaffer, Spittelmaier, identificou “o inferno deste
mundo” de Schlaffer com o inferno de perseguição nas mãos dos
cristãos ortodoxos.22
Portanto, na concepção destes anabatistas, todos os cristãos
que sofrem neste mundo por causa de Cristo compartilham dos
mesmos tormentos que Jesus suportou. Estes sofredores são
libertados dos sofrimentos infernais do futuro porque já
experimentaram os sofrimentos semelhantes aos de Cristo.23
7

Neste caso, os sofrimentos de Cristo sobre o Madeiro foram mais


um exemplo para os seus,24 e não sofrimentos penais,
diminuindo-se, assim, o valor substitutivo e penal dos
sofrimentos de Cristo.
3. O DESCENSUS COMO UM ATO DO SER DIVINO E DOS SERES
CELESTIAIS E HUMANOS
Uma outra variação do descensus entre os simpatizantes da
reforma radical foi a de Miguel Serveto (1511-1553),25 que
Friedman denomina de bizarra.26 À semelhança de Schwenckfeld,
ele cria que o corpo de Cristo era composto de material
celestial, sendo acentuadamente divino.27 Todavia, Cristo não
poderia ficar despojado de sua humanidade ao ser confrontado
com Satanás no inferno. A humanidade de Cristo está vinculada
ao seu pacto pessoal com o crente, dentro de quem todo mal e o
pecado residem. Embora crendo na divindade de Cristo, Serveto
“acrescentou uma dimensão totalmente nova à teoria do
descensus, porque viu esse evento como um capítulo adicional
da batalha cósmica e eterna entre D-us e Satanás, que
eventualmente culmina no Apocalipse.”28 A fim de se entender
como D-us falhou na batalha contra Satanás e como o Filho
tentou descer ao inferno mas também deixou de alcançar a
vitória, é necessário conhecer a teoria do mal esposada por
Serveto.29 Desde a Queda, Satanás tomou posse da terra,
ocasionando a retirada de D-us do ser humano e a entrada da
serpente no mesmo. Quando Jesus desceu aos infernos “para
resgatar os santos do Antigo Testamento, ele não pode destruir
o poder de Satanás dentro da sua própria cidadela.” Escrevendo
a Calvino, “Serveto observou que Cristo não desceu à sepultura
ou ao lugar onde os corpos dos mortos são colocados, mas na
corte mais interior do inferno, onde as almas são tornadas
cativas.”30 Todavia, os esforços divinos foram frustrados
porque Satanás encarnou-se neste mundo como o papa, que fala
pela igreja de Cristo. Os crentes do Antigo Testamento foram
libertos, mas a igreja cristã está sob as garras de Satanás
encarnado. A doutrina cristológica e trinitária da igreja desde
Nicéia é o ensino pervertido de Satanás.31
Como D-us havia falhado no Éden (melhor, Pomar numa Várzea) e
Cristo falhou no seu descensus, D-us providenciou outro
descensus com manifestação divina, o qual, no entender de
Serveto, haveria de ocorrer em 1585, com a descida do arcanjo
Miguel. “Após a glorificação do Anticristo (a forma papal de
reinado) uma nova glorificação de Cristo é necessária.”32 Além
desta manifestação do arcanjo Miguel, os cristãos também
participam desta luta contra Satanás. Segundo o pensamento de
8

Serveto, todos devem descer ao inferno e expor as suas almas à


morte sangrenta na luta contra o Anticristo.33 Para Serveto, um
Jesus divino desceu ao inferno para libertar os crentes do
Antigo Testamento e todos os cristãos devem reproduzir em suas
próprias vidas a batalha de Cristo contra Satanás. O
cumprimento do descensus se daria somente em 1585, quando o
arcanjo Miguel haveria de descer para destruir a Satanás.34
D. Visão da Tradição Luterana
A interpretação luterana é bem diferente da interpretação das
tradições anteriores. Embora Jesus Cristo tenha ido
literalmente ao Hades entre a sua morte e ressurreição, o
propósito foi o de proclamar a sua vitória sobre Satanás. Lutero
vê nesse descensus a conjunção do triunfo de Cristo sobre
Satanás com a ideia de levar cativo o cativeiro.
A grande dificuldade desta interpretação é que ainda não tinha
havido nenhuma manifestação de vitória de Cristo, pois a
ressurreição ainda estava por acontecer. O resultado do
pensamento de Lutero é que, na tradição luterana, a descida ao
Hades é o primeiro estágio da exaltação de Cristo.
Na teologia luterana, o descensus ao Hades é tomado com muita
seriedade por causa da importância da expressão para essa
tradição da Reforma. Todavia, os luteranos não se aventuram a
explicar o descensus em seus detalhes, pois deve ser aceito
somente pela fé.35 Não é fácil reconciliar as diferentes
afirmações de Lutero a respeito da descida de Cristo ao Hades,36
pois ora ele falava da mesma em termos metafóricos, quando
Cristo conquistou Satanás, ora em termos literais.37 Todavia,
parece-nos que foi Melanchton quem mais influenciou o
luteranismo posterior, porque afirmou uma descida real e
espacial de Jesus ao Hades e, acima de tudo, tornou esse ato de
Jesus uma parte do seu triunfo.38
O ensino do luteranismo confessional aparece em dois lugares da
Fórmula de Concórdia, que é um dos símbolos de fé luteranos. A
Fórmula de Concórdia tem duas partes: a Epítome e a Declaração
Sólida. Na Epítome está escrito: “Porque é suficiente que
saibamos que Cristo desceu ao inferno, destruiu o inferno para
todos os crentes e redimiu-os do poder da morte, do diabo e da
condenação eterna das mandíbulas infernais.”39 Na Declaração
Sólida, há a seguinte afirmação: “Nós simplesmente cremos que a
pessoa total, D-us e Homem, após o sepultamento desceu ao
inferno, conquistou o Diabo, destruiu o poder do inferno e tirou
do diabo o seu poder.”40
Lutero cria que Jesus Cristo, na sua natureza humana e divina,
desceu ao inferno literalmente. Na única vez em que mencionou o
9

assunto, ele disse: “Eu creio no Senhor Jesus Cristo, o Filho de


Deus, que morreu, foi sepultado e desceu ao inferno.”41
Portanto, para o pensamento luterano, a ida ao inferno foi
posterior ao sepultamento.
E. Visão da Tradição Arminiana
É comum entre muitas pessoas a ideia de que a morte não coloca
um fim no período em que Deus opera com a sua graça para salvar
pecadores. Elas sempre tentam arranjar novas oportunidades
para os ímpios serem salvos, mesmo que seja após a sua morte.
Este é o caso de vários estudiosos de orientação arminiana,
como veremos adiante.
Esta tendência da tradição arminiana evidencia-se naqueles que
sustentam a noção mais comum desde os tempos antigos, de que
Cristo teria descido ao Hades para pregar o evangelho não
somente “a todos os piedosos falecidos na antiga dispensação
que creram nele e compartilharam da salvação cristã,”42 mas
também aos mortos em geral que não ouviram a pregação
enquanto viveram neste mundo.
A evangelização no Hades também tem como finalidade pregar
aos ímpios mortos para dar-lhes uma outra oportunidade de
salvação. A doutrina da segunda oportunidade é bastante comum
em círculos arminianos. Estas ideias baseiam-se numa
interpretação equivocada de 1 Pedro 3.18-20. Eles afirmam que
Jesus Cristo foi e pregou o evangelho de salvação aos espíritos
em prisão no Hades.
A grande dificuldade da primeira ideia acima é que os santos do
Antigo Testamento já haviam crido no Messias e, por isso,
estavam justificados (Rm 4.3; Gl 3.6-9), o que torna
desnecessária essa evangelização.
F. Visão da Tradição Reformada
Na teologia reformada, a expressão “desceu ao Hades” é muitas
vezes omitida inteiramente do Credo dos Apóstolos. Quando,
todavia, a expressão aparece, ela substitui “sepultado,” sendo a
palavra Hades entendida como uma referência ao “sheol,”43 a
região dos mortos, ou como uma referência ao estado de
morte.44 Outras vezes, como pensa Calvino, o Hades significa o
sofrimento e morte de Jesus como expressão do recebimento da
justiça divina.
Calvino sustentava que a descida ao Hades foi a experiência das
dores do inferno na alma de Jesus, enquanto o seu corpo ainda
estava pendurado na cruz, especialmente a experiência da ira
divina contra o pecado que ele suportou no lugar dos seres
humanos, que se evidencia numa dor espiritual resultante do
abandono de Deus. Ali na cruz, Cristo tomou sobre si as dores da
10

punição que eram devidas a todo o seu povo.45


Estas ideias de Calvino foram transmitidas a alguns segmentos
da Igreja da Inglaterra, no período do rei Eduardo VI, através
dos ensinos do bispo anglicano John Hooper, que assim comentou
a cláusula descendit ad inferna do Credo Apostólico, por volta
de 1549:
"Eu creio também que enquanto ele estava sobre o dito Madeiro,
morrendo e entregando o seu espírito a D-us seu Pai, ele desceu
ao inferno; isto quer dizer que provou verdadeiramente e sentiu
a grande aflição e peso da morte, e igualmente as dores e
tormentos do inferno, o que quer dizer a grande ira de D-us e o
seu severo julgamento sobre si, até ter sido totalmente
esquecido por D-us... Este é simplesmente o meu entendimento
de Cristo na sua descida ao inferno.46
Toda a tradição reformada sustenta, em alguma medida, o que foi
dito acima, com algumas pequenas variações, mas sem qualquer
prejuízo do entendimento geral de que a descida de Cristo ao
Hades deve ser entendida como algo que aconteceu enquanto ele
estava sob a ira de Deus no Calvário ou, no máximo, quando foi
sepultado.
III. ANÁLISE BÍBLICA DA “DESCIDA AO HADES” NAS PRINCIPAIS
TRADIÇÕES DA REFORMA
Existe base bíblica para afirmar que Jesus Cristo experimentou
o Hades — se por Hades entendemos a manifestação do juízo
divino — mas não há fundamento bíblico para afirmar que ele
desceu localmente ao Hades, após a sua morte e sepultamento.
Todavia, é importante que façamos uma análise da interpretação
bíblica das principais tradições da Reforma, a fim de que não
ignoremos como pensam estes companheiros cristãos.
Dentre os vários textos utilizados pelas diversas correntes
teológicas, o de 1 Pedro 3.18-20 é o mais usado e o mais abusado.
Vejamos, portanto, a sua interpretação em algumas tradições
teológicas.
A. Interpretação da Tradição Arminiana
Na tradição arminiana não existe uma interpretação única do
texto de 1 Pedro 3.20, mas várias que sustentam a doutrina do
evangelho da segunda oportunidade. Obviamente, a questão da
pregação do evangelho no Hades, dentro do arminianismo, é
matéria pertinente à extensão da morte de Cristo, que sem
dúvida atinge a todos os seres humanos sem exceção. Os
defensores desta concepção não conseguem aceitar que tantas
pessoas tenham perecido sem salvação. Este pensamento
certamente norteia a ideia da pregação evangelística da
segunda oportunidade no Hades.
11

Geralmente, para provar que a pregação no Hades foi de caráter


evangelístico, os seus defensores tentam associar o texto de 1
Pedro 3.19 com o de 1 Pedro 4.6, já que o primeiro texto recebe
objeção, pois é visto como sendo um texto que não fala de
evangelização.
Portanto, a probabilidade de que o significado de khru/ssein
(“pregar”) em 1 Pedro 3.19 tenha esta conexão deve ser
considerada como irresistivelmente forte contra qualquer outro
sentido que não o da pregação do evangelho. A probabilidade é
fortalecida pelo uso do verbo eu)hggeli/sqh (“foi pregado o
evangelho”) em 1 Pedro 4.6, entendendo que devemos considerar
este verso como tendo íntima relação com 3.19.47
Fica bastante difícil para os defensores do evangelho do Hades
provarem a sua tese sem mencionar o texto de 1 Pedro 4.6, mas
mesmo assim ela fica enfraquecida porque este texto não
favorece a ligação com 1 Pedro 3.19. Mas isto veremos mais
tarde.
Uma das interpretações mais curiosas é aquela dada no
comentário do arminiano De Wette:
Os antediluvianos não haviam tido nenhum redentor e nenhum
guia para a vida do Espírito. Portanto, D-us devia (se é que
podemos usar essa expressão) suprir-lhes esta deficiência e,
assim, por fim, o Senhor ressuscitado lhes trouxe a salvação no
Hades.48
O grande erro desta interpretação é que a Escritura não lhe dá
apoio e, além disso, Noé foi o pregador de D-us àquela geração
antediluviana, como veremos adiante. Eles não ficaram sem
testemunho de D-us. Portanto, não precisavam desta pregação
no Hades.
Outros arminianos admitem que o evangelho já havia sido
pregado à geração de Noé, e que esta pregação foi rejeitada, mas
não foi uma rejeição definitiva. Por isso, a descida de Jesus ao
Hades, conforme o seu entendimento de 1 Pedro 3.20, teria o
caráter de uma segunda oportunidade. Um escritor desta linha
de pensamento afirma que “muitos não foram endurecidos
irrecuperavelmente.”49 Outro deles ainda afirma: “Estes homens
que Pedro pensa que haviam perecido no grande julgamento de
D-us, parece que em seu destino terrível não tinham se
endurecido irrevogavelmente contra Deus.”50 A rejeição dos
homens do passado não foi uma rejeição final do evangelho. “Não
é possível que naquelas palavras ‘os quais nos outros tempos
foram desobedientes’ possa haver uma sugestão de que esta sua
desobediência tenha sido um ‘pecado eterno,’ que... é este o
terrível destino daqueles que nunca têm perdão?” Esta
12

interpretação é encontrada num dos comentários bíblicos mais


populares entre os pastores, The Pulpit Commentary.51
Uma outra interpretação curiosa é a de que a pregação do
evangelho no Hades foi dirigida àqueles que haviam se
arrependido enquanto viveram aqui na terra, mas não tiveram
tempo de confessar os seus pecados enquanto eram engolfados
pelas águas do Dilúvio. Um destes defensores do evangelho do
Hades, o bispo Horsley, tem dificuldade em crer que “os milhões
que morreram no Dilúvio tenham morrido impenitentes,” e
afirma ainda que “a proclamação benéfica do evangelho foi
limitada àqueles que se arrependeram antes da morte.”52 Este
tipo de pensamento baseia-se em mera e fantasiosa suposição.
Portanto, o fundamento para este evangelho do Hades são
simples hipóteses. Veja-se a citação a seguir:
Certamente não há nada que nos proíba supor que os
antediluvianos aqui referidos (embora tivessem sido, por muito
tempo, desobedientes e tivessem resistido à luta do Espírito de
D-us mediante a pregação de Noé, enquanto a Arca estava sendo
preparada) foram levados ao arrependimento e buscaram
misericórdia, quando o dilúvio realmente veio.53
Não há qualquer fundamento bíblico para essa ideia. Ela reflete
uma pura especulação, certamente governada por pressupostos
arminianos sobre a extensão da expiação.
Outro defensor do evangelho do Hades afirma que a pregação no
Hades é um ministério que Deus confiou a Paulo e aos outros
apóstolos, com base numa análise falaciosa do texto de 2
Timóteo 1.12, que diz “estou bem certo de que ele é poderoso
para guardar o meu depósito até aquele dia.” Segundo esta ideia,
Paulo está no Hades, como os outros apóstolos, exercendo o seu
ministério evangelístico, esperando receber o prémio dessa
tarefa no dia final.
O gérmen deste pensamento encontra-se nas ideias de Clemente
de Alexandria, “que assevera como ensino direto das Escrituras
que o nosso Senhor pregou o evangelho aos mortos, mas pensa
que as almas dos apóstolos devem ter assumido a mesma tarefa
quando eles morreram.”54 Luckock também endossa a afirmação
acima. Ele diz que “os apóstolos, seguindo o exemplo de nosso
Senhor, pregaram o evangelho àqueles que estavam no Hades.”55
Engelder diz que até mesmo os seguidores de Edward Irving56
creram nisso, isto é, “que os apóstolos que morreram continuam
a obra da pregação que Cristo começou em sua descida ao
Hades.”57 Isto significa que a pregação do evangelho ainda
continua a existir no Hades.
Ziethe, um dos defensores dessa posição, diz o seguinte:
13

Cremos que aquela grande obra de salvação, que o Filho de Deus


começou com a sua descida ao inferno, será levada a efeito
continuamente até ao fim dos tempos. Cremos que, no tempo
presente, o evangelho também é pregado aos espíritos em
prisão, a fim de que eles possam decidir a favor ou contra
Cristo, para a sua salvação ou a sua condenação.58
Dificilmente encontraremos capacidade tão imaginativa para
justificar o evangelho da segunda oportunidade no Hades. Em
nome dos pressupostos arminianos, praticam-se grandes
excentricidades exegéticas. É possível que ainda hoje vejamos
alguns pregadores se aventurarem a afirmar que desceram aos
infernos para pregar aos mortos. Não é de se espantar que
ouçamos tais desvios teológicos em nome do amor às almas
perdidas, sem levar em conta o ensino genuíno das Escrituras.
Ora, as excentricidades não param por aí. Não somente os
apóstolos, mas os santos em geral também são considerados
como pregadores dos infernos. O tão celebrado Pulpit
Commentary, comentando o texto de Pedro, afirma: “Os santos
que partiram espalham as alegres novas do evangelho entre os
reinos dos mortos” (p. 145). De maneira convicta, mas
equivocada, diz Luckock:
Nós exerceremos na outra vida, no mundo dos espíritos, sob
condições espirituais, ministérios especiais e graças peculiares
que marcaram o nosso trabalho e a vida neste mundo terreno...
Os espíritos dos justos estão lá, e podemos muito bem imaginar
os seus labores em favor dos outros, trazendo-lhes o
conhecimento de Deus.59
Essas ideias também são puramente especulativas e altamente
imaginosas. Esta imaginação vai ao ponto de tentar entender o
plano de D-us ao retirar as vidas jovens deste mundo. Veja-se o
que J. Paterson-Smith diz em seu livro The Gospel of the
Hereafter:
Pense como ele (o evangelho do Hades) ajuda nas perplexidades a
respeito de D-us quando retira desta vida os jovens e as pessoas
úteis. Eu disse a um homem que perguntou “Por que Deus tira um
vida nobre como esta e deixa tantas vidas tolas e inúteis neste
mundo?” que talvez Deus não quisesse somente as pessoas
inúteis e tolas... Os eleitos de Deus na vida futura são ainda
eleitos de Deus para o serviço em favor dos outros.60
A morte prematura desses jovens é considerada como o início de
um novo ministério no além túmulo. Ainda lá, para esses
defensores do evangelho do Hades, é maravilhoso ver as pessoas
evangelizando!
Estas pessoas revelam o desejo de querer ver o mundo dos
14

espíritos sendo salvo, na sua totalidade, pela pregação da


segunda oportunidade. Perguntamos: Até quando as almas dos
apóstolos e dos crentes em geral permanecerão no Hades
esperando que sejam recebidas no céu? Certamente este ensino
não passa de um romantismo teológico, destituído de qualquer
fundamento escriturístico.
B. Textos Usados pelos Defensores do Evangelho do Hades
Além dos textos de 1 Pedro 3.18-20 e 4.6, outros textos são
usados pelos defensores do evangelho do Hades.
1 João 3.8 – “Aquele que pratica o pecado procede do diabo,
porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isto se
manifestou o Filho de Deus, para destruir as obras do diabo.”
Na visão dos defensores do evangelho do Hades, é algo
extremamente pernicioso pensar que a grande maioria dos
pecadores ficou perdida, pois isso indicaria a derrota e não a
vitória de Jesus Cristo. Um de seus proponentes disse:
“Certamente se 8/9 dos homens e mulheres nascidos neste mundo
perecem eternamente, então Satanás terá triunfado; Cristo terá
fracassado em destruir as suas obras.”61 Jesus veio para
destruir as obras do diabo, inclusive vencendo a oposição dos
homens no inferno. Cristo foi aos infernos inclusive para buscar
os perdidos que lá estavam. Se ele veio destruir as obras do
diabo, então é necessário admitir que ele esteve no inferno para
aniquilar as obras do diabo naquele lugar.
Esta é uma espécie de universalismo disfarçado de amor pelas
almas perdidas, com o grave erro de se crer que o inferno é uma
criação do diabo e um lugar das atividades atormentadoras do
mesmo.
Mateus 5.26 – “Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto
não pagares o último centavo.”
O comentarista F. W. Farrar, pressupondo o evangelho do Hades,
diz:
Se o destino daqueles pecadores (1 Pe 3.19; 4.6) não é
irrevogavelmente fixado pela morte, então deve ficar claro e
óbvio ao mais simples entendimento que nem necessariamente é
o nosso ... Que os prisioneiros ali podem ser “prisioneiros da
esperança,” decorre de Mt 5.26, onde a mesma palavra fulakh/n
(“prisão”- v. 25) é usada.62
A esperança dos prisioneiros do Hades está no fato de o
evangelho ser ali pregado. Mas a ideia de a pessoa ter que ser
libertada gratuitamente pelo evangelho, quando tem que pagar
até o último centavo, é absurda e contraditória. Se é o
evangelho da graça, não há lugar para um pagamento feito pelo
próprio homem. É impossível saldar qualquer débito no inferno.
15

Quando objetado sobre este assunto, Farrar responde com a


Escritura: “O que é impossível para os homens, é possível para
Deus (Mt 19.26).” Este texto é uma grande saída, mas está citado
totalmente fora de contexto. Não há qualquer autorização para
este tipo de interpretação. É impressionante que tal
interpretação tenha sido dada por alguém que escreveu tanto
sobre hermenêutica. Ele próprio não aplicou no seu comentário
a boa hermenêutica tão propalada na sua obra.63
Mateus 12.31-32 – “Por isto vos declaro: Todo o pecado e
blasfémia serão perdoados aos homens; mas a blasfémia contra o
Espírito não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra
contra o Filho do homem ser-lhe-á isto perdoado; mas se
alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isto
perdoado, nem neste mundo nem no porvir.”
A sentença parece indicar para alguns defensores do evangelho
do Hades que há uma possibilidade de perdão de pecados no
inferno, exceto para o pecado da blasfémia. Obviamente, os seus
pressupostos arminianos devem conduzir a esta conclusão.
Muitos intérpretes desatentos ao ensino geral das Escrituras
poderão ter a mesma inclinação. Contudo, o texto está dizendo
que o pecado contra o Espírito Santo especificamente não será
perdoado em hipótese alguma, mesmo na eternidade (não no
estado intermediário, no Hades). É a impossibilidade do perdão
deste pecado que está explícita, não o perdão dos outros
pecados no Hades, implicitamente.
Mateus 11.20-23 – “Passou, então, Jesus a increpar as cidades nas
quais ele operara numerosos milagres, pelo fato de não se terem
arrependido. Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque se em
Tiro e em Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se
fizeram, há muito que elas se teriam arrependido com pano de
saco e cinza. E contudo vos digo: No dia do juízo haverá menos
rigor para Tiro e Sidom, do que para vós outros. Tu, Cafarnaum,
elevar-te-ás, porventura, até o céu? Descerás até ao inferno;
porque se em Sodoma se tivessem operado os milagres que em ti
se fizeram, teria ela permanecido até ao dia de hoje.”
Esta passagem é clássica para os defensores do evangelho do
Hades. Para estes, ela indica que haverá a possibilidade, para
aqueles que não tiveram a oportunidade de ouvir o evangelho
neste mundo, de o ouvirem no outro mundo. Comentando esta
passagem, Traub mostra que entre a população pagã de Tiro e
Sidom, e a de Sodoma, houve aqueles que, se a salvação de Cristo
se lhes tivesse sido anunciada, teriam aceito a salvação pela fé.
Estas palavras de Jesus Cristo podem ser aplicadas de um modo
genérico. Elas provam que, entre aqueles a quem o Evangelho não
16

alcançou nesta vida, há alguns que o teriam aceito caso lhes


tivesse sido pregado. Segue-se que a pregação que não os
alcançou nesta vida, de algum modo lhes será suprida
posteriormente, na vida além.64
Trata-se de um raciocínio de certa forma lógico, mas destituído
do fundamento geral das Escrituras, porque entra simplesmente
no terreno das hipóteses, que não pode e não deve ser levado em
conta. O que o texto diz não é que tais pessoas terão a
oportunidade de salvação no Hades, mas que receberão menor
rigor no dia do julgamento. Com menor rigor a punição virá
sobre eles, mas não a salvação.
Em resumo, chamei estas ideias de arminianas, não porque todos
os arminianos as possuam, mas porque elas são próprias
daqueles que ensinam uma espécie de universalismo de redenção
e uma universalidade da decisão de D-us de salvar pecadores.
Isto é próprio dos arminianos que, em nome do amor pelos
pecadores, distorcem algumas passagens da Escritura para
mostrar que haverá oportunidade de salvação até no Hades. Por
esta razão, todos os defensores do evangelho do Hades sempre
citam as passagens bíblicas usadas pelos arminianos para
mostrarem o propósito universal da salvação de Deus. Afinal de
contas, Farrar diz:
Esta minha crença (de que Aquele que é Senhor de ambos, vivos e
mortos, pode salvar almas pecaminosas mesmo após a morte do
corpo) é fundada, não como tem sido afirmado, nos dois textos de
Pedro, mas no que me parece ser o teor geral da totalidade das
Escrituras, como uma revelação do amor de Deus em Cristo... É,
portanto, uma doutrina que não somente se harmoniza melhor
com a crença instintiva do homem sobre a justiça e misericórdia
de Deus, mas também é muito mais escriturística e muito mais
católica do que as outras...65
Aí está! Farrar, mesmo afirmando o contrário, invalida as
Escrituras pelos seus pressupostos (que ele chama de
“escriturísticos”) de um amor salvador de D-us que teria
caráter absolutamente universal. É exatamente isto que muitos
arminianos, propositadamente ou não, costumam fazer.
C. Interpretação da Tradição Luterana
Para os luteranos, o texto de 1 Pedro 3.18-20 “é a passagem mais
clara do Novo Testamento sobre a descida ao inferno.”66 Vamos
analisar apenas algumas expressões-chave em que a teologia
luterana se distingue das outras.
Verso 18 – observe a expressão “vivificado em espírito.” A
exegese feita por alguns luteranos indica que Jesus Cristo,
quando morreu, e antes de ser ressuscitado, teve o seu espírito
17

restituído ao seu corpo e, com a totalidade da sua natureza


humana, foi ao inferno, o que é altamente estranho. Neste caso, a
ideia de morte fica totalmente prejudicada, pois morte é
separação. Se a pessoa total de Jesus Cristo foi ao Hades, então
a morte deixa de existir em Cristo.
Tratando da expressão “vivificado em espírito” (v. 18)67 — que é
diferente da ressurreição para os luteranos —, Scharlemann diz:
“Quando nosso Senhor morreu na cruz, lemos que ele entregou o
seu espírito nas mãos do Pai (Lc 23.46). O dativo de referência em
nosso texto poderia, entretanto, sugerir que Jesus foi trazido à
vida no sentido de que o seu espírito retornou ao seu corpo.”68
A base desta interpretação é apoiada curiosamente pelo fato de
o retorno da filha de Jairo à vida ser descrito em termos do seu
espírito estar retornando ao seu corpo (Lc 8.55).69 Portanto, “o
espírito” mencionado no verso é o da natureza humana de Jesus
Cristo, que estava com o Pai no período entre a morte e a
ressurreição, e veio a juntar-se ao corpo novamente, a fim de
que o Cristo total fosse ao inferno, mas sem haver ressurreição.
Verso 19 – vimos que, para Scharlemann, a “vivificação” é a
situação em que o espírito de Cristo voltou ao seu corpo entre a
morte e a ressurreição. Neste processo, particularmente quando
Cristo estava sendo trazido à vida (“vivificação”), no momento
antes de manifestar-se como o Senhor ressuscitado, ele foi e fez
a proclamação aos espíritos em prisão. Esta interpretação
distingue, portanto, entre o ser trazido à vida e a ressurreição,
e sugere que o Deus-homem em seu estado glorificado foi e fez a
proclamação em prisão antes de apresentar-se a si mesmo na
tumba aberta.70
A citação acima mostra, portanto, que a descida ao Hades é o
primeiro estágio da exaltação de Cristo, porque ele foi trazido
à vida. O problema é definir o que a vida significa aqui. Por
causa desta interpretação, é possível, para a teologia luterana,
que o estado de exaltação comece com a proclamação de Cristo
no inferno, pois aí ele já está vivificado.
1. QUAL É O CONTEÚDO DA PROCLAMAÇÃO?
Em si mesma, a palavra “pregou” não define o seu conteúdo,
segundo o entendimento da teologia luterana. Certamente, a
palavra nada tem a ver com evangelização. Dentro do conceito
luterano, a proclamação não tem nada a ver com a segunda
chance da pregação do evangelho feita no inferno. A
argumentação para essa negativa é que há diferença entre
khru/ssw (proclamar) e eu)anggeli/zomai (evangelizar). Quando
Cristo quis falar de evangelização ele usou o segundo verbo, ou,
quando usou khru/ssw, ele acrescentou que “pregou o evangelho”
18

(Mc 1.14).
Também se diz que Cristo “foi” e pregou. Segundo o entendimento
luterano, não é possível espiritualizar essa “ida” ao inferno,
como costumam fazer os calvinistas, dizendo que “quando Cristo
morreu na cruz, os efeitos de sua morte foram sentidos no reino
dos mortos... Como não temos nenhum direito de espiritualizar a
ascensão, assim há pouca justificação para retirar daqui o
sentido mais importante do verbo ou ignorá-lo. Cristo “foi e
pregou aos espíritos em prisão.”71 Existe, portanto, a ideia de
movimento de um local para outro, e não simplesmente a
espiritualização da ideia.
2. A QUEM SE FEZ ESTA PROCLAMAÇÃO?
Esta pergunta tem a ver com os “espíritos em prisão.” Quem
eram eles? As respostas não são absolutamente unânimes entre
os luteranos.
Lutero, no seu comentário do livro de Oséias, na edição de 1545,
refere-se ao texto de 1 Pedro 3.18, dizendo:
Aqui Pedro diz claramente que Cristo apareceu não somente aos
pais e patriarcas mortos, a quem ele em sua ressurreição
levantou consigo mesmo para a vida eterna, mas que ele pregou a
alguns que, nos tempos de Noé, não creram, mas confiaram na
paciência de D-us, isto é, esperaram que D-us não tratasse tão
severamente toda a carne, a fim de que eles pudessem saber que
os seus pecados foram perdoados através do sacrifício de
Cristo.72
Portanto, a ideia de Lutero é que a pregação de Cristo visou
confirmar a salvação daqueles que haviam vivido nos tempos
antigos, confiaram na paciência de D-us e agora estavam em
prisão no Hades. Em outras palavras, D-us salvou alguns que
confiaram não na pregação de Deus, mas na sua paciência. A
estes Jesus confirmou a sua redenção.
Obviamente, esta ideia de Lutero não é bem-vinda entre os
luteranos de modo geral. Scharlemann diz que “seria difícil
concordar com a última parte desta afirmação, mas a primeira
parte indica que nos últimos anos de sua vida Lutero viu o
descensus à luz de 1 Pedro.”73 Melanchton confirma que
posteriormente Lutero mudou a sua posição neste assunto. Ele
ficou “disposto a pensar sobre a pregação de Cristo no Hades,
referida em 1 Pedro, como tendo possivelmente efetuado também
a salvação de pagãos mais nobres como Scipio e Fabius.”74
A visão luterana oficial é a sustentada pelos seus símbolos de
fé já citados, que assimilam o pensamento cristão do século IV,
segundo o qual o descensus ocorreu para conquistar a morte e o
inferno, sem contudo comprometer-se na matéria da libertação
19

dos santos do Antigo Testamento.75


Respondendo a pergunta acima, podemos dizer que, de acordo com
o pensamento luterano, a proclamação de vitória é feita aos que
no tempo de Noé recusaram-se a crer e agora estavam em prisão.
O texto de Pedro “ensina claramente que Cristo desceu à região
dos condenados, àqueles que deliberadamente rejeitaram a graça
de Deus no tempo de Noé, a fim de fazer-lhes a proclamação.”76
Mas qual é o sentido de fulakh/ (“prisão”)?
A resposta a esta pergunta define quem eram os “espíritos.” Os
luteranos rejeitam a ideia de que o Hades é o lugar para onde
vão todos os mortos, mas a “prisão” é o lugar onde ambos estão
sob guarda, os anjos caídos e os espíritos dos incrédulos.
“Prisão” para eles é mais ou menos sinônimo de “abismo” (Ap
9.1,2,11; 11.17; etc.), que é o lugar onde estão os espíritos dos
demónios.
Em contraste com o conceito pagão e com o conceito pagão-
cristão, o Hades, para os luteranos, é apenas o lugar para onde
vão os espíritos caídos e os espíritos dos incrédulos, e não o
lugar para onde vão todos os mortos, sejam eles crentes ou
incrédulos. “Prisão” é o oposto de “seio de Abraão,” para a qual
vão os santos após a sua morte, conforme Lucas 16.22-25.
Resumindo a interpretação luterana sobre o texto de 1 Pedro
3.18-20, podemos dizer que “Cristo, segundo o seu corpo
glorificado, desceu ao inferno para lá fazer proclamação de si
mesmo como o Messias. Este foi o primeiro estágio da sua
exaltação.”77
D. Interpretação da Tradição Reformada
O texto de 1 Pedro 3.18-20 deve ser interpretado à luz de outros
textos da Escritura que ajudam a esclarecê-lo. O apelo dos
teólogos reformados deve ser às informações bíblicas e não às
informações do Credo Apostólico (com o acréscimo do descendit
ad inferna). Estes são pontos fundamentais que não podem ser
esquecidos.
Lembremo-nos de que a controvérsia sobre o Hades recrudesceu
quando da inserção no Credo, por volta do sétimo século, da
frase “descendit ad inferna” após a cláusula “crucificado, morto
e sepultado.” Antes disso, pouca coisa havia na igreja sobre esta
matéria. Portanto, o foco deste assunto deve ser o ensino geral
das Escrituras, não a afirmação credal.
1. REJEIÇÃO DO CONCEITO CRISTÃO-PAGÃO DE HADES
A fé reformada, em sua constante busca de consistência bíblica e
teológica, rejeita tanto a formulação pagã como a cristã-pagã a
respeito do Hades, exemplificadas acima. Não há um lugar para
onde vão todos os mortos igualmente, um lugar específico de
20

espera até que chegue o dia da ressurreição. Não há dois


compartimentos separados no mesmo Hades: um lugar para os
bons e outro para os maus, como é ensinado em algumas
teologias. A fé reformada crê inequivocamente que, quando
morrem, os homens vão para lugares diferentes. Os ímpios que
morrem sem o conhecimento salvador de Jesus Cristo vão para a
condenação, o que a Escritura chama de inferno, aguardando o
juízo final. Os que morrem no Senhor, isto é, os genuínos
cristãos, vão estar com Cristo imediatamente, até ao dia final.
Por isso é que Paulo diz: “... prefiro morrer e estar com Cristo, o
que é incomparavelmente melhor” (Fp 1.23). Não há como abrir
mão dessas verdades.
2. INTERPRETAÇÃO DE 1 PEDRO 3.18-20
Este é o texto crucial com o qual todas as correntes se
defrontam. Já vimos algumas interpretações. Doravante, a
análise será de acordo com o ensino geral das Escrituras, como
entendem os pensadores de linha calvinista, também chamados
de reformados.
a. Qual é o sentido de “carne” e “espírito vivificado”?
Neste texto, estas duas palavras não devem ser tidas como
referências antitéticas à mesma natureza humana do Redentor,
isto é, referindo-se ao corpo e à alma de Jesus Cristo, pois esse
não é o propósito do texto. Há lugares em que este tipo de
interpretação é possível,78 mas não aqui. Neste texto, Pedro
está contrastando dois estados diferentes de existência do
nosso Redentor: um está na esfera da limitação em que viveu
enquanto conosco, com respeito à sua natureza humana, no seu
estado de humilhação; o outro é uma esfera de poder e de não-
limitação, que ele teve antes de encarnar-se e que veio a
possuir depois de exaltado.
Esta mesma ideia, com outras palavras, aparece em Romanos 1.3-
4, onde Paulo contrasta as duas existências do Filho encarnado,
chamando-as de existência “segundo a carne” (existência
humana, vinda da descendência de David) e existência “segundo o
espírito de santidade,” revelando o seu estado vitorioso de
não-limitação. Em 1 Timóteo 3.16 estes dois estados de
existência do Redentor também são apresentados: “manifestado
na carne e justificado em espírito.” O próprio Pedro apresenta a
mesma ideia em 4.6, referindo-se aos mortos que, segundo os
homens, haviam sido “julgados na carne” (terminaram a sua
existência humana de fraqueza) e agora “viviam no espírito,”
segundo D-us (uma existência em poder e vitória, sem as
limitações da existência em fraqueza).79 O texto de 1 Pedro 3.18
também dá estas duas conotações ao Redentor:
21

1. O estado de limitação e fraqueza do Filho de D-us:


A palavra aqui usada para “carne” é a mesma palavra grega (sarx,
hebraico: basár) encontrada em outros lugares da Escritura, não
significando, contudo, a parte material do homem ou a sua
natureza pecaminosa, mas certamente a sua vida humana neste
presente estado, a existência humana como ela é agora. Segundo
o entendimento de Pedro, estar “morto na carne” refere-se
simplesmente à humanidade de Cristo no estado de fraqueza (não
de pecaminosidade) a que estava exposto. Quando ele morreu na
carne, ele saiu deste estado de fraqueza e fragilidade. Neste
sentido, portanto, é que devemos entender a expressão “morto
na carne.” Todavia, não foi neste estado que ele “pregou aos
espíritos em prisão.”
2. O estado de não-limitação e força do Filho de D-us
Às vezes, a palavra pneúma (“espírito”) usada no verso 18 tem
sido traduzida com letra maiúscula, como uma referência ao
Espírito Santo, mas parece-nos que não há porque interpretá-
la assim. Se assim fosse, ela não teria nenhuma referência a
Cristo, mas à terceira pessoa da Trindade, o Espírito. A nossa
questão aqui é a respeito do Filho.
O pensamento do verso 18 não é que o corpo de Jesus morreu e
que o seu espírito reviveu. Estas coisas não fazem sentido para
Jesus Cristo e nem para qualquer outro ser humano comum, pois
quem morre é o homem e quem ressuscita é o homem, não o corpo
ou o espírito.
A expressão “vivificado em espírito,” que possui similares em
outros textos da Escritura, diz respeito à vitória de Cristo na
ressurreição, combinando-se com o que Paulo diz em 1 Timóteo
3.16. Todavia, neste texto específico de 1 Pedro 3.19, o espírito
vivificado ou vivificador pode ter mais significado se o
entendermos como a natureza divina do Redentor, antes de ele
encarnar-se. Ele vivia nesse estado de poder e não-limitação
que contrasta com o estado de fraqueza em que esteve nos dias
da sua carne, e foi neste tempo de não-limitação que ele foi e
pregou aos espíritos em prisão, quando eles viviam no tempo de
Noé.
b. Qual é o sentido de “no qual” (v. 19)?
Quando o texto de Pedro diz “vivificado em espírito, no qual
também foi,” não está se referindo ao lugar aonde ele foi depois
da morte, mas onde ele estava quando havia desobedientes nos
tempos de Noé. Foi neste espírito de vivificação que ele pregou
através dos profetas nos tempos antigos, como veremos adiante.
A palavra “também” (do verso 19) desvia o assunto para este
mesmo estado de não-limitação de Cristo, que o levou a estar
22

presente na vida dos pregadores no tempo da desobediência dos


contemporâneos de Noé. Ele não poderia ter feito isto nos dias
da sua carne, isto é, da sua existência terrena. Ele foi antes de
ser o Verbo encarnado, quando de sua existência absolutamente
ilimitada.
c. Para onde foi o Filho de D-us?
Cristo não foi literalmente ao inferno entre a morte e a
ressurreição para pregar aos aprisionados que lá estavam,
porque a Escritura mostra claramente o lugar para onde ele foi
depois que morreu e foi sepultado. Certamente ele também não
foi ao inferno após a sua ressurreição.
Quando Jesus Cristo foi “morto na carne,” ele foi estar com seu
Pai, pois a Escritura afirma que, antes de expirar, ele disse:
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46).
Quando Jesus Cristo foi “morto na carne,” ele foi para o céu, com
o seu Pai. No mesmo contexto do Madeiro, quando interpelado
pelo ladrão/terrorista à sua direita, que lhe suplicava “Lembra-
te de mim, quando entrares no teu reino,” ele replicou: “Hoje
mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43). Se formos buscar
na própria Escritura o sentido de Paraíso, verificamos que é
sinónimo de céu (o “terceiro céu,” o lugar em que Deus habita de
modo especial).80 Esta foi a ideia que Paulo deu a respeito da
sua subida ao terceiro céu, que ele equipara ao paraíso (ver 2 Co
12.2-4). Portanto, o lugar em que Jesus Cristo permaneceu após a
sua morte e até a ressurreição, não foi o Hades, mas o céu (ou o
Paraíso),81 o lugar de santa bem-aventurança e gozo!
Além disso, quando Jesus Cristo estava para morrer, ele disse
que todo o seu sofrimento pela redenção do pecador estava no
final. Jesus exclamou: “Está consumado” (Jo 19.30). Ele não teria
que descer ao Hades para fazer qualquer pagamento, nem
terminar a sua obra de evangelização ou mesmo proclamar a sua
vitória. Toda a obra de redenção e de proclamação pessoal do
Redentor havia cessado.
d. Quando ele pregou?
A preocupação do texto de 1 Pedro 3.18-20 não é o que Cristo fez
entre a morte e a ressurreição, mas o que ele fez no seu estado
pré-encarnado (de poder e de não-limitação) no reino
espiritual, no tempo de Noé.82
O texto diz que ele, “vivificado em espírito,” isto é, em espírito
poderoso (não em fraqueza e humilhação, como foi o caso da sua
vida entre nós), “também foi e pregou aos espíritos em prisão.”
Foi neste mesmo espírito de poder ou de existência poderosa e
ilimitada que ele pregou. A palavra “também” (do verso 19)
define uma outra época, não após a morte e antes da
23

ressurreição. Este Redentor foi e pregou aos contemporâneos de


Noé. Nesse espírito, isto é, nesse estado de poder é que ele
também foi e pregou aos espíritos em prisão, que viviam
escravizados no tempo em que Noé pregou. Isto está comprovado
pelo fato de, nesta mesma carta, Pedro dizer que o espírito de
Cristo, que é a sua natureza divina ilimitada e cheia de poder,
estava presente nos pregadores, ou profetas, dos tempos antigos
(1 Pe 1.11).
e. O que ele pregou?
Pode ser perfeitamente deduzido do contexto desta Epístola de
Pedro que Jesus Cristo pregou o evangelho aos contemporâneos
de Noé. Espiritualmente, Cristo estava presente em Noé quando
este era o “pregoeiro da justiça,” pois o mesmo Pedro menciona a
salvação da qual os profetas falaram, “investigando
atentamente qual a ocasião ou quais as circunstâncias
oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava,
ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos de Cristo, e
sobre as glórias que os seguiriam” (1 Pe 1.11). Este verso indica
que Pedro admite que Noé era um profeta, ou seja, um “pregador
da justiça” (2 Pe 2.5), em quem e através de quem Jesus Cristo
pregou. O conteúdo da mensagem não foi de condenação final.
Portanto, podemos afirmar com certeza que o conteúdo da
pregação do “espírito vivificado,” através de Noé, era de
salvação do juízo de Deus que haveria de vir sobre o mundo
ímpio. Noé certamente pregou aos seus contemporâneos para que
se arrependessem e cressem na libertação divina através da
arca, pela qual apenas oito pessoas foram salvas (v. 20).83
f. Quem são os espíritos aprisionados?
A frase “espíritos em prisão” sozinha não define a matéria, mas
quando a examinamos à luz das frases que vem a seguir, podemos
ter uma noção clara do que Pedro está falando.
De acordo com o texto de 1 Pedro 3.18-20 e seu contexto, não há
nenhuma possibilidade razoável de que a expressão “espíritos
em prisão” não se refira aos desobedientes do tempo de Noé. O
texto não fala de justos que foram para o Hades, nem de anjos
aprisionados, como querem alguns, mas de pessoas que, noutro
tempo, rejeitaram a pregação de Noé, e que eram consideradas
“espíritos em prisão,” incapazes de fazerem quaisquer coisas
por si mesmas para a sua própria salvação. Se cremos que Cristo
pregou através do seu espírito ilimitado, e creio que o fez, as
únicas pessoas mencionadas são essas: os contemporâneos de
Noé. Ninguém mais. Obviamente que, neste sentido, Cristo não foi
ao inferno. Os espíritos em prisão são unicamente indivíduos
que viveram nos tempos de Noé, que não foram salvos e que, por
24

causa de seu cativeiro em cegueira espiritual, permaneceram


incrédulos quanto à mensagem de Noé. Embora possamos crer que
estavam em prisão (sob condenação) quando Pedro escreveu a
carta, todavia, já eram prisioneiros de sua cegueira espiritual
quando a mensagem de Noé lhes chegou aos ouvidos, porque eram
escravos da desobediência. Foi a esses que Cristo pregou
através de Noé.
Portanto, a passagem de 1 Pedro 3.18-20 não fala de uma viagem
de final-de-semana de Jesus Cristo ao inferno, mas refere-se a
uma pregação feita pelo espírito de Cristo, que é o espírito
vivificado, através de Noé (1 Pe 1.11), aos seus contemporâneos
(2 Pe 2.5), que eram homens desobedientes e, portanto,
aprisionados à sua natureza pecaminosa. Além disso, eles agora
estavam presos no inferno, sob condenação (pelo fato de terem
sido desobedientes no tempo de Noé) quando Pedro escreveu
estas palavras.84
3. A DOUTRINA DO HADES NOS SÍMBOLOS DE FÉ REFORMADOS
a. O que a fé reformada rejeita
A fé reformada rejeita qualquer noção de descida literal de
Jesus ao Hades após a sua morte e antes da sua ressurreição.
Embora estivesse sob “o estado de morte”85 até à sua
ressurreição, ele não passou um fim-de-semana num lugar
chamado Hades.
A fé reformada rejeita qualquer possibilidade da pregação de
uma segunda oportunidade de salvação feita por Jesus, pelos
apóstolos ou por outros santos quaisquer no Hades, depois de
sua morte. A morte de todos os apóstolos e crentes é a abertura
para a sua entrada no céu, é o descanso das suas fadigas desta
vida, e não o trabalho penoso de evangelizar no inferno. De modo
contrário, a morte de todos os ímpios é o selo do seu destino
eterno. Não há mais qualquer oportunidade de redenção após a
morte.
A fé reformada rejeita a ideia luterana de que Jesus Cristo teria
descido ao Hades para proclamar a sua vitória (sendo este o
primeiro estágio da sua exaltação), porque de acordo com as
Escrituras e os seus símbolos de fé, a exaltação de Jesus Cristo
começa com a sua ressurreição, que é a sua vitória sobre a
morte!
A fé reformada rejeita qualquer noção de que os crentes do
Antigo Testamento estivessem cativos no Hades, e de que Jesus
Cristo lá desceu para libertá-los, usando-se Efésios 4.8-9 como
texto-prova para justificar tal posição. A Escritura ensina que
os crentes do Tanach (Antigo Testamento/Encontro) não foram
para o Hades após a sua morte, mas foram estar com D-us (Sl
25

73.23-24), como é também o ensino do B´rit Hadasha/Escrituras


Gregas Cristãs (Novo Testamento/Encontro). As Escrituras
afirmam que aqueles que morrem têm os seus corpos sepultados
e os seus espíritos voltam para D-us, que os deu (Ec 12.6-7).
Elas também afirmam que Elias, Enoc e Moisés estão no céu com
D-us, e não no Hades (Gn 5.24; 2 Rs 2.11; Lc 9.29-32).
A fé reformada rejeita que Satanás possuía as “chaves” da morte,
do inferno e da sepultura, e que Jesus desceu ao Hades para
tomá-las dele. Não há qualquer sugestão nas Escrituras de que
estas coisas pertençam a Satanás. Falando sobre Jesus Cristo
(conforme a interpretação joanina no Apocalipse), Isaías diz que
a chave do senhorio do universo pertence a Jesus Cristo (Is
22.21-22 e Ap 3.7). Há somente outros dois versos da Escritura
que mencionam as chaves, e Satanás nunca é associado a elas. O
primeiro texto diz que a “chave do reino dos céus” foi entregue
por Jesus aos apóstolos (Mt 16.19) e o segundo afirma que as
chaves da “morte e do inferno” pertencem a Jesus Cristo (Ap
1.18). Somente o Senhor possui as chaves da morte e do inferno.
Ninguém mais!
b. O que a fé reformada aceita
A fé reformada também aceita o Credo Apostólico como
expressão da fé genuína dos pais da igreja. Contudo, o
entendimento dos reformados com respeito ao Hades é diferente
do de muitos cristãos evangélicos. Os símbolos de fé reformados
explicam o sentido da expressão “desceu ao Hades,” inserida no
Credo de Aquiléia no quarto século, como uma expressão
substitutiva para descrever o que aconteceu a Jesus Cristo,
como nosso representante, no Madeiro.
Observe-se a resposta à pergunta 44 do Catecismo de
Heidelberg:
P. Por que se acrescentou: “Ele desceu ao Hades”?
R. Para que nas minhas maiores tribulações eu possa estar
seguro de que Cristo, o meu Senhor, através de indizíveis
terrores, dores e angústias que sofreu na sua alma no Madeiro e
antes dela, redimiu-me da angústia e dos tormentos do inferno.
Veja-se a resposta do Catecismo Maior de Westminster à
pergunta 50:
P. Em que consistiu a humilhação de Cristo depois da sua morte?
R. A humilhação de Cristo, depois da sua morte, consistiu em ser
ele sepultado, em continuar no estado dos mortos e sob o poder
da morte até ao terceiro dia, o que, aliás, tem sido expresso
nestas palavras: Ele desceu ao inferno (Hades).
De maneira diferente do Catecismo de Heidelberg, o Catecismo de
Westminster interpreta o Hades como sendo sepultura ou, ainda
26

melhor, o estado de morte.


Contudo, entre os escritores reformados prevalece a ideia dos
símbolos combinados. A significação de Hades, no Credo
Apostólico, é a de que Jesus Cristo experimentou a condenação
divina que se evidencia na humilhação de morrer e ser
sepultado, ficando sob o poder da morte, mas tais escritores
incluem, sobretudo, os seus sofrimentos agonizantes antes e
durante o tempo que passou no Madeiro. Experimentar o inferno
é experimentar o doloroso abandono da presença confortadora
de D-us. Foi exatamente isto que Cristo experimentou. A ira de
D-us desceu sobre o Filho encarnado e manifestou-se não
somente nas dores infernais do seu corpo, mas também nas
angústias infernais que se apoderaram da sua alma. Portanto,
Jesus nunca desceu ao Hades literal e espacialmente, mas
experimentou intensivamente todas as coisas que o Hades
representa, descritas acima. Ele experimentou o inferno antes
da morte e na própria morte, mas nunca depois dela, numa
viagem de final-de-semana a um lugar chamado Hades.
Por causa da experiência infernal que Cristo teve em face do
juízo divino, aqueles por quem ele morreu são libertos para
sempre da condenação do inferno. É este o sentido que os
reformados dão para a frase descendit ad inferna. Nesta obra
libertadora de Jesus Cristo nos regozijamos e por ela a D-us
bendizemos!

____________________
* O autor é ministro presbiterano e professor. Obteve o seu
doutorado (Th.D.) na área de Teologia Sistemática no Concordia
Theological Seminary, em Saint Louis, Missouri, Estados Unidos.
1 Esta tradução opcional está no rodapé do texto de Almeida,
Versão Revista e Atualizada, e tem o apoio de alguns estudiosos
recentes, como é o caso de Wayne Grudem em seu artigo “He Did
not Descend Into Hell: A Plea for Following Scripture Instead of
the Apostle’s Creed,” Journal of the Evangelical Theological
Society 34/1 (Março 1991), 108.
2 Herman Witsius, Dissertations on The Apostle’s Creed, vol. II,
reimpressão (Presbyterian and Reformed Publishing Company,
1993), 140.
3 Citado por W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II (Nova
York: Charles Scribner’s Sons, 1889), 604.
4 Desde o século IX, o Credo Atanasiano tem sido atribuído a
Atanásio (297-373), o bispo de Alexandria e o principal defensor
da divindade de Cristo e da doutrina ortodoxa da trindade.
Todavia, desde o século XVII, abandonou-se entre os católicos e
27

protestantes a ideia de Atanásio como o seu autor. A origem


deste credo remonta à igreja latina da escola de Agostinho,
provavelmente na Gália ou norte da África (ver Philip Schaff,
The Creeds of Christendom [Grand Rapids: Baker:1990], Vol. I, 35-
36).
5 Witsius, Dissertations, 141.
6 J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds (Essex, England: Longman
House, 1986), 379.
7 Ver ibid., 379.
8 Ibid., 380.
9 Neste artigo, não examino as interpretações recentes de
grupos neo-pentecostais ou carismáticos. Se o leitor quiser
alguma informação a respeito, pode consultar o capítulo
“Redemption in Hell” do livro de Hank Hanegraaff Christianity in
Crisis (Eugene, Oregon: Harvest House Publishers, 1993), 163-167.
10 Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological
Terms (Grand Rapids: Baker, 1986), 178, 253.
11 Dewey D. Wallace, Jr. “Puritan and Anglican: The
Interpretation of Christ’s Descent Into Hell in Elizabethan
Theology,” Archiv Für Reformationsgeschichte 69 (1978), 250-51.
12 Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 256.
13 John Ayre, ed., The Catechism of Thomas Becon...With Other
Pieces by Him in the Reign of King Edward the Sixth, Parker
Society nº 3 (Cambridge: Cambridge University Press, 1844), 33.
14 Ibid., 258, nota 48.
15 Ibid. Ver John Ayre, ed., Prayers and Other Pieces of Thomas
Becon, Parker Society nº 4 (Cambridge: Cambridge University
Press, 1844), 139.
16 Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 257.
17 Eram os partidários da Reforma que desejavam uma mudança
mais drástica com respeito aos costumes e práticas da religião
católica do que havia acontecido nos termos de Lutero, Zuínglio
e Calvino.
18 Um diplomata aristocrático alemão e teólogo leigo que teve
conflitos teológicos com Lutero, Calvino e Zuínglio a respeito
de disciplina eclesiástica, cristologia e Santa Ceia (ver J. D.
Douglas, ed., The New International Dictionary of the Christian
Church [Grand Rapids: Zondervan, 1978], 888).

19 Kaspar Schwenckfeld, Corpus Schwenckfeldianorum, vol. 10


(Leipzig, 1907-1961), 364 (citado por Jerome Friedman, “Christ’s
Descent into Hell and Redemption Through Evil: A Radical
Reformation Perspective,” Archiv für Reformationsgeschichte 76
[1985], 220).
28

20 Ibid. (citado por Jerome Friedman. “Christ’s Descent Into


Hell,” 220).
21 Friedman, “Christ’s Descent Into Hell,” 222.
22 Ibid., 222.
23 Ibid.
24 “O descensus foi realizado por um Jesus humano, antes que por
um ser divino, e foi dirigido... como um exemplo para toda a raça
humana, para despertar a devoção a Cristo e como condição para
se ressuscitar com Jesus” (Ibid., 222).
25 Brilhante médico espanhol. Interessado em teologia, escreveu
sobre a Trindade e sobre cristologia. Foi acusado de heresia por
católicos e protestantes, sendo morto em Genebra em 27-10-
1553, após ter sido condenado pelo Conselho da cidade.
26 Friedman, “Christ’s Descent Into Hell,” 222.
27 “O corpo de Cristo é em si mesmo o corpo da divindade, e a sua
carne é divina, a carne de D-us, o sangue de D-us. A carne de
Cristo foi gerada da substância celestial de D-us” (Ibid., 222-
23).
28 Ibid., 226.
29 Ibid., ver pp. 227-229.
30 Estas informações sobre Serveto são encontradas na sua obra
Christianismi Restitutio (Vienne, 1553), 621-622 (citada por
Friedman, Ibid., 227-228).
31 Friedman, “Christ’s Descent Into Hell,” 228.
32 Ibid., 228.
33 Ibid.
34 Ibid., 229.
35 The Book of Concord, ed. Theodore G. Tappert (Filadélfia:
Fortress Press, 1988), 492.2.
36 “Algumas vezes ele fala de maneira muito livre e em termos
mitológicos de Cristo indo ao inferno, dominando e despojando
Satanás; mas ele próprio reconhecia o caráter metafórico de tal
linguagem e em outro lugar discutiu a descida como sendo
primariamente uma experiência espiritual mais interior da alma
de Cristo (sem negar, contudo, que houve uma descida literal).”
(Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 252). Ver também Friedrich
Loofs, “Descent to Hades,” Encyclopedia of Religion and Ethics,
ed. James Hastings (Nova York: Charles Scribner’s, 1924), IV, 656-
657.
37 Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 252.
38 Ibid., 253.
39 The Book of Concord, 492.4.
40 Ibid., 610.2.
41 No seu sermão no Castelo de Torgau, em 1533. Ver a “Fórmula
29

de Concórdia,” no Livro de Concórdia, 610.1.


42 Citado por Gotthilf Doehler, “The Descent into Hell,” The
Springfielder 39 (Junho 1975), 16.
43 Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo, e Leo Jud, um
colega de Zuínglio, disseram que o descensus significava que
Cristo estava verdadeiramente morto, tendo descido à sepultura
(Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 253, 254 [nota 24]).
44 Isto foi sustentado por Jerónimo Zanchi, que trabalhou em
Estrasburgo e Heidelberg (Ibid., 254, nota 25). Assim também
afirma o Catecismo Maior de Westminster, pergunta 50.

45 João Calvino, Institutas, 2.16.8-12.


46 Later Writings of Bishop Hooper, Together with his Letters
and Other Pieces, ed. Charles Nevinson, Parker Society nº 21
(Cambridge: Cambridge University Press, 1852), 30 ([citado por
Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 258]).
47 Citado por Theodore Engelder, “The Argument in Support of
the Hades Gospel,” Concordia Theological Monthly 16 (1945), 380.
48 Citado por Engelder, Ibid., 382.
49 Edward H. Plumptre, The Spirits in Prison and Other Studies
on the Life After Death (Londres: Isbister, 1898), 111, 114. Citado
por Engelder, “Argument in Support of the Hades Gospel,” 382.
50 J. Paterson-Smith, The Gospel of the Hereafter (Nova York:
Fleming H. Revell, 1910), 66.
51 The Pulpit Commentary, eds. H. D. M. Spence e Joseph S. Exell
(Nova York: Funk & Wagnalls,1890), 135.
52 Ver Plumptre, The Spirits in Prison, 98 (citado por Engelder,
“The Argument in Support of Hades Gospel,” 383, nota 5).
53 Luckock, The Intermediate State, 144 (citado por Engelder,
383, nota 5).
54 Informação do The Expositor’s Greek Testament, ed. W.
Robertson Nicoll (Nova York: George H. Doran, 1897), 59.
55 Luckock, The Intermediate State, 101 (citado por Engelder,
385).
56 Edward Irving (1792-1834), um escocês, foi pregador
assistente de Thomas Chalmers em Glasgow. Tornou-se profético
e apocalíptico na sua pregação. Cria que a natureza humana de
Jesus era pecadora, mas Cristo não pecou por causa da habitação
do Espírito Santo. Por causa das suas ideias heterodoxas, foi
privado de pregar pelo Presbitério de Annan. Cria que os dons
sobrenaturais apostólicos haviam sido restaurados no seu
tempo. Foi uma espécie de precursor do movimento carismático
(ver New Dictionary of Theology, ed. Sinclair Ferguson [Downers
Grove, Illinois: Intervarsity Press, 1989], 342).
30

57 Popular Symbolica, 326 (citado por Engelder, 385-86).


58 W. Ziethe, Das Lamm Gottes, 729 (citado por Engelder, 385).
59 Luckock, The Intermediate State, 101, 186 (citado por
Engelder, 386-87).
60 Paterson-Smith, The Gospel of the Hereafter, 153, 155.
61 Citado por Engelder, “Argument in Support of the Hades
Gospel,” 388.
62 Citado por Robert F. Horton em sua obra Revelation and the
Bible: An Attempt at Reconstruction, 2ª ed. (Nova York :
Macmillan, 1893), 87.
63 F. W. Farrar é autor de um dos livros clássicos sobre a
história da interpretação da Bíblia. Ver History of
Interpretation, reimpressão (Grand Rapids: Baker, 1961).
64 Citado por Engelder, “Argument in Support of the Hades
Gospel,” 389-90.
65 Ibid., 393-94.
66 Martin Scharlemann, “He Descended into Hell,” Concordia
Theological Monthly 27 (1956), 84.
67 Na interpretação luterana, a palavra grega zwopoihqei\j
(traduzida como “vivificado”) não é equivalente à ressurreição,
mas “aponta para algo que foi feito a Jesus. Ela refere-se
inconfundivelmente a um ato específico de D-us pelo qual o
Senhor foi trazido à vida... Nem todos os eruditos concordam que
esta ação deva ser entendida com referência à ressurreição no
seu sentido estrito. Há aqueles que restringem a palavra neste
ponto à vivificação, que é distinta da ressurreição no sentido
de que a ressurreição foi uma exibição pública do fato de ele ter
voltado à vida. Em muitas passagens do Novo Testamento, esta
distinção pode ser feita. Contudo, em Efésios 2.5-6 o apóstolo
aponta para a diferença entre despertar e ressuscitar. Tal
distinção nos conduziria a crer que nós poderíamos
propriamente, com base no Novo Testamento, separar a
vivificação da ressurreição para o propósito de cronologia e
clarificação daquilo que aconteceu na manhã do dia de páscoa”
(Ibid., 87-88).
68 Ibid., 88.
69 Ibid., 88. Contudo, esta interpretação dada por Scharlemann
tropeça no fato de que o retornar à vida da filha de Jairo é igual
à ressurreição, o que não aconteceu com Jesus Cristo.
70 Ibid., 89.
71 Ibid., 90.
72 Citado por John T. Mueller no Concordia Theological Monthly
18 (1947), 615.
73 Martin Scharlemann, “He Descended into Hell – An
31

Interpretation of 1 Peter 3.18-20,” Concordia Theological


Monthly 27 (1956), 91.
74 Ibid.
75 Ibid.
76 Ibid., 92.
77 Ibid., 93.
78 Como, por exemplo, em 2 Coríntios 7.1.
79 Uma interpretação alternativa seria entender a expressão
“morto na carne” como uma referência à morte física e traduzir
a expressão zwopoihqei£/j... pneu/mati por “vivificado pelo
Espírito,” ao invés de “vivificado no espírito.” A construção
gramatical é possível, visto que pneumati pode ser tanto
locativo como instrumental. Assim, o pneumati aqui referido é o
Espírito Santo, e a vivificação, uma referência à ressurreição
de Cristo pelo Espírito Santo. E foi pelo Espírito Santo e
através de Noé que o Cristo pré-encarnado pregou aos
desobedientes nos dias daquele patriarca (1 Pe 1.11).
80 Este é o mais alto dos céus, que equivale ao lugar da plena
companhia divina, como era no paraíso original. Paulo, numa
experiência ímpar, viu este lugar glorioso da presença de D-us,
para onde vão os remidos em Cristo Jesus (ver Charles Hodge, A
Commentary on 1 & 2 Corinthians (Edimburgo: Banner of Truth,
1978), 658.
81 Ver At 3.21.
82 Ver Wayne Grudem, “He Did Not Descend Into Hell,” 110.

83 Ver o comentário de Wayne Grudem, 1 Peter, Tyndale New


Testament Commentaries (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), 160.
84 Para um tratamento mais amplo desta matéria, ver o
comentário de Wayne Grudem, I Peter, 203-239.
85 É importante observar que Pedro fala no seu discurso de Atos
2 que Jesus Cristo esteve no Hades, mas Hades aqui tem um
sentido muito diferente. Citando o Salmo 16.8-11, referindo-se
ao seu estado após a morte, Pedro coloca na boca de Redentor as
seguintes palavras: “... porque não deixarás a minha alma na
morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção” (At 2.27).
A palavra “morte” no grego é Hades. E Hades aqui significa
estado de morte, não somente sepultura. Ela é a tradução do
salmo onde o escritor usa a palavra hebraica equivalente, sheol.
Durante este estado de morte (Hades), isto é, durante o tempo em
que o seu corpo ficou separado de sua alma, o corpo de Jesus
estava na sepultura e a sua alma estava com o seu Pai/Mãe no
Paraíso ou Céu.
32

Visão adicional:
http://magcalcauvin.wordpress.com/2010/09/30/2327/

Reflexão sobre a Arte (o Sudário em análise), a Democracia,


Imprensa e o Viés eleitoral - Hélio Schwartsman/Folha de São
Paulo

LECTIO DIVINA
Para que diabos serve a arte? A questão é das mais polémicas
entre os neurocientistas. A exemplo do que se dá com a religião,
os especialistas podem ser divididos no bloco dos que acreditam
que a arte é uma adaptação humana obtida por seleção natural e
o dos que pensam que ela é apenas um efeito colateral
resultante da forma como os nossos cérebros estão montados. No
último grupo encontram-se os pesos-pesados do neodarwinismo,
como o eterno Richard Dawkins, Stephen Jay Gould e Steven
Pinker. No primeiro, estão o próprio Charles Darwin (para ele, o
senso estético era uma faculdade intelectual fruto da seleção),
a antropóloga Ellen Dissanayake, o psicólogo Geoffrey Miller, e
a dupla dinâmica da psicologia evolutiva, John Tooby e Leda
Cosmides, que mudaram de lado, abandonando a tese da arte como
subproduto para abraçar a teoria da adaptação. Mas prossigamos
com um pouco mais de calma, pois esta é uma questão
extremamente controversa e que envolve conceitos complicados.

Dawkins, Gould e Pinker relutam em aceitar a arte como


adaptação porque isso teria implicações profundas sobre a
biologia. Em primeiro lugar, mesmo que recuemos o
comportamento artístico para uns 50 mil ou 100 mil anos atrás
(e poucos ousam ir mais longe), este ainda é um período curto
demais para que a evolução tenha deixado marcas nos nossos
genes.

A outra objeção forte é que admitir o caráter adaptativo da arte


abre um flanco para a noção de seleção de grupo, vista com
grande desconfiança pela linha dura do darwinismo. A ideia,
defendida principalmente por Dissanayake, é que a arte teria
sido selecionada porque, ao reforçar a coesão do grupo através
33

dos cantos e danças comunais, por exemplo, ela o tornaria mais


apto a enfrentar os bandos rivais e a sobreviver. O problema com
a seleção de grupo é que ela não é lá muito estável, porque
sempre valeria a pena para indivíduos egoístas apanharem uma
boleia na coesão grupal sem dar a sua justa contribuição. Eles
teriam um maior sucesso reprodutivo, espalhando os genes
menos colaborativos. Seria assim muito difícil fixar num "pool"
genético qualquer características que favorecem o grupo.

É por essas e outras que Pinker classifica a arte como


"cheesecake mental", algo sem valor adaptativo em si, mas que
explora, como as comidas gordurosas e doces, os mecanismos
biológicos que nos dão prazer. Uma outra analogia válida é com
as drogas recreativas. Seria até ridículo imaginar que elas
representam uma adaptação, mas é inegável que afetam, e muito,
os nossos cérebros, proporcionando prazer em doses tão
cavalares que podem mobilizar toda a nossa atenção neuronal,
como no caso do vício.

A exemplo do neurocientista Michael Gazzaniga, autor de "Human:


The Science Behind What Makes Your Brain Unique", acho mais
prudente não tomar partido nessa polêmica, mas apenas expor o
que me parecem ser os melhores argumentos de cada lado. E, por
falar em argumento, Geoffrey Miller, tem um interessante. Para
ele, a arte é o resultado da seleção sexual. Ela está para o
género humano como a cauda do pavão está para a família dos
fasianídeos: uma exuberância biologicamente custosa que só
existe porque atribui ao seu detentor inequívoco sucesso entre
as fêmeas, o que se traduz numa importante vantagem
reprodutiva.

Curiosamente, a teoria de Miller acaba explicando um pouco da


demografia da arte: considerados os grandes números, a maioria
dos artistas são homens no pico da atividade sexual. São ideias
que, se levadas muito a sério, tiram algo da transcendência da
arte e nos aproximam dos canários. Mas quem disse que os
pássaros, ao cantar, não experimentam a versão aviária da
transcendência?

Outro ponto interessante é o da ficção. Foi ele que fez com que
Tooby e Cosmides mudassem de posição. OK, toda a gente está
cansada de saber que a arte é um universal humano. Não há
aldeia indígena, por mais remota que seja, que não faça alguma
coisa pragmaticamente inútil com penas e sementes e não se
34

reúna para cantar e dançar. Mas isto não é tudo. A ficção, isto é,
histórias inventadas também são universais e, exceto pelos
fundamentalistas religiosos, ninguém as toma por realidade. Já
desde a mais tenra idade aprendemos a diferenciá-las. Para os
dois pesquisadores, este mecanismo de decupagem é um sinal de
adaptação. Confundir fatos com ficções é, evidentemente,
perigoso, como o provam os homens-bombas que imaginam ir
para um paraíso repleto de virgens (Alcorão 44:54 e 55:70) e
"mancebos eternamente jovens" (Idem 56:17). Se desenvolvemos
um sistema para operar a distinção e aparentemente estamos
todos dotados com a capacidade de extrair prazer de narrativas
inventadas, isto implica que a experiência ficcional é benéfica.
Ponto para a adaptação.

A ficção proporciona-nos a possibilidade de "viver"


determinadas situações. A experiência pode não ser tão intensa
como é na realidade e, embora isto atenue as sensações, também
preserva-nos dos perigos. Assistir no cinema a alguém a ser
devorado por tubarões é mais seguro do que presenciar a cena
"in loco". Sempre pode sobrar uma dentada. Esta simulação
segura é, em geral, uma boa oportunidade de aprendizado, seja
para lidar com as próprias emoções, seja para adestrar-se numa
atividade relevante. No mundo animal, as brigas de brincadeira
entre filhotes são uma forma de aprendizado para a luta --sem
o risco de ferimentos.

ARTE - O SUDÁRIO

Uma visita ao Sudário na Catedral de Turim, Itália começou com


o Papa a fazer uma oração pessoal ante o Sudário

Turim (Segunda-feira, 03-05-2.010 AD, "Gaudium Press")


O Sudário testemunha o "intervalo único e irrepetível na
história da humanidade e do universo" que é a ressurreição de
Jesus Cristo: também nos faz ver "como era seu corpo deitado na
sepultura", afirmou Bento XVI na sua passagem pela Catedral de
Turim, local que guarda o misterioso tecido.

Na sua visita a Turim, o Santo Padre confirmou a sua convicção


na originalidade do tecido. O Pontífice, ainda como Cardeal
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, esteve em Turim
junto em 1.998 AD, quando afirmou: "Hoje o sofrimento de Cristo
e o seu amor por nós foram quase tangíveis". Enquanto João
Paulo II na sua visita no mesmo ano encorajava os cientistas a
35

continuarem a pesquisa, Bento XVI hoje fala em "documento


fotográfico". A Igreja Católica nunca havia confirmado
oficialmente a originalidade do sudário.

A visita à Catedral de Turim começou com a oração pessoal do


Papa diante do sudário. Para este momento, as luzes da nave
central foram apagadas. Depois, o Santo Padre apresentou uma
meditação sobre o tema "O mistério do Sábado (ou
Shábbos/Shabbat) Santo". O dia que simboliza a "terra de
ninguém" do "grande silêncio e solidão" de "escondimento de D-
us". O Pontífice observou que a humanidade teve vários
momentos como o Sábado (Shábbos) Santo nas duas Guerras
mundiais, nos lager, nos gulag e nas explosões nucleares em
Hiroshima e Nagasaki.

Além disso, o Shábbos Santo simboliza "solidão extrema e


absoluta do homem" e "o abandono total" sem amor e palavras de
conforto, que foram superados por Jesus Cristo. O Papa disse que
"da escuridão da morte do Filho de D-us nasceu a luz de uma
nova esperança" que assegura que na "extrema solidão não
estaremos nunca sozinhos". O sudário, manchado com o sangue,
traz também a mensagem da vida, da "vitória da vida sobre a
morte".

A veneração do sudário foi o momento mais importante de toda a


visita, um reconhecimento expresso pelo próprio Papa, que
confessou: "Vivo esta peregrinação" com "particular intensidade,
talvez porque o passar dos anos me tornem ainda mais sensível à
mensagem deste extraordinário ícone".
Fonte:
http://www.arautos.org/noticias/15603/Papa-diz-que-Sudario-
e-testemunho-da-ressurreicao-.html

A democracia não elimina o conflito entre as diferentes facções


políticas. Ela apenas procura discipliná-lo, de modo que a
disputa pelo poder se resolva pela vias institucionais e não as
de fato. De um modo geral funciona. Desde que a democracia foi
restabelecida no Brasil, em 1.985 AD, não assistimos a
revoluções, golpes de Estado e as outras modalidades de ruptura
violenta. Um quarto de século não é muito, conceda-se. Mas, em
alguns países, o período de estabilidade política proporcionado
36

pela institucionalização das controvérsias pode chegar a vários


séculos, como é o caso dos EUA e do Reino Unido e da Sereníssima
San Marino, República fundada em 301 AD e cuja Constituição
vigora desde 1.600 AD. É claro que normalidade política não é
tudo, mas é uma condição no mais das vezes necessária para que
um país consiga aliar desenvolvimento económico com um
regime de liberdades, o que, por seu turno, permite aos cidadãos
que se dediquem a buscar a própria felicidade.

Quanto a essa polémica toda em torno das supostas tendências


liberticidas do governo Lula contra o presumido caráter
golpista da mídia brasileira, eu diria que a grita faz parte do
jogo. É um dos caminhos institucionais da disputa. Enquanto as
divergências ficam no terreno da retórica, estamos atuando de
acordo com as regras. Pode não ser muito bonito, mas não vejo
aí nenhuma ameaça. A democracia, como eu já disse, não tem o
dom de eliminar o conflito latente na sociedade. E isto, aliás,
nem seria desejável.

A imprensa quer derrubar Lula? Difícil acreditar. Ao contrário


do que os setores mais à direita previam em 2.002 AD, o país não
só não foi tomado pelo caos com a vitória do dirigente petista
como vai muito bem com ele no poder. Na economia e em várias
outras áreas sensíveis, Lula mostrou-se tão ou mais
conservador do que seus antecessores tucanos. As diferenças
pequenas entre as propostas dos principais candidatos a
sucedê-lo são um bom indício de que uma eventual deposição
dos petistas, ainda que desejada por certos setores, não vale o
risco de uma aventura golpista. É mais negócio esperar a
próxima crise económica, que abrirá uma excelente janela de
oportunidade para a oposição. De resto, fazer acusações, xingar,
propor "impeachment" (o PT pediu o afastamento de FHC), tudo
isto é permitido pelo jogo.

E Lula pretende destruir a sociedade livre? Também me parece


uma tolice. É fato que o presidente padece de incontinência
verbal, o que invariavelmente o faz dizer coisas que deveria
calar, mas, afora a paternal leniência para com aliados,
aloprados e ditadores da estirpe de Ahmadinejad, Lula não tomou
nenhuma medida de lesa-democracia. A principal "prova"
apresentada pelos opositores é o Plano Nacional de Direitos
Humanos 3, um decreto (sem força de lei) que elenca intenções do
governo em áreas tão diversas como direitos de mulheres,
crianças e populações indígenas, combate à tortura, à pobreza,
37

ao racismo e às perseguições a minorias. Nessa extensa pauta,


faz referências à "democratização" dos meios de comunicação. É
um documento mais voltado à militância do que à base
parlamentar, que, de resto, só teria algum efeito prático se
convertido em projetos de lei específicos que fossem
individualmente aprovados pelo Congresso.

No mais, todos os governos do mundo livre sempre tentam dar


uma apertadinha na imprensa, que normalmente reage à altura.
Nos regimes democráticos, tudo fica no reino do diz-que-diz e
das pressões. É mais uma modalidade do jogo.

Cuidado. Não estou, com estas minhas observações, absolvendo


Lula e o PT. Há fartos indícios de que petistas infringiram um
bom número de artigos do Código Penal. Numa democracia mais
madura, as consequências legais destes atos viriam em tempo
hábil, provocando também repercussões políticas. A questão
central, contudo, é que há uma diferença entre formar quadrilha,
como a Procuradoria-Geral da República descreve o "mensalão",
e atentar contra a democracia. O PT parece envolvido até o
pescoço no primeiro pecado, mas é inocente do segundo.

E isto nos leva à questão de fundo desta coluna: por que raios,
quando o assunto é política, as pessoas param de pensar com a
cabeça e reagem apenas emocionalmente? O problema, receio, é
mais grave. Eu diria que a política é um dos poucos assuntos
onde conseguimos perceber com alguma clareza que nossos
cérebros são profundamente enviesados. Em outras áreas, nosso
órgão executivo central também age segundo um sistema de
preferências internas preestabelecidas, com base em emoções e
intuições morais esculpidas por condicionamentos culturais,
mas nós mal nos damos conta disto.

Quem resume bem a situação é Robert Wright, em "Animal Moral":


"O cérebro é como um bom advogado: dado um conjunto de
interesses a defender, ele se põe a convencer o mundo da sua
correção lógica e moral, independentemente de ter qualquer uma
das duas. Como um advogado, o cérebro humano quer vitória, não
verdade; e, como um advogado, ele é muitas vezes mais admirável
por sua habilidade do que por sua virtude".

Este sistema está tão enraizado dentro de nós que, de acordo


com o psicólogo Jonathan Haidt, depois que um juízo intuitivo
foi proferido e reforçado por uma racionalização "post hoc" (o
38

cérebro causídico), existem apenas quatro circunstâncias sob as


quais esse juízo pode ser alterado. A primeira e a segunda têm
mais a ver com interações sociais do que com pensamento
propriamente dito. Elas são o efeito maria-vai-com-as-outras
e a obediência a uma autoridade.

A força destes fenómenos já foi estabelecida em diversos


experimentos psicológicos. Solomon Asch revelou como um
indivíduo pode ser levado a dizer uma inverdade óbvia (o
tamanho de diferentes objetos colocados à sua frente, por
exemplo) se um bom número de pessoas (atores contratados)
sustentar a mentira antes dele. Já Stanley Milgram, na célebre
experiência que leva o seu nome, mostrou que, quando recebiam
ordens dos cientistas (mesmo que sem muita ênfase),
voluntários comuns eram capazes de desferir em outros seres
humanos choques que acreditavam (falsamente) ser capazes de
deixar graves sequelas.

As outras duas hipóteses levantadas por Haidt são mais


promissoras para os amantes da razão. Ele as batizou de juízo
racionalizado e reflexão privada. O problema é que só tendem a
ocorrer quando a intuição moral inicial é muito fraca ou
inexistente e a capacidade analítica do sujeito, forte. É só aí
que o advogado pode sair de férias.

A razão está, então, condenada? Sim e não. A resposta depende de


como a definimos. A ideia de que a escolha de um candidato a
presidente (ou qualquer outra escolha que envolva maior
conteúdo moral ou emocional do que decidir qual azeitona tirar
da travessa) é resultado de uma reflexão que pesa prós e contras
nos moldes preconizados pelos teóricos do Iluminismo fica de
fato comprometida. A questão é que esse modelo jamais foi
verdadeiro. Ele existia apenas nas cabeças dos "philosophes".

Como o neurologista português António Damásio mostrou, aquilo


que chamamos de razão é resultado de complexos processos
cerebrais catalisados por emoções. Sem elas, seria impossível
até mesmo pensar. Como bem observa o neurocientista Michael
Gazzaniga, autor de "Human: The Science Behind What Makes Your
Brain Unique", esse rebaixamento do estatuto da razão talvez
não seja uma má notícia. Afinal, se fôssemos todos 100%
racionais o tempo todo, ninguém daria gorjeta num restaurante
a que não pretende voltar e esposas abandonariam seus maridos
doentes para ficar com um parceiro saudável. Num mundo
39

perfeitamente racional, sempre vale a pena roubar a carteira do


melhor amigo, se tivermos alguma garantia de que não seremos
apanhados. São as emoções que possibilitam a moral e a ética.

O desafio diante de nós é aprender que os nossos cérebros são


máquinas de autoengano e, na medida das possibilidades, tentar
nos precaver contra o erro. No mundo contemporâneo, pensar
racionalmente às vezes vale a pena.
Publicada por MagCalCauvin

AULA SOBRE PREDESTINAÇÃO E A REGRA SIMPLES DE HERMENÊUTICA

A refutação do artigo 48 textos bíblicos contra 12


descontextualizados..., do professor adventista
Leandro Quadros, que é a resposta dele ao artigo
Resposta ao Professor Leandro Quadros - "Na mira da
verdade".

João 3:36

Diz o professor Leandro Quadros sobre João 3:36:

“Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se
mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele
permanece a ira de Deus.”

“Que coerência há em D-us predestinar alguns para a perdição


sendo que há a possibilidade clara de uma pessoa se manter
rebelde? É claro que o “se manter rebelde” é uma atitude humana
40

diante da predestinação Divina.

“Outro detalhe: na expressão “quem crê no Filho” não há a


mínima hipótese de fazer uma “eisegese” e dizer que o texto não
se aplica a todos.”
João 3:36 não compartilha da sua ideia, de que quem se mantém
rebelde é porque foi predestinado para isso, pois, seria afirmar
ser D-us o autor do pecado e das decisões erradas dos
pecadores. Mesmo crendo de coração na sinceridade sua e demais
irmãos calvinistas, cada vez mais me conscientizo de que a
predestinação determinista é diabólica por denegrir o caráter
de D-us e limitá-Lo a própria Onisciência dEle.

Lembro aos mais distraídos que existe uma simples regra de


hermenêutica, ignorada pelo professor e por muitos não-
calvinistas. Se a Bíblia ensina duas verdades aparentemente
contraditórias, as duas devem ser afirmadas igualmente. Uma
conciliação em que a verdade A suplanta a B é um erro de
interpretação bíblica. Quem quiser, explico melhor aqui.

A Bíblia ensina duas verdades de difícil conciliação:

- D-us decreta e determina todas as coisas e escolhe aqueles


que serão salvos e os que serão condenados.

- As pessoas são condenadas porque, voluntariamente, se


mantêm rebeldes a D-us.

O erro é entender que ou D-us endurece o coração dos


condenados ou o condenado escolhe, por vontade própria, a
condenação. O que acontece é que tanto Deus endurece o coração
humano como o pecador, voluntariamente, se rebela contra Deus:
Que diremos, pois? Há injustiça da parte de D-us? De modo
nenhum! Pois ele diz a Moisés:

Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e


compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão. Assim,
41

pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar


Deus a sua misericórdia. Porque a Escritura diz a Faraó: Para
isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para
que o meu nome seja anunciado por toda a terra. Logo, tem ele
misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz.
(Romanos 9:14-18)

A ira de D-us revela-se do céu contra toda a impiedade e


perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça;
porquanto o que de D-us se pode conhecer é manifesto entre
eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos
invisíveis de D-us, assim o seu eterno poder, como também a sua
própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio
do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram
criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto,
tendo conhecimento de D-us, não o glorificaram como D-us, nem
lhe deram graças; antes, tornaram-se nulos nos seus próprios
raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.
Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a
glória do D-us incorruptível em semelhança da imagem de
homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis.
(Romanos 1:18-23)

No mesmo livro, as duas verdades são ensinadas. Logo, isto deve


estar em mente quando analisamos João 3:36.

O erro do professor Quadros é exatamente o de sacrificar uma


verdade em detrimento da outra em sua análise. Como os
reformados interpretam João 3:36?

- De fato: todas as pessoas que crêem no Filho de D-us têm a


vida.

- Só que, à luz de outros textos, entendemos que apenas crêem


aqueles que são predestinados (eleitos), alcançados pela
misericórdia de D-us.

- De fato: todos os que se mantêm rebeldes contra o Filho de D-


42

us não verão a vida, e sentirão a ira divina.

- Só que, à luz de outros textos, entendemos que esses são todos


reprovados por D-us para a salvação antes da fundação do
mundo.

Diz o professor:

“Que coerência há em D-us predestinar alguns para a perdição


sendo que há a possibilidade clara de uma pessoa se manter
rebelde? É claro que o “se manter rebelde” é uma atitude humana
diante da predestinação Divina.

Respondo eu:

1) Tanto a pessoa se mantém rebelde como D-us a predestina à


perdição. Simples, não? E bíblico também.

2) O professor Leandro Quadros acredita que todos são


predestinados à salvação. Por isso, ele diz que se manter
rebelde é uma atitude humana contra à predestinação divina. Aí
sou quem pergunto:

- Qual o sentido de D-us pré-destinar alguém se a destinação


depende da reação da pessoa? Aí não seria predestinação, seria
pós-destinação...erro de português, de lógica e de teologia.

- Como fica Romanos 9:14-18 onde D-us diz claramente que têm
misericórdia de uns (eleitos para a salvação) e endurece aos
outros (predestinados à perdição)?

Mas Quadros continua:

“Outro detalhe: na expressão “quem crê no Filho” não há a


43

mínima hipótese de fazer uma “eisegese” e dizer que o texto não


se aplica a todos.”

Sim, professor, se aplica a todos os homens. Todos os que creem


são salvos. Perfeito! O senhor só esqueceu que todos eles, sem
exceção, são predestinados também. Todos eles, e somente eles.

Para fechar, Quadros afirma:

João 3:36 não compartilha da sua ideia, de que quem se mantém


rebelde é porque foi predestinado para isso, pois, seria afirmar
ser De-s o autor do pecado e das decisões erradas dos
pecadores. Mesmo crendo de coração na sinceridade sua e demais
irmãos calvinistas, cada vez mais me conscientizo de que a
predestinação determinista é diabólica por denegrir o caráter
de D-us e limitá-Lo a própria Onisciência dEle.

Sobre D-us e o pecado, recomendo o texto Deus decreta pecados?


que pode ser lido neste blog. Quanto ao determinismo da
predestinação, ela não anula a onisciência divina. D-us sabe de
tudo, claro, porque Ele decretou tudo o que vai acontecer. E,
sim, claro, D-us conhece todos os cenários possíveis e
impossíveis para o desenvolvimento da História. A
predestinação não diminui um milímetro da onisciência divina.

Agora, o ponto de vista defendido por Quadros é que diminui... a


onipotência e a soberania divinas. D-us não é alguém que reage
aos acontecimentos. Ele usa ativamente o Seu poder, quando Lhe
convém, para controlar tudo o que acontece.
Fonte:

http://reformaecarisma.blogspot.com/2010/05/ultima-resposta-leandro-quadros-
parte.html
Jesus liberta Adão e as suas Companheiras Lilith e Eva do Cativeiro da morte: http://magcalcauvin.wordpress.com/2010/09/30/2327/

Publicada por MagCalCauvin

Etiquetas: Arte, Cristo no Hades, Cérebro, Política, Predestinação, Razão


Terça-feira, 28 de Setembro de 2010
A religiosidade protege o coração, diz Estudo; Freud no divã - Hélio Schwartsman
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Dois estudos internacionais indicam que a religiosidade pode proteger da morte por problemas cardíacos e de
doenças como a hipertensão.

Durante 30 anos, os médicos norte-americanos acompanharam a saúde cardiovascular de 6.500 adultos que
não apresentavam factores de risco (obesidade, tabagismo etc.). Constataram um menor número de mortes
por doenças do coração entre os que seguiam alguma religião.

Outro estudo americano, realizado pela Universidade de Duke com 3.963 pessoas, concluiu que a leitura de
textos religiosos, a prática de oração ou a participação em cultos reduziu em 40% o risco de a pessoa
desenvolver hipertensão. Com base nestes resultados, a Sociedade de Cardiologia de São Paulo, Brasil,
discutiu pela primeira vez a relação entre espiritualidade e saúde cardiovascular, num congresso.

"Cada vez mais os estudos apontam esta associação benéfica. Os resultados ainda não são definitivos, mas
merecem ser discutidos", diz o cardiologista Álvaro Avezum, director da divisão de pesquisa do Instituto Dante
Pazzanese de Cardiologia de São Paulo, Brasil. Existem algumas teorias para explicar por que as pessoas
religiosas têm menos doenças cardiovasculares. A principal delas, de acordo com Avezum, é o controle do
stress.

"O stress aumenta os níveis de cortisol no sangue. Isto eleva a pressão arterial e pode provocar taquicardia -
factores de risco para os problemas cardiovasculares. As pessoas espiritualizadas têm maior convivência
social e enfrentam os problemas da vida de maneira mais fácil, gerenciam melhor o stress", diz.

O psicólogo José Roberto Leite, do departamento de Psicobiologia da Unifesp (Universidade Federal de São
Paulo, Brasil), concorda. "As pessoas que têm uma crença religiosa costumam alimentar expectativas
positivas em relação ao futuro."

Resultados controversos

O geriatra Giancarlo Lucchetti, do Departamento de Neurologia da Unifesp, diz que a dobradinha religiosidade
e espiritualidade sempre esteve muito próxima da saúde, embora haja conclusões controversas. "Há estudos
que mostram benefícios, outros não. Mas a religiosidade é benéfica não apenas para o coração, mas para a
saúde como um todo."

Lucchetti fez um levantamento com 110 pacientes idosos que estavam em reabilitação na Santa Casa de São
Paulo, Brasil. Aqueles que eram mais religiosos tiveram uma melhora mais rápida no tratamento e relataram ter
mais qualidade de vida, segundo o médico. Ele alerta, porém, para o facto de que a religião pode atrapalhar o
paciente, dependendo da abordagem: "Muitas pessoas acham que um problema de saúde acontece porque
estão a ser punidas, porque D-us as abandonou. Isto provoca desfechos piores no tratamento e maior índice
de depressão".

A religiosidade, sozinha, não faz milagres, como lembra o cardiologista Marcos Knobel, do hospital israelita
Albert Einstein de São Paulo, Brasil: "Quem só se dedica à religião e esquece-se dos outros factores não
estará mais protegida do que alguém que cuida da saúde, mas não é tão religioso".

FREUD NO DIVAN

O sempre polémico filósofo francês Michel Onfray aprontou mais uma. Acaba de lançar o livro "Le Crepuscule
d'une Idole - L'Affabulation Freudienne" (O Crepúsculo de um Ídolo - A Fabulação Freudiana), no qual desfere
fortes ataques à vida e à obra de Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise. Mesmo antes da chegada do
catatau de 624 páginas às livrarias, no último dia 21, a França vivia clima de guerra intelectual, com a
comunidade psicanalítica (principalmente freudianos e lacanianos) se mobilizando para responder à ofensiva.

O objetivo de Onfray em "Le Crepuscule", cujo título já escancara sua inspiração nietzschiana, é demonstrar
que "a psicanálise funciona como uma metafísica de substituição num mundo sem metafísica e oferece
elementos para a construção de uma religião numa época do pós-religioso". Segundo o filósofo, as
instituições da psicanálise foram construídas por seus "sacerdotes" num esquema próximo ao da religião
cristã, com seus patriarcas trabalhando diligentemente para esconder o que poderia vir a macular o mito --daí a
própria razão de ser do livro, que é desconstruir as falsificações.

Confesso que tenho simpatias por Onfray. Não tanto pela qualidade da sua obra, da qual li uma pequena
fração, mas pela capacidade de colocar o dedo nas feridas intelectuais francesas e torcê-las sem dó. Neste
caso, porém, só lhe dou meia razão.
45

É claro que a psicanálise não é nem nunca foi uma ciência. E quem frequentar um psicanalista em busca de
cura para doenças mentais não apenas joga o seu dinheiro fora como ainda pode estar a retardar as
intervenções médicas necessárias. Parece-me entretanto historicamente falso, além de injusto, negar a Freud
um lugar no panteão dos pioneiros. Afinal, ele foi o primeiro a identificar o inconsciente e a ressaltar a sua
importância nos processos mentais humanos --o que não é pouca coisa. Receio, porém, que já me esteja a
antecipar. Voltemos às críticas de Onfray. Depois retomo a apreciação do que, a meu ver, sobrevive de Freud.

Pela reportagem que o caderno "Mais!" (só para os assinantes do UOL e da Folha de São Paulo) publicou no
último Domingo, "Le Crepuscule" não tem muito de inédito. Ele como que retoma, agora sob a coreografia do
polêmico filósofo, objeções epistemológicas e argumentos "ad hominem" que já haviam sido publicados em
2005 em "Le Livre Noir de la Psychanalyse" (O Livro Negro da Psicanálise), a obra coletiva que reúne 40 artigos
contra Freud.

E o próprio "Livre Noir" não é exatamente uma novidade. Ele é uma tradução para o francês dos humores
antipsicanalíticos que emanam do mundo acadêmico norte-americano, onde a visão preponderante é a de que
Freud nunca passou de um charlatão.

Isto foi algo que me chamou a atenção durante o ano sabático de 2008-2009 que passei na Universidade de
Michigan. Ali ninguém fala de Freud, que praticamente não consta dos programas de psicologia, seja de
graduação ou de pós, de nenhuma das grandes universidades que consultei. (Além de Michigan, dei uma
olhadinha em Stanford e Yale, que têm os dois mais conceituados departamentos de psicologia dos EUA). Com
um pouco de sorte, o nome do pensador vienense talvez seja mencionado --e bem "en passant"-- em algum
curso introdutório. O resto é basicamente neurociência, ciência cognitiva, psicolinguística, um pouquinho de
nada de sociologia e, na parte clínica, terapias não psicanalíticas.

O contraste com o Brasil é gritante. Aqui, a julgar pelo programa da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, Brasil), Freud e sucessores, como Jung e Melanie Klein, ainda compõem algo como um terço do
currículo. Não creio que a situação seja muito diferente nas outras instituições.

O ocaso de Freud nos EUA (e em outros países que prestam mais atenção à ciência do que à metafísica) teve
início nos anos 50, com o desenvolvimento dos primeiros fármacos psicoativos. A constatação de que as
drogas eram capazes de provocar alterações no psiquismo abriu toda uma nova avenida para as pesquisas. Os
antipsicóticos fizeram-nos compreender melhor o sistema dopaminérgico. Depois vieram os antidepressivos e,
com eles, foram destrinchados os sistemas da serotonina e das monoaminas. Ressonâncias magnéticas
funcionais e tomografias por emissão de pósitrons completaram o arsenal do qual hoje a neurociência se vale
para esquadrinhar o cérebro. Paixões, pensamentos e até o raciocínio lógico deixam cada vez mais de ser
abstrações para tornar-se manifestações físicas nos neurônios. É o triunfo do monismo.

Os avanços neste campo foram tão rápidos e surpreendentes que há autores como George Lakoff afirmando
que até mesmo as metáforas que utilizamos na linguagem têm existência material nas nossas células
nervosas. Diante de tão palpáveis evidências, fica mesmo difícil recorrer a conceitos algo nebulosos como
complexo de Édipo, recalque, pulsão de morte e cura pela palavra.

Paradoxalmente, o próprio Freud, que jamais renunciou à pretensão de fazer ciência, teria aplaudido o avanço
da psicofarmacologia. No seu último livro, o inacabado "Esboço de Psicanálise", de 1938, ele escreveu: "O
futuro provavelmente vai nos ensinar a influenciar diretamente as quantidades (psíquicas) de energia e a sua
distribuição no aparelho psíquico por meio de matérias químicas especiais. Talvez surjam ainda outras
possibilidades ainda desconhecidas de terapia; por enquanto nós ainda não temos nada melhor que a técnica
psicanalítica à nossa disposição e por isso ela não deve ser desprezada, apesar das suas limitações".

Aparentemente, este futuro chegou --em que pese a forma ainda grosseira com que atuam os psicofármacos.

Do modo que foi formulada, a psicanálise jamais passou perto de ser uma ciência. Faltam-lhe metodologia,
resultados e conteúdo empírico para reclamar estatuto epistemológico. E acho complicado até tentar reservar
para ela o papel de saber curativo. Pelo menos para mim, é especialmente chocante a ideia de que o principal
que havia a ser dito sobre o psiquismo humano foi dito por Freud mais de 70 anos atrás e, de lá para cá, nada
de muito relevante surgiu. Se é verdade que as ciências duras, em especial as biológicas, padecem do defeito
de olhar muito pouco para o seu próprio passado --os médicos raramente leem um texto com mais de cinco
anos--, a psicanálise tem a falha de ser imune ao presente. A verdade já foi revelada pelo profeta vienense, não
havendo mais nada (ou quase nada) a acrescentar.

E esta é uma característica que, na minha opinião, dá razão a Onfray quando afirma que a psicanálise
estruturou-se de forma semelhante às religiões --ou aos partidos políticos de esquerda, ouso acrescentar. Para
prová-lo, basta conferir o elevado número de defecções, rompimentos e até excomunhões entre os seus
membros.

É claro que, numa sociedade livre, cada um pode ir atrás do que lhe faz bem. Se o fiel encontra conforto na
missa/culto/sinagoga..., é perfeitamente legítimo que o neurótico busque o alívio no divã. Dada, entretanto, a
ausência de evidências científicas de que estas terapias funcionam para além do efeito placebo, relutaria
bastante antes de introduzi-la na rede pública de atendimento.
46

Só que nem a precariedade epistemológica da psicanálise nem as várias picuinhas levantadas por Onfray,
como as supostas infidelidades conjugais de Freud ou as suas propaladas simpatias pelo fascismo, são
suficientes para tirar do vienense o grande mérito de ter "inventado" o inconsciente. Os avanços da
neurociência vão mostrando que esee conceito é ainda mais importante do que suspeitava o pai da
psicanálise. Experiências neste campo já colocam em dúvida até a existência do livre-arbítrio. Ter percebido
isto num mundo ainda vitoriano é definitivamente uma façanha. Apenas isto já bastaria para colocar Freud no
mesmo patamar dos outros grandes pensadores que, munidos apenas da especulação, contribuíram para que
a humanidade pudesse lançar um novo olhar sobre si mesma.

Freud é um clássico --e a psicanálise, o seu maior erro.

Hélio Schwartsman, 43 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O
Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

E-mail: helio@uol.com.br
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