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entrevista densa e mágica miguel nicolelis

camila martins, michaella pivetti, moriti neto, vinícius souto, léo arcoverde, joão de barros, thiago domenici,
roberto manera, mylton severiano l fotos eduardo zappia

A CIÊNCIA
PODE SER UM
AGENTE DE
TRANSFORMAÇÃO
SOCIAL
Em janeiro de 2008, uma notícia-bomba correu mundo. Uma macaca,
a partir de um laboratório na Carolina do Norte, EUA, usando
a “força do pensamento”, fez um robô andar no Japão. O experimento joga
para um futuro não muito longínquo a possibilidade de devolver
os movimentos a tetraplégicos. Proeza do neurocientista Miguel Nicolelis,
um paulistano e palmeirense roxo, citado como forte candidato ao prêmio
Nobel em sua área, que a cada passo faz questão de declarar duas paixões:
o futebol e o Brasil. Especialmente o povo brasileiro, cujo talento,
diz ele, só precisa de oportunidade para se manifestar. Não à toa,
o humanista Nicolelis escolheu uma região pobre do país, o Nordeste,
para implantar o primeiro instituto de ciências com o qual ele pretende
iniciar uma rede que atenderá mais de 1 milhão de crianças.
thiago Domenici Vou
fazer uma provocação: o prego que existe, pagam você para ser mole- entender o que o cérebro faz, que é a grande
senhor acredita em Deus? que, experimentar, se divertir. fronteira da biologia hoje.
Não. O único divino que eu acredito é o
Ademir da Guia [craque do Palmeiras nos Mylton Severiano Na
infância a questão de Marcos Zibordi Era
esse confronto que você
anos 1960-70, apelidado de Divino pela crô- Deus não existia? tinha na faculdade?
nica esportiva]. Aliás, tenho uma ótima rela- A família era muito religiosa, mas minha A universidade brasileira ainda vive da hie-
ção com Deus: ele não acredita em mim e eu avó, grande inspiradora intelectual, dona Li- rarquia, da hipótese de que quem está à fren-
não acredito nele. gia Maria, era uma agnóstica em dúvida. te da classe sabe mais. E ainda não permite um
canal de desafio. O que aprendi muito nos EUA
Thiago Domenici Posto isso, vamos à infância. João de Barros Você fez primeira comunhão? é que se você está dando uma aula, e o menino
Foi excelente. Nasci na Bela Vista, na par- Foi um trauma, foi no dia que o Palmeiras do colegial que está na universidade fala que
te do Bixiga, mas a família mudou pra Moe- ia disputar o título com o São Paulo, em 1971, você está falando besteira, “não é assim, é x, y,
ma e cresci lá. Nossa grande diversão era ver e foi roubado no gol do Leivinha, de cabeça: o z”, você tem que parar e falar “tem razão”. Esse
avião pousar em Congonhas. Armando Marques anulou o gol. Era pra eu ir canal de comunicação bilateral não existia aqui.
ao jogo, e minha mãe entre Deus e o Palmei- Ainda vivemos do saber da autoridade.
Marcos Zibordi Você é filho único? ras: aí a ruptura foi clara com Deus. Se exis-
Tenho uma irmã. Tem um monte de car- te o ser que criou tudo, não vai ser benevolen- Mylton Severiano É cultural?
camano na família de descendência italiana e te pra deixar um moleque de 10 anos assistir Cultural, o “professor-doutor”. Pelo títu-
grega. Meu pai Angelo Brasil Nicolelis é juiz o jogo do Palmeiras? lo assume-se que você é autoridade naquela
aposentado, e minha mãe é escritora, Giselda área, mas nem sempre era verdade. Muitos
Laporta Nicolelis, na literatura infantil é co- Mylton Severiano Quando você foi pro curso chegaram a posições de altíssimo destaque.
nhecida, razão pela qual fui embora do Brasil, superior?
senão seria o filho da Giselda o resto da vida. Entrei na faculdade para ser neurocirur- Mylton Severiano Aquele
que acabou com
gião e descobri que era mais ou menos traba- Manguinhos: Rocha Lagoa?
Marcos Zibordi Estudou em colégio público? lhar com encanamento o resto da vida – coisa Não conheço. Manguinhos é a resistência
Estudei no primeiro colégio de Moema. fundamental, quando você quiser um neuroci- da ciência nacional. Maravilhosa. A gente não
Depois, no Bandeirantes. rurgião, o cara tem que ser bom, mas não era conhece o patrimônio científico do Brasil.
pra mim. Percebi que era possível fazer o que
João de Barros O que te chamou atenção na fazia no Bandeirantes profissionalmente. Thiago Domenici Como o quê?
biologia? Pouca gente conhece o Carlos Chagas e o
No Bandeirantes comecei a tomar conta- Vinícius Souto Algum professor teve papel trabalho dele é um dos poucos exemplos da
to com essa visão humanista da biologia, en- importante? história da infectologia onde o cara descobriu
tender a razão pela qual a gente é o que é, de Vários, mas o que me inspirou é o funda- a doença, o agente e o vetor. É raro encontrar
onde a gente veio, tomar contato com a teo- dor da neurociência brasileira, Cesar Timo-Ia- um pesquisador que conseguiu ir atrás de to-
ria da evolução, perceber que existe uma be- ria, um cientista humanista. dos os passos de uma doença que na América
leza – é pena que a palavra milagre já foi ocu- do Sul e na África é importante.
pada por outra “empresa”, mas é fascinante João de Barros Como
se dá esse confronto, do
poder descobrir a riqueza e complexidade das cientista humanista com o “de resultado”? Camila Martins Não se reconhece o brasileiro
coisas e o fato de ser inteligível e explicável. E A ciência hoje é um grande negócio, ati- por quê?
o Bandeirantes tinha laboratórios raros. Você vidade extremamente competitiva. Mas ain- Não temos a cultura da ação científica como
podia fazer alguma coisa que não estava no da mantém esse fascínio de dar a chance de patrimônio do país. Todo o mundo conhece
script. Aí percebi que ciência é o melhor em- perseguir o desconhecido, no meu caso tentar Machado de Assis, artistas, jogadores, econo-

maio 2008 caros amigos 31


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“A ciência não é to que a gente está navegando, mapeia onde a


gente está. Para onde está se dirigindo, quais
cada célula produz um som peculiar, cada re-
gião do cérebro tem um som. Pouca gente

só para ser feita as coordenadas. Esse é meu grande debate fi-


losófico com meus colegas hoje. Todo o mun-
sabe. A gente aprende a saber onde “está” no
cérebro, não só pelas coordenadas tridimen-
em universidade, do pensa o cérebro como um órgão que inter-
preta o mundo. Acredito que o cérebro cria o
sionais, mas pelo som. Se tiver um som de pi-
poca estalando, eu talvez te diga que lugar do
é para se abrir modelo do mundo, e ele só confirma ou nega
esse modelo continuamente. Essas são duas
cérebro é, porque passei 20 anos ouvindo.

para o mundo” escolas que estão batendo de frente. Como Michaella Pivetti O cérebro tem visão de mundo?
bom palmeirense gosto de dizer que estamos Minha teoria é que, ao longo do desenvol-
começando a ganhar o jogo. Levou 100 anos vimento, você vai mapeando a estatística do
mistas. Não faz parte do nosso ethos enquanto para as pessoas acreditarem que o cérebro mundo ao redor, sua interação com o mundo;
cultura brasileira delinear o que a inteligência tem um ponto de vista interno, dele, próprio, essa estatística vai sendo incorporada no cé-
criou na ciência. O Santos Dumont é o maior criado ao longo da nossa vida. Cada um de nós rebro de tal maneira que cria um modelo de
cientista que o Brasil já criou, o maior neuro- cria esse modelo do mundo. realidade. Por exemplo, você tem um paciente
cientista o maior inventor. E nunca foi para a esquizofrênico e certas coisas acontecem no
escola, então foi quase que repudiado nos li- Marcos Zibordi Seria
mais forte que cérebro, esse modelo de realidade sai de foco.
vros da história da ciência brasileira porque predisposição genética? O paciente tem alucinações, pensa que o es-
nunca teve diploma. A genética nos dá um arcabouço, o come- tão perseguindo, ouve sons. Se você examinar
ço de cada um de nós é mais ou menos o mes- o cérebro dele, vai ver que o córtex auditivo,
Mylton Severiano Você falou Santos Dumont mo, o cérebro define quem cada um de nós é. por exemplo, está sendo ativado sem ter ne-
neurocientista? Acredito que ele gera um modelo, tanto que, nhum som. Está vindo de dentro dele. Estou
Sim, um experimento que fiz recentemente se você perde uma mão, o braço, durante mui- desenvolvendo essa teoria, explicando quais
demonstrou que ele estava certo. Fiz sem que- to tempo quase 90 por cento dos pacientes princípios regem a criação de um modelo in-
rer, ele fez de propósito. Ele tinha um problema desenvolve um fenômeno chamado “membro terno do cérebro sobre o mundo. É como olhar
claro. Tinha vários controles que precisava co- fantasma”, pior do que as pessoas comentam, o mundo do ponto de vista do cérebro, esse é
mandar, a inclinação da asa, ele inventou esta- porque 80 por cento têm o membro doloroso – nosso embate. Por exemplo, você quer enten-
bilizadores vertical, horizontal, o flape. Só que sentem dor numa parte que não existe mais. der meu cérebro. O que faz? Manda um sinal,
não existia botão e luzinha, pra dizer “isso aqui visual, tátil, auditivo, meu cérebro interpre-
não está funcionando, puxe esta alavanca”. Só Thiago Domenici Dentro
dessa briga de ta, você mede aqui de fora como é que reagiu,
existia polia, corda e alavanca. Mas o número de escolas, o que mostra que vocês estão mas esse é o seu ponto de vista, de quem está
alavancas era grande para ele dar conta. Então, ganhando o jogo? tentando entender aqui de fora como funcio-
em certos aviões dele, ele amarrava as cordas Os estudos com robôs. Começamos em na. Se você pegar um animal ou ser humano
no terno, de maneira que, se mexesse pedaços 2003 e temos publicado trabalhos que confir- anestesiado e fizer o que falei, o cérebro te dá
do corpo, corrigia erros de elevação. Percebeu mam os experimentos originais e agora outras uma resposta – o que levou um monte de gen-
que incorporava o avião. Percebeu algo que nós pessoas reproduziram nosso achado. Demons- te a pensar que o cérebro é só um decodifica-
demonstramos três anos atrás. tramos que, se você puser o cérebro em contro- dor de sinais. Foi a doutrina durante o século
le de um membro artificial, uma prótese mecâ- 20 do sistema nervoso: ele decompõe o sinal
Mylton Severiano Isso
tem a ver com o nica, mesmo a 4 mil quilômetros de distância, e analisa em detalhe a grandeza física que re-
McLuhan, que fala da extensão do corpo? mas se conseguir fazer aquele braço se mexer cebeu. Quando a gente começou a olhar em
Exato. Nós demonstramos que o cérebro em 200 milissegundos, que é o tempo que leva cérebros despertos em animais, e agora em
assimila as ferramentas que usamos diaria- para o cérebro mexer o braço biológico, e se cérebros humanos, começou a ver que o cé-
mente. Sempre uso o exemplo do jogador de o braço mecânico fizer o movimento, o que o rebro já está computando um monte de coi-
tênis. Para o cérebro a raquete, depois de cérebro quiser que ele faça, o cérebro assimila sa antes mesmo de você mandar aquele sinal.
anos de prática, deixa de ser uma ferramenta aquele braço como uma parte do corpo. Então Ele já criou uma expectativa do que você vai
para ser uma extensão do braço. Então para mostramos as células do cérebro se dividindo fi- fazer, ou do que vai acontecer daqui a cem mi-
os mapas que temos dentro do cérebro, que siologicamente, funcionalmente, a sua fidelida- lissegundos, duzentos. E na minha visão ele
definem quem nós somos, aquele braço ago- de funcional se dividindo entre os dois braços está só, basicamente, testando essa hipótese.
ra tem dois metros de comprimento e termi- fisiológicos e o novo braço robótico como se o Se é de acordo com o modelo, reage de manei-
na num oval. O Santos Dumont percebeu isso animal tivesse ganhado um terceiro braço. ra tranqüila. Se não tem nada a ver com o que
empiricamente. O pessoal olhava e via um ele estava esperando, gera um sinal de alerta.
cara se contorcendo, achava que ele tava ten- Mylton Severiano Isso foi feito com animais. O doutor César trabalhou nisso, um sinal de
do uma crise epilética, mas na realidade ele Foi feito com macacos e agora temos evi- alerta que fala “opa, tenho que atualizar o mo-
estava usando o corpo – o avião era um peda- dências que acontece em seres humanos. delo porque a minha hipótese não foi...”
ço dele. Escrevi uma vez uma pequena histó-
ria dele, “o homem que virou avião”. Marcos Zibordi Vocês não chegaram a testar Mylton Severiano Mais
explicadamente, vamos
em humanos? dizer, eu falo “Fulano, me passa...” e ele
Roberto Manera O
cérebro dele substituiria o Não, nós publicamos um trabalho em 2004 me dá os óculos, mas não eram os óculos...
radar de navegação? com parkinsonianos que estavam sendo ope- É que 70 milhões de vezes antes você já pe-
O cérebro dele era um giroscópio. Ele tinha rados e criamos um eletrodo; quando você diu seus óculos. O cérebro é um agente ativo,
uma noção de espaço rara. Existem áreas do está operando o cérebro de alguém, é treina- não é um decodificador passivo, ele não é um
nosso cérebro que codificam onde estamos. do pelo ouvido, você ouve o cérebro, as célu- computador. É um criador da realidade, da
Uma delas: o hipocampo, que, a cada momen- las, que se comunicam com eletricidade; mas sua realidade. Você pode ver o Palmeiras tru-

32 caros amigos maio 2008


cidar o São Paulo e achar que foi uma injusti- nisso nos Estados Unidos”. Lendo uma Scien- quinze anos sugerindo que a unidade funcio-
ça, eu vou achar que foi... ce, onde põem anúncios para recrutar cientis- nal do cérebro não é o neurônio, mas uma po-
tas, tinha um cara na Filadélfia pedindo exata- pulação de neurônios, que num momento vota
Marcos Zibordi Deus? mente o que eu tinha, a idéia. Só que era falso, por uma decisão, e depois eles se dissociam.
Exato. É que nem a CPI da Tapioca, o cara ele tinha posto porque queria dar o greencard
compra uma tapioca e os caras acham que ele [visto de permanência] para um coreano que Mylton Severiano São 12 bilhões mesmo?
anexou a Bolívia. Criam uma celeuma. trabalhava no laboratório dele, criou o anúncio Na estimativa mais moderna são 100 bi-
mais maluco, e o único cara que “apareceu” era lhões, mas é mais. Tem tanto neurônio no cé-
Marcos Zibordi O funcionamento é o tempo o coreano. Mas eu mandei uma carta de vinte rebro como estrelas no universo. É um uni-
todo? páginas, explicando meu plano, e acabei com verso. Que vem do cérebro mesmo, é a poeira
Mesmo quando você está dormindo, sonhan- a alegria do coreano. Cheguei no escritório do da estrela que gerou ele. O universo é um ovo,
do, uma fase importantíssima. Nós temos vários John Chapin, meu amigo até hoje, ele disse começa com o big bang, aí todos os átomos
trabalhos, outros grupos, sugerindo que suas “puxa, nunca imaginei que alguém ia mandar se espalharam e calhou de no estádio do Par-
memórias estão sendo consolidadas durante o um plano desse, na realidade esse anúncio era que Antártica se convergir numa coisa cha-
sonho, sendo reprogramadas. Mesmo no sono o furado”. E eu fui pra Filadélfia. mada cérebro. Um ovo, fechou o ciclo. Demo-
cérebro está processando informação. rou um pouquinho, não? 15 bilhões de anos.
Mylton Severiano Mas
por que não era Ele provavelmente obedece a princípios pró-
Michaella Pivetti Uma noite sem dormir perde- possível examinar grupos de neurônios? ximos. Esse reconciliar nunca foi feito, as pa-
se memória? Tecnologicamente existiam problemas, e zes entre de onde a gente veio e pra onde vai,
Nós estudamos hoje se adquirir informa- resistência conceitual da comunidade. enquanto espécie, nunca se fizeram. E ago-
ção antes de dormir é melhor do que adquirir ra estamos começando a olhar pro cérebro de
e não dormir. As crianças vão na escola às seis, Mylton Severiano Essa recusa não é maneira mais holística, mais completa, e não
sete da manhã: quem disse que esse é o me- ideológica? só com uma célula, outra célula...
lhor horário para se aprender? Uma série de Não, era do medo do diferente. A ciência
estudos diz que para alguns é o pior horário. também é conservadora. Marcos Zibordi Qual
foi o avanço que nos
permitiu dar esse salto?
Mylton Severiano O
Brizola falava que Mylton Severiano Então é ideológico, não? O grande avanço foi a criação dessas ma-
precisa cuidar do cérebro da criança De certa maneira, sim. A resposta do cara trizes de eletrodos num laboratório do John
até os seis anos, depois disso “queima o era “será que precisamos de tecnologia da era Chapin, filamentos do diâmetro de fio de ca-
computador”. É mesmo? espacial para estudar o cérebro?”, e a nossa belo, flexíveis, que você consegue inserir no
É um período crítico. Por isso na nos- resposta foi “sim”, e o cara ficou uma fera, não cérebro, sem que danifique. Eles ficam lá,
sa escola, acho que é uma das primeiras do ganhamos um tostão. por meses, a ponta fica do lado de várias cé-
mundo, o currículo começa intra-útero. Es- lulas, e cada ponta registra as correntes elé-
tamos trazendo as grávidas para a escola, João de Barros Por
que se batia tanto nessa tricas que vêm de cada uma dessas células.
em Natal, em Macaíba. Um número razoá- de estudar um neurônio só?
vel é adolescente e a criança quando nasce Porque neurônio é considerado – outra coi- Marcos Zibordi Dá pra pôr?
já vai entrar no currículo, vai ser vista como sa que está mudando –classicamente como a Eu já pus 760 na cabeça de um macaco. Aí
um ser integral. Um aprendizado funda- unidade funcional do cérebro. No fígado é o é o lado neurocirúrgico, é fácil, você abre, mas
mental para se criar um ser crítico, cons- hepatócito, no rim é o nefron, no osso é o os- as aberturas são pequenas craniotomias e só
ciente, que consiga exercer seu potencial teócito, a teoria celular... entram dois milímetros no cérebro. Isso devo
mental na plenitude, começa intra-útero. muito à faculdade: a destreza manual de fazer
Mylton Severiano Uma visão burocrática? isso é rara nas faculdades americanas, é um
Léo Arcoverde E
porque você foi para os Era um dogma, acentuado porque o pai da treinamento motor muito bom aqui. O segun-
Estados Unidos? neurociência, um espanhol, um gênio, Santia- do foi: “bom, você tem um terabyte a cada meia
Fui para os EUA em 1989. Terminei meu go Ramón y Cajal, Prêmio Nobel em 1906 [fi- hora, como você faz?” Como pôr isso em matri-
doutorado e queria fazer algo que aqui não siologia e medicina], demonstrou que o cére- zes de computadores? Tem um supercomputa-
existia, e não existia lá. Mas um cara, uma bro é formado por células, separadas por um dor analisando o cérebro, os sinais que vêm, e
coincidência, tinha posto anúncio na revis- espaço muito restrito, não como o coração, aí como você analisa esses dados? Não havia
ta Science procurando uma pessoa para fazer onde as células estão interligadas eletrotoni- ferramentas matemáticas para olhar uma ma-
exatamente o que eu queria: registrar gran- camente. Isso foi um troço. Ele criou a Teoria triz de dados elétricos do cérebro.
des populações de neurônios. Os astrônomos Celular do Cérebro. Só que nos últimos dez,
têm uma analogia disso. A astronomia nasceu quinze anos, a gente tem visto que uma cé- Thiago Domenici Vocês criaram um software?
com um telescópio, o cara olhava para uma es- lula no cérebro é que nem um dado que você É, adaptamos métodos estatísticos. Por
trela. Nos anos 1960, se percebeu que você po- joga. Num dado dá para ter de um até seis, a quê? Tinha um prêmio Nobel, Simon Davi Sil-
dia estudar o universo não só com luz no es- célula é um ou zero: ou dispara ou não dispa-
pectro visível, mas galáxias, estrelas, medindo ra. Mas ela é um elemento estatístico. Um neu-
fontes de ondas de rádio do universo. Estava rônio não define nenhum comportamento por
a ler sobre isso e perguntei para o Cesar por
que a gente não podia fazer isso em neuroci-
si só. O cérebro é uma democracia, precisa de
um grande número de votos estatísticos – são
“Ciência é
ência. Em vez de olhar um neurônio de cada
vez, criar uma matriz, e ver centenas de eletro-
meio ruidosos – pra criar um comportamento
determinístico. Isso durante muito tempo foi
uma questão
dos simultaneamente. O Cesar falou “aqui não
tem jeito, mas deve ter algum doido pensando
difícil de ser assimilado na comunidade neu-
rocientífica. Tenho batido de frente há quase
de soberania
nacional”
entrevista densa e mágica miguel nicolelis

ber, que dizia que se ele precisava de esta- se entendeu ou não o que a gente quis dizer. de exoesqueleto: um robô que se veste, com
tística para ver um fenômeno neurofisiológi- Recentemente dois macacos responderam que motores, sensores, e fazer o cérebro contro-
co, o fenômeno não existia. Ele simplesmente entenderam comportamentalmente. lar esse exoesqueleto; daí você vai “carregar”
não acreditava em estatística. É uma forma- o corpo. É como criar um besouro. O besou-
ção muito dogmática do ponto de vista bioló- Thiago Domenici Mas como? ro é uma carapaça que se mexe com um corpo
gico puro – ou é branco ou é preto. E o que a O macaco está no escuro, tem duas portas; todo molenga dentro. Vou ter um corpo para-
gente propôs foi: vamos olhar o cérebro como uma tem uma fruta, outra porta não tem nada. lisado, sendo carregado por esse exoesquele-
uma máquina estatística, e não como a gente Nós mandamos a mensagem “a fruta está na to que será controlado diretamente pelo cére-
olhou durante cem anos. E começou a dar re- porta direita”, ele foi lá e abriu; a outra, “a fru- bro. Não só permitiria que a pessoa retomasse
sultado, a gente começou a prever em tempos ta está na porta esquerda”, foi lá, a fruta não os movimentos, mas forneceria uma terapia
reais o que o ratinho estava pensando, coisa está, ele ficou quieto. Começamos a perceber para as partes paralisadas, osso, massa mus-
simples. E a boa idéia foi essa. Dez anos atrás que a mensagem estava sendo decifrada. cular, porque você vai gerar movimento e ten-
estávamos eu e o John na periferia da Fila- tar reverter um pouco da atonia e da atrofia.
délfia, comendo um sanduíche típico, Cheese Roberto Manera Mas em que linguagem? E, a longo prazo, se funcionar, o passo final é
Steak, num bar de caminhoneiro, falando de Eletricidade. É um padrão de pulsos elétri- devolver esses sinais que vêm do cérebro para
cérebro de rato, os caras olhando para nós, e cos que variam no tempo e no espaço. Um pa- a maquinaria biológica sem o exoesqueleto, aí
tivemos a idéia de ligar o cérebro a um robô. drão chamado espaço temporal. é difícil, no momento é complicado. Inventa-
Provamos do ponto de vista quantitativo que, mos uma prótese de locomoção onde o cére-
se a nossa teoria tinha algum mérito, aquele Roberto Manera Estão
conseguindo provar bro do macaco na Carolina do Norte coman-
bicho ia conseguir pensar, nós íamos conse- que meu cachorro, por exemplo, é mais dou um robô no Japão em tempo real. O robô
guir ler o pensamento e fazer um robô se me- inteligente que o Maluf, como acho que é? andou de acordo com o comando que veio do
xer. Quer dizer, estávamos pegando um sinal Esse experimento eu não realizei. O cachor- cérebro do macaco e mandou de volta os si-
do jeito que é produzido e criando um modelo ro tem um grau de inteligência e de consciên- nais das pernas andando.
que tentava imitar o que o cérebro faz, para cia. A gente não sabe qual é o horizonte dessa
fazer o movimento de um braço artificial ser o consciência, mas ele provavelmente tem mais Mylton Severiano Quer
dizer que isso que
mesmo do braço biológico. Foi aí que nós cria- senso de humanidade do que certas figuras. vocês estão fazendo já está obsoleto?
mos essa interface cérebro-máquina. Na nossa cabeça já está. Mas isso levou dez
Roberto Manera À
luz da neurociência anos. E nos próximos dez vamos demonstrar
Camila Martins Isso também é inteligência moderna Freud descobriu ou inventou o os dois primeiros: fazer gente recobrar a mo-
artificial? inconsciente? bilidade com a prótese ou com o exoesqueleto.
A inteligência artificial é classicamente uma Tenho dúvidas, mas ele formulou uma hi- Mas a ciência é muito não-linear. Sempre apa-
tentativa de reproduzir as decisões humanas pótese de diferentes estados de consciência, é rece um louco que tem uma idéia e acelera.
num nível mais cognitivo, um nível mais alto. chocante, até então o que se debatia não era a
Nós estamos indo lá embaixo no sinal elétri- consciência “consciente”, era a verbal e a lógica. Léo Arcoverde Quando surgiu a história do
co mesmo, e tentando gerar coisas que gerem Ele criou uma visão da mente com outros esta- Instituto?
movimento, ou como nós acabamos de fazer, dos de consciência não-verbais e não facilmen- Sempre tive a idéia de voltar e fazer alguma
mas não publicamos ainda: mandar mensa- te acessíveis. Uma hipótese que ainda está em coisa no Brasil. Era preciso demonstrar que al-
gens de volta para o cérebro e ver se o cérebro aberto. Se Freud aparecesse hoje numa conven- guém podia fazer ciência fora e trazer de vol-
entende, conversar com ele. A minha macaca ção, seria um “neurocientista computacional”, ta. Comecei a ir para o Nordeste. Tinha a sen-
favorita é a Aurora; eu dizia que estamos come- um formulador de teorias ou de hipóteses que sação que até o impacto era necessário para
çando a conversar com a Aurora, mas não ver- gente como eu, experimentalista, ia levantar e demonstrar para o Brasil quão fundamental a
balmente, nós estávamos mandando um sinal falar “muito bonito, mas cadê o dado?” ciência é para o desenvolvimento não só econô-
pro cérebro e esperando que ela respondesse mico, mas principalmente educacional e social
Thiago Domenici O
que você está pesquisando – os exemplos da Coréia, Taiwan: o que mudou
pressupõe que quadriplégicos possam esses países foi o redirecionamento do proces-
voltar a ter movimentos? so educacional. Era preciso ir para um lugar
A hipótese é: o problema do quadriplégico é onde cientista nenhum iria e provar que o ta-
“Quando que o cérebro continua produzindo comandos lento científico brasileiro existe em qualquer
motores, só que o sinal não consegue chegar lugar, no Capão Redondo como em Macaíba. O
apresentei o nos músculos porque houve uma interrupção que não existe é oportunidade para esse talen-

projeto Natal das vias de comunicação. O que fizemos foi de-


monstrar o princípio de que se pode criar um
to aflorar. Quer dizer, você não oferece ao po-
tencial humano brasileiro nem o método nem

em Davos, ouvi desvio, pegar o sinal direto do cérebro, usar


um chip para decodificar e mandar para um
as oportunidades para que o método seja apli-
cado. Para que as pessoas possam perseguir
falar do Brasil braço mecânico, que teria como finalidade re-
produzir a intenção motora da pessoa – como
sua imaginação, porque ciência é isso, é ter
uma idéia, achar que vai funcionar e ir atrás.
o tempo inteiro. o braço faria se pudesse se mexer. Num pri-
meiro momento, a gente usa uma prótese me-
Daí que você vê quem é cientista – não é diplo-
ma, não é passar na banca, não é ter título. É
No outro dia, cânica para demonstrar o conceito e estamos
chegando muito fácil numa demonstração clí-
o cara que tem uma idéia criativa, aplica mé-
todos rigorosos para testar e que persiste. No-
nos jornais nica convincente. Ao mesmo tempo descobri- venta por cento da ciência é persistência.

brasileiros, nem
mos que, em vez de usar a prótese, podemos
revestir o corpo com algo que a gente chama Vinícius Souto Como o pessoal de fora

uma palavra.”
“Era preciso
enxerga sua experiência no Brasil? explodindo, não? Eu coloquei na minha porta provar que o
talento científico
O pessoal está atônito. Quando apresen- na Universidade de Duke: 95 milhões de votos
tei o projeto de Natal em Davos, na Suíça, em contados em quatro horas. Qualquer semelhan-
janeiro, foi curioso. Estava do lado de colu-
nistas, um deles famoso aqui, ouvindo gente
ça é pura coincidência. Eu me tornei mais bra-
sileiro vivendo fora daqui. E acho inconcebível brasileiro
falar do Brasil o tempo inteiro, ia no compu-
tador na manhã seguinte, abria nos jornais de
que nossas crianças cresçam sem apreciar a di-
ferença entre patriotismo barato e verdadeiro
existe em
São Paulo e ninguém falava nada. Vi um eco-
nomista argentino falar bem do Brasil. Cho-
amor pelo Brasil. Têm direito ao acesso à in-
formação legítima, honesta e limpa. Para saber
qualquer lugar,
rando, emocionado, “é um exemplo, é um país
que está dando um show”. No dia seguinte,
que país é, quais são os problemas, mas quais
são as maravilhas do Brasil... [chora novamen-
no Capão
não tinha uma palavra. No meu dia, vou fa- te]. Tem duas piadas que me deixam possesso. Redondo como
lar sobre um projeto educacional, mostrei: “A Uma é quando alguém fala, aqui, que “isto é
ciência não é só para ser feita em universida- coisa de primeiro mundo”. Que primeiro mun- em Macaíba.”
de, ficar em prédio fechado, é para se abrir do? E a segunda é que “Deus criou esse mara-
para o mundo.” Tinha acabado de sair uma vilhoso país, mas deixa ver o povinho que vou
carta que assinei com o presidente, primeira pôr lá”. É o ranço do coronelismo. É inserir no
vez que um presidente de qualquer país assi- genoma nacional o complexo de inferioridade. dade, de criatividade e mostrar para elas que
nou um editorial na Scientific American. O Santos Dumont não pensou que não era do o céu era o limite. E quando vim falar com cer-
primeiro mundo quando voou, não pensou no tas pessoas aqui em São Paulo, falaram: “Não
Mylton Severiano Quem? O Lula? “povinho”, ele foi e fez. E acho que o que nós vai sair nada.”
É. Não saiu em lugar nenhum. Estava na não sabemos é que existem milhões de outros
capa da maior revista de ciência do mundo, o Brasis que estão se fazendo está lá em Resen- Thiago Domenici Pessoas do governo?
presidente, o ministro da Educação, se com- de, em Lages, no Seridó, no sertão da Paraíba, Não, cientistas: “Você está louco, não tem
prometendo a levar o currículo de educação em Soares, em lugares que a gente nem consi- massa crítica, não vai sair do lugar”, e hoje você
científica infanto-juvenil desenvolvido em Na- dera como parte da gente. E aqui nós não apre- vê criança que antes queria ser jogador de fute-
tal para 1 milhão de crianças brasileiras. Mos- ciamos isso. bol dizer que quer ser químico. Estão montan-
trei as crianças montando robô, usando teles- do robô, outro programando chip aos 12 anos.
cópio, medindo lua de Júpiter. Thiago Domenici Quando você mostrou o
projeto ao Lula? Vinícius Souto Quais as principais
Mylton Severiano Lá em Natal? Foi genial. Estávamos no meu escritório, características?
Em Macaíba, na periferia de Natal. Foi um na minha casa, assistindo televisão, na Caro- O projeto tem um centro de pesquisa onde
choque. Mas só fora daqui saiu nos jornais, lina do Norte. Vejo o discurso de vitória de começamos a trazer brasileiros que estavam
saiu na Scientific American, na Science, na um cara que conheci rapidamente, que veio fora, neurocientistas, como o Sidarta. Jovens
Nature, nas grandes revistas do mundo. da miséria e virou presidente do Brasil, e está que estavam fora ou pelo Brasil sem conse-
anunciando que quer construir outro país. Vi- guir penetrar no sistema acadêmico público,
Roberto Manera Qual é a parte da grande rei pro Sidarta, cientista meu amigo: “É ago- levamos pra lá e o núcleo Coração, um cen-
imprensa nisso? ra.” Escrevemos, fizemos contato. Em 2002. tro de pesquisa ligado com centros de ponta
Ah, omissão. Cheguei à conclusão que hoje Vim em março de 2003 e fui me encontrar do mundo inteiro. Em volta criamos o projeto
no Brasil é difícil falar bem do Brasil. Existe com ele em 2004. Declarei a intenção de criar educacional, e criamos um centro de saúde de
uma cultura de se confundir o país com quem o projeto no lugar em que cientista nenhum atendimento à mulher e à criança, para gesta-
está no governo. E a gente não pode contar iria, e se funcionasse em Macaíba iria fun- ção de alto risco; câncer da mulher; e proble-
boas notícias. É uma coisa meio assustadora, cionar em qualquer lugar. Trouxe quarenta mas de neuropediatria. Agora estamos cons-
não consigo entender. neurocientistas do mundo inteiro para Natal, truindo um Campus do Cérebro, para 5 mil
para o simpósio que inaugurou a idéia, em fe- crianças, tempo integral, é essa que vai come-
Mylton Severiano Porque o presidente não é vereiro de 2004. Recebi um convite para ir ver çar desde a gravidez, o Instituto propriamen-
doutor? o presidente. Foi emocionante, tinha dado ca- te dito, e vamos começar ações de integração
Pode ser. Mas acho que o buraco é mais em- rona para ele uma vez, no sindicato dos médi- com a comunidade. Queremos criar um pólo
baixo: não podia dar certo. O governo dele ti- cos, quer dizer, um cara que contei piada do de desenvolvimento industrial, tecnológico,
nha de ser o pior da história do Brasil. E se você Palmeiras e do Corinthians era presidente da biotecnologia, porque o semi-árido é o único
analisar os fatos friamente e objetivamente, não República. E ele mandou todo o mundo sair bioma naturalmente brasileiro, ninguém tem
é. Se você passar duas semanas no interior do da sala, me deu um abraço e disse: “Vai em algo como a caatinga, e nós não devotamos
Rio Grande do Norte, da Paraíba, é outro Bra- frente que eu estou aqui.” [Chora novamen- nem em prosa, nem em verso, nem em orça-
sil. A gente respira aquele país que, quando eu te.] E nós fomos em frente. mento o suficiente para estudar isso. Preci-
era criança, me diziam que nunca seria possí- sa ir lá, tirar foto, conversar com o povo, isso
vel se fazer. [Nesse momento Nicolelis chora] Mylton Severiano Governo
federal, estadual e ninguém quer fazer porque dá trabalho.
E é chocante, você só consegue falar sobre isso municipal, você tem apoio?
fora daqui. O Brasil, de certa maneira, carrega O maior apoio foi do governo federal, mas Marcos Zibordi Quanto custa uma coisa
hoje a responsabilidade de ser uma das poucas o mais relevante é que a gente não só conse- dessa?
boas esperanças no mundo. De preservar seu guiu construir isso, como conseguimos pegar Esse projeto custa muito dinheiro. Até ago-
ambiente, construir um país honesto, que cres- mil crianças da rede pública, de escolas que as ra, com tudo que arrecadamos fora, setenta
ça não à custa de outro, mas à custa do seu pró- pessoas não davam esperança alguma, colo- por cento é privado: doações, contratos de pes-
prio trabalho, um país que tem uma democracia car em um ambiente de laboratório, de liber- quisa, a Duke University me deu um contrato,

maio 2008 caros amigos 35


entrevista densa e mágica miguel nicolelis

doou equipamento, dinheiro. Está mudando o Marcos Zibordi A


comunidade científica uma discussão, e a sociedade precisa fazer
perfil do lugar. O Campus do Cérebro vai custar criticou sua proposta, como se essa discussão munida do conhecimento da
42 milhões de reais. Só que os dinheiros não es- você estivesse descredibilizando a informação. A ciência é uma questão estraté-
tão todos aqui, mas estão empenhados. neurociência brasileira. gica, só que não recebe do ponto de vista po-
Nunca me preocupei com isso. Sou cria do lítico a devida relevância. A questão das célu-
pai da neurociência brasileira. Seria impossí- las embrionárias não é religiosa, uma questão
Léo Arcoverde E os educadores? vel, a não ser que eu perdesse o lóbulo pré- técnica, também estratégica.
Recrutamos professores formados pelas frontal, esquecer de onde vim. Prova maior é
universidades do Nordeste, e fizemos um re- que voltei, não precisava voltar. Esse negó- Moriti Neto O
governo George Bush é
treinamento, agora estamos trazendo profes- cio que não tem dinheiro, dinheiro tem, é só ultraconservador. A comunidade
sores da rede pública a participar dos labora- ir atrás e fazer algo que justifique o dinheiro. científica enfrentou dificuldades?
tórios. O primeiro sinal que o projeto estava A única pessoa que levantou questões, quan- Estou há vinte anos nos Estados Unidos: é
funcionado é que os professores da rede pú- do interpelada para provar, fugiu da rinha. E o período mais difícil e opressor que já passei
blica começaram a comentar que estava até tudo o que veio a público aqui foi feito de ma- na América. Você sente que não tem liberdade
criando problema na escola, “seus alunos fa- neira aberta. O governo federal foi simpático à de manifestar sua opinião. E sinto que o Bra-
zem muita pergunta”... Essas crianças têm nossa causa? Claro. Por que não poderia ser? sil caminha seriamente para impor restrições
perguntas que desafiam gente experimenta- na nossa vida cotidiana que vêm de uma posi-
da. Ensinar é isso, essa troca. Marcos Zibordi Uma
das ações do instituto ção religiosa dogmática. Nos Estados Unidos é
foi patrocinada pela Agência de Projeto pior, ao ponto de certos professores serem re-
Mylton Severiano Mas
voltando ao Brizola, de Defesa dos Estados Unidos. Por que preendidos por falar em Darwin no departa-
que falou que se até seis anos não formar achei estranho? mento de biologia.
o “computador” queima, essa criança Porque não existe isso no Brasil. As próte-
tem chance mesmo “queimada”? ses que comecei a criar podem ser uma terapia Thiago Domenici Como
você encara ser
Tem. Existe uma coisa que chama plasti- para pessoas quadriplégicas ou paraplégicas. considerado o cientista brasileiro vivo
cidade cerebral. O exemplo que uso é o Gar- Com o crescimento do número de veteranos de mais importante e um dos vinte mais
rincha. Tinha um joelho olhando pro outro, guerra com lesões na medula espinal por cau- importantes do mundo, que pode ganhar
passou fome, teve deformidades ósseas e dis- sa da guerra, então o Departamento de Defe- o Nobel?
túrbios neurológicos, certamente faltou pro- sa criou uma verba de pesquisa para gerar no- É difícil comentar isso. O Brasil merecia
teína pro cérebro. O controle motor do Gar- vas terapias. E estamos conseguindo. Vai ser vários Nobéis, o Carlos Chagas, Santos Du-
rincha ninguém discute haja vista o beque anunciado um braço robótico para pacientes mont podia ter ganhado o de física. Isso não
da União Soviética na Copa de 1958. O dita- que perderam membros superiores que vai ser quer dizer que não ficaria feliz se um brasilei-
do “cachorro velho não aprende truque novo” implantado no ombro deles, comandado pelo ro ganhasse o Nobel.
não é verdade. O cérebro consegue, principal- sistema nervoso com técnicas que a gente fez.
mente na primeira infância, se adaptar a con- E quando assino esse barato está claro e explí- Vinícius Souto Como
você enxerga essas
dições adversas, os circuitos se rearranjam. cito que jamais trabalharia em qualquer linha crianças que estudam no instituto daqui
Agora, esse primeiro período dos seis anos, que não fosse de reabilitação médica. alguns anos?
ou três, é vital, é o momento onde você tem Sempre falo para eles que são embriões de
que ter o aporte nutricional e o educacional. Marcos Zibordi Se
nós temos tanta um exército de sonhadores. A noção de que
dificuldade para patrocinar pesquisa, você pode sonhar alto, como Santos Dumont
Marcos Zibordi Imagino
que o Instituto é o que o senhor acha do fato de não se sonhou. Minha esperança é essa.
mais um mundo mágico. conferir o resultado final? Como funciona
Uma menina, quando o presidente foi visi- fora daqui? João de Barros Que cientistas brasileiros
tar, ele perguntou: “O que você acha dessa es- Se você terminar um projeto de cinco anos e você admira?
cola?”, a menina “Que escola?”, “Essa aqui”, não produzir trabalhos, publicados em gran- Tive o privilegio de ver o Mário Schenberg
e a menina “não, isso aqui não é escola não, é des revistas e com um selo de aprovação, sua falar. Era brilhante, aquele raciocínio abstra-
parque de diversões”. carreira acabou. A seleção natural lá é gran- to, tentar explicar o que é o universo, a ma-
de. Que é um dos problemas aqui: se finan- téria. O doutor César, você chegava na aula
João de Barros Esses pesquisadores já estão cia tudo. Se falta dinheiro, teria que ter uma de neurociência e estava tocando a abertu-
estudando? visão um pouco mais crítica. O que vamos fi- ra de uma ópera qualquer – ele considerava
Estão estudando modelos de doença de nanciar? Qual é nossa visão estratégica de compor uma ópera o exercício mais profun-
Parkinson, coisas relacionadas à neurofisio- ciência? O que o Brasil precisa? O que que- do, uma tempestade elétrica.
logia do sono, o que o cérebro faz quando a remos desenvolver da inteligência nacional?
gente vai dormir. A codificação neural, como Ciência é hoje uma questão de soberania na- Marcos Zibordi O gol de bicicleta também.
o sistema nervoso codifica informação. Estu- cional, uma questão estratégica da humani- Depende de quem faça. Se fosse o Leivi-
damos o que está na agenda da neurociência dade e uma contribuinte vital para a preser- nha... A Nature me pediu um dia para escre-
mundial. Natal está ligada a vários institutos vação da democracia no mundo. Porque se ver. É aquilo que você espera a tua vida in-
do mundo. Em julho vamos ter a primeira es- não ajudar a produzir comida, novas formas teira, o editor da Nature telefonar: “dá para
cola de altos estudos de neurociência do Bra- de energia, de curar doenças, a espécie aca- você escrever uma revisão pra nós?”. O mun-
sil, 28 neurocientistas do mundo inteiro vão ba. A ciência está no vértice das decisões. O do pára, o filho pode cair da escada, cachorro
passar de quatro a oito semanas dando aula Brasil precisa de uma nova cultura universi- pode ficar sem comida.
por teleconferência para todos os alunos de tária. Tem que abrir as portas das universi-
neurociência do Brasil, de pós-graduação, a dades para o Brasil. Precisa de uma nova vi- Mylton Severiano O que é uma revisão?
partir de Natal. são acadêmica. Tudo isso tem que passar por É um artigo que não é só baseado em da-

36 caros amigos maio 2008


cesar cardoso

viva
a
ignorância
Minha amiga, vamos deixar de
hipocrisia, vamos louvar a ignorância.
dos que você coletou, mas a sua opinião. Você
tem uma chance ou duas na vida de uma revis-
É só por uns dois minutinhos, o tempo
de ler este texto. Porque é a ignorância
EDIÇÃO
ta dessas pedir sua impressão. Ele queria que
eu explicasse como as teorias do cérebro se in-
seriam nessa questão que eu sempre falava em
que nos sustenta e não a inteligência,
a delicadeza e toda a nossa lista de
bons sentimentos. Quando foi que você
ESPECIAL
meus trabalhos, de libertar o cérebro do corpo atravessou a rua e deu de cara com uma
para ele controlar à distância um membro arti- passeata pedindo mais escolas? Não, a
ficial. Ele disse: “Você precisa de um parágrafo gente vai pra rua pedir segurança e bota
que resuma toda a dimensão do que o cérebro é grade e cerca elétrica na porta de casa. E
capaz de fazer. Daqui uma semana, mande só o qual é o lugar mais superlotado do país?
primeiro parágrafo, para eu saber se você con- Os motéis? Não, as cadeias! Amor? Amor
segue escrever o troço.” Olha o que fiz: descre- é muito bom pra vender cerveja, roupa e
vi sob o ponto de vista de uma criança, que era automóvel. Mas no dia-a-dia, meu amor,
eu, assistindo televisão, o primeiro gol do Pelé a gente vai mesmo é de ódio.
contra a Itália na Copa do México em 1970. O No trabalho, por exemplo: o chefão
Tostão cobrando o lateral, o Rivelino levantan- pisa no chefe que esmurra o chefinho que
do a bola, a torcida já levantando atrás do gol, morde o assessor que soca o assistente que
porque eles já tinham visto mil vezes quando cospe na secretária que belisca o office-boy
a bola sobe para a área e “o cara” levanta, não
tem jeito! A expressão de dor que tem no filme,
que vai pra casa e dá um bico no cachorro.
Ou, se ele for um sujeito de sorte, pisa na
1934 - 2008
de frente para o gol italiano: o Albertozzi tor- mulher que esmurra o filho que morde.
cendo toda a face, porque sabe que não tem jei- Sinto muito, minha amiga, mas é a
to. E o Facchetti, um cara grandão, levanta só ignorância que move o mundo. O que
para cumprir com o dever, porque “o homem” já mais se vende neste planeta? Flores?
vinha correndo. Descrevi isso do ponto de vis- Poemas? Bombons Rêve d’Amour? Não,
ta do cérebro. A coordenação da visão vendo a é arma mesmo. E você já viu fábrica
bola no ar rarefeito da Cidade do México, a tor- de arma fazendo liquidação de verão?
cida já celebrando, a bola entrando e o mundo
explodindo. Eu tinha nove anos e ouvi um tro-
Não precisa, porque desde que o mundo
é mundo eu faço o arco e flecha, tu A TRAJE TÓRIA
ço explodindo lá fora. E para o resto da minha constróis a catapulta, ele cria o revólver,
vida gol era uma explosão, porque meu cérebro
associou a imagem do gol com o som dos fogos
nós inventamos o tanque, vós idealizais
o bombardeio aéreo, eles concebem a
DE UM DOS
de artifício por toda a cidade. Liguei para o edi-
tor: “olha, modifique o que quiser, mas o pri-
bomba atômica.
Por isso, minha amiga, vamos
MAIORES
meiro parágrafo é inegociável”. Esse editor me
manda um emeio assim: “eu lembro desse gol”.
levantar um brinde à violência, pedir
duas salvas de palmas ao preconceito JORNALISTAS
O trabalho estava aceito! e dar três hip-hurras à escravidão

Mylton Severiano O
senhor vai repatriar
que continua espalhada pelos quatro
cantos da Terra. São os frutos da nossa
QUE O PAÍS
outros cientistas, não?
Sim, parte do projeto Natal é repatriar os
ignorância, que seguimos plantando com
o suor do rosto alheio. JÁ TEVE
cérebros. O Brasil tem 11 mil cientistas no ex- Pronto! Agora podemos esquecer isso
terior. São trinta anos de gente indo embora. tudo e voltar a ser gente boa e cristã,
Mas eu não acredito que o voltar ou existir que tem fé no ser humano e nunca vai
seja necessariamente só físico. Fui fisicamen- ensinar pro filho que ele tem que ser
te porque me disseram que não tinha futu- melhor do que todo o mundo e que não
ro aqui, entendeu? Fui embora, mas o Bra- basta descobrir a pólvora, tem que atirar
sil nunca foi embora de mim. Acho que muita primeiro. NAS BANCAS À PARTIR DE
gente que está fora que foi e aprendeu algo, Nós? Nunca! 15 DE MAIO
algo genial, que poderia voltar e ajudar o país,
o que a gente precisava é falar “volta, vem pra Cesar Cardoso é um escritor pacífico
cá! Está na hora de construir o Brasil” . (mas às vezes se sente meio atlântico)

maio 2008 caros amigos 37

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