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DO CÉU
T r a d u ç ã o de A. A U G U S T O DOS S A N T O S
2.A EDIÇÃO
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I
II
III
Após aquele dia, o sol não se deixou ver durante várias semanas. No
guarda-vestidos, o meu vestido cor do céu continuava à minha espera.
Vesti-o apenas duas ou três vezes ainda, durante aquele verão. Depois veio
o outono, e lá continuou fechado durante meses. Em casa dos Barduzac a
vida ia-se tornando cada vez mais difícil para mim. Por felicidade, em breve
surgiria a alvorada da minha maioridade, além do casamento, que já se
delineava no meu horizonte.
Desde a festa dos Samponi, eram freqüentes os meus encontros com o
doutor Borday; e eu não podia acreditar que tais encontros fossem
ocasionais. Em fins de Novembro a senhora Geolle veio preparar o terreno
para um pedido oficial. Passado o primeiro momento de comoção, respondi-
lhe que precisava reflectir, e que apenas daria a minha resposta no
princípio de Janeiro, época em que atingia a minha maioridade.
Neste meio tempo surgiram desagradáveis questões com a senhora
Barduzac:
—Então precisa de dois meses para resolver?... Eu, quando fui pedida
pelo senhor Barduzac, disse logo que sim.
— O que prova que a senhora não compreendeu a gravidade do acto
que ia realizar.
— Ora essa!... Tanta esquisitice para aceitar um belo rapaz, senhor
duma invejável posição e filho de pais abastados?
— Esse belo rapaz é para mim, no campo moral, quase um
desconhecido. Se o aceitar como noivo, é para viver com ele toda a minha
vida. O caso merece por isso que seja bem reflectido.
Soltou uma estridente gargalhada:
— Faça como quiser. Mas se lhe fugir, cansado de esperar, não se
queixe de ninguém!
— Fique descansada, minha senhora, que não lhe tornarei a culpa.
Costumo assumir sempre a responsabilidade dos meus actos.
Esta resposta foi para atingir tão arrogante criatura, que, quando
qualquer assunto tratado por ela, não corria bem, atribula sempre aos
outros o insucesso.
Sentia-me portanto bastante embaraçada cora o pedido do doutor
Borday. Era certo que não me desagradava. Sob o ponto de vista físico e
intelectual era dotado de grandes qualidades; porém o seu lado moral era
para mim ainda desconhecido. Como disse já, Borday parecia um tanto
envaidecido da sua pessoa. Sob esta estranha aparência, sob a doçura do
seu sorriso e do seu olhar podiam esconder-se muitos e graves defeitos.
Como sabê-lo? O assunto era bastante melindroso, e eu via aproximar-se o
dia em que devia dar a resposta, sem que me sentisse mais convencida ou
mais decidida, a menos que o amor não viesse tomar a sua parte.
Até aqui o meu coração não tinha sentida mais do que um leve
estremecimento. Por acaso esse normal pulsar iria aumentar dentro de
dois meses?... Então a minha decisão torna-se-ia mais rápida, se um
qualquer acontecimento não viesse contrariar as boas informações dadas
pela senhora Geolle.
Naquele ano o Natal apresentou-se todo branquinho. No nosso jardim,
coberto de neve, viam-se impressos os largos rastros da senhora Barduzac e
as pegadas mais delicadas do marido. Por mim não me cansava de
contemplar as árvores, adornadas daquele branco e gélido manto; depois
o meu pensamento concentrava-se no doutor Borday e na resposta que
devia dar-lhe dentro de oito dias. Fui à missa do galo, na companhia da
senhora Geolle. Pedi muito a Deus que me esclarecesse sobre o que devia
fazer, visto nada ainda ter resolvido. O pulsar do coração acentuava-se um
pouco mais, cada vez que me encontrava com o doutor, sempre amável e
visivelmente apaixonado, o que até certo ponto perturbava o meu coração
e lisonjeava o meu amor próprio. Parecia-me ser bom filho e os seus clientes
estimavam-no muito; por outro lado parecia-me também que era demasiado
amigo de pândegas, gostando bastante da vida fora de casa. Todavia,
quando tivesse casa e família, era talvez muito possível que estes hábitos e
estas tendências se transformassem — em especial se gostasse muito de
mim...
Nessa manhã de Natal, quando pensava neste assunto, com o rosto
apoiado ao vidro gelado da janela, ouvi a voz da senhora Barduzac:
- Gillette!... Venha cá a baixo!
Impressionou-me aquela voz, onde se notava um grito de triunfo. Com o
coração oprimido, pensei logo: "Alguma coisa desagradável está para
acontecer!... É talvez o doutor que se vai embora!..."
Desta impressão concluí que me era de todo indiferente, e que a minha
resposta não seria talvez afirmativa.
Desci devagar e encontrei a senhora Barduzac à porta do gabinete do
marido. Estava muito vermelha, tendo nos olhos a expressão de alegria
maldosa, que lhe conhecia há muito.
— Escute, Gillette. O seu tutor tem uma notícia muito grave para lhe dar,
uma notícia que vai transformar por completo a sua vida.
Senti um leve arrepio, mas consegui ficar impassível sob o olhar da senhora
Barduzac, que procurava avaliar a minha inquietação.
Entrei atrás dela no gabinete, pequeno compartimento bastante quente, que
cheirava demasiado a bafio, e diante de cuja secretária se encontrava sentado o
senhor Barduzac, alisando com a ponta dos dedos uma folha de papel estendida
diante dele. A grande preocupação que o domina, manifestava-se logo no boné,
posto muito a trás, e no cachimbo, que descansava sobre a pilha de livros. Como
de costume, estendi-lhe a mão:
— Bom dia, senhor Barduzac.
— Bom dia, Gillette. Como vai?...
Tossiu, passou a mão pelo bigode grisalho e olhou-me embaraçado:
— Sente-se... Recebi uma notícia muito agradável para si.
— O que foi, senhor Barduzac?
Sentei-me numa cadeira, junto dele, e a esposa sentou-se de maneira a ficar
na minha frente. O meu tutor mordeu os lábios, esticou o pescoço mais do que
costumava, e estendeu a mão sobre o papel desdobrado na sua frente.
— Acabo de saber que faliu o Banco do Loire, onde, conforme o desejo
da senhora de foi colocada a maior parte da sua fortuna, agora perdida,
absorvida pelas especulações aventurosas dos seus directores.
Foi nessa ocasião que avaliei a minha grande força de vontade, pois
consegui manter-me quase impassível, sob o olhar maldoso que me
observava.
— É na verdade uma grande desgraça — respondi, com serenidade. — Que
foi então que me ficou?
O senhor Barduzac fitou-me um instante, sem responder, com a boca aberta
e os olhos absortos:
— Mas..., no entanto..., parece não compreender a gravidade da sua
situação?
— Oh! Sim! Muito bem!... É o que se chama a ruína, não é verdade?
— Isso... exactamente; a ruína quase completa. Restam-lhe apenas vinte
mil francos e a sua quinta da Meulière.
— Ou seja uma renda total de...?
— Quatro mil francos pagos pelo caseiro e cerca de oitocentos francos
provenientes dos títulos, que são bons.
— Vai agora precisar de trabalhar...— concluiu a senhora Barduzac, cujos
lábios grossos se contraíram num ricto de ironia.
— ... Mas não vejo nada em que possa trabalhar. Apesar de todos os seus
diplomas, suponho que não está à altura de se dedicar ao magistério!... No
comércio também nada fará... Talvez encontre um lugar de dama de
companhia.
Foi com a mesma calma que respondi:
— Preciso reflectir; no entanto espero que dentro de oito dias já
estejam livres de mim, visto que a minha maioridade coincide com a
minha ruína.
O senhor Barduzac protestou com frieza:
— Não há pressa, Gillette!... A nossa casa...
A esposa interrompeu-o:
— Certamente; até lá pode-se deixar estar. Durante esse tempo
procurarei encontrar-lhe, entre as minhas amigas, um emprego
conveniente. Se não for muito exigente, encontraremos com facilidade.
Senti que rejubilava com a minha ruína, que esta era para ela uma
queda de posição, ela que estava habituada a considerar as pessoas
conforme a importância dos seus rendimentos. Isto, portanto, era mais
uma razão para que mantivesse uma atitude altiva e calma ante este rude
golpe, ainda mais doloroso devido ao ingrato abandono destes dois seres,
que me tinham conservado na sua companhia, em virtude do bom
rendimento que lhes proporcionava, pois que a despesa que faziam com a
minha manutenção era muito inferior ao que recebiam da minha pensão.
Levantei-me, declarando com voz firme:
— Tenho a dizer-lhe que não aceitarei qualquer emprego. Não irei
morrer de fome e poderei provisóriamente ir viver para a Meulière.
A senhora Barduzac informou com ar desdenhoso:
— Parece que a casa está a cair aos pedaços...
— Sempre terá um quarto para me abrigar, enquanto não surgir um
emprego conveniente. Em casos como este, sempre é bom agir com
calma.
— Quer dizer com isso que não vai aceitar os meus conselhos, como é
seu costume?... Fique certa de que isso nada lhe adiantará. Se há dois
meses tivesse aceitado o pedido do doutor Borday, como lhe disse, agora
estaria quase casada e ele seria obrigado a engolir a pílula. Hoje..., oh!
pobrezinha!..., creio que...
Senti o sangue subir-me às faces e interrompi-a com um tom brusco.
— Eu sei muito bem!... A partir de hoje pode considerar-se livre.
Respondo ao seu pedido com uma recusa, e está tudo terminado. É natural
que ninguém queira desposar uma jovem arruinada, mesmo quando se
está numa invejável posição como a do doutor Borday! Fique tranqüila,
minha senhora, que ainda sou bastante inteligente para o compreender.
— Saí do gabinete e regressei ao quarto. Uma ligeira febre me assaltava
as têmporas, e toda a minha coragem me abandonou por momentos,
quando me senti só, longe do olhar maldoso e inquiridor da senhora
Barduzac. Com um grande esforço conseguira ainda há pouco afrontar essa
mulher; porém agora a reacção começava e uma certa angústia oprimia-me
o coração.
Arruinada!..., estava arruinada!...
Tão amiga de ser independente, seria forçada a trabalhar na casa dos
outros!...
Fiquei imóvel, mergulhada numa poltrona. No meu cérebro os
pensamentos entrechocavam-se um pouco desordenadamente. Só passados
minutos dois deles se delinearam claramente: o meu supremo desprezo
pelos Barduzacs, que tanto tinham prometido à minha pobre mãe que me
tratariam sempre como filha, e a certeza de que, nas atuais circunstâncias,
o casamento seria de facto impossível para mim.
A senhora Barduzac afirmava quase todos os dias que, na sociedade a
que pertencíamos, não se desposavam pequenas pobres. E eu tinha quase
a certeza de que Marcos Borday não a deixaria mentir. É certo que lhe
agradava, porém com os meus trezentos mil francos de dote no cofre. E sem
contar ainda, conforme ele supunha, que os Barduzac, sem parentes
próximos, me deixariam toda a sua fortuna. Agora uma Gillette de Arbiers
quase pobre, era outro caso!...
Faltaria à verdade se não dissesse que sofri muito, ao ver evaporar-se este
pequeno sonho azul; e entretanto o jovem médico tinha feito bater, ainda que
ao de leve, o meu pobre coração, e eu supunha que precisaria ainda dalgum
tempo para o esquecer.
Os minutos iam passando e eu mantinha-me sempre na mesma posição,
procurando coordenar as minhas idéias; só me sobressaltei quando o relógio de
parede bateu onze e meia. Os Barduzac tinham alguns convidados para o
almoço. Precisava por isso mudar de roupa e descer como se nada se tivesse
passado.
IV
Vesti-me quase sem dar por isso, pensando no duro golpe que me atingira;
entretanto uma relativa calma começava a dominar o meu espírito, onde se
delineou um plano: abandonar esta casa logo que o meu tutor me prestasse as
suas contas e ir para a Meulière dentro de oito ou dez dias. Por pouco
confortável que pudesse ser a casa da Meulière, era-me muito mais
agradável do que esta, onde era detestada, onde todos procuravam
avidamente perscrutar nos meus olhos os menores vislumbres de
abatimento ou tristeza. Além disso estaria na minha própria casa, onde
encontraria, na intimidade, o afectuoso apoio da caseira, Catarina
Bardeaume; esta fora minha ama, e todos os anos, no primeiro dia de
Janeiro, me escrevia uma linda carta, perguntando-me, invariavelmente,
quando me resolvia a ir passar uns dias à Meulière, onde todos se sentiriam
felizes em me receber.
Tomada esta decisão senti-me menos abatida, e foi com toda a calma
que entrei no salão, onde já se encontrava o senhor Huchard, conversando
com os Barduzac.
O assunto da conversa devia ser com certeza a minha ruína, pois que,
ao cumprimentar-me, notei-lhe na fisionomia uma expressão de mágoa, a
que respondi com um leve sorriso de ironia. À mesa mostrei-me
despreocupada e alegre como de costume. O senhor Huchard, sentado à
minha direita, rodeava-me das suas atenções um tanto rudes, proferindo
pretensiosas frases, que só conseguiam causar-me tédio. Ao levantar-me da
mesa, tomou-me o braço e sussurrou-me ao ouvido:
— É muito corajosa!... Nada receie, porém, porque não ficará na
miséria.
— Voltei-me com calma e respondi-lhe friamente:
— Não ficarei na miséria, senhor, porque graças a Deus sou ainda nova e
tenho saúde bastante para poder trabalhar.
Chegados ao salão, deixei-o, e fui sentar-me junto da senhora Geolle, que não
me agradava também muito, mas que era preferível a esse amigo dos Barduzac.
Em seguida, logo que me foi possível, voltei ao meu quarto, a fim de escrever à
Catarina, enquanto a senhora Barduzac se vestia para visitar algumas das suas
boas amigas e contar-lhes a desgraça que me havia atingido, já do conhecimento
de todos os convidados do almoço, conforme pressenti, pelo que senti à minha
volta de sussurros e de olhares — uns de protectora piedade e outros de
maldosa satisfação.
Catarina Bardeaume respondeu-me logo no primeiro correio. Divagava em
longas e comovidas frases acerca da minha ruína, maldizendo todos os
banqueiros, e avisando-me de que me esperavam com a maior ansiedade e
satisfação.
"Previno-a, no entanto, de que a casa está em muito mau estado... Chove
na sala de visitas e em vários quartos, e as portas estão empenadas. Além
disso não tem móveis, visto que a humidade fez apodrecer os poucos que
restavam. O seu pobre pai deixava que as coisas corressem de qualquer
maneira, e quando morreu, já tudo necessitava de reparações. São
decorridos vinte anos, e entretanto a humidade continuou a sua devastação.
Talvez haja apenas um quarto habitável; é grande e bonito, voltado ao sul
e com frente para o jardim; o teto e as paredes não estão deterioradas
como as dos outros, e o soalho não custará a pôr-se lustroso, porque é de
óptimo carvalho. Porém não está convenientemente mobilado para a
menina. Se aceitasse, teria muito prazer em lhe oferecer um quarto aqui na
quinta, o da minha filha Angelina. Faço-o com a maior vontade e suponho
que deve ficar melhor aqui, apesar de tudo, do que sozinha na sua velha
casa».
Terminada a leitura da carta circunvaguei os olhos pelo quarto. Tinha ali o
mobiliário do quarto da minha mãe, os adornos que ela estimava, dois ou
três retratos de família e um lindo espelho antigo. Alguns móveis ainda,
muito bem conservados e dum certo valor, alguns objectos de arte e outros
retratos ornavam a sala de visitas da senhora Barduzac. Tudo isto
chegaria muitíssimo bem para mobilar a parte habitável da minha casa. E
apesar de reconhecida à Catarina, pelo seu oferecimento, resolvi logo
comigo manter toda a minha independência, por mais incômoda que fosse a
velha casa.
Enquanto assim pensava, entrou a senhora Barduzac. Deitou um olhar
disfarçado à carta que segurava nas mãos, e perguntou:
— É alguma carta da sua amiga Julieta?
— Julieta Mancel era uma das minhas antigas colegas de colégio, com quem
sempre me correspondi.
— Não, minha senhora. É da minha ama de leite, da Catarina Bardeaume,
que insiste comigo para que vá para a Meulière. Estou portanto disposta a ir
para lá, logo que o senhor Barduzac já não precise de mim para regularizar
as suas contas da tutela.
— Então sempre está resolvida a ir viver para a Meulière?
— Provisoriamente, estou.
— No entanto talvez fosse possível encontrar outra solução para o seu
caso.
— Outra solução?... Qual?
E de súbito, ante a sua hesitante expressão, pensei: «Estará o doutor Borday
disposto a manter a sua palavra, apesar de tudo?"
Senti de novo uma leve pulsação, e senti também que um leve rubor me
subia ao rosto.
— Sim, uma solução inesperada... Um óptimo casamento...
— Era na verdade o que eu pensava!... As pulsações tornaram-se-me
mais fortes...
— ... Está deveras apaixonado por si, o que é uma loucura, naquela
idade!...
Como?... Que dizia ela?... Marcos Borday tinha trinta anos e eu vinte e
um... Talvez que...
— ... Mas nada tenho com isso!... Agora pelo seu lado suponho que terá
a necessária compreensão para ser sempre a esposa digna dum homem
que lhe oferece uma bela fortuna...
Ao dizer isto tomou uma expressão grave, dilatou as flácidas faces,
examinou-me de alto a baixo, como quem diz: «Não merece tanto!»
— Mas a quem se refere a senhora? — exclamei eu.
— Ao pobre senhor Huchard, que, se a menina aceitar, faz a maior
tolice da sua vida...
O pulsar do coração parou de súbito e o rosado pálido das faces
tornou-se em vivo rubor de indignação.
A senhora Barduzac prosseguiu:
— ... Nada menos do que três milhões, minha querida, honestamente
ganhos no trabalho... Nunca mais volta a ter uma sorte como esta...
A sua voz tomou um tom de amarga ironia fina seus olhos rebrilhou a
cobiça. Interrompia-a, bruscamente:
— A senhora está a gracejar!... Como lhe pôde caber na imaginação que,
com a minha Idade, pudesse casar com um homem de cinqüenta e oito
anos?
— E por que não?... Continua a manter-se tão inacessível, ainda agora?...
Sem dote, não encontra já um marido a dizer com os seus vinte anos. Fique
certa disto.
— Sei-o muito bem e tentarei tirar desta situação o maior proveito; mas
nunca farei um casamento como aquele que a senhora pretende insinuar-me.
Encolheu os ombros.
— Já sei há muito que parece não ter o juízo todo; no entanto, Huchard é um
homem agradável, tem um caracter honesto e está ainda bem conservado...
— Não insista, minha senhora... Mesmo que fosse mais novo, o senhor
Huchard não me convinha, porque pertence a um meio que, por muito honrado
que seja, não é o da minha família, e a sua educação e os seus gostos são
muito diferentes dos meus.
Toquei justamente no ponto fraco da senhora Barduzac, invejosa da classe
social a que eu pertencia; logo que se fizesse qualquer alusão à sua origem
modesta ou às famílias das suas relações, ficava toda nervosa. Tornou-se
bastante vermelha e tentou fulminar-me com o olhar.
— Oh! Logo vi!... São esses miseráveis pergaminhos de amor-próprio
que prejudicam o pedido do nosso amigo!?... Um pedido com que devia até
sentir-se muito honrada, em face dos quatro centavos que lhe ficaram!...
Faça porém como quiser; é melhor morrer de fome na sua casa
desmantelada. Tenho a certeza de que, por mais duma vez, há-de lembrar-
se, com pesar, daquele que a quis fazer rica, porque os milhões, hoje,
valem muito mais do que os títulos de nobreza!...
A senhora Barduzac saiu furiosa, e eu sentei-me deveras pensativa e
com o coração oprimido. Assim, só porque estava arruinada, já se atreviam
a propor-me este casamento, como se fosse uma transacçâo!... Supunham
que ficaria muito feliz em encontrar esta maneira de sair dos meus
embaraços!... Que importava para elas que o pretendente fosse quase
sexagenário, sem nada que o recomendasse, e pretensiosa? Nessa altura
estava muito bem para Gillette de Arbiers!...
Senti os olhos cobrirem-se-me de lágrimas. Oh! Como a vida era
estúpida, quando olhada por certas faces!... E que tristeza o encontrar-me
só, totalmente só, para me defender contra os Laços que seriam armados
à minha mocidade!
Fui forçada a ficar ainda durante quinze dias em casa dos Barduzac, a
fim de regularizar pessoalmente os meus negócios. Durante esse tempo
mandei proceder ao engradamento e à expedição da minha mobília. Para
a senhora Barduzac foi um momento desagradável, quando lhe tiraram da
sala de visitas o pequeno sofá Luís XVI, tão bonito, as duas poltronas, a
linda secretária em pau-rosa, a mesa guarnecida de finas incrustações e os
retratos dos meus antepassados, que ela dispusera pelas paredes, bem à
vista. Parece-me que chegara a supor que estas damas antigas, de
anquinhas e vestidos de musselina, estes fidalgos envergando trajes
palacianos e uniformes militares, eram seus avós e não meus.
Um dia ouvia dizer à senhora Geolle:
— Com franqueza, minha amiga, não acha que, depois de tudo quanto
fiz pela Gillette, não era muito que ela me deixasse ficar estes velhos
móveis, e não me obrigasse a recompor assim a minha sala de visitas?
A senhora Geolle, sempre de igual opinião à da pessoa com quem
falava, respondeu:
— Sim, com certeza! Era até a sua obrigação!...
Oh! Sim, não esquecia que tinha olhado por mim, que me tinha tido na
sua casa!... Parecia-me no entanto, que lhe tinha pago régiamente a sua
interesseira hospitalidade. Nada lhe ficava a dever, pois nunca recebera dela
um pouco de afeição ou um pouco de simpatia.
Uma semana antes da minha partida comecei a fazer as minhas visitas
de despedida. Algumas pessoas, ao receberem-me, julgaram por bem dever
apresentar um certo ar de compaixão; porém o meu desembaraço e a
minha despreocupação deixavam-nas admiradas. Declarava-me encantada
por viver algum tempo no campo.
— Vai-se aborrecer!—prediziam-me algumas.
Era possível; mas de momento, sentia-me bastante satisfeita em deixar
os Barduzac e adquirir a minha liberdade.
Não ouvi mais falar do doutor Borday, a quem a senhora Goelle devia
ter transmitido a minha resposta. Na véspera da minha partida encontrei-o
na Rua Nova, ao regressar da igreja, Cumprimentou-me, desviando logo os
olhos. Corei um pouco, mas não senti mais do que uma ligeira comoção, um
leve constrangimento. Felizmente não chegara a ter tempo de amar este
desconhecido. Nestas condições a sua reserva não me fez sofrer. Concluí
apenas que este homem, filho de pais abastados, com a perspectiva dum
belo futuro, não tinha a necessária nobreza de espírito, para o belo gesto
de manter, apesar de tudo, a sua palavra!
Portanto, tudo quanto dissera, nunca fora um amor desinteressado.
Ao chegar a casa tratei de dobrar a minha roupa, arrumando-a na
mala. Ao ver o meu lindo vestido azul, lembrei-me dum belo dia de Junho,
e dum jovem médico muito atencioso e deveras enamorado. Encolhi os
ombros, murmurando:
— O meu pobre vestido cor do céu!... Ambos descemos um degrau,
depois daquele dia!
V
A pequena propriedade da Meulière, situada na Vendeia, tinha
pertencido a um velho tio de meu pai, o senhor de Sauriages, que fora o
meu padrinho, e que ma deixou no seu testamento. Quando poderia eu
pensar que ainda um dia devia tornar-se o meu único refúgio!... E nesse
dia de Janeiro, enquanto o comboio me levava ao termo da minha viagem,
senti uma leve apreensão apoderar-se de mim, no momento em que
chegava a esse lugar para mim desconhecido.
O tempo estava cinzento e melancólico. Os extremos do horizonte
estavam velados por escunas nuvens, que se estendiam lentamente pelos
primeiros planos. A atmosfera apresentava-se tão desoladora, como as
expressões carrancudas das minhas companheiras de viagem — duas
senhoras mais ou menos idosas, duas irmãs, segundo pareciam, que logo
que deixaram de cochichar, passaram a mimosear-se com palavras acres,
nada amáveis, devido a uma das suas criadas, que uma queria mandar
embora e a outra teimava em manter.
Refleti: "Se ao menos a minha boa Catarina estivesse na estação! Como
ficaria satisfeita se me viesse esperar!"
Por volta das quatro horas o comboio parou na pequena estação de S.
João da Bottellerie. Saltei, caindo quase aos braços duma mulher alta e
muito magra, que se encontrava mesmo em frente da minha carruagem. -
Oh! minha querida menina! - Oh! minha boa Catarina! — exclamei eu,
beijando-a nas duas faces.
Afastou-se um pouco, para melhor me observar, - Mas como está bonita!...
Como está bonita..
E dirigindo-se a um aldeão de blusa azul, que estava de pé, um pouco
atrás, com o chapéu na mão, perguntou, cheia de inocente orgulho:
— Hem?!... Não achas, Bardeaume, que está muito bonita a minha filha
de leite?...
Na sua fisionomia corada esboçou-se um sorriso, enquanto os pequenos
olhos do caseiro me analisaram com benevolência dos pés à cabeça.
— Está bonita, está!... Oh! minha senhora, como estamos contentes
em a vermos de novo na Meulière! A última vez que aqui esteve era ainda
muito pequena, mas já no entanto todos nós lhe queríamos muito.
Estendi-lhe a mão, que as suas mãos calosas apertaram.
— É uma grande alegria para mim ver-me de novo aqui. Recordo-me
muito bem da minha saudosa mãe me dizer muitas vezes: «Gillette, os
Bardeaume são das poucas pessoas que nos estimam e com quem se
pode contar».
Pelos olhos do caseiro passou um clarão de contentamento.
— A senhora de Arbiers não se enganava. A menina estará aqui como
na sua própria casa... Mas vamos indo, não?
Neste meio tempo Catarina pegou na minha maleta. Dei ao marido a
guia das minhas bagagens e acompanhei-os para a saída.
Atrás de mim ouvi uma voz masculina, dizendo:
— Deixou cair o lenço, minha senhora, Voltei-me. Um cavalheiro, duma
elegante estatura, novo e muito bem vestido, em traje de viagem,
descobria-se, apresentando-me o objecto em questão.
— Oh! muito obrigada, cavalheiro!
Catarina, que também se tinha voltado, disse respeitosamente:
— Boa tarde, senhor visconde.
E afastou-se, para o deixar passar. Respondeu-lhe com um certo ar de
dignidade:
— Boa tarde, senhora Bardeaume!
Quando se afastou um pouco, Catarina disse-me em voz baixa,
enquanto saíamos, por nossa vez:
— É o senhor visconde de Trézonnes, o dono da mais bela propriedade
de toda a Vendeia.
— Não parece ter um aspecto muito prazenteiro murmurei, pensando
na sua expressão altiva, dura, um tanto irônica, mas distinta, que mal
tivera tempo de observar.
— Não, menina!... Não é bem o que parece!... Gosta-se dele. O que é,
é um homem que só pensa em dominar os outros, e a quem nunca
ninguém conseguiu dominar.
Quando saímos da estação, vimos um automóvel que se afastava.
Avistei, dentro dele, a bela fisionomia do desconhecido. Bardeaume, que
seguiu a direcção do meu olhar, disse, com um riso que lhe sulcou ao de
leve as faces:
— Que pena, minha senhora, não termos um carro tão bom como aquele
para lhe oferecermos!... O da Meulière está ali...
Assim dizendo, indicava um velho carro, coberto com um toldo,
suspenso sobre arcos de madeira.
— ...Temos dentro dele uma pele de cabra e alguns cobertores... Espero
que não terá frio... Catarina, acompanha a senhora, enquanto eu vou
buscar a bagagem.
Quinze minutos depois seguíamos a caminho da Meulière. A bruma
estendia-se pelos campos, que me pareceram por isso muito melancólicos e
cinzentos. Com o cabo do chicote, Bardeaume indicou-me um vasto castelo,
com ameias, que se avistava vagamente à direita.
— È a Bottellerie, o castelo do senhor de Trézonnes — explicou ele.
— E vive aqui durante o inverno? - perguntei à Catarina, que seguia
sentada ao pé de mim.
— Sim, menina, o ano todo, salvo durante umas breves idas a Paris.
Quem não gosta muito disso é a senhora viscondessa, a madrasta, e a
menina Jaquelina, a irmã. Estas senhoras gostam mais da sociedade e da
vida de Paris. Porém o senhor visconde não lê por essa cartilha.
— Então não são senhoras de fazer o que lhes apetece?
— Não, menina... E onde iam arranjar o dinheiro para isso? É ele que
lhes dá uma mensalidade, com a condição de viverem na Bottellerie. Ele
defende-se, porque a senhora de Trézonnes é uma esbanjadora e os filhos
foram educados nos mesmos princípios.
— Tem muitos filhos?
— Três: um filho, que é oficial e comete toda a espécie de asneiras,
porque foi criado com muito mimo; uma filha, casada com um castelão dos
lados de Niort, o senhor da Bancelière, e a menina Jaquelina, que já tem
vinte e cinco anos e não encontra casamento. Também quem a há-de
querer!... Quando não se tem dote, e se é ainda pessoa pródiga, é de
fazer fugir os poucos pretendentes que apareçam.
— O senhor de Trézonnes é rico?
— Riquíssimo! Possui a fortuna de sua mãe, bastante aumentada, depois
das grandes melhorias que introduziu no domínio da Bottellerie.
— Sendo assim, é muito provável que dote a irmã!
— Oh! não creio muito nisso. O senhor visconde não é afectuoso com os
seus. É muito inteligente, muito enérgico, mas coração ninguém sabe
se ele o tem.
— É solteiro?
— É sim, menina, e já tem perto de trinta e dois anos. Com a sua
fortuna e bonito como é, basta-lhe apenas escolher...
— Parece-me que a sorte da futura viscondessa não será talvez muito
agradável, com um marido assim tão áspero..., e nada afectuoso.
— Assim deve ser... No entanto é um homem justo e correcto. Imagine
que, quando o pai lhe morreu, arruinado pelo jogo e pelos esbanjamentos
da sua segunda esposa, o senhor Gui tinha vinte e dois anos, e até então
nada mais tinha feito do que viajar e divertir-se. De repente tomou a
direcção da casa, veio instalar-se na Bottellerie, onde apenas aparecia na
época das caçadas, e começou a cuidar das suas terras, auxiliado por um
velho e sincero amigo, o senhor Rouchenne, proprietário da Sauvaie. Todos
diziam cá na aldeia: «O senhor visconde não percebe nada disto; acaba por
perder o pouco dinheiro que tem, em vez de ganhar». Ele porém estudou,
e seguiu o conselho das pessoas experientes. Depois, tem uma inteligência
privilegiada, e quando quer alguma coisa, consegue-a sempre, seja de que
maneira for. Assim, hoje, as terras da Bottellerie valem muito mais do que
há dez anos e produzem amplos rendimentos.
Bardeaume, que ouvia apenas a nossa conversa, atento à ladeira que o
animal ia subindo e que o havia obrigado a diminuir o passo, observou no
entanto:
— Além disso a terra é boa e toda junta. É uma linda propriedade!... E o
senhor visconde vai-a aumentando todos os dias. Qualquer dia fica senhor
de toda a região... A propósito, menina, podia fazer um bom negócio com
ele... A menina tem um prado, um belo prado, próximo do rio, e que ele
deseja comprar, por estar contíguo aos da sua propriedade. Eu, quando
ele me falou nisso, o ano passado, respondi-lhe que a menina de Arbiers ia
atingir em breve a maioridade e talvez lha quisesse vender em qualquer
ocasião.
— Se é um bom negócio, como diz, nada tenho a opor.
— Depende do preço que ele oferecer. Mas temos tempo de tratar
disso.
Neste momento, como terminasse a ladeira, o cavalo começou a trotar,
num passo certo, todavia. Estávamos porém perto. Em breve chegámos à
quinta da Meulière, toda cinzenta no meio da bruma. Ao estrépito do
cavalo, uma jovem abriu a porta e caminhou em direcção a nós.
- Angelina, a sua irmã de leite, menina Gillette - disse a Catarina.
Era uma moçoila alta e magra, de cabelos louros, com um vestido curto,
dum azul forte, e um pequeno avental. Cumprimentou-me com ar
pretensioso, a que respondi, estendendo-lhe a mão e dirigindo-lhe palavras
amáveis. Seguidas pelo olhar inquiridor da pequena, entrámos todos na
sala, onde nos esperava uma leve refeição.
Se a Catarina e o marido me pareceram óptimas pessoas, devo
confessar que o mesmo não podia dizer da filha, que me desagradou logo
desde o primeiro momento.
Nela tudo denotava afectação, desde a apresentação aos gestos, e até
à maneira de se exprimir. Como a boa da mãe me parecia mais digna e
mais bonita, na verdade, com o seu vestido asseado e simples de dona de
casa!
Como é que esta boa gente permitia que a filha se tornasse tão
diferente deles?... Esta pergunta fixou-se no meu espírito desde aquela noite,
quando vi o quarto de Angelina, onde devia ficar dois ou três dias, até que
o meu ficasse pronto. O dela era pequeno e claro, forrado a papel com
grandes flores garridas, guarnecido com móveis vulgares, com formas a
fingir arte moderna, e dois espelhos em frente um do outro. As paredes
estavam adornadas com quadros, de caixilhos dourados, e cujos motivos
me pareceram um tanto em desacordo com a idade da pequena. No
ambiente flutuava um perfume bastante forte, que me pareceu muito
desagradável.
Era a falsa elegância em todos os seus lamentáveis aspectos — desde as
meias demasiado finas, às botas de altos tacões, à espessa camada de pó
de arroz que cobria o rosto desta rapariga, cujo principal dever era ajudar a
mãe nos trabalhos da quinta.
A pobre Catarina mostrava-me tudo isto com tal expressão de vaidade,
que me incomodou. Então esta pobre mulher não via o perigoso caminho
que a filha ia seguindo, se não com o seu consentimento, pelo menos com o
tácito apoio da sua fraqueza maternal?
Ao jantar conheci o Tiago, o filho mais velho do casal, belo rapaz de
vinte e cinco anos, de fisionomia calma e bondosa. O mais novo, o
Francisco, estava cumprindo o serviço militar.
À mesa, cujo lugar de honra me coube, sentou-se também o criado,
entretanto que a Catarina é que nos servia. Quanto à Angelina, essa comia
com toda a calma, mas quase sem parar. E a sua figura empoada, de
cabelos curtos, onde tinham tentado fazer uma desajeitada ondulação; a
sua maneira desastrada de manejar o talher - em suma, toda a sua pretensão
rústica, pareceram-me a mais triste, a mais deplorável das notas, naquela
grande sala patriarcal, que amei desde logo, com as suas vigas
enfumaçadas, o seu grande fogão preto e os seus sólidos móveis de velha
nogueira polida, que tinham atravessado os séculos.
VI
No dia seguinte, logo pela manhã, fui ver a minha nova residência, em
companhia da Catarina» que me repetiu, com certeza para me evitar
qualquer desilusão:
— É muito velha aquela casa, menina. É uma casa muito triste.
Apesar desta prevenção, o meu coração sentiu-se oprimido quando vi as
paredes enegrecidas, marcadas com compridas listas esverdeadas, o
pavimento desconjuntado do terreiro, o velho alpendre coberto de musgo,
com a balaustrada destruída e quebrada em parte. Lamentável estréia,
tendo ainda a torná-la mais triste a chuva que caía...
Senti um arrepio de comoção ao penetrar no vestíbulo, que tresandava a
humidade e a bafio. Em todos os arruinados compartimentos que a Catarina
me mostrou, flutuava o mesmo cheiro, com excepção do quarto do primeiro
andar, que devia ser o meu, e onde a minha boa Catarina vinha fazendo
umas fogueiras há vários dias.
— Este é habitável — disse-me ela. — Quando há qualquer ponta de sol,
entra logo aqui; porém o resto da casa não vale nada.
O quarto era iluminado por duas janelas bastante largas. Aproximei-me
duma delas e abri-a. Ante os meus olhos estendia-se um grande jardim. Com
excepção dum canteiro em frente da casa, onde algumas árvores erguiam
os ramos sem folhas, o resto tinha sido transformado em horta.
— Foi o Bardeaume quem plantou esta horta, para aproveitar a terra —
explicou a caseira. — Os legumes dão-se aqui maravilhosamente; porém,
se não gostar, menina Gillette, pode-se modificar.
— Confesso que preferia ver um jardim cheio de flores; todavia os meus
minguadíssimos rendimentos não me permitem esse luxo, minha boa
Catarina, e suponho que será mais razoável deixar continuar aí os legumes.
— Isso é certo, menina; no entanto o Tiago, que gosta de jardinar,
arranjar-lhe-á da mesma maneira um jardinzinho. E depois, como verá,
existe na parede do quarto uma velha roseira, que dá as mais belas flores
de toda a região. É delas que todos os anos levo, ao senhor abade, um
ramo, por ocasião da festa do “Corpo de Deus”.
De pé, junto da janela, contemplava a chuva, lenta e fria, que caía
ininterruptamente, embebendo profundamente a terra escura, formando
diante da casa uma grande poça pardacenta, cuja superfície era agitada
pela queda de incessantes e numerosas gotas. A meu lado a Catarina
murmurou:
— Seja como for, a menina Gillette sempre está resolvida a ficar
aqui?... Não lhe parecerá muito triste?...
Voltei-me, observando-lhe a fisionomia amorável e inquieta.
— Nos primeiros dias, é provável; depois, como tudo, acostumar-me-ei.
Aliás, não pretendo ficar aqui por muito tempo. Já escrevi à superiora do
meu convento, pedindo-lhe para me arranjar um emprego, e qualquer dia
poderei ser chamada.
— Vai ser professora, ou qualquer coisa parecida, não, menina?
— Talvez, pois tenho de me sujeitar ao que vier; no entanto preferiria
outra coisa qualquer.
Catarina reflectiu em voz alta:
— É pena!... Uma menina tão bonita ir ensinar meninos mal educados, e
obedecer a pessoas que talvez nem lhe cheguem aos pés!...
Pus-me a rir, para esconder a minha melancólica comoção.
— É a sua afeição por mim que a faz pensar dessa forma, minha boa
Catarina. No fundo a minha sorte será igual à de tantas outras jovens da
minha idade e linhagem, que trabalham corajosa e dignamente... Bem, fica
resolvido; instalar-me-ei aqui o mais depressa possível, pois os meus
móveis já devem estar na estação.
— Vamos mandá-los buscar hoje, à tarde. O Bardeaume e o Tiago
arranjarão tudo da melhor maneira possível, e a Mayote virá dormir todas
as noites aqui... Lembra-se dela, menina?
— Sim, uma mulherzinha muito morena, a quem a senhora me confiava,
quando tinha de se ausentar.
— Exactamente. O marido morreu, já lá vão uns anos, e ela passa os
dias aqui e ali, para viver. Não conheço pessoa melhor, e ficará muito
satisfeita em poder prestar-lhe este serviço, muito fácil para ela, porque
vive perto daqui. Preparei-lhe uma cama num quartito, lá em baixo, visto a
menina estar resolvida a não querer ficar connosco...
— Não, não posso, minha boa Catarina. Como sabe, sou muito
independente. Fique certa, porém, de que isso não me impedirá de lhe fazer
muitas visitas.
— Oh! Cada visita será para mim um grande prazer, menina Gillette!...
Voltámos à quinta, atravessando o pomar, cheio de macieiras, única
parcela de terreno que a separava da minha casa. Na sala, a Angelina
varria preguiçosamente. Parecia desanimada, e respondeu com palavras
ásperas a uma observação da mãe. Perguntou-me depois, enquanto
observava o meu vestido cor-de-cinza, muito simples, mas bem feito:
— O quê?... Sempre lhe serve a casa, minha senhora?...
— Como não!... Estou até muito satisfeita, Angelina. O quarto é cômodo,
e o resto parecer-me-á mais alegre quando vier o sol.
— Parece-me que não deve ser nada agradável para quem já viveu na
cidade, como a senhora.
— Sim, um pouco, no começo. Porém pretendo trabalhar muito...
Em seguida, voltando-me para a Catarina, que começava a lidar, perto
do fogão, acrescentei:
— E a propósito, sabe a idéia que tive agora? Quero que me ensine os
trabalhos da cozinha, a fazer a manteiga e a cuidar das galinhas.
— A mulher olhou-me com um ar de espanto:
— O quê, menina?... Então pensa em tornar-se caseira?
— Quem sabe?... Não seria das piores idéias. Em todo o caso esses
conhecimentos são sempre úteis, além de que poderei ajudá-la um pouco.
— Oh! Por isso nunca, minha menina!
Aproximei-me dela e, passando-lhe o braço em volta do pescoço, beijei-
a.
— Não lhe estou a pedir a sua opinião. Sou como o senhor de
Trézonnes: quando quero alguma coisa, quero!
Catarina pôs-se a rir.
— Sempre queria ver, se estivesse em luta com ele, qual dos dois
ganharia!... Pela menina não ficava eu!... Porém com a sua ama, oh!
sim!...ganhava sempre. A menina é tão boa!... E depois, todos aqui lhe
querem muito, não é verdade, Angelina?
A minha irmã de leite respondeu com uma voz fraca:
— É sim, minha mãe...
E quase imediatamente acrescentou, com um riso irônico, que lhe fez
mostrar, entre os lábios grossos, uma fileira de dentes um tanto grandes,
mas muito brancos:
— Havia de ser muito engraçado, nós, nesta idade, tratarmos do
insuportável trabalho da quinta.
— Não me parece que seja pior que os outros!... Além disso é bom
para a saúde. A si não lhe agrada, Angelina?
— Não, minha senhora. Não nasci para esses trabalhos. E tanto assim,
que só casarei com um rapaz da cidade.
A mãe retorquiu, num tom de amorável censura:
— Ora, não penses em tolices!... É verdade que o campo dá trabalho,
mas vive-se melhor no campo do que na cidade, por muitos motivos.
— Não sou dessa opinião, e o que sei, é que não fui feita para viver
aqui.
Assim dizendo, começou de novo a manejar a vassoura e a levantar
poeira.
Catarina soltou um fundo suspiro, e depois murmurou:
— Ah! Estas meninas!... Não as podemos segurar em casa!... A
Angelina vive amofinada nesta casa!... É verdade que tem um certo ar de
menina da cidade!...
E o seu peito arfava de vaidade satisfeita. Triste vaidade materna, que
se orgulhava de ver a filha, educada com tão criminosa indulgência,
prestes a aumentar a dolorosa multidão das transviadas.
"Pobre Catarina!" — pensei eu. "Que dias de amargura estás
preparando!"
Desde o dia seguinte, à tarde, que fiquei instalada na minha casa.
Bardeaume e o filho tinham operado maravilhas em pouco tempo. O meu
quarto estava deveras encantador, com as cortinas de linho, com
desenhos à Luís XVI, a cama de bronze e a linda cômoda antiga. As
paredes estavam ornadas com um espelho e diversas fotografias. No
fogão, entre dois pequenos candelabros de porcelana de Saxe, coloquei o
relógio carrilhão, o mesmo que fora da minha mãe. Um grande tapete,
com folhagens, um tanto usado, mas ainda bastante conservado, cobria o
soalho, o que dava ao quarto um aspecto confortável.
Os outros móveis guardaram-se numa sala do rés-do-chão, aguardando
que o Tiago pusesse em ordem um pequeno quarto que dava para o jardim.
Faltava apenas refazer a pintura das madeiras que encobriam as paredes.
Feito isso, ficaria com uma espécie de salinha de visitas, muito agradável
para o verão, admitindo que ainda ali estivesse por ali.
Pronto o meu quarto, chamei a Catarina e a Angelina. A primeira
exclamou:
— Como está lindo, menina Gillette!... Isto ficou um verdadeiro
ninhozinho, onde dá gosto viver!
Angelina observou tudo com olhares inquiridores, dizendo por fim, num
tom um tanto irônico:
— Não está mal. Prefiro porém os móveis novos, a estas velharias.
Ironicamente, retorqui-lhe:
Cada um tem o seu gosto, e além disso os velhos móveis têm muito mais
valor.
Como são bonitos os móveis da Bottellerie! — exclamou Catarina, com
um acento de admiração. Oh! Se visse o salão, menina Gillette! Tudo aquilo
porém não serve para nada. Não é por que as senhoras não gostem de
receber, mas o senhor visconde não permite mais do que três ou quatro
recepções, por ocasião das caçadas. Então é que é magnífico! O senhor de
Trézonnes não olha a despesas naquelas ocasiões. Depois volta a calma, e
as senhoras têm de se contentar em fazer e receber visitas entre as famílias
dos arredores.
Tiago, que batia um prego para um quadro, exclamou do alto da escada:
VII
Por conselho da Catarina fui alguns dias depois fazer uma visita ao abade
da aldeia e a uma velha senhora, os quais, tanto um como a outra, tinham
conhecido o senhor de Sauriages, sendo òptímamente recebida pelos dois. A
senhora Mossette, uma velhinha quase cega, mas muito agradável, pediu-
me que a fosse ver algumas vezes. Falou-me dos meus pais, que vira
noutros tempos na Meulière, quando vinham passar alguns dias a casa do
tio.
— Tem a mesma voz de seu pai, minha menina; era uma voz tão
encantadora e expressiva, que logo nos dominava. Parece-se com ele no
físico?
— Parece que sim, minha senhora. Em especial nos olhos.
— Então devem ser muito bonitos. Os dele tinham um encanto
inesquecível Era também muito afectuoso e terno para com a esposa...
Pobre senhora de Arbiers! Fiquei deveras contristada quando soube da sua
desgraça...
Saí bastante reconfortada da pequena casinha, toda pintada de
cinzento, que a senhora Mossette habitava, à entrada da aldeia, e dirigi-me
para a igreja. As mulheres, quando eu passava, baixavam a cabeça,
olhando-me depois com mais benevolência do que curiosidade. Os homens
cumprimentavam-me, e as crianças diziam-me: “Bom dia, minha senhora!”.
Mantinham-se ainda, entre esta boa gente, estes gestos de delicadeza, hoje
tão menosprezados.
A igreja, misto do século XIV e dos primeiros alvores da Renascença,
tinha alguns lindos motivos esculturais, que logo pensei vir um dia admirar
com mais vagar. Entrei e ajoelhei-me ao fundo da nave escura. Do íntimo
da minha alma pedi a Deus para abençoar os meus passos nesta aldeia, e
comigo, os de todos aqueles que haviam acolhido com tanta bondade a
órfã arruinada.
Assim fiquei por longos minutos, na calma obscuridade da nave
deserta, na suave doçura daquele ambiente divino. Como precisava porém
de fazer a minha visita, dirigi-me para o presbitério, velha construção que
se erguia à direita da igreja. A irmã do abade fez-me entrar para uma sala
de espera, onde, pouco depois, apareceu um sacerdote, muito idoso,
baixinho e magro, e cuja fisionomia mantinha uma admirável vivacidade de
expressão. O abade mostrou-se muito bondoso, muito paternal, e falou-me
também de meus pais, mas sobre tudo do senhor de Sauriages.
— Era um bravo, mas muito original. Éramos muito amigos!... Mas
a sua casa está na verdade em condições de ser habitada, minha senhora?
— Um compartimento do primeiro andar está bastante razoável,
senhor abade. Já estou ali instalada e parece-me que fiquei bem.
— Oh! tanto melhor!... Pensa ficar algum tempo entre nós?...
Principiei por lhe explicar a minha situação. Abanou a cabeça e
reflectiu um momento:
— Oh! É pena!... É pena!... Se pudesse ficar aqui!... As nossas
jovens aldeãs apenas pensam em sair... Assim, seria um óptimo exemplo o
verem uma jovem da cidade fixar residência entre nós.
— Mas, senhor abade, preciso trabalhar para viver.
— Sim, tem razão; mas talvez se pudesse arranjar qualquer coisa
que lhe permitisse ficar aqui...
Respondi-lhe, sorrindo:
— Talvez seja possível fazer de mim uma lavradeira?... Já esta
manhã a Catarina me começou a ensinar como se faz a manteiga, e desde
anteontem tenho ido com ela ao galinheiro.
— Não seria assim muito mal pensado!
— O que acontecia, era eu ficar uma lavradeira sem quinta,
senhor abade. A Meulière está arrendada aos Bardeaumes. E, além disso,
antes que eu adquira alguma prática, ainda leva muito tempo.
— Não poderia tentar outro serviço qualquer, que lhe permitisse
ficar em casa?... Uns bordados, por exemplo?
— Bordo regularmente. O difícil será arranjar alguém que compre
os meus trabalhos por um preço razoável.
— Sim, é isso o pior da questão. Mas vou-me informar e falar com
a senhora Mossette, que tem umas sobrinhas em Paris. Seria uma grande
corsa se pudesse evitar o ir viver para casa dos outros.
Quando contei à Catarina esta conversa, exclamou:
— Também sou da opinião do senhor abade. Já que a menina se
conforma em viver na casa, no estado em que se encontra, seria muito
preferível que aqui ficasse. Os bordados é que estão de acordo com os seus
finos e brancos dedos.
— Os meus finos e brancos dedos!... Precisam calejar-se muito,
minha boa ama. Assim, dê-me alguma coisa da sua costura para terminar o
dia.
Catarina protestou, mas vendo a minha insistência teve de ceder.
Sentada junto à janela, pus-me a coser algumas camisas de pano grosso,
enquanto no outro lado da sala Angelina passava roupa, com toda a
indolência.
Sentia-me muito vacilante sobre a decisão a tomar. As palavras do
abade haviam arreigado em mim o intimo desejo de me instalar em
definitivo na minha velha casa, pois receava ter de ir viver, como
empregada, na casa dos outros. Que seria de mim? Por que desgostos não
teria eu de passar ainda? Por outro lado, com excepção do vestuário, estaria
livre de todas as despesas, o que me permitiria, todos os anos, guardar
alguma pequena economia para o futuro. Ora precisamente no dia seguinte,
recebi a resposta da superiora do meu convento, aconselhando-me também
a ficar na Meulière:
"Tem um feitio muito independente, minha filha" — acrescentava ela—,
"e por isso ficará muito melhor aí. Segundo depreendi das cartas que me
escreveu, noto que é sempre a mesma, muito impulsiva, muito franca, e
apenas se deixando levar por quem a estime. Creio que o lugar de
professora em casa duma família não seria muito aconselhável, e muito
menos ainda como dama de companhia. Com os seus pequenos
rendimentos, e estando já instalada, não poderá arranjar de forma a poder
viver no campo? Parece-me que sim. Acho esta solução a melhor para si,
minha filha. Inteligente como é, dum espírito clarividente e engenhoso,
encontrará sempre em que se ocupar. Talvez mesmo, auxiliada pelos seus
bons caseiros, possa conseguir algumas fontes de rendimento com os
produtos agrícolas, como sei de muitas senhoras de igual posição social.
Creio que estaria à altura de tal tarefa, visto que é activa e perseverante.
Enfim, pense bem. Se não estiver de acordo comigo, seja franca; procurar-
lhe-ei um emprego".
Esta carta pôs termo à minha indecisão. Resolvi seguir estes conselhos,
que estavam tão de acordo com os meus desejos. Ia arriscar-me, mas
estava sempre a tempo de seguir qualquer outro caminho, mais tarde, se o
julgasse conveniente. Para o momento, e feito o meu pequeno orçamento,
estava certa de poder viver modestamente na minha velha casa — pelo
menos enquanto ela se mantivesse de pé, visto que me era de todo
impossível proceder a quaisquer reparações, ainda as mais urgentes.
Enquanto estivesse direita e a chuva não invadisse o meu quarto, como
sucedia já nos outros compartimentos, teria ali um abrigo, estaria “na
minha casa”, palavras mágicas, que me fizeram preferir uma vida de
privações, a uma existência luxuosa "em casa dos outros".
Catarina exultou de alegria, quando lhe comuniquei a minha resolução.
Em seguida tratámos da minha pensão, que continuariam a mandar-me à
herdade, e que ela se obstinava em querer fornecer-ma de graça. Como
chegasse Bardeaume, enquanto conversávamos a tal respeito, foi
combinado que continuasse a vender, em seu proveito, os legumes do meu
jardim, afirmando ele que o negócio ia compensá-los largamente da
pequena despesa que iam ter comigo.
Quando dois dias depois, o abade veio agradecer-me a minha visita, ficou
muito satisfeito com as notícias que lhe dei, e disse-me que a senhora
Mossette, de perfeito acordo com ele, escrevera a uma das sobrinhas,
pedindo-lhe para se informar junto das pessoas conhecedoras do negócio,
sobre as probabilidades de venda dos meus trabalhos.
Todos pareciam muito satisfeitos com a minha resolução, excepto a
Angelina, segundo notei na sua fisionomia. Tinha a impressão de que a
nossa antipatia era recíproca; porém isso importava-me pouco, visto que
todos os outros, mesmo o criadito, eram óptimas pessoas, que me
rodeavam de atenções e se julgavam felizes por me terem junto deles.
Na semana seguinte voltei a visitar a senhora Mossette. Ainda não tinha
tido resposta da sobrinha. Li-lhe um bocado num livro do seu agrado e
prometi voltar mais amiudadas vezes. Tinha por ela já uma grande estima, e
o seu espírito, ainda vivo, e a sua cultura intelectual tornavam-na muitíssimo
interessante. Falou-me do castelo da Bottellerie, onde vivera na sua
mocidade, descrevendo-me, com lindas palavras, as caçadas com galgos
em que tinha tomado parte.
— Os Trézonnes foram sempre uns apaixonados caçadores — disse ela.
— O actual castelão mantém o costume tradicional, segundo creio.
Conheço-o pouco. Vem fazer-me uma visitinha de cinco minutos, uma vez
por ano — em Janeiro. É um homem elegante, dum andar aristocrático,
mas dum espírito bastante reservado, segundo parece. É temido e não
amado. No entanto conseguiu entre nós uma esplêndida situação. Não é
evidentemente uma inteligência vulgar, mas não queria por maneira
nenhuma ser sua mulher.
Lembrando-me da fisionomia que conseguira entrever, exclamei
também:
— Nem eu!
A senhora Mossette riu-se.
— No entanto ficar-lhe-ia muito bem o título de viscondessa, e além disso
riquíssima, como será a futura senhora de Trézonnes!
Ri-me também, respondendo:
— Só isso não me bastaria. Antes de tudo estará o marido. Ora o senhor
de Trézonnes é um espírito pouco acessível, segundo ouvi dizer. Afirmam
mesmo que não tem coração.
— Isso não sei; mas pode muito bem ser que o cérebro, tão
admiràvelmente equilibrado, o tenha absorvido. E seria uma grande
desventura para ele, porque o coração, é sempre o coração!...
O seu rosto enrugado pareceu iluminar-se, enquanto pensava, talvez,
em todas as afeições da sua vida, já desaparecidas, mas sempre vivas na
sua alma.
VIII
IX
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVIII
XIX
XX
FIM
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