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M. DELLY
PRIMEIRA PARTE
Com alguns traços rápidos Raimundo terminou o desenho que estava fazendo,
ergueu os olhos e fitou longamente a paisagem que acabara de reproduzir.
Achava-se num terraço pedregoso, cercado de bétulas e pinheiros. Seu
olhar afundava-se pelo desfiladeiro em cujo fundo refervia, invisível,
pequena torrente impetuosa; à sua frente elevava-se enorme penhasco cor
de fumaça, com estrias ruivas, alevantado entre os pinheiros e carvalhos
que cobriam tudo que não era a rocha nua.
Ao cair da tarde cinza, um resto de luminosidade difusa se irradiava do
sol baixo no horizonte, velado por uma grande nuvem côr de pérola. Essa
branda claridade tocava de leve o cimo do enorme penhasco e acariciava os
arbustos que se curvavam para a húmida frescura da torrente, do alto do
despenhadeiro, onde estava o pequenino terraço de balaustrada de pinho
vermelho, florido de roseos gerânios.
Naquela solidão, o silêncio só era perturbado pela efervescência da
torrente. Entretanto, Raimundo percebeu um ruído de passos. Voltou-se e
viu uma moça subindo a álea de pinheiros que ia dar no terraço. A sombra
em redor fazia parecer mais pura a sua fina silhueta num leve vestido côr
de lavanda, a sua tez delicada e os cabelos louros. Seus pequeninos
sapatos de camurça cinza roçavam o chão tapetado de folhagens.
Raimundo perguntou-lhe sorrindo:
— Vens me buscar, Paula?
— Não, Raimundo. São só seis horas. Estou à procura de Ariana, que deve
ter vindo para estes lados.
— Não a vi por aqui.
— Mas virá com certeza. Vamos esperá-la um pouco.
— Sim, mas preciso chegar em casa antes do jantar para vestir o smoking.
Enquanto assim falavam, ela galgava os poucos degraus rústicos que
conduziam ao terraço. Raimundo ofereceu-lhe a mão para galgar o último e
Paula firmou-se nele, agradecendo-lhe com um sorriso.
— Estás desenhando o Penhasco do Inferno?
— Sim, esta é a hora melhor. As sombras o cercam, mas os contornos são
nítidos ainda. Que achas do desenho?
— Ótimo. Estás progredindo, Raimundo. A advocacia tem entre seus membros
um verdadeiro artista.
Riu-se, e Raimundo lhe fez éco.
— A propósito de advocacia, não achas que o sr. Daubrey mudou muito,
depois do seu recente sucesso?
Raimundo deu de ombros, ligeiramente.
— É, ficou mais convencido ainda.
— Convencido? Que idéia!
Havia na voz de Paula um tom de contrariedade.
— O que ele tem é consciência de seu valor, que é bem grande. Dizes isso
devido a seu modo meio frio. Mas sabes perfeitamente que êle é um homem
encantador.
— Desculpa-me não participar do teu entusiasmo por êle. Não faço nenhuma
objeção ao seu valor profissional. Mas, por outro lado, nossas idéias e
opiniões são por demais divergentes para que possamos ser simpáticos um
ao outro.
Paula deu alguns passos até à balaustrada. Como tivesse saído de sob a
sombra dos pinheiros, a suave luz da atmosfera tocava-a agora. Sua tez
tinha a transparência de uma frágil porcelana, levemente rosada. Embora
alta, sua figura delgada e flexuosa dava a impressão de uma graça
ligeira. Com um gesto lento pousou as mãos finas e brancas sobre a
madeira rugosa da balaustrada.
— Aludes decerto a sua descrença, a suas idéias políticas, a sua educação
diferente da tua?
Falava sem olhar para Raimundo. Seus olhos pareciam considerar o penhasco
erguido diante dela como uma gigantesca sentinela guardando o
desfiladeiro.
Raimundo deu uma resposta breve:
— Com certeza é por isso.
Adiantou-se e veio para junto de Paula. O laço de parentesco que havia
entre ambos se patentearia a um observador pela semelhança de alguns
traços, mas esta não era quase notada quando se viam, junto uma da outra,
a fisionomia de Paula, de uma delicadeza quase excessiva, e a de
Raimundo, tão viril não obstante a sua finura, com aquele olhar firme,
ardente, dominador, mas que às vezes se amenizava tanto, como naquele
momento em que pousava em Paula, apoiada com as duas mãos na balaustrada,
inclinando para o sombrio desfiladeiro seu talhe esguio que lembrava o
comprido caule de uma grande flor elegante.
—... Um pouco por isso, mas também porque nossos temperamentos diferem
muito. Tenho alguns camaradas e mesmo um amigo que infelizmente não tem a
mesma crença que eu; alguns têm idéias políticas inteiramente opostas às
minhas; entretanto, embora, divergindo, não deixo de estimá-los, porque
os considero sinceros. O que precisamente reprovo em Daubrey é sua
absoluta falta de convicções, quaisquer que sejam, sua amoralidade
fundamental, de que tive provas, seu desprezo por todas as "velhas
frioleiras", que
é como êle qualifica as coisas que mais respeitamos e que fazem a força e
a honra de uma raça. Êle não passa de um "arrivista" em toda a acepção do
termo, capaz de defender as piores causas, contanto que lhe tragam lucro.
— Creio que exageras. Não tenho absolutamente a mesma impressão. Nem
mamãe. Às vezes és muito severo nos teus julgamentos
Raimundo ergueu os olhos para ela e sorriu, como para atenuar a
reprovação contida em suas palavras.
—... Devemos ser indulgentes com êle, pois não teve, como tu, a sorte de
ser orientado por bons guias desde a infância.
Raimundo pousou a mão sobre o ombro dela e disse com doçura:
— Não passas de uma criança, Paula. Há coisas que não podes compreender.
Ela mostrou um ar contrariado:
— Quer dizer que me consideras uma tola.
Êle inclinou-se, beijou-lhe os cabelos louros e repetiu com brandura, num
tom carinhoso:
— Não passas de uma criança encantadora e eu te amo, minha noiva, minha
Paula.
Todo vestígio de contrariedade desapareceu do lindo rosto. Paula curvou
um pouco a fronte e ofereceu-a ao beijo de Raimundo. Êle enlaçou-a, num
gesto de senhor. Não lhe pertencera ela sempre, essa loura priminha que
conhecera em criança, quando já se dizia: "Paula vai casar com Raimundo"?
Os pais de ambos eram primos irmãos e as duas famílias tinham vivido
sempre na mais afetuosa intimidade. Desde muito estava tacitamente
convencionado que Paula casaria com Raimundo assim que este assentasse a
sua situação na advocacia.
Êle murmurou-lhe:
— Querida, no fim do inverno, nos casaremos. Tenho algumas causas que
espero me darão um nome do qual te orgulharás. Até há pouco eu não
passava de um advogadozinho desconhecido cujos ganhos eram
insignificantes.
— Oh, bem sabes que não precisas te preocupar com isso. Tenho dinheiro, e
mamãe nos dará tudo...
— Não quero ser rico à custa de minha esposa, não o ignoras.
— Bem sei que és orgulhoso.
Paula olhava-o com ternura. Seus olhos, de um azul variável, tinham a
doçura de uma carícia, sob a sombra dos cílios louros que lentamente
baixara.
Êle perguntou, com a mesma voz sussurrante:
— Tu me amas?
— Sim, eu te amo.
Compraziam-se assim em redizer o que já sabiam, como todos os
apaixonados. Paula se acolhia toda entre aqueles braços vigorosos,
protetores. A claridade pálida do poente pousava em seus cabelos louros
sem lhes tirar o mínimo reflexo. Em baixo, no desfiladeiro, o arvoredo
banhava-se nessa luz expirante.
Passou um frêmito pela folhagem e um grande corpo felpudo guiou de uma
moita à borda do terraço. Paula virou-se e disse sorrindo:
— Olha Aby. Ariana não deve estar longe.
— Ainda há pouco falaste da mudança operada em Daubrey. À que se operou
na irmã também é sensível.
— Deves notá-la mais, pois há tempos não a vias. Ela está linda.
— Sem dúvida! respondeu Raimundo, fazendo uma carícia ao cão que se
aproximava.
Ouviu-se um ruído de passos apressados, vindo de um estreito atalho
sinuoso que ia dar ao fundo do desfiladeiro. Paula disse alegremente:
— Essa Ariana é corajosa. Já explorou todos esses caminhos.
Em baixo do terraço apareceu uma moça de vestido cinzento, o rosto
afogueado pela caminhada e pelo ar livre.
Com alguns saltos ágeis alcançou o terraço e chegou junto de Paula e
Raimundo.
— Vim ver outra vez esse famoso Penhasco do Inferno. É a esta hora que
êle fica mais terrível.
— É, sim. Veja-o, senhorita.
A imensa rocha cinzenta estava tenebrosa. A luz fugia-lhe do cimo. O
desfiladeiro era um negro abismo, donde subia o rumor da água
turbilhonante.
De bruços na balaustrada, Ariana curvava para o abismo a cabeça penteada
em leves cachos. Um raio de sol, prestes a desaparecer, parecia querer
demorar sobre aquelas madeixas de um tom mate. Quando ela se ergueu, seus
olhos violeta pareciam iluminados por aquela pálida luz.
— Esse penhasco lúgubre bem merece o nome que tem. Não me disseste, Paula
que êle tem uma história?
— Sim, é uma lenda, que talvez não seja senão a pura verdade. Outróra uma
moça, desesperada, atírou-se lá de cima no abismo, diante do noivo que a
tinha abandonado. Êle estava aqui neste lugar, diz-se. Cheio de remorsos,
êle fugiu, vagueou muito tempo à toa e por fim refugiou-se num mosteiro,
onde, após longos anos de espiação, morreu após grandes padecimentos,
conforme desejara, para obter a salvação da alma de sua noiva.
Um traço de ironia se desenhou nos lábios frescos e rosados de Ariana.
— Pobre moça! Morrer de amor, que loucura!
— Acha que não vale a pena, senhorita? perguntou Raimundo.
Êle atentava com interesse no rosto dela, de uma atraente beleza, o que
estava em grande desacordo com a lembrança que tinha guardado da pequena
estudante risonha que dizia frases engraçadas, vestia-se mal e ria-se ela
própria do seu andar desconjuntado, de seus movimentos desgraciosos, de
seus traços mal feitos.
— Quando eu estiver de toga na bancada dos advogados me confundirão com
meus colegas masculinos, costumava ela dizer.
Naquela época, Raimundo era da mesma opinião, principalmente quando via
Ariana junto de Paula, esta tão fina, elegante e feminina. Agora, porém,
não era mais assim. Sem possuir uma beleza perfeita, Ariana tinha mais do
que isso: a graça dos movimentos, uma fisionomia extraordinariamente viva
e expressiva, a tez de um suave mate, que um sangue vivo e novo por vezes
coloria, e uns olhos que pareciam guardar um mundo de pensamentos, ora
graves, ora alegres.
À pergunta de Raimundo, Ariana teve um riso de mofa:
— Oh, naturalmente que não. O amor é uma coisa que não me interessa.
— Falas assim, mas um dia...
Paula dera o braço à amiga. Ao mesmo tempo, enviou ao noivo um olhar que
significava: "Eu por mim já sei quanto o amor é doce e desejável".
Ariana riu-se novamente.
— Pelo menos, não creio que o amor me enlouqueça a tal ponto. Por
enquanto o meu trabalho, a minha profissão, me bastam. Esses não me farão
sofrer, — do coração, quero dizer. O único sofrimento que temo é este.
Inclinou-se mais uma vez para olhar o fundo do abismo, e Raimundo notou o
lindo tom dourado da sua cabeleira sob o reflexo da luz.
— Creio que está na hora de voltarmos. Tenho que me pentear novamente,
depois de ter passado por esses deliciosos caminhos, onde os ramos sem
nenhuma cerimônia se agarram nos nossos cabelos.
— Não se percebe, disse Paula. Já não és mais a pequena esgadelhada de
antigamente... Lembras-te, Raimundo?
— Muito, disse êle, sorrindo.
Um leve riso soou. A alegria brilhava nos olhos 'de Ariana.
— Eu também me recordo de um moço muito correto que uma vez me fez uma
observação sobre o desmazelo de minha toilette. Foi na praia de Cabourg.
Eu tinha doze anos. Fiquei com raiva de si oito dias, meu senhor, depois
passou.
Um sorriso entreabria-lhe os lábios, subia até os olhos, um fino sorriso
em que havia um pouco de brincadeira, um pouco de ironia.
Raimundo replicou alegremente:
— Teve toda a razão. Meti-me no que não era da minha conta e foi grande
bondade de sua parte não me guardar rancor.
Ela deu de ombros ligeiramente, com um franzido de mofa nos lábios, que
significava igualmente: "É que, no fundo, aquilo não me atingia". Em
seguida inclinou-se para lançar um olhar ao álbum que Raimundo colocara
sobre um banco.
— É seu? Posso ver?
Raimundo apanhou-o e entregou-lhe. Ela folheou-o demoradamente. Paula, a
seu lado, inclinava-se para olhar na severa moldura dos pinheiros.
Apoiado na balaustrada, de costas voltadas para o Penhasco do Inferno,
Raimundo contemplava-as, pensando: "Qual das duas é a mais linda"? E seu
coração enamorado respondia sem hesitar: "É Paula, a minha Paula, de
traços finos e tez de flor apenas desabrochada".
Ariana ergueu os olhos e disse:
— O senhor tem muito talento, de fato. É pena que não tenha seguido a
carreira artística em vez da advocacia... Mas preciso ir andando, já é
hora de me vestir. Não vens, Paula?
— Não, já estou pronta. Fico mais um pouco. É delicioso respirar este ar,
depois de um dia de calor horrível. Raimundo te acompanha, êle também
precisa voltar.
Os dois jovens, precedidos por Aby, meteram-se pela álea de pinheiros que
descia em suave declive. Ariana expressou o seu prazer em conhecer aquele
canto de Périgord, tão pitoresco, e a velha casa, herança de Paula, por
onde várias gerações dos Evennes haviam passado. Nada era mais expressivo
que sua voz de timbre claro, e Raimundo, ouvindo-a, dizia consigo: "Com
esta voz e esses olhos ela ganhará todas as causas".
Ao fundo da álea estendia-se um pátio à moda francesa, que precedia a
casa, vasta construção do século XVII, cuja fachada, dando para o jardim,
quase desaparecia sob a folhagem de tons de cobre. Em pé, junto de um
teixo cortado em forma de cogumelo, um homem alto e espadaúdo contemplava
a casa atentamente. Ao ouvir passos, voltou-se e veio ter com Ariana e
Raimundo.
— Chegaste esta manhã e já andas percorrendo o parque, Ariana? Sem
dúvida, Evennes, descobriu minha irmã em algum atalho de cabras.
Falava em tom de gracejo. Um sorriso lhe adoçou a cara raspada, de traços
fortes, dando súbito brilho aos seus olhos verde-claro.
— Não, absolutamente. Encontrámo-nos no terraço, em frente ao Penhasco do
Inferno.
— Ah, o célebre penhasco. Irei vê-lo amanhã. Ariana disse, com um leve
tom de desdém:
— São coisas que não te interessam. Fernando Daubrey deu pequena risada,
e alisou uma mecha de seu espesso cabelo negro.
— De fato não sou, como tu, um entusiasta da natureza. Em todo caso
apraz-me uma bela paisagem. Dá um certo repouso ao espírito... Evennes,
quando se julga o processo Valliers?
— Lá para dezembro ou janeiro. Estou consultando agora todas as peças dos
autos.
— É uma ótima causa. Um caso que apaixona. Invejo-o, meu caro.
— Não lhe faltam causas, no entanto. Disseram-me que vai ser o defensor
de Vernouroux.
— É exato. Êle não teria a coragem de dirigir-se a si, meu caro. Nas
rodas da alta pirataria todos conhecem bastante a intransigência do Dr.
Evennes.
Esboçara um sorriso; mal se percebia em seu tom um leve sarcasmo.
Raimundo disse com frieza:
— De fato, tenho um grande desprezo por essa gente e não quereria
defendê-los.
Ariana distraía-se a bater na face com uma dália vermelha que acabara de
colher. Seu olhar interessado ia da fisionomia fina e expressiva de
Raimundo à de Fernando, mais rude de traços e não desprovida de uma certa
beleza vigorosa mas que se tornava impenetrável pela rigidez de seus
traços e pelo olhar indecifrável sobre o qual às vezes se baixavam as
grandes pálpebras moles.
Às últimas palavras de Raimundo, Ariana replicou, num tom entre gracioso
e mofador:
— No entanto, defendendo essa gente é que se faz nome. Esses altos
financistas, trapaceiros de alta marca, fazem a fortuna de um advogado e
lhe dão notoriedade. Ora, não é isto que se deseja alcançar, quando se
escolhe uma carreira?
— Esse desígnio deve considerar-se secundário, senhorita. O principal é o
cumprimento do dever social e cristão, a utilização das faculdades no
sentido de melhor servir o próximo e o próprio aperfeiçoamento moral.
Depois disto, então, é permitido buscar o melhor proveito material e a
notoriedade, mas sempre dentro dos limites prescritos pela consciência.
Daubrey franziu um pouco a boca e murmurou com leve ironia:
— Aperfeiçoamento moral... consciência... Belas
palavras.
— Muito lindas, disse Ariana, com um riso fugidio.
Ela curvou-se e enfiou a dália na coleira do cão.
— Vamo-nos preparar, Aby, senão ficamos atrazados.
— Vamos, disse Daubrey, vendo que Raimundo se dirigia também para casa.
Ao chegar à porta envidraçada que dava para o vestíbulo, Ariana voltou-se
e dirigindo ao rapaz um olhar em que se percebia uma espécie de
curiosidade pensativa:
— O senhor acredita nas palavras que acabou de dizer?
— Como, se acredito?
— Devo parecer descortês fazendo uma pergunta desta. Mas sou tão céptica.
Palavras. Belas palavras, como diz Fernando. Quantas vezes as ouvimos!
Mas raramente as ações as confirmam.
— Pois isto acontece muito mais do que julga, senhorita. Lamento vê-la
tão desiludida já nessa idade.
Ela meneou a cabeça. Uma sombra toldava o brilho do seu olhar.
— Em todo caso, é possível. Desejo acreditar na sua sinceridade, mas para
isso precisaria conhecê-lo melhor, — coisa difícil, pois a alma do homem
deve ser qualquer coisa de enganosa.
— Que dizer então das almas femininas? Ela desatou a rir.
— Oh, sim, as almas misteriosas, a Gioconda e o resto. Não, não somos
assim tão cheias de enigma, creia. Os homens é que nos ornam desse
enfeite suplementar, pois nada atrai tanto como o mistério, real ou
suposto.
Ela entrou para o vestíbulo cujo chão de mosaico ressoava sob seus finos
saltos. Raimundo segui-a, admirado da sua atitude resoluta tão em
harmonia com a graça ágil do andar e dos movimentos. Em nada mais
lembrava a adolescente desmazelada, nem mesmo a menina-e-moça prestes a
desabrochar que vira uma vez em casa de Paula, um ano atrás.
Ao chegar ao primeiro andar, Ariana voltou-se e estendeu-lhe a mão:
— Não me guardará rancor pela minha descortesia?
Na penumbra, seus olhos riam. Raimundo apertou-lhe os dedos finos e
respondeu alegremente:
— Não, porque estimo a sinceridade acima de tudo.
- Também eu. Creio que nos entenderemos bem.
E desapareceu no corredor que levava ao seu quarto, enquanto Raimundo
galgava o segundo andar. Êle refletiu:
"Que natureza é a dela? Paula diz que ela é bondosa, franca, de uma
perfeita retidão moral. Mas, minha cara Paula, ela se deixa iludir
facilmente. Em todo caso deve ser um temperamento interessante, pouco
banal. Pobre moça, terá ela a força necessária para passar incólume entre
as armadilhas que a cercam, tão nova e linda, sem um apoio moral, a alma
vazia de Deus".
Depois, reportando o pensamento a Fernando Daubrey, fez a seguinte
pergunta:
"Porque acompanhou êle a irmã até aqui?"
Embora a mãe de Fernando, morta ha dez anos, tivesse sido amiga da sra.
Berta Evennes, e Ariana e Paula fossem íntimas desde crianças, êle nunca
passara das relações as mais cerimoniosas. Naquele ambiente de escola
nada havia que pudesse agradar a um vivedor como êle. Quanto a Raimundo,
quando o encontrava no Foro trocava com êle um aperto de mão sem calor,
algumas palavras e nada mais. Havia entre eles, além do mais, vários anos
de diferença na idade, e enquanto que Daubrey já era considerado um dos
nomes importantes da advocacia, Raimundo Evennes apenas saía da
obscuridade. Como este dissera à prima, as divergências que havia entre
eles eram grandes e não permitiam que uma simpatia recíproca os
aproximasse. Ficara, pois, realmente contrariado ao saber, na tarde
anterior, que Ariana e o pai, o juiz Daubrey, chegariam na companhia de
Fernando, no dia seguinte, a convite da sra. Berta, para passar o mês de
setembro na fazenda dos Pinheirais.
"Êle se ofereceu para nos trazer em seu carro, de passagem para Biarritz,
acrescentara Ariana, e quis aproveitar a oportunidade para cumprimentá-
los."
Naturalmente a sra. Berta convidara-o a ficar por alguns dias e êle
aceitara, com grande surpresa de Raimundo. Que interesse acharia êle em
ficar naquele lugar, por pouco tempo que fosse, naquele casarão isolado
onde não havia, assim como nas cercanias, os divertimentos de que
gostava?
"Afinal, talvez não lhe seja de todo desagradável fortificar-se um pouco
antes de continuar sua vida de prazeres em Biarritz", concluiu Raimundo.
Mas fazia votos pelo momento em que o carro do colega atravessasse a
cancela dos Pinheirais e tomasse o caminho do país basco.
Além disto, o enlevo da sra. Evennes pelo jovem advogado irrítava-o um
pouco. Isto datava de uma brilhante defesa, seguida de uma absolvição
imprevista, que pusera o dr. Daubrey em grande realce. A sra. Berta
admirava os que faziam sucesso. No dia dessa célebre defesa ela estava
presente, acompanhada da filha. Da bancada dos advogados Raimundo via a
linda cabeça de Paula, ornada de um pequeno chapéu de veludo cinza. Nunca
ela lhe parecera mais fina, mais deliciosamente elegante que sob aquela
abobada austera, no meio daquela assistência amontoada ali para assistir
ao sensacional processo. Desagradava-lhe que ela estivesse ali,
precisamente por causa daquela assistência, pois o processo em si não
dava azo a minúcias escandalosas e a sra. Evennes aproveitara a ocasião
para Paula ouvir Daubrey falar.
Quando Raimundo desceu do quarto encontrou a sra. Berta cantando um dueto
com Fernando. Ela ainda cantava bem e a voz de baixo de Fernando era de
timbre agradável. O juiz, afundado numa confortável poltrona, ouvia-os,
esfregando os polegares. Ao mesmo tempo que Raimundo, Ariana e Paula
entravam por outra porta. Paula extasiou-se com a voz de Fernando, a quem
a sra. Evennes fez os maiores elogios. Êle recebia-os com uma atitude de
quem está satisfeito consigo mesmo, o que intimamente irritava Raimundo.
"Como podem elas sentir qualquer simpatia por semelhante indivíduo?"
pensava.
Durante o jantar pouco falou, ocupando-se mais em estudar os novos
hóspedes dos Pinheirais. O juiz, pouco loquaz e dispéptico, bebia água e
quase não comia. Seu rosto magro, enquadrado por umas suiças grisalhas,
tinha de vez em quando uma expressão amável e aprovativa. Era sabido no
Foro que o juiz Daubrey não possuía em alto grau os dons da inteligência,
porém não se podia encontrar pessoa mais condescendente, sempre de acordo
com toda a gente. Dizia-se ainda que só por proteção alcançara as funções
que desempenhava mediocremente, sem nada dever ao próprio mérito em sua
brilhante carreira. Ao sr. Daubrey isso pouco importava. Continuava a
presidir às audiências com a mesma indiferença amável, e a tratar do
estômago, que lhe dava cuidados. Para a esposa, de natureza sensível e
temperamento doentio, fora sempre um desses doces despojos cujo egoísmo
basta para envenenar uma existência. Quanto aos filhos, há muito os
deixara em liberdade absoluta e dizia satisfeito aos amigos: "Criei-os
com toda a liberdade. Aqueles dois não receiam nada na vida".
Tal sistema dava já seus frutos em Fernando. Quanto a Ariana...
Ariana era ainda um mistério. Raimundo contemplava-a, sentada a seu lado,
conversando e rindo. O rosa-pálido de seu vestido dava mais suavidade
ainda a sua pele mate. Quando se animava, seus olhos enchiam-se de um
brilho que ofuscava. Demonstra um contentamento ingênuo e franco.
Raimundo pensava: "Ela parece ser ainda uma moça direita e honesta. Mas
em que se tornará, deixada entregue unicamente ao seu próprio juizo?
Pobre criança".
Em sua frente, Fernando Daubrey ostentava as suas largas espáduas. Fazia
"pose", como há pouco Raimundo dissera à prima. Sabendo que lhe prestavam
toda a atenção, falava muito, aliás bem. Ao contrário da irmã, cuja
fisionomia era cheia de expressão, a dele parecia impassível. O conjunto
de suas feições pareceria frio, se não fossem certos clarões vivos,
penetrantes às vezes, outras caridosos, atravessando-lhe o olhar
inteligente a que o hábil mover das pálpebras dava uma atração
enigmática.
A sra. Berta ouvia o seu hóspede com visível prazer, e Paula também.
Sorria aos ditos espirituosos do jovem advogado, com um sorriso aliás
banal, que quase não se diferençava dos que dirigia aos outros hóspedes.
Mas Raimundo, — sem compreender bem porque — sentia uma impaciência
vizinha do ódio.
II
O dia morrendo envolvia em sua luz os velhos muros de ocre da capela dos
Santos e acendia a púrpura das digitalis que brotavam das inúmeras fendas
que davam a impressão de que em breve o antigo santuário iria ruir. A
sombra parecia mais profunda sob o pórtico ogival, para o qual pendiam os
ramos de um ulmeiro secular. A fachada estreita, ornada de ingênuas
esculturas, se aclarava de móveis claridades, cada vez que um leve sopro
da brisa movia a folhagem de tom amarelado. Esses jogos de luz e sombra
pareciam preocupar Ariana, sentada numa das raízes que brotavam do chão,
mais ainda que o desenho esboçado, entre suas mãos distraídas. Aby dormia
a seus pés. De repente o cão se ergueu, farejou o vento e soltou um rouco
latido, a que outros latidos responderam.
Dois cães de caça acorreram, seguidos de longe por Raimundo em traje de
caçador. De longe, êle saudou a moça que gritou:
— A bolsa vem cheia? — Repleta!
— Tanto peor, feroz carniceiro. Os cães roçavam nela, em busca de cadeias
que ela lhes fez com liberalidade, rindo-se dos olhares desconfiados de
Aby.
Raimundo depôs no chão a bolsa e aproximou-se contente perguntando:
— Está desenhando a capela dos Santos?
— Estou tentando, somente. A fachada é linda, em sua ingenuidade.
Repare...
Com um gesto convidava-o a sentar-se junto dela, num prolongamento da
raiz. Êle sentou-se, depois de ter encostado a espingarda no tronco do
ulmeiro.
Respondendo a Ariana, deu-lhe sua opinião e alguns conselhos. Depois
contou-lhe as velhas lendas que corriam sobre a capela, com um acento de
espiritualidade mixta de poesia, pois sentia que Ariana era capaz de a
compreender.
As mãos cruzadas sobre os joelhos, ela escutava-o e interrogava-o. Quando
a folhagem se movia, uma luz fugidia roçava-lhe os cabelos, aclarava-lhe
o rosto atento e os olhos que tinham a aveludada doçura de uma corola de
flor.
— Como o senhor conta bem essas coisas. Sente-se o quanto ama esta terra
e suas velhas construções. O senhor deve ser um crente.
Êle sorriu com certa malícia.
— Ainda tem dúvida?
Ela ergueu de leve os olhos murmurando:
— Nunca se sabe.
Seu olhar perdeu-se por momento na sombria profundeza do pequeno pórtico,
depois disse pensativa:
— Gostaria de acreditar em alguém, em qualquer coisa... na bondade, na
justiça, no amor, não importa em que...
Raimundo olhou-a surpreso:
— Como, senhora, já assim? Na sua idade?
— Com a educação que recebi, aos vinte anos já se envelheceu. Não tenho
mais ilusões, A humanidade é uma coisa bem feia, a vida uma perpétua
mentira, a morte...
Estremeceu. Sua epiderme rosca pareceu empalidecer, e Raimundo julgou ver
seus olhos se velarem de uma sombra trágica.
— A morte é o fim, e a noite se faz.. A noite, o nada, depois de se ter
vivido, pensado... depois de eu ter sido eu. Não acha que é horrível?
O desenho lhe escorregara dos joelhos sobre a relva que cobria o chão em
redor da capela. Suas mãos juntaram-se, nervosamente. Antes que Raimundo
abrisse a boca para replicar, ela acrescentou vivamente:
— Oh, não, o senhor ignora esse estado. Para si a morte não é o fim de
tudo. Espera uma outra vida, uma vida melhor, até. Isto dá forças para
suportar a existência. Mas eu não possuo. Por isso me pergunto o que será
de mim no dia em que qualquer um dos grandes sofrimentos de que o mundo
está cheio vier a me tocar por minha vez.
Havia cinco dias que Ariana estava nos Pinheirais e Raimundo não vira
nela mais que uma moça alegre, cheia de espírito, sempre em movimento e
em busca de distrações. Êle não esperava descobrir a alma ansiosa e
cansada que ela lhe revelara. Ariana percebeu a sua surpresa e sorriu com
melancólica ironia:
— Admira-se? Julgava-me sempre alegre? Por felicidade, a alegria é o meu
natural, mas isso não me impede de refletir muitas vezes e sentir esse
não-sei-que, esse vazio, esse obcecante mistério cheio de trevas e
incertezas. E a minha alegria não pode fazer com que eu tenha ilusões
sobre a vida.
Raimundo sentiu-se de súbito tomado de compaixão por aquela moça em flor
e já cansada da vida, antes mesmo de a ter provado, moralmente fanada por
uma educação falta de ideal e um conhecimento precoce do mundo. E disse-
lhe emocionado:
— Lamento-a, senhorita. Não julguei que por trás desse sorriso existisse
tamanho desencanto.
Ela moveu a cabeça e os pontos luminosos dansaram em seus cabelos.
— Oh, há muitos como eu, certamente. Não sabemos de onde viemos, para
onde vamos. Enquanto isso, vivemos, gozamos alguns breves prazeres,
sofremos, — tudo isso para que? Decididamente, a vida é incompreensível.
— Muito menos para mim que para si, pois vejo nela uma finalidade eterna.
— Ah, sim, na verdade não nos podemos compreender.
Ela olhava-o sonhadoramente. Como seus olhos, tão risonhos às vezes,
podiam conter graves e profundos pensamentos.
— Eu a compreendo, e sei que, se não fosse a minha fé eu seria igual a
si.
— Porque o senhor também não se contentaria com prazeres efêmeros,
alegrias fugitivas. Sente necessidade do eterno. Sua crença lho promete.
Ao passo que eu não tenho outra perspectiva senão as passageiras
felicidades que às vezes ocorrem na terra. E é muito pouco para uma
natureza igual à minha, que quisera abraçar a vida inteira, e quisera
apoiar-se em qualquer grande força espiritual para não cair em todas
essas baixezas da existência. Ela se levantara enquanto falava e Raimundo
fizera o mesmo. Diante deles, a fachada da capela se cobria de sombra. As
dígítalís, apenas tocadas pela luz que se esvaecia, tornavam-se de um
rosa mais suave. A brisa ao passar trazia o perfume das matas e os odores
do bosque próximo por sobre o qual o sol se punha, dando-lhe uma côr de
âmbar e ferrugem.
Esse reflexo, semelhante a ouro fluido, chegava agora até Ariana,
derramava-se sobre seu leve vestido branco, sobre as ondas dos seus
cabelos e a ardente face moça banhada na atmosfera da tarde. Seus olhos
se erguiam para essa luz prestes a desaparecer, com uma patética
expressão de esperança ou de desejo.
Raimundo considerava-a com pensativa emoção. Pressentia naquela alma
jovem um valor moral bem maior do que a princípio supusera. Aquela que
não há muito dissera não temer senão o sofrimento do coração devia
possuir uma natureza profunda e sensível, sob a máscara de cepticismo.
De repente, ela ergueu os ombros e voltou para o companheiro um olhar
firme, um tanto sardónico:
— É uma tolice não tirar da vida, bem simplesmente, o que ela tem de
agradável, sem nos preocuparmos com o resto. Este é o sistema de meu
irmão. No fundo, êle tem toda a razão.
— Não diga isso. Sei que não pensa assim! contraveio Raimundo com
firmeza.
— Sei lá.
Com esta brusca réplica, Ariana curvou-se para apanhar o grande saco de
cretone que repusera no chão antes de sentar-se. Raimundo adiantou-se e
apanhou-o. Ela agradeceu distraídamente e estendeu a mão para a capela:
— Gostaria de entrar ali. Quem terá a chave?
— O cura de Severac. Posso pedi-la emprestada amanhã. Mas aviso-a que o
interior está num estado deplorável e quase nada subsiste das esculturas
que outrora a ornavam.
— Então é inútil. O vandalismo sempre me entristeceu como sendo a marca
de um espírito baixo e estúpido, que odeia a beleza e o ideal.
Ficou um momento pensativa, olhos fixos na capela. Depois sorriu, olhando
para Raimundo.
— Prendi-o aqui este tempo todo, quando decerto estava ansioso por mudar
de roupa e repousar. Sou muito egoísta. É mais um resultado da educação
que recebi. As belas e sonoras palavras "fraternidade, solidariedade" são
vazias de sentido para mim, para a minha pequenina individualidade que
não reconhece para si nenhum dever, mas unicamente o direito de apossar-
se do prazer onde o encontrar.
— É o resultado lógico do caminho por onde a fazem seguir, senhorita. Mas
com a inteligência lúcida que possue, com seu discernimento claro e
sadio, desde já percebe aonde êle a conduzirá e que desilusões lhe
reserva, sob a sua aparente facilidade. Sabe de antemão que seu
individualismo poderá fazer de si uma desamparada — ou uma revoltada.
— Mais depressa uma revoltada. É mais de acordo com o meu temperamento,
Enquanto isso tomo da vida o que ela me oferece. E hoje ela me deu o
prazer dessa conversa com o senhor, —conversa um pouco séria de mais para
uma tarde tão linda.
Deu uma daquelas risadas frescas e encantadoras
que escapavam naturalmente da sua mocidade. Em seguida ajuntou:
— Vamos quanto antes, a sra. Evennes e Paula devem estar perguntando o
que foi feito de mim.
Raimundo apanhou a bolsa de caça, passou pelo ombro a correia da
espingarda e alcançou a moça que seguia pelo campo precedida pelos três
cães. O sol agora estava baixo. A sombra envolvia os caminhos cobertos de
mato, espraiando-se pelo campo onde as urzes se descobriam. Ao longe, um
rebanho de ovelhas recolhia, mancha clara e móvel sobre o fundo sombrio
do bosque.
Ariana caminhava a passo lento, conversando alegremente. Parecia
esquecida das palavras pronunciadas há pouco. Mas Raimundo considerava-a
muito leal para pensar que ela não tivesse sido sincera, deixando-o
perceber seu precoce desencanto. Moça elegante, sabendo-se inteligente,
bonita, admirada, ela conservava ainda aquela alegria que ela própria
reconhecia ser do seu natural. Mas quando chegasse a hora da sua
experiência, que faria ela, com sua natureza vibrante, apaixonada? Que
faria essa alma jovem que parecia já dizer à vida: "Desprezo-te, pois não
podes me dar a felicidade que eu sonho."
O sol havia quase completamente desaparecido no horizonte, de malva
pálido, quando os dois jovens, após terem atravessado o campo, chegaram
em casa.
Um derradeiro clarão roçava ainda as copas amarelentas das tílias
plantadas geometricamente diante da casa. O juiz e sua hóspeda
conversavam, descansadamente, recostados em confortáveis poltronas.
Através de uma das portas do salão ouvia-se o som do piano e uma voz de
homem que cantava.
Ao ver a filha em companhia de Raimundo, o juiz perguntou com bonhomia:
— Muito bem, Ariana, também foste à caça?
— Não, papai, não gosto dessas coisas. Estava desenhando uma antiga
capela, quando os cachorros do sr. Evennes farejaram Aby e vieram me
fazer uma visita. E voltamos juntos.
— Uma agradável companhia, não acha, Raimundo?
A sra. Berta voltava para o rapaz seu rosto de loura ainda conservado,
que umas poucas rugas sulcavam. Sua fisionomia era pouco expressiva, sua
inteligência medíocre, e tinha uma acentuada tendência para o snobismo, o
que intimamente inquietava Raimundo, temeroso de que Paula sofresse nesse
ponto a influência materna.
Antes que êle tivesse respondido, Ariana disse com um leve riso tocado de
ironia:
— Muito agradável, com efeito. Só lhe falei em coisas aborrecidas... O
que é que Fernando está cantando? Não conheço essa música.
Foi até a porta e maquinalmente Raimundo seguiu-a, depois de ter
descançado a espingarda e a bolsa.
O salão, sombreado pela proximidade das árvores, achava-se em penumbra.
Entretanto, Raimundo distinguiu logo a forma clara de Paula, sentada ao
piano, e suas mãos longas e brancas movendo-se sobre as teclas, de onde
saíam sons entrechocados, de audaciosas dissonâncias. Fernando Daubrey
estava em pé, ao lado dela. Acabara de cantar, soltando uma única nota
bizarramente contrastante, e voltando-se, deu com Ariana e Raimundo. —.
Que ária é essa tão cacofônica? perguntou Ariana, gracejando.
Fernando deu de ombros, lançando à irmã um olhar de desdém.
— Não compreendes nada da música moderna. Estou certo de que a senhorita
Paula a aprecia.
Paula estava meio voltada, no tamborete. Seus olhos erguiam-se para
Fernando, sorridentes e alegres.
— Para dizer a verdade, acho-a um pouco obscura. Mas creio que com o
tempo habituarei o ouvido e acabarei por descobrir-lhe as belezas.
— Habituar o ouvido a isso? Espero que não! disse Raimundo secamente.
Essas estranhas lucubrações não merecem que se procure compreendê-las.
— És bem antiquado, hein, Evennes?
Um vinco sardônico repuxou o lábio grosso de Fernando. Raimundo respondeu
no mesmo tom seco:
— Mas não sou snob. Não compreendo que se fique em êxtase diante da
incoerência e da falta de gosto.
— É isso mesmo! disse Ariana. — Não encontrarás aqui admiradores da tua
música selvagem, meu caro, porque Paula gosta é do gênero, sentimental,
tipo miosotis, romance ao luar, etcetera.
Olhava para a amiga com afetuosa malícia, Paula porém corou um pouco e
mostrou um ar contrariado.
— Também sei apreciar outras coisas, minha cara amiga. De fato a música
moderna surpreende a princípio, mas procurando-se estudá-la e descobrir-
lhe as belezas, acaba-se compreendendo e gostando.
— A senhorita há de chegar lá, com toda a certeza, disse Fernando. Possue
bastante inteligência e compreensão artística para que a nova expressão
da arte musical não a deixe insensível.
Raimundo, cujos nervos estavam excessivamente irritados, reteve uma
resposta que lhe viera à boca e que teria sido em excesso mordaz para
dizer-se a um hóspede. Porém Ariana replicou com ironia:
— Quer dizer que minha inteligência, minha compreensão artística e a do
senhor Evennes estão abaixo da crítica. Fico muito agradecida. Mas pelo
menos tenho o consolo de estar em boa companhia.
Fernando deu de ombros novamente, fitando-a sem amenidade.
— Oh, sempre tiveste umas idéias esquisitas. Sabem qual é a música que
ela gosta? O cantochão gregoriano.
— É uma música incomparável! exclamou Ariana com fervor. Que sobriedade,
que desenvolvimento admirável. Vocês, que têm espírito religioso, não
devem suportar outra música.
Fernando escarneceu:
— Olá! Estão vendo só o entusiasmo dela? Bem, com licença. Preciso
escrever uma carta ainda antes do jantar, para mandá-la pelo chauffeur,
que amanhã cedo deve ir à cidade, a mandado da sra. Evennes. Até já.
Dirigira-se principalmente a Paula, acompanhando as palavras de um amável
sorriso, a que a moça correspondeu.
Ariana afastou-se também e os noivos ficaram sós. Paula, deixando o
piano, apanhou na estante o caderno de música.
— O sr. Daubrey comprou-o ontem em Perigueux, para me dar a conhecer este
gênero de música... Êle tem uma bela voz. Mas gosto mais quando êle canta
outras coisas.
— Porque não lhe disseste isso, em vez de tomares esse ar de quem lamenta
a sua incompreensão?
— De quem lamenta? Eu tinha o ar de quem lamenta? Asseguro-te que falei
daquele modo por mera polidez.
Raimundo tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios.
— Acredito, querida. Mas com esse Daubrey tão cheio de si, é melhor não
parecer respeitar suas idéias, pois lhe será um pretexto para querer
impô-las.
De novo a fisionomia de Paula manifestou surpresa.
— Creio que formas uma opinião errada a respeito dele, meu caro. Hoje
conversamos longamente, e ao contrário acho-o de tacto, de idéias
elevadas. E tão inteligente, além de tudo! Demonstra uma pujança
intelectual que se impõe.
— Quanto a isso, não o contesto. Mas idéias elevadas em Fernando Daubrey!
Isso não, Paula. Não te deixes embair por essa conversa fiada.
Ela fez um muchôcho, enquanto se inclinava para colocar sobre a mesa o
caderno de música.
— Talvez estejas excessivamente prevenido contra êle, Raimundo. Devido a
seus sucessos, êle deve ser invejado por muitos colegas que decerto o
podem caluniar. Em geral costumas ser mais indulgente...
— Há casos em que a indulgência deve ceder o passo à verdade. Asseguro-
te, Paula, que me sentiria feliz em poder julgá-lo de outro modo, mas em
sã consciência não o posso fazer.
Ela ergueu para êle um olhar de novo sorridente:
— Tenho toda a confiança nos teus julgamentos, meu caro Raimundo, mas é
realmente pena que...
Deixou a frase em suspenso e aproximou-se da janela. As tílias estavam
agora em completa sombra.
A sra. Berta e o juiz não estavam mais lá. Solitário, Aby estava
estendido no chão, o focinho entre as patas.
— Preciso subir para perguntar a mamãe se tem outras encomendas a
acrescentar na lista de Barnabé, para amanhã.
Raimundo, que a seguira, curvou-se para ela e disse a meia-voz:
— Como estás linda esta tarde, Paula.
Ela olhou-o, sorriu novamente. Porque teve êle a impressão de que esse
sorriso tinha qualquer coisa de maquinal, como se o pensamento de Paula
estivesse longe e a sua face ficasse quase insensível sob os lábios do
noivo bem-amado?
III
IV
Havia alguns momentos já que o coronel e sua mulher tinham voltado para o
salão, com o filho, após o jantar,.e ainda nenhum dos dois se decidira a
pronunciar as palavras que iriam fazer Raimundo sofrer tanto. Este, na
poltrona em que estivera sentada a mãe de Paula, percorria um jornal.
Parecia distraído, mas subitamente, erguendo a cabeça, perguntou olhando
para os pais:
— Mas o que é que há? Mamãe quase não comeu e ficaram os dois se
esforçando por conservar a fisionomia habitual.
O coronel depôs sobre a mesa ao lado a revista que fingia ler e a sra.
Evennes interrompeu seu trabalho de crochet. Ela é que respondeu:
— Há, com efeito, qualquer coisa, meu filho. Berta veio aqui esta
tarde...
Ela viu Raimundo preparar-se como para receber um golpe. Sua voz tomou
uma inflexão mais doce ainda, mais terna, para continuar:
— Paula retira a sua palavra. Diz que se enganou, que não tem por ti mais
que uma amizade de irmã.
— Vai casar-se com Daubrey?
O tom breve, quase duro, fez estremecer a sra. Evennes:
— Sim. Como sabes?
— Nos Pinheirais eu tinha já sentido uma mudança nela, durante e depois
que esse indivíduo esteve lá. Na volta, esta impressão se acentuou. Ela
parecia constrangida junto de mim e por vezes manifestava uma frieza
calculada. Não quis interrogá-la a respeito porque não gosto de mendigar
a afeição que me retiram. Mas espacei as visitas, como devem ter
percebido. Não me era agradável impor-me como noivo, não só por Paula ser
rica como porque, no modo de me acolherem agora e durante as conversas,
qualquer coisa me dava a impressão de que não queriam ver em mim mais do
que o primo. De modo que eu já estava preparado para o que acabam de me
dizer. Não quero dizer que por isso sofra menos.
A sra. Evennes levantou-se e, aproximando sua poltrona da de Raimundo,
enlaçou-lhe os ombros vigorosos.
— Meu querido filho!
Toda a sua ternura maternal estava contida nestas palavras.
O coronel bradou, com voz rouca de emoção:
— Essas mulheres são doidas! Não é possível que Paula seja feliz com esse
tal de Daubrey!
— Coitadinha de Paula!
A sra. Evennes sentiu Raimundo estremecer entre seus braços. Que dolorosa
piedade se exprimia nessa última frase!
Paula, a noiva querida, que outrora o amava, Paula afastava-se dele, ia
para outro, para esse Daubrey indigno dela.
— É odioso, disse êle surdamente. Ela se deixa levar por esse gozador,
esse ambicioso sem escrúpulos, mas quando acordar!
O coronel resmungou:
— A mãe é dez vezes mais doida que ela. Esse indivíduo engrolou-a,
decerto, sem grande trabalho. Cabeça sem miolos, essa Berta. O pobre
Roberto sofreu bastante por isso.
— Sim. Ela se entusiasmou por Daubrey e provavelmente fez todo o possível
para que a filha rompesse o noivado. Paula é uma natureza fraca, incapaz
de resistir a uma pressão hábil. Além disso Daubrey é astuto, soube
agradar-lhe e fez-se passar pelo que não é.
— Evidentemente, evidentemente. Com a cumplicidade de Berta era fácil
cercar uma tolinha como Paula. No fundo, meu filho, tudo isso faz descrer
da inteligência e do valor moral de Paula.
— Prova a sua fraqueza, disse Raimundo sucintamente.
Soltou-se brandamente do braço maternal e levantou-se acrescentando:
— Preciso vê-la. Quero que ela própria me diga o que a mãe veio aqui
comunicar.
A sra. Evennes disse ansiosa:
— Meu filho, será um novo sofrimento! Em seguida ajuntou:
— Mas tens razão, vai.
Raimundo aproximou-se do fogão para ver as horas no velho relógio cujas
pequeninas colunas de mármore branco suportavam um mostrador engastado
num arco de bronze dourado e cinzelado.
— Oito e um quarto... Devo encontrá-la em casa, se não jantou na cidade.
Foi até junto da mãe, inclinou-se e depôs um beijo demorado em sua fronte
emoldurada por bandós pretos levemente ondulados.
— Até já, mamãe. Reze por mim.
Alguns instantes depois, lá se ia êle pela noite fria. Mas nada sentia,
nem mesmo se apercebia de que uma neve fina começava a cair. Tinha o
pensamento concentrado em seu sofrimento, no doloroso fim desse sonho que
encantava sua adolescência. Entretanto, o golpe não o pegara
desprevenido, como já dissera aos pais. Desde algumas semanas pressentia-
o. Paula afastava-se, Paula dirigia-se para a miragem.
Quando se achou diante da velha casa, onde D. Berta ocupava o segundo
andar, quando começou a subir a escada de pedra, cujo corrimão era tão
graciosamente lavrado, sentiu um aperto no coração ao lembrar a sua
alegria quando vinha ver Paula e o ar feliz da prima quando êle entrava.
Acabara aquela alegria, acabara aquele terno acolhimento. Tudo isso
pertencia já ao passado.
A criada de quarto introduziu-o no pequeno salão onde passara tantas
tardes junto de Paula. D. Berta estava ali, sentada diante da
escrivaninha antiga, escrevendo. Teve um sobressalto ao vê-lo.
— Tu, Raimundo?... Teus pais já te disseram, com certeza?...
— Estou ao corrente de tudo e vim falar com Paula.
A fisionomia de D. Berta demonstrou uma viva contrariedade.
— Escuta, meu filho, podias evitar isso... esse encontro penoso para
vocês dois.
Enviezou uma olhadela inquieta à fisionomia decidida de Raimundo.
Êle respondeu friamente:
— Tenho o direito de exigir que ela própria de viva voz retire a palavra
dada, do mesmo modo como a empenhou, no dia em que completou dezoito
anos.
— Mas, meu caro...
— A senhora bem pode dar-me essa satisfação "in extremis", minha tia.
Ela enrubesceu, fustigada pelo seu tom irônico.
— Eu desejava evitar mais sofrimentos a Paula... mesmo porque ela está se
sentindo mal e acaba de recolher-se ao seu quarto.
— Oh, nada receie, não vou suplicar-lhe que volte atrás de sua decisão!
Suponho que ela a tenha tomado depois de refletir maduramente. Tampouco
lhe farei reprovações. Mas tenho uma pergunta a fazer-lhe, uma só. A
senhora não pode recusar-me isso.
Ela hesitou, e em seguida levantou-se, dizendo com mau humor:
— Se fazes assim tanta questão!
Saiu do salão. Raimundo ficou de pé, naquele lugar onde tivera tão
demoradas conversas com Paula. Alguns belos móveis antigos, tapeçarias de
tons delicados, um tapete claro circundado de guirlandas de rosas
pálidas, davam-lhe um ar de elegância discreta. Era um quadro de acordo
com a graça fina de Paula, e Raimundo pensara mais de uma vez que em casa
de seus pais ela encontraria uma moldura semelhante.
D. Berta reapareceu, seguida da filha. Paula estava pálida no seu roupão
de crepe-da-china azul-pavão. Mas assim que se achou diante do primo, o
sangue subiu-lhe ao rosto. Dirigiu-se a êle, dizendo:
— Queres falar comigo?
A voz tremia-lhe. Raimundo apertou-lhe ligeiramente os dedos muito frios.
Êle enrijecia todo o seu ser para reprimir a emoção que o invadia ante
esse puro amor da sua juventude, até então associado aos seus projetos de
futuro.
— Sim. Tenho uma pergunta a te fazer. Retiras a palavra dada?
— Mamãe deve ter explicado a teus pais o motivo por que o fiz.
Ela baixava um pouco as pálpebras. Uma de suas mãos crispava-se sobre a
leve fazenda do roupão.
— Sim. Mas eu queria ouvir da tua própria boca. Êle viu os lábios dela
tremerem.
— Porque me perguntas isso, se já o sabes?
— Porque quero que tu mesma me digas que não me amas mais.
Ela teve uma longa hesitação. Depois sua voz, um pouco baixa, respondeu:
— Estimo-te como a um primo, como a um irmão.
— Nunca me estimaste de outra maneira?
Eles se achavam sob o círculo de luz formado pela lâmpada pousada na
escrivaninha. O roupão de Paula tinha reflexos mais vivos; seus braços,
saindo da larga manga, pareciam de uma brancura quase diáfana. Ela ergueu
os olhos e fitou Raimundo, erecto diante dela todo o elegante vigor de
sua juventude, com seu olhar um tanto imperioso que refletia a ardente
vida de sua alma.
Êle repetiu, num tom que mantinha firme:
— Gostaste de mim de outro modo?
Os belos olhos claros se molharam. Novamente esconderam-se sob as
pálpebras, enquanto Paula respondia, a voz meio rouca:
— Não sei... não creio...
— E, hoje, estás certa de que não me amas, já que retiras a tua palavra?
Paula não respondeu logo. Atrás dela, D. Berta contraía os lábios,
enviando a Raimundo olhares sem benevolência.
— Não, não te amo como tu o querias.
E levantando os olhos, Paula acrescentou, num tom doce e constrangido:
— Perdoa-me, Raimundo.
Parecendo não ter, ouvido, êle perguntou:
— Desde quando o percebeste?
— Oh... há pouco tempo.
— Depois que Daubrey começou a te fazer a corte?
Ela fez um gesto de protesto. D. Berta deu alguns passos à frente e
levantou a voz, meio irritada:
— Nem Paula nem eu teríamos permitido que Daubrey cortejasse quem se
considerava naquela ocasião mais ou menos comprometida contigo,
compromisso aliás sem muita razão de ser, é forçoso confessar, pois êsses
namoricos entre primos são em geral pouco profundos. Têm que passar pela
prova do tempo e da vida. Assim aconteceu com Paula. Ela reconheceu que o
que sentia por ti era um sentimento mais fraternal, e seu coração
lançava-se para outro. E lealmente ela te deu a conhecer a situação.
Admitamos que ela não tivesse conhecido Daubrey, casaria talvez contigo,
julgando amar-te sinceramente e só muito tarde se aperceberia do seu
erro. É bem preferível, confessa,
que esse malentendido tenha sido desfeito ainda a tempo de ser remediado.
— Muito preferível, sem dúvida. Daubrey apresentou-se justamente no
momento de evitar essa penosa desilusão a Paula. Êle não lhe fez a corte,
é claro; o coração de Paula atirou-se espontaneamente para êle. Está tudo
muito bem, e considero-te desligada de teu compromisso, Paula, das tuas
juras de amor que não passaram de enganos da mocidade. Apaguemos o
passado, pois; ao menos o mais que pudermos.
Suas palavras caíam com uma nitidez, uma frieza, que pareciam perturbar
Paula. Ela se tornara novamente muito pálida. E perguntou em tom de quem
implorava:
— Não vamos ficar zangados por isso, Raimundo? Continuaremos muito bons
primos, bem unidos, bem afetuosos?
Êle teve uma espécie de sorriso cuja dolorosa ironia escapou a D. Berta,
mas não a Paula.
— Não se trata de zanga. Somente, não poderá ser como antigamente, eis
tudo.
Em seguida, inclinou-se diante de D. Berta com um frio "boa-noite, minha
tia". Paula deu um passo e segurou a mão do primo.
— Não ficas com raiva de mim, não?
Ela implorava-lhe com a voz e o olhar cheios de lágrimas. Depois curvou
um pouco a cabeça, parecendo oferecer a linda fronte ao beijo de
Raimundo, como tantas vezes o fizera. Uma dor aguda pungiu a alma de
Raimundo ao vê-la assim tão junto de si, respirando o perfume da sua
mocidade, dessa frágil beleza que êle tanto amava e sempre considerava
como devendo lhe pertencer. Afastou-se um pouco, olhando-a para guardar a
visão de uma Paula que não era mais sua, mas que não pertencia ainda a
outro. Por um momento seus olhos readiquiriram a suavidade amorosa que
tanta vez Paula vira neles. E disse rapidamente com voz quase
despedaçada:
— Eu me recordarei sempre de que fôste o meu primeiro amor...
Retirou a mão que ela inconscientemente apertava e saiu do salão.
D. Berta foi junto da filha, depôs a mão em seu braço que estremeceu.
— Êle bem poderia ter-te evitado essa comoção, minha querida. Que
temperamento voluntarioso! Tu não ias ser feliz com êle, Paula.
Paula olhava para a porta por onde Raimundo acabava de desaparecer.
Murmurou:
— Acho que sim.
— Não, querida, podes estar certa. Êle é de uma intransigência ridícula,
em tudo. Vocês viveram sempre em choque.
Paula voltou para a mãe uma face alterada:
— É muito penoso para mim fazê-lo sofrer, mamãe.
D. Berta ergueu os ombros.
— Achas que êle tinha um ar assim tão desolado? De minha parte, não tive
essa impressão.
Paula não respondeu. Fechou por um momento os olhos, talvez para
concentrar o pensamento nesse último olhar de Raimundo, em, que ela havia
visto tanta ternura dolorida e tanta dor que se calava.
Num dia de fevereiro, o dr. Raimundo Evennes fez ouvir seu arrazoado no
processo Valliers. A vasta sala do júri não pôde receber todos os que,
com antecedência, tinham lutado por obter um ingresso. O caso era
sensacional. A acusada pertencia a uma antiga família normanda. Pobre,
órfã, fora para a casa de uma tia de sua mãe, em Paris, para servir-lhe
de companhia.
A sra. de Mury, riquíssima, porém avarenta e mal-humorada, não lhe
poupava maus tratos. Um vizinho, o conde de Chamerade, impressionado com
a graça delicada e triste de Antonieta de Valliers, pediu-a em casamento.
A tia deu o consentimento, mas não o dote. Fixou-se a data do casamento.
Poucos dias antes a velha senhora morreu após terríveis vômitos e uma
dolorosa agonia. Desconfiados por certos indícios os médicos fizeram a
autópsia, que resultou na descoberta de arsênico nas vísceras. De prova
em prova, toda a culpa caiu em Antonieta, a parenta mais próxima.
Ela foi presa. A conselho do noivo, pediu ao dr. Evennes que a
defendesse.
Após cada visita à prisão de S. Lázaro, Raimundo saía sempre mais
persuadido de que aquela criança frágil e tímida não era culpada.
Entretanto, provas esmagadoras recaíam sobre ela. Durante o curso do
processo o dr. Evennes reduzira algumas a nada; outras porém restavam,
suficientes, parecia-lhe, para impressionar o júri.
A personalidade conhecidíssima do sr. de Chamerade, ligado a várias
famílias da aristocracia parisiense, fazia desse processo um
acontecimento mundano. O dr. Evennes tinha um auditório de escol. Na
penumbra que envolvia a sala, devido às janelas muito altas mal deixarem
entrar uma claridade frouxa, moviam-se cabeças elegantemente penteadas.
Os olhares corriam da acusada, morena e esguia, de uma palidez trágica,
ao seu defensor, "o belo Evennes", como se dizia no Foro. Raimundo
folheava suas notas tranquilamente. Mas fervia nele o ardente desejo de
obter essa vitória, de salvar aquela jovem, cujo pequenino rosto pálido,
olhos azues cheios de pungente angústia, incessantemente corriam para êle
como a dizer-lhe: "O senhor é a minha única esperança".
O sr. de Chamerade achava-se lá. Por vezes um fugidio tremor percorria-
lhe o rosto glabro, inteligente e bondoso, moço ainda, a despeito de
quarentão.
Cercavam-no amigos. Não se acreditava, em geral, na culpabilidade da
srta. de Valliers. Alguns estavam ainda hesitantes, como os próprios
juizes.
Apontava-se no banco das testemunhas uma prima da vítima, a sra.
d'Arcier.
Ela delatara algumas frases da srta. Valliers, entre outras a seguinte:
"Para mim é terrivelmente penoso ter de esposar, sem dote, o sr. de
Chamerade. Minha tia é uma criatura odiosa". Antonieta protestava nunca
ter dito semelhante coisa, como afirmava nunca ter tido em seu poder o
arsênico encontrado no quarto.
As simpatias estavam mais do lado dela que da sra. d'Arcier. Esta,
mulherzinha magra, de feições duras e sem graça, demonstrara durante o
curso do processo uma inalterável presença de espírito. Mas não escapara
aos juizes, nem a Raimundo, que ela fazia carga contra a acusada, sem
violência, com pérfida moderação. E o dr. Evennes tencionava basear nessa
atitude a sua defesa.
Na bancada dos advogados o dr. Daubrey mostrava sua larga corpulência.
Sistematicamente, embora sem afetação, evitava Raimundo, cuja habitual
frieza para com êle se acentuava de um quê de desprezo. Os deveres
profissionais unicamente os aproximavam. Isto não deixara de ser notado
no Foro, e como tudo se sabe, não se ignoravam as causas. Todas as
simpatias eram do lado de Evennes, muito querido, e que pela dignidade de
sua vida, retidão de suas convicções e força do seu talento, inspirava a
estima geral.
Paula achava-se no auditório, entre sua mãe e Ariana Daubrey. Seu
casamento devia celebrar-se na semana seguinte. Parecia um tanto cansada,
nervosa. D. Berta procurava distraí-la, de compra em compra, de visita em
visita. Paula deixava-se levar sem parecer desejar alguns momentos para
recolher-se antes de empenhar o seu destino.
O juiz Daubrey, que presidia os debates, anunciou:
— Tem a palavra o dr. Evennes.
Raimundo levantou-se. Na tarde já sombria, ergueu-se sua esbelta silhueta
envolta na beca negra. Havia em sua fisionomia aquela expressão de
energia um tanto altiva que a virilizava fortemente, não obstante a
finura de seus traços, e que há tempos vinha se acentuando. Os olhos
mostravam-se firmes e dominadores, na penumbra que envolvia a sala
silenciosa.
Foi uma defesa como há muito não se ouvia no salão do júri. A voz máscula
e sonora ressoou a princípio em períodos do mais puro estilo clássico,
depois tornou-se ardentemente patética, falando com simplicidade, sem
procurar efeitos, da vida de provocações e das virtudes da srta. de
Valliers. Tinha acentos pungentes que faziam correr um frêmito pelo
auditório. Por fim chegando às acusações levantadas contra a moça pela
sra. d'Arcier, o advogado, fazendo ressaltar o ódio dissimulado dessa
testemunha da acusação, bradou de súbito:
— E tudo isto porquê?... Sim, porquê?
Sua voz profunda ressoou na sala, ao lançar a terrível acusação. Depois
silenciou por alguns instantes. O silêncio trágico pairou sobre a
assistência. Viu-se a sra. d'Arcier estremecer e em seguida endireitar-se
para conservar sua postura impassível.
O dr. Evennes continuou sua defesa. As fisionomias, no auditório,
tornavam-se indistintas. Paula curvou um pouco a fronte e amarfanhava
entre os dedos as luvas que descalçara. Os belos olhos ardentes de Ariana
não largavam a face animada e expressiva do orador e não perdiam um dos
seus gestos tão em acordo com as palavras, sempre.
A sala iluminou-se. O dr. Evennes apareceu em plena claridade e as togas
vermelhas dos juizes retomaram os tons brilhantes que há pouco a sombra
suavizava. A ré fitava o seu defensor e grossas lágrimas, das quais
decerto não se apercebia, escorriam-lhe ao longo das faces pálidas.
O juiz suspendeu a audiência. Em meio do brou-ha-ha, todos os membros da
Ordem dos Advogados ali presentes rodeavam Evennes. O presidente da Ordem
de quem Evennes fora secretário, apertou-lhe a mão calorosamente.
— Evennes, está me proporcionando uma das maiores emoções da minha vida!
O entusiasmo era sincero, salvo entre alguns invejosos, como sempre.
Daubrey disse uma rápida palavra, desviando de Raimundo o olhar
surdamente irritado. Apenas tocaram-se as mãos. Daubrey afastou-se, em
busca da noiva.
Raimundo foi até o bar e em seguida voltou a juntar-se à sua cliente. Ao
vê-lo a srta. Valliers teve uma crise de choro e estendeu-lhe os braços.
— O senhor vai me salvar! Oh, diga! diga!
Ela estava de inspirar piedade, alquebrada pela sua fraqueza, na
humilhação atroz daquele processo, que a expunha à curiosidade pública.
Raimundo, segurando-lhe as mãos trêmulas, animou-a, encorajou-a com firme
doçura. Estava com esperanças, com grandes esperanças. A srta. de
Valliers voltaria para o lado do seu noivo!
E pensava consigo:
"Que ao menos esses sejam felizes"!
Todo o calor patético com que fizera o auditório vibrar, provinha daquele
pensamento, daquela dor que acabava de sofrer. Êle pleiteava menos o
triunfo de uma causa que sabia justa do que evitar o desgosto para o sr.
Chamerade de perder uma noiva querida.
Ao recomeçar a audiência, o dr. Evennes terminou sua defesa. Apontou a
surda avidez que, na sombra, espiava a fortuna da velha. Esta não deixara
testamento. Antonieta, sua única sobrinha, era a herdeira legítima. Mas,
posta de lado essa herdeira, por via de sua condenação, quem entraria na
posse dos bens da defunta?
Todos os olhares se voltaram para a sra. d'Arcier, sempre imobilizada na
sua atitude impassível. O dr. Evennes não pronunciaria nenhum nome, não
parecia acusar ninguém, no entanto, por força mesmo da evidência, cada
palavra sua apontava aquela que era, depois de Antonieta, a parenta mais
próxima da sra. de Mury.
Com sóbria habilidade o advogado fazia ressaltar os pontos obscuros da
acusação, as reticências de certas testemunhas, as declarações feitas por
outros em favor da srta. de Valliers. Citou a seguinte frase da criada de
quarto, onipotente e desgraciosa pessoa que dirigia tudo em casa da velha
senhora: "Eu nem sempre fui amável com a srta. Antonieta, mas lamento-a
muito, agora que a vejo acusada de semelhante coisa, pois se há pessoa
capaz de tal, certamente não será ela!"
Sua bela e máscula voz sabia usar todas as inflexões, desde a mais
cariciosa doçura à mais impetuosa indignação. Ora irônica, com finuras,
ora em amplos, períodos de uma clareza admirável, mostrava-se calma,
serena, desapaixonada, continuando a deslindar ponto por ponto a acusação
forjada contra Antonieta de Valliers.
Por fim êle a ergueu para uma pungente peroração, apelando para a razão,
a lógica daqueles que nesse momento iriam proclamar a inocência ou a
culpabilidade da acusada. Em seguida calou-se. Durante um longo momento,
depois que Evennes se sentou, a imobilidade pairou no salão. Raimundo,
ante esse silêncio, compreendeu toda a extensão de seu sucesso. Vinha de
manter sob um encantamento essa multidão, esses velhos advogados, esses
juizes, tudo gente já cansada e indiferente; havia-os subjugado ao
domínio do seu talento, subitamente revelado, brotando.de seu sofrimento.
Sentiu-se um tanto orgulhoso. Era moço, sentia-se em pleno vigor
intelectual e amava a glória, como todos os humanos. Teve a visão súbita
dos triunfos que o esperavam, naquela carreira em que viria a ser um dos
primeiros.
A embriaguez foi breve. Pensou:
"Esses sucessos, eu os ofereceria a Paula. Seria feliz em oferecer-lhe um
nome célebre. Mas, agora !
Os jurados se recolheram. A deliberação foi breve. Quando reapareceram,
houve um longo movimento na multidão. O sr. de Chamerade, ofegante,
inclinou-se um pouco, como para ouvir melhor a sentença, que era tanto
para a sua noiva quanto para si.
O júri reconheceu a inocência de Antonieta de Valliers. Um suspiro de
alívio pareceu percorrer a sala. O sr. de Chamerade ergueu-se, a
fisionomia alterada, os olhos cheios de alegria. A srta. de Valliers
desmaiou. Carregaram-na, inerte, para fora da sala.
Pouco depois Raimundo, fugindo das congratulações, foi informar-se da
moça.
Ela acabava de voltar a si e pedia que chamassem o advogado.
Quando a deixou em companhia do sr. de Chamerade, ainda emocionado com a
felicidade e o reconhecimento deles, viu-se a cada passo impedido de
chegar à galeria de Harlay. Uma moça, vestindo um elegante manto verde-
escuro, esgueirou-se entre os grupos e chegou-se a êle. Era Ariana, os
olhos brilhantes, dizendo com voz entusiasta:
— Permita que esta humilde futura colega o felicite também.
Depois de sua temporada nos Pinheirais, êle não a tinha visto senão de
passagem e raramente. Pareceu-lhe que uma certa frieza sobreviera nas
relações de Paula com ela. Seu primeiro movimento foi de rispidez. Não
era a irmã de Daubrey? Mas afrouxou logo ante aquele olhar firme e
sincero.
—... O senhor me emocionou, me transportou. Houve um momento em que senti
as lágrimas brotarem. Oh, eu nunca choro. Certamente mais tarde não me
faltarão ocasiões para isso. É pois um novo sucesso para si.
Ela fez aquele seu sorriso sutil, meio irônico. Mas seus olhos pareciam
conservar o brilho humido das lágrimas que há pouco as palavras de
Evennes lhe haviam provocado.
Êle replicou, com uma alegria mixta de emoção:
— Foi realmente uma vitória, pois, segundo suas próprias afirmações, não
ignoro o quanto é céptica.
Mas súbito o sorriso apagou-se em seus lábios. D. Berta aproximou-se,
precedendo a filha. Toda amável, tomou a mão do seu jovem parente e
apertou-a com força.
— Meu querido sobrinho, és uma revelação!
— Não previa isso, minha tia?
Ela não compreendeu a intenção mordaz. Mas Paula percebeu, pois seus
lábios tremeram e a transparência de sua tez clareou-se de um rosa vivo,
ao mesmo tempo que desviava o olhar perturbado.
Dirigiu ao primo algumas palavras, a que êle respondeu com fria polidez.
Depois os amigos cercaram Raimundo. Respondendo a todos, apertando as
mãos estendidas para êle, viu Paula afastar-se em companhia de Fernando
que a viera buscar. Raimundo desviou o olhar. Naquele minuto, toda a dor
que guardava escondida, gritou, desfazendo quase a embriaguez do sucesso.
Ao voltar do Foro para casa, pensava:
"Não devia mais pensar nela. Não é quem eu pensava, pois se deixou
apaixonar por um Daubrey!"
Mas fora muito o seu amor de infância, sua ternura forte e protetora, sua
fidelidade constante, para que o seu sonho morresse sem o dilacerar.
Na sala, a sra. Evennes lia para o marido, que não podia ouvir Raimundo.
Quando êle entrou ela levantou a cabeça com uma vivacidade que não lhe
era habitual:
— Então, meu querido?
— Absolvida, mamãe! Foi um grande sucesso para este seu filho.
O coronel exclamou:
— Eu já esperava isso!
Raimundo aproximou-se da mãe e lhe depôs no colo um molho de cravos que
acabara de colher para ela. Em seguida depositou um longo beijo na mão
que ela lhe estendeu. Seus olhos se encontraram Os de Raimundo diziam: "É
a ti, minha querida confidente, minha conselheira, que devo o meu
sucesso".
No olhar da sra. Evennes uma calma alegria se misturava à mais profunda
ternura.
Raimundo sentou-se entre seus pais, e o coronel pondo a mão sobre o ombro
do filho, fitou-o com afetuoso orgulho.
— Ora bem. Conta-nos isso, meu filho.
Enquanto Raimundo falava, a sra. Evennes não lhe tirava os olhos de cima.
Notava-lhe o gesto um tanto nervoso da mão, certa contração no sorriso,
sombras de sofrimento passageiro nos olhos demasiado graves. Pensou:
"Êle viu Paula".
Mas nada perguntou. Ela sabia que nem mesmo a mão de uma mãe pode tocar
em certas feridas, que só o tempo, e sobretudo a fé, viva e profunda, são
capazes de aliviar, de fechar talvez.
SEGUNDA PARTE
I
Certa tarde, durante o intervalo da audiência, o dr. Evennes viu-se
cercado de estudantes que lhe pediam opinião sobre um ponto controverso
em direito. Empurrados pelo movimento da multidão, ao longo da sala dos
Passos-Perdidos, iam eles ouvindo a palavra ardente e clara de Evennes,
trocando olhadelas entre si quando, de passagem, algum olhar feminino se
fixava complacentemente no jovem advogado, cujas defesas tinham sempre um
auditório elegantíssimo, atraído talvez mais pelos encantos físicos do
orador que pela eloqüência.
Um rapaz alto, de tez bronzeada e espessos cabelos crespos, disse a meia-
voz:
— Ali está a maravilha da classe em conversa com o irmão. Coisa rara.
Parece não haver muita harmonia entre eles.
Um outro, a seu lado, murmurou:
— Puxa, como ela é bonita!
Ficaram olhando Ariana Daubrey que caminhava lentamente, ao lado do
irmão, falando com certa animação. A toga caía em longas dobras
flutuantes em volta de seu talhe, que deixava transparecer suas linhas
flexuosas, harmoniosas, sob a ampla veste, junto da fisionomia rígida e
fria de Fernando, a vivaz beleza de seu rosto acentuava-se, e os olhos de
tom violeta pareciam mais atraentes com sua altiva sinceridade, quando
comparados aos de Daubrey, que pareciam sempre velados por uma sombra
inquietante, ao abrigo das moles pálpebras.
Ariana tinha-se formado alguns meses antes, mas ainda não fizera nenhuma
defesa. Contentava-se em receber alguns clientes no gabinete que montara
em sua própria casa. Era sempre vista no Foro, onde ia ouvir os advogados
de fama e pedir conselhos aos mestres juristas, sempre prontos a dar-lhe
esclarecimentos. Sua entrada numa sala de audiência tinha por efeito
desviar do debate, por mais importante que fosse, a atenção dos seus
colegas masculinos. Ela parecia insensível a essa admiração, que mantinha
sempre a distância. Ninguém podia vangloriar-se de ter recebido a
permissão de fazer a corte a Ariana Daubrey, e os audaciosos que o
tentavam sabiam o irônico desdém que acolheria suas ousadias.
Ao terminar a audiência, Raimundo, após um rápido colóquio com o
presidente da Ordem dos Advogados, dirigiu-se para a grande escadaria da
galeria quadrangular, afim de subir à terceira câmara do tribunal. A sala
dos Passos-Perdidos se esvaziara pouco a pouco. De novo as salas de
audiência se enchiam e sob as velhas abóbadas recomeçavam a elevar-se,
frouxas ou eloqüentes, as vozes dos oradores.
Ao chegar aos últimos degraus, Raimundo viu Ariana apoiada na balaustrada
de mármore da galeria, olhando embaixo o imenso hall quase deserto. Ela
viu-o e estendeu-lhe a mão sorrindo.
— Vai falar?
— Não. Vou ouvir Hardy. Admiro a sua eloqüência firme, um tanto seca, mas
nítida, e estou curioso por saber como ele se sairá desse caso espinhoso.
— Eu também ia para lá. Acompanhei todo esse processo com muito
interesse.
— Quando faz a sua primeira defesa?
Ela teve um desses sorrisos suaves e encantadores que lhe iluminavam o
rosto como um límpido raio de luz.
— Ainda não pensei nisso. Confesso, tenho um certo receio.
— Receio?... a senhorita, tão intrépida?
Êle olhava-a sorrindo e mais uma vez notava o desenvolvimento daquela
beleza que já o surpreendera, três anos antes, nos Pinheirais. Depois
daquela data, pouco tinha visto Ariana, até sua entrada para a Ordem. Êle
e seus pais quase não mantinham relações com Paula, que se tornara Madame
Fernando Daubrey. O juiz e sua filha faziam todos os anos, em janeiro,
uma visita à sra. Evennes, e não passavam disso. De tempos a tempos,
Raimundo via a srta. Daubrey, na sociedade ou em alguma audiência no
Foro, principalmente quando êle tinha de falar. Trocavam algumas
palavras, olhavam-se com simpatia, mas um e outro tinham consciência de
que a sombra constrangedora de Fernando se interpunha entre ambos.
Depois que Ariana passou a militar no Foro, Raimundo encontrou-a com mais
freqüência, mas em geral, em suas conversas sempre breves aliás, quase só
tratavam de assuntos profissionais. Jamais falaram em sua temporada nos
Pinheirais. Também nunca falaram em Paula.
Raimundo sentia grande interesse por essa personalidade atraente, nada
banal, a qual há tempos já lhe revelara um recanto da sua alma. Alma
leal, orgulhosa, incapaz de se comprazer nas baixas satisfações — porém
alma ardente, que uma paixão poderia arrastar e lançar fora do caminho
reto, pois os princípios dirigentes não existiam para ela. Quando essa
idéia lhe vinha, Raimundo sentia uma profunda piedade por essa moça ainda
pura, que sem dúvida, a despeito de suas atitudes de cepticismo,
conservava algumas ilusões, e sensível, vibrante, muito havia de sofrer
se um dia a vida a desfolhasse. Para onde, para quem se voltaria ela
então, já que não podia contar com a afeição familiar?
De algum tempo para cá esse sentimento de piedoso interesse se tornava
mais forte. Raimundo se apercebia mais dos perigos que a aguardavam com
vê-la mais vezes, escutando os ecos das admirações masculinas. Ela
possuía aquele encanto que subjuga, que atrai, que prende; fora feita
para inspirar o mais profundo devotamento. Um dia ou outro a paixão
cantaria nela, responderia ao amor que a solicitasse. Se essa paixão
fosse culpável, que barreira lhe poderia opor? Ou então, se a decepção
atingisse seu orgulhoso coração, em que revolta ou em que desespero se
afundaria?
Ariana apoiava-se na balaustrada de mármore dando as costas para o hall
quase deserto agora. Uma de suas mãos sustinha a pasta de marroquim, a
outra pendia, fina e branca, ao longo da estamenha preta. À reflexão de
Raimundo, a moça pôs-se a rir.
— Talvez me ache às vezes demasiado audaciosa. É bem possível que não
aprecie muito as mulheres que se lançam ao assalto das profissões
masculinas.
— Meu parecer é que só excepcionalmente as mulheres devem seguir certas
profissões e isso mesmo levadas por uma vocação irresistível.
— Porque?
— Em primeiro lugar porque, em nossos caminhos atravancados, elas estão
mais desarmadas ainda que os homens diante da concorrência, a não ser que
possuam faculdades acima do comum. Algumas abrirão caminho, outras
morrerão de fome com seus diplomas.
Portanto para que submetê-las a estudos longos, custosos, difíceis e que
por sua natureza mesma, e ainda pelo meio masculino em que são obrigadas
a se moverem, as arriscam a perder qualquer coisa de seu encanto, de sua
delicadeza de alma?
Ariana curvou um pouco o busto, de encontro à balaustrada.
— Então, censura-me ter escolhido esse caminho?
— Não tome essas palavras para si. Sua inteligência a coloca acima do
nível comum. Atingiu brilhantemente e sem esforços a entrada desta
carreira em que se lhe oferecem oportunidades de êxito. Além do mais,
sabe manter-se sempre bem feminina. Tudo isto basta, parece-me, para
justificar a escolha que fez.
Ariana abanou a cabeça.
— Na verdade não foi uma escolha. Por mim preferiria seguir uma carreira
artística. Meu pai é que me fez estudar direito, achando que me traria
vantagens pecuniárias. Mas não é do meu gosto. Entretanto, preciso ganhar
a vida, principalmente agora. Vim a saber ultimamente que nossa fortuna,
que já não era grande, em parte evaporou-se, devido a ter sido por vezes
mal empregada. Meu pai poderá aposentar-se, levar até o fim uma
existência confortável, mas eu tenho de trabalhar para viver e poder
manter a minha independência. Tem pois, diante de si, uma colega de fato,
dr. Evennes.
Ela sorriu, mas seu olhar era severo, resoluto.
— Muito bem, senhorita. Neste caso desejo-lhe um sucesso rápido. Tenho
uma grande admiração pelas moças corajosas que enfrentam audaciosamente a
vida e trabalham para adquirir sua independência, em vez de contar
unicamente com a renda dos pais ou um casamento rico.
— Bem problemático, aliás, quando não se possue um bom dote. E eu casar-
me por dinheiro, isso nunca!
Interrompeu-se, voltando-se para dar um olhar à imensa nave que se
alongava em dois vértices em baixo dela. Raimundo viu-a unir as belas
sobrancelhas de um castanho mais carregado que os cabelos. Fernando
Daubrey saía da primeira câmara e dirigia-se a uma pretoria. Seu andar
firme e vagaroso, o vigor de sua larga corpulência, a impassibilidade de
seus traços duramente talhados, davam uma impressão de força concentrada,
um tanto brutal.
Ariana, afastando-se da balaustrada, voltou-se para Raimundo:
— Sabe que meu pai alugou um apartamento na mesma casa em que o senhor
mora?
— Já sei, a encarregada disse-o a mamãe esta manhã. Sentimos grande
prazer na vizinhança.
Ela meneou a cabeça. Um ar de ironia flutuava em seu olhar, desenhava-se
nos cantos de seus lábios.
— Diz isso por delicadeza, mas... Talvez o senhor sinta alguma simpatia
por mim, mas não gosta de meu pai, cujas opiniões são justamente o
contrário das suas. Além de tudo, há Fernando...
Aproximou-se mais de Raimundo e colocou a mão em seu braço:
—... Nunca lhe falei nisso, mas uma vez por todas quero expressar-lhe o
meu sentimento a respeito do que sucedeu. Depois não falaremos mais no
assunto. Entretanto quero que saiba que fiz tudo para que meu irmão
desistisse de casar com Paula. Conheço-o bem e sei que êle não podia
senão fazer a infelicidade dela. Além do mais achava uma indignidade êle
aproveitar-se da fraqueza e inconstância de Paula para a conquistar. A
ela própria eu disse também, com franqueza, o que eu pensava. Mas estava
envolvida, dominada por meu irmão. Êle é hábil, sabe cativar as mulheres!
— certa espécie de mulheres, pelo menos. A mãe dela levava-o às nuvens,
nos primeiros tempos. Agora creio que já está suficientemente capacitada
do que êle é. Quanto a Paula... Coitada dela!
Interrompeu-se por alguns segundos, e em seguida acrescentou, fitando em
Raimundo o olhar firme e leal:
— Eu e Fernando nunca fomos muito amigos. Nossos temperamentos se chocam,
não existe nenhum ponto de contacto entre nós. Depois de seu casamento,
raramente o vejo, a não ser aqui... Êle poucas vezes vai lá em casa, e eu
o menos possível à casa dele. Paula tornou-se muito mundana para mim.
Além do mais, ficou aborrecida comigo pelo que eu lhe disse por ocasião
do noivado e mais ainda porque constatou que eu tinha razão e que ela
cometeu a maior das loucuras, aconselhada pela mãe, aliás. Por minha
parte confesso que a desprezo um pouco, depois que faltou à palavra
empenhada.
Raimundo disse brevemente:
— Ela fez bem, já que não me tinha amor.
Ariana fez um rápido movimento de ombros, murmurando:
— Não lhe tinha amor!
Seu olhar fixou-se naquele rosto em que o sofrimento passado, o estudo, a
reflexão, a consciência de um valor reconhecido por todos, haviam
impresso um ar de nobreza e de máscula energia, e em que os olhos,
refletindo uma alma ardente e forte, atraíam como dois focos luminosos.
— Ela cedeu, como uma criança, à influência da mãe e à de Fernando, eis
tudo. Eles a convenceram de que não tinha por si mais que uma amizade de
irmã. Fraca, e um tanto vaidosa, ela gostou que um homem de posição como
Fernando lhe fizesse a corte, com tantos agrados e elogios. Enfim, acho
que esse casamento foi em parte um trabalho de sugestão levado a efeito
por D. Berta e meu irmão, o temperamento de Paula prestando-se a isso com
facilidade... Mas mudemos de assunto, deixemos o passado, folhas mortas.
Eu só queria que soubesse que nunca estive de acordo com aquilo e fui
sempre do seu lado.
— Conheço-a bastante, senhorita, para duvidar um instante de seus
sentimentos. É demasiada bondade e delicadeza de sua parte o querer
certificar-me.
Êle considerava emocionado aquele rosto expressivo que, mais ainda que as
palavras, lhe exprimia tanta simpatia e que era tão sincero, tão vivaz,
tão agradável.
— Quero também assegurar-lhe que não tenho culpa se meu pai alugou esse
apartamento... Êle não me consultou...
— Por Deus, não vão imaginar que estejamos descontentes em tê-los por
vizinhos. Ao contrário, minha mãe terá satisfação em vê-los
constantemente.
Porque dizia isso? Nunca a sra. Evennes manifestara desejos de ver
freqüentemente a srta. Daubrey. Mas não lamentou as palavras que lhe
haviam escapado. Sua mãe não escondia que, pelo pouco que conhecia de
Ariana, esta lhe interessava bastante. Raimundo tinha pois a certeza de
que não recusaria receber algumas vezes aquela moça a quem poderia fazer
tanto bem.
Ariana disse a meia voz, pensativa:
— Ah, sua mãe, sua mãe!... Desejaria conhecê-la melhor, para admirá-la.
Bem, agora vamos ouvir o dr. Hardy. Acho que sua defesa deve estar
adiantada, pelo tempo que o retive aqui.
— Ficará para outra vez. Estou satisfeito por me haver falado com tanta
franqueza.
— Verdade? Eu estava sem coragem... receava ser desagradável recordando-
lhe essas coisas.
— Não. São mesmo folhas mortas, como disse há pouco, e seus dedos finos
de mulher delicada podem tocá-las por vezes, sem as romper.
Interrompeu-se e acrescentou, após curto silêncio:
— Eu sempre a considerei à parte. Não obstante a opinião que faço de seu
irmão, nunca deixei de sentir simpatia por si e de estimá-la, pois a
julgo sincera, mesmo em seus erros.
Com um daqueles gestos espontâneos tão encantadores nela, Ariana
estendeu-lhe a mão.
— Sinto um grande prazer nisso!
Seus olhos brilhavam de um contentamento que surpreendeu e comoveu
Raimundo, que apertou demoradamente sua mão quente, de epiderme tão suave
que parecia a de uma pétala.
Foram juntos à terceira câmara. O dr. Hardy, baixinho e grisalho, cuja
voz nítida tinha ressonâncias de metal, exumava naquele momento textos de
leis. Durante alguns instantes Raimundo procurou seguir-lhe as seduções.
Mas logo seu espírito evadiu-se para longe, para aquele passado que
Ariana acabara de recordar.
Seu coração não sofria mais. Depois de ter energicamente recalcado aquele
amor que não tinha o direito de conservar, apercebeu-se certo dia que a
lembrança de Paula, e até mesmo a vista dela, não acordavam mais em seu
íntimo as fibras dolorosas. Amara nela o sonho mais puro de sua
juventude, aureolara-a com o idealismo que tinha em si mesmo. Uma brusca
desilusão lhe havia revelado a vaidosa fraqueza daquele espírito, a
fragilidade de suas convicções religiosas, de seus princípios morais. A
Paula que havia amado não fora mais que um fantasma, uma imagem criada
pela sua imaginação. Êle havia sofrido como todos aqueles que vêem ruir o
seu sonho; mas era um desses espíritos ardorosos e fortes, que se dão
inteiros, exigindo entretanto em troca o mesmo abandono sincero e que
necessitam ter em alta conta a pessoa amada. Paula, tendo aceitado
tornar-se esposa de Dabrey, ateu e devasso confesso, cedendo a uma
conquista vulgar e deixando-se levar pela miragem de ambição projetada à
sua frente pela mãe, provocara a ruina da ilusão e o fim do amor em um
homem da têmpera de Raimundo.
Entretanto, sempre que a revia ou que lhe falavam dela, sentia por
momentos uma impressão penosa. Ela lhe recordava todo o amor da sua
juventude e um grande sofrimento. Não a amava mais, porém não podia
esquecer o passado, o que tinha sido, tudo o que tinha esperado quando
acreditava no amor de Paula, na firmeza de seus princípios, na límpida
beleza de sua alma.
II
Numa tarde clara de Abril, Ariana fez a primeira visita à sra. Evennes.
Foi recebida no jardinzinho que enfeitava a frente do pavilhão. A pequena
grade que o separava do terreno comum era em parte guarnecida de hera,
escondendo aos olhares indiscretos o caramanchão florido de rosas durante
o verão onde o coronel gostava de ir sentar-se. Um leve odor de violetas
perfumava o ar. No canteiro que se estendia ao longo da grade, as flores
da primavera desabrochavam e viam-se as folhas prestes a brotar nos
longos caules das roseiras serpenteando nos velhos tijolos da fachada.
Ariana apresentou as desculpas do pai que não pudera vir, por achar-se
doente.
— Receio que seja obrigado a pedir aposentadoria, acrescentou ela.
O coronel perguntou:
— Isso lhe desagrada?
—- Sim, êle contava trabalhar por mais alguns anos.
A fisionomia do coronel pareceu entristecer-se de súbito. Torceu
nervosamente o bigode que ainda se mantinha quase inteiramente louro.
— Eu bem sei o quanto custa ter a carreira interrompida.
Ariana disse com certa ironia:
— Oh! meu pai não o sentirá tanto como o senhor, coronel. Pelo menos, não
sentirá do mesmo modo.
Ela olhava para o coronel com certa emoção. Sabia por Raimundo o desgosto
que fora para êle a interrupção de sua carreira e quanto a inatividade
pesava a esse homem abatido em pleno vigor, em plena inteligência.
Imediatamente, para desfazer a impressão penosa causada no ambiente,
desviou a conversa para outro assunto.
Seu encanto natural, o reflexo de sua beleza, da vida que animava o seu
olhar, parecia expandir-se em sua volta, alegrando a fisionomia fina,
murcha mas agora sorridente do coronel, e a da sra. Evennes que olhava
com amigável interesse a encantadora visitante.
Quando Ariana quis se levantar, ela a reteve:
— Se não está com muita pressa, fique um pouquinho mais. Vamos tomar um
café com leite, Meu marido deve fazer quatro refeições leves por dia, por
recomendação do médico. Prefere um pouco de chá?
Ariana disse gostar muito de café com leite, e retomou seu lugar sem mais
cerimônias. Sentia-se singularmente bem naquele jardinzinho tranqüilo,
onde ecoavam tão longínquos os ruidos de Paris que a gente se julgava em
um recanto qualquer de província. A voz da sra. Evennes, seu olhar calmo
e suave, davam uma impressão de paz, de serena beleza, que eram um
bálsamo para a alma profunda de Ariana.
A criada trouxe o café, e a moça ofereceu-se para servi-lo. A sra.
Evennes e o marido acompanhavam com prazer os movimentos dela, vivazes e
graciosos. Quando ela apresentou uma chícara ao coronel, este lhe fez uma
cortesia discreta. Ela fez um sorriso tinto de certa ironia. E pensava
consigo: "O pai me faz cortesias; mas o filho, nunca". Entretanto, uma
tarde, no pequeno terraço do Penhasco do Inferno, há tempos, os olhos
dele tinham-lhe falado, durante alguns segundos. Ariana sabia que naquele
momento Raimundo a admirara e quase o confessara. Mas depois disso, nunca
mais...
Tornou a sentar-se ao lado da sra. Evennes. O sol principiava a sair da
frontaria sobre a qual se estendiam grandes panos de sombra. As janelas
abertas deixavam entrever o salão deserto, na penumbra em que o cinza dos
ornatos, a seda amarela de uma almofada, o dourado velho de um quadro,
punham indecisas notas claras.
Chegou uma amiga da sra. Evennes que vinha descansar um pouco, entre duas
visitas de caridade. Era uma senhora baixinha, morena, pálida, de olhos
vivos de meridional, que passava a vida fazendo o bem, discretamente, sob
a capa de uma ágil frivolidade e alegres gracejos. Ela animava com
presteza os seus protegidos, dizia-lhes abertamente seu modo de pensar e
às vezes até se privava para ajudá-los. Contudo, não, tinha ilusões, nem
contava com a gratidão deles, virtude sobrehumana, assegurava ela.
Quando a sra. Evennes lhe apresentou a srta. Daubrey dizendo que ela
exercia a profissão de advogada, a visitante disse cordialmente:
— Tenho grande prazer em conhecê-la, senhorita...
Seu agudo golpe de vista examinou rapidamente a moça. Em seguida,
enquanto se sentava, acrescentou:
— Se precisar de clientes, eu lhe mandarei. Mas previno-a de que não
pagam.
Ariana respondeu alegremente:
— Mande-os. Gosto da minha profissão, não trabalho somente por dinheiro.
— Fala como Raimundo. Êle é muito caridoso e não se importaria de deixar
um negócio rendoso para prestar um serviço a alguém que nada lhe pagasse.
Ariana meneou a cabeça:
— Desconheço a caridade. Ajo segundo a minha fantasia, pelo meu prazer, e
porque em geral acho agradável ir em ajuda dos outros. Não me sujeito a
nenhum dever.
Sem dúvida a sra. Murillon não ignorava o gênero de educação que o juiz
Daubrey dera aos filhos, pois não manifestou a menor surpresa àquela
declaração. A sra. Evennes disse com doçura:
— Nenhum dever? Mas não há senão isso na vida, minha filha!
— Podemo-nos libertar deles, minha senhora.
— Acredita, minha filha, que os que pensam assim sejam os mais felizes?
A sra. Evennes inclinava-se um pouco para ela. Seus olhos cheios de uma
grave piedade encontraram os de Ariana, que se ensombreceram, perdendo
aquela expressão de vida fremente.
— Não. Não são. Não podem ser. Mas quando, desde a infância, lhes
inculcaram o desprezo por toda disciplina moral, quando lhes disseram, ou
lhes deixaram crer, que eram eles próprios a sua própria finalidade e que
não existe de fato nem bem nem mal, mas unicamente o que nos pode
prejudicar pessoalmente, que querem que eles façam?... que querem que
eles façam?
A patética interrogação passou-lhe entre os lábios que tremiam um tanto.
Ariana baixava os olhos, como se quisesse esconder o olhar, em que a
angústia crescia. Em seguida, subitamente, sorriu e o vivo brilho
reapareceu em seus belos olhos de tom violeta.
— Vamos escorregando para as considerações filosóficas. A culpa é minha.
Por isso, vou já embora. Minha visita já foi excessivamente demorada.
O coronel protestou e a sra. Evennes disse amigavelmente:
— Espero que a repita.
A sra. Murillon, vendo a moça afastar-se, cruzou os braços curtos sobre o
peito, num gesto comum às suas horas de reflexão. A seu lado o coronel
murmurou:
— Que moça encantadora!
A sra. Murillon fez com a cabeça um sinal afirmativo. Em seguida
perguntou:
— Ela vem sempre aqui?
— Oh, não. Até agora, não nos fazia mais que uma visita por ano. Mas como
o pai alugou um apartamento no primeiro andar, em frente, é provável que
a vejamos agora mais freqüentemente.
A sra. Murillon descruzou os braços, e observou: — Ela não se parece em
nada com o irmão.
— Não, em nada, felizmente. O coronel exclamou:
— Que cachorro! Quando me lembro que por causa desse tipo Paula abandonou
Raimundo! Quando me lembro disso!
— Ela não demorou muito a se arrepender. O casal não anda muito de
acordo, dizem.
— É exato. Paula é uma infeliz. Para aturdir-se leva uma vida mundana
desenfreada, que não deixa de lhe abalar um pouco a saúde. Berta chora de
arrependida, não na frente dos outros, é claro. O rapaz continua na mesma
vida escandalosa de solteiro e além de tudo desperdiça a fortuna da
mulher. Ah, elas caíram em boa, pobres cegas!
A sra. Evennes, curvada sobre a mesa, arrumava as chícaras vazias numa
bandeja. E disse tristemente:
— Uma existência inutilizada, perdida... eis o que Berta arranjou para a
filha.
Já agora o sol não iluminava mais que o cimo das casas. Uma brisa fresca
acariciava as roseiras, levantava as folhas da revista largada pelo
coronel à chegada de Ariana. De uma janela vizinha, uma voz fresca soltou
um garganteio que se derramou pelo silêncio.
A sra. Evennes acrescentou:
— Se ao menos o filho não tivesse morrido! Seria um consolo para ela.
Nada mais lhe resta, agora, nem mesmo suas crenças resistiram à
influência maléfica de Daubrey.
— Mantém relações habituais com ela?
— Não, cada vez menos. Berta vem raramente aqui e nunca fala nos
desenganos da filha, é natural.
Com um gesto maquinal da longa mão branca, a sra. Evennes espantou um
mosquito que lhe roçava os cabelos. Uma tristeza pensativa expandia-se em
seu rosto. A sra. Murillon declarou:
— Berta é uma avoada. Paula foi mal aconselhada por ela...
O coronel interrompeu-a, em tom peremptório:
— Quando uma mulher é amada por alguém como Raimundo, não se deixa embair
assim, a não ser que seja... a maior das tolas!
— Henrique! disse com brandura a sra. Evennes.
Êle moveu de leve os ombros, dirigindo à mulher um sorriso afetuoso.
— Sim, está bem, eu me calo, santa Helena! Que querem, nunca pude perdoar
isso a Paula. Quanto ao orgulho que meu filho me inspira, a sra. Murillon
já o conhece e o desculpa.
— Não só o desculpo como o aprovo. Sei o quanto vale Raimundo, sob todos
os pontos de vista, e sou de sua opinião, coronel. Paula não era digna de
um homem como êle.
O coronel piscou um pouco o olho para a mulher, como a dizer: "Aí está,
viu?" A sra. Evennes sorriu. E a sra. Murillon prosseguiu, levantando-se:
— Mas não têm pressa de casar Raimundo, creio. Por certo, êle só terá o
trabalho de escolher.
— Não falta quem queira. Mas êle não parece ter pressa. Exige um certo
número de qualidades morais e intelectuais que nem sempre se encontram
juntas numa só pessoa.
— A que fôr escolhida poderá dizer que a vida lhe reservou um bom número.
— Sim, mas quem será ela?
Assim dizendo a sra. Evennes apoiava as mãos na mesa e olhava para diante
de si, pensativamente.
—...Raimundo havia de sofrer tanto se não fosse compreendido! É um
temperamento delicado e, sob sua aparência reservada, um coração
apaixonado. Paula já lhe fez conhecer a desilusão. É preciso que pela
segunda vez êle não entregue o coração a quem não o merece.
Uma fugidia ansiedade passou por seu olhar e seus lábios tremeram um
pouco ao repetir:
— Quem será ela? Quem será?
III
IV
VI
VII
VIII
IX
COMO era de esperar, o dr. Evennes não terminou aquele dia a sua defesa,
tendo de continuá-la no dia seguinte. Tratava-se de um caso de peculato,
que há meses prendia a opinião pública. Raimundo, advogado da parte
civil, desmontou peça por peça o sistema de defesa de seu adversário, um
dos mais notáveis advogados da época. Manteve os colegas, os juizes, o
auditório, todo o tempo que quis, sob o domínio de sua palavra vibrante e
forte, e subjugou-os com uma peroração em grande estilo, cuja beleza foi
mais realçada ainda pelo timbre quente, sonoro e profundo de sua voz.
Os estudantes comprimiam-se para ouvi-lo. Ariana achava-se entre êles.
Seu coração se dilatava de orgulho. Aquele homem admirado e estimado por
todos, era seu noivo, e amava-a com a forte paixão de um coração sem
mácula. Nessa mesma manhã, diante da sra. Evennes, êle lhe expressara
novamente seus sentimentos, e lhe dera o primeiro beijo de amor. Parecia-
lhe sentir ainda o calor de seus lábios trêmulos que sempre haviam
recalcado com firmeza as palavras que êle nunca poderia dizer a uma
Ariana descrente. Mas agora podiam falar. Tinham falado já, e o que
haviam dito deixava Ariana em plena felicidade.
Indiferente à atenção de que era objeto, ela só via a êle, em pé na
tribuna, dominando toda a sala com a pujança de sua voz e a energia do
seu olhar. Ela não havia notado a presença, na primeira fila, da sra.
Berta e de Paula. Só depois as viu. À claridade morta daquela tarde
chuvosa, a fisionomia de Paula parecia fatigada, seus traços alterados.
Ao ver a cunhada, Ariana sentiu a impressão de piedade mixta de desprezo
que ela sempre lhe inspirara. Pensou consigo:
"Êle a amou e ela o repeliu! Que remorsos deve ela sentir agora! Tenho
pena dela, é uma fraca de espírito. Nunca teria sabido amar Raimundo como
êle o merece. Não o teria compreendido".
Seu pensamento reportou-se a Fernando. Havia um mês que êle estava em
Leysins, tentando melhoras para a doença que o consumia. Segundo os
curtos bilhetes que costumava enviar, seu estado era estacionado. Mas os
médicos não haviam escondido ao juiz que, se êle se curasse, teria de
mudar completamente seu modo de vida.
Ora, Ariana tinha a certeza antecipada de que seu irmão não se submeteria
nunca a uma existência pacífica e não teria nenhuma prudência com a
saúde.
Olhando para Paula, que não tirava os olhos da tribuna da defesa, Ariana
pôs-se a pensar:
"Sem dúvida ela sabe do estado de Fernando e tem como certa a viuvez.
Então tentará novamente conquistar Raimundo".
A esse pensamento, um sorriso de suave triunfo lhe veio aos lábios. Ela
não temia nenhuma mulher no mundo — nem mesmo Paula, a noiva outrora
adorada. Estava certa da fidelidade daquele que, embora apaixonado e
sabendo que ela o amava, tinha recalcado seu coração para obedecer à sua
consciência.
Pensava: "Êle preferiu a mim o seu Deus". E achava que isso era nobre,
justo, e era um traço de firmeza. Os espíritos que se dominam diante das
paixões humanas são aqueles em que nos podemos apoiar com confiança e que
não desenganam.
Terminava a audiência. O juiz, com uma voz que se arrastava em longos
períodos, pronunciou a condenação do acusado e de sua cúmplice. Ariana
manteve-se à parte enquanto todos apresentavam felicitações a Evennes,
Aproximou-se dele quando o viu menos cercado. Seus olhos se encontraram,
longamente. Os de Ariana diziam: "Como falou bem! Sinto-me orgulhosa de
si"! Os de Raimundo respondiam: "Como é linda! Amo-a"!
Cercados de colegas, dirigiam-se conversando para a sala dos Passos-
Perdidos. A sra. Berta e Paula, furando os grupos cerrados, apareceram em
frente de Evennes. Enquanto felicitava o primo, Paula lançou um olhar à
jovem advogada, cuja beleza nada perdia com a severa vestimenta que lhe
caía com graça, e sentiu um arrepio de inquietação ao ver tão límpida
felicidade em seus olhos que sorriam ao fitar Raimundo.
A sra. Berta inclinou-se ao ouvido da filha:
— Aí vem o juiz Daubrey. Vamos embora, Paula.
Durante o processo de separação de corpos, ela tivera com o pai de
Fernando uma violenta altercação, e desde então não se tinham mais visto.
Devido a isso afastou-se logo, acompanhada de Paula que apartara a mão de
Raimundo dizendo:
— Até breve, não? Precisas vir jantar conosco um dia desses.
O juiz aproximou-se da filha. Tinha um telegrama na mão, e uma emoção
incontida lhe alterava os traços do rosto magro, que parecia mais terroso
ainda.
— Um telegrama de Leysins, Ariana. O estado de Fernando agravou-se
subitamente e receia-se um desenlace.
Desapareceu o sorriso do olhar de Ariana. Tomou o telegrama, leu-o e
disse tristemente:
— Pobre Fernando. Irá morrer assim sozinho? Devemos ir para junto dele.
Vamos, papai?
— Vamos já embora. Precisamos consultar o horário dos trens.
Ariana voltou-se para Raimundo:
— Acha que devemos avisar Paula?
— Decerto.
O juiz protestou:
— Que idéia! Está tudo acabado entre eles.
— Não. Ela deve ser avisada. Êle é sempre seu marido.
— Encarregue-se disso então, Evennes. Eu não tenho tempo, nem quero fazê-
lo.
— Bem, eu vou avisá-la. Talvez ainda não tenha saído; vou ver se a
encontro.
Ariana disse:
— Até logo.
E a terna carícia de seus olhos completou o adeus.
Raimundo procurou em vão sua tia e Paula na sala dos Passos-Perdidos.
Resolveu ir à casa delas. Talvez tivessem ido para lá diretamente. Se
não, voltaria lá mais tarde. Devia avisar Paula antes que saísse o trem
noturno.
Enquanto, em seu carro, se dirigia à casa de sua tia, Raimundo meditava
no triste destino daquele homem, deixado entregue a si mesmo desde a
infância, escravo dos próprios vícios, tornado uma ruína moral, e em quem
todos os bons sentimentos pareciam anulados. Por uma misteriosa
disposição da Providência, Ariana tinha sido preservada de um futuro
semelhante. Ela guardava em si um coração sem mácula e uma alma reta,
delicada, que se revoltava contra o mal, capaz de devotar-se a todas as
grandes causas e de manter intacta a honra do seu lar.
A sra. Berta e Paula estavam em casa. A criada introduziu Raimundo na
pequena saleta onde quase em seguida Paula apareceu.
— Tu aqui, Raimundo? Que aconteceu?
Seu acento exprimia surpresa, não inquietação; uma alegria contida se
refletia em sua fisionomia.
— O juiz Daubrey acaba de receber um telegrama de Leysins. Fernando está
muito mal. Êle parte com a filha pelo noturno e encarregou-me de te
prevenir.
Os traços de Paula alteraram-se um pouco; suas pálpebras baixaram
ligeiramente enquanto murmurava:
— Não pensei que êle estivesse tão mal.
— Parece que não há esperanças de salvá-lo. Tens de partir quanto antes,
se queres encontrá-lo vivo.
Ela sobressaltou-se, olhando para o primo com estupefação.
— Eu, ir lá?... tornar a vê-lo? Mas êle não é mais nada para mim!
— Êle nunca deixou de ser teu marido, e está à morte. Tens um dever a
cumprir, ao lado dele.
Ela disse com veemência:
— Não quero mais vê-lo! Não sabes quanto o odeio? Êle arruinou a minha
vida. Por culpa dele sou uma desgraçada. Bem sabes quanto êle me fez
sofrer. Eu te contei tudo... Ou melhor, não! não te contei tudo!.
Seus traços se alteravam, seus olhos tinham um brilho excessivo e a
expressão de indignado sofrimento comunicava uma beleza quase trágica à
sua fisionomia.
Raimundo disse com firmeza.
— Não ignoro o que sofreste por causa dele. Mas sei também que és cristã
e que és sua esposa. Esse homem vai morrer; deves estar ao lado dele para
tentar salvar-lhe a alma.
— Nunca!
— É teu dever, Paula! Ela repetiu:
— Nunca!
Seu rosto tornara-se rígido e desviava-se do olhar de Raimundo.
— Seja! Isso é com a tua consciência. Tens ainda duas ou três horas para
refletir. Espero que mudes de resolução, pois mais tarde talvez te
arrependas.
A voz de Raimundo era nítida e severa, e a expressão de seu rosto
acentuava a reprovação contida em suas palavras. Deu um passo para a
porta, a fim de retirar-se. Paula pôs-lhe a mão no ombro:
— Não vás assim, Raimundo! Eu queria satisfazer o teu desejo, mas o que
pedes é demais. Tornar a vê-lo, agora que o havia eliminado da minha
vida!
— Um laço uniu-te a êle para sempre. Teu lugar é lá, ao lado dele.
Coragem, Paula.
Tomou-lhe a mão e acrescentou em tom suave e compassivo:
— Vai, Paula. Cumpre o teu dever. Eu rezarei por ti.
A mão de Paula tremeu na dele. Viu os ombros da moça estremecerem sob o
veludo do vestido azul turqueza. Seus olhos ardentes de febre fixaram-se
em Raimundo.
— Queres que eu vá, Raimundo?
Êle fez um gesto de protesto, largando a mão de Paula:
— Não se trata da minha vontade; é uma questão de consciência. Eu disse:
"Deves ir para junto de teu marido que está à morte". Mas não tenho o
direito de te impor isso.
Ela balbuciou:
— Sim... sim...
Curvou a cabeça, como outrora, quando Raimundo lhe fazia uma censura
amiga. Seus lábios tinham a mesma ruga de desgosto e as pálpebras muito
brancas se abaixaram docemente sobre os olhos que imploravam: "Perdoa".
Foi uma visão do passado, naquele mesmo quadro que Raimundo vira tantas
vezes, outrora, sentado ao lado da noiva terna e sorridente. Uma emoção
melancólica insinuou-se em seu coração e fez desaparecer de seu rosto a
frieza antes manifestada. Envolveu num longo olhar enternecido aquela que
lhe recordava as doces horas passadas de um amor sincero e protetor. Não
se lembrava mais do sofrimento que ela lhe causara, do seu amor-próprio
ferido. Ou antes, lembrava-se com uma espécie de indulgência,
involuntariamente um tanto desdenhosa, por aquela fraqueza de que podia
agora medir toda a extensão. Paula não era mais capaz de despertar-lhe
outra emoção a não ser a recordação. De há muito, a mágoa desaparecera,
do mesmo modo que o amor.
— Vai para o lado dele, Paula, disse com doçura. Mais tarde me darás
razão de te dar esse conselho, quando sentires a consciência em paz após
os momentos penosos por que terás de passar.
Houve um longo silêncio entre eles. De um vaso, as rosas se esfolharam e
as pétalas caíram sobre o papel frio de uma revista, com leve ruido. O
pequeno lustre antigo expandia sua vaga claridade sobre os dois primos,
um em frente do outro, êle calmo, olhando-a com compaixão, ela hesitante,
ansiosa, tomada de um tremor que perpassava pelo veludo do vestido. Por
fim ela disse, numa voz abafada: — Pois bem, irei, já que achas que é meu
dever. Tu és a luz que me guia neste caos moral, na incerteza em que me
debato. Em quem poderei ter confiança senão em ti, que me perdoaste, que
és tão nobre e tens tanta energia e tanta bondade na alma? Tu aclaras o
meu caminho, tu me sustens com o teu exemplo e o teu conselho. Eu o
aceito, Raimundo, e irei custe o que custar.
— Muito bem, Paula. Não esqueças que esse homem, por mais vil que seja,
tem uma alma que é preciso salvar. Agora vai. Só tens tempo de te
preparar.
Segurou a mão que ela lhe estendia. Ela pediu:
— Beija-me, para me dar coragem.
Os lábios de Raimundo apenas afloraram a fronte que se curvou para êle.
Disse com doçura:
— Adeus, Paula. Não esqueças de rezar. É a Deus que deves pedir que te
ilumine e te dê a força de que necessitas.
Saiu. Paula ficou só na pequena sala. O veludo azul de seu vestido
espalhava reflexos sob a claridade do lustre. Brilhos escapavam dos anéis
em seus dedos que se entrelaçavam, trêmulos, num gesto de angústia.
Murmurou:
"Meu amor... meu amor..."
Duas lágrimas correram-lhe ao longo das faces levemente rosadas. Paula
olhou longamente em torno de si, para aqueles móveis, aqueles objetos,
testemunhas de um amor desaparecido, e que um dia tinham ouvido Paula
Daubrey responder à interrogação de seu noivo: "Não, não te amo como tu o
querias". Curvou a cabeça, pensando com desespero: "Ah, louca, louca"!