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O Violino de Rothschild
ePub r1.0
I.S. 01.02.2020
Título original: Скрипка Ротшильда
Anton Tchekhov, 1894
Tradução: Noé Silva
Editor digital: I.S.
ePub base r1.0
O Violino de Rothschild
1894
O VIOLINO DE ROTHSCHILD
Pela expressão do seu rosto, Iákov viu que o caso era grave
e que polvilho algum ajudaria; compreendeu que Marfa
morreria logo, de uma hora para outra. Tocou o enfermeiro
levemente pelo cotovelo, piscou-lhe um olho e disse a meia
voz:
• Não tenho tempo, não tenho tempo, meu caro. Pega a tua
cara-metade e vai-te com Deus. Até à vista.
árvore:
Ele estava perplexo: como é que não fora uma vez sequer
ao rio naqueles quarenta, cinquenta anos, e, se alguma vez
ali estivera, como pôde não haver-lhe prestado atenção?
Pois aquele era um rio considerável, nada desprezível;
poderia pescar ali regularmente, vender o pescado a
comerciantes, funcionários públicos e ao copeiro da estação
e depois depositar o dinheiro no banco; assim como tocar
violino em algum barco que navegasse de uma herdade a
outra, e os passageiros de todas as camadas pagariam pela
música; outra possibilidade era pôr de novo barcas no rio,
coisa melhor que fazer caixões; por fim, poderia criar
gansos, abatê-los e, no inverno, enviá-los para Moscou; só
com a penugem, certamente ganharia uns dez Rublos por
ano. Mas ele deixara escapar a oportunidade, não fizera
nada daquilo. Que prejuízo! Ah, que prejuízo! E, se
pescasse, tocasse violino e criasse gansos, tudo junto, que
capital não teria juntado! Aquilo porém não acontecera nem
em sonhos; a vida não lhe trouxera nenhum proveito,
nenhum gozo, fora desperdiçada inteiramente; já não tinha
nada pela frente e, quando olhava para o passado, não via
nada além de prejuízos, e tais, que até sentia calafrios. Por
que uma pessoa não consegue viver de um modo que
exclua a possibilidade dessas perdas, desses prejuízos? Por
que cortaram o bosque de bétulas e o pinhal? Por que não
plantavam nada no pasto? por que as pessoas sempre
fazem exatamente aquilo que não é necessário? Por que
Iákov a vida inteira injuriara, gritara, arrojara-se de punhos
cerrados, ofendera a esposa, e ― por fim ― que
necessidade tivera pouco antes de insultar e pôr a correr
aquele judeu? Por que, de modo geral, as pessoas dificultam
a vida uma das outras? Pois que prejuízos isso gera! Que
imensos prejuízos! Se não existissem o ódio e a maldade, a
vida de cada um seria de imenso proveito para os outros.
◦ Dê o violino a Rothschild.
1894
ANTON PAVLOVITCH TCHEKHOV (Tapanrog, Rússia, 1860 -
Hadenweilcr, Alemanha, 1904) Neto de camponeses,
recebeu uma formação escolar precária, na província. Para
prover às necessidades econômicas da família e custear os
seus estudos de Medicina, em Moscou, Tchekhov escreve
contos humorísticos e crônicas, que publica em jornais. Em
1884 é editada a sua primeira recolha de contos. Datam
também dessa altura as primeiras peças de teatro: Os
Malefícios do Tabaco (1886), Ivanov (1887, a mais
importante das obras deste período), O Urso (1888), O
Pedido de Casamento (1888) e O Casamento (1889). É com
a publicação de uma novela, Â lístepc (1888), que Tchekhov
vê consolidada a sua posição de escritor. Dos jornais
humorísticos em que colaborava, passa a escrever para
revistas literárias; e o conto, até então considerado gênero
menor na Rússia, assume nova importância. Em 1890 viaja
pela ilha de Sacalina, lugar de deportação dos condenados a
trabalhos forçados, e descreve-a num livro objetivo e
comovente (1893). Viaja pelo estrangeiro em 1891, e
compra uma propriedade nos arredores de Moscou.
Preocupado com a sorte dos camponeses, manda construir
escolas e estradas. Os anos de 1891 a 1897 são bastante
férteis para a sua obra: desta época data A Enfermaria nº 6,
uma das suas novelas mais notáveis. Toda a dramaturgia
tchekjhoviana é caracterizada por uma aversão aos
acontecimentos espectaculares ou "teatrais".
Entretanto, o encontro com a arte de Stanislavski e o Teatro
de Arte de Moscovo é decisivo para o desenvolvimento da
concepção cênica de Tchecov. A Gaivota (1896) fracassa
aquando da sua estreia em Moscou, que coincide com o
agravamento da tuberculose de que Tchekhov padecia há
anos. Passa o Inverno de 1897-1898 em Nice, e em 1899
compra uma propriedade em Yalta, na Crimeia. Só após o
seu casamento com Olga Knipper (1898), primeira atriz do
Teatro de Arte, de Stanislavski, têm início os seus triunfos
dramáticos. É nos últimos anos de vida que Tchecov escreve
as melhores peças da sua produção: O Tio Vânia (l 899), As
Três Irmãs (1901) e O Pomar das Cerejeiras, a sua obra-
prima (1904). Ao lado de Gogol e Gorki, Tchekhov é dos
maiores contistas da literatura russa. Debruçando-se
piedosamente sobre os diversos tipos sociais da época,
Anton Tchecov não revela nas suas obras quaisquer
tendências políticas ou religiosas, ao contrário de tantos
escritores russos. Não obstante a sua irreligiosidade,
confere às coisas mais insignificantes um conteúdo
densamente filosófico e uma tonalidade estranhamente
mística.