A - Idade Média - Dos Nibelungos A Jerônimo Bosh - Eric Voegelin

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ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

Textos on-line de Eric


Voegelin
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
ERIC VOEGELIN
**
A Idade Média
- Dos Nibelungos a Jerónimo Bosch -
● A . O Crescimento do império
● 1 Estrutura Geral da Idade Média
● 2 Os Povos Germânicos Migrantes
● 3 O Novo Império
● 4 A Primeira Reforma
● B. A ESTRUTURA DO SÉCULO
● 5 Introdução
● 6 João de Salisbúria
● 7 Joaquim de Fiora
● 8 S. Francisco de Assis

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ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

● 9 Frederico II
● 10 O Direito
● 11 Sigério de Brabante
● C. O CLÍMAX
● 12 S. Tomás de Aquino
● D. A IGREJA E AS NAÇÕES
● 13 Carácter do Período
● 14 Ultramontanos e Egídio Romano
● 15 Monarquia Francesa
● 16 Dante
● 17 Marsílio de Pádua
● 18 Guilherme de Ockham
● 19 Política Nacional Inglesa
● 20 Da Cristandade Paroquial
à Cristandade Imperial
● 21 A Área Imperial
● 22 O Movimento Conciliar

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Capítulo 7

ERIC VOEGELIN
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
**
A época medieval
Capítulo 7. Joaquim de Fiora
1. O progresso na história
Era geral na época o sentimento de que o crescimento
das ordens significava um progresso da espiritualidade,
inaugurando uma nova fase da vida cristã. A experiência
revelatória de Joaquim accionou estas potencialidades e
criou uma nova configuração da história. O passo
decisivo foi a concepção do Terceiro Reino não como um
sabbath eterno mas como a idade derradeira da história
da humanidade que se segue à eleição do filho.
O decurso de um reino abrange um período preparatório
(de Adão a Abraão, 21 gerações) seguido pela initiatio,
(Abraão a Uzias, 21 gerações) e a fructificatio (Uzias a
Zacarias, 21 gerações) a última das quais é ao mesmo
tempo o período preparatório para o próximo reino. Os
reinos têm, pois, 42 gerações; e como a duração das
gerações para o reino de Cristo é de 30 anos, o segundo
reino terminaria em 1260. A data é antecedida para 1200
porquanto o próprio Segundo Reino é precedido por um
curto período preparatório das duas gerações
precursoras de Zacarias e João Baptista de modo que
Joaquim está no final do Segundo reino e pode ser o
profeta do Terceiro. O começo de cada reino é marcado
por uma trindade de dirigentes, dois precursores e o
dirigente do próprio reino com os seus doze filhos
(Abraão, Isaac, e Jacob com os seus doze filhos carnais;
Zacarias, João Baptista e Cristo o homem, com seus doze

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Capítulo 7

filhos espirituais). O Terceiro Reino, a seguir a Joaquim,


começará, portanto, com dois precursores a serem
seguidos na terceira geração por um novo dirigente, um
Dux e Babylone, que será o fundador do Reino do
Espírito.

2. O significado da história
O primeiro símbolo“é a concepção da história como uma
sequência de três eras, das quais a última é claramente o
terceiro reino final”.[1] Entre as variantes de notória
relevância política, estão a partição da história em
épocas antiga, do cativeiro e dos santos na terra que
marcou a revolução puritana; a doutrina Iluminista da
sucessão de fases teológica, metafísica e enciclopédica
marca a revolução de 1789; a dialéctica marxista com os
três estádios de liberdade inconsciente, alienação e reino
da liberdade findou em 1989; o ciclo formado por santo
império, império do Kaiser e terceiro império inspirou o
Reich nacional-socialista dos mil anos que findou em
1945.[2]
3. Os elementos constantes da nova especulação política.
a. A concepção de Joaquim resultou num conjunto de
elementos formais para a interpretação do saeculum que,
desde então, permanecerá, isolado ou em combinação,
parte integrante da especulação política ocidental.
b. A Função do Pensador Político
O terceiro símbolo é o do profeta da nova Era, que pode
surgir confundido com o dirigente. O próprio Joaquim de
Fiora representa o primeiro modelo do intelectual que
presume ter uma visão do curso da história como um
todo acessível ao conhecimento. Sucessivas vanguardas
iluminadas irão reclamar-se de idêntico conhecimento da
marcha do tempo e propor as suas especulações como a
lógica da história.

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Capítulo 7

c. O dirigente do terceiro Reino


O terceiro símbolo é o de dux, o dirigente cuja erupção é
constante em todos os movimentos revolucionários. Este
dirigente desdobra-se por paráclitos agnósticos e ateus
conforme a sensibilidade e as categorias de análise da
época em que se faz anunciar. O símbolo ressurge nos
príncipes novos da Renascença, nos iluminados do
século das Luzes, nos revolucionários de 1789, nos
génios do Socialismo e nos dirigentes totalitários do
século XX.
d. A irmandade das pessoas autónomas
O quarto símbolo é o da irmandade ou fraternidade que
se estabelece entre os que participam no Espírito. A
noção de uma comunidade de perfeitos que vivem sem
autoridade institucional e sem a mediação da Graça
presta-se, segundo Voegelin, a inúmeras variações
históricas. Ressurgiu nas Igrejas puritanas dos santos e
em numerosas ideologias da modernidade em cujos
autores a razão se incarnara tão perfeitamente que
consideram a própria mente como critério de verdade;
alguns, como Lenine e Hitler, desceram à arena política
para canalizar os movimentos de massa para a acção
destrutiva.
Nos três reinos predominam sucessivamente a lei, a
graça e o espírito. No primeiro reino desenvolveu-se a
vida do leigo, no segunda a vida do sacerdote, no terceiro
a contemplação espiritual perfeita do monge. No nível da
história espiritual a intelligentia spiritualis irá proceder
do Velho e do Novo Testamentos, tal como o Espírito
procede do Pai e do Filho. O Espírito irá manifestar-se
socialmente através de uma nova ordem. A perfeição da
vida é dada através dos três elementos de contemplação,
liberdade e espírito. O novo aparecimento do Espírito
está fora da história dos Evangelhos que constituem o
segundo reino; os quatro evangelhos serão seguidos por
um quinto, o evangelium eternum anunciado em

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Capítulo 7

Apocalipse, 14, 6. Não será um evangelho escrito mas o


Espírito na sua actualidade, transformando os membros
da Ordem em membros do Reino, (evangelium regni
Mateus, 4,23) sem mediação sacramental. A Igreja
deixará de existir no Terceiro reino porque os dons
carismáticos necessários para a vida perfeita, alcançarão
o homem sem administração sacerdotal de sacramentos.
Estas construções simbólicas criam uma evocação de
uma nova ideia do homem como uma pessoa espiritual
autónoma e livre, capaz de formar uma comunidade de
solidariedade fraterna, independente da organização
eclesiástica e feudal da sociedade. O homem, dotado de
poderes espirituais amadurecidos surge como o
organizador potencial da comunidade. Podemos ver a
linha que liga o protestantismo intelectual dos York
Tracts, com o individualismo tiranicida de João de
Salisbúria como a ideia joaquimita de libertação do
homem de formas sociais, eclesiásticas ou profanas, e
uma época que está morrer. Podemos ainda reconhecer
as camadas sociais portadoras do novo sentimento;
cresceram para além da população urbana da Pataria e
de intelectuais isolados da população rural; Joaquim
talvez fosse de origem rural.
Mas também são óbvias as limitações da ideia. O terceiro
reino é constituído por uma elite religiosa. Perdeu-se o
compromisso civilizacional que confere eficácia ao
cristianismo. O novo reino não tem lugar para as
fraquezas do homem nem para a variedade dos seus
dotes naturais. A riqueza humana da ideia de corpo
místico perde-se no igualitarismo aristocrático de
pessoas espiritualmente maduras. A evocação de
Joaquim pode originar um seita mas não um povo. A sua
construção é a fórmula mais geral para o problema da
era porque emana do centro espiritual mas o conteúdo
social restrito deixa a ideia a flutuar. O homem
espiritualmente maduro de Joaquim segue-se ao
indivíduo político de João de Salisbúria e ao intelectual

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Capítulo 7

independente dos York Tracts. O leque de possibilidades


intramundanas está a crescer mas não existe uma
síntese à vista.
A concordância tradicional entre os dois numa sequência
a exigir um terceiro momento, o da plena manifestação
do Santo. Às três pessoas da Trindade correspondem três
fases da humanidade.
Na era do Pai com temor e tremor, até ao nascimento de
Jesus Cristo.
Na era do Filho, anunciada por Uzias, em fé e humildade,
desenvolveu-se
A terceira era, a do Espírito Santo, já anunciada por S.
Bento trará a
Perante esta nova escatologia tornava-se secundário que,
conforme especulações numerológicas correntes, Fiora
calculasse que a “terceira era” principiaria em 1260 ao
manifestar-se o dux ex Babylone, dirigente apocalíptico
da nova época.[6]
34 A re-interpretação do saeculum cristão
Para Huizinga a inserção de Joaquim de Fiora como
grande precursor da Renascença assenta numa corrente
de ideias definida com precisão. Para Spengler, ele foi "o
primeiro pensador de estatura hegeliana a abalar a
configuração mundial dualística de Agostinho, um
formulador da Nova Cristandade com o seu intelecto
essencialmente gótico". Norman Cohn descreveu Fiora
como"inventor do novo sistema profético que haveria de
ser o mais influente de todos os conhecidos na Europa até
ao aparecimento do marxismo". Embora as edições
críticas destes textos estejam ainda hoje incompletas, os
materiais historiográficos são abundantes graças a uma
sequência de estudiosos como Denifle, Renan, Fournier,
Grundmann, Benz, Buonaiuti, Tendelli e Taubes, activos
desde finais do século passado. Mas, lembrava Friedrich

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Capítulo 7

Heer em 1953 "ainda estamos longe no início de uma


interpretação de Fiora".
Voegelin seleccionou Joaquim de Fiora como criador do
"conjunto de símbolos que preside, até hoje, à
auto-interpretação da sociedade moderna".[3] Compostos
nos fins do séc. XII, os escritos joaquimitas foram
publicados pela primeira vez em Paris em meados do séc.
XIII, tendo o editor escolhido para título da colecção das
obras principais a expressão nelas frequente "um novo
Evangelho Eterno". Reconhecidas como obras autênticas
são a Concordia Novi ac Veteris Testamenti (1184-89),
Expositio in Apocalypsim (1184-1200) e Psalterium decem
Chordarum (1184-1200). Entre as obras menores depois
coleccionadas encontram-se Tractatus super Quatuor
Evangelia, De Articulis Fidei, Adversus Iudeos e o tratado
perdido De Essentia seu Unitate Trinitatis. É ainda
relevante o Liber Figurarum, atribuído a um discípulo,
cujos diagramas representativos - três círculos enleados
e parcialmente sobrepostos e cruzados pelo
Tetragrammaton - correspondem a cada uma das épocas
da Trindade e acrescentam um dinamismo temporal à
ênfase habitual na revelação do Deus uno e trino.[4] A
originalidade resulta mais evidente se confrontada com
os escritos do seu tempo e com as respostas às
interrogações filosóficas sobre as características do ser
divino.[5]
Seguindo esta via, Voegelin atribui a Fiora o símbolo
culminante da imanentização do eschaton: "O primeiro
símbolo é a concepção da história como uma sequência de
três eras, das quais a última é claramente o terceiro reino
final".[7] Entre as variantes notórias, contam-se a
partição da história em antiga, medieval e moderna; as
doutrinas iluministas e positivistas acerca da sucessão
de fases teológica, metafísica e científica; as dialécticas
hegeliana e marxista com três estádios de liberdade
inconsciente, alienação e reino da liberdade; e enfim, o
ciclo formado por Santo Império, Império do Kaiser e

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Capítulo 7

Dritte Reich nacional-socialista.[8] Nesta leitura


voegeliniana entrelaçam-se motivos positivos e negativos
que revelam uma relação muito complexa que quase
poderíamos classificar de edipiana. Voegelin denuncia a
falsificação fiorita do carácter trinitário numa gnose que
rebate o ser divino sobre o tempo histórico. Rejeita que a
idade do espírito, identificada por símbolos como
consummatio, renovatio, reformatio, recreatio e
ressurrectio seja a de uma nova era da humanidade.
Rejeita o primado do futuro sobre as idades do presente e
passado, expresso na preferência concedida a símbolos
tais como proficere, ascendere, progressio, mutatio,
processus, sucessio. Rejeita que o alvo final da história
humana na terra seja a liberdade do mútuo
reconhecimento trazida por uma nova fraternidade,
baseada na comunidade de monges. Rejeita que tenha
qualquer sentido, pura e simplesmente, falar de um
desenlace terreno da existência humana. A censura é
radical. Mas até que ponto esconde Voegelin as
diferenças profundas entre o pneumatismo de Joaquim e
o imanentismo moderno que afirma ser sua
consequência obrigatória ? Como se comprova pela
movimentação dos franciscanos espirituais em ordem à
terceira era, tal visão não conduz necessariamente às
construção imanentistas da modernidade.
Acresce que, ao anunciar o advento de um mundo novo,
Fiora interpreta o seu tempo como época de colapso e
desarticulação apocalíptica. Poder temporal e poder
espiritual combatiam-se sem tréguas corrompendo a
ordem cristã que se deveria reger pelo equilíbrio entre os
dois poderes. Está a acabar o período do Filho e o
momento é propício para pregar o abandono do mundo
velho. A desarticulação da ordem cristã imperial viabiliza
o anúncio de uma nova ordem, sem Império nem Igreja e
com uma religião desmundanizada. Donde o anúncio da
terceira era a ser instaurada pelos monges, os santos
cidadãos da cidade de Deus. O que levou Voegelin a este
nexo entre profetismo e imanentismo ? Por que razão

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Capítulo 7

pensou que a Idade Média floresceria contra a


auto-interpretação cristã ? Porque concebeu a tensão
medieval entre o “reino de Deus” e a sociedade
dessacralizada seguida pela mais grave das quedas? E
que civilização poderia desenvolver-se contra a sua
própria ideia directiva ?

[1] NSP, p.115.

[2] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich em


obra com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, ao
trabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a Terceira
Roma. A sua intenção claramente nacionalista mas romântica
era incompatível com a ideologia nacional-socialista que se
apropriou do termo.
[3] NSP, pp.110-113. Lembre-se o verso que Dante lhe dedica na
Divina Comédia , Paraíso, XII, 139-141: "...e lucemi da dato/ Il
Calabrese abate Gioacchino/Di spirito profetico dotato". Na sua
interpretação, Voegelin tem presente TAUBES 1947, em
particular pp.192-4, para o qual a história espiritual do Ocidente
é a da dinâmica e dialéctica da alienação existencial; cita ainda
LÖWITH 1949, GRUNDMANN 1927 e BUONAIUTI 1931.
[4] Cf. bibliografia joaquimita in RUSSO 1954.
[5] Para MURRAY 1970, pp.102-104, a consciência historiográfica
no séc. XII, depende da interpretação da restauratio ou
reformatio, tratadas quer como retorno a um passado modelar
quer como criação de um futuro inaudito.
[6] Cf. LÖWITH 1949,pp.148-9:"The first dispensation is
historically an order of the married, dependent on the Father; the
second an order of clerics, dependent on the Son; the third an
order of monks dependent om the Spirit of Truth. The first age is
ruled by labor and work, the second by learning and discipline,
the third by contemplation and praise, The first stage possesses
scientia, the second sapientia ex parte, the third plenitudo
intellectus".
[7] NSP, p.115.

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Capítulo 7

[8] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich em


livro com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, ao
trabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a Terceira
Roma. A sua intenção nacionalista não coincide com a ideologia
nacional-socialista que se apropriou do termo.

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Francisco de Assis

Estudos de Ideias Políticas - II. A Idade média - Capítulo


8.
São Francisco de Assis
Como figuras simbólicas da sua época, as personalidades
de São Francisco de Assis e de Joaquim de Fiora estão
intimamente ligadas. São Francisco não teria sido visto
pelos Espirituais como a figura decisiva que inaugurava
uma época nova na história cristã, se as profecias de
Joaquim não fornecessem o padrão simbólico para a sua
interpretação; e as profecias de Joaquim não poderiam
ter exercido a sua forte influência no séc. XII, e em
Dante, a menos que a aparecimento de São Francisco
confirmasse a previsão do Dux de uma nova era.
Tal como no caso de Joaquim, na interpretação de São
Francisco, temos de atentar na peculiar relação
dialéctica entre as suas ideias e as suas acções. A
doutrina de São Francisco é um evangelho de amor
fraterno, de pobreza, obediência e submissão. A acção de
São Francisco é revolucionária; dimana de uma vontade
auto-afirmadora, inflexível e dominante, e cria um estilo
de vida para o simples leigo, o idiota, sem grau feudal
nem eclesiástico, mas equiparado às duas grandes
ordens da autoridade temporal e espiritual. O
denominador comum da acção evocativa neste tempo é o
impulso de forças humanas para encontrar o seu lugar
num mundo cristão preocupado com os poderes
estabelecidos.
A necessidade trágica da criação de uma Ordem, mesmo
de amor, e que exige uma dureza daimoníaca de acção
que ofende os circunstantes, matiza a página franciscana
do Louvor das Virtudes. A virtude da obediência tem
como função a completa submissão do corpo à lei do
espírito; o homem está submetido aos seus
companheiros e mesmo aos animais selvagens: O
pacifismo radical de não-resistência em São Francisco
parece ser o oposto da violência tiranicida em João de

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Francisco de Assis

Salisbúria.
Afinal, as virtudes têm a função militante de
confundirem os vícios do mundo. É impossível
compreender a atitude franciscana se as categorias
éticas de virtude e vícios forem referidas apenas ao
carácter individual. No contexto dos escritos, virtudes e
vícios são forças que emanam dos poderes supremos do
bem e do mal, de Deus e do satã e que se apoderam dos
homens. A luta das virtudes contra os vícios é uma
empresa colectiva. Sem alcançar a rigidez maniqueísta,
existe aqui uma matiz de imanentismo maniqueísta. A
simplicidade tem que confundir a sabedoria deste
mundo; a pobreza luta contra os cuidados mundanos; a
humildade contra o orgulho. Possuir as virtudes exige
atacar o mundo e as instituições de família, propriedade,
herança, autoridade governamental e civilização
intelectual. O ataque reveste-se da forma social de uma
pregação das virtudes.
Ao sentir-se demasiado doente para pregar, São
Francisco utilizou a forma da carta aberta divulgando a
sua mensagem aos fiéis. A mais importante destas
cartas, e a mais notável pela sua dignidade é a carta de
1215 "A todos os Cristãos" (Opusculum commonitorium et
exhortatorium (epistola quam misit omnibus fidelibus).

2. O estilo da pobreza
O ataque ao mundo em nome dos conselhos evangélicos
parece revigorar a expectativa escatológica de um reino
que não é deste mundo. Contudo, é uma força e uma
fraqueza de S. Francisco a criação da ideia de uma vida
em conformidade com Cristo como modo de existência.
Tentou realizar o que Joaquim de Fiora projectara;
estabelecer uma nova ordem do espírito no mundo. A
sua atitude e linguagem sofrem desta dualidade. Quando
ataca o mundo (mundus ou saeculum ) utiliza o

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Francisco de Assis

vocabulário evangélico mas com um novo significado


evangélico. O homem não é chamado a arrepender-se
porque o reino de Deus está próximo ( Mateus, 3, 2) mas
porque a vida de pobreza e obediência é aconselhada
como a constituição permanente do mudo em
conformidade com a vida do Salvador. Os escritos de São
Francisco apresentam assim elementos que se
contradizem flagrantemente. A primeira Regra delineia a
"vita evangelii" para a qual São Francisco obteve
permissão oral de Inocêncio III; aconselha a romper com
pai e mãe e à quebra rude com a família e as suas
obrigações, a fim de tomar a cruz e seguir o Senhor.
Retoma-se a dureza escatológica de Cristo não só nas
palavras dessa regra como na sua atitude para com os
pais. Por outro lado, aceita incondicionalmente a
existência da Igreja sacramental como única evidência
corpórea mundana do Filho de Deus. Não só pretende
basear a vida de perfeição evangélica directamente no
Evangelho como mantém um sentimento para com a
Igreja a lembrar o dito de Santo Agostinho de que não
acreditaria em Cristo se não fosse a Igreja.

3. A submissão à Igreja.
Estes conflitos profundos ajudam-nos a determinar de
modo mais preciso a posição e a função de São
Francisco. O espírito de revolta contra os poderes
estabelecidos espalhava-se por todo o mundo ocidental,
dos intelectuais, aos burgueses e camponeses. O
movimento era cada vez mais dirigido contra a
organização feudal da sociedade, incluindo a Igreja
sacramental. Quando o movimento encontrava apoio de
massas, adoptava a forma de seitas fundamentalistas,
desenvolvendo fricções com a Igreja, quer
intencionalmente quer por pressões circunstanciais; o
regresso ao ideal evangélico de perfeição era o único
simbolismo revolucionário disponível para a civilização
cristã desse tempo.

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Francisco de Assis

Não temos que nos preocupar demasiado com a questão


de saber se a glorificação franciscana da Irmã Pobreza foi
ou não influenciada pelo conhecimento dos ideais dos
Pobres de Lião. Em qualquer caso, o ideal de pobreza,
juntamente com outros conselhos evangélicos, estava
destinado a ser o símbolo da revolução.
O que separava São Francisco de dirigentes sectários, e o
tornou um santo em vez de um heresiarca, era a sua
sinceridade convincente, a sua realização exemplar dos
ideais que ensinava, o seu encanto, a sua humildade,
uma ingenuidade que não era deste mundo.
Para a sua submissão à Igreja e para a sua crença de
que a fraternidade dos pobres em Cristo poderia persistir
sem institucionalização, não temos outra explicação
senão uma cegueira para as vias do mundo, originada
pela grande pureza do seu coração. Os desapontamentos
inevitáveis que experimentou podem ser fortemente
sentidos nas admoestações aos irmãos no Testamento:
manter a simplicidade da Regra, não a acrescentar nem
diminuir, não fazer glosas nem interpretar o Testamento
como uma nova regra e não procurar privilégios de
qualquer tipo da Cúria.
O mundo não cedeu ao seu ataque mas por seu turno,
penetrou a sua irmandade. A santidade do seu carácter
teve consequências de grande alcance no domínio da
política. Ao mesmo tempo que conduzia a cruzada contra
os Albingenses, Inocêncio III confirmava a Regra de São
Francisco. Se considerarmos o apelo de São Francisco, a
rápida difusão da Ordem e em particular, o influxo
maciço na Ordem Terceira, é difícil imaginar que formas
a revolução social teria adoptado, se a Igreja não
captasse o movimento através da pessoa de São
Francisco, e a integrasse na sua organização graças,
sobretudo, à acção do Cardeal Ugolino de Ostia, futuro
papa Gregório X.

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Francisco de Assis

4. A Igreja dos leigos


A vida de São Francisco permite diagnosticar a doença
que afligia o corpo místico da Igreja. O império cristão
transferira o cristianismo do ambiente urbano para a
sociedade rural. A dinâmica da vida cristã passou das
comunidades para as hierarquias, espirituais e
temporais. O surgimento do idiota, desde o sec.XII é uma
força nova que assinala a reentrada da comunidade
urbana como força social no mundo cristão. O
significado original de ecclesia é de comunidade-Igreja.
No império romano a ecclesia local era uma ilha do
populus christianus num mar de paganismo. No império
carolíngio, a autoridade temporal fora integrada no
sistema dos carismas cristãos de modo que as duas
ordens do corpo único de Cristo cooperavam na tarefa
difícil (e que hoje seria considerada totalitária) de criar
um povo cristão uniforme com base em hierarquias
pré-existentes.
Agora, no séc. XII, a ecclesia corre o risco de se reduzir a
uma organização sacerdotal enquanto os idiotae, os
leigos, formam uma comunidade que tenta viver em paz
com o clero. Na linguagem de S. Francisco
(Testamentum,3) o leigo vive em conformidade com Cristo
e o sacerdote em conformidade com a Igreja Romana.
Assim nasce uma nova necessidade de ajustamento da
ecclesia. A ecclesia Franciscana é apenas um começo. Os
problemas reaparecerão quando novas ecclesiae
nascerem de cidades, classes e nações e tiverem que
lutar por um lugar no sistema dos velhos poderes.

5. A conformidade com Cristo e a natureza


A pessoa e a religião de São Francisco constituíam forças
intramundanas em oposição ao imperium, dotado de
princípios gelasianos, facto obscurecido pela linguagem

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Francisco de Assis

do ideal de vida em conformidade com Cristo. A


religiosidade franciscana poderá parecer apenas um
retorno às ideias do cristianismo primitivo. Mas não é
assim.
Os fiéis das primeiras comunidades seguiam o Messias e
queriam o reino de Deus para participar na Sua glória.
São Francisco imita o homem Jesus a partir de uma
nova compreensão do sofrimento sacrificial e da
humildade na terra. Trata-se de um novo entendimento
da dignidade do sofrimento e da criação sem voz. São
Francisco é espantosamente sensível à criação divina
onde ela é mais “criada” e menos auto-afirmativa:
sofredores, pobres, doentes e moribundos, animais,
flores e a ordem silenciosa do cosmos. É uma nova
atenção que agora floresce a um reino de ser já
observada nos York Tracts, a penetração do Espírito no
reino da natureza. Francisco utiliza fórmulas
escatológicas duras mas o sentimento que o move não
renega o mundo; pelo contrário, adiciona-lhe uma
dimensão até então silenciada no cristianismo.
A alegria da existência das criaturas e a expansão alegre
da sua alma, alcançando em amor fraterno essa parte
muda do mundo que glorifica Deus apenas pela
humildade de ser criado, a alegria simples na
comunidade recém-descoberta da criação divina, torna
São Francisco o grande Santo. Através da descoberta e
aceitação do estrato mais baixo da criação como parte
significante do mundo, tornou-se uma das figuras
relevantes da história ocidental. Tomou os humildes pela
mão e conduziu-os à sua dignidade, não para um reino
de Deus no outro mundo, mas num reino de Deus que é
deste mundo. Conferiu à natureza a sua alma cristã e
com ela a dignidade que a torna objecto de observação.
A expressão sublime deste sentimento são os Louvores
das criaturas. O cântico abre com o louvor de Deus,
depois louva os corpos celestiais, os elementos, a terra
que cria frutos e flores, os humildes que perdoam e

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Francisco de Assis

vivem em paz, e a morte corpórea; encerra com o aviso de


que todos sirvam a Deus “com grande humildade”.

§6. O Cristo intramundano


A preocupação com estas novas descobertas resultou,
porém, numa limitação da experiência cristã. São
Francisco alargou o nosso mundo mas a sua tónica na
nova dimensão negligenciou outras dimensões. Traz a
irrupção de novas forças intramundanas; não traz a
síntese; a espiritualização da natureza é um naturalismo.
A fórmula da vida em conformidade com Cristo é
conformidade com o sofrimento de Cristo, não com
Cristo-rei em sua glória. Na conformidade com Cristo o
homem alcança a eleição suprema através dos estigmas
na noite de La Verna. Mas como se conformar com o
Messias?
A evocação de São Francisco criou o símbolo do Cristo
intramundano que absorve a parcela pessoal do salvador
que se conforma com os humildes e sofredores. Mas o
Cristo dos pobres não é o Cristo da hierarquia sacerdotal
e régia, nem a cabeça do corpo místico de Cristo e da
humanidade. A evocação de São Francisco desestabiliza
o compromisso com o mundo, característico do período
imperial ocidental e a diferenciação dos homens e o
estabelecimento das duas ordens como funções do corpo
místico. O mundo rompe-se quando Cristo deixa de ser a
cabeça do corpo diferenciado da cristandade e se torna o
símbolo de uma sua parte. A evocação de São Francisco
é o símbolo mais impressionante da desintegração do
sacrum imperium. Enquanto o Santo atingia o seu clímax
com os estigmas, subia a estrela do imperador que era
considerado o Anticristo, e que pela primeira vez desde a
Antiguidade se apresentava como a lei animada, nomos
empsychos, fora da ordem carismática do corpo místico.

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ERIC VOEGELIN

ERIC VOEGELIN
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
**
A época medieval

Capítulo 9
Frederico II
Dominus Mundi

1. A deslocação do império
2. A constituição de Melfi
3. Cristandade Cesárea

1. A deslocação (Peripateia ) do império


O último imperador medieval foi o fundador do primeiro
estado moderno. Em ordem a compreender o seu papel e
o seu desempenho consciente, tem que se observar a
estrutura política em mutação do mundo Ocidental que
foi o horizonte da sua vida e perceber que a crise da
época encontrou nele um símbolo estupendo.
O factor que determinou a transformação e a
desintegração da ideia imperial foi o surto de unidade
políticas periféricas. No séc. XI essa franja de principados
ganhara importância suficiente para inspirar a Gregório
VII com a visão de uma comunidade de reinos nacionais,
dependentes da autoridade semi-feudal e semi-espiritual
do papado como contrapeso ao próprio império. Entre

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esses eventos, conta-se a expansão normanda dos


séculos X e XI, a fundação dos reinos ilhas da Sicília e da
Inglaterra e a expansão dos poderes insulares para o
continente, A expansão normanda para Sicília, Itália do
Sul e Inglaterra adicionou dois poderes consideráveis; a
conquista permitiu aos duques normandos organizar o
poder como uma grande racionalidade até então
desconhecida. Basta mencionar que Guilherme o
Conquistador e os seus sucessores desenvolveram uma
administração régia centralizada, e puderam manter à
distância os poderes e os senhores feudais e a
concentração do poder nas mãos do rei foi a base de
desenvolvimento da gentry inglesa e da classe média, e
consequentemente da evolução recente das formas
constitucionais de governo. Na Sicília Frederico II
aperfeiçoará o Estado de Rogério II (1130-1154) facilitado
pela tradição da administração muçulmana e bizantina.

Este escrutínio dos factos principais é extremamente


incompleto mas serve para mostrar a modificação
completa da cena política. A importância relativa do
sacrum imperium diminui porque os novos poderes
surgem na periferia e fazem inflectir o centro da política
para Ocidente e para Sul. A ascensão destes poderes
desintegra a ideia imperial e suplanta-a com novas
evocações adaptadas a um mundo de poderes rivais: o
princípio Gelasiano como evocação dominante do
Ocidente decresce e emerge o problema do equilíbrio do
poder, no sentido moderno. A irrupção de forças
intramundanas no campo da evocação imperial
exprime-se através de três formas principais: o
aparecimento da arte do Estado, o aparecimento do
estadista e o crescimento da consciência nacional como
factor determinante na política. O aparecimento da razão
de estado nota-se nas conquistas normandas. A situação
de conquista teve um efeito semelhante entre o séc. XI e
XIII semelhante ao da revolução no período posterior ao

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dos estados nacionais; varridos os interesses dominantes


estabelecidos, tornava-se possível uma reconstrução
racional da organização governamental. A melhoria da
administração financeira e militar aumentou
enormemente o poder político. A Sicília era cobiçada
porque tinha um sistema de impostos que fazia do seu
monarca o mais rico da Europa. A racionalização militar
permitiu a derrota da cavalaria feudal pela infantaria
burguesa ou o triunfo da cavalaria profissional e da
milícia burguesa de Filipe II de França como as forças
feudais em Bouvines (1214). Frederico II apoiava-se em
tropas mercenárias sarracenas.
Em segundo lugar, surgem os mestres do poder político.
Mesmo o imperador Henrique VI e o papa Inocêncio III
são representantes dos velhos poderes são homens de
estilo novo. Significativo é o Testamento do Imperador
Henrique VI que abandona as suas pretensões imperiais
sobre todo o Ocidente reconhecendo-se como o Império
como uma unidade política entre outras. (Testamentum,
Monumenta Germaniae Historia, Constitutiones et Acta
Publica Imperatiorum et Regum, vol. 1, nº 397). e
finalmente, a consciência nacional é a pressão colapso
ao império Angevino com a formação das nacionalidade
francesa e inglesa. A consciência nacional espanhola
cristaliza rapidamente sob o esforço da reconquista; em
1135 Afonso VII de Castela é coroado imperador, título
sem efeito prático mas indicativo do sentido de igualdade
em grau como a cabeça do sacrum imperium.

2. A constituição de Melfi.
A posição de Frederico II tornou-o um Salvador para os
amigos, um Anticristo para os inimigos O título de
dominus mundi, atribuído pelos seus cortesãos, oscila
entre o significado de senhor imperial do orbis terrarum
e de príncipe satânico deste mundo. O fascínio luciferino
do imperador ainda dificulta actualmente a sua imagem.

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A tentação é grande de o ver à luz do renascimento de


um governante clássico ideal e pré-cristão; e também é
possível vê-lo como o primeiro homem moderno; alguns
consideram-no um espírito forte que não acreditava na
imortalidade da alma; outros descreveram-no como um
bom católico; enalteceram-no como herói; historiadores
nacionalistas alemães condenaram-no pela sua falta de
empenho na germanização do império; uns admiraram a
sua majestade imperial; outros a sua evocação de um
colégio de príncipes europeus.
Não tencionamos adoptar como definitivo qualquer
destes retratos. A grandeza do Imperador não reside nem
na força de um carácter firme e claro, nem nos méritos
de uma política, nem na consistência com que a
empreende. Reside, antes, na força e vastidão de uma
alma igual às tensões da época. Reaparece a expectativa
entre a evocação antiga e a irrupção de forças
intramundanas característica das teorias de João de
Salisbúria, agora com a escala e a responsabilidade da
acção imperial. A experiência da plenitude dos tempos
que determinou a construção apocalíptica de Joaquim de
Fiora exprime-se no jogo de Frederico com o símbolo de
Augusto, o iniciador da Idade de Ouro. É uma figura da
história profana em paralelo com Crist; a Quarta Écloga
de Virgílio parece ter sido aplicada pela primeira vez na
história cristã, não a Jesus, mas a um governante. E a
conformidade franciscana ao Cristo sofredor tem paralelo
na conformidade do Imperador ao Messias vitorioso, a
um ponto tal que confina com a evocação do Deus feito
homem.
Quando tentamos recuar até aos papéis desempenhados,
em busca da qualidade da pessoa que os reúne,
encontramos uma vitalidade e sensualidade abundantes,
uma capacidade sempre pronta a desempenhar o papel
sugerido pelas circunstâncias da situação; uma vontade
alegre de investigar, até aos limites, a estrutura da
realidade tal como esta se apresenta; seja nos problemas

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empíricos da caça ao falcão, nos problemas intelectuais


das Questões Sicilianas, na técnica dos procedimentos
da corte, ou em contra-manifestos apocalípticos às
acusações papais. Ele, é impossível traçar uma linha
entre o homem de acção e o actor, entre a selvajaria da
sua vontade e a ironia do seu jogo. Liga-se aos seus actos
a qualidade da representação; na pompa barroca da
linguagem, no seu sentido do ritual, na representação
plástica e arquitectónica do culto da Justiça na porta de
Cápua e na consciência representativa da sua majestade.
Também é impossível demarcar a sua curiosidade
intelectual da sua descrença dogmática. Quando na
Carta a Jesi se refere-se ao seu local de nascimento em
termos de Belém e à sua mãe como uma theotokos, não
sabemos quanto seja um jogo com símbolos
representativos e quanto seja conformidade ao Messias
com a finalidade política, e quanto talvez apenas
ingenuidade. Quando o papa o designa de Besta
apocalíptica oriunda do Mar e ele dá o troco, chamando o
Papa de “corcel vermelho do Apocalipse” não podemos
saber até que ponto a réplica seja política, convicção
religiosa ou pura brincadeira. Temos de atender a estas
tensões na alma em ordem a compreender a impressão
que o imperador exerceu sobre os contemporâneos.
Estavam assustados porque ninguém poderia prever o
que um homem desta capacidade faria a seguir e a que
extremos o conduziria um temperamento duro e
selvagem. A visão nietzscheana de Cesare Borgia como
Papa está perfeitamente dentro das possibilidades da
alma de Frederico II.
Abundam os materiais para a interpretação de Frederico
II. O mais importante documento para o presente
propósito é o Proemium das Constituições de Melfi, de
1231, o acto conclusivo da reorganização política da
Sicília. Proclamadas pelo imperador, codificam o direito
constitucional, administrativo, penal e processual para a
Sicília. Estamos no início da transformação das
categorias políticas imperiais em categorias políticas

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modernas O imperator in regno suo é uma transição entre


o imperador e o príncipe soberano. Também importante é
a mistura de categorias cristãs e romanas imperiais, para
transformar a lei da humanidade cristã na lei do estado
secular. Os princípios orientadores são a paz e a justiça
cristãs mas rodeadas dos símbolos de Augusto e
Justiniano. As constituições fora chamadas Liber
Augustalis e o próprio Proemium imita a introdução do
Corpus Juris, no estilo imperial de Justiniano. Os
símbolos romanos servem a descrição do sacro império,
instituindo para uma província do império categorias que
deveriam ficar reservadas para a totalidade.
O Proemium teoriza a função régia da legislação, segundo
uma interpretação decorrente do símbolo cristão da
origem do poder após o pecado. Com a criação, Deus fez
do homem a criatura máxima, impondo-lhe tão só a
observância da lei. A transgressão foi punida com a
perda de imortalidade. Para não destruir a ordem da
criação, a perda da imortalidade foi compensada com o
dom da fertilidade e os governantes foram providenciados
para preservar a ordem da humanidade.
Esta descrição não é a narrativa do Génesis mas antes
uma selecção de elementos nela presentes e fundidos
numa nova unidade. Desapareceu o problema moral da
Queda, bem como a redenção através de Cristo. A Queda
é apenas uma ofensa legal que continua a ter que ser
punida, como se não houvesse redenção. Ademais o
mundo tem uma enteléquia quando o resto do mundo
perde a sua forma A comunidade de homens mortais
substitui o homem imortal e este tipo de criação atinge o
seu pleno com a figura do governante. A alma deste
desce da necessitas rerum; as suas acções resgatam o
significado da criação. Sem dúvida que existe um apelo
entre esta teorização e certas correntes da primitiva
filosofia cristã do direito natural. Mas enquanto esta
abordava o problema da comunidade humana em ligação
com a história sagrada, o proemium usa o símbolo

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cristão ao serviço de uma doutrina naturalista do poder,


derivando a função de governar das estruturas da
realidade intramundana. A necessitas rerum é uma
primeira forma da futura raison d’état.
Enfim surge o elemento averroístico. O casal do paraíso
foi substituído pelas gerações humanas. A imortalidade
colectiva sucedeu à imortalidade individual. Embora o
Proemium não elabore as implicações desta posição, certo
é que a interpretação colectivista da humanidade se opoe
à ideia cristã do corpo místico. A ideia colectivista
absorve a personalidade homem no espírito de grupo. O
homem e individuação de um intelecto genérico e a morte
é apenas a despersonalização. Tal como Averróis colocou
a teoria da alma segundo Aristóteles
A antropologia averroísta pode tornar-se em síntese, a
base filosófica de uma organização colectivista da
sociedade .
No caso do Proemium não vai tão longe. É pouco provável
que a doutrina averroísta tenha sido conscientemente
incorporada porque o averroismo só surge consciente em
meados do séc. XIII. Mas é importante perceber que as
Constituições de Melfi representam um estádio avançado
da situação política que permitiu a receptividade das
ideias averroistas. A consciência da unidade espiritual do
povo surgiu em ligação com heresias populares. A
primeira legislação civil contra heresias surgiu com a
Assize de Clarendon (1166). A questão tornou-se
premente com o pontificado de Inocêncio, a cruzada
contra os Albigenses e o estabelecimento da Inquisição.
O processo inquisitorial culminava com a selecção de
......... e julgamento sem queixa privada. Melfi faz
desaparecer a linha entre heresia religiosa e
insubordinação política. O artigo 1º trata da perseguição
de heréticos e patarenos. A protecção da fé e integrada
na guerra contra as ideias lombardas dominadas pelo
Patarenos; a guerra contra os heréticos faz parte da
campanha contra os movimentos populares que desafiam

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o Príncipe. Acusa-se os patarenos de romperem a


“indivisível unidade da fé” como muito mais tarde se
falará da “indivisível soberania da nação” da revolução
francesa. A queixa de que os Patarenos destróem-se a si
mesmos ao terem que ser queimados pelos governantes
faz lembrar Hobbes e Hitler.
O Artigo IV estabelece que a discussão das leis, decisões
e nomeações régias seria sacrilégio, pelo que devem ser
proibidas. Esta medida que datava já de Rogério II
mostra a nova dignidade sacramental de que se pretende
revestir o governo secular.
A receptividade crescente das ideias colectivistas deve-se
a factores diversos. Primeiro, a desintegração do corpo
místico. através da emergência das novas comunidade
heréticas. Os movimentos populares heréticos acarretam
uma contracção da substância da fé por parte das forças
tradicionais que elaboram posições ortodoxas, processos
inquisitoriais e estrita obediência a critérios. Em segundo
lugar, a tensão crescente entre hierarquias espiritual e
temporal que agudiza a respectiva luta pelo poder.
Terceiro é o crescimento das nações como subdivisões
organizadas do populus christianus.
Este três factores apontam para uma ecclesia política
intramundana. Uma comunidade de seres mortais
reúne-se pela evocação da continuidade das gerações
assegurada por um governante. A substância espiritual é
fornecida pelo rei; a fé deriva a sua validade de uma
autorização estatutária; os ditames régios equivalem a
um credo religioso; qualquer dissensão é sacrilégio. A
humanidade divide-se em massa e governante. Esta
irrupção da força intramundana do governante no reino
do cristianismo; este corpo místico de mortais sob a
direcção do governante teria de precipitar uma crise,
como veio a suceder quando Frederico II passou aos
actos.
3. Cristandade Cesárea

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Assim designou den Steinen a tendência do imperador


em assimilar a sua função imperial ao de Messias.
Francisco transformou Cristo humilde em Jesus sofredor
com a consequência de que as hierarquias ficaram
decapitadas da cabeça messiânica. Frederico II
representa a tentativa de criar uma imagem de governo
em conformidade com o Cristo cosmocrator, com o
Messias em sua glória.

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ERIC VOEGELIN - São
Tomás de Aquino
Compactação e tradução de Mendo Castro Henriques
A publicar em "Estudos de Ideias Políticas" ** A Idade
Média" 2001
C . O clímax. São Tomás de Aquino
§1 História
a. Verdade e Ser
A obra de São Tomás de Aquino (1225-1274) absorveu-o
literalmente - morreu exausto antes de perfazer 50 anos -
e absorveu-o existencialmente porque foi a expressão de
uma vida ao serviço da investigação e ordenamento dos
problemas da sua época. Afirmar que foi um grande
pensador sistemático é uma meia-verdade. Sabia aplicar
a sua mente imperial à multiplicidade de assuntos que o
atraíam e distinguia-se por ter uma personalidade rica
em sensibilidade, magnanimidade, energia intelectual e
espírito sublime. A exclusiva vontade de ordenamento
poderia produzir um sistema que fosse mais notável pela
coerência do que pela captação da realidade. A grande
receptividade poderia ter originado uma enciclopédia.
Mas as duas faculdades combinaram-se num sistema
que assinala o impulso dinâmico de Deus para o mundo
através da causalidade criadora, e do mundo para Deus
através do desiderium naturale: A origem desta
combinação deve-se ao sentimento que fez de Tomás um
santo: a experiência da identidade entre a verdade de
Deus e a realidade do mundo. "A ordem das coisas na
verdade é a ordem das coisas no ser". Esta frase da
Summa Contra Gentiles significa que o intelecto divino
está impresso na estrutura do mundo; que a descrição
ordenada do mundo resultará num sistema que descreve

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a verdade de Deus: que cada ser tem a sua razão e
sentido na hierarquia da criação divina; que cumpre a
finalidade da existência ordenando-se ao fim último que
é Deus. A frase tambem se aplica ao homem individual.
Ontologicamente, o intelecto humano veicula a marca do
intelecto divino. Metodologicamente, o uso do intelecto
revela a verdade de Deus manifesta no mundo.
Praticamente, a tarefa do pensamento significa a
orientação da mente para Deus.
b. O intelectual cristão
O melhor dos auto-retratos do Santo surge nos capítulos
de abertura da Summa Contra Gentiles. São Tomás de
Aquino concebe a filosofia como arte de ordenar as coisas
para um fim. Entre todas as artes, a filosofia é a superior
porque contempla a finalidade do universo, ou seja Deus,
e apresenta os conteúdos do mundo a Ele ordenados.
Ora Deus é Intelecto. A finalidade da filosofia é o bem do
intelecto, que é a verdade. No termo veritas fundem-se os
três sentidos da verdade: a fé revelada pela incarnação
(João, 18,37); a auto-manifestação da Deus na criação; o
trabalho intelectual que é a manifestação do intelecto
divino. Ao invés do intelectual averroista, Tomás dignifica
a autoridade intelectual porque o intelecto humano é a
ratio da existência humana criada por Deus. Através da
vida intelectual o homem aproxima-se da divindade. O
intelectual sabe mais que o homem comum mas este não
é um vilis homo. ao qual se aplica o termo idiota ou
então rudis homo. com o duplo sentido de leigo cristão e
leigo no saber. Tudo o que o filósofo sabe através da
actividade do intelecto, o leigo sabe através da revelação
de Deus em Cristo. A manifestação sobrenatural da
Verdade em Cristo ao homem comum identifica-se à
manifestação natural da verdade no sabedor.
c. Fé e razão
Fé e razão não entram em conflito porque o intelecto
humano veicula a marca do intelecto divino. Deus não

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decepciona o intelecto com resultados que contradigam a
fé revelada. O intelecto pode errar mas consegue
alcançar verdades como a existência de Deus, deixando
para a fé revelada verdades inacessíveis à razão, tais
como o carácter trinitário da divindade. Este dinamismo
teórico separa as esferas da teologia natural e
sobrenatural. A esfera sobrenatural está removida do
debate intelectual e pertence à revelação e às decisões
dogmáticas da Igreja. A parte natural fica livre para ser
integrada num sistema de conhecimento humano sob a
autoridade da razão. Esta magnífica harmonização de fé
e razão influenciou decisivamente o destino da ciência no
mundo ocidental, resultado tanto mais admirável
quanto, na época, a evolução da ciência estava nas mãos
de clérigos e as célebres Condenações de 1277 ainda
consideravam heréticas algumas teses tomistas. O
avanço da compreensão empírica e intelectual do mundo
requer uma permanente redifinição da separação entre
verdade sobrenatural e natural, problema difícil para a
Igreja e para os intelectuais, mas a que Tomás deu a
melhor formulação e solução possível no seu tempo. O
retrato do Santo que emerge da sua metafísica é o do
descobridor de uma síntese das forças intramundadas
que poderiam destruir o cristianismo, se ficassem
entregues a si mesmas. O intelecto não é uma autoridade
independente. A orientação transcendental do intelecto
torna-se uma expressão legítima do homem natural e
não uma rival intramundana da fé. O seu sentimento de
valor intelectual não é inferior ao de um Sigério de
Brabante como se depreende da descrição da filosofia
como arte ordenadora e da justaposição do filósofo em
que se manifesta a verdade natural com o Cristo que é a
verdade incarnada espiritualmente; mas é um
sentimento de valor temperado pela espiritualidade que
aceita a revelação.
d. Propaganda intelectual
A mesma vontade de harmonia é patente na síntese

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tomista dos problemas suscitados por Fiora, S.Francisco
e pelos Espirituais franciscanos. S.Tomás pertence a
uma Ordem mendicante que louva o esforço missionário
e pregador. Mas o seu Cristo não é apenas para os
pobres em espírito e em bens; é um Cristo que expande o
Seu reino através da propaganda intelectual. A Summa
Contra Gentiles foi escrita para que as missões
dominicanas em Espanha enfrentassem a influência
intelectual muçulmana. Tomás afirma no Proemium que
é possível argumentar com os Judeus com base no
Antigo Testamento, e com heréticos com base no novo
Testamento; com os maometanos, contudo, é preciso
apelar à autoridade do intelecto, tal como os pagãos nos
estádios da lei segundo S. Paulo. E o intelecto que
produz resultados cristãos torna-se o instrumento da
propaganda inter-civilizacional, fundando a pretensão
que a civilização ocidental é racionalmente obrigatória
para a humanidade. Tal pretensão sobreviveu à perda de
conexão com a espiritualidade cristã e tornou-se
agressiva na Idade da razão secular. As raízes da
dinâmica internacional da civilização ocidental residem
no tomismo cuja força duradoura resulta da harmonia
das operações intelectuais com a espiritualidade Cristã.
Quando se esquecem estas raízes, perde validade a
pretensão de validade da razão autónoma e a razão fica
enigmática. E sempre que declina o ímpeto Cristão do
intelecto, a revolta contra a razão clama insensatamente
por uma nova espiritualidade qualquer.
e. As hierarquias
A abordagem tomista da relação entre os dois poderes é
mais ampla que a franciscana. O retrato do príncipe em
De Regimine Principum - desenvolvido com o aparato da
Política de Aristóteles - mostra a impressão causada por
Frederico II e a importância de que se reveste o fundador
e governante de uma comunidade. Já quanto ao poder
espiritual, a posição é muito semelhante à franciscana. A
Igreja é uma instituição que ministra sacramentos; na

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hierarquia de poderes, tem o primado sobre o temporal.
Contudo, Tomás não escreveu um tratado sobre a Igreja.
A Summa Theologica tem uma parte volumosa sobre
governo temporal (ST I,ii,qq.90-114) mas não explicita
uma doutrina da Igreja e menos ainda do Direito
Canónico. Sendo possível apresentar uma doutrina
tomista da Igreja - como fez Grabmann - é significativo
que a falta de ênfase tomista se deva à época de
interregno em que vive: o Sacrum Imperium está a
desaparecer, crescem múltiplos poderes políticos com
estrutura natural imanente e o poder espiritual está a
tornar-se a super-estrutura espiritual da multidão de
civitates.
f. Evangelium Aeternum - Imperialismo Ocidental
A adaptabilidade de Tomás às exigências da realidade
histórica é patente no modo como distribui as tónicas
espirituais e políticas do seu tempo. Condena como
insensata a ideia de um terceiro reino do Espírito
-stultissimum est dicere quod Evangelium Christi non sit
Evangelium regni (ST, I, ii, quaestio 106, art.4). A vida
sob a lei nova é a mais perfeita que se pode conceber. O
Evangelium foi todo anunciado ao universo de uma só
vez, sendo necessária a pregação até que a Igreja se
estabeleça em todas as nações.(ST I-II 106 4 ad.4 ). A era
de Cristo diversifica-se conforme o espaço, o tempo e as
pessoas, e conforme a presença da graça do Espírito.
Tomás vive entre duas épocas: morreu a unidade
medieval do Império mas ainda não nasceu o mundo dos
estados nacionais. Talvez tenham razão os que o acusam
de não possuir uma filosofia da história, caso estiverem a
considerar a história política. Mas o seu sentido histórico
permitiu-lhe exprimir a vontade imperial da civilização
cristã. Em vez de simbolizar o cumprimento da história
cristã por uma nova descida do Espírito numa
irmandade elitista, abraça todo os conteúdos naturais do
mundo e do intelecto humano e da sociedade, organizada
numa pluralidade de comunidades. A sua filosofia da

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história contempla a expansão da Cristandade em todo o
orbe através das actividades de missionação. Neste
sentido, Tomás representa a vontade de domínio imperial
do homem maduro, intelectual e espiritualmente. Esta
evocação permaneceu uma componente do imperialismo
no período do estado nacional. Reaparece no sec. XVI em
Espanha com Francisco de Vitória; reaparece na
Inglaterra Elizabetina; reaparece no sec. XVII em
combinação com o imperialismo comercial de Grócio; e
reaparece nas lutas subsequentes por impérios coloniais
que impliquem uma ideia providencial do domínio do
Ocidente sobre o resto do mundo.
g. O espírito histórico
Se por teoria entendermos a ordenação sistemática de
uma problemática não-histórica, Tomás não era um
teórico. Para ele, a relação entre fé e razão é uma
harmonização de forças históricas. A verdade de Deus
manifesta-se num mundo cheio de dinamismo das forças
históricas. O trabalho da filosofia não se esgota em
especulaçãos aprioristas; deve recrear num sistema a
unidade do mundo historicamente concreto. A forma das
Questões da Summa Theologica é ideal para executar
esta tarefa porque permite organizar o material num
enquadramento estável e oferece oportunidades de
descer ao detalhe histórico em notas polémicas que
precedem e prosseguem o corpo da quaestio. A Summa
não é um tratado sistemático: contém transições
frequentemente obscuras ou omissas e, por vezes,
digressões excessivas. Este sistema muito pouco rígido é
o símbolo perfeito de uma mente que não é apriorista
nem empirista e que exprime um indivíduo que
experimenta a sua harmonia com a manifestação de
Deus no mundo histórico.
§2. Política
Na apresentação da política tomista topamos, pela
primeira vez desde a recepção de Aristóteles, com a

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maldição da teoria política ocidental - a maldição de não
sabermos exactamente o que os nossos símbolos
significam. As categorias aristótelicas reportam-se
evidentemente à polis helénica dos secs. VI a IV a.C. A
sendo que a sua adopção posterior é um exercício
humanista com escassa relevância para os novos
problemas políticos. Por exemplo, Tomás traduz polis por
civitas, mas também por gens, regnum, provincia. Gens e
regnum são organizações políticas muito diversas.
Provincia provém do vocabulário imperial romano. Todo
este suspense em relação ao tipo de organização política
contemplada mostra que a teoria tomista do governo não
é suficientemente geral para captar os elementos de
todas as formas políticas nem suficientemente específica
para se aplicar a uma unidade política concreta. E ainda
hoje não ultrapassámos a vagueza humanística que
atribui validade geral às categorias intermédias
resultantes da recepção de Aristóteles.
b. A dedicatória ao rei de Chipre
Muita da força da teoria política helénica resultou do
facto de que as poleis mais antigas se empenhavam em
fundar novas cidades e colónias. A possibilidade de
selecção do espaço, do planeamento da cidade e do
esboço da constituição são o pano de fundo para a
construção de Estados ideais, em Platão e Aristóteles, tal
como a partir do sec.XVI , a descoberta da América e o
estabelecimento de colónias abriu horizontes
semelhantes. No sec.XIII uma situação algo comparável
resultou das migrações normandas e do movimento das
Cruzadas. Em particular, a fundação de novos
principados nos domínios bizantinos e arábes invadidos
pelos Cruzados foi uma tentativa de expansão da
civilização ocidental entre as gentes, tentativa cujo
fracasso não era ainda previsível na época de Tomás.
Este escreveu em 1265-66 o De Regimine Principum,
dedicando-o precisamente a Guy de Lusignan, rei
cruzado de Chipre, e não a um poderoso monarca ou

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imperador do Ocidente.
c. O Príncipe como análogo divino.
No teoria política de Tomás, a ideia de fundação substitui
o lugar da evolução da família para a aldeia e para a
polis em Aristóteles, regressando assim à ideia platónica
da cidade fundada pelo espírito. A série de analogias
entre Deus como criador e governante do universo, a
alma governante do corpo, e o príncipe como fundador e
governante da civitas (RG, I,13) subvertem a visão
aristótelica de que a cidade tem uma evolução
estritamente natural. Perde sentido a sequência
obrigatória de comunidades - família, aldeia, polis. A
sequência é traduzida por familia, civitas, provincia,
interessando sobretudo o chefe de família e o rei que
pode ser de civitas ou provincia. A função régia é de
ordem natural e não espiritual. O dom da regia virtus
recebido por um indivíduo (RP,I,9) não é a autoridade
espiritual de Platão nem a arete de Aristóteles; é apenas
uma virtù mas sem o elemento demoníaco de tipo
maquiavélico. Mantém-se a evidência natural da
sociedade porque o homem isolado não poderia
desenvolver as suas capacidades ("Naturale autem est
homini ut sit animal sociale et politicum, magis etiam
quam omnia alia animalis; quod quidem naturalis
necessitas declarata /(I,1); mas permanece
indeterminada como seria uma comunidade perfeita que
satisfizesse as carências naturais e a vida intelectual.
d. A comunidade de cristãos livres
A grande novidade em relação a Platão e Aristóteles é de
que o rei funciona como governante da comunidade dos
livres (liberorum multitudo R.P. I,1). Liberdade e servidão
tornam-se critérios do bom e mau governo, Se os
membros da comunidade cooperam livremente nas
tarefas da existência comum, o governo é bom, tenha
forma de monarquia, aristocracia ou politeia. Se um ou
alguns homens exploram os restantes em proveito

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próprio, o governo é mau. Aliás, mesmo o bom regime de
Aristóteles seria mau porque continha escravos. A
antropologia tomista opera com a ideia do homem cristão
livre e maduro, ideia magnânima semelhante à do
igualitarismo aristocrático de S. Francisco. Tomás
experimenta a liberdade do cristão mas não coloca o
homem numa comunidade natural com obrigações
próprias. Os livres são apenas uma multitudo resultante
da livre cooperação criadora. Não apresenta uma teoria
do contrato social que institui obrigações nem uma teoria
da organização política do povo. Interessa-lhe apenas o
populus christianus. Na Summa Contra Gentiles quando
ainda não adoptou as categorias de Aristóteles,
apresenta o homem como naturaliter animal sociale, e
vive inclinado para o amor mútuo e a solidariedade (SCG,
III 117,). Mas a finalidade social não reside a esfera
natural; o que constitui a comunidade humana é a
finalidade comum de amor a Deus e a ordenação da vida
para a felicidade eterna. Os laços de afeição que que têm
que existir entre os que se estimam (III,117) exigem
regras de comunidade dadas por Deus (III,111-146). Na
Summa Theologica (ST I ii 90,2) em que desenvolve a
mesma posição, Tomás deixa cair do céu a citação de que
a polis é a comunidade perfeita porque conduz à
felicidade. Contudo, para Aristóteles, a polis histórica é
um absoluto em que se insere a acção contemplativa; na
Summa a felicidade é o absoluto que atrai a si uma vida
de comunidade sem qualificação política. Também a
recepção do termo de Aristóteles animale politicum não
significa adopção do sentido. O homem de Aristóteles
realiza-se na polis e nada mais é do que politikon
enquanto o homo christianus está orientado para a
finalidade transcendental espiritual, sendo tambem
político. A figura central da política tomista é o homo
christianus (RG,I,14) e não o zoon politikon. A sequência
de analogias - Deus no universo, príncipe na civitas, a
alma no corpo - não é a palavra final na politica tomista
porquanto a multidão de cristãos tem que viver sob

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Cristo, rei espiritual. O ministério deste reino espiritual é
confiado aos sacerdotes - separados dos assuntos
mundanos - e em particular ao pontífice romano, ao qual
todos os reis e povos estão subordinados (RP I,14).
Assim, a velha dicotomia de poderes - espiritual e
temporal - é substituída pela dicotomia moderna de
religião e política. A esfera política no sentido moderno
ainda está completamente orientada para o espiritual;
mas começa a evolução para a privatização de religião (à
maneira de Locke), o monopólio da esfera pública pela
política e a possibilidade de uma integração totalitária da
espiritualidade intramundana na esfera pública da
política.
e. Teoria do governo constitucional Tão forte é o carácter
humanístico da teoria de São Tomás de Aquino que mal
refere a existência de um sistema da instituição do
governo, sendo que os princípios desenvolvidos com
referência às instituições israelitas e helénicas são pouco
adaptados ao sec.XIII. Cada comunidade perfeita tem
que ser estruturada nos três reinos de optimates,
populus honorabilis, populus vilis, (ST I 108, 2), modelo
inspirado na nobilitá, popolo grasso, popolo minuto das
cidades italianas. A partir da liberdade cristã, é possível
desenvolver instituições governamentais para o homo
christianus enquanto homem político. Não sabemos o
que Tomás pensaria sobre a evolução nas cidades
italianas onde as revoltas dos Ciompim em Florença, e
dos Patarenos, em Milão, exigiam a integração do terceiro
estado no governo; nem sabemos como aplicaria o seu
princípio na Iglaterra que atingia então o
Parlamentarismo, e menos ainda na França, feudal e
comunal. No Regimine Principum, que permaneceu
incompleto, a teoria do governo constitucional surge em
ligação com o problema da tirania (II,6). O tiranicídio é
condenado, sendo da responsabilidade da auctoritas
publica a deposição do governante injusto. O melhor
seria a prevenção da tirania através da delimitação do
poder régio. Na ST I ii q.95,4 o regimen conmixtum é

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apresentado como a melhor forma de governo. A
propósito das instituições do povo Hebreu (I ii 105,1)
afirma Tomás que a monarquia (análoga da divinidade) é
a melhor forma de governo mas está mais sujeita à
tirania. Esta nonchalance na definição da melhor forma
de governo parece provir da democracia primordial de
Israel, em que o Senhor recebeu com desagrado o desejo
popular de ter um rei como as demais nações(loc. cit.
ad.2). Tomás adopta o princípio orientador de que cada
um deve ter a sua parte no governo. A politeia deveria ter
por magistrados o rei, a nobreza e os representantes dos
povos, contribuindo assim para a prevenção da tirania,
provocada pela compra de votos, pela eleição de
personalidades indignas, (I,ii, 97,1) e pela expoliação dos
proprietários. As fontes principais do pensamento
politico tomista são a teoria aristotélica da política, a
constituição romana, a democracia original e monarquia
de Israel, a democracia das cidades italianas e o
sentimento da liberdade cristã. Estes elementos não
estão integrados; co-existem no estilo harmonizador do
pensamento tomista. A síntese possível é a ideia de
governo constitucional baseada em dois princípios: a
estabilidade de governo que depende da participação do
povo e o princípio espiritual cristão da liberdade do
homem maduro. A evocação é humanistica porque as
operações intelectuais com a terminologia de Aristóteles
ainda não penetrara suficientemente nos problemas
concretos da política. Esta síntese de natureza e
espiritualismo cristão dominou a evolução da política
ocidental, até hoje.
§ 3. Os quatro tipos de Direito
a. A teoria do Direito
Uma compreensão adequada da teoria do direito, tem
que atender ao lugar em que ela é tratada na ST. A
primeira parte da Summa trata de Deus e da Sua
criação, a segunda do Homem e a terceira de Cristo. A
Prima Secundae (I,IIae) trata das acções humanas.

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Primeiro aborda a beatitude como a finalidade da vida
humana (qq.1-5) e depois os meios para a atingir; os
meios consistem em acções humanas que se subdividem
em acções voluntárias especificamente humanas
(qq.6-21) e as paixões que são tipos de acção comum aos
animais (qq.22-48). Os princípios internos da acção
humana são subdivididos em poderes e hábitos
(qq.48-89). O princípio externo que move o homem para
o bem é Deus, operando através do Direito (qq.90-108)
ou com a assistência da Graça (qq.109-114). A teoria da
lei é a instrução dada por Deus ao homem para motivar
os seus actos para a beatitude. Este esboço da teoria da
direito aplica princípios ontológicos. O mundo é uma
criação de Deus e, como tal, portador da marca do divino
intelecto; o significado da existência criada é o
movimento de retorno a Deus. A regra que motiva a
acção humana de retorno a Deus é a ratio da criação no
intelecto do próprio Deus. A criação imprime no homem
esta ratio divina que é a Lex aeterna, pelo que o direito
natural é o ditame da razão que vive no homem. Como o
homem é imperfeito, a adaptação da lei natural às
contingências humanas é chamada de direito humano.
Como o homem não é apenas um ser natural mas
orienta-se para o espírito transcendente é necessária
uma revelação especial que constitui a direito divino,
apresentado no Antigo e Novo Testamento.
b. Definição de Direito
O direito é definido como ordenamento da razão para o
bem comum, feito pelo governante e promulgado (90.4).
A definição soa como uma definição do direito positivo
mas pretende ser uma definição dos quatro tipos de
direito. A tónica recai sobre a comunidade politica e os
órgãos de legislação mas a problemática da autoridade
legislativa não está ainda separada da autoridade da
ordem por virtude da justeza dos seus conteúdos. Os
elementos da razão e bem comum são especulativos e
comuns aos quatro tipos de lei. O elemento de

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promulgação pode adaptar-se à manifestação da lei
divina na lei natural (90,4,ad 1) a lei divina é
promulgação da lei eterna, e lei humana é promulgação
pelos governantes. As dificuldades surgem com a feitura
da lei pelo representante da comunidade. O elemento
refere-se a Deus, e ao príncipe (91,1) Mas a analogia
quebra porque a lei eterna não pode ser feita mas existe
desde a eternidade na mente divina. Por outro lado, (90
art. 3) Tomás refere apenas a feitura da lei em
comunidade nacional perfeita. Tomás está a tentar criar
uma teoria do direito positivo que leva a conflito com a
teoria dos conteúdos da ordem jurídica dada na
classificação das quatro variedades. Toda a lei é criada
por Deus com excepção da lei eterna incriada. Os
homens participam nessa criação através da feitura da
lei humana. Mas esta feitura humana consiste em
encontrar os elementos rectos da lei de acordo com lei
divina e natural. A lei feita faz parte do retorno do
homem a Deus. A feitura da lei tem a estrutura dialéctica
de fazer lei por Deus através do instrumento da acção
humana, ou orientação do homem para Deus através de
regras de acção conforme a vontade legislativa divina. A
dialéctica da lei positiva resultante da posição ontológica
nunca é tratada adequadamente. Em vez disso
encontramos identificação da lei posta com a essência da
lei (90, 4) e com lei humana em 95, 1 e 2) A confusão
neste ponto corresponde a falha no sistema: a
comunidade perfeita a constituição e acção legisladora
são recebidas factualmente no sistema mas Tomás não
criou um enquadramento teórico satisfatório para elas.
c. A teoria do direito natural
A força da filosofia jurídica tomista reside na teoria dos
conteúdos da lei natural. A lei eterna induz nas pessoas
uma inclinação para as acções justas. É esta
participação da criatura racional na lei eterna que se
chama de lei natural. A luz da razão natural que
distingue o bem do mal é reflectido na refracção da luz

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divina em nós. (91,2). Toda a lei é derivada da lei eterna
(93,3) Os princípios gerais são auto-preservação.
Preservação da espécie através de procriação e educação,
preservação da natureza racional através do desejo de
conhecimento de Deus, e inclinação para a ideal da vida
em comunidade (94,2). A construção assemelha-se a
teoria estóica de lei natural, koinos nomos e participa
nela atrrvés de apospasme, a centelha do nomos no
homem individual. Mas a antropologia é cristã. A
concepção estóica poderia conduzir a teoria da
iluminação como em Santo Agostinho ou a teoria
colectivista da anima intellectiva como em Averroes. A
participação tomista é objectiva na medida em que não
depende da iluminação individual (Agostinho) e confere
peso à singularidade da pessoa porquanto concebe a
comunidade como o esforço cooperativo de homines
Christiani livres. A fundamentação tomista é talvez a
única sustentável posição para uma filosofia do direito.
Caso não existir uma fundação ontológica temos a
seguinte alternativa: ou não ter fundação ontológica e
aceitar como válida qualquer ordem jurídica positiva que
possa compelir à submissão ou erigir como absolutos
elementos intramundanos tais como instintos, desejos,
carências, razão secular, vontade de poder, ou
sobrevivência dos mais aptos. A primeira opção é niilista
a segunda positivista e não permite integrar a
experiência transcendental religiosa na filosofia da
Direito. A clássica solução tomista fornece uma fundação
religiosa e uma ordem jurídica que respeita a estrutura
ôntica da existência humana; harmoniza a personalidade
espiritual cristã com a comunidade natural perfeita que
pode corresponder a povos ou federações, desde que
dotados de identidade espiritual. A solução tomista surge
quando instituições tradicionais estão a desaparecer,
sendo depois absorvida pela teoria da interpretação
natural do período dos estados nacionais.
d. Lei humana - lei positiva

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Tanto a lei humana como a lei divina possuem conteúdos
contingentes. O debate na q.95 identifica a lei humana
com a lei positiva. A confusão resulta de Tomás não
distinguir suficientemente entre o conteúdo da ordem
jurídica e a autoridade legislativa e o poder de sanção.
Enquanto lex ab hominibus adinventa (91, 3) a lei
humana cria detalhes e regras que aplicam a lei natural
a situações concretas. Tomás segue o conselho de Isidoro
(Etimologias, 5, 21) de que os princípios de direito
natural não devem exigir o que é humanamente
impossível nem contradizer as tradições locais; devem
servir o bem comum e ser claros e adaptados ao tempo e
ao espaço. Enquanto lex humanitus posita (q.95) a lei
humana é corpo de regras feitas pelos órgãos legislativos
e garantida pela sanção governamental. Trata-se da
generalidade e da obrigatoriedade da lei. É preferível
providenciar regras gerais redigidas de modo
desinteressado e competente e genérico. A
obrigatoriedade é necessária porque a natureza humana
é fraca; força e temor ajudam a virtude a agir
correctamente.
e. A Lei Antiga -
A sociedade de proprietários A lei divina surge porque a
finalidade sobrenatural do homem exige uma orientação
que o juiz incerto humano não encontra sozinha. A lei
humana não abrange intenções, já que a proibição do
mal também destruiria o bem da vida comunitária e
porque a lei divina lei que regula e sanciona o mal escapa
à regulamentação humana (91, 4). A lei divina, no Antigo
e Novo Testamento, é uma só, correspondente a dois
estádios espirituais da humanidade, infância e
maturidade. O Antigo Testamento ordena o homem a
bens terrenos, regulando actos externos e compelindo à
obediência por temor do castigo. O Novo Testamento
dirige o homem para bens celestes, ora regulando actos
intrínsecos induzindo obediência através de amor divino
que a Graça instila nas criações humanas. Esta relação

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entre conteúdo de uma ordem jurídica e estádio
civilizacional de um povo é uma filosofia da cultura. A
discussão do Antigo Testamento permite tratar Israel
numa monografia abrangendo a análise da ordem
cerimonial política e civil (qq. 98-205) o que, segundo
Dempf, é o primeiro tratado sobre uma civilização antiga
concebida no espírito humanístico. Na teoria da
propriedade privada, Tomás distingue dois tipos de
relações: a relação entre príncipe e súbditos, e as
relações privadas e civis entre os próprios súbditos. A
autoridade governamental sobre súbditos manifesta-se
em compelir à ordem jurídica. (105,2 ) As relações
privadas entre súbditos resultam da autoridade do
cidadão sobre os seus bens privados, res possessae. A
teoria pode, hoje, parecer trivial mas, na época, era
revolucionária; punha de parte a estrutura feudal dos
direitos de propriedade, e promovia a sociedade de
proprietários e suas relações comerciais. Tal teoria tem
um toque intemporal de humanismo e teve portentosas
consequências na evolução futura do pensamento
político.
f. A Nova Lei -
Justificação pela fé O tratamento da Nova Lei é
surpreendentemente curto (qq. 106-108), ocupando
cerca de um quinto da Antiga. A lei Nova é inscrita pela
Graça do Espirito nos corações dos fiéis; apenas
secundariamente é lei escrita. Sem mencionar a Igreja, a
essência da Cristandade é colocada na "lei da fé" no
sentido paulino. Para excluir qualquer outro princípio de
justificação, Tomás cita Romanos 3, 27 (I, IIae, 106, 1)
passagem que precede "porque cremos que o homem é
justificado pela fé, e pelas obras segundo a lei". Dentro
do quadro da teologia católica esta é talvez a expressão
mais forte do princípio da livre espiritualidade Cristã.
Tomás está a salientar o espiritual elemento de fé a
expensas da mediação institucional da Igreja mas não
pretende fazer inovações doutrinárias. Temos que

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atender ao espiritualismo independente de Tomás para
compreender a força dos sentimentos que se exprimem
na concepção do comunidade dos cristãos livres e
amadurecidos, da sua participação no governo através do
sufrágio geral e na constituição de uma sociedade livre
de proprietários. Na história do pensamento político,
Tomás de Aquino divide duas eras: os seus poderes de
harmonização foram capazes de criar um sistema
espiritual que absorveu os conteúdos do mundo em
transição: o povo revolucionário, o príncipe natural e o
intelectual independente. O seu sistema é medieval
enquanto manifestação do espiritualismo cristão: é
moderno porque expressa as forças que vão determinar a
história política do Ocidente até aos nossos dias - o povo
organizado com constituição, a sociedade comercial
burguesa, espiritualismo da Reforma e o intelectualismo
da ciência. Alcançou esta espantosa concentração do
passado e do futuro mediante o milagre da sua
personalidade. Absorveu e manteve em equilíbrio
sentimentos muito distintos. Tinha algo da receptividade
de Frederico às forças da época, mas ultrapassa-o em
espiritualidade. Realça o individualismo de carácter de
João de Salisbury pelo personalismo espiritual cristão; o
seu humanismo digere Aristóteles e cria o estudo das
instituições israelitas; o individualismo espiritual de S.
Francisco aparece ainda mais radical no espiritualismo
de Tomás; o populismo franciscano é continuado pela
evocação da comunidade do homens politicamente livres
enquanto a limitação de Cristo aos pobres é ultrapassado
pelo reconhecimento das funções do príncipe; a
consciência secular de Fiora é traduzida nas ideias da
expansão da Igreja no mundo. O horizonte estreito da
irmandade monástica é alargado à visão imperial de um
mundo de comunidades perfeitas cristãs; o
intelectualismo de Sigério é equilibrado por uma
orientação mas com uma espiritualidade igualmente
forte. Através destes equilíbrios´. São Tomás de Aquino
tornou-se figura única que pôde dar voz à Cristandade

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medieval imperial na linguagem do Ocidente moderno.
Ninguém como ele poderia ter representado no estilo
grandioso o homem ocidental espiritual e
intelectualmente amadurecido.

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ERIC VOEGELIN

ERIC VOEGELIN
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
**
A época medieval

Capítulo 16 Dante
§1. Isolamento do pensador político
.....................................
§2. A separação entre espírito e política
Desde a época de Dante que o realista espiritual se
enfrenta com o problema de que a realidade política
circundante do mundo ocidental já não absorve
adequadamente o espírito nas instituições públicas.
Podemos discernir três fases principais no processo de
separação entre espírito e política. O início da primeira
fase é marcado por Dante e pela sua descoberta da nova
solidão espiritual. A segunda fase é marcada pelo
surgimento de reformadores religiosos e de realistas
espirituais seculares. A terceira fase traz um novo nível.
Aos primeiros reformadores corresponde o activista
político-religioso, representado por Marx, que tentou unir
o espírito e as instituições sociais através de destruição
revolucionária da sociedade existente, para dar lugar ao
novo homem, o proletário. Aos realistas espirituais dos
sécs. XVI e XVII corresponde o espírito livre isolado de
Nietzsche cuja análise do niilismo europeu é o último
juízo do mundo ocidental pós-medieval, tal como a
Divina Comédia era o primeiro.

§3. Realismo espiritual - o paraíso terreno

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ERIC VOEGELIN

Esta perspectiva mais ampla permite uma melhor


compreensão dos problemas de Dante. As suas
abordagens ao problema de uma humanidade ocidental
que está perdendo a unidade espiritual, por um lado, e a
tentativa de encontrar a relação adequada do indivíduo
espiritual à estrutura política da sua época, por outro
lado, ainda estão indiferenciadas. Ele acalenta
esperanças numa nova Igreja espiritual de tradição
joaquimita, tal como expressa na Divina Comédia, o
mesmo tipo de esperança de Lutero e dos revolucionários
do séc. XIX. Mas a experiência de Dante da realidade
profunda do espírito determina a sua atitude pessoal
negativa face ao campo da política que vê dominado
pelas paixão do poder material. Este negativismo
ressurge em Maquiavel, Espinoza e Nietzsche.
§4. Forma literárias e símbolos de autoridade
Para as afirmação pública de um indivíduo, Dante teve
que desenvolver as formas literárias e os símbolos de
autoridade adequados à nova função. Na primeira fase
adoptou as Cartas, tal como desenvolvidas por Frederico
II e usadas por São Francisco. A Carta Aberta, ou
Manifesto Político, torna-se o instrumento de expressão
para o indivíduo que não tem público institucional mas
que apela à opinião pública. A questão é da autoridade
com que escreve estas cartas. o papel que assume. Na
Carta V, endereçada aos príncipes e povos de Itália,
designa-se a si mesmo como humilis Italus. Na Carta VI
endereçada aos Florentinos exprime-se como o
Florentius. Na Carta VII, ao imperador Henrique VII, é o
Florentinus, acompanhado pelos toscanos que desejam a
paz. Nas três cartas considera-se imerecidamente no
exílio. Na Monarchia, regressa à forma convencional do
tratado político. E finalmente na Divina Commedia
consegue a grande inovação de um poema político em
lingua volgare, dirigido ao povo italiano em geral.
Os símbolos de autoridade são simultâneos em três
fontes.

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ERIC VOEGELIN

A primeira fonte é designada pelas auto-designações nas


Cartas e pelo uso da língua vulgar na Divina Commedia.
Dante fala como italiano e florentino; apesar da retirada
de grupos políticos mantém um estatuto político; como
membro da comunidade política, tem a função
representativa de um porta-voz.
A segunda fonte de autoridade é o espiritualismo
joaquimita. Como espiritualista cristão assume em
relação ao reino de paz futura uma função semelhante a
Joaquim.
E enfim, Dante fala em nome do seu génio poético, que
constitui uma fonte de autoridade mais problemática
mais pessoal. Mas problemática porque a ordem cristão o
poeta não tem autoridade divina específica para falar
como vidente. Consciente do problema, Dante evoca
Virgílio e quatro outros poetas pagãos no limbo que o
recebem por companheiro, (Inferno, IV, 64-105)

§5. As Cartas
.......................

§6. O De Monarchia
A construção de Dante já não é aceitável porque a
antropologia moderna enriqueceu-se com a visão da
estrutura histórica da mente humana. Já não é possível
identificar a essência do homem com um intelecto sem
história, embora exista quem pratique isto
frequentemente. A unidade da humanidade não é
intelectualmente estática; é um campo aberto em que as
possibilidades da mente humana se desdobram
historicamente e se manifestam na sequência de
civilizações e nações. É cientificamente insustentável
parar a história num ponto do tempo e declará-lo

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ERIC VOEGELIN

absoluto como a natureza humana, precisamente o que


sucede com a ideia de uma organização estática que
seria a resposta política à ideia de homem. O drama da
história humana não pode ser retido numa organização
de poder governamental, imperial e não pode ser
submetido às regras de um tribunal.
O defeito da teoria de Dante é o intelectualismo, que
reserva ao monarca mundial as funções de árbitro. Os
planos de organização mundial de Pierre Dubois e Sully
originados na vontade de poder de uma nação particular,
sendo hegemónicos, estão mais de acordo com as forças
da história. Mas o intelectualismo continua na moda. Os
nossos planos modernos de organização mundial são,
por regra, hegemónicos. São historicamente realistas na
medida em que se baseiam no princípio de que as
concepções políticas de uma ordem particular deveriam
ser preponderantes, em geral, no mundo ocidental e no
globo. Mas são intelectualistas na medida em que uma
ideia particular de ordem é universalizável de modo a que
todos os homens devem submeter-se-lhe. O conflito
político entre a hegemonia organizada e o sonho da
universitas hominum - politicamente personificada no
séc. XIII por Dante - está longe de estar resolvido.
c. O mito da Italianidade
O Livro Segundo da Monarquia, trata de saber se o povo
romano tem o direito de assumir a monarquia mundial.
Os detalhes da investigação não são aqui relevantes,
embora sejam um modelo de análise religiosa e filosófica
dos sintomas pelos quais a vontade de Deus pode ser
conhecida. O importante é que Dante não visa defender o
imperador contra o poder espiritual mas sim o populus
romanus, ou seja, o povo italiano contra os adversários e
competidores. O povo italiano é o povo por excelência em
virtude da obra de civilização e de paz que realizou e pela
virtude de Cristo se ter deixado julgar por um tribunal
romano. Não se trata de nacionalismo. A imaginação de
Dante ainda não visiona o estado nacional italiano.

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ERIC VOEGELIN

Enquanto aguarda o fim da intervenção estrangeira, a


regeneração deve preparar os italianos para assumir as
funções de povo imperial. Dante aguarda por um
imperador da Casa de Luxemburgo. Este mito da
Italianidade permanecerá na moderna história italiana.
Com Maquiavel é o estado nacional, e para Vico a Itália é
a única nação ocidental que tem um ciclo antes das
migrações dos povos bárbaros. O fascismo irá explorar
este ressentimento contra a barbárie anglo-saxónica,
considerando-a atrasada em relação à Itália.
O livro III retoma a relação da autoridade imperial com a
eclesiástica. O argumento imperialista da derivação
directa da autoridade de deus contra a construção
hieràrquica

§7. A visão em Purgatório 29-33


Numa economia da história das ideias políticas, podemos
concentrar-nos na visão apocalíptica decisiva de
Purgatório 29 e 32-33. A visão está expressa em símbolos
espirituais e consenso é difícil. As linhas principais foram
clarificadas pelo trabalho de séculos de comentadores. A
evocação de Dante utiliza as raízes joaquimitas através
da distinção entre a Igreja feudal corrupta e a Igreja
espiritual pobre e a expectativa joaquimita de que o
período de iniquidade será seguido por uma Igreja
purificada e a ser inaugurado por uma personalidade
salvadora.
A visão não é simples repetição do sonho joaquimita do
Terceiro Reino do Espírito. O elitismo espiritualista de
Joaquim era uma fuga à unidade temporal espiritual do
Império; a redução da história ao processo espiritual
aniquila a vida secular da humanidade, na acepção de
irmandade dos perfeitos ser incompatível com a ideia de
povo cristão. Dante vive no horizonte mais amplo do
poder imperial. Vê a decadência da Igreja em paralelo

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ERIC VOEGELIN

com a decadência do império como poder secular:


miséria do papado em Avignon e predominância da
França no Ocidente. A reconstrução do imperium tem de
se estender ao poder temporal e espiritual. Mas como o
velho Império morreu, o problema sai do tempo presente
e vai para as eras simbólicas de história
Os símbolos básicos são joaquimitas. O império será
inaugurado por um Dux, que, contudo. é uma figura
imperial e temporal. Apenas em segundo plano aparece
uma figura espiritual dirigente designada como Veltro.
(Inferno, verso 100 e ss.) Mas esta dupla liderança do
império do futuro não será levada a cabo pelo
incumbente do trono pontíficio e imperial; não será
realizada por acção política no sentido mundano, porque
o Império é dado por Deus no devido tempo. Reaparece o
elemento de fatalismo típico de uma filosofia da história
que procure evocar uma drã fixo no deuros dos ventos
futuros. O fatalismo de Dante ainda é mais forte que o
de Joaquim porque Dante não assume o papel de
simples profeta existencial; é fatalismo de tipo intelectual
e aproxima-se mais da submissão à história sob uma lei
eterna, típico de Sigério de Brabante e dos Averroístas.
Noutro sentido, a evocação de Dante pode ser comparada
com a de Santo Agostinho. Dempf afirmou bem que a
visão de Dante é a contrapartida da Civitas Dei, na
medida em que completa a evocação do reino cristão
esboçada em Santo Agostinho. A comparação pode ser
levada da esfera dos conteúdos para a esfera dos
sentimentos. A Civitas Dei assinala o fim do período
romano-cristão porque aceita a derrota da ideia de um
império cristão. O saeculum é senescens; não existe
esperança na história do mundo e temos que aguardar
pela segunda vinda de Cristo que porá fim ao curso
insensato dos acontecimentos humanos. A situação de
Dante é semelhante. De novo o Império falhou e não
existe esperança de restauração no futuro imediato;
existe um tempo de espera comparável ao saeculum

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ERIC VOEGELIN

senescens. O indivíduo mais não pode fazer do que


retirar-se para atitude contemplativa. Pode julgar as
iniquidades do seu tempo mas o tempo passará sobre
ele. O saeculum chegará ao fim por intervenção divina.
A diferença importante é de que este fim não será o
advento de um reino celestial mas uma nova época
imperial na história da humanidade cristã. Pela primeira
vez surge o sentimento do esperança desesperada de que
o deus ex machina abolirá as tendências destrutivas das
forças intramundanas e estabelecerá um reino perfeito
cristão. As categorias de Dante são medievais, a sua
imagem do império perfeito medieval: mas o seu
sentimento é moderno na medida em que absorveu a
construção do saeculum que esteve a actuar nos séc. XII
e XII. A esperança é desesperada porque as forças
intramundanas habitam legitimamente o mundo cristão
mas têm que ser dobradas às finalidade da ordem
espiritual cristã. Mas o sonho da sua abolição deste fins
é a força do mundo moderno .

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS


ERIC VOEGELIN
**
A Idade Média
- Dos Nibelungos a Jerónimo Bosch -
Capítulo 17
Marsílio de Pádua
§1.Os primórdios do desenvolvimento constitucional
germânico
A interferência papal após a eleição de Luís IV como
imperador (1313-1347) constituiu a ocasião para ajustar
as relações entre o papado e o império. A recusa
pontifícia em reconhecer Luís IV despertou o sentimento
nacional dos príncipes alemães que se movimentaram
para obter a independência constitucional do imperador
perante do papa. Em 1338 a Kurverein de Rense declarou
válida a eleição do imperador sem confirmação papal; a
Dieta de Frankfurt declarou os eleitores competentes
para escolher o imperador; e a Bula de Ouro de 1357
regulamentou as eleições imperiais segundo fórmulas
que permaneceram até 1806. Esta actuação substituiu a
velha ordem política gelasiana de equilíbrio entre os dois
poderes, e a evolução constitucional alemã tomou a
forma de uma federação de príncipes que durou até
fundação do II Reich em 1870, descrita por Lanband
como uma república aristocrática de príncipes sob a
presidência do imperador.
§2. O Defensor Pacis
No meio da torrente de literatura partidária que o conflito
então produziu, de há muito que se reconheceu que o

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

Defensor Pacis emerge como o primeiro tratado que evoca


a ideia da organização secular do Estado, do mesmo
modo radical que o De Eclesiastica Potestate de EgÌdio
Romano evoca o supremo poder papal.
É habitual levantar a questão do autor. Editado o
Defensor Pacis em 1324, Marsílio de Pádua fugiu de Paris
em 1326 com o seu colega João de Jandun, acusados de
serem os co-autores da obra perseguida pela censura
papal. Algumas diferenças estilísticas entre a primeira e
segunda partes da obra, sugerem a possibilidade de que
os originais não pertencessem ao mesmo autor. Mas
como na obra definitiva predomina o entrosamento de
estilos, o conhecimento indiscutível do autor não
aumentaria a nossa compreensão da obra.
Das incompreensões que até recentemente obstavam à
compreensão da obra permaneceram três ou quatro
obstáculos sérios. Primeiro, a mais importante passagem
de todo o livro - a secção I,12,3 - surgia incompleta nas
edições primitivas fazendo crer que Marsílo se inclinava
para a teoria da soberania popular. Tal incompreensão
desaparece perante o texto restaurado da edição crítica
de 1928, por C.W. Previté-Orton, Cambridge, 1928. A
segunda causa de incompreensão é a tendência para ler
ideias modernas num tratado medieval; o intérprete
progressista realça a grandeza do antecipador porque
tem ideias posteriores que considera mais avançadas. A
prevalência da atitude hermenêutica que pede para
situar as ideias de autor no contexto do tempo, vem
destruir estas veleidades. A terceira fonte de confusão é a
dificuldade de situar as ideias de Marsílio. O Defensor
Pacis utiliza a Política de Aristóteles. Recepção, contudo,
não significa adopção mas, neste caso, uma selecção de
teorias isoladas de Aristóteles enquadradas num sistema
com princípios totalmente distintos. Uma comparação
das citações marsilianas de Aristóteles mostra que a
relação é muito menos intensa do que é sugerido pela
massa de citações. Outro obstáculo era o conhecimento

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

insuficiente do averroismo latino seguido por Marsílio e


João de Jandun. Para quem conhece Sigério de Brabante
e Boécio, o modernismo do Defensor Pacis o já não
surpreende; é antes o culminar de um desenvolvimento
intelectual com mais de setenta anos e que nesta obra
atinge o impasse.
§3. A relação com Aristóteles
O tratado está organizado em três partes designadas
Dictiones. A segunda é a maior e contém a polémica
contra o poder sacerdotal em geral, e pontifício em
particular. Reduz os poderes coercitivos do sacerdócio a
uma subdivisão da política secular. A Dictio Prima expõe
os princípios donde são derivadas as regras da Dictio
Secunda. A Dictio Tertia é uma curta enumeração de
quarenta e duas regras que resumem o argumento das
partes precedentes.
Ao longo da obra sucedem-se referências ao “divino
Aristóteles”. Mas em vez da polis como a communitas
perfecta, Marsílio utiliza civitas ou regnum, a
comunidade territorial nacional. Aristóteles abordava a
polis centenária como forma política inquestionada, e
centrava-se nos problemas da eudaimonia como
portadores do significado da vida humana e da arete
como a atitude adequada do cidadão. Ora a comunidade
política secular de Marsílio corresponde ao novo tipo de
organização política que se está a separar do império.
Enquanto a Política de Aristóteles é a derradeira palavra
de uma polis moribunda, o Defensor Pacis é a primeira
palavra do Estado secular: não aborda a concepção da
eudaimonia e da arete, nem na ética nem na
antropologia. O tópico central é a existência do Estado
secular através dos esforços do monarca com a ajuda de
peritos legistas e financeiros, regulando os grupos sociais
do reino em devida proporção, e reduzindo o clero a uma
posição subalterna no corpo político. O título adverte que
o estabelecimento da paz e da tranquilidade será obtido
pela subordinação do sacerdote ao poder secular

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

monopolista. (III,3, De titulo huius libri)


§4. Analogia orgânica
O Defensor Pacis começa por comparar a communitas
perfecta a um animal saudável, remetendo para
Aristóteles, Política, 1254b e 1302b. A civitas tem uma
natureza animal (I,2,3) e cada parte deve estar ordenada.
Mas em Política 1302b, a analogia aparece no contexto
das revoluções causadas pela desproporção de ricos ou
de pobres. Em Política 1254b após comparar a estrutura
da polis à relação entre alma e corpo de um ser vivo em
que a alma é parte dominante, Aristóteles conclui que,
também na cidade, a parte melhor deve dominar a pior;
ou seja, a teoria marsiliana da cidade como organismo
está artificialmente associada à Política de Aristóteles.
Os antecedentes da teoria estão, sim, no Policraticus que
constrói o poder governamental intramundano como
representativo de uma comunidade particular. A analogia
orgânica era usada por Salisbury para evidenciar a
estrutura interna da comunidade. Marsílio retoma esta
imagem da entidade política para passar à solução do
problema de como um indivíduo ou grupo dominantes, a
pars principans, exercem a sua autoridade
representativa.
§5. O problema de autoridade intramundana
representativa. O legislador
A analogia orgânica ajuda a evocar a comunidade como
um todo mas não ajuda a resolver o problema da
autoridade representativa. Se a autoridade do governante
não provém de Deus, mas antes se localiza na
comunidade intramundana, o governante deriva a sua
autoridade dos membros que deve regular. A fonte tem
que estar no todo que antecede os partes. Marsílio é o
primeiro pensador político do Ocidente a enfrentar o
problema de que por detrás da constituição, está o poder
constituinte do povo que se reúne em assembleia.

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

A solução encontrada é perfeita para o tempo. A fonte de


que o governante deriva autoridade é o legislator. Este
legislador (o nomothetes de Aristóteles) é o agente
intramundano que autoriza a ordem constitucional sob a
qual o governante exerce as suas funções, incluindo a
legislativa. Diz a mais famosa passagem do Defensor
Pacis, I,12, 3: “Definimos conforme a verdade e a opinião
de Aristóteles em Política II,6 (II,11 na contagem actual)
que o populus ou civium universitas ou a sua parte
socialmente relevante (pars valentior) é o legislator ou
primeira e propriamente causa efectiva da lei através da
sua escolha ou vontade expressa (per sermonem) numa
assembleia geral dos cidadãos, comandando ou
determinando que algo seja ou não feito acerca das
acções civis dos homens mediante castigo temporal ou
punição. Quando digo ‘valentior pars’ significo relevante
pela quantidade bem como pela qualidade das pessoas
na comunidade para a qual a lei é dada; assim será, quer
a supramencionada universitas civium ou a sua parte
socialmente relevante se tornem a lei, quer confiem a
feitura da lei a uma ou mais pessoas que não podem
evidentemente ser o próprio legislator mas que actuam
para um fim definido num tempo definido e de acordo
com a autoridade que lhes foi conferida pelo legislator”
(I,12,3).
Tudo depende do significado dos termos pars valentior e
universitas civium. É inaceitável que universitas
signifique o eleitorado no sentido moderno e pars
valentior a maioria. A primeira versão do texto define
valentior como consideratae quantitate, e a edição
emendada acrescenta et qualitate. Como parte
prevalecente ou dominante não é esclarecedor, usei a
tradução de Max Weber, como abrangendo todos os
membros da comunidade que causam perturbações caso
fossem negligenciados. É esta a intenção de Aristóteles
na Política e de Marsílio no cap.13 do Defensor Pacis. Os
membros pobres da comunidade são relevantes devido ao
número, os que possuem mais carácter, educação e

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

propriedade são-no devido à qualidade. Por isso Marsílio


distingue os indocti (I,13,9) camponeses, artesãos e
mercadores, da classe superior de sacerdotes, capitães e
legistas.
Este equilíbrio entre a iniciativa dos poucos que são
educados e o apoio da massa dos indocti reflecte a
estrutura das comunas italianas da época e vale
genericamente para a sociedade medieval tardia. O
legislator é afinal a sociedade medieval estratificada,
aspecto tanto mais de salientar quanto Marsílio não
precisava conceber nestes termos o todo da comunidade.
Poderia defender uma teoria do governo democrático
popular. As forças sociais que favoreciam este
desenvolvimento existiam na Itália e em cidades do norte
da Europa. Mas nem Marsílio se interessava pela força
espiritual destes movimentos nem nele existe traço do
homem cristão livre e espiritualmente amadurecido
definido por São Tomás de Aquino. O elemento populista
no Defensor apenas resulta da descrição da estrutura
institucional das comunas.
Em suma, a teoria do legislator é a primeira construção
consistente da unidade política intramundana, criando a
autoridade de um todo da comunidade anterior às
partes. A finalidade só é idêntica à teoria do governo
popular, na medida em que também visa instaurar uma
unidade política intramundana; é genuinamente
medieval porquanto mantém os equilíbrios da sociedade
estratificada.
§6. Governo limitado - Italianismo
Na época de Marsílio, no que refere às relações entre os
dois poderes tradicionais os problemas comuns eram
cada vez mais escassos e os problemas nacionais
particulares cresciam em importância. Na época da
Querela das Investiduras, alinhava-se a favor do papa ou
do imperador; nos meados do séc. XIV, a linha de choque
deslocara-se para o frente entre o papa e a pluralidade de

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

poderes nacionais, neste particular, o poder italiano.


O governante é instituído pelo legislator e
submete-se-lhe, até ao extremo de suspensão e
deposição do cargo, em caso de abuso de autoridade
(I,18). João de Salisbúria estabelecera a correcção do
poder pelo tiranicídio é agora substituída pela acção legal
por parte da comunidade, e em nome do governo
limitado. Para construir a unidade política
intramundana, é precisa uma função limitadora. A
solução constitucional moderna associa a universitas à
limitadora. Mas Marsílio substância imaterial da
comunidade de modo que governante se torna seu
representante directo sem povo, como na Rússia e
Alemanha totalitárias.
Não é por acidente que foi um cidadão plebeu de Pádua
que desenvolveu a ideia de governo limitado por
universitas e Marsílio poderia ter sido o primeiro a
estabelecer um paralelo entre a polis descrita por
Aristóteles e a cidade-estado medieval. A sua teoria de
substituir a polis pelo regnum ou civitas ganhava sentido
no contexto das comunas italianas e dos reinos
nacionais transalpinos. O tratado não prometia
antecipações sobre governo limitado e
constitucionalismo, até porque a corrente ia, pelo
contrário, no sentido do reforço do poder do
monarca absoluto.
§7 Naturalismo averroista
As tendências averroistas do Defensor surgem em partes
decisivas do livro mas não formam um sistema explícito,
deixando ao leitor a tarefa de completar uma teoria
esotericamente sugerida.
Ao ler I,4,1 tem-se a impressão de que o autor adopta a
teoria aristótelica da vida boa: os homens associam-se
em comunidades para melhor fruir das ocupações
prática e contemplativa da alma. Mas em Marsílio não

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

existe teoria do homem justo nem do cidadão virtuoso.


Conforme a sua filosofia naturalista da sociedade, a
natureza dotou os diferentes homens de diferentes
inclinações e hábitos, em ordem a fornecer matéria para
uma sociedades perfeita.(I,7) Desaparecida a unidade do
homem, a filosofia colectivista do homem natural que se
evidencia se a compararmos com passo paralelo de
Aristóteles na Política, 1328a-1329a. Aristóteles
contempla a diversidade de inclinações naturais mas
também atende ao ideal da personalidade perfeita. O
cidadão perfeito tem que exercer em sucessão as funções
de guerreiro, governante e sacerdote porque a polis está
organizada em torno do ideal personalista, pelo menos os
melhores da classe já que escravos, periecos, e artesãos
não se qualificam para a cidadania e através de sua
qualidade formam a substância da comunidade.
§8 A pars principans
Uma civitas nasce, mas não cresce, a partir da
diversidade humana. Para Marsílio, os hábitos são
causas materiales do Estado mas não são causas
formales nem eficientes. A causa formal da ordem social
são as leis emanadas do legislator. A causa eficiente é o
próprio legislator. O Estado é uma organização cujas
partes constituem officia que obedecem a uma
autoridade (I,7,1). Assim cabe ao governante ser a pars
principans coordenadora das outras partes da cidade. A
sua função é judicialis et consiliativa (I,5,1) e executiva
(I,15,4) e tem ainda o poder de legislar, praecipere
(I,15,6). Cabe-lhe regular o número e qualificações dos
grupos sociais de modo a manter as proporções entre
eles. (I,15,10) O governante é pars prima porque institui,
determina e conserva todas as outras partes (I,15,14).
A civitas apenas fica estável quando o governante
adquire o monopólio do poder. Uma multidão apenas se
torna civitas se tiver um governante com autoridade
secular suprema (I,17,11). Esta ênfase no poder supremo
do governante mostra bem que a universitas não pode

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

ser considerada soberana. O ênfase está na organização


governamental que tem à sua frente o trabalho de
unificação nacional.
§9 A pluralidade de Estados em guerra
Marsílio condena a organização política da humanidade
sob um só governante por motivos complexos (I,17,10).
Louva a existência de uma pluralidade de Estados
correspondendo a diferenças regionais, linguísticas e
culturais; mas adianta que parece intenção da natureza
moderar por guerras e epidemias a propagação do
homem, de modo a que o espaço limitado seja suficiente
para processo de eterna geração. Uma paz munida. Uma
vez mais se nota um argumento averroista, neste caso a
geração eterna como princípio definitivo de organização
política, mesmo que a expensas da paz entre os estados.
§10 O Direito
Marsílio apenas aceita o sentido do termo lei relevante
para o Estado secular. O direito é uma doutrina sobre o
justo e útil e seus opostas em assuntos civis e donde se
derivam regras coercivas sancionadas por penas e
recompensas. (I,10,3 e 4). Reconhece a possibilidade de
uma ciência do justo e do injusto mas não aceita um
direito natural. A verdadeira cognitio do justo não origina
uma lei, (I,10,5) mas uma falsa cognitio pode ser lei desde
que dotada de sanção (I,10,5). A potestas coactiva
domina todas esta teorização de que está ausente o
direito natural.
§11 Cristandade e Igreja
Embora seja o objectivo principal do livro, o argumento
contra o poder do sacerdócio na segunda parte é um
anti-clímax, após a exposição da primeira parte. Marsílio
é averroísta: reconhece a verdade da fé mas trata os
conteúdos com indiferença. Não procura reconciliar
razão e fé: o significado da vida boa é assunto de
filósofos, sendo Aristóteles guia nesta matéria. As

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

questões sobre a vida eterna não permitem consenso e


situam-se para além de razão (I,4,3). O cristianismo é,
simultaneamente, uma “seita” entre outras e a
verdadeira religião. E Marsílio chega ao ponto de resumir
os artigos da fé cristã, como se o leitor da época não os
conhecesse sobejamente; age como alguém para quem o
cristianismo fosse numa curiosidade intelectual. Esta
suposição parece confirmar-se quando diz que a religião
incute um sagrado terror das penas infernais para
fortalecer a conduta moral dos homens vulgares (I,6,11).
Mas o cristianismo é uma religião de um outro mundo
que não se deve institucionalizar numa Igreja com
potestas coactiva sobre seus membros; a existência do
castigo eterno não permite atribuir poder aos sacerdotes.
Cristo é um “médico” que informa e prognostica sobre as
vias mundanas que conduzem à salvação ou à danação;
não é juiz nem rei em que os sacerdotes se possam
apoiar. Marsílio utiliza mesmo a expressão averroísta de
que Cristo perdoa “usque ad extremum cuiusque
periodum”, aceitando a teoria de que existem ciclos
sucessivos da humanidade.
A partir destes princípios, é fácil adivinhar as relações
entre Igreja e poder secular. A Igreja está submetida à
autoridade do supremo legislador que ordena a vida do
homem para a felicidade mundana (II,4 e 5). O clero deve
responder em tribunais seculares; a actuação da Igreja
deve ter a permissão de leis seculares; a organização
hierárquica da Igreja deve ser abolida; a preeminência do
papa tem razões apenas históricas e não espirituais; só a
escritura deve ser acreditada, sendo a sua interpretação
função de Concílio Geral da Igreja. Os delegados do
Concílio devem ser escolhidos na comunidade dos fiéis,
leigos e sacerdotes pelos governantes seculares.
§12 O credo esotérico
As doutrinas do Defensor Pacis não são redutíveis a uma
só fórmula devido à multiplicidade de problemas práticos
e teóricos que surgem misturados com afirmações de

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

princípios devidamente encobertas para eludir a censura


papal. Mas apesar do carácter esotérico da obra, é
possível encontrar no âmago uma teoria política
averroísta. Sigério de Brabante apresentara a
humanidade como colectividade dotada de uma anima
intellectiva, em que cada indivíduo participa através do
processo de geração eterna. A anima intellectiva presta-se
à evocação de um império mundial, a universalidade de
organização política que corresponde à universalidade da
mente como em Dante. Se o processo natural é
determinante, pode evocar-se a ideia de um fluxo de
comunidade política com pluralidade de estados em
guerra entre si.
A opinião prevalecente sobre o sistema político de
Marsílio aponta para a incompatibilidade entre a dictio
prima e a política eclesial da dictio secunda. Se já o
fideísmo diminui a capacidade do cristianismo como
força anímica da sociedade, para Marsílio que considera
a religião como ópio do povo, e Cristo como figura cíclica
da história, o cristianismo é ilusão que não se integra na
política secular. Por outro lado, se os filósofos árabes
alcançaram uma atitude de tolerância para com o Islão,
a política eclesial do Defensor também pode ser tolerante
e condescender que os vulgares tenham convicções
ilusórias e mesmo uma forma de expressão institucional
através de concílio geral, sem contudo conceder um
poder sacerdotal.
Entre a leitura da incompatibilidade e a da tolerância
não e fácil decidir porquanto falta parte do doutrina
sobre a questão da substância da comunidade. É como
se uma mancha escura escondesse o que lá está escrito.
As escassas referências à vida boa, ao justo e ao útil e a
evocação da almas não chegam a formar um código de
ética nem um ideal de vida. Uma vez que o autor não
aceita o cristianismo como substância da comunidade,
podemos suspeitar que era um intelectual naturalista,
que queria fruir do seu conhecimento superior e deixar a

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

massa entregue a um credo utilitário.


§13 Tecnicismo político
No ponto de vista político, como a atitude central de
Marsílio é niilista, a sua abordagem dos problemas
políticos torna-se técnica no sentido de que procura
compreender os problemas do poder sem participação
pessoal nas lealdades da comunidade. O tópico que
mais interessa a Marsílio é o tratamento e a prevenção
das revoluções, pese embora o seu tratado não ter
alcançado a grandeza e a notoriedade do Príncipe. Mas os
problemas essenciais da política secular pós-medieval e
os traços de averroísmo estão já no Defensor pelo que
boa parte da fama de Maquiavel deveria ser restituída a
Marsílio. Em todo o caso, a fama permaneceria na teoria
política de Itália, onde o confronto directo com a Igreja
criou um clima favorável a uma abordagem tecnicista e
autónoma da política, desde o longínquo sec.XIV de
Marsílio até ao séc. XX, com Mosca e Pareto.

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ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
**
A época medieval

Capítulo 21 - A área imperial

Introdução
Na área europeia entre a França e zona eslava, não
houve um reino nacional como em Inglaterra. nem
monarquia carismática como em França. A unidade
política e o continuum de ideias política desde o séc. X é
nessa área preenchida pelos cargos do Sacrum Imperium
assente no Papa e Imperador. O Sacrum Imperium não é
um reino alemão mas apenas um domínio de forte base
militar e eclesiástica na zona intermédia
germano-italiana.
Esta estrutura é habitualmente mal compreendida por
diversos motivos. 1) A Querela das Investiduras e o surto
dos Hohenstaufen obscurecem processos regionais.
Assim, o interregno de 1254-1273 não foi tão importante
como convencionalmente se pensa. 2) As unidades
políticas regionais não evoluíram para a forma de
estado-nação. Os símbolos evocativos da zona imperial
não atingem expressão literária em pensamento político
sistemático. Ora onde não existem doutrinas, é preciso
analisar as instituições. 3) A historiografia alemã
oitocentista e nacionalista falou de obsessão italiana, de
erros de Hohenstaufen e Habsburgos, deformando o
período medieval como época das oportunidades
perdidas para a criação do estado nacional alemão.

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§ 1 Política sub-imperial

§ a Política imperial e sub-imperial.


A Alemanha não tem datas decisivas na sua história
equivalwntes a 800, 1066, 1143, sendo significativo que
a fórmula termo “império alemão” foi usada pela primeira
vez em 1871.

§ b Reino Franco Oriental e Itália


Em 911 o Duque da Francónia sucede ao ultimo
carolíngio como rei das tribos do reino Franco oriental.
Coexistiam na Alemanha uma pluralidade de
Stammesherzogtume, o que determinou o particularismo
alemão. Os ducados alemães constituíam um Hinterland
do Império. Era vital manterem abertas as vias para
Mediterrâneo e Império Bizantino para não caírem fora
do comércio mundial. Donde, Império alemão
empreender uma política Italiana. Otão o Grande renova
em 962 o Império de Carlosmagno sendo os monarcas
alemães reis francos orientais. Mediante a expedição a
Itália, de 952, conquista as passagens alpinas e partes
de Lombardia: na expedição de 962 conquista o resto,
sendo coroado rei de Itália em Pavia, e assinando tratado
comercial com Veneza uma vez que os impostos italianos
eram essenciais. Apenas a região lombarda estava sob o
controle do Papado

§ c Concentração do poder real


Os Imperadores Otões concentraram na família os feudos
vagos e controlaram a Itália a partir do reduto alemão a
Norte dos Alpes. Só a Saxónia resistia A partir de 1046
surgem quatro papas germânicos que iniciam a reforma
cluniacense do Papado. Após o imperador Henrique III

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morrer prematuramente, o Interregno da regência foi


fatal. Henrique IV, ao encontrar as terras redistribuídas,
tenta criar base territorial na Saxónia e procura controlar
as terras da Igreja através da prática de simonia. Mas o
prestígio do Papa crescera com as reformas de Cluny. A
Querela das Investiduras foi o conflito iniciado entre
Henrique IV e Gregório VII. Após um segundo interregno
que causou danos irreparáveis, reinaram Henrique V -
1106-1125 - e Frederico I - 1152-1190. Outras casas
principescas na Alemanha - tais como Guelfos e
Babenbergs - eram igualmente importantes.
A política dos Hohenstaufen foi muito diferente;
procuraram controlar a Alemanha a partir do reduto
italiano. 1) A consolidação da Lombardia com governos
de podestà nas cidades. Apesar de derrotados em
Legagno, em 1172, fizeram cair o pretendente saxão, em
1180. A aquisição de Toscânia e o casamento siciliano de
Henrique VI coroaram a construção do reduto italiano.
Mas Henrique VI morre aos 32 anos, em 1197. O filho, o
futuro Frederico II, tem apenas 3 anos. Começa o terceiro
interregno.
Na história alemã o Grande Interregno é o de 1254-1273,
entre o último Hohenstaufen e a eleição de Rudolfo de
Habsburgo. A tradição medieval imperial morrera e
cresciam os principados da renascença e os estados
nacionais. Mas os factores de crise acumulavam-se.
Entre 1197-1273 existe interregno no nível sub-imperial
(não nacional). Foi então que emergiu Frederico II. Não
era propriamente um príncipe alemão e desistiu de
controlar a Alemanha. O Papa controla a Igreja alemã
pela Bula de Ouro de Egger, de 1213. Mediante o
estatuto de 1220, os príncipes eclesiásticos são
independentes. Os príncipes leigos dominam os seus
respectivos territórios, segundo o estatuto de 1231. A
política de Hausmacht dos Habsburgos reconhece os
particularismos alemães. Os velhos ducados já não
serviam como base de apoio político, nem sequer na

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Itália após a perda da Sicília para Aragão.

§ d. A colonização do Leste
A nova solução - dos imperadores Habsburgos - foi a
criação de um núcleo de poder a leste do território
alemão, aproveitando a expansão germânica contra os
eslavos. Enquanto os reinos da Europa fixavam
fronteiras nacionais, os alemães estavam em movimento
a partir do Elba e do Saale nos sécs. XII ao XIV, num
movimento comparável à expansão atlântica dos
europeus. Este movimento deixou ficar uma diferença
entre civilização metropolitana ocidental e civilização
colonial oriental que, só no séc. XVIII, se aproximam com
o movimento Sturm und Drang como assinalou Josef
Nadler[1].
A integração institucional da Alemanha ficou ainda mais
dificultada com os novos particularismos dos municípios
do Leste.. E até hoje [1941] os padrões de co

1 Política sub-imperial
A dificuldade de integração institucional agravou-se
devido aos particularismos alemães. As comunas, os
municípios, a pequena nobreza e o terceiro estado da
Alemanha não produziram dirigentes, porque não existia
um enquadramento nacional que permitisse acumular a
experiência política. Até hoje, os padrões de
comportamento políticos não resultam de um pretenso
carácter nacional alemão mas da ausência de
instituições estabilizadoras nacionais. Ademais, a
expansão para Leste, atingiu território totalmente eslavo
e criou problemas de minorias. A fronteira política alemã
ficou sempre em suspenso, até ao Volga.
A iniciativa da expansão não foi uma iniciativa imperial.
Em 1140, Adolfo de Schaumburg funda Lubeck, primeiro

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posto no Báltico. Em 1144, Alberto o Urso funda


Brandenburgo. A Cruzada de Wendos ocorre em 1147
com Henrique o Leão, a leste do Elba. No séc. XIII , é
conquistada Riga em 1230, e a Livónia em 1225. A
Ordem Teutónica na Prússia atinge a Estónia em 1346.
Do Holstein ao Lago Peipus; só a conquista da Silésia se
deve a imperador Frederico I, em 1163. A consolidação
de Polónia e Lituânia unidas em 1386 sela o destino do
Báltico alemão. Tannenberg é perdida em 1410. A perda
de Samogitia corta ligação com Prússia e Livónia. Na
Prússia Ocidental, Danzig fica polaca em 1466. Só
reentra em Império alemão em 1815 e no Bund alemão
em 1866.
A família dos Premyslid domina a Boémia em séc. XI e
XII. Venceslau I acolhe a imigração alemã e funda um
principado semi-alemão. Caríntia, Estíria e Áustria
separam-se do Ducado de Baviera. Todo o peso político
alemão deslocou-se para Leste. Após 1300, os grandes
senhores vêm de Áustria, Boémia Brandenburgo e
Prússia. As comunas determinaram a formação de
Inglaterra e a monarquia formou a França. A colonização
e a articulação territorial do leste determinou a estrutura
política alemã cuja escassa articulação nacional
contrasta com a sistematicidade das ideias políticas
alemãs.
§ e Sumário da política das três dinastias imperiais
alemães:
1ª Saxão-sálico: coexistência entre velhos ducados e
concentração de poder real.
2ª Hohenstaufen: concentração de poder real na Sicília e
Itália
3ª Habsburgos: concentração na Hausmacht e nos
territórios de Leste.

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§ 2 A Bula de Ouro

§ a Carlos IV
Em 1356, Carlos IV toma a iniciativa de reconhecer e
formalizar a estrutura política alemã através da Bula de
Ouro. Seja quem for o respectivo autor, a Bula surgiu na
sua Chancelaria após negociações com os Eleitores.
Carlos IV não era um carismático, mas antes um cristão
devoto, sem ilusões sobre papado, e um bom europeu.
Do nome original de Venceslau, rei da Boémia, passou
para Carlos, rei dos Francos, Rei de Borgonha e
Imperador romano. Administrador cuidadoso, tinha a
intuição de que quase todos os homens têm um preço. A
complexidade da figura torna-o pouco conhecido mas
criou uma solução que durou mais de quatro séculos.

§ b Forma da Bula de Ouro


A Bula de Ouro foi promulgada na Dieta de Nuremberga,
1355, e na Dieta de Metz, 1357. É um estatuto solene
que regula a eleição do Rei, o estatuto dos príncipes
eleitores, do Rei da Boémia e outros assuntos. O
processo eleitoral segue a Constituição de Melfi.

§ c. As variantes na terminologia da designação imperial


- christianum imperium, sacrum imperium, sacrum
imperium romanum, sacro-sanctum imperium Romanum -
revelam a complexidade da questão. O sacrum edificium
tem sete candelabros. A cabeça é rex romanorum
imperatorem promovendus e outros termos que reflectem
a estrutura histórica de constituição do império. A
dignidade do reino alemão sobre domínios alemães,
regnum teutonicum, implica funções de administração
imperial em Borgonha e Itália, regiões de imperium. O rex
electus era um imperador. Existe um imperium estatal e

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administrativo e um império mundial. Os Hohenstaufen


tentaram que o império estatal fosse coextenso com o
império mundial. Frederico I chamou reguli aos reinos
independentes dos governantes. Henrique VI
transformou em feudos imperiais os reinos cristãos de
Inglaterra, Arménia e Chipre. E Frederico II atribui-se a
designação de dominus mundi. Ademais com a chefia
temporal do sacrum imperium, o imperador acumulava
funções de protecção do mundo cristão, promoção de
cruzada e missionação, reforma da Igreja e influência na
eleição papal, atribuições de poder espiritual.
O rei-imperador acumula funções de: 1) Reinado no
regnum teutonicum; 2) Funções imperiais face a império
estatal que inclui Itália e Borgonha 3) Pretendente a
império mundial futurus imperator;4) Poder temporal
sobre o populus christianus e protectorado sobre a Igreja.
Na prática, tais jurisdições coincidiam na mesma pessoa.
O cargo tem um dinamismo complexo que inclui eleição
secular, aprovação papal e coroação, o que se tornará
fonte de conflitos entre príncipes e papas e exige
negociações preliminares com eleitores seculares e
eclesiásticos.
Segundo a lei romana e canónica, a dignidade imperial
vem directamente de Deus e não carece de aprovação
papal, tal como estatuído por Luís o Bávaro, em 1338. O
documento Licet Juris considera que os príncipes
eleitores criam o verus imperator. A Bula de Ouro não
menciona o aprovação do papado, deixando o caso em
aberto para a técnica legal e a diplomacia. Carlos edita-a
logo após a sua coroação. A transformação do reino
numa federação oligárquica de príncipes com cabeça
eleita exprimia o surto do sentimento nacional alemão.
Contudo, tratava-se de uma solução politicamente
pacífica de um problema delicado. O silêncio no ponto
crítico não prejudicava o papado e tornava desnecessário
que o Papa recorresse a protestos oficiais.

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§ d O Colégio Eleitoral
A eleição é feita em Francoforte por sete eleitores, o que
criou os problemas de representação e de maioria. "Talis
electio perinde haberi et reputari debebit, ac si foret an
ipsis omnibus nemine discrepante concorditer celebrata."
(Bula, II, 4). A maioria de quatro eleitores (entre sete) tem
o carácter de quorum porquanto são precisos quatro
votos eleitorais para eleger o rei. Transforma-se em regra
de maioria pela coincidência de que colégio de eleitores
tem sete membros.
Assim, a fórmula da Bula transforma em eleição o que
antes fora escolha. Os procedimentos de elevação ao
trono formam um processo extraordinariamente
complicado que, nalguns casos, durava anos. A escolha
de um candidato era o primeiro passo; depois vinham as
negociações com o candidato; depois a eleição, ou seja, a
concordância dos príncipes eleitores: depois a nomeação
seguida de louvor, o agrément de pessoas menores e a
aclamação do povo; depois a entronização e a coroação
ainda interrompida por actos de louvor e aclamação; a
aquisição do consentimento das tribos; o tomar posse das
insígnias; a imposição de funções face a dissidentes.
Este processo complicado em que se atinge o pleno
consenso de reino e rei é reduzido no séc. XIII quando as
Regras do Sachenspiegel seleccionam a eleição como
momento central. O voto é acto formal que sanciona uma
concordância substancial antes de começar a votação.
Existe, pois, um voto de prestígio e um voto eleitoral. Em
1273, o desinteresse por eleição leva o Papa a insistir em
eleição por quorum. Na bula de Ouro a representação por
consenso é reduzida à ficção da concórdia. O prestigio
dos votos eleitorais formaliza-se na instituição do colégio
eleitoral.

e. Oligarquia dos Príncipes

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As provisões para a eleição do rei-imperador determinam


a influência dos Príncipes do Palatinado, Boémia,
Saxónia e Brandenburgo e dos Bispos de Mogúncia
Colónia e Trier. Constitui-se o Gabinete imperial com os
Príncipes. São admitidas as Ligas de Paz
Landfriedensbünde entre príncipes e cidades. Outras
associações são estigmatizadas como conspirações como
por exemplos ligas inter- e intra-urbanas.

f. Lupold de Babenberg
Como mostrou Dempf, a literatura sobre o zelo fervente
pela pátria germânica é vasta, destacando-se em
particular o De juribus regni et imperii Romani, escrito por
um canonista, provavelmente o Bispo de Bamberg. Para
este, o reino dos francos livres é anterior ao império.
Descendentes de Troianos fugitivos, os Francos são tão
antigos quanto os romanos. Após translatio imperii de
Gregos para Francos, por vontade do povo romano e
acção do papa, a questão gira em torno da relação do
regnum germânico com o imperium.
A doutrina tem cinco artigos principais:
Por jus gentium, o povo sem rei tem direito a eleger um.
Mesmo que a eleição seja in discordia, por maioria os
direitos do rei são iguais. O voto de maioria produz
concórdia no caso de uma universitas como é o Colégio
eleitoral. Os eleitores formam um collegium, não são sete
sujeitos soltos. Os príncipes são representantes do povo
e a eleição é um acto do povo alemão através de seus
representantes
Como noutros reinos ocidentais, também o rei-imperador
é imperator in regno suo; direitos como o de legitimação
de filhos e reabilitação de pessoas não lhe advêm do facto
de ser imperador.

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A eleição dispensa a aprovação papal.


O juramento de lealdade ao Papa não constitui feudo
mas lealdade à defesa de Igreja e Papa. Lupold separa
claramente o império estatal do império mundial. Para o
governo do regnum, bastam os princípios de jus gentium.
A aprovação papal só é requerida para o império
mundial. Apesar de não atingir a posição do licet juris
que declara irrelevante a aprovação e a coroação pelo
papa, a doutrina de Lupold pode ter influenciado neste
ponto a Bula de Ouro embora a tonalidade seja mais
populista do que oligárquica.

§ 3 AS CIDADES-ESTADO

§a Área das cidades-Estado.


O que Arnold Toynbee designou por cosmos das
cidades-Estado [2]estende-se da Toscânia e Itália
Superior através da Suíça, Alemanha do Sul e Vale do
Reno, Holanda e Flandres; da área de Colónia ramifica-se
para Vestefália e Báltico e até à Estónia. Cobre as
grandes vias comerciais da Idade Média. Permite a
passagem do Próximo Oriente, através de Itália, para as
regiões a Norte dos Alpes e de Novgorod para a Europa
Ocidental. Na intersecção das duas estradas
encontramos o rico núcleo de cidades na Holanda e
Flandres. A posição nas vias comerciais era a condição
económica para comércio e indústria.
Politicamente, era uma terra de ninguém entre poderes
territoriais fortes. As cidades italianas desenvolvem-se no
vácuo de poder entre papados Bizâncio, Império
transalpino e mundo muçulmano entre a Borgonha e os
principados alemães e franceses. A Liga Hanseática no
ângulo entre principados germânicos do Norte e reinos
escandinavos e eslavos. A localização nestas áreas de

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transição é condição para evolução de cidades Estado


com poderes menores. E, finalmente, esta área entre
poderes maiores é idêntica a área de Lotaríngia
estabelecia em 843 por Tratado de Verdun. E apenas no
séc. XIX partes dela foram incorporadas nos estados
nacionais de Itália e Alemanha, enquanto Suíça, Bélgica
e Holanda mantém-se como poderes menores e a
Alsácia-Lorena oscila ente França e Alemanha. A costa
báltica foi terra colonial gradualmente integrada na
órbita dos poderes vizinhos, e apenas o regime
nacional-socialista integrou as cidades livres de
Hamburgo, Lubeck e Bremen.

§b. Cidades e mundo feudal.

A partir de agora encontramos um sistema de relações


directas entre os cidadãos e as autoridades municipais.
As comunas representam a substância do novo tipo. A
cidade é a representante de uma nova fase da civilização
ocidental e o estilo civilizacional das cidades que entra
em competição com o estilo dos estados primitivos e que
acabará por dominar a nossa civilização.

§c. Vias comerciais e alimentos


As cidades ultrapassaram os limites e tornaram-se
centros para os território circunvizinhos. A guerra de
Chioggia (1378-1381) revelou a vulnerabilidade de
Veneza devido a falta de controle de abastecimentos
alimentares. durante a primeira metade do séc. XV,
Veneza prossegue uma vigorosa política de extensão para
o Hinterland, adquirindo Padua, Bassano, Vicenza,
Verona, Brescia, Bergamo, e Cremona.

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§d. A Quarta Cruzada.

§e. A organização da conquista Veneziana


Se a expansão das cidades Estado revelou a respectiva
força, a ordem constitucional das suas conquistas
revelou as suas limitações.

§f. Borgonha
Veneza é uma cidade-estado que integra territórios
rurais. Em Borgonha, a integração da rede urbana dos
Países Baixos no reino da Borgonha. Um senhor feudal
integra feudos sobrepondo uma administração central.
Começa com Filipe II, Duque de Borgonha em 1363,
casado com herdeira de Flandres e Artois. Através de
compras e cessões, Filipe o Bom adquire Holanda,
Zelândia, Brabante, Limburgo Luxemburgo, Hainault,
Namur, Antuérpia e Nechlin. O seu sucessor, Carlos o
Temerário (1467-1477), acrescentou Guelders e
Flandres.
Criou-se um Grande Conselho sob a presidência do
Chanceler de Borgonha e com representantes de todas as
províncias. Existia uma Câmara de Justiça desde 1473
que depois se separou como Parlamento de Malines e
tornou-se um Tribunal de Recurso Supremo. A
administração financeira do reino era organizada por três
Câmaras de Contas, situadas em Lille, Bruxelas, e Haia.
Criou-se um exército permanente organizado em
Compagnies d’Ordonnance. Em 1463 são convocados
para os Estados Gerais do Reino os representantes dos
estados locais que se ocuparam da racionalização do
sistema financeiro. A criação da Ordem do Tosão de Ouro
em 1430, mostra a intenção de formar uma nobreza do
reino, distinta da nobreza local. Uma área feudal foi
transformada em monarquia com administração central

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racionalizada mas moderada por instituições locais e


congresso federal, e em que o senhor está equidistante
de todos.

§g. A Liga Hanseática


No espaço báltico formou-se uma organização de cidades
para a protecção do comércio, protecção mútua e
aquisição e exploração de privilégios em regime de
monopólio sem a pretensão de conquistar e organizar
territórios. O impressionante florescimento hanseático
não teve consequências para a organização da nação
alemã. Quando desapareceu as cidades decaíram e
integraram-se nos principados alemães. Dentro do
particularismo germânico do séc. XIV, a Liga foi uma
forma adequada de protecção política; no período
pós-colonial de desenvolvimento nacional.
Este ponto é decisivo para compreender a interpretação
do problema alemão no séc. XIX e mesmo depois, tal
como a interpretação do carácter nacional inglês que
geram e complicam o crescimento institucional de longa
duração. Nos séc. XII e XIV a integração alemã foi
prejudicada por: 1) Destruição do papel régio de
integração devido aos longos interregnos; 2) Obstáculos à
articulação nacional devido à existência de principados
territoriais; 3) Dispêndio de forças na colonização do
Leste em vez de as aplicar na ordem interna; 4) Desvio
das energias políticas das cidades para políticas de Ligas
efémeras.
A Liga foi favorecida pelos objectivos limitados das cerca
de 160 cidades que se associaram em número variável ao
longo dos tempos, dispondo como arma eficaz do boicote
comercial. Entre 1350 e 1450 a pertença aumentara
muito, atingindo o maior número após esta data quando
já começava a declinar o poderio da Liga.
É possível distinguir duas fases neste processo. A Liga

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principia por ser uma associação de mercadores alemães


no estrangeiro. Após meados do séc. XII os mercadores
têm auto-administração em Gothland ou Londres. Antes
de 1220 estavam em Novgorod, com delegações em
Pskov, Plotsk, Vitebsk e Smolensk, e em meados do séc.
XII em Wisby, Londres, Bruges, Bergen.
Geralmente aponta-se o ano de 1241 como o início
formal da Liga Hanseática mediante a aliança de
Hamburgo e Lubeck; mas tratava-se de uma aliança
entre os mercadores de ambas as cidades e não entre
duas civitates, que apenas surgirá formalmente na
segunda metade do séc. XIV por ocasião da guerra da
Liga contra a Flandres. Os Estatutos de 1347 revelam
uma organização ternária: o primeiro terço é o dos
Wendos e Saxões sob a liderança de Lubeck; o segundo
grupo é da Vestefália e Prússia, sob liderança de Colónia;
o terceiro é de Gothland e Livland, lideradas por Wisby.
Existiam sessões da Dieta da Liga desde meados do séc.
XI. As agendas comerciais eram previamente discutidas
por dietas regionais, sendo Lubeck o centro executivo.
O apogeu da Liga Hanseática é marcado pelo Tratado de
Stralsund, de 1370, após guerra com a Dinamarca e que
permitiu adquirir o controle de pescarias e alfândegas do
estreito da Dinamarca, fortalezas na Scania, e privilégio
de confirmação do rei da Dinamarca. O declínio veio com
a consolidação dos poderes bálticos. Lituânia e Polónia
unem-se em 1386, os países escandinavos com a União
de Kalmar em 1397. O declínio da posição internacional
foi seguido pela desintegração, porque a Liga não
assegurou hinterland agrícola. Na segunda metade do
séc. XV as cidades prussianas e saxónicas retiram-se da
Liga Hanseática. O desvio do comércio dominante para o
Atlântico foi a machadada final. A decadência da Liga
apenas poderia ser evitada se organizasse o hinterland
rural alemão e incorporasse os Países Baixos, ganhando
acesso ao Atlântico, o que, aliás, não teria sido
impossível como mostrou a guerra com a Dinamarca.

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§ h As Ligas do Sudeste alemão


Na Alemanha do Sul e Ocidental, as Ligas são produto do
longo interregno de 1247, surgido para protecção do
comércio e defesa contra príncipes. Após a Bula de Ouro
que proíbe a jurisdição a não residentes e ilegaliza ligas
urbanas, ocorre em 1381 a aliança das Ligas Renana e
Suábia que se aliam em 1386 a cidades suíças. Os
Príncipes atacam primeiro mas os suíços resistem
vitoriosos na vitória de Sempach. Em contrapartida, as
Ligas suábias e renana foram derrotadas,
sucessivamente, em 1386 e 1388.

§ i. Confederação Suíça
A Suíça foi a única sobrevivente das Ligas do Sudoeste,
com um processo original de formação nacional. Veneza
foi a cidade que organizou um território; em Borgonha, o
senhorio feudal organizou as áreas urbanas em reino; na
Suíça, as comunas rurais tiveram a iniciativa. Uri e
Schwyz e Unterwalden faziam parte do Ducado da
Suábia, sendo autonomizadas por Frederico II. Arnulfo
de Habsburgo tentou recuperar os cantões. Este núcleo
associou-se às cidades de Lucerna, 1322 e Zurique,
1351. O tratado com Zurique permaneceu modelar até
1848, quando a nova constituição incorporou lições
americanas. A aliança de 1351 concede mútua
protecção, autonomia local e jurisdição limitada,
tribunais e dieta. Com a adição de Glarus, Zug e Berna
em 1353 reúnem-se os oito cantões mais antigos. O êxito
excepcional dos suíços relaciona-se com a aquisição de
um hinterland para as cidades. Na solução federal do
problema das cidades, o ardor e proezas da infantaria
camponesa combinou-se com a astúcia diplomática dos
mercadores urbanos.

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§ j Estrutura interna das cidades


Apesar da diversidade de escala, é importante referir que
os problemas das cidades-estado italianas antecipam os
problemas dos estados territoriais futuros. As cidades
italianas tinham uma estratificação social complexa com
uma escala completa de alta nobreza, alta burguesia,
baixa classe média e proletariado. O popolo grasso era
composto por mercadores, banqueiros e empresários,
industriais, o popolo minuto por artesãos. Para além
destes núcleos, também presentes na área germânica.
existiam os grandi e os popolani, proletariado industrial.
A divisão da classe superior em nobreza e burguesia é a
causa principal da luta fratricida nas cidades italianas.
Os grupos aristocrático e capitalista estão sempre em
fricção e ambos buscam ascendente através da ajuda das
classes inferiores. As Ordenanças de Justiça, de 1293,
em Florença, assinalam a redução política dos grandi
através dos popolani. Apenas os membros da Guilda
poderiam participar no governo da cidade e só os
profissionais poderiam ser membros.
Uma segunda consequência era o enfraquecimento da
espírito comunal. Cada indivíduo pertencia a uma
associação especial - as Arti dos popolani, as Consorterie
dos grandi. A rivalidade entre associações na captura do
poder fazia perder valor representativo às magistraturas
comunais e tornavam-nas instrumentos dos poderosos
do momento. As cidades não tinham instituições
integradoras como o rei como representante do reino. O
crescimento da signoria acima da luta partidária era
destruidor da autonomia. Florença em meados do séc.
XV, por exemplo, teve que se submeter a senhores
feudais para sustentar as campanhas militares.
A terceira consequência era a incapacidade do
proletariado em controlar ou ter influência permanente
no poder. As comunidades dependiam economicamente
das delegações internacionais e dos conhecimentos

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bancários de minorias; a simples resistência passiva


destes membros manobrava os operários até à derrota.
Os ganhos democráticos dos Ciompi na revolta de 1378,
em Florença, foram liquidados logo em 1382.
Estas três características mostram a incomensurável
importância da monarquia representativa nos reinos
nacionais para a evolução do governo constitucional. A
comuna - ou cidade-estado sem rei - não tem força de
coesão para se tornar unidade política. O crescimento
das signorie apenas mostra que o governo absoluto
aniquila a iniciativa cívica e tem um efeito paralisante do
desenvolvimento económico

§ k Constituição de Veneza
No conjunto dos estados italianos, Veneza tem um papel
comparável ao de Inglaterra entre os estados nacionais
europeus. A situação periférica permite estabilidade; não
tem os problemas de sobre-extensão dos grandes
estados: o comércio é tão forte que as artes e ofícios não
destabilizam a cidade governada pela oligarquia
comercial. Por tudo isto, criou uma constituição
oligárquica que entusiasma a Europa. Após o desastre de
1172, os Venezianos transformaram a assembleia
popular originária num Conselho de 480 cidadãos,
eleitos por um ano pelos sestieri para tratar dos negócios
públicos. O poder do Doge é limitado por seis
conselheiros. Em 1297 o Grande Conselho tem 1500
membros hereditários; a legislação é feita pelo Senado de
120 membros; o conselho dos 40 é o tribunal. O Colégio
é o executivo com o Doge e mais 26 membros. O
Conselho dos Dez é adoptado em 1310 para órgão
supremo desta oligarquia.

§4. Cola di Rienzo

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a. Estado da questão
A comuna de Roma representa um problema complicado
da política no nível sub-imperial. A revolta e ascensão ao
poder de Rienzi no dia de Pentecostes de 1347 foi,
aparentemente, uma revolta mais de popolani contra os
barões. Mas quando Rienzo assume as funções de
Signore vêm à superfície novos aspectos específicos, tais
como o renacimento das antigas formas constitucionais
romanas e o reformismo espiritual visando a Igreja.
Convocadas por Rienzo, as cidades italianas enviaram
emissários e os soberanos europeus ficaram
surpreendidos “vedendo comme Roma era rinata” na
expressão de Maquiavel nas Histórias Florentinas I, 31
em que pela primeira vez associa o termo ‘renascimento’
a um evento político, reconhecendo Rienzo como o
precursor da ideia de Príncipe que sacode o jugo de
tiranos estrangeiros.
O mundo simbólico de Rienzo é medieval mas os seus
sentimentos impelem-no para o futuro. Os progressos
realizados na compreensão de Rienzo - em particular
com a obra de Konrad Burdach, Rienzo und die gestige
Wandlung seiner Zeit, Berlin, 1913-1938 - já dissiparam
a imagem do tribuno sonhador, romântico, e
conservador. Um passo em frente para compreender a
sua actuação exige que se afaste o simbolismo
renascentista com que a sua figura é interpretada e se
reverta às Cartas em que expôs a sua política como base
da sua auto-apresentação e auto-interpretação
retrospectivas.

b. As cartas às cidades italianas


Após a conquista de poder, Rienzo enviou cartas
circulares às cidades italianas, convidando-as a equipar
soldados para o auxílio na libertação da Itália, a enviar
embaixadores para o futuro parlamento romano, e a

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nomear um advogado para o futuro Consistorium de


juízes.
A primeira destas cartas enviada à comuna de Viterbo
em 24 de Maio de 1347, ( cf. Epistolario di Cola di Rienzo,
a cura di Annibale Gabrielli in Fonti per la Storia d’Italia,
Roma, 1890, nº2) contém as fórmulas iniciais da
concepção política. Rienzo apresenta-se como emissário
do dom do Espírito Santo que Jesus decidiu estender a
todo o povo de Roma, a cabeça do corpus mysticum
constituído pelas outras cidades de Itália. Este novo
corpo místico não se confunde nem com a Roma pagã
nem com a Roma papal. Rienzo intitula-se Nicolau
severus et clemens, sugerindo a visão césaro-papista da
concentração dos dois poderes de severidade temporal e
da clemência espiritual. E sugere a tradição de lex regia,
na medida em que a vinda do Espírito criou unidade e
concórdia no povo romano, na cidade e na província
romana.
As missivas seguintes elaboram e ampliam a formulação
da primeira carta. Na segunda missiva enviada a
Florença surge a expressão “sacra Italia”, que depois se
tornará central. A carta de 8 de Julho ao papa Clemente
VI fala da república libertada que nasceu do Espírito
Santo e que apenas se submete a Deus, à Igreja e ao
Papa. A carta de 9 de Julho a Mântua alarga as funções
de Roma a cabeça de todas as cidades do “orbis
terrarum” e anuncia a promoção do tribuno a cavaleiro
do Espírito Santo.

c. O tribunus augustus
A coroação de Rienzo é acompanhada de numerosos
actos simbólicos. Mencionemos aqui apenas a imersão de
Rienzo na pia baptismal de pórfiro no Baptistério de San
Giovanni, a mesma em que fora baptizado o imperador
Constantino, evocando a purificação e a reforma

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espiritual do imperador como a renovação e reforma da


Cristandade imperial. A festa de 1 de Agosto em que
Rienzo aceita o título de tribunus augustus enfatiza a
renovação do império sobre toda a humanidade. O grau
de cavaleiro do Espírito Santo é recebido em louvor da
Santíssima Mãe de Cristo, da Igreja romana, e do
Pontífice e para a prosperidade de Roma, a sacra Italia, e
toda a comunidade de fiéis.
Nas convocatórias que nessa data envia aos
imperadores, príncipes e eleitores do Santo Império,
Rienzo sustenta que o povo romano retomara o seu
antigo pleno poder, autoridade e jurisdição sobre o orbis
terrarum. A cidade de Roma tornara-se a cabeça do orbe
e todas as cidades italianas são declaradas livres e
recebem a cidadania romana; a eleição do imperador
romano e a jurisdição e monarquia do sacrum imperium
pertencem a Roma e ao seu povo. Os imperadores Luís o
Bávaro e Carlos IV, os eleitores e outros príncipes são
convocados a vir a Roma no próximo Pentecostes a fim
de receber a decisão sobre a nova ordem imperial. A
carta a Florença de 19 de Setembro revela a intenção de
que será eleito imperador aliquem Italicum, um
“determinado italiano”.

d. Sentimentos nacionais e imperiais


No centro da actuação de Rienzo está decerto a
reformatio e renovatio do estado de Roma, ou seja a
libertação e unificação da Sacra Italia. Mas os símbolos
utilizados não são uniformes nem compatíveis e talvez
tenham sido usados com fins tácticos. Em memorando
de 1350 ao Arcebispo de Praga, Rienzo escreverá que
jamais acreditara que os príncipes alemães viessem a
Roma, mas que contava com a vinda dos tiranos de
Itália, o que lhe permitiria “enforcá-lo a todos igualmente
como lobos num só dia e à luz do sol”. Rienzi confessa que
agiu ora como louco ora como digno, ousado e hesitante,

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ingénuo e astuto, conforme a situação exigia, tendo


sempre em vista “abolir o erro da divisão e reduzir os
povos à unidade”. O jogo com símbolos políticos,
presente nos manifestos de Dante, transferiu-se agora
para o contexto da acção política.
As confissões de Rienzo revelam-no como um técnico
político para quem os símbolos são instrumentos de
poder, sendo possível que também sejam instrumentos
para convencer o Arcebispo e o Imperador das novas
intenções políticas de 1350, “mais movido pelo amor da
república do que pelo amor do império”. É preciso
reconhecer que, na área imperial, não é fácil transferir a
ideia do corpus mysticum para os corpos nacionais. Na
Itália e na Alemanha, a ideia de corpo místico nacional
está sobrecarregada com a tradição imperial romana e
germânica. As experiências de renovação espiritual
nestes países tende a transferir-se para toda a Europa. É
certo que a ideia imperial cristã também está presente
noutras nações, ressurgindo na ideia francesa da
validade universal dos valores civilizacionais franceses e
na convicção anglo-saxónica da validade universal das
formas políticas da Inglaterra e dos EUA. Mas, no
Ocidente, o sentimento imperial e a consciência
missionária sobrepõem-se ao sentimento nacional
separatista que é contrário à construção imperial
tradicional, enquanto na Itália e na Alemanha o
sentimento imperial vive em continuidade com a ideia
medieval imperial. Cola de Rienzo é um político da área
imperial que se sente obrigado a utilizar símbolos
imperiais para exprimir sentimentos nacionais.

e. O emissário dos Fraticelli


Após o fim da signoria em Roma, Rienzo retira-se em
1348 para um convento dos Fraticelli nos Abruzzi.
Reaparecerá depois em 1350 na corte do imperador
Carlos IV em Praga, inaugurando a sua segunda e

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derradeira fase política. Se procurarmos sistematizar a


variedade de fórmulas conflituosas que ocorrem nas seus
documentos deste período, vemos que Rienzo se
apresenta como um místico na tradição de Fiora mas que
tem o novo programa político pós-medieval de unificação
e devolução da Itália ao Império.
Em memorando então apresentado, compara-se a Cristo
pois ascendera ao tribunato aos 33 anos. Devido a erros
cometidos afastou-se voluntariamente do poder e a
penitenciar-se durante 33 meses em reparação da
blasfémia dos 33 anos. Em 15 de Setembro de 1350,
Rienzo regressava à vida política para cumprir, com a
ajuda de Cristo, o programa imperial. Tivera entretanto
uma revelação que o compelira a abandonar um projecto
autónomo, a entregar-se ao imperador de modo a
empreender a libertação de Itália como operarius et
mercenarius Cesaris. Quando terminasse a sua nova
tarefa de unificação de toda a península incluindo
Veneza, Sicília, Sardenha e Córsega, entregaria toda a
Itália pacificada ao Imperador, totam Italiam
obsequentem Cesari et pacificam.
A unificação seria feita pelo espírito através do
instrumento humano. (Epistolario, carta º32 de Agosto de
1350). Rienzo defende-se de não ser um enviado directo
do Espírito, uma incarnação. Referindo a oração Veni
Creator Spiritus, assinala que precisamos da evocação do
Espírito “sempre que endurecemos e envelhecemos no
pecado”. O saeculum senescens de Agostinho tem que ser
ultrapassado por uma renovação do Espírito, na senda
da filosofia joaquimita.
A intervenção pessoal de Rienzo teria sido revelada por
um Fra Angelo, eremita dos Abruzzi, (Epistolario, nº30).
Segundo esta profecia Deus planear a reforma universal
da Igreja. A instâncias de S. Domingos e S. Francisco, o
fim da Igreja foi adiado. Os males agravados da
residência dos pontífices em Avignon, trariam grandes
convulsões. As revoluções viriam com a restauração da

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santidade da Igreja e a inclusão dos Sarracenos na


comunidade dos fiéis. Um homem santo seria o
instrumento destas revoluções e operaria conjuntamente
com o imperador. A substância da profecia de Fra Angelo
não difere da visão de Dante de uma nova era sob um
dux e um dirigente espiritual.
4. Na segunda carta a Carlos IV (Epistolario, nº31) Rienzo
deixa na sombra a profecia como fonte de seu estatuto e
projecto e assume de novo o tribunato como a fonte de
autoridade para precursor da nova era. O império carecia
de um milagre para ser renovado e parece um milagre
que um homem pobre e obscuro, virum pauperem et
novum, venha salvar o império, tal como S. Francisco
salvou a Igreja romana. A reforma do império é acima de
tudo obra espiritual, opus spiritualis.
A comunidade institucional do orbe cristão quebrou-se
com o interregno e deslocação dos papas para Avinhão.
Que novo corpo místico tomaria o lugar da cristandade
imperial em desintegração? Na zona imperial, a sombra
da forte tradição imperial não permite criar estados
nacionais como no Ocidente. Uma solução abrangente
seria o aparecimento de uma figura paraclética, um dux
joaquimita como cabeça de um corpo místico europeu.
Rienzo adopta esta ideia mas rejeita o conflito com a
Igreja. O Terceiro Reino e o Evangelho Eterno de Fiora
não podem ser levados a sério. Através das profecias de
Fra Angelo, Rienzo ainda joga com a ideia da grande
reforma com que o pastor angelicus completará a reforma
e construirá o templo do Espírito Santo. Mas
aproxima-se da realidade ao comparar-se a S. Francisco,
crendo que a reforma da Igreja deveria ser
complementada pela reforma do império. E, finalmente, a
sua ideia política concentra-se na reforma nacional e
unificação da Itália. De qualquer modo, todos estes
sentimentos e ideias não formam uma sequência
cronológica nem sistemática. Coexistem e são utilizados
por Rienzo conforme as circunstâncias.

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f. Nacionalismo espiritual e unificação militar


Os projectos de Rienzo não se concretizaram. O
imperador enviou-o para Avignon. Em 1352 regressou a
Itália com o cardeal Albornoz e estabeleceu-se de novo
em Roma, sob os auspícios do papa. Em 1354 foi morto
pelos opositores. O fracasso político obscureceu a
importância dos elementos que soubera reunir;
joaquimismo, espiritualismo franciscano, a visão de
Dante, a ideia do corpo mysticum da sacra Italia. O seu
problema político será o mesmo de Maquiavel que
desespera da renovação espiritual tal como empreendida
pelo fracassado Savonarola, “profeta sem armas” em
Florença. Mas se as armas são necessárias à libertação,
mesmo um Maquiavel é capaz de ver que o Espírito é
essencial, como se depreende das suas observações
sobre o renascimento espiritual conseguido por S.
Francisco (Discorsi, III, 1) Na área imperial, as nações
crescerão através do espírito nacional e, quando o tempo
estiver maduro, a acção militar ultrapassará os
particularismos políticos.

[ Binder VI ] pp.427-589

[1] Die Berliner Romantik 1800-1814, Berlin 1921


[2] (A Study of History, vol.III, pp.341 e ss)

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